DO DIREITO À EDUCAÇÃO AO DIREITO À CIDADE: LIMITES E POSSIBILIDADES NO INTERIOR DA ESCOLA PÚBLICA. Eduardo Donizeti Girotto1 Introdução Em uma série de conferências publicadas no livro “Educação e Emancipação”, Theodor Adorno aponta quais seriam as tarefas da educação após a terrível experiência de Auschwitz. Sua resposta, dada de forma direta, é simples: a educação tem por tarefa criar as condições para que Auschwitz não se repita (ADORNO, 2006). Algumas décadas se passaram e aos poucos esta idéia proposta por Adorno foi sendo esquecida. Mas qual a importância desta tarefa? O que de fato ela nos revela? Auschwitz representa um intenso processo de desumanização, a força dos homens e mulheres transformadas em coisas, desprovidos da fala, das memórias e de todos aqueles elementos que lhes permitiam identificarem-se como pertencentes à espécie humana. A violência brutal daquele e de tantos outros campos de concentração afeta o olhar dos que hoje retomam suas imagens, mas não pode ser expresso em todas as sensações, dores, sofrimentos que trouxeram aos que diretamente foram alvos desta experiência de desumanização. No entanto, a brutalidade maior de Auschwitz não está na violência dos soldados, no tratamento dado aos presos, em toda a humilhação e desconforto. Está no fato de que foram homens e mulheres comuns os principais responsáveis por toda esta barbaridade. Homens e mulheres educados, formados em importantes universidades, detentores da mais alta cultura do ocidente. A experiência de Auschwitz aterroriza por ter sido também uma experiência de educação e como tal engendrou um projeto de sociedade que pressupunha o domínio de um pequeno grupo de homens, identificados por termos falsos como raça, em detrimento dos direitos dos demais de existirem. 1 Mestre em Geografia Humana pela Universidade de São Paulo. Professor Assistente da Universidade Estadual do Oeste do Paraná, Campus de Francisco Beltrão, Colegiado de Geografia. Ao afirmar que a tarefa da educação após Auschwitz é fazer com esta experiência nunca mais se repita Adorno traz a tona novamente a discussão da relação entre educação e o projeto de sociedade que muitas vezes passa esquecida nas falas e discursos daqueles que se auto-intitulam especialistas na área. Não se pode falar de educação sem pensar qual o projeto de sociedade que a mesma ajuda a construir. Se assim o fizermos, correremos o risco de acreditarmos numa certa “ingenuidade” do processo educativo, desprovido de interesses e estratégias, simplesmente pautado na relação intra-classe entre professores e alunos. Há muito mais no processo de ensinoaprendizagem do que a mera “gestão” técnica da escola ou coisa que o valha. Faz-se necessário, a todo o momento, trazer à tona as questões das diferentes escalas geográficas de realização do poder que interferem nos processos educativos para que assim não percamos de vista que toda educação é também um projeto de sociedade, repleto de contradições, limites e possibilidades. Neste sentido, o objetivo deste trabalho é discutir as possibilidades de se pensar um projeto de sociedade, pautado no conceito de direito à cidade, que tenha a escola pública com um dos seus centros de construção. Acreditamos que o direito à cidade, que apresentaremos a seguir, em um momento no qual cerca de 85% da população do país vive em áreas urbanizadas, reúne as condições necessárias para que os direitos humanos, em sua forma plena, possam se realizar. Faz-se necessário, dessa forma, compreender de que maneira o direito a educação, realizado a partir da construção de uma escola pública efetivamente democrática (no acesso, na permanência, na qualidade construída coletivamente), se torna um dos primeiros processos essenciais para a construção do direito à cidade. No entanto, nem o direito à educação nem o direito à cidade podem ser conquistados sem lutas e movimentos constantes que se tornam mais difíceis e necessários em um país com pouca ou quase nenhuma experiência de participação democrática. Cabe, portanto, uma mudança da relação da escola com a sociedade civil em suas diferentes escalas, para que estes movimentos possam ser engendrados no interior de diferentes escolas públicas espalhadas pelo país. Acreditamos, compartilhando de algumas ideias apresentadas por GIROUX (1997), na necessidade das escolas públicas em nosso país se transformarem em esferas públicas democráticas, constituídas de processos e de ações compartilhadas envolvendo todos os agentes da comunidade escolar. E, com GIROUX (1997), partilhamos da ideia de que os professores tem um papel fundamental neste processo como intelectuais transformadores, capazes de articular e criar, com os outros membros da comunidade escolar, as condições para que os processos democráticos, em toda a sociedade, se realizem também a partir da escola. Em um momento pelo qual a ação docente passa por um intenso processo de desqualificação que tem sido marcado pela separação entre concepção e execução, pela padronização do conhecimento escolar com o interesse de administrá-lo e controlá-lo, pela desvalorização do trabalho crítico e intelectual do professor e dos estudantes e pela primazia de considerações práticas (GIROUX, 1997, p. 159), faz-se necessário resgatar o princípios do professor como intelectual transformador porque engajado, consciente e responsável pelo projeto de sociedade que ajuda a construir a partir das práticas realizadas diariamente na companhia de seus alunos e de toda a comunidade. Sem o papel ativo do professor na construção deste processo de (re) significação do espaço social escola, na construção de instituições e práticas no interior da mesma que permitam o desenvolvimento de ações pautadas pelos fundamentos da democracia participativa, da organização partilhada e da construção de um novo senso comum, o mesmo ocorrerá (e, em certa medida, já está ocorrendo em muitos sistemas públicos de educação no Brasil e no mundo) através de políticas públicas neoliberais, centralizadoras, feitas por técnicos e especialistas que buscam despolitizar a linguagem educacional, transformando a educação em mero atributo técnico e o sujeitos da educação em meros expectadores. Assim como em Auschwitz, a atual alienação engendrada por uma projeto de educação pautada na racionalidade técnica pode produzir um projeto de sociedade na qual a desumanização aparece como um dos seus pilares. Por isto, esta (re) significação do espaço social escola passa também por um longo processo de debate e transformação da geografia que fazemos e do projeto de sociedade ao qual tal geografia está articulada. Sem estes questionamentos, sem implodir uma certa lógica positivista que como representantes da ciência moderna ainda carregamos, corremos o risco de fazer uma geografia da alienação, reprodutora das desigualdade sócio-espaciais, e, por que não, criadora de novos territórios no qual o horror e a desumanização sejam práticas corriqueiras. O direito à cidade A noção de direito à cidade aparece de forma mais clara nos escritos do pensador francês Henri Lefebvre (LEFEBVRE, 1969). Em sua obra, Lefebvre busca analisar as transformações da sociedade a partir de conceitos como urbano, bem como as implicações destas transformações sobre o pensamento e a teoria crítica. Contemporâneo de muitos dos autores da chamada Escola de Frankfurt, Lefebvre procura, como eles, construir a crítica do pensamento crítico a partir dos próprios limites que o mesmo se põe enquanto forma de interpretação e concepção da realidade. Entre as principais críticas destaca-se aquele referente à adoção de um certo pressuposto de racionalidade que remete aos princípios do positivismo. Nesta concepção, as formas de interpretação da realidade são reduzidas a elementos como calculabilidade e previsão, tornando assim os fatos os únicos mediadores entre realidade e interpretação. Uma falsa noção de objetividade produzida por esta racionalidade tem como único objetivo ocultar a forma irracional na qual se estrutura o modo de produção dominante. Dessa forma, é preciso que a crítica se realize também enquanto crítica dos fundamentos, das análises e interpretações feitas por este grupo de intelectuais. Para tanto, segundo Lefebvre, é preciso de fato trazer a filosofia para a vida cotidiana, muitas vezes descartada pelo pensamento crítico. Apesar de se propor a superar o idealismo Hegeliano, muitos dos autores marxistas caem em abstrações mais idealizadas ainda do que aquelas propostas por Hegel. Dessa maneira, como forma de interpretação do mundo, os conceitos generalizantes propostos pelos marxistas ortodoxos não dão conta de interpretar os fenômenos sociais em toda a sua densidade, nesta relação entre o concreto e o abstrato. Para o autor, é fundamental que os críticos do pensamento crítico busquem em suas analises aquilo que ele denomina de o irredutível, aquilo que apesar de todos os processos escapa a lógica total de dominação do capital e que, por isso, aponta os próprios limites de sua reprodução. Não se trata apenas das chamadas rugosidades, como aponta o professor Milton Santos em algumas de suas obras. Trata-se, antes, do resíduo, daquilo que resiste de forma ativa aos processos de expansão do capital. Não é apenas o que resta, o que ainda, por desinteresse do próprio capital, não foi incorporado. O resíduo é a força, a resistência que expõe a contradições inerentes ao modo de produção capitalista. E é neste sentido que aparece o conceito de direito à cidade. Em certa medida, esta noção realiza um projeto de sociedade para a superação do modo de produção capitalista no qual o urbano, surgido como processo relacionado à expansão do capital, apresenta, ele próprio, os limites da reprodução do modo de produção capitalista. Entendamos um pouco melhor este processo. No livro “Espaço e Política” Henri Lefebvre analisa em detalhe a relação entre industrialização e urbanização. Para o autor, com o advento da sociedade industrial um novo fenômeno de organização da vida surge, que seja, a urbanização. Em certo sentido, a produção industrial em sua reprodução cotidiana, reproduz-se também enquanto urbanização e urbano. Não se trata, contudo, apenas de transformações infra-estruturais (aberturas de vias, construções de prédios e casas, instalação de energia elétrica e saneamento básico); há também a construção de outro tipo de relação sócio-espacial, permeada agora pela lógica de reprodução do capital. É neste sentido que a produção industrial não se reduz a produção de um amontoado de mercadorias. Ao fazê-lo, a indústria produz, ao mesmo tempo, o urbano, como novas formas de viver e de se relacionar com outros homens e com o meio. Porém, se no início do processo de industrialização era esta que dominava o processo de urbanização e, consequentemente, estas novas sociabilidades reunidas no conceito de urbano, na atualidade este, por sua vez, assume diversas implicações passando inclusive a definir as novas formas e estratégias de expansão industrial. Segundo Lefebvre, A tese aqui apresentada é a de que a problemática urbana desloca e modifica profundamente a problemática originada do processo de industrialização. Enquanto a maioria dos teóricos e também dos práticos que procedem de maneira empírica consideram ainda a urbanização como conseqüência exterior e menor, quase acidental, do processo essencial, a industrialização, nós afirmamos o inverso. Nesse processo de duplo aspecto ocorre algo de muito importante, em termos clássicos: um salto qualitativo. O crescimento quantitativo da produção econômica produziu um efeito qualitativo que se traduz, ele próprio, por uma problemática nova: a problemática urbana. (LEFEBVRE, 2008, p. 80) A problemática urbana surge, portanto, como elemento aglutinador no qual os múltiplos processos que dizem respeito à lógica de reprodução do capital se relacionam, às vezes ocultos, por outros já desvelados. E, ao mesmo tempo em que se torna essencial para o processo contínuo de reprodução do capital, também a urbanização e o urbano criam as condições para a superação do capitalismo. Isso se dá pelo fato de, ao expor as mazelas e as condições de todo o processo de espoliação do trabalho realizado pelo capital, ao materializá-lo em formas espaços-temporais, o modo de produção capitalista cria as condições para que as lutas urbanas se transformem também em lutas contra o capital e toda a miséria que engendra. O urbano, enquanto sociabilidade produzida pelo capital, se transforma também em resíduo, em o seu outro, em um processo de possibilidade de construção de outras práticas sócio-espaciais capazes de construir outras formas de organizar e pensar a cidade. O direito à cidade surge, neste sentido, como luta não apenas pela cidade em suas formas materiais e imateriais, mas principalmente em uma luta pelo direito de pensar a cidade, de construí-la coletivamente, de retirá-la do domínio absoluto dos agentes do capital. Como aponta HARVEY, O direito à cidade está, por isso, além de um direito ao acesso àquilo que já existe: é um direito de mudar a cidade mais de acordo com o nosso desejo íntimo. A liberdade para nos fazermos e nos refazermos, assim como nossas cidades, é um dos mais preciosos, ainda que dos mais negligenciados, dos nossos direitos humanos. (HARVEY, 2009, p. 9) Algumas experiências de luta pela educação são reveladoras das possibilidades que estas contradições reveladas no processo de urbanização podem trazer. Durante a década de 1980, um importante movimento popular na zona leste da cidade de São Paulo passou a construir um intenso processo de luta pelo direito à educação que acabou por se expandir em direção a novas lutas e mobilizações. Em sua obra “A ilusão fecunda”, Marília Pontes Spósito faz um estudo detalhado das condições e dos processos que resultaram no surgimento deste movimento. Para a autora, As dificuldades de acesso a terra, transformando São Paulo em uma cidade clandestina do ponto de vista da situação legal, trouxeram novas demandas por equipamentos escolares em bairros ainda inexistentes para o poder público, demandas cada vez mais limitadas pelos problemas do uso privado do solo. (SPÓSITO, 1993, p. 53) Em situação de clandestinidade, enquanto produtos e agentes do processo de urbanização, os moradores da periferia paulista iniciaram um processo de movimento que, em certa medida, buscou resgatar o sentido do urbano e da urbanização para além da lógica do capital. Não se trata apenas da construção de escolas ou da instalação dos bens e equipamentos urbanos necessários. O que está em jogo, naquele contexto, o que de fato ele expõe são as múltiplas contradições e os próprios limites da reprodução da sociedade industrial. Ao lutarem pelo direito a educação, tais moradores buscam inverter a lógica da espoliação urbana que os levou a habitar os limites do urbano, em um contexto no qual a cidade, enquanto encontro, possibilidade, criação, já não está presente. O movimento pela educação, articulado com os outros movimentos sociais, é, portanto, mesmo que parcial, uma luta pelo direito à cidade, pelo direito ao urbano que só se pode realizar a partir da superação das contradições que marcam a reprodução social. Neste sentido, a escola pública na periferia paulista se configura também enquanto resultado da luta pela reapropriação do espaço e da vida. Mesmo que ainda de forma breve, trata-se da conquista e realização de um direito, de uma mudança de perspectiva. Pelo menos em germe, em latência, se constitui enquanto espaço libertário que precisa ainda se afirmar enquanto tal. Neste processo de luta pelo direito à cidade, a crítica a urbanização está posta. Aos poucos, os participantes destes movimentos passam a reivindicar não mais apenas o direito à educação, mas todas as infra-estruturas e condições necessárias para que a cidadania plena possa ser realizada. Tal luta, portanto, transforma-se em uma luta pelo direito à cidade. Para além do espaço concebido, do projeto de alienação que ali se busca implementar, a periferia reinventa-se (SANTOS, 1992). Nela, as lutas se transformam em experiências e nos limites do capital outras lógicas, mesmo que também contraditórias, teimam em aparecer. E é esta a possibilidade que o urbano, redefinido, (re) significado a partir de outras práticas, sociabilidades, usos e trajetória, pode trazer no sentido de repensar as condições objetivas e subjetivas sob qual o processo de alienação, ligado ao modo de produção capitalista, se reproduz. O impasse neoliberal Porém, apesar dos avanços registrados neste processo de lutas sociais, o que temos verificado na última década é uma tentativa de desarticulação das lutas sociais urbanas. E esta tentativa pode ser entendida pelo próprio avanço de políticas públicas pautadas na lógica do Estado Neoliberal. Segundo esta lógica, o papel do Estado é criar as condições para que a reprodução do capital possa se dar de forma mais ampla, sem as restrições postas pelos questionamentos e movimentos sociais. Para tanto, faz-se necessário a desarticulação dos movimentos através da mercantilização da vida, da adoção da lógica da mercadoria como única narrativa capaz de dar sentido a vida de homens e mulheres. O direito do cidadão se transforma em alienação do consumidor e, com isso, a realização dos direitos passa a segundo plano frente às necessidades impostas pela lógica da sociedade burocrática de consumo dirigido. No reino do capital, a educação é, ela mesma, uma mercadoria. Daí a crise do sistema público de ensino, pressionado pelas demandas do capital e pelo esmagamento dos cortes de recursos dos orçamentos públicos. Talvez nada exemplifique melhor o universo instaurado pelo neoliberalismo, em que “tudo de se vende, tudo se compra, tudo tem preço”, do que a mercantilização da educação. Uma sociedade que impede a emancipação só pode transformar os espaços educacionais em shopping centers, funcionais à sua lógica do consumo e do lucro. (MÉSZAROS, 2008, p. 18). Apesar de todo processo de ampliação do acesso e da permanência que o ensino público brasileiro obteve nas últimas décadas, decorrente também da luta dos movimentos sociais, a adoção de políticas neoliberais tem aprofundado as contradições decorrentes deste processo de expansão. Para garantir as condições necessárias para que uma boa prática educativa possa ocorrer, faz-se necessários investimentos por parte do poder público. O que temos visto, contudo, são investimentos realizados em materiais e mais materiais, em apostilas e recursos tecnológicos que pouco ou nada dizem respeito a um processo de transformação da educação. Ao contrário, revelam uma estratégia de privatização indireta das escolas públicas, com a adoção de materiais apostilados de grandes grupos educacionais privados, com a contratação de assessores para dar treinamentos aos professores para que os mesmos possam lidar com as chamadas novas tecnologias. Ao mesmo tempo, não são feitos investimentos para garantir uma carreira decente aos professores ou valorizar a profissão. Da mesma forma, os problemas das escolas são tratados a partir de uma linguagem técnica-administrativa. A indisciplina se resolve com “gestão da sala de aula”, os baixos rendimentos dos alunos com a transformação dos diretores em gerentes da escola. Metas e mais metas são estabelecidas e o sentido do ensino passa a ser alcançar índices “desejáveis”, visto que os mesmos, do ponto de vista político-eleitoral, garantem visibilidade, tanto positiva como negativa. Neste processo, as escolas públicas são tratadas como homogêneas, indiferenciadas. Alunos, professores, país são pensados, nestas políticas, como seres abstratos, desprovidos de histórias e geografias particulares. São objetos neste processo, não mais sendo lhes dados as condições de construir a sua própria história. Além disso, territorialmente, as escolas passam a se configurar como espaços da exclusão, que se realizam tanto em relação ao seu interior, quanto no que diz respeito ao contato com a comunidade. Em seu interior, a adoção de um modelo de gestão pautada na racionalidade técnica, nos princípios da administração, transformam o espaço escolar em um ambiente fechado, autoritário, no qual os homens e mulheres não podem participar de sua constituição. Em muito casos, todos os elementos que marcam as ações pedagógicas são definidos em outras escalas geográficas do poder: o currículo é único e centralizado, as avaliações já vem pronta; a cada semana novos decretos do poder central são publicados, definindo o que pode e o que não poder ser feito naquela determinada espaço-temporalidade. Da mesma forma, novos muros são erguidos, aumentando ainda mais os limites entre a e escola e a comunidade. De lugar da luta e da construção coletiva, de apropriação do espaço, a escola se torna sinônimo de proibição. As demandas da comunidade já não são mais levadas em consideração. Na verdade, a comunidade passa a ser sinônimo, por parte dos “gestores da escola”, de problemas. Para os gestores da escola, que são antes gestores da escassez, a comunidade só interessa enquanto forma de financiar uma escola cada vez mais sucateada pela falta de investimentos decorrente das políticas neoliberais. Portanto, os pais e a comunidade são chamados à escola apenas para reuniões referentes à Associação de Pais e Mestres ou para organizar estratégias de arrecadação de fundos para a mesma. Não são chamados, porém, para ajudar a construir o projeto político-pedagógico ou mesmo para discutir de que forma o dinheiro obtido com a ajuda dos pais e da comunidade devem ser investidos. Além disso, toda e qualquer tentativa de (re) significar as práticas educativas é vista com desconfiança por tais gestores. A construção de práticas democráticas, como conselhos de escolas ou grêmios escolares são entendidos como forma de desrespeito as autoridades constituídas e sua proibição, mesmo que de forma ilegal, apoiada pelos poderes centrais. E com isso, as possibilidades que a escola, enquanto espaço público, traz para que os homens e mulheres, de forma coletiva, possam pensar e discutir os seus problemas comuns, são drasticamente diminuídos. E, neste sentido, o projeto da escola neoliberal retoma Auschwitz e o faz de forma mais perversa. Hoje, em várias escolas espalhadas por todo o território brasileiro, muitos meninos e meninas passam por uma nova experiência de desumanização. Não é tão explícita quanto a de Auschwitz, mas a sua violência é tamanha. São à estes meninos e meninas que se tem negado as condições de construírem sua própria história e geografia, o direito de pensarem a si mesmos como portadores de possibilidades de humanização, o direito de fazer do lugar em que vivem algo melhor. As escolas públicas, submetidas ao projeto neoliberal, são hoje os novos campos de concentração. E, por enquanto, não conseguimos cumprir a tarefa a nós colocada por Adorno. Do fatalismo à reinvenção: repensando a geografia que fazemos Mas é preciso reinventar a escola. E para isso, encontrar o irredutível. Para além dos limites que o modelo neoliberal de educação impõem ao ensino público na atualidade, faz-se necessário que construamos alternativas reais para que a escola pública se torne um dos lócus de construção do direito à cidade. Para tanto, acreditamos na necessidade de resgatarmos o sentido da escola como esfera pública e isso se dá com a efetiva participação dos diferentes sujeitos da educação na organização deste espaço. Não se resume apenas à gestão democrática, como aponta a Constituição Federal de 1988 e a LDB de 1996. Trata-se de um projeto de sociedade que vá além da democracia burguesa liberal e que crie fóruns efetivos de participação popular. Tais fóruns devem ser criados também nas escolas públicas para que questões que afetam o cotidiano escolar possam ser discutidos de forma coletiva. A democracia não pode ser apenas um discurso a preencher o vazio conceitual de muitas das propostas pedagógicas que inflam a educação na atualidade. Ao contrário, a democracia só pode ser enquanto ação, quando as condições para que ela se realize enquanto direito de todos os homens de pensar a si mesmo e a vida de sua comunidade sejam efetivamente criadas. Não se pode, desta maneira, falar de uma democracia teórica descolada de práticas sócio-espaciais de fato democráticas. Tais práticas devem ser o centro de um projeto de escola pública contraposto a lógica neoliberal do capitalismo tardio. A escola pública tem uma tarefa essencial neste processo de construção de uma democracia participativa que engendre a realização do direito à cidade. De todas as formas possíveis, ela precisa assumir o compromisso de educar para a democracia a partir do incentivo de ações democráticas, capazes de criar o respeito, a tolerância e a preservação e realização de todos direitos. Deve trazer para o seu interior as problemáticas que envolvem as pessoas e o lugar, propondo a discuti-los e encontrar soluções. Ao invés de ocultar os conflitos que de fato aparecerão nestes fóruns, a escola pública, através dos seus diferentes agentes, deve mediá-los em busca de consensos e ações que visem o bem estar comum. Além disso, com a construção destes fóruns, a noção de sociedade civil passa a ser mais crível e realizável e o ideal de democracia como governo transparente mais próximo de ser alcançável. Sabemos que o projeto aqui proposto só poderá sair do papel a partir da articulação de diferentes agentes. Mas acreditamos ser fundamental a ação do professor como fomentador destas iniciativas. Para lutar contra esta lógica perversa de precarização do trabalho docente, decorrente das políticas neoliberais postas em prática nas últimas décadas, os professores precisam se tornar intelectuais transformadores. A idéia dos professores como intelectuais pressupõem que, Os professores devem ser capazes de moldar os modos nos quais o tempo, espaço, atividade e conhecimento organizam o cotidiano nas escolas. Mais especificamente, a fim de atuarem como intelectuais os professores devem criar a ideologia e as condições para escreverem, pesquisarem e trabalharem um com os outros na produção de currículo e repartição do poder. (GIROUX, 1997, p. 29) Como intelectuais transformadores, os professores, de forma coletiva, poderão criar as condições para que este processo de transformação das escolas em esferas públicas possa se da, questionando a alienação e a transformação dos homens e mulheres em coisas. Porém, trata-se de uma escolha. Tornar-se um intelectual transformador pressupõe aceitar riscos, assumir posições, engajar-se em um projeto de sociedade. Neste projeto, não há espaço para fatalismo, culpabilizações, muito menos meias palavras. Como uma das principais profissões humanistas de nosso tempo, o professor assume em suas aulas um projeto de sociedade. Em suas escolhas, decide se está do lado da emancipação ou da regulação. Se em algum momento de sua carreira não se deparar com a necessidade de realizar esta escolha, poderá passar o resto dos seus dias, lecionando sem que saiba ao certo por que o faz. Este professor desengajado, por mais que muitas vezes não o saiba, é também o ideal de homem buscado pelo projeto neoliberal de educação. E quando nos referimos ao professor como intelectual, não nos restringimos aos que atuam na educação básica, Há que se questionar, de forma ainda mais profunda, o papel exercido pelos professores universitários neste projeto neoliberal de educação. O que temos visto, em muitos casos, é uma total falta de compromisso dos mesmos com um projeto de sociedade pautado na democracia representativa e na emancipação. Ao contrário, cada vez mais, tais professores, fechados em seus gabinetes, lutam para se adaptar a uma modelo de ciência subordinado a lógica do capital no qual disputas pessoais sobrepõem-se as problemáticas sociais. Ao invés de um diálogo crítico com a sociedade, os jovens universitário são ensinados a se adequarem ao campo-científico, a reproduzirem e não questionarem. Neste sentido, acreditamos ser fundamental uma mudança radical de postura dos professores em todos os níveis de ensino. Assim como muitos foram os que se calaram durante Auschwitz, há tantos outros que calam hoje. Que a Universidade possa ser também uma esfera pública e que o pensamento crítico saia dos arquivos e gabinetes para habitar as ruas, vielas e becos, juntos aos homens e mulheres comuns. Que a mesma possa estabelecer um diálogo cada vez mais horizontal com os sujeitos que lutam diariamente pelo direito à uma educação pública de qualidade e pela transformação das escolas em lócus da construção do direito a cidade. Que a Universidade, enfim, possa de novo aprender com as experiências da escola pública e ensinar, ao futuros professores, muitos mais por meio de seus exemplos e práticas do que pelos discursos que há muito perderam o sentido, porque descolados da realidade e do contexto ao qual se referem. Não foi o saber que interrompeu Auschwitz, mas a solidariedade daqueles que, mesmo sem nada, ainda se humanizaram. Para os que ainda não entenderam isso, vale o seguinte recado: Caro professor, Sou sobrevivente de um campo de concentração. Meus olhos viram o que nenhum homem deveria testemunhar. Câmaras de gás construídas por engenheiros ilustres. Crianças envenenadas por médicos altamente especializados. Recém-nascidos mortos por enfermeiras diplomadas. Mulheres e bebês assassinados e queimados por gente formada em ginásio, colégio e universidade. Por isso, caro professor, eu duvido da educação. Eu lhe formulo um pedido: Ajude seus estudantes a se tornarem humanos. Seu esforço, professor, nunca deve produzir monstros eruditos e cultos, psicopatas e Eichmans educados. Ler, escrever, aritmética só são importantes se servirem para tornar nossas crianças seres mais humanos. (Depoimento de um sobrevivente de Auschwitz) Referências Bibliográficas ADORNO, T. W. Educação e Emancipação. 4º edição. São Paulo: Paz e Terra, 2006. GIROUX, H. Os professores como intelectuais. Porto Alegre: Artmed, 1997. HARVEY, D. “A liberdade da cidade” In: GEOUSP – Espaço e tempo, São Paulo, nº 26, 2009. LEFEBVRE, H. Espaço e política. Belo Horizonte: UFMG, 2008. ____________. O direito à cidade. São Paulo: Documentos, 1969. MESZÁROS, I. A educação para além do capital. 2º edição. São Paulo: Boitempo, 2008. SANTOS, Milton. O espaço do cidadão. 2º edição. São Paulo: Nobel, 1992 SPÓSITO, Marília Pontes. A ilusão fecunda. São Paulo: Hucitec, 1993. ____________________. O Povo vai à escola. São Paulo: Loyola, 1984.