FORMAÇÃO DE PROFESSORES EM EJA
Denise Maria Comerlato*
Voltar-se para a questãaao da formação de professores é discutir a nossa
própria prática enquanto Faculdade de Educação da Universidade Federal. E
pensar o que temos feito, como temos realizado este trabalho, por quê, com
quem e para que. Isto envolve a formação acadêmica do Curso de Pedagogia e
os cursos de extensão, inclusive o de formação de educadores populares.
A primeira questão que se coloca é a reflexão para nós professores ou
pretendentes a professores, do porquê ser educadores de jovens e adultos. Por
quê? Certamente em cada resposta se obterá uma visão de Educação,
especialmente de Educação de Jovens e Adultos, e também uma visão de
quem são os educandos, do papel da educação junto a esses, do nosso papel
enquanto educadores, etc. Uma questão simples, banal, no entanto nem
sempre profundamente refletida.
Em primeiro lugar, é preciso ter claro o que diferencia a educação de
crianças da de jovens e adultos, para aí também esclarecermos nosso papel de
educadores junto a esses grupos. E não há como pensarmos no papel da
educação junto a esta faixa etária, sem pensarmos quem são estes sujeitos.
Sem muito esforço, facilmente reconhecemos que jovens e adultos
não-escolarizados pertencem a grupos sociais de baixo poder econômico.
Adultos ainda oriundos do meio rural, jovens da periferia urbana que
freqüentaram a escola às vezes sem muita regularidade sujeitos
multirepetentes, sujeitos expulsos da escola, e mulheres de meia-idade, com os
filhos crescidos, que pouco ou nenhum acesso tiveram à escola. Tem-se ainda,
portadores de necessidades especiais excluídos do ensino regular ou oriundos
das escolas especiais, portadores de pequenas deficiências físicas ou mentais
que também não obtiveram lugar ou sucesso na escola para crianças, enfim,
uma gama de excluídos de toda sorte.
Com exceção dos portadores de necessidades especiais, a quase
totalidade dos educandos jovens e adultos tem em comum a pobreza. Uma
pobreza que coloca grande parte dos educandos no patamar da sobrevivência,
uma pobreza que se caracteriza pela falta de acesso a uma série de conquistas
de bens econômicos, sociais e culturais que compõem nossa sociedade urbana
e desenvolvida.
Fantasticamente, estes jovens e adultos não são somente carentes de
tudo. Eles são também trabalhadores ou aspirantes a tal, são também
portadores de uma linguagem própria (que muitas vezes nós chamamos de
* Mestre em Educação. Profa. do Departamento de Estudos Especializados da Faculdade de Educação da
UFRGS.
errada) que expressa a sua realidade social ou de seu grupo, visões de mundo,
leituras acerca da realidade, sonhos e aspirações, desejos e faltas...
Estes jovens e adultos são portadores de culturas: cultura do meio rural,
da periferia, da vila, da origem afro, alemã, de certa religião, etc. Estes jovens
e adultos são pais, mães, esposos, esposas, namorados e namoradas, filhos e
filhas. Eles educam, cuidam de si, cuidam de outros, eles tem múltiplos
saberes. Eles, principalmente, aprenderam a sobreviver num mundo regido
pelo valor da escrita, em que a escolarização vale a possibilidade de obter
empregos e ascender socialmente: permite preencher fichas, ler documentos,
usar a escrita como forma de perpetuar a memória, de obter informações, de
comunicar-se à distância.
Estes jovens e adultos, homens e mulheres, sabem muito do valor social
da escrita, muito mais que qualquer pessoa escolarizada. Para nós se tornou
tão trivial usar a escrita que, com certeza, não podemos imaginar o que seria
viver sem fazer uso dela. No entanto, pessoas não-escolarizadas sabem muito
bem os usos que são feitos da escrita, sabem para que serve, onde é usada e,
provavelmente, o que deve estar escrito nos diversos portadores de texto que
encontramos no nosso meio. Isto significa que estes homens e mulheres tem
um processo de letramento bastante avançado que deve ser reconhecido. Na
sua maioria também aprenderam a dissimular seus não-saberes: esqueci o
óculos, a letra está muito pequena, você poderia ler para mim? Por fim, criam
estratégias de leitura de símbolos, sinais, imagens, cores, números, que lhes
permite orientar-se no meio urbano e desenvolver suas atividades de trabalho
mesmo sem o domínio da leitura e da escrita. Eles também resolvem contas
mentalmente, na maioria das vezes sem fazer uso das operações matemáticas
formais.
Falar de EJA é reconhecer os diferentes grupos sociais que não são
escolarizados e seus saberes, reconhecer suas diferenças e semelhanças em
relação a outros grupos ou aos letrados. Com certeza, grupos muito mais
heterogêneos que os de crianças, para os quais o mundo ainda está se
apresentando. Homens e mulheres já tem construídas visões de mundo, já tem
suas estruturas mentais elaboradas a partir das quais compreendem o mundo e
o si mesmos no mundo.
Trabalhar com EJA é ter tudo isso em conta e saber o que ensinar e o
porquê, levando em conta os saberes que estes educandos já tem, fazendo-os
reconhecer estes múltiplos saberes, sua validade para a vida e seus limites.
Este seria o ponto de partida para qualquer prática educativa em EJA:
educadores e educandos se reconhecerem enquanto sujeitos portadores e
produtores de cultura, de saberes. Reconhecerem o lugar de onde falam, a
partir de suas trajetórias, das suas experiências, das suas crenças, desejos e
aspirações. Reconhecerem-se além disso, enquanto sujeitos coletivos, os
aspectos comuns das suas trajetórias com os de outros colegas, sujeitos
integrados em um processo histórico que ultrapassa nosso limite individual e
nos identifica com classes sociais, com raças e etnias, com religiões, com
gêneros, com partidos ou propostas políticas, com grupos sociais.
É a partir disso que escolarização se torna educação, quando está
vinculada aos processos sociais mais amplos, nos quais a escola pode e deve
ocupar este espaço privilegiado de reflexão acerca da vida: de todas as formas
de organização humanas, de como as sociedades se organizam para manter,
ampliar e qualificar a existência humana, das concepções e valores que
orientam o modo de ser e agir, dos processos históricos, da ocupação do
espaço geográfico, das relações sociais, das relações de poder, das diversas
linguagens, do conhecimento do corpo físico, etc.
Ser sujeito, ser ator, é fazer escolhas. É posicionar-se frente ao mundo e,
ao posicionar-se, ocorre o compromisso. Quando escolhemos ser educadores,
professores de jovens e adultos, assumimos um compromisso que nem sempre
é claro para nós.
Fazer formação de professores em EJA é partir desta reflexão de quem
somos, que visões de mundo, de educação, de jovens e adultos temos, que
desejos nos levam-nos a interessarmos por esta área de atuação. É nos
voltarmos para nós mesmos, é nos reconhecermos em nossa transitoriedade e
inacabamento enquanto seres humanos, é saber da importância e da
profundidade desta tarefa que é educar.
Sabemos que jovens e adultos que procuram a EJA querem saber
assinar o nome, ler a placa do ônibus, ler o jornal, a Bíblia, escrever cartas,
escrever recados, fazer contas no papel. Querem muitas coisas, na sua maioria
estão cheio de desejos. Querem aprender a “falar direito”, aprender novos
jeitos de ser, conhecer pessoas. Querem tudo pra agora. Não há tempo a
perder, não há tempo para o conhecimento ser usado no futuro, como se diz
para as crianças, o futuro quase já passou. O que vale são as necessidades e
desejos do agora. Não há mais grandes ilusões acerca da ascensão social,
ainda que para o jovem talvez se abra a possibilidade de trabalho.
Mesmo desejando repetir o ensino tradicional, por acreditar que essa é a
única forma de aprender, o adulto facilmente diferencia uma educação voltada
para seus interesses de uma educação voltada apenas para a escola, para passar
de ano. Veja-se as classes de jovens e adultos que têm suas salas cheias.
Atender os interesses e necessidades do aprender dos educandos não
passa necessariamente por trabalhar com tudo aquilo que eles demandam,
como ler a Bíblia ou escrever cartas. Não que não se possa fazer isto, mas
passa muito mais por construir uma visão coletiva, congregar necessidades do
grupo, que atender somente interesses/necessidades pessoais. Isto exige a
constituição de grupo, da instauração da solidariedade e compromisso com o
outro, antes isolado em seus próprios pensamentos, exige aprender a ouvir e a
falar, exige afeto, “querer bem” como diz Paulo Freire, desejar que cada ser
humano possa ser o máximo de suas potencialidades. Quanto mais um
aprende, mais o grupo inteiro cresce, desenvolve a reflexão crítica acerca do
conhecimento do mundo.
Trabalhar com jovens e adultos é estar aberto para conhecer seus
educandos, é estabelecer junto a eles um projeto do que e como aprender. É
saber que, apesar de estarmos apreendendo sempre, temos um papel
diferenciado, somos orientadores do grupo, temos objetivos enquanto sujeitos
educadores, objetivos que nos comprometeram na escolha de trabalho com
EJA, assim, temos propostas que devem ser sempre abertas, propostas que são
mais intenções a serem perseguidas.
A partir disso, outras questões se colocam: Qual o currículo para EJA,
capaz de questionar a lógica hierárquica e a legitimação dos saberes imposta
por um longo processo histórico e social? Como o jovem e o adulto aprende?
Que metodologias são capazes de aproximar teoria e prática, de proporcionar
coerência no fazer/refletir dessas duas dimensões que envolvem a prática
pedagógica?
Em nossa experiência em formação de professores/educadores de
jovens e adultos, buscamos desenvolver características que possam contribuir
com a prática dialógica, crítica e potencializadora dos saberes das classes
populares. Algumas dessas características são:
Que o educador seja um sujeito agregador, orientador do grupo,
animador e propositivo, a fim de manter o grupo unido e
perseguindo objetivos de aprendizagem comuns à turma;
A escuta compreensiva, muito mais que avaliativa, uma escuta que
busque entender o outro, descobrir sua lógica, sua fundamentação,
pois isto sustenta visões de mundo;
A tolerância, que só é possível com muito querer bem, necessário
para respeitar as diferenças;
Atitude de curiosidade investigativa: querer muito mais entender do
que dar respostas, ou induzir o educando a chegar na resposta
correta, o que vem junto com a escuta compreensiva;
A flexibilidade para lidar com o inesperado;
O respeito pelo tempo do outro, o que exige uma paciência também
compreensiva, porque sabemos que no processo de aprendizagem
cada um tem um ritmo, tem um tempo para produzir suas próprias
reflexões;
Assumir a responsabilidade de estar trabalhando com seres
humanos, traduzida pelo compromisso que assumimos com o outro;
A participação social, cultural e política: o educador deve ser um
agente de transformação social, comprometido também com os
projetos de sociedade que estão sendo construídos, isto é , um sujeito
também apreendente da Educação no sentido amplo, que se dá pela
inserção em todos os campos sociais, assim como estamos, enquanto
sociedade, aprendendo a construir a democracia no país.
Para tanto, os cursos de formação de professores – sejam cursos de
educadores populares leigos, cursos de magistério ou cursos de Pedagogia devem desenvolver uma prática coerente com as características que desejamos
para o educador de Jovens e Adultos. Uma prática que reconheça e utilize os
saberes e as histórias de vida dos próprios educadores, que potencialize suas
reflexões críticas e suas inserções sociais, que proporcione vivências capazes
de aguçar a capacidade investigativa e o compromisso com os grupos
populares, e que, acima de tudo, respeite-os como seres humanos: respeite
suas idéias, seus posicionamentos, suas leituras de mundo, seus sentimentos.
Por fim, buscamos cursos de formação que proporcionem práticas
reflexivas, onde cada um possa se reconhecer como sujeito a partir de seus
próprios pontos de vista talvez, a partir dessas muitas visões se possa construir
uma nova visão, mais abrangente, mais crítica, que ultrapasse o mundo
individual de cada um e, então se recoloque a utopia, o projeto coletivo como
esperança de um mundo melhor, mais justo e igualitário.
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