MOBILIDADE URBANA E O ACESSO À CIDADE: UMA QUESTÃO DE
PLANEJAMENTO
Dina Trovo Costa
Fátima Rejane Kluge Correa
Sandra Denardin
Simone Dos Santos Nunes
Tami Teixeira Aso
“Todo mundo tem direito à vida, todo mundo tem direito igual.
Motoqueiro, caminhão, pedestre, carro importado, carro nacional.”
Arnaldo Antunes e Lenine (Rua da Passagem – Trânsito).
SUMÁRIO:
Introdução.
1
A
Mobilidade
Urbana
e
seus
Desafios.
2
Acessibilidade, Cidadania e Igualdade Material. 3 Impactos da Lei de
Mobilidade Urbana sobre o Planejamento Urbano. Conclusão. Referências
Bibliográficas.
Introdução
Os versos epigrafados bem ilustram a análise proposta no presente trabalho,
que busca abordar a temática da mobilidade e da acessibilidade urbanas no seu viés
jurídico-legal, mas sem esquecer que, para além do arcabouço normativo pertinente,
a matéria se insere em um contexto multidisciplinar, haja vista que muitos são os
aspectos que a tangenciam, dentre os quais podemos mencionar os econômicos, os
sociais, os históricos até mesmo os culturais.
Como exemplo disso, podemos citar o caso recente do nosso país, em que o
aumento de renda da população urbana ensejou o ingresso de um grande número
de pessoas no mercado de consumo, associado à política de fomento do Governo
Federal a certos segmentos da economia (no intuito de fazer frente à crise
econômica mundial), como o da construção civil e o da indústria automobilística.
1
Além do fator econômico, faz-se presente também um fator social que, de
certa forma, resgata uma parcela da sociedade historicamente excluída do acesso a
bens e serviços, públicos e privados. E é evidente que esse processo envolve ainda
questões culturais que estão relacionadas a padrões de consumo.
Jaime Lerner, em um fórum sobre mobilidade realizado na cidade de São
Paulo, recentemente, definiu o carro como “o cigarro do futuro”, porque nasce como
um “bem associado à liberdade, ao status social e à riqueza”. Porém, quando
popularizado, torna-se uma das principais fontes de dores de cabeça da mobilidade
no trânsito, causando congestionamentos, acidentes, poluição e danos à saúde. E,
tal qual o caso do cigarro, a forma de enfrentar o problema mundo afora são muito
semelhantes a do combate ao uso do tabaco, como campanhas de conscientização
de que o uso faz mal à saúde (no caso, à cidade), evoluindo para medidas de
restrição ou proibição do uso (no caso, do tráfego).
Guardadas as devidas proporções, a brilhante comparação induz à reflexão
sobre o modelo de cidade que se quer para viver e, principalmente, que se quer
legar para as futuras gerações.
As
cidades
são
sistemas
complexos
e
dinâmicos,
em
constantes
transformações. Em um mundo eminentemente urbano, em que mais da metade da
população do planeta passou a viver nas cidades, os desafios multiplicam-se na
mesma proporção do crescimento populacional e reclamam soluções de toda ordem,
sobretudo nas grandes metrópoles, caracterizadas pelo grande contingente de
habitantes que demanda vasta gama de serviços públicos e infraestrutura urbana
condizente.
Nesse contexto, um dos maiores desafios das metrópoles brasileiras neste
início de milênio diz respeito à mobilidade e à acessibilidade. Tal desafio, contudo,
não é encargo (e árduo) só dos grandes centros urbanos; é dever de casa que se
impõe às cidades que ainda podem prevenir os malefícios de um processo
desordenado e caótico de expansão urbana.
A Constituição Federal de 1988, em seu art. 182, estatui que a política de
desenvolvimento urbano, de competência dos executivos municipais, observadas as
2
diretrizes fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das
funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes.
Em decorrência da norma constitucional, foi editada a lei que estabelece as
diretrizes gerais da política urbana, de nº 10.257/01 (Estatuto da Cidade) e outras
que tratam de matéria pertinente à mobilidade, acessibilidade e planejamento, como
é o caso das Leis ns. 10.048/00 (atendimento prioritário e acessibilidade), 10.098/00
(acessibilidade), 10.741/03 (Estatuto do Idoso) e, mais recente, a 12.587/2012, que
institui as diretrizes da política nacional de mobilidade urbana.
No caso específico do Município de Porto Alegre, há uma tradição histórica
em matéria de planejamento, tendo sido a primeira capital do país a editar normas
voltadas para a organização do crescimento da cidade, já no início do século
passado. O primeiro plano diretor foi elaborado em 1959. Em 1979, foi aprovado o
primeiro plano diretor de desenvolvimento. Em 1999, foi sancionado o atual plano
diretor
de
desenvolvimento
urbano
ambiental
(PDDUA),
através
da
Lei
Complementar nº 434, de 1º de dezembro de 1999, que foi reformulado pela Lei
Complementar nº 646, de 22 de julho de 2010.
Importante salientar que o PDDUA de 1999 é composto de sete estratégias
que são enumeradas em seu art. 3º, dentre elas a da mobilidade urbana (inciso II),
que é disciplinada nos artigos 6º ao 10. A acessibilidade, então vinculada somente
às pessoas portadoras de deficiência, é referida no parágrafo único do art. 6º, que
remete às disposições da NBR-9050, do ano de 1994, que deverão ser observadas
na aplicação da estratégia de mobilidade urbana, no caso de obras de construção de
praças, vias públicas, loteamentos e espaços urbanos em geral, tanto nos planos e
projetos de iniciativa privada como do Poder Público.
Posteriormente, o Município de Porto Alegre foi também o primeiro no país a
ter um plano diretor de acessibilidade, instituído pela Lei Complementar nº 678, de
22 de agosto de 2011, com o objetivo de promover acessibilidade às pessoas com
deficiência ou com mobilidade reduzida. Por seu turno, a Lei Complementar nº 626,
de 15 de julho de 2009, que institui o plano diretor cicloviário integrado também
veicula normas sobre planejamento, mobilidade e acessibilidade urbanos.
3
Feitas essas colocações introdutórias, a questão que se pretende analisar no
presente trabalho é: como a atual legislação contribui para a melhoria da mobilidade
urbana e do acesso à cidade e quais os seus impactos sobre o planejamento
urbano?
A resposta a essa indagação, que pode parecer óbvia ao primeiro olhar,
sobretudo quando se analisa o repertório legal que disciplina o assunto, na prática
se reveste de grande complexidade, dependendo não só de decisão política, mas
também de consenso social.
1 A Mobilidade Urbana e seus Desafios
Considerando-se que as cidades são sistemas complexos e dinâmicos, em
constante transformação, a temática da mobilidade urbana assume um patamar de
importância cada vez mais relevante no que diz respeito ao planejamento urbano e à
elaboração de mecanismos garantidores da função social da cidade. A cidade
inclusiva deve possibilitar a todos os seus cidadãos, de forma igualitária, o acesso e
o usufruto de suas diversas potencialidades, seja no âmbito social, político ou
cultural. A concretização
do seu pleno e
democrático acesso depende,
necessariamente, de se pensar a mobilidade também sob a perspectiva da
acessibilidade como direito fundamental a essa cidade inclusiva.
Em um cenário caracterizado por cidades que concentram mais da metade da
população mundial, a mobilidade urbana aparece como um dos principais gargalos a
serem obrigatoriamente solucionados.
Se a evolução da sociedade provocou a cidade que temos hoje, onde estão
superadas as funções clássicas de circular, trabalhar, recrear e morar, trazidas pela
Carta de Atenas, também parece óbvio que evolua o conceito de mobilidade urbana.
Ampliado, ele passa a relacionar-se intimamente a noções de sustentabilidade e de
melhoria do bem-estar e da qualidade de vida da população.
4
A importância desses princípios fica evidente no texto da Carta Mundial pelo
direito à cidade, escrita durante o Foro Social de las Américas, que ocorreu em 2004
em Quito, Equador.
“El derecho a la ciudad es definido como el usufructo equitativo de las ciudades
dentro de los princípios de sustentabilidade, democracia, equidade y justicia social.
Es um derecho colectivo de los habitantes de las ciudades, em especial de los
grupos vulnerables y desfavorecidos, que les confiere legitimidad de acción y de
organización, basado em sus usos y costumbres, com el objetivo de alcanzar el
pleno ejercicio del derecho a la libre autodeterminación y un nível de vida adecuado.
El Derecho de la Ciudad es interdependiente de todos los derechos humanos
internacionalmente reconocidos, concebidos integralmente, e incluye, por tanto,
todos los derechos civiles, políticos, económicos, sociales, culturales y ambientales
que já está regulamentados en los tratados internacionales de derechos humanos.
Esto supone la inclusión de los derechos al trabajo en condiciones equitativas y
satisfactorias; a fundar y afiliarse a sindicatos, a seguridade social, salud pública,
agua potable, energia eléctrica, transporte público y otros servicios sociales; a
alimentación, vestido y vivenda adecuada; a educación pública de calidad y la
cultura; a la información, la participación política, la convencia pacífica y el acceso a
la justicia; a organizarse, reunirse y manifestarse. Incluye también el respeto a las
minorías y la pluralidade étnica, racial, sexual y cultural y el respeto a los migrantes.
El territoria de las ciudades y su entorno rural es también espacio y lugar de ejercicio
y cumplimiento de derechos colectivos como forma de assegurar la distribuición y el
disfrute equitativo, universal, justo, democrático y sustentable de los recursos,
riquezas, servicios, bienes y oportunidades que brindan las ciudades. Por eso el
derecho a la ciudad incluye también el derecho al desarrollo, a un médio ambiente
sano, al disfrute y preservación de los recursos naturales, a la participación en la
planificación y gestión urbana y a la herencia histórica y cultural.”1
A cidade consiste, portanto, em espaço fundamental de construção, devendo
desenvolver-se de forma justa, igualitária,
inclusiva e com potencial
de
transformação, considerando as necessidades de todos os cidadãos. Em última
análise, podemos dizer que o ideal a se atingir depende da capacidade de
1
Direito à cidade e proibição de retrocesso. Revista da Procuradoria-Geral do Município de Porto
Alegre, Porto Alegre, CEDIM, n. 23, dez. 2009, 300p., p. 54-55.
5
integração entre a teoria e a prática das políticas voltadas à mobilidade, buscando
compreender a multidisciplinaridade que envolve o dia a dia das cidades e
influenciam diretamente na vida das pessoas. Nesse sentido, entendimento de Maria
Etelvina:
“Quando se examina o tema mobilidade urbana, não se pode deixar de lembrar que
deslocamento não é um fim, mas um meio, um meio de acessar o fim, o objetivo
visado.”2
Nessa realidade, em 10 de julho de 2001, foi sancionada a Lei nº 10.257,
denominada Estatuto da Cidade, que regulamenta os arts. 182 e 183 da
Constituição Federal. Além disso, estabelece diretrizes gerais da política urbana, as
quais perfectibilizaram em 3 de janeiro de 2012, quando foi sancionada a Lei nº
12.587, que instituiu diretrizes da Política Nacional de Mobilidade Urbana – PNMU.
Observa-se que as cidades brasileiras priorizaram, ao longo do tempo, o
automóvel em detrimento de outros modais de locomoção. Essa opção, aliada ao
aumento exponencial do número de carros nas ruas, teve como consequência um
trânsito cada vez mais caótico, mesmo em cidades menores.
Efetivamente, a Lei Federal nº 12.587/2012 veio para atender aos ditames
constitucionais da competência exclusiva da União para legislar sobre a política de
incremento urbano a ser executada pelos municípios. A importância da Lei de
Mobilidade Urbana, no entanto, não se resume a isso. Fundamentada em princípios
como acessibilidade universal equânime aos transportes públicos, melhoria na
prestação do serviço, desenvolvimento sustentável, controle social e distribuição dos
melhoramentos e ônus pelo uso dos diversos modos de transporte urbano, a norma
apresenta uma nova perspectiva e, mais do que isso, caminhos para a reconstrução
da realidade atual.
O Programa Mobilidade Urbana objetiva promover a articulação das políticas
de transporte, trânsito e acessibilidade a fim de proporcionar o acesso amplo e
democrático ao espaço de forma segura, socialmente inclusiva e sustentável,
2
O Estatuto da Cidade aplicado: diretrizes gerais de mobilidade urbana e o plano diretor de Porto
Alegre, p. 523.
6
priorizando a implementação de sistemas de transportes coletivos, dos meios não
motorizados (pedestres e ciclistas), da integração entre diversas modalidades de
transportes, bem como implementação do conceito de acessibilidade universal para
garantir a mobilidade de idosos, pessoas com deficiências ou restrição de
mobilidade.
Dessa forma, a Lei de Mobilidade Urbana representa uma grande
oportunidade de reflexão sobre as cidades que queremos para o nosso país nas
próximas décadas e veio ao encontro dos diversos anseios dos estudiosos da
questão, que alertam para a impossibilidade de se continuar pensando em
mobilidade urbana independentemente da acessibilidade nos seus mais diversos
aspectos, como analisa Maria Etelvina:
“Nesse sentido convém mencionar estudo de Popper e Hoel, que salienta ser mais
relevante, como critério de avaliação das políticas de transporte urbano, a
acessibilidade às oportunidades do que a redução de congestionamentos.
Pode-se entender, assim, o acesso aos diversos serviços e bens, ao lazer, à
educação, ao trabalho como política pública de inclusão social.”3
Com esse enfoque, a lei estabelece princípios, diretrizes e instrumentos para
orientar os municípios a planejarem o sistema de transporte e de infraestrutura viária
para circulação das pessoas e cargas, de forma a atender a população e contribuir
para o desenvolvimento urbano sustentável e para a concretização de uma cidade
inclusiva.
2 Acessibilidade, Cidadania e Igualdade Material
A cidade inclusiva e sustentável, reinventada a partir de novas opções
administrativas e legais, configura-se como o modelo mais adequado à garantia do
direito à cidade. Carlos Alberto Molinaro defende que o direito à cidade consiste em
3
GUIMARAENS, Maria Etelvina Bergamaschi. O Estatuto da Cidade aplicado: diretrizes gerais de
mobilidade urbana e o plano diretor de Porto Alegre. In: Cinco anos de Estatuto das Cidades:
desafios e perspectivas, 2006, Porto Alegre. Anais do Congresso de Direito Urbano-Ambiental. Porto
Alegre, 2006. p. 529.
7
direito humano e fundamental no sentido de processo de lutas para aquisição da
dignidade. E é exatamente na cidade que esse direito se concretiza.
“Esta cidade, produto cultural, emerge de processos históricos, de transformações e
de desenvolvimento, de equívocos e de acertos. Espaço físico, social e simbólico
onde se conforma o público por excelência, e o cívico por antonomásia, mas
também uma cidade degradada onde o cívico se converte no não-cívico, o álacre em
deprimente. Enfim, um espaço onde deve ser buscada a máxima vantagem social e
a liberdade cidadã, refutando, deste modo, a segregação social, a degradação
ambiental e, finalmente, a infelicidade.”4
Molinaro cita o sociólogo Robert Ezra Park para dizer que “a cidade é o
desígnio mais exitoso do ser humano de fazer e refazer o mundo em que vive de
acordo com o seu desejo mais íntimo”. O autor lembra, no entanto, que “se a cidade
é o mundo que o ser humano criou, é também o mundo em que a partir de agora
está condenado a viver”5.
Se o homem é “condenado” a viver nas cidades que cria, não se pode admitir
uma cidade que não ofereça possibilidade de acesso irrestrita a todos os seus
cidadãos, sem distinção.
“Ter e ser um município com ambiente urbano inclusivo passa, necessariamente,
pela ideia de uma cidade de e para todos, independentemente do tipo de deficiência,
exigindo uma nova concepção de viver em sociedade, sem segregação, sem
barreiras.”6
Nesse sentido, a acessibilidade configura-se como a materialização do direito
à igualdade e reveste-se de enorme importância ao ser um instrumento garantidor
da cidadania. Possibilitar o acesso amplo e ilimitado a todas as pessoas,
4
Direito à cidade e proibição de retrocesso. Revista da Procuradoria-Geral do Município de Porto
Alegre, Porto Alegre, CEDIM, n. 23, dez. 2009, 300p., p. 54 .
5
Revista da Procuradoria-Geral do Município de Porto Alegre, Porto Alegre, CEDIM, n. 23, dez. 2009,
p. 55.
6
FEIJÓ, Alexsandro Rahbani Aragão; BRITO, Viviane Gomes de. Direito à cidade: concepção de
viver em sociedade, sem segregação, sem barreiras. Planejamento urbano e acessibilidade: o direito
a uma cidade inclusiva. In: Congresso Comemorativo aos 10 anos do Estatudo da Cidade, 2011,
Porto Alegre. Anais do II Congresso de Direito Urbano-Ambiental. Porto Alegre: Exclamação, 2011. p.
1.049.
8
independentemente da sua condição, somente será possível, no entanto, se as
políticas de mobilidade urbana considerarem a necessidade de “tratar-se por igual o
que é igual e desigual o que é desigual”, já que os direitos dos cidadãos são os
mesmos, mas não as condições de exercê-los, como nos ensina José Gomes
Canotilho:
“A partir do princípio da igualdade e dos direitos de igualdade específicos
consagrados na Constituição, a doutrina deriva esta função primária e básica dos
direitos fundamentais: assegurar que o Estado trate os seus cidadãos como
cidadãos fundamentalmente iguais. Essa função de não discriminação abrange
todos os direitos. Tanto se aplica aos direitos, liberdades e garantias pessoais (ex:
não discriminação em virtude de religião), como os direitos de participação política
(ex: direito de acesso aos cargos públicos) como ainda aos direitos dos
trabalhadores (ex: direito ao emprego e formação profissional). Alarga-se, de igual
modo, aos direitos a prestações (prestação de saúde, habitação). É com base nessa
função de não discriminação que se discute o problema das cotas (ex: ‘parlamento
paritário de homens e mulheres’) e o problema das afirmative actions tendentes a
compensar a desigualdade de oportunidades (ex: quotas de deficientes). É ainda
com uma acentuação-radicalização da função anti-discriminatória dos direitos
fundamentais que alguns grupos minoritários defendem a efectivação plena da
igualdade de direitos numa sociedade multicultural e hiperinclusiva (direitos dos
homossexuais, direitos das mães solteiras, direitos das pessoas portadores de
HIV).”7
No que se refere à inclusão dessas ideias durante o processo de
planejamento urbano e de mobilidade urbana, é indispensável ter em mente que
acessibilidade não se resume à construção de rampas. Ela significa criar novas
formas de acesso capazes de garantir a autonomia, liberdade e individualidade da
pessoa com deficiência8.
7
CANOTILHO, José Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 4. ed. Coimbra: Almedina,
2000, p. 418 apud FEIJÓ, Alexsandro Rahbani Aragão Feijó; BRITO, Viviane Gomes de.
Planejamento urbano e acessibilidade: o direito a uma cidade inclusiva. In: Congresso Comemorativo
aos 10 anos do Estatudo da Cidade, 2011, Porto Alegre. Anais do II Congresso de Direito UrbanoAmbiental. Porto Alegre: Exclamação, 2011. p. 1.049.
8
Idem.
9
Esse foi exatamente o objetivo de uma comissão criada em 1963, em
Washington (EUA), para elaborar o “desenho livre de barreiras”. Lá surgiu uma
corrente ideológica que defendia o desenho livre de barreiras para equipamentos,
edifícios e áreas urbanas. De acordo com essa corrente, a exclusão das pessoas
com deficiência estava diretamente vinculada à existência de obstáculos. O conceito
do “desenho livre de barreiras” evoluiu para o “desenho universal”, que “se destina a
qualquer pessoa e, por ser tão básico para a realização dos objetivos essenciais da
vida cotidiana, auxilia na consolidação dos direitos fundamentais”9.
No Brasil, a preocupação com a questão da dignidade da pessoa com
deficiência surge nos últimos 20 anos. O marco legal regulador se dá com a
promulgação da Constituição Federal de 1988, que introduziu garantias específicas
a essa população, além daquelas de caráter geral, como o direito à igualdade e à
dignidade.
No nível infraconstitucional, a Lei nº 7.853, de 24 de outubro de 1989, trouxe a
inclusão de questões relativas às pessoas com deficiência ao censo demográfico
nacional. A Lei Federal nº 10.048, de 8 de novembro de 2000, garantiu o acesso aos
logradouros e sanitários públicos. Também no ano 2000 foi promulgada a Lei
Federal nº 10.098/00, que dispõe sobre normas gerais e critérios básicos para a
promoção da acessibilidade das pessoas com deficiência ou com mobilidade
reduzida. Essa lei traz o seguinte conceito de acessibilidade:
“A possibilidade e a condição de alcance para utilização, com segurança e
autonomia, dos espaços mobiliários e equipamentos urbanos das edificações, dos
transportes e dos sistemas e meios de comunicação, por pessoa portadora de
deficiência ou com mobilidade reduzida.”10
Oito anos mais tarde, o Brasil ratifica a Convenção da ONU sobre os direitos
das pessoas com deficiência por meio do Decreto Legislativo nº 186, de 9 de julho.
Do ponto de vista das legislações municipais, Porto Alegre foi pioneira a editar lei
específica sobre o tema com a edição, em 2011, da Lei Complementar nº 678, que
instituiu o plano diretor de acessibilidade.
9
Idem.
Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l10098.htm>.
10
10
Consolidando a tendência de adoção de mecanismos garantidores da
acessibilidade como fator fundamental para elevar as cidades brasileiras ao nível de
cidades inclusivas, a Lei de Mobilidade Urbana define acessibilidade, no inciso III do
seu art. 4º, como “facilidade disponibilizada às pessoas que possibilite a todos
autonomia nos deslocamentos desejados, respeitando-se a legislação em vigor”,
apresentando-a como o primeiro princípio da política nacional de mobilidade urbana.
3 Impactos da Lei de Mobilidade Urbana sobre o Planejamento Urbano
A
Lei
de
Mobilidade
Urbana
veio
emprestar
efetividade
no
grau
infraconstitucional aos art. 21, XX, e 182, ambos da Constituição Federal de 198811,
como instrumento da política de desenvolvimento, e trouxe uma nova perspectiva
para o planejamento urbano das cidades brasileiras, com foco na cidade sustentável
e no acesso universal como elementos garantidores do direito fundamental à cidade,
que deve garantir o acesso à terra urbana, à moradia, ao transporte, aos serviços
públicos, ao trabalho e ao lazer.
Define o art. 1º da lei que,
11
“Art. 21. Compete à União:
(...)
XX – instituir diretrizes para o desenvolvimento urbano, inclusive habitação, saneamento básico e
transportes
urbanos;
(...)
Art. 182. A política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme
diretrizes
gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da
cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes.
§ 1º O plano diretor, aprovado pela Câmara Municipal, obrigatório para cidades com mais de vinte mil
habitantes, é o instrumento básico da política de desenvolvimento e de expansão urbana.
§ 2º A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de
ordenação da cidade expressas no plano diretor.
§ 3º As desapropriações de imóveis urbanos serão feitas com prévia e justa indenização em dinheiro.
§ 4º É facultado ao Poder Público municipal, mediante lei específica para área incluída no plano
diretor, exigir, nos termos da Lei Federal, do proprietário do solo urbano não edificado, subutilizado ou
não utilizado, que promova seu adequado aproveitamento, sob pena, sucessivamente, de:
I – parcelamento ou edificação compulsórios;
II – imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana progressivo no tempo;
III – desapropriação com pagamento mediante títulos da dívida pública de emissão previamente
aprovada pelo
Senado Federal, com prazo de resgate de até dez anos, em parcelas anuais, iguais e sucessivas,
assegurados o valor real da indenização e os juros legais.”
11
“A Política Nacional de Mobilidade Urbana é instrumento da política de
desenvolvimento urbano de que tratam o inciso XX do art. 21 e o art. 182 da
Constituição Federal, objetivando a integração entre os diferentes modos de
transporte e a melhoria da acessibilidade e mobilidade das pessoas e cargas no
território do Município.”
Em seu art. 5º, a lei traz os princípios, diretrizes e objetivos da política
nacional de mobilidade urbana, que são acessibilidade universal, desenvolvimento
sustentável das cidades, nas dimensões socioeconômicas e ambientais, equidade
no acesso dos cidadãos ao transporte público coletivo, eficiência, eficácia e
efetividade na prestação dos serviços de transporte urbano, gestão democrática e
controle social do planejamento e avaliação da política nacional de mobilidade
urbana e segurança nos deslocamentos das pessoas, indo ao encontro do
entendimento de Luciano Faria Brasil:
“No momento em que é destacado o caráter sustentável que se almeja no processo
de desenvolvimento, o que está sendo grifada é a opção política que se fez, em
escala mundial, em prol da sustentabilidade. Trata-se de uma tomada de
consciência e de um caminho trilhado com força a partir dos anos setenta,
especialmente após a popularização, por Maurice Strong e Ignacy Sachs, do termo
ecodesenvolvimento, que viria a ser adotado na Declaração de Coyoco, em 1974.”12
O texto legal deixa evidentes três macro-objetivos, além de seus
desdobramentos: o desenvolvimento urbano, a sustentabilidade ambiental e a
inclusão social, com o objetivo de trabalhar e desenvolver a cidadania na cidade,
fazer com que determinados espaços proporcionem convívio social e maior
integração entre os moradores do município, propondo, da melhor forma possível,
como devem ser projetados os espaços para pedestres, veículos (motorizados ou
não), conforme nos ensina Maria Etelvina:
12
GUIMARAENS, Maria Etelvina Bergamaschi. O Estatuto da Cidade aplicado: diretrizes gerais de
mobilidade urbana e o plano diretor de Porto Alegre. In: Cinco anos de Estatuto das Cidades:
desafios e perspectivas, 2006, Porto Alegre. Anais do Congresso de Direito Urbano-Ambiental. Porto
Alegre, 2006. p. 171-172.
12
“Como se pode concluir, políticas de acessibilidade e mobilidade sustentável são
políticas de inclusão social, em seus aspectos ambiental, social e econômico.”13
Dentre as diretrizes citadas no texto legal, destacam-se: a integração com
políticas setoriais como habitação, saneamento básico e ocupação do solo; a
prioridade dos modos de transportes não motorizados sobre os motorizados e dos
serviços de transporte público coletivo sobre o individual motorizado; o incentivo ao
desenvolvimento e uso de energias renováveis e menos poluidoras; e a integração
entre as cidades gêmeas localizadas na faixa de fronteira com outros países sobre a
linha divisória internacional.
Todos esses princípios e diretrizes visam, entre outros objetivos apresentados
no art. 7º, promover o acesso a serviços básicos e a equipamentos sociais, melhorar
as condições urbanas da população no que se refere à acessibilidade e à
mobilidade, consolidando a gestão de aprimoramento da mobilidade urbana.
Esse diploma legal também inova ao dispor sobre a política tarifária dos
serviços de transporte público, que será orientada, sobretudo, pela transparência ao
usuário, modicidade do preço e integração física, tarifária e operacional dos
diferentes modos e das redes de transporte público e privado nas cidades. Em
termos práticos, já no instrumento convocatório do certame licitatório, deverá constar
a tarifa resultante para remunerar a prestação dos serviços, que será o regime
econômico e financeiro da concessão.
Assim, diferentemente do usual, em que o preço da tarifa é instituído como
referência para o interessado, a tarifa de remuneração da prestação do serviço de
transporte público coletivo deverá ser constituída dos seguintes parâmetros: (i) o
preço público cobrado do usuário pelos serviços e (ii) a receita oriunda de outras
fontes de custeio. Essa fórmula visa cobrir os reais custos do serviço prestado ao
usuário por operador público ou privado, além da remuneração do prestador. É como
se estabelecesse a licitação do tipo “menor preço”, no caso concreto licitação tipo
“menor tarifa”.
13
Idem.
13
De outra parte, a Lei da Mobilidade Urbana, em seu Capítulo III, dedica dois
artigos à questão dos direitos dos usuários, ampliando de modo significativo o rol
que já consta da Lei Federal nº 8.987/95 – Lei de Concessões e Permissões, e da
Lei Federal nº 8.078/90 – Código de Defesa do Consumidor.
Na sequência da descrição das competências da União, destaca-se a função
de prestar apoio técnico e financeiro aos demais entes federativos e fomentar
projetos de transporte coletivo nas regiões metropolitanas e aglomerações urbanas.
No que se refere às atribuições dos Estados, estas encontram-se
concentradas no transporte intermunicipal, acenando com a possibilidade de
constituição de consórcio público ou convênio de cooperação.
Já o art. 18 da Lei de Mobilidade Urbana estabelece como pertinente às
atribuições dos municípios, dentre outras, o planejamento, a execução e a avaliação
da política de mobilidade urbana, bem como a promoção da regulamentação dos
serviços de transporte urbano, transporte público coletivo urbano de caráter
essencial e a capacitação e desenvolvimento das instituições vinculadas à política
afim. A subordinação das atribuições deste capítulo será fixada, em cada ente
federativo, pelas respectivas leis de diretrizes orçamentárias e aos cogentes da Lei
Complementar nº 101/00 (Lei de Responsabilidade Fiscal).
A nova lei determina, ainda, que municípios com mais de 20 mil habitantes
devem elaborar, até 2015, seus planos de mobilidade urbana, sob pena de ficarem
impedidos de receber recursos federais destinados à mobilidade urbana. Além disso,
todos os projetos e obras que estejam sob sua regulamentação e atualmente em
andamento no país devem estar alinhados às novas diretrizes e disposições legais.
Cumpre informar que, antes da nova lei, apenas municípios com mais de 500 mil
habitantes tinham essa obrigação. Com a mudança, o número de municípios que
deverão elaborar um plano de mobilidade passa de 38 para 1.663. Essa
obrigatoriedade vai ao encontro do entendimento de Luciano Faria Brasil, no sentido
da necessidade da ação humana e, nesse caso, da lei, para fazer cumprir as
necessidades e os anseios da sociedade:
14
“Como todo processo histórico-cultural, o desenvolvimento pode ser objeto da ação
humana, tornando-se objeto de programação ou planejamento: ainda que existam
divergências quanto à escala e às técnicas de intervenção para alcançar objetivos
econômicos e sociais, praticamente não há dissenso quanto à possibilidade de
planejamento no domínio da economia.”14
Para a execução das atribuições previstas na Lei de Mobilidade Urbana, os
poderes
executivos, segundo suas
possibilidades, farão constar
das
leis
orçamentárias, antecedidas pelos planos plurianuais, das ações programáticas e
instrumentos de apoio que serão utilizados para o aprimoramento dos sistemas de
mobilidade urbana e de melhoria da qualidade dos serviços.
No Rio Grande do Sul, dos 496 municípios, 284 editaram leis municipais em
referência à mobilidade urbana entre 2012 e 2014. Destas, 46 dispõem sobre a
inclusão de ações e metas nas Leis de Diretrizes Orçamentárias ou nos planos
plurianuais; 66 são leis que organizam a administração, criando cargos e funções,
alterando a estrutura administrativa ou criando fundos e conselhos cujas atribuições
tratam do tema; e 85 tratam do orçamento municipal, estimando receita, criando
despesa e/ou abrindo créditos para investimentos na mobilidade urbana. As demais
87 leis versam sobre temas diversos, como a exploração de táxi, sistemas de
transporte, instituição de plano diretor, Lei de Parcelamento do Solo, código de
edificações e zoneamentos.
Importa ressaltar, finalmente, que o estabelecimento de diretrizes de
mobilidade urbana implica o reconhecimento da importância do tema e da
necessidade de um tratamento igual para todo o país, ressalvadas as peculiaridade
locais, considerando tratarem de regras gerais, de observância obrigatória, em
virtude do caráter normativo.
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GUIMARAENS, Maria Etelvina Bergamaschi. O Estatuto da Cidade aplicado: diretrizes gerais de
mobilidade urbana e o plano diretor de Porto Alegre. In: Cinco anos de Estatuto das Cidades:
desafios e perspectivas, 2006, Porto Alegre. Anais do Congresso de Direito Urbano-Ambiental. Porto
Alegre, 2006. p. 169.
15
Conclusão
A cidade é o reflexo mais nítido da realidade social e também da evolução da
sociedade, suas transformações históricas e culturais. Como sistema complexo,
dinâmico e em constante transformação, ela é resultado das diversas opções feitas
ao longo do tempo e, metaforicamente, confunde-se com o próprio homem. Nesse
contexto, a cidade é o melhor exemplo da potencialidade de criação e recriação
humana, sendo, por isso, o espaço onde o homem está condenado a viver. Daí a
importância das escolhas feitas.
Num contexto em que supera as funções clássicas apresentadas pela Carta
de Atenas e incorpora novas atribuições e sentidos, a cidade deixa de ser
simplesmente o lugar onde vivemos para assumir a condição de direito fundamental.
O direito à cidade está diretamente vinculado à sua função social e pressupõe o
acesso pleno e democrático a todas as suas funcionalidades, de forma igualitária,
sem segregações ou barreiras. Para alcançar esse objetivo, todo o planejamento
urbano, incluindo a política de mobilidade, deve estar calcada nos conceitos de
acessibilidade e sustentabilidade.
Do ponto de vista do direito à acessibilidade, entendido como a materialização
do direito à igualdade, é possível observar avanços significativos no Brasil, ainda
que a passos mais lentos que em outros lugares do mundo. Enquanto que, já na
década de 1960, os americanos empenhavam-se em elaborar um “desenho livre de
barreiras”, que evoluiu para a concepção de desenho universal, no Brasil a
preocupação com os direitos das pessoas com deficiência tomou fôlego apenas a
partir de 1988, quando o texto constitucional apresenta garantias específicas para
essa população.
A legislação infraconstitucional produzida desde então, sobretudo a partir do
ano 2000, quando promulgada a Lei Federal nº 10.098 (Lei da Acessibilidade), se
ainda não garante uma cidade inclusiva e livre de barreiras, encaminha as políticas
de planejamento urbano nesse sentido.
O mesmo ocorre com relação à mobilidade urbana em sentido mais amplo. A
Lei de Mobilidade Urbana traz princípios, diretrizes e instrumentos importantes para
16
a efetivação de políticas de mobilidade mais inclusivas e sustentáveis. Mesmo que
não haja garantia da sua efetivação plena a curto e médio prazo, é salutar que a
mudança cultural em direção a uma cidade mais democrática e igualitária parta das
normas determinadas na legislação.
Considerando que a lei trata de norma geral, deve ser observada
obrigatoriamente em todo o território nacional e contemplada nas leis de uso do solo,
planos diretores e planos de mobilidade urbana, com a participação da sociedade
civil e fiscalização dos operadores de direito. Somente dessa maneira haverá a
construção de planos de mobilidade urbana consistentes e legitimados pela
população.
A mobilidade urbana é questão essencial para a qualidade de vida da
população, e a Lei de Mobilidade Urbana deve impactar diretamente sobre o bemestar
das
pessoas,
ampliando
a
qualidade
do
transporte
urbano
e,
consequentemente, contribuindo para o acesso universal à cidade. Ao fomentar o
transporte público e o uso de veículos não motorizados, a lei privilegia instrumentos
que vão ao encontro da necessidade de transformação das nossas cidades em
cidades sustentáveis.
A aplicação combinada do Estatuto das Cidades e das diretrizes trazidas pela
política nacional de mobilidade urbana representam, em última análise, a ruptura
com o status quo e, pela natural resistência que a sociedade apresenta às
mudanças, demandam ousadia e determinação dos administradores públicos,
abrindo e reprogramando o crescimento econômico para total reconfiguração das
cidades.
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MOBILIDADE URBANA E O ACESSO À CIDADE