O presente texto é uma versão ligeiramente editada do Capítulo III da obra: PEREIRA, Jane Reis Gonçalves. Interpretação constitucional e direitos Fundamentais: Uma contribuição ao estudo das restrições aos direitos fundamentais na perspectiva da teoria dos princípios. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. PEREIRA, Jane Reis. Aspectos Gerais sobre as Restrições aos Direitos Fundamentais Jane Reis Gonçalves Pereira 1. Generalidades; 2. Os termos do problema: alguns aspectos conceituais e semânticos; 3. O debate sobre a possibilidade lógica de restrição dos direitos: 3.1) A teoria interna (ou concepção estrita) dos limites dos direitos fundamentais; 3.2) A teoria externa (ou concepção ampla) dos limites dos direitos fundamentais; 3.3) Algumas teses diferentes: 3.3.1) O aporte de Häberle: a tese que concilia ponderação e direitos irrestringíveis; 3.3.2) A concepção de Vieira de Andrade: irrestringibilidade abstrata e restringibilidade concreta; 3.4) As críticas postas às teorias interna e externa; 3.5) Aprofundamento das diferenças entre as duas teorias; 3.6) Análise crítica do tema. Razões teóricas e jurídico-positivas em favor da teoria externa: 3.6.1) A existência de um direito geral de liberdade; 3.6.2) As vantagens da teoria externa no campo hermenêutico e argumentativo; 4. Um debate correlato: A doutrina da imanência; 5. Conceito de restrição: 5.1) Aspectos gerais quanto ao conceito de restrição; 5.2) Restrição e configuração; 6. Modalidades de restrições aos direitos fundamentais: 6.1) Generalidades; 6.2) Restrição legal (abstrata) e restrição aplicativa (concreta); 6.3) A classificação de Robert Alexy: 6.3.1) Restrições diretamente constitucionais; 6.3.2) Restrições indiretamente constitucionais; 6.4) Uma proposta complementar de classificação: 6.4.1) Restrições expressamente estatuídas pela Constituição; 6.4.2) Restrições expressamente autorizadas pela Constituição: 6.4.2.1) Reservas legais simples; 6.4.2.2) Reservas legais qualificadas; 6.4.3) Restrições implicitamente autorizadas pela Constituição: 6.4.3.1) Conceitos indeterminados e institutos jurídicos sujeitos à regulação legal; 6.4.3.2) Conflitos entre direitos fundamentais e bens constitucionalmente legítimos. 1. Generalidades A assertiva de que os direitos fundamentais não são absolutos soa natural e lógica.1 De fato, a ideia de que é preciso limitar as ações humanas para viabilizar a coexistência das pessoas é tributária da própria noção de liberdade.2 Tal concepção, que remonta ao primeiro estágio de reconhecimento dos direitos humanos,3 já estava expressa na máxima kantiana sobre o direito: “Atue externamente de maneira que o uso livre do teu arbítrio possa estar de acordo com a liberdade de qualquer outro segundo uma lei universal.”4 No plano jurídico-positivo, é intuitivo que a ampla gama de direitos consagrada nos textos constitucionais induz à necessidade de harmonizá-los entre si e com outros valores ou bens protegidos pela ordem jurídica. Como destaca Jean-François Renucci, “A limitação dos direitos do homem se impõe em nome de um certo pragmatismo associado a uma preocupação com a efetividade: o absolutismo dos direitos do homem conduziria certamente a uma Cabe registrar, contudo, a existência de um amplo e denso debate sobre o caráter incondicional de certos direitos humanos. O exemplo paradigmático é o direito a não ser torturado. Confira-se a discussão sobre o tema em: FINNIS, John. Natural law and natural rights. Oxford: Clarendon Law Series, 1999, p. 223 et seq.; GEWIRTH, Alan. Are there any absolute rights? In: WALDRON, Jeremy (ed.). Theories of rights. Oxford: Oxford University Press, 1990, p. 91-109 e, PERRY, Michael J. Are human rights absolute? In: The idea of human rights: four inquiries. Oxford: Oxford University Press, 1998, p. 87-106. 2 A noção de que os direitos não são absolutos harmoniza-se com as duas concepções filosóficas fundamentais sobre a liberdade: i) a que entende a liberdade como autonomia; e ii) a que a concebe como heteronomia. O modelo de liberdade como autonomia tem por paradigma fundamental o pensamento de Jean-Jacques Rousseau. Para o filósofo genebrino, a liberdade não se traduz em abstenções do Estado, mas decorre do fato de as pessoas obedecerem a leis de cuja elaboração participaram. Trata-se de liberdade cívica, política, e sua essência encontra-se mais na sua origem — a vontade geral —, do que na forma pela qual é exercida. ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato social. São Paulo: Abril cultural, 1978. Já a noção de liberdade como heteronomia é a defendida pelos jusnaturalistas liberais, como John Locke. Tal noção tem por pressuposto a tese de que o poder do soberano deve ser limitado, de modo que a liberdade seja exercida nos espaços vazios de poder. Numa palavra, a liberdade é entendida como a ausência de obstáculos. O embate entre essas duas teses celebrizou-se a partir da análise de Benjamim Constant, que identificou a tese de Rousseau com a noção de liberdade dos antigos, em oposição à concepção liberal dos modernos. CONSTANT, Benjamin. Da liberdade dos antigos comparada à dos modernos. Filosofia Política, n. 2, 1985, p. 9-25. Sobre a noção de liberdade como heteronomia e como autonomia veja-se: BOBBIO, Norberto. Direito e estado no pensamento de Emanuel Kant. Brasília: UNB, 1995. Sobre o tema da liberdade confira-se ainda: BARROSO, Luís Roberto. Eficácia e efetividade do direito à liberdade. In: Temas de Direito Constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 75-151 e CHAUÍ, Marilena. Convite à filosofia. São Paulo: Ática, 1999, p. 357 et seq. 3 A Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, já enunciava em seu artigo 29, parágrafo 2º que: “No exercício destes direitos e no gozo destas liberdades ninguém está sujeito senão às limitações estabelecidas pela lei com vista exclusivamente a promover o reconhecimento e o respeito dos direitos e liberdades dos outros a fim de satisfazer as justas exigências da moral, da ordem pública e do bem-estar numa sociedade democrática”. 4 Apud BOBBIO, Norberto. Direito e estado..., op. cit., p. 70. 1 ampla ineficácia”.5 De fato, há uma série de fatores que confluem para rechaçar uma visão totalitária dos direitos fundamentais. Em primeiro lugar, a universalidade6 dos direitos torna imperativa sua limitação. Sendo os direitos fundamentais atribuídos a todas as pessoas, não há como conceber sua fruição permanente e simultânea sem que haja uma disciplina ordenadora a viabilizar que estes coexistam. Só é possível tornar efetiva a titularidade universal dos direitos à medida que sejam harmonizados, o que implica logicamente a imposição de limites.7 Em segundo lugar, os direitos fundamentais são constitucionalizados como um conjunto, e não isoladamente. Nessa perspectiva, o reconhecimento dos direitos traz ínsita a noção de que estes estão inseridos num ordenamento complexo e plural, de modo que a determinação de sua esfera de incidência impõe que sejam coordenados com outros direitos e bens protegidos pela Constituição.8-9 Esses dois aspectos conjugados ligam-se à forte propensão dos direitos fundamentais a chocarem-se. A necessidade de solucionar conflitos de direitos implica, naturalmente, o estabelecimento de restrições recíprocas em sua aplicação. Em situações nas quais certos direitos que seriam, a princípio, aplicáveis, apresentam-se como antagônicos, torna-se necessário promover uma acomodação hermenêutica, devendo um deles ceder, parcial ou totalmente, em favor do outro. Dessa forma, a proteção dos direitos não pode ser efetivada mediante a “prevalência absoluta ou incondicionada de alguns, mas com a afirmação da vigência debilitada de todos”.10 Ademais, os direitos ostentam limites inerentes à sua própria natureza, que defluem da identificação dos bens jurídicos protegidos e da correlata determinação do âmbito de incidência das normas que os consagram. Numa proposição, os direitos têm fronteiras. Desta feita, não há como cogitar que contemplem todas “as situações, formas ou modos de exercício pensáveis”,11 ou RENUCCI, Jean-François. Droit européen des droits de l`homme. Paris: L.G.D.J, 1999, p. 369. 6 Veja-se, sobre o tema, ALEXY, Robert. Direitos fundamentais no estado constitucional democrático: para a relação entre direitos do homem, direitos fundamentais, democracia e jurisdição constitucional. Revista de Direito Administrativo, n. 217, 1999, p. 60, para quem a universalidade significa que os direitos humanos “são, fundamentalmente, direitos de todos contra todos”. 7 ECHAVARRÍA, Juan Jose Solozabal. Algunas cuestiones basicas de la teoria de los derechos fundamentales. Revista de Estudios Políticos (Nueva Epoca), n. 71, 1991, p. 87-109. 8 GÓMEZ, Enriqueta Expósito. La libertad de Cátedra. Madrid: Tecnos, 1995, p. 181. 9 Essa constatação leva à formulação da teoria dos limites imanentes. Confira-se item 4 infra. 10 ECHAVARRÍA, Juan Jose Solozabal. Algunas cuestiones basicas..., op. cit., p. 98, que acrescenta: “A liberdade de alguns termina onde começa a dos outros, continua a ser uma representação gráfica, ainda que elementar, dessa situação.” 11 ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os direitos fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976. Coimbra: Almedina, 2001, p. 284-285. 5 que “cubram a esfera total de ação humana possível”.12 Frequentemente, o próprio preceito que contempla o direito já estabelece condicionamentos ao seu exercício, apontando de forma expressa os limites de proteção.13 Além disso, vários direitos são contemplados na Constituição de modo sintético e aberto, o que torna imprescindível a densificação de seu conteúdo e a regulação ou detalhamento das condições e formas de seu exercício. Descortina-se, assim, a possibilidade de configuração legal dos direitos, que conduz à ideia de estabelecimento de limites. Em alguns casos, a Lei maior expressamente outorga ao legislador ordinário a possibilidade de (de)limitar os direitos. Mas mesmo em relação aos direitos que não contêm previsão de ingerência legislativa, será cabível a conformação normativa com o escopo de concretizá-los, desenvolvê-los e conciliá-los com outros direitos e bens.14 A atuação do legislador, como é evidente, mostra-se densamente condicionada pela Constituição. Os direitos fundamentais comandam a ação legislativa em duas dimensões: i) constituem-se em obstáculos à atuação do Estado, correspondendo a um catálogo de competências negativas do Poder Público e ii) operam como guias da ação estatal, ordenando a realização de tarefas e a consecução de objetivos pelo Poder Público. Nesse prisma, como consigna Joaquín Rodríguez-Toubes Muñiz: Os direitos fundamentais têm, portanto, um duplo aspecto: condição ou requisito mínimo da atuação pública constitucionalmente legítima, e ideal ou aspiração máxima da atuação constitucionalmente preferida. São tanto regras sobre direitos como princípios sobre deveres. Entre ambas indicações resta um espaço bastante amplo para a intervenção discricionária (aqui entendida no sentido de política) e legítima dos poderes públicos.15 Idem, ibidem. O exemplo de escola nesse caso é o direito de reunião, que deve ser exercido pacificamente e sem armas. 14 As Constituições contêm diversos preceitos que conferem ao legislador ordinário o poder de regular certos aspectos relativos aos direitos. Partindo-se de tal critério, os direitos fundamentais podem ser classificados em dois grupos i) direitos sujeitos à reserva legal; ii) direitos não sujeitos à reserva legal. Veja-se, nesse sentido: MENDES, Gilmar Ferreira. Âmbito de proteção de direitos fundamentais e as possíveis limitações. In: MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Hermenêutica constitucional e direitos fundamentais. Brasília: Brasília Jurídica, 2000, p. 210-240. Sobre esse tópico, confira-se o item 6 do presente trabalho. 15 MUÑIZ, Joaquín Rodríguez-Toubes. Principios, fines y derechos fundamentales. Madrid: Dykinson, 2000, p. 122. 12 13 De fato, se a razão de ser dos catálogos de direitos fundamentais é assegurar a inviolabilidade de aspectos essenciais da dignidade humana, não há como admitir que sua limitação venha a importar em desrespeito à Constituição. Nessa perspectiva, a atividade de conformação dos direitos fundamentais operada pelo legislador também está sujeita a limitações,16 que a doutrina convencionou chamar de limites dos limites.17 É certo, portanto, que os direitos fundamentais são limitados e, ao mesmo tempo, constituem limites à atividade estatal. Essas premissas, que decorrem logicamente da natureza dos direitos e da ideia de Constituição rígida, comportam uma série de dificuldades,18 gerando intensos debates sobre a natureza, a extensão e a própria possibilidade teórica das limitações. Isso ocorre porque há um inegável paradoxo na ideia de direitos fundamentais como limite ao Estado e como objeto de limitações.19 Assim, as diversas disputas teóricas inerentes à configuração e à restrição dos direitos situam-se precisamente no âmbito dessa relação paradoxal. 2. Os termos do problema: alguns aspectos conceituais e semânticos A despeito da aceitação genérica da tese de que os direitos não são absolutos, os mecanismos normativos e hermenêuticos que evidenciam suas limitações são bastante variados. Dessa forma, é preciso traçar uma breve aproximação conceitual para esclarecer os diversos termos empregados com referência ao problema dos limites dos direitos fundamentais.20 Como é o caso da reserva de lei geral, a proteção do conteúdo essencial e o imperativo de proporcionalidade. Esses aspectos são abordados em PEREIRA, Jane Reis Gonçalves. Interpretação constitucional e direitos Fundamentais: Uma contribuição ao estudo das restrições aos direitos fundamentais na perspectiva da teoria dos princípios. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, Capítulo V. 17 A expressão, ao que parece, tem origem no constitucionalismo alemão (shrakenshranke). O tema é tratado de forma mais aprofundada em PEREIRA, Jane Reis Gonçalves. Interpretação constitucional…, op. cit., idem. 18 Como aponta CIANCIARDO, Juan, as duas principais dificuldades relativas à vinculação negativa do legislador ordinário aos direitos fundamentais, surgidas no início do constitucionalismo, encontram-se parcialmente superadas. A primeira diz respeito à visão da lei como expressão da vontade geral, que conduz ao paradoxal conflito entre direitos humanos e democracia. Outra dificuldade consistia na ausência de mecanismos para assegurar a efetividade da Constituição, suplantada pelo advento do judicial review. El conflictivismo en los derechos fundamentales. Navarra: EUNSA, 2000. 19 ASÍS, Rafael de. Las paradojas de los derechos fundamentales como límites al poder. Madrid: Dykinson, 2000, p. 52. 20 Neste tópico, busca-se apenas precisar o sentido conferido a tais expressões neste trabalho, a fim de uniformizar o discurso. As divergências de fundo relativas a tais categorias serão abordadas nos tópicos pertinentes. 16 A existência de comandos e proibições condicionantes da conduta humana é inerente ao próprio conceito de ordenamento jurídico. Com efeito, para além dos preceitos permissivos, o sistema jurídico é composto, fundamentalmente, de uma série de normas que de vários modos circunscrevem a liberdade das pessoas.21 Assim, como assevera Sanchís, “talvez pela força expansiva e pelo prestígio jurídico dos direitos fundamentais, existe uma certa tendência a considerar tais comandos e proibições como um caso de limitação dos direitos, sugerindo com isto que toda imposição normativa de uma conduta restringe a liberdade individual, que precisamente encontra sua cristalização jurídica nos direitos fundamentais”.22 Todavia, como já se enfatizou, as limitações aos direitos materializam-se de várias formas. Há certas hipóteses em que a ausência de lastro jurídico a legitimar determinadas ações humanas não decorre de intervenções legislativas nos direitos, mas do seu próprio perfil traçado na Constituição.23 Em outros casos, o legislador detém autorização constitucional para definir ou modular os contornos do direito. E, quando o Judiciário emprega o método da ponderação de interesses, a limitação ao direito opera-se in concreto, mediante o afastamento de sua incidência numa hipótese específica. Diante de todas essas possibilidades, torna-se evidente que a expressão limites dos direitos fundamentais é dotada de ambiguidade. A própria palavra limite comporta um duplo significado: de um lado, corresponde à ideia de constrição; e, de outro, relaciona-se à noção de contorno ou alcance máximo de alguma coisa. Por isso, no presente estudo, a palavra ‘limite’ é aplicada em sentido amplo, a abranger as diversas situações que evidenciam o caráter não absoluto dos direitos fundamentais. No plano legislativo, os limites dos direitos manifestam-se de dois modos: i) mediante constrições, exceções ou privações ao exercício do direito tal como definido constitucionalmente;24 e ii) por meio de um detalhamento da definição do direito fundamental e de suas formas de exercício. Quando se trata de nomear essas duas modalidades de limites, não há uniformidade na doutrina.25 SANCHÍS, Luis Prieto. La limitación de los derechos fundamentales y la norma de clausura del sistema de libertades. In: Estudios sobre derechos fundamentales. Madrid: Debate, 1990, p. 153. 22 Idem, ibidem. 23 Admitir a existência de contornos máximos dos direitos não implica adotar a teoria interna, nem tampouco negar que há restrições postas diretamente na Constituição. Sobre o tema veja-se item 5.2 infra. 24 CAMPO, Javier Jiménez. Derechos fundamentales: concepto y garantías. Madrid: Trotta, 1999. 25 Veja-se, por exemplo, MUÑIZ, Joaquín Rodriguez-Toubes. Principios, fines y..., op. cit., pp. 141-142; GAVARA DE CARA, Juan Carlos. Derechos fundamentales y desarrollo legislativo: la garantía del contenido esencial de los derechos fundamentales en la Ley Fundamental de Bonn. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1994, p. 161 et seq. e pp. 203-207; QUEIROZ, Cristina. Direitos fundamentais. Coimbra: Coimbra, 2002, pp. 201 e 210; ALEXY, 21 Fala-se em limite e delimitação, em restrição e configuração, bem como em conformação e intervenção. Essa imprecisão conceitual é um reflexo das inúmeras divergências teóricas relativas ao tema. Aponta-se, a seguir, de que forma os referidos conceitos são manejados no presente trabalho. A restrição — também chamada de limitação — corresponde a previsões normativas e interpretações que operam uma diminuição da esfera máxima de incidência do direito que, a princípio, pode ser extraída de sua definição constitucional, mediante o estabelecimento de condições e obstáculos ao seu exercício.26 Já a configuração — também intitulada conformação, delimitação ou regulação —, é entendida como a densificação do conteúdo normativo do direito, realizada por meio do detalhamento de seu conceito, da especificação de suas formas de exercício e do estabelecimento de garantias processuais aptas a salvaguardá-lo.27 Nem sempre é fácil distinguir os casos de restrição dos de configuração e estabelecer um consenso acerca do conteúdo constitucional do direito, de modo a permitir afirmar, com precisão, se determinada previsão legislativa constitui redução ou mero detalhamento do conceito que se extrai da Constituição. Assim, as configurações, na maior parte dos casos, haverão de ser entendidas também como restrições.28 Acresça-se, ainda, que é possível empregar a expressão intervenções legislativas, a abranger todas as hipóteses de atuação normativa no campo temático dos direitos fundamentais. Robert. Teoria de los derechos fundamentales. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1997, p. 272 et seq. e, HÄBERLE, Peter. La garantía del contenido esencial de los derechos fundamentales en la ley fundamental de bonn: una contribución a la concepción institucional de los derechos fundamentales y a la teoría de la reserva de la ley. Madrid: Dykinson, 2003, pp. 166-167 e 170. 26 Em sentido semelhante, MUÑIZ, Joaquín Rodriguez-Toubes, averba que “Por delimitação dos direitos fundamentais entendo a identificação do âmbito protegido por eles e da natureza dessa proteção. O que se delimita é o conteúdo do direito, e a delimitação consiste em definir a linha que separa o que está protegido pelo direito do que não o está; consiste então em estabelecer as fronteiras ou — neste sentido — os limites do direito fundamental. Por limitação dos direitos fundamentais, diversamente, entendo a restrição — legítima ou ilegítima, segundo os casos — que possa ser produzida no conteúdo ou no exercício dos direitos. O que se limita é um direito ou, o que é igual, a delimitação prévia (ou potencial) do mesmo. Pode-se dizer, então, que os direitos têm uns limites próprios ou internos que os delimitam, e que por outra parte estão sujeitos a certos condicionantes alheios ou externos que os restringem ou limitam.” Principios, fines y..., op. cit. Na mesma linha, QUEIROZ, Cristina. Direitos fundamentais, op. cit., pp. 199-200 e ALEXY, Robert. Teoria de los derechos..., op. cit., p. 276. 27 GAVARA DE CARA, Juan Carlos. Derechos fundamentales y..., op. cit., p. 179. 28 ALEXY, Robert. Teoria de los derechos..., op. cit., p. 327-329; BOROWSKI, Martín. La estructura de los derechos fundamentales. Colombia: Universidad Externado de Colombia, 2003, p. 95.. Essa questão é tratada no item 5.2 deste trabalho. Os limites imanentes, de modo muito simplificado, costumam ser definidos como os contornos dos direitos identificados mediante seu cotejo com os demais direitos e valores constitucionalmente protegidos.29 Todos esses conceitos, aqui enunciados de forma singela, são objeto de diversos desacordos teóricos e semânticos. Ademais, há uma relação inextrincável entre as concepções dogmáticas acerca da questão da restringibilidade dos direitos e a conceituação dos mecanismos hermenêuticos e legislativos a ela relativos. A controvérsia fundamental sobre o tema diz respeito à possibilidade lógica de restringir os direitos fundamentais. 3. O debate sobre a possibilidade lógica de restrição dos direitos Embora haja concordância quanto ao caráter relativo dos direitos,30-31 a noção do que sejam limites constitui um dos aspectos mais problemáticos da teoria dos direitos fundamentais.32 Alguns sustentam a impossibilidade lógica de os direitos sofrerem autênticas limitações, de modo que i) toda atividade legislativa reguladora dos direitos só pode ser de “delimitação”, ou seja, de fixação de seus contornos (ou limites internos), tendo em vista que o conteúdo constitucional dos direitos não submetidos à reserva legal é irrestringível; e ii) a atividade judiciária de interpretação não pode importar em restrições ou afastamento dos direitos, devendo limitar-se a buscar o enquadramento da situação fática posta em juízo na definição constitucional do direito. Outros, de forma diversa, advogam que A discussão teórica relativa aos limites imanentes será tratada no item 4, infra. Em sentido diverso, defendendo a existência de direitos absolutos no plano filosófico, vejase FINNIS, John. Natural law and..., op. cit. e GEWIRTH, Alan. Are there any..., op. cit. Para uma defesa da existência de direitos absolutos no constitucionalismo espanhol, veja-se: TORRES DEL MORAL, Antonio. Principios del derecho constitucional. Madrid: Universidad Complutense, 1992, pp. 363-364; e BAUTISTA, J. A. Piqueras. El abuso en el ejercicio de los derechos fundamentales. In: Introducción a los derechos fundamentales. Madrid: Ministerio de Justicia, 1988, p. 871. Apud GÓMEZ, Enriqueta Expósito. La libertad de..., op. cit., pp. 179-180. 31 Como adverte GÓMEZ, Enriqueta Expósito, a ideia de que os direitos fundamentais não são absolutos “... vem a rechaçar a tradicional diferenciação que a doutrina alemã vinha realizando quanto aos direitos como direitos absolutos e relativos.” Idem, ibidem, p. 179. 32 Neste sentido, veja-se MUÑIZ, Joaquín Rodríguez-Toubes, “Adotemos a perspectiva dos limites ou a da delimitação, o que em qualquer caso é indiscutível é que os direitos fundamentais não são absolutos no sentido de irrestritos. Por isso o debate teórico ao qual me refiro não se coloca sobre que condutas estão amparadas pelos direitos (o que é objeto de outro debate diferente), mas sim sobre como entendê-los e aplicá-los. Há acordo no sentido de que o exercício legítimo dos direitos está sujeito a numerosos condicionantes, porém se discute se tais condicionantes são partes da configuração do direito, e portanto dados em princípio estáveis e previsíveis pelos cidadãos e os operadores jurídicos, ou se são pelo contrário obstáculos exteriores cuja presença e força somente se comprova caso por caso, sem possibilidade de generalização.” Principios, fines y..., op. cit., p.143. 29 30 delimitar o conteúdo do direito e restringi-lo são coisas diferentes, porquanto a primeira diz respeito aos lindes do direito, e a segunda é orientada por uma necessidade externa ao direito. Assim, a discussão cinge-se, essencialmente, “à possibilidade lógica de restrição aos direitos fundamentais”.33 3.1) A teoria interna (ou concepção estrita) dos limites dos direitos fundamentais A teoria interna sobre os limites dos direitos fundamentais sustenta, em síntese, que é inadmissível a ideia de restrições ou limitações externas aos direitos fundamentais. Essa vertente teórica – também denominada concepção estrita do conteúdo dos direitos –,34 considera que os direitos fundamentais cuja restrição não é expressamente autorizada pela Constituição não podem ser objeto de autênticas limitações legislativas, mas apenas de delimitações, as quais devem cingir-se a desvelar o conteúdo normativo constitucionalmente previsto. Assim, na ausência de norma da Constituição autorizando o legislador, de forma expressa, a restringir aos direitos, este poderá apenas explicitar os limites já contidos na norma constitucional. Apenas nos casos em que o texto constitucional prevê a possibilidade de interferência do Poder Legislativo, a atuação deste consistirá em verdadeira e autorizada limitação ao direito fundamental.35 No plano da interpretação judicial, a teoria interna refuta a existência de conflitos entre os direitos e, consequentemente, a ponderação de bens. A tarefa do operador jurídico ao interpretar o direito fundamental deve ater-se a identificar seu conteúdo constitucionalmente estabelecido e a verificar sua adequação à questão de fato apreciada, não lhe competindo estabelecer restrições recíprocas a direitos ou bens supostamente antagônicos. ALEXY, Robert. Teoria de los derechos..., op. cit., p. 267. Essa terminologia é empregada por GUERRERO, Manuel Medina. La vinculación negativa del legislador a los derechos fundamentales. Madrid: McGraw-Hill, 1996, passim e BOROWSKI, Martín. La restricción de los derechos fundamentales. Revista Española de Derecho Constitucional, n.59, 2000, p. 29-56. 35 Esse ponto é controvertido entre os autores que perfilham a teoria interna. No sentido do texto, MÜLLER, Friedrich. Die positivität der grundrechte: fragen einer praktischen grundrechtsdogmatik. Berlín: Duncker & Humblot, 1999, p. 87 et seq. Apud MARTÍNEZPUJALTE, Antonio-Luis. La garantía del contenido esencial de los derechos fundamentales. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1997, p. 82; e OTTO Y PARDO, Ignacio de. La regulación del exercício de los derechos y libertades: la garantia de su contenido esencial en el articulo 53.1 de la constitucion. In: MARTÍN-RETORTILLO, Lorenzo; OTTO Y PARDO, Ignacio de. Derechos fundamentales y constitución. Madrid: Civitas, 1992, p. 151. De forma diversa, Martinez-Pujalte, Antonio-Luis, defende que “os limites fixados diretamente pela Constituição ou que o legislador pode fixar em conformidade — expressa ou tácita — com esta; é um limite interno”. Ibidem. 33 34 Nessa linha de princípio, para os adeptos da teoria interna, os limites dos direitos fundamentais não configuram jamais recortes externos de seu âmbito de incidência, mas sempre resultam da análise de seu conteúdo tal como estatuído na Constituição. Como os direitos não são limitáveis, “o procedimento de aplicação jurídica cumpre a tarefa de verificar se o conteúdo aparente do direito é também seu conteúdo verdadeiro”.36 No que tange às intervenções legislativas em matéria de direitos fundamentais, a teoria interna preconiza que as disposições legais não restringem os direitos. A legislação reguladora dos direitos circunscreve-se a concretizar e configurar os direitos internamente, detalhando suas formas de exercício dentro do âmbito de seu conteúdo constitucionalmente previsto. Um paradigma dessa concepção é Friederich Müller, para quem do conteúdo dos direitos fundamentais resultam delimitações que “devem ser descobertas dogmaticamente através da análise do âmbito e do programa normativos”.37 A tarefa do intérprete consiste, pois, em identificar o âmbito de proteção do direito, os seus contornos. Por via de consequência, as hipóteses de colisões de direitos ou entre direitos e outros bens — para cuja solução é necessário pressupor que um direito seja limitado para ceder espaço a outro direito ou bem constitucionalmente protegido — afiguram-se falsas. Na sua visão, trata-se de “pseudocolisões”, sendo desnecessário recorrer ao método da ponderação de bens ou valores, pois “se trata unicamente de um problema dogmático de interpretação do conteúdo do direito em questão”.38 Dessa forma, os problemas interpretativos que envolvem direitos fundamentais não devem ser resolvidos em duas etapas (delimitação do seu conteúdo e harmonização com outros direitos ou bens), mas, ao contrário, “o conteúdo do direito é decifrado de uma só vez, em um só ato dogmático de interpretação do âmbito normativo, no qual ab initio os limites imanentes são projetados no interior do mesmo, recortando-se assim, aprioristicamente, a genérica esfera de liberdade que dá vida ao direito”.39 Na doutrina espanhola, essa tese foi defendida de forma veemente por Ignácio de Otto y Pardo,40 que, criticando as sentenças do Tribunal Constitucional — que recorrem ao método da ponderação de bens para examinar a legitimidade constitucional de restrições aos direitos fundamentais —, sustentou que “o verdadeiro fundamento do juízo acerca da constitucionalidade ou inconstitucionalidade do limite encontra-se em sua BOROWSKI, Martín. La estrutura…, . op. cit., p. 69. MÜLLER, Friedrich. Die positivität der grundrechte. Berlin: Duncker & Humbolt, 1969. Apud GUERRERO, Manuel Medina. La vinculación negativa..., op. cit., p. 55. 38 Idem, ibidem, p. 58. 39 Idem, ibidem. 40 Em seu trabalho, La regulación del exercício..., op. cit., p. 121 et seq. Esse texto é referência obrigatória sobre o problema das limitações na doutrina espanhola, a qual vem cada vez mais se ocupando do tema. 36 37 adequação ou inadequação ao bem oposto ao direito, não em relação entre esses dois últimos, nem na ponderação de bens, por mais que se invoque esta”.41 Outro autor que defende a ideia de impossibilidade de autênticas restrições aos direitos fundamentais é Martinez-Pujalte, que salienta que “para além dos contornos que os delimitam não pode existir proteção constitucional do direito fundamental e, de outro lado, dentro deles a proteção constitucional é absoluta”.42 Como se vê, a partir dessa perspectiva, o problema crucial quanto à interpretação dos direitos fundamentais não diz respeito aos limites das restrições que possam ser estabelecidas, ou à necessidade de justificação dessas restrições. Diversamente, o foco de análise é a determinação dos confins dos direitos, ou seja, de sua esfera normativa ou âmbito de proteção, que decorre da adequação do fato à norma. Assim, ao invés de afirmarem que a liberdade de expressão é limitada pelo direito à honra e à imagem, ou que a ordem pública limita o direito de manifestação, os adeptos dessa tese sustentarão que as condutas humanas são ou não protegidas pelos direitos, ou seja, que estão ou não incluídas em suas esferas de proteção. Nessa linha de raciocínio, Ignacio de Otto apresenta uma série de exemplos que, na sua visão, ilustram a ideia por ele defendida. Afirma o autor que “o problema de uma seita religiosa nudista não é caso de liberdade religiosa”; que a garantia do matrimônio não compreende a poligamia; que a propaganda comercial não se insere no direito à informação; e, ainda, que “a sanção imposta a um funcionário que abandona seu trabalho para assistir a uma missa não é, obviamente, limitação alguma aos correspondentes direitos fundamentais”.43 Outro exemplo sempre lembrado para explanar a teoria interna é fornecido por Friederich Müller. O autor germânico analisa a situação de um artista que pretende pintar no cruzamento de duas ruas muito movimentadas. A partir de sua avaliação, a atividade de pintar em tais circunstâncias não está protegida pelo preceito da Constituição Alemã que consagra a liberdade artística,44 de modo que uma lei que venha a proibir que se pinte em um Idem, ibidem, p. 123. MARTINEZ-PUJALTE, Antonio-Luis. La garantía del..., op. cit., p. 93. Este autor, ocupandose do problema da limitação legislativa dos direitos, defende que “os direitos fundamentais apresentam limites, porém não admitem restrições.” Ibidem, p. 49. 43 OTTO Y PARDO, Ignacio de. La regulación del exercício..., op. cit., p. 139 e 142. 44 “Artigo 5º (Liberdade de expressão, informação e de imprensa; liberdade de criação artística e científica) (1) Todos têm o direito de exprimir e divulgar livremente a sua opinião pela palavra, pelo escrito e pela imagem, bem como o direito de se informar, sem impedimentos, por meio de fontes acessíveis a todos. São garantidas a liberdade de imprensa e a liberdade de informação por radiodifusão e filme. Não haverá censura. (2) Estes direitos têm por limites os preceitos das leis gerais, as determinações legais para a protecção da juventude e o direito à honra. (3) São livres a arte e a ciência, a investigação e o ensino. A liberdade de ensino não dispensa da lealdade à Constituição”. ALEMANHA. Constituição 41 42 cruzamento não estará restringindo direito algum, porquanto não se está diante de nenhuma “forma de ação especificamente protegida por um direito fundamental”.45 Da mesma forma não haveria restrição a direito fundamental no caso de proibir-se “expressar opiniões políticas naquele cruzamento”, nem tampouco estaria tutelado pela Constituição um “músico que altas horas da noite, na rua ou em uma casa com paredes finas, ensaiasse sua composição para tambores.”46 Em coerência com essas noções, os diversos aportes doutrinários que defendem a teoria interna contêm, de um modo geral47, uma severa crítica à ponderação de interesses como método de interpretação constitucional, sustentando a impossibilidade lógica de autênticos conflitos entre os direitos fundamentais ou entre estes e outros bens constitucionais. Aliás, a preocupação central no âmbito da teoria interna é expurgar do processo interpretativo o subjetivismo e, desse modo, evitar o enfraquecimento dos direitos fundamentais. O que orienta tais formulações é a premissa de que o processo de identificação do conteúdo do direito confere maior segurança e previsibilidade à atividade hermenêutica, bem como se mostra mais adequado à noção de superioridade jurídica da Constituição e dos direitos fundamentais.48 Outro objetivo que norteia a teoria interna é o de evitar a proliferação de falsos casos constitucionais, na medida em que as situações não amparadas pelo direito não decorrem de restrições a este, mas simplesmente estão fora do raio de incidência da Constituição.49 Evita-se, assim, uma inflação de direitos fundamentais, que implicaria o enfraquecimento de sua força vinculante.50 Recentemente, essa teoria vem ganhando a adesão de diversos autores, ainda que com matizações. Nesse sentido, Juan Cianciardo51 — embora (1949). A lei fundamental da república federal da alemanha. Coimbra: Coimbra, 1996, p. 129. 45 Apud Alexy, Robert, que formula uma severa crítica a essa concepção. Teoria de los derechos..., op. cit., p. 303. 46 Idem, ibidem. 47 São exceções: ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os direitos fundamentais..., op. cit. e HABERLE, Peter. La garantía del contenido..., op. cit. Confiram-se, a propósito, os itens 3.3.2 e 3.3.2 infra. 48 De fato, a teoria interna encontra-se associada a outras concepções que são analisadas no curso do presente estudo, tais como a crítica à ponderação e o modelo de regras dos direitos fundamentais. Tais debates correlatos serão aprofundados nos tópicos pertinentes. 49 CIANCIARDO, Juan. El conflictivismo en los..., op. cit., p. 245. 50 Idem, ibidem. No mesmo sentido, HESSE, Konrad. Derecho constitucional y derecho privado. Madrid: Civitas, 1995, p. 61. 51 O autor pretende propor uma teoria alternativa à teoria interna e à externa. Como crítica à teoria interna, sustenta que: i) “de um lado, a amplitude semântica das normas constitucionais parece desmentir categoricamente toda possibilidade de determinar apoditicamente, mesmo fazendo um grande esforço hermenêutico, os perfis de cada um dos direitos nelas reconhecidos.”; ii) “... a argumentação da teoria interna assenta-se sobre um refutando a ideia de que é possível determinar de forma apodítica o significado constitucional dos direitos, bem como admitindo a tese de que pode haver conflitos entre “normas de direitos fundamentais” — sustenta que “os direitos fundamentais são limitados, mas ilimitáveis”.52 Outro autor hispânico, Tomás de Domingo, defende que “o exercício de um direito fundamental acha-se internamente limitado pelas exigências do bem jurídico protegido”, razão por que “não entra em colisão com interesses coletivos ou outros direitos fundamentais”. Assevera, assim, que “não resulta adequado falar em direitos ilimitados, porque cada direito não vai além do âmbito que exige a proteção do bem jurídico”.53 Na doutrina argentina, há trabalhos que defendem a posição que nega os conflitos entre direitos e, consequentemente, as limitações externas. Os professores Pedro Serna e Fernando Toller advogam que “os direitos, ainda que não sejam ilimitados — no sentido de que todo o coberto por seu âmbito material seria por isso mesmo legítimo —, propriamente não são tampouco limitados, isto é, não têm nem necessitam de limites externos, mas são delimitáveis: através da tarefa legislativa e da decisão judicial é possível traçarlhes contornos precisos, um âmbito onde é justo exercê-los, de maneira que transpor essa esfera de atuação regular implicará um exercício abusivo”.54 dogma comprovadamente falso, o da auto-suficiência do texto constitucional e das disposições jusfundamentais.” e iii) “... a teoria interna priva o litigante das garantias do princípio da proporcionalidade e do conteúdo essencial naqueles casos em que se possa considerar que o legislador não tenha limitado um direito fundamental, mas sim explicitado seu conteúdo, vale dizer, em todos os casos de delimitação e não de limitação dos direitos fundamentais, que são mais numerosos para esta teoria que para a teoria externa, porquanto as limitações reduziriam-se neste caso às expressamente contidas no texto da Constituição.” Sem embargo, a tese fundamental defendida por CIANCIARDO, Juan é a de que a) “o conteúdo das normas jusfundamentais é limitado e regulável;” e b) “os direitos fundamentais são limitados porém ilimitáveis.” Este autor, partindo da distinção entre direito fundamental e norma de direito fundamental, sustenta que “...há conflitos de normas jusfundamentais, porém que nunca, em caso algum, existem autênticos conflitos de direitos.” Deste modo, no que se refere ao problema de fundo, a tese de CIANCIARDO aproxima-se muito mais da teoria interna do que da externa. Ibidem, pp. 246-250. 52 Idem, ibidem. 53 PÉREZ, Tomás de Domingo. ¿Conflictos entre derechos fundamentales?: un análisis desde las relaciones entre los derechos a la libre expresión e información y los derechos al honor y la intimidad. Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 2001, p. 353. 54 SERNA, Pedro; TOLLER, Fernando. La interpretación constitucional de los derechos fundamentales: una alternativa a los conflictos de derechos. Buenos Aires: La Ley, 2000, p.66. As ideias defendidas nesse livro já haviam sido esboçadas por SERNA, Pedro em seu artigo: Derechos fundamentales: el mito de los conflictos. Reflexiones teóricas a partir de un supuesto jurisprudencial sobre intimidad e información. Humana Iura. [S.l.]: n. 4, pp. 197234, 1994. Nessa ordem de argumentos, defendem que a forma adequada de interpretar os direitos em situações de aparente colisão é determinar, a partir de uma leitura teleológica e sistemática, o conteúdo dos direitos. Em resumo, a teoria interna i) nega a possibilidade de limitações externas aos direitos; ii) afirma que a identificação dos casos em que o direito deve incidir há de ser feita mediante a análise de seu conteúdo constitucionalmente estabelecido e iii) recusa a hipótese de colisões de direitos. 3.2) A teoria externa55 (ou concepção ampla)56 dos limites dos direitos fundamentais A teoria externa acerca dos limites dos direitos fundamentais estabelece, com clareza, a diferença entre delimitação de conteúdo e restrição dos direitos fundamentais. Como assinala Alexy, a referida teoria pressupõe a existência de duas categorias jurídicas: “primeiro, o direito em si, que não está restringido, e, segundo, o que sobra quando se colocam as restrições, quer dizer, o direito restringido”.57 E acrescenta: A teoria externa pode, por certo, admitir que nos ordenamentos jurídicos os direitos apresentam-se primordial ou exclusivamente como direitos restringidos porém, tem que insistir que também são concebíveis direitos sem restrições. Por isso, segundo a teoria externa, não existe nenhuma relação necessária entre conceito de direito e o de restrição. A relação é criada tão somente através de uma necessidade externa ao direito, de compatibilizar os direitos de diferentes indivíduos como assim também os direitos individuais e os bens coletivos.58 De acordo com essa concepção, a tarefa de interpretação constitucional visando a determinar as situações protegidas pelos direitos fundamentais envolve duas etapas, que consistem em: i) identificar o conteúdo do direito (seus contornos máximos, sua esfera de proteção),59 e ii) precisar os limites externos que decorrem da necessidade de conciliá-lo com outros direitos e bens constitucionalmente protegidos.60 Expressão utilizada por ALEXY, Robert, Teoria de los derechos..., op. cit., p. 268; e CiancIardo, Juan. El conflictivismo en los..., op. cit., p. 222. 56 Expressão utilizada por GUERRERO, Manuel Medina. La vinculación negativa..., op. cit. 57 ALEXY, Robert. Teoria de los derechos..., op. cit. 58 Idem, ibidem. 59 Que, na linguagem da teoria dos princípios, corresponde ao conteúdo prima facie dos direitos. Ver, nesse sentido, BOROWSKI, Martín. La estrutura de los..., op. cit., p. 67. 60 Idem, ibidem. 55 Na primeira fase, o intérprete deve determinar, da forma mais ampla possível, as diversas faculdades e posições jurídicas que decorrem do direito fundamental em jogo. Trata-se de verificar, à luz do dispositivo que assegura o direito, seu “conteúdo inicialmente protegido,”61 sem tomar-se em consideração se outros direitos individuais ou interesses comunitários podem ser afetados ou restringidos. A leitura da norma, nessa etapa, é a mais ampliativa possível. Sem embargo, devem ser levadas em conta as limitações estabelecidas no próprio preceito que outorga o direito (por exemplo, a esfera de proteção do direito de associação só ampara a constituída para “fins lícitos”, vedando, ab initio, as de caráter paramilitar). No segundo momento, promove-se a harmonização do amplo “conteúdo inicialmente protegido” do direito com os direitos e bens constitucionais que se apresentem como contrapostos, a fim de identificar o “conteúdo definitivamente protegido”. São traçados, assim, os limites definitivos do direito, os quais, para essa concepção, são limites externos, já que resultam do “recorte” do conteúdo inicialmente protegido do direito fundamental.62 A análise de exemplos é útil para demonstrar as diferenças entre as duas concepções. No caso do artista que pretende pintar no cruzamento de duas vias congestionadas, desde a ótica da teoria interna não haveria direito à liberdade artística a ser tutelado, porquanto a referida ação não estaria inserida do âmbito de proteção da norma de direito fundamental. Embora pintar seja uma ação protegida pela liberdade artística, pintar naquelas condições não corresponde a uma “possibilidade específica de ação” compreendida da esfera normativa do direito.63 De forma diversa, apreciando-se o problema a partir das premissas que informam da teoria externa, o resultado seria o mesmo — não há direito a pintar no cruzamento movimentado — mas a trajetória hermenêutica que conduz a essa conclusão seria distinta. Como pintar é uma ação artística, haveria um direito prima facie de pintar no cruzamento. Todavia, a existência de razões opostas — o direito dos outros e a ordem pública — justifica o afastamento do direito naquela situação específica.64 A análise promovida feita por um adepto da teoria interna de uma decisão da Suprema Corte do Canadá — que se amparou na ideia de limites — é também ilustrativa das diferenças entre as duas visões.65 O julgamento em questão versou sobre os seguintes fatos: um professor de estudos sociais no ensino médio ministrava teorias anti-semitas em suas aulas. A expressão é de GUERRERO, Manuel Medina. Segundo o autor, nessa etapa, obtém-se, por meio de uma “interpretação literal do direito, um amplo conteúdo constitucionalmente protegido do mesmo.” La vinculación negativa...,op. cit., p. 62. 62 GUERRERO, Manuel Medina. La vinculación negativa..., op. cit.. 63 ALEXY, Robert. Teoria de los derechos..., op. cit., pp. 303. 64 Nesse sentido, ALEXY, Robert. Teoria de los derechos..., op. cit., p. 304-306. 65 R. v. Keegstra, 1990. Suprema Corte do Canadá, 697. 61 Em virtude disso, veio a ser condenado por delito de “promoção consciente e pública de ódio a determinados grupos”, tipificado no Código Penal Canadense. A sentença foi objeto de recurso, tendo a Corte de Apelação desconstituído a condenação por entender que o Código Penal violara o direito à liberdade de expressão, estampado na Carta de Direitos. A Suprema Corte reformou tal decisão por quatro votos a três. Os votos majoritários entenderam que a propaganda do ódio está compreendida na esfera de proteção da liberdade de expressão, cujo alcance constitucional é amplo. Nessa perspectiva, entendeu-se que o Código Penal, em abstrato, restringiu a liberdade de expressão ao tipificar o discurso do ódio (hate speech). Passou-se, numa segunda etapa, a verificar se a referida restrição é justificável à luz do preceito da Carta que determina que os direitos só podem estar sujeitos a limites razoáveis no âmbito de uma sociedade democrática. Entendeu-se, então, que o discurso do ódio representa uma grave ameaça aos grupos discriminados e à sociedade, de modo que o requisito de razoabilidade restou atendido.66 Toller e Serna, adeptos da teoria interna, sustentam que a Corte Canadense empregou fundamentos equivocados, tendo em vista que o discurso do ódio contraria as regras da democracia, não estando abrangido pela garantia da liberdade de expressão. Na visão desses autores, “não pode haver, de um lado, um verdadeiro direito a expressar-se de determinada maneira e, por outro, estar verdadeiramente justificada a limitação desse concreto exercício do direito”.67 A tese de que os direitos fundamentais são restringíveis tem por principal expoente Robert Alexy, sendo adotada por parte substancial da doutrina contemporânea.68 No plano jurisprudencial, essa noção tem sido empregada, em larga medida, pelas Cortes Constitucionais, e também pela Corte Européia de Direitos Humanos.69 SERNA, Pedro; TOLLER, Fernando. La interpretación constitucional..., op. cit., p. 147-148. Idem, ibidem, p. 153. 68 Confira-se, por exemplo, GUERRERO, Manuel Medina. La vinculación negativa..., op. cit.; SANCHÍS, Luis Prieto. La limitación de los..., op. cit., (1990), p. 153 et seq.; MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional: tomo IV, direitos fundamentais. Coimbra: Coimbra, 2000, p. 336 e, CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. Coimbra: Almedina, 1998, p. 411. Entre nós, aproxima-se dessa concepção: SARMENTO, Daniel. A ponderação de interesses na constituição federal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2000. Pode-se dizer que tal concepção é a majoritária, embora seja possível observar que a teoria interna vem ganhando adeptos recentemente (veja-se tópico 3.1, supra). 69 Vejam-se alguns exemplos: Na jurisprudência espanhola, a teoria externa tem firme aceitação, prevalecendo a tese de que os direitos fundamentais admitem restrições, desde que estas sejam determinadas pela “estrita observância do princípio da proporcionalidade” (STC 186/2000). Em decisão paradigmática, o Tribunal Constitucional Espanhol denegou o recurso de amparo no qual se alegava a violação dos direitos à intimidade pessoal e a própria imagem em razão da instalação de circuito fechado de televisão em local de trabalho. No caso, as fitas de vídeo gravadas no circuito interno foram apresentadas pela empregadora como 66 67 prova de responsabilidade em processo de demissão do demandante. Segundo o Tribunal, “[...] a instalação de um circuito fechado de televisão que controlava desde a zona onde o demandante de amparo desempenhava sua atividade laboral era uma medida justificada (já que existiam razoáveis suspeitas da ação irregular por parte do recorrente em seu posto de trabalho); idônea para a finalidade pretendida pela empresa (verificar se o trabalhador cometia efetivamente as irregularidades suspeitas e em tal caso adotar as medidas disciplinares correspondentes); necessária (já que a gravação serviria de prova de tais irregularidades); e equilibrada (pois a gravação de imagens limitou-se à zona da caixa registradora e a uma duração temporal limitada, suficiente para comprovar que não se tratava de um feito isolado ou de uma confusão, senão uma conduta ilícita reiterada), por que deve ser descartado que se tenha produzido lesão ao direito a intimidade pessoal consagrado no art. 18.1 CE”. No Tribunal Constitucional de Portugal também se encontram decisões das quais se infere a adesão daquela Corte à teoria externa. No processo de n. 369/2001 (Acórdão n 391/02), em que se discutia a constitucionalidade dos artigos 100º nº 2 e 108º do Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência, os quais determinam a alienação forçada de participações sociais no âmbito de um processo especial de recuperação de empresas, o Tribunal entendeu serem legítimas as restrições ao direito de propriedade impostas por tais preceitos. Utilizando o juízo de proporcionalidade, concluiu o Tribunal que: “em face destes factores de ponderação há que concluir pela não inconstitucionalidade da norma em questão. Na verdade o sacrifício solicitado aos titulares das participações sociais alienadas é adequadamente justificado no plano constitucional pela relevância dos valores salvaguardados com a medida nomeadamente os inerentes à viabilização de um agente económico à preservação de postos de trabalho e à manutenção de uma unidade produtiva no mercado nacional”. Na Itália, a Corte Constitucional, na Sentença n. 141, de 1995, declarou a inconstitucionalidade de preceito legal que estabelecia a impossibilidade de os condenados por sentença penal, ainda que não definitiva, por algum delito relacionado a máfia, se candidatarem nas eleições. O juízo de constitucionalidade foi feito à luz do direito eleitoral passivo, aspecto essencial da participação do cidadão na vida democrática, que no ordenamento constitucional italiano é um direito fundamental. Esta qualificação é importante, pois, para a Corte a “restrição do conteúdo de um direito fundamental só é admissível nos limites indispensáveis a tutela de outro interesse de matriz constitucional, e com base na regra de necessidade e razoável proporcionalidade de tal limitação”. A análise do dispositivo revelou que medida prevista é desporpocional com relação ao valor que se pretende salvaguardar e, portanto, ilegítima à luz do princípio da razoabilidade. Entre as inúmeras decisões da Corte Européia de Direitos Humanos, destaca-se o caso Open Door and Dublin Well Woman v. Ireland, no qual a Corte reconheceu a violação ao direito à informação previsto no art. 10 da Convenção. Open Door e Dublin Well Woman são organizações sem fins lucrativos que oferecem serviços relativos à saúde da mulher, tratamentos de infertilidade, inseminação artificial e orientação para mulheres grávidas. Entretanto, uma decisão da Suprema Corte da Irlanda impediu as referidas organizações de prestar informações a mulheres grávidas concernentes às facilidades do aborto fora da jurisdição da Irlanda. Segundo Suprema Corte, tal atividade é ilegal frente ao art. 40.3.3 da Constituição que protege o direito a vida do nascituro. As organizações recorreram a Corte Européia sob o fundamento de que a decisão constituía uma interferência injustificada no direito a liberdade de informação, previsto no art. 10 da Convenção. A Corte entendeu que apesar de a restrição estar prescrita em lei e ter finalidades legítimas, a mesma não é necessária à sociedade democrática. Segundo a Corte a restrição vai além dos limites da jurisdição irlandesa e é desproporcional. No Brasil, os autores que se ocuparam do tema, direta ou indiretamente, vêm defendendo as premissas que integram a teoria externa.70 De outro lado, a jurisprudência do STF tem encampado a ideia de conflitos e restrições recíprocas entre direitos, o que indica uma inclinação em favor dos postulados da teoria externa.71 A teoria externa é correlativa do modelo de ponderação e da teoria dos princípios. Ampara-se na ideia de que há conflitos entre direitos fundamentais e entre estes e outros bens constitucionais. Sendo os direitos fundamentais concebidos como princípios — vale dizer, como comandos prima facie dirigidos ao legislador —, é possível que sejam restringidos em decorrência de razões antagônicas que, em determinadas situações, assumam maior peso. Dessa forma, há duas normas válidas que entram em conflito: a norma que estatui o Vejam-se, por todos, SARMENTO, Daniel. A ponderação de..., op. cit., p. 97 et seq. e STEINMETZ, Wilson Antônio. Colisão de direitos fundamentais e princípio da proporcionalidade. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001. 71 Tome-se como exemplo o rumoroso julgamento pelo Tribunal Pleno da Reclamação n. 2040, formulada por Gloria de Los Angeles Treviño Ruiz. A reclamante alegava que a coleta de material biológico de sua placenta para realização de exame de DNA, com vistas a determinar a paternidade do filho que concebera na prisão, violava seu direito à intimidade e o de seu filho. Como a reclamante houvera afirmado ser a gravidez decorrente de violência sexual sofrida na prisão, o STF entendeu haver um conflito entre o seu direito à intimidade e bens jurídicos constitucionais como a “moralidade administrativa”, a “persecução penal” e a “segurança pública”, estando em jogo, também, o direito à honra dos policiais federais acusados de estupro nas dependências da Polícia Federal. A partir do juízo de ponderação efetivado pela Corte, entendeu-se ser legítima a restrição ao direito à intimidade da reclamante, permitindo, assim, a realização do exame de DNA com a utilização do material biológico colhido de sua placenta. Este entendimento está explícito no voto do relator, Min. Néri da Silveira, que consignou que: “a acusação, tornada pública, porque veiculada nos meios de comunicação, com referência à “violação” sofrida, não só atingiu a honra e a dignidade dos policiais federais, alguns referidos nominalmente na imprensa, como acabou por alcançar, também, o Departamento de Polícia Federal, a instituição em si, notadamente, com as repercussões no âmbito do noticiário internacional, ferindo, sem dúvida, a própria imagem do País no exterior.” [...] “Esses bens e valores, por sua quantidade significativa, atingidos, autorizam que se adote solução realmente consistente para o esclarecimento da verdade, quanto a participação eventual dos servidores públicos em apreço no ato da alegada violência sexual aludido pela reclamante, a quem não caberá, agora, escudar-se na só invocação do direito à intimidade, para impedir se possam averiguar os fatos em sua plenitude, o que está a exigir efetivamente se confronte o DNA do filho da reclamante com o `material biológico sangue periférico' (fls. 113) dos policiais federais e outras pessoas, [...]”. Na parte final do voto o Ministro concluiu: “[...] todos esses aspetos que se acrescem, como bens jurídicos da comunidade — na expressão de Canotilho, referido às fls. 162 — ao direito fundamental à honra (CF, art. 5º, X) já examinado, estão a autorizar se estabeleça restrição, no caso concreto, ao invocado direito à intimidade da reclamante”. (Supremo Tribunal Federal. Reclamação n. 2040 — Distrito Federal. Julgamento: 21/02/2002. Tribunal Pleno. Rel. Min. Néri da Silveira, DJ. 27.06.2003. Ementário n. 2116-1.) 70 direito prima facie e a norma que estabelece a restrição.72 O direito definitivo será extraído depois de empregado o raciocínio ponderativo, tendo-se em conta o imperativo de proporcionalidade. Por estas mesmas razões, a teoria externa é incompatível com a noção de que as normas de direito fundamental estabelecem apenas comandos definitivos (regras).73 Em síntese esquemática, a teoria externa preceitua que: i) os direitos fundamentais são princípios, veiculando comandos prima facie; ii) os direitos fundamentais são restringíveis; iii) as restrições aos direitos fundamentais são motivadas pela existência de conflitos entre estes e outros direitos e bens constitucionais; iv) a legitimidade constitucional da restrição é de ser examinada mediante um juízo de ponderação, que irá sopesar os direitos e bens em conflito, através da aplicação do princípio da proporcionalidade. 3.3) Algumas teses diferentes 3.3.1) O aporte de Peter Häberle: a tese que concilia ponderação e direitos irrestringíveis Como se viu, as teses no sentido de que os direitos fundamentais não são passíveis de restrição usualmente estão associadas a severas críticas ao método da ponderação de interesses. Não obstante, há certos segmentos da doutrina que preconizam que o conteúdo de direitos não-restringíveis pode ser determinado por meio da ponderação.74 Como assinala BOROWSKI, Martín, um aspecto que aparta a teoria interna da externa consiste no fato de que aquela concebe o processo de interpretação dos direitos fundamentais como uma tarefa de verificação da existência do direito, de modo que “o conteúdo aparente do direito não compreende nenhuma posição normativa, mas apenas um fenômeno por elucidar em termos de reconhecimento do juridicamente devido. Quem unicamente pode invocar um direito aparente, atua sem direitos, e não com direitos reduzidos ou restringidos”. La estrutura de los..., op. cit., p. 69-70. 73 Idem, ibidem, p. 66. Essa tese é acolhida por grande parte da doutrina espanhola. Vejam-se, por exemplo: GUERRERO, Manuel Medina. La vinculación negativa..., op. cit.; SANCHÍS, Luis Prieto. La limitación de los..., op. cit., (1990); CRUZ, Rafael Naranjo de la. Los límites de los derechos fundamentales en las relaciones entre particulares: La buena fe. Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 2000; CATOIRA, Ana Aba. La limitación de los derechos en la jurisprudencia del Tribunal Constitucional Español. Valencia: Tirant lo Blanch, 1999; ARNAU, Juan Andrés Muñoz. Los límites de los derechos fundamentales en el derecho constitucional español. Pamplona: Aranzadi, 1998 e, PECES-BARBA MARTINEZ, Gregorio. Curso de derechos fundamentales. Madrid: Universidad Carlos III de Madrid, 1999. Entre nós, aproxima-se dessa concepção: SARMENTO, Daniel. A ponderação de..., op. cit. 74 Um inventário dessas teorias na dogmática alemã pode ser encontrado em BOROWSKI, Martin. Grundrechte als prinzipien. Baden-Baden: Nomos Verlagsgesellschaft, 1998, p. 111. Apud BOROWSKI, Martín, La estrutura de los..., op. cit., p. 83. 72 Um conceituado defensor dessa noção é Peter Häberle, que defende o recurso à ponderação para apurar o conteúdo juridicamente protegido de direitos fundamentais irrestringíveis. Häberle sustenta que os direitos fundamentais são, em sua essência, ilimitáveis. Em sua ótica, a “essência” dos direitos fundamentais e seu conteúdo constitucional identificam-se. Os marcos que delimitam o conteúdo essencial do direito fundamental, que se afigura irrestringível, são dados pelos limites imanentes. Tais limites não são identificados após um processo pelo qual os direitos são restringidos por outros bens e valores constitucionais, mas estão postos na Constituição “desde o princípio,” podendo ser extraídos diretamente do texto constitucional e das leis gerais situadas na esfera temática dos direitos fundamentais, que os concretizam.75 Portanto, em relação a esses aspectos, sua obra coincide com os postulados fundamentais da teoria interna. As lições contidas em seu conhecido trabalho sobre o conteúdo essencial dos direitos fundamentais76 são bem claras nesse sentido: O legislador, que concretiza no campo dos direitos fundamentais os limites conforme a essência, regula limites que existem desde o princípio. Só este “desde o princípio” ajusta-se à natureza destes limites imanentes dos direitos fundamentais: não aparecem como limites suplementares e que chegam aos direitos fundamentais desde fora. Os direitos fundamentais são limitados desde o princípio por aqueles bens jurídicos de igual ou superior hierarquia que, assim como eles mesmos, encontraram reconhecimento jurídico-constitucional. A concretização dos limites, e isso vale também para as reservas especiais de lei, não é um processo que afete os mencionados direitos “desde fora”. Os direitos são garantidos desde o princípio dentro dos limites a eles imanentes da generalidade material do sistema axiológico jurídico constitucional. Este “desde o princípio” contrapõe-se em Em relação a esse aspecto, cumpre observar que, para HÄBERLE, Peter, a legislação no âmbito dos direitos fundamentais não impõe limites “desde fora”. Em suas palavras, a relação entre lei e conteúdo do direito fundamental pode ser assim colocada: “qualquer limitação de um direito fundamental é uma parte da determinação do conteúdo. A limitação e a delimitação de conteúdo vão juntas.” La garantia del contenido..., op. cit., p. 167. 76 HÄBERLE, Peter. La garantía del contenido esencial…, op. cit.. Essa edição espanhola consubstancia tradução integral da tese de doutorado de Häberle, originalmente publicada como Die wesensgehaltgarantie des art. 19 abs. 2 grundgesetz: zugleich ein beitrag zum institutionellen verstaendnis der grundrechte und zur lehre vom gesetzesvorbehalt. Karlsruhe: Mueller, 1962. Há, também, as seguintes traduções parciais desse mesmo trabalho no idioma italiano e em castelhano: Le libertà fondamentali nello stato costituziole. Roma: Nuova Italia Scientifica, 1996 e La libertad fundamental en el estado constitucional. Granada: Comares, 2003. 75 especial àquela interpretação que parte ab initio de uma liberdade absoluta, ilimitada, que logo é corrigida através de “constrições” no sentido de uma concessão ou de uma mera “correção” para atender quaisquer exigências ou necessidades externas. [...] Este “desde o princípio” expressa que os direitos fundamentais só se estendem até onde não lesionem ou não ponham em perigo bens jurídicos de igual ou superior hierarquia, que com a concretização dos limites imanentes não se lhes priva de nada que não lhes corresponda “per si”. Se faz claro que se regulam limites internos da liberdade e o titular de direitos fundamentais é remetido a limites que, em virtude da Constituição, existiram “desde o começo”, desde o princípio.77 Assim, Häberle acredita que os limites imanentes dos direitos fundamentais estão preestabelecidos na Constituição, de modo que a ação legislativa, mesmo quando expressamente autorizada por reservas de lei, terá sempre natureza concretizadora de limites que já existiam. Dito de outro modo, ao legislador cabe, tão-somente, interpretar limites que defluem logicamente do texto constitucional. Sem embargo, paralelamente a isso, Häberle não critica o método da ponderação. Ao contrário, apregoa que na identificação do conteúdo dos direitos fundamentais é indispensável uma ponderação que tenha em conta os diversos direitos e bens constitucionais. Em suas palavras, “o princípio através do qual cabe determinar o conteúdo e os limites dos direitos fundamentais, e através do qual se solucionam os conflitos que surgem entre bens jurídico-constitucionais é o princípio da ponderação de bens”.78 Cabe destacar que, para o autor germânico, “os bens jurídicoconstitucionais concorrentes não estão uns em relação aos outros numa relação de supra ou subordinação no sentido de que possam ser utilizados uns contra os outros”, mas, ao contrário “estão coordenados uns com os outros”.79 Nessa linha de raciocínio, Häberle entende que os limites dos direitos fundamentais devem ser percebidos a partir da totalidade da Constituição, só podendo ser compreendidos em conexão com os diversos bens e direitos constitucionalmente protegidos. Essa premissa, na sua visão, é fundamental para obter um equilíbrio entre os direitos. E tal equilíbrio há de ser obtido exatamente por meio da ponderação, através da qual “tem lugar a inserção dos bens jurídico-constitucionais no conjunto da Constituição, ou, melhor dito, esta inserção é simplesmente executada pois já resulta da Constituição”.80 HÄBERLE, Peter. La garantia del contenido..., op. cit., p. 57. Idem, ibidem, p. 33. 79 Idem, ibidem, p. 39. 80 Idem, ibidem, p. 40. 77 78 O autor engendra, assim, uma formulação que acomoda as premissas fundamentais da teoria interna sem abrir mão do método da ponderação de interesses. Essa concepção apresenta certos inconvenientes metodológicos. De um lado, parece bastante contraditório afirmar que as leis solucionam conflitos de bens para determinar limites que já estavam previamente estatuídos na Constituição. É que a noção de que os limites dos direitos já existem no texto constitucional “desde o começo” não se harmoniza com a tese de que os bens protegidos podem entrar em conflito. Ademais, quando se entende que a ponderação é um método para determinar o conteúdo do direito fundamental, que já existiria “desde o início” na Constituição, acaba-se por igualar o objeto da ponderação com o seu resultado. Equipara-se, assim, o sopesamento de bens a uma descoberta. Não fica claro, desse modo, se há diferença entre o que é ponderado e o que é protegido em definitivo.81 Deve-se ressaltar, também, que a tese segundo a qual o legislador, em qualquer caso, concretiza os limites dos direitos que já existiam na Constituição “desde o princípio”, acaba por conferir um peso excessivo ao conteúdo das leis reguladoras, confundindo-as com a própria proteção constitucional do direito. Essa construção, a pretexto de assegurar a supremacia da Constituição, implica um controle menos severo da atividade legislativa, que é vista como meramente interpretativa. 3.3.2) A concepção de Vieira de Andrade: irrestringibilidade abstrata e restringibilidade concreta Na doutrina portuguesa, José Carlos Viera de Andrade apresenta visão singular, que associa elementos das teorias externa e interna, defendendo simultaneamente que os direitos não-sujeitos à reserva legal são irrestringíveis no plano abstrato e que é possível recorrer à ponderação para solucionar conflitos de direitos no plano concreto. O referido autor, sem negar a possibilidade lógica de conflitos entre direitos fundamentais, sustenta que só é possível falar em restrições legislativas aos direitos nos casos categoricamente permitidos pela Constituição. Assinala, pois, que “a limitação legislativa de um direito em caso de colisão com outro direito ou valor constitucional, fora dessas hipóteses [restrições autorizadas pela Lei Maior], tem de ser outra coisa que não uma restrição, sob pena de se defraudar a proibição de restrição fora dos casos previstos”.82 Vieira de Andrade procura distinguir as restrições legislativas – só admitidas, na sua visão, quando expressamente autorizadas pela Carta –, dos 81 82 BOROWSKI, Martin. La estrutura de los..., op. cit., p.83-84. ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os direitos fundamentais..., op. cit., p. 281. limites imanentes e dos conflitos de direitos e colisões entre direitos e bens. 83 Partindo das diferenças que vislumbra entre essas três categorias, o autor apresenta duas soluções díspares conforme se trate de promover uma resolução abstrata de conflitos, a ser efetivada pelo legislador, ou um solução concreta de conflitos, a ser efetivada pelo Judiciário. Em conformidade com sua tese de que as restrições legislativas só são possíveis quando expressamente autorizadas pelo texto constitucional, Vieira de Andrade sustenta que o legislador, para solucionar conflitos de direitos no plano abstrato, só pode valer-se de “leis harmonizadoras, que, não estando autorizadas a restringir direitos, visam justamente a apenas consagrar, de forma geral e abstrata, soluções para resolução de conflitos”.84 No ponto de vista do autor, “a limitação de direitos (ou de direitos e de valores comunitários) numa situação abstrata de colisão [...] corresponde a uma mera interpretação”.85 Assim, a solução abstrata de conflitos é algo diverso das restrições legislativas: [...] na restrição, como se visa assegurar um direito ou valor comunitário que a Constituição considerou posto em risco por um direito potencialmente agressivo, o legislador está autorizado a operar predominantemente através de critérios de ponderação e pode estabelecer preferências, enquanto na solução abstrata de conflitos, o legislador tem de pautar-se obrigatoriamente por critérios de mera harmonização e deve, em regra, utilizar conceitos flexíveis, que permitam a consideração das circunstâncias concretas nos casos em que as leis venham a aplicar-se.86 Portanto, no plano abstrato, Vieira de Andrade só admite o recurso à ponderação quando tratar-se de leis que disciplinem direitos fundamentais sujeitos à reserva legal. Quanto aos direitos não submetidos à reserva, apenas Para ANDRADE, José Carlos Vieira de, os limites imanentes são: “As fronteiras definidas pela própria Constituição que os cria ou recria.” Ibidem, p. 282. Já as restrições, em sua ótica, são apenas aquelas explicitamente autorizadas pela Constituição. Idem, ibidem, p. 292. As colisões e conflitos, na visão do autor, ocorrem “sempre que se deva entender que a Constituição protege simultaneamente dois valores ou bens em contradição numa determinada situação concreta (real ou hipotética). A esfera de protecção de um direito é constitucionalmente protegida em termos de intersectar a esfera de outro direito ou de colidir com uma outra norma ou princípio constitucional. O problema agora é o de saber como vai resolver-se esta contradição relativa ao caso concreto, como é que se vai dar solução ao conflito entre bens, quando ambos (todos) se apresentam efetivamente protegidos como fundamentais.” Ibidem, p. 311. 84 Idem, ibidem, p. 311. 85 Idem, ibidem, p. 282. 86 Idem, ibidem, p. 281. 83 seria possível a harmonização legislativa dos direitos, visando a oferecer critérios gerais para a resolução de conflitos concretos pelo Judiciário. Já para solucionar conflitos que se apresentem no plano concreto, o autor admite o recurso ao juízo de ponderação, que há de ser orientado pelo princípio da concordância prática. Este princípio, segundo o autor, “executa-se [...] através de um critério de proporcionalidade da distribuição dos custos do conflito”. Nada obstante, “sempre que não seja possível graduar as soluções concretas em termos correspondentes, ponto por ponto, às graduações de protecção dos respectivos bens no caso concreto, torna-se necessário estabelecer a preferência de um direito sobre o outro, em termos que poderão mesmo equivaler, na prática, ao sacrifício total do direito preterido”.87 Daí se infere que, na percepção de Vieira de Andrade, a ponderação pode ser empregada pelo legislador, quando se tratar de restringir direitos sujeitos à reserva legal; e pelo juiz, quando se trata de solucionar conflitos concretos entre direitos e bens constitucionais. Dessa forma, o autor engendra uma tese que, em última análise, implica afirmar que os direitos são irrestringíveis no plano abstrato, pelo legislador, mas são restringíveis no plano concreto, pela atuação judicial. Tal construção também apresenta problemas. De fato, é difícil imaginar o conteúdo das leis puramente harmonizadoras a que se refere Vieira de Andrade, as quais devem manter-se dentro das tênues fronteiras que separam o mero estabelecimento de critérios orientadores da ponderação das restrições aos direitos fundamentais.88 É que, no mais das vezes, não se afigura possível harmonizar direitos e bens constitucionalmente protegidos sem estabelecer restrições recíprocas. Idem, ibidem, p. 316. Nas palavras do autor: “Parece-nos, porém, que tem sentido, no que respeita à relação entre a Constituição e o legislador — isto é, num plano geral e abstracto —, distinguir entre as leis restritivas e as leis harmonizadoras, que solucionam problemas de colisão. A diferença, que é relevante justamente para efeitos do grau ou do tipo de vinculação legislativa aos preceitos constitucionais, estará, então, em que a lei restrictiva propriamente dita pressupõe o conflito entre um direito (potencialmente) agressivo e um direito ou valor (potencialmente) vítima, de modo que a restrição implica e visa sempre a diminuição do conteúdo protegido de um direito (muitas vezes da liberdade ou de uma liberdade), em função da necessidade de proteger um outro direito ou um valor comunitário que seria prejudicado pelo exercício não limitado daquele. Por sua vez, as leis que solucionam problemas de colisão têm um objectivo diferente, já que visam estabelecer critérios de harmonização, que limitam ambos os direitos (ou valores), na proporção do respectivo peso normativo nas situações hipotizadas. Por outro lado, enquanto as leis restritivas tendem a formular de forma precisa, em abstracto, as limitações introduzidas aos direitos restringidos, as leis harmonizadoras serão tendencialmente mais abertas, definindo, em regra através de conceitos com um elevado grau de indeterminação, critérios que vão permitir a ponderação dos direitos ou valores conflituantes nos casos concretos”. Idem, ibidem, pp. 224-225. 87 88 De outro lado, não parece adequado afirmar que o legislador não tenha competência para estabelecer normas contemplando restrições que, em concreto, poderiam ser determinadas pelo juiz. Isso porque, desde a perspectiva do caráter vinculativo dos direitos fundamentais, não se concebe como possam os juízes ingressar em seara que estaria vedada ao legislador. E, no quadro da divisão funcional do poder, não há razão alguma que justifique negar ao Parlamento a possibilidade de normatizar uma determinada interpretação da Constituição que pudesse, afinal, vir a ser estabelecida pelo Judiciário. De forma bem diversa, o que se costuma defender é que o Poder Judiciário deve, salvo nos casos de inequívoca inconstitucionalidade, acatar as ponderações efetivadas pelo Parlamento.89 3.4) As críticas postas às teorias interna e externa Cada uma das formulações teóricas abordadas atribui a outra, reciprocamente, inúmeras críticas, o que decorre do fato de se erigirem sobre pressupostos totalmente diversos. Os opositores da teoria externa sustentam que esta, por admitir a possibilidade de a esfera de proteção dos direitos vir a ser limitada por outros direitos ou bens constitucionais, favorece a multiplicação desordenada de conflitos entre os direitos fundamentais. A proliferação de colisões entre os direitos fundamentais acarretaria, segundo essa visão, seu enfraquecimento, porquanto não há critérios objetivos que permitam identificar quando certos direitos devem prevalecer sobre outros. O princípio da ponderação de bens90 — que se encontra intrinsecamente ligado aos conflitos de direitos fundamentais é — também severamente criticado. Afirma-se que esta técnica, ao atribuir ao Judiciário o papel de estabelecer uma solução que envolve, necessariamente, juízos de valor subjetivos, compromete a garantia da segurança jurídica e desqualifica a legitimidade democrática das decisões.91 O que os adeptos da Veja-se, por todos, SARMENTO, Daniel. A ponderação de..., op. cit., p. 115-116. Uma análise mais detalhada dessa ideia é feita nos itens 3.3.3 do capítulo IV e 3.2.3 do capítulo V de PEREIRA, Jane Reis Gonçalves. Interpretação constitucional…, op. cit.. Confira-se, ainda, BARROSO, Luís Roberto. Liberdade de expressão, direito à informação e banimento da publicidade de cigarro. In: Temas de direito constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 243-273. 90 A qualificação da ponderação como princípio, empregada no constitucionalismo germânico, foi trazida para o diálogo jurídico brasileiro por TORRES, Ricardo Lobo. Da ponderação de interesses ao princípio da ponderação. In: ZILLES, Urbano (coord.). Miguel Reale: estudos em homenagem a 90 anos. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2000, p. 643-651. 91 Para OTTO Y PARDO, Ignacio de, que adere à teoria interna: “A ponderação de bens ou é o nome com que se designa o que em realidade é um exame da adequação da medida ao bem, ou serve para resolver o problema prévio de se o bem está ou não constitucionalmente protegido, o que supõe a dupla operação de determinar se o direito goza de reconhecimento constitucional e, em segundo lugar, se sua constitucionalidade se traduz em resistência frente 89 teoria interna pretendem é exatamente eliminar o critério extratextual da interpretação, buscando a solução para o problema dos limites dos direitos diretamente no texto constitucional. Acredita-se que o raciocínio semântico,92 aliado aos métodos sistemático93 e teleológico,94 oferece mais certeza e previsibilidade do que o juízo ponderativo. Outra objeção deduzida contra a teoria externa afirma que esta subverte a composição hierárquica do ordenamento jurídico. Nesse sentido, Friederich Müller considera que o recurso ao método ponderativo acarreta a supervalorização da lei e das normas infraconstitucionais, que são sopesadas diretamente com as normas constitucionais.95 Há, ainda, uma censura de caráter pragmático que é feita à teoria externa: afirma-se que esta, ao adotar uma visão excessivamente ampliativa dos direitos, favorece o surgimento de falsos casos constitucionais, sobrecarregando as já assoberbadas Cortes competentes para analisá-los. ao direito fundamental, em oponibilidade frente a este.” La regulación del exercício..., op. cit., pp. 123-124. 92 MÜLLER, Friedrich averba que: “A teoria geral dos direitos fundamentais pode elaborar de forma satisfatória, partindo da análise dos campos normativos e da dogmática regional aplicada aos direitos fundamentais especiais, os fatores de concretização necessários a sua delimitação e sua combinação com outras normas da ordem jurídica constitucional.” Discours de la méthode juridique. Paris: Presses Universitaires de France, 1996, p. 93. 93 OTTO Y PARDO, Ignacio de, assinala que: “Se se delimita o alcance da proteção que presta o direito fundamental, os problemas tratados como limitação para proteger outros bens constitucionais mostram ser, em verdade, quando se trata verdadeiramente de bens dessa índole, problemas de interpretação sistemática e unitária da Constituição nos quais não é necessária ponderação alguma de bens e valores, nem por conseguinte hierarquização dessa natureza, mas um exame pormenorizado do conteúdo de cada uma das normas. Não cabe dizer, então que o direito ou liberdade devem “ceder” ante outros bens e direitos constitucionalmente protegidos — por exemplo, a liberdade de consciência frente ao dever de contribuir para o sustento dos gastos públicos — porque aquele tenha um maior peso ou um grau inferior, mas que é a própria Constituição que delimitou com uma norma a extensão da proteção jurídica dispensada pelo direito [...] Nada, portanto, de hierarquia de bens e valores, mas exegese dos preceitos constitucionais presentes, determinação de seu objeto próprio e do conteúdo de seu tratamento jurídico. Em definitivo interpretação unitária e sistemática da Constituição”. La regulación del exercício...,op. cit., pp. 143-144. 94 SERNA, Pedro; TOLLER, Fernando, asseveram que “o conteúdo essencial — que propomos como pedra de toque da solução alternativa aos métodos que vimos criticando — não deve estabelecer-se desde um conceito de cada direito puramente semântico ou formal, mas de uma noção teleológica do mesmo, quer dizer, atendendo à finalidade para a qual tenha sido formulado historicamente e a outras que tenham ido agregando-se com o passar do tempo. Tal conteúdo vem dado não tanto pelo que significam as palavras cunhadas para referir-se ao concreto direito de que se trate [...] quanto dos bens humanos de que se pretenda proteger com a liberdade que se trata.” La interpretación constitucional...,op. cit., pp. 51-52. 95 Apud PULIDO, Carlos Bernal. El principio de proporcionalidad y los derechos fundamentales: el principio de proporcionalidad como criterio para determinar el contenido de los derechos fundamentales vinculante para el legislador. Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 2003, p. 444. Ademais, os defensores da teoria interna, usualmente, destacam que a ideia de limitações externas aos direitos fundamentais implica desconsiderar a dimensão finalística destes, entendendo-os como “espaços de arbitrariedade desprovidos de fins”.96 Afirma-se que a noção de conflitos e de limitações aos direitos deflui de uma leitura individualista que concebe as pessoas como seres isolados, sem tomar em conta sua inserção no contexto social e comunitário. A teoria interna é também objeto de críticas contundentes e articuladas. A crítica mais importante ampara-se na experiência. Sustenta-se que o alto grau de abertura semântica das normas de direito fundamental, aliado à complexidade dos problemas concretos que as envolvem, torna evidente a dificuldade de precisar os contornos dos direitos de forma inequívoca, mediante mero recurso à subsunção. De outro lado, sublinha-se que, ainda que se admita que tal operação hermenêutica é factível, desconsiderar o caráter restritivo das normas jurídicas e das decisões judiciais importa, em última análise, em dispensar técnicas que visam a controlar as limitações aos direitos (reserva de lei, proporcionalidade e conteúdo essencial).97 Nessa linha de argumentos, Medina Guerrero, comentando os efeitos nocivos da teoria interna, assevera que: Tudo se confia, em suma, à operação dogmática de interpretar o conteúdo do direito. E é aqui, precisamente, que residem os perigos dessa tese. Pois parte da convicção de que é viável encontrar nos direitos, com o pertinente esforço hermenêutico, alguns limites imanentes dotados de uma dimensão certa e inamovível, quando em verdade o reconhecimento de ditos limites e a apreciação de seu alcance depende da perspectiva subjetiva do intérprete. E, frente a esta decisão subjetiva, a tese em questão não oferece nenhum instrumento de controle: as controvérsias SERNA, Pedro; TOLLER, Fernando. La interpretación constitucional..., op. cit., p. 53. Nesse sentido, também, CANCIARDO, Juan. El conflictivismo en los..., op. cit., que imputa à teoria externa uma visão de liberdades desteleogizadas. 97 GUERRERO, Manuel Medina. La vinculación negativa..., op. cit., p. 60. Sem embargo, como se destacou no tópico precedente, há certos autores que, propugnando a irrestringibilidade dos direitos, aceitam o recurso à ponderação e o manejo do princípio da proporcionalidade. Nesse sentido, HÄBERLE, Peter. La garantia del contenido..., op. cit., passim. Há ainda autores que, a despeito de sustentarem que os direitos são ilimitáveis e de refutarem a ponderação como método, admitem a utilização do princípio da proporcionalidade. Nesse sentido, CIANCIARDO, Juan. El conflictivismo en los..., op. cit. Na mesma linha de princípio, SERNA, Pedro; TOLLER, Fernando, afirmam que “como se trata de obter o modo mais razoável de ajustar os direitos ou bens, não haverá inconveniente em aplicar também os testes de razoabilidade e proporcionalidade, ainda que estes sejam usualmente empregados no balancing test e no segundo nível de análise que leva aparelhada a teoria dos limites externos. Ditos testes podem ser de grande interesse na hora de elucidar qual é o verdadeiro direito no caso”. La interpretación constitucional..., op. cit., p. 143. 96 sobre direitos fundamentais são resolvidas mediante o espontâneo expediente de declarar se a situação questionada forma ou não parte do conteúdo do direito, sem ulterior argumentação. E, como isso, corre-se o risco de que na resolução das controvérsias incorra-se no puro decisionismo, que se apresenta, sem embargo, envolto sob a aparência de subsunção jurídica.98 A principal objeção à teoria interna, portanto, é de que o caráter aparentemente neutro e técnico da operação de delimitação do conteúdo importa em escamotear as considerações de ordem moral subjacentes, inviabilizando o controle das verdadeiras razões da decisão. 3.5) Aprofundamento das diferenças entre as duas teorias A disputa estabelecida entre as teorias interna e externa tem por pano de fundo três controvérsias fundamentais, que dizem respeito: i) à estrutura normativa dos direitos fundamentais; ii) à leitura filosófica e constitucional do princípio da liberdade; iii) ao papel que deve ser atribuído aos tribunais no sistema democrático, refletido nos métodos de interpretação por eles empregados. No que tange à estrutura normativa dos direitos, a percepção das duas teorias é substancialmente distinta. Da análise que se fez das teorias internas e externas, constata-se que uma tendência das primeiras é conceber os direitos fundamentais como regras ou comandos definitivos, enquanto as segundas visualizam os direitos como princípios, entendidos estes como comandos de otimização, que podem ser parcialmente cumpridos ou afastados em certas circunstâncias sem comprometimento de sua validade jurídica. Dessa divergência decorre outro elemento distintivo importante. A teoria externa, ao compreender o conteúdo normativo dos direitos como comandos prima facie, tenderá a definir o âmbito de proteção inicial do direito de modo bastante amplo, inserindo, neste, todo o tipo de posições jurídicas e condutas relacionadas com o comando normativo positivado na Constituição. Esse conteúdo prima facie, fixado com base em critérios bem flexíveis, não poderá, muitas vezes, ser efetivado em toda a sua extensão, porquanto tenderá a entrar em conflito com os âmbitos de proteção prima facie de outros direitos, também fixados de forma dilatada. Daí decorre a possibilidade de restrição dos direitos, determinando-se, mediante um juízo ponderativo orientado pelo princípio da proporcionalidade, o âmbito de proteção definitiva do direito. Já a teoria interna, ao entender que a esfera de proteção definitiva do direito já está, desde o princípio, fixada no texto constitucional, tenderá a empregar critérios mais 98 GUERRERO, Manuel Medina. La vinculación negativa..., op. cit. estritos e rigorosos na fixação de seu conteúdo.99 Como nessa moldura teórica o direito não é restringível, mas já traz consigo suas diversas limitações, a interpretação de sua esfera de proteção constitucionalmente estabelecida será feita de forma mais rigorosa, numa só operação hermenêutica que tenha em conta aspectos semânticos, teleológicos e sistemáticos. Daí resulta que, para a teoria externa, a tutela jurídica do direito é decomposta em duas dimensões: sua esfera de proteção constitucional prima facie e sua esfera de proteção definitiva. Já para a teoria interna, há apenas um conteúdo constitucionalmente protegido, de modo definitivo e previamente estatuído, não havendo que distinguir-se a esfera de proteção inicial, de sua esfera de proteção final. De outro lado, as duas concepções assentam-se em pressupostos políticofilosóficos distintos, sendo o ponto nodal dessa discrepância a compreensão do ‘liberdade’. A teoria interna prestigia a perspectiva comunitária do fenômeno jurídico, entendendo que os direitos fundamentais devem ser entendidos como faculdades conferidas a pessoas socialmente situadas. A teoria externa, diversamente, tem acentuado matiz liberal, na medida em que pressupõe que a liberdade é a regra, entendendo que as exigências postas pela vida em comunidade e pelos direitos das outras pessoas podem, eventualmente, legitimar a imposição de restrições à autonomia individual. Essas duas formas de entender a posição do indivíduo no quadro do Estado Democrático de Direito relacionam-se à leitura que estas teorias fazem da liberdade como valor e como princípio constitucional. A teoria interna tem por lastro filosófico a noção de liberdade positiva, dando ênfase, assim, à dimensão comunitária dos direitos fundamentais. Nessa perspectiva, a liberdade é conferida pelo Direito, que determina a priori quais são as condutas admissíveis e legítimas na esfera social. ALEXY, Robert, distingue, em relação a esse aspecto, a “teoria estreita” do suposto de fato e “teoria ampla” do suposto de fato. Teoria de los derechos..., op. cit., p. 300 et seq. A primeira — que está associada a teoria interna — pretende determinar com precisão as formas de exercício de cada direito fundamental, excluindo de seu “suposto de fato” certas condutas que, por suas características, constituam exceções à esfera de incidência do direito, o que implica ausência de proteção jusfundamental em definitivo. Um exemplo de teoria estreita do suposto de fato é a de Friedrich Muller. Em seu célebre exemplo, pintar num cruzamento movimentado não é uma ação tutelada pela norma que protege a liberdade artística. Já a teoria ampla do suposto de fato, defendida por Robert Alexy, impõe uma interpretação ampla dos enunciados que veiculam direitos fundamentais, de modo que toda ação humana que apresente pelo menos uma propriedade subsumível ao suposto de fato deve ser entendida como uma forma de exercício do direito fundamental, tutelada prima facie. Assim, no caso do pintor no cruzamento, sua ação é tutelada pela liberdade artística porque é uma ação artística, mas é também outra coisa, ou seja, uma perturbação ao trânsito. Essa segunda característica implicará a exclusão dessa ação do âmbito de proteção definitivo do direito, mas não significa que esteja excluída de seu âmbito de proteção prima facie. 99 Essa noção de liberdade foi explicada com maestria por Isaiah Berlin, em sua afamada obra sobre o tema.100 O autor demonstra como paralelamente ao conceito de liberdade negativa, entendida como a ausência de obstáculos externos, veio a ser engendrada a ideia de liberdade positiva,101 que concebe a autonomia das pessoas não como manifestação da individualidade, mas como elemento de um projeto coletivo.102 De acordo com Berlin, a ideia de liberdade positiva liga-se ao desejo do indivíduo de ser seu próprio amo e senhor, tendo suas origens na reivindicação de autonomia individual.103 Contudo, esse conceito foi transfigurado à medida que se passou a entender que a identidade das pessoas é moldada pelos grupos em que estas se inserem, os quais passam a desempenhar o papel de um verdadeiro “eu”. Torna-se justificável, nessa perspectiva, que a comunidade determine certos modos de vida e condutas com o escopo de viabilizar que as pessoas alcancem sua autêntica identidade.104 De fato, desde a perspectiva da noção de que os direitos são irrestringíveis, a liberdade das pessoas não pode ser limitada a posteriori, pois seus contornos já vêm preestabelecidos através dos direitos fundamentais outorgados pela BERLIN, Isaiah. Quatro ensaios sobre a liberdade. Brasília: UNB, 1981. Como esclarece TORRES, Ricardo Lobo, a expressão liberdade positiva é ambígua, sendo empregada pelos filósofos com diversos sentidos. A cidadania multidirecional na era dos direitos. In: Teoria dos direitos fundamentais. Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p. 257. Neste trabalho, a referida locução é tratada com o sentido que lhe confere Isaiah Berlin, qual seja, a liberdade entendida como realização da identidade comunitária. 102 Segundo o autor, a distinção entre as duas modalidades de liberdade pode ser entendida a partir de duas perguntas. Nas palavras do autor: “A resposta à pergunta “Quem me governa?”, do ponto de vista da lógica, é distinta da pergunta “Até que ponto o governo interfere comigo?” É nesta diferença que consiste, no final, o grande contraste entre os conceitos de liberdade positiva e liberdade negativa. Pois o sentido “positivo” de liberdade vem à luz se tentarmos responder não à pergunta “Estou livre para fazer o quê ou para ser o quê?”, mas a “Por quem sou governado?” ou “O que significa dizer o que sou e o que não sou, o que ser ou o que fazer?” A relação entre democracia e liberdade individual é bem mais tênue do que pareceu a muitos defensores de ambas. O desejo de ser governado por mim mesmo ou, pelo menos, de participar do processo através do qual minha vida deve ser controlada, pode ser um desejo tão profundo quanto o de uma área livre para ação, e talvez historicamente mais antigo. Mas não é um desejo relativo à mesma coisa. Na realidade, é tão diferente, que levou, em última instância, ao grande conflito de ideologias que domina nosso mundo. Pois é isto — a concepção “positiva” de liberdade: não liberdade de, mas liberdade para — de levar uma forma de vida prescrita — que os adeptos do conceito de liberdade “negativa” imaginam seja, algumas vezes, nada mais do que um ilusório disfarce para a tirania brutal.” BERLIN, Isaiah. Quatro ensaios..., op. cit., p. 142. 103 O autor observa que a noção de liberdade positiva, em sua origem, está ligada à ideia de que o indivíduo quer ser seu próprio amo e senhor. Essa noção, que inicialmente não parece antagônica à de liberdade negativa, acaba tornando-se a sua antítese: “A liberdade que consiste em ser-se amo e senhor de si mesmo e a liberdade que consiste em não se ser impedido por outros homens de escolher o que quero, pode, se a encararmos de frente, parecer um conjunto de conceitos que não se acham muito separados um do outro...”. Ibidem. 104 Idem, ibidem, p. 143. 100 101 Constituição. Assim, nesse modelo, é a comunidade que — por meio do poder constituinte originário — configura os fins, limites e meios de exercício da liberdade pelas pessoas. Essa noção pode ser identificada na crítica de Häberle à tese de que as liberdades são corrigidas mediante “constrições” para atender exigências ou necessidades externas: Esta interpretação desconhece que o indivíduo e a comunidade possuem um valor intrínseco que se realiza de maneira ótima em sua relação recíproca; ignora que o indivíduo está sempre na comunidade e “no Direito”, que os necessita para seu desenvolvimento e, ao contrário, a comunidade depende de que sua personalidade desenvolva-se livremente.105 Diversamente, a teoria externa parte da premissa de que a liberdade, entendida como poder de autodeterminação, é a regra geral, de modo que todas as prescrições normativas que conformam a conduta das pessoas hão de ser entendidas como restrições externas, que podem ser impostas com o escopo de tutelar certos bens e valores coletivos e os direitos dos outros. Nesse modelo o indivíduo tem, prima facie, um campo de ação amplo e indeterminado, podendo escolher entre inúmeras formas de agir e expressar-se. O Direito pode vir a conformar e restringir esse vasto acervo de opções iniciais, vedando certas condutas ao fito de proteger direitos alheios e bens relevantes para a comunidade. Entretanto, as limitações a serem impostas pelo Estado não podem ir além do estritamente necessário para proteger os valores conflitantes. Essa visão harmoniza-se com o ideal iluminista de liberdade, que concebe os direitos do homem desde a perspectiva ex parte popoli,106 vale dizer, como garantia dos indivíduos em face do poder público. Sem embargo, essa noção de liberdade não se limita a concebê-la como mera garantia de não interferência dos poderes públicos, mas é também compatível com a tutela dos direitos sociais, entendidos como direitos individuais que visam a assegurar certas condições materiais indispensáveis ao exercício efetivo da liberdade de ação. Há, portanto, inegável identidade entre o conceito de liberdade adotado pela teoria externa e os postulados basilares do liberalismo. No entanto, não se trata de um modelo teórico radicalmente individualista e refratário às demandas sociais. No modelo teórico externo, a autonomia das pessoas é tida como valor fundamental, mas não ilimitado, já que pode ser restringida na medida necessária à preservação das liberdades dos outros e de valores HÄBERLE, Peter. La garantia del contenido..., op. cit., p. 57. Sobre a perspectiva ex parte populi como elemento inerente à filosofia iluminista veja-se LAFER, Celso. A reconstrução dos direitos humanos: um diálogo com o pensamento de Hannah Arendt. São Paulo: Cia. das Letras, 1991, p. 125. 105 106 comunitários.107 Ademais, a concepção de liberdade que orienta a teoria externa não desconsidera que seu exercício se dá no âmbito de certas realidades constitucionais concretas, razão por que as limitações podem derivar não só das exigências da vida em sociedade e da necessidade de proteger os direitos dos outros, mas também de certos princípios comunitários positivados na Constituição. Todavia, cabe ter em conta que esse desacordo filosófico não pode ser tratado à margem da ordem constitucional específica em que se trave a discussão sobre o emprego da teoria interna ou externa. Em tese, as Constituições com dimensão solidarística mais acentuada tenderão a incentivar o emprego de técnicas hermenêuticas associadas à teoria interna, enquanto Cartas com coloração liberal acomodarão com maior facilidade a abordagem da teoria externa. Porém, o que normalmente acontece é o estabelecimento de disputa sobre a presença, ou não, de um princípio geral de liberdade na própria Constituição.108 Dessa forma, as lentes filosóficas utilizadas na leitura do texto constitucional são determinantes para adotar, em qualquer sistema jurídico, uma ou outra teoria. Outra discordância subjacente à contenda teoria interna versus teoria externa diz respeito ao papel atribuído aos Tribunais no quadro da separação de Insta destacar que mesmo pensadores ultra-liberais — como John Locke — não concebem a liberdade como algo ilimitado, mas admitem que os imperativos derivados da vida em sociedade venham a limitá-la. No entanto, há na filosofia liberal o entendimento de que os direitos individuais só podem ser restringidos por outros direitos individuais, nunca por valores comunitários. Nesse sentido, RAWLS, John. O liberalismo político. São Paulo: Ática, 2000, p. 348, NINO, Carlos Santiago. Fundamentos de derecho constitucional. Buenos Aires: Astrea, 1992, p. 481 e DWORKIN, Ronald. Taking rights seriously. Cambridge, Massachussets: Harvard University Press, 1978, p. 364 et seq; Rights as trumps. In: WALDRON, Jeremy. Theories of rights. New York: Oxford University Press, 1990, pp. 153167. 108 No Constitucionalismo germânico, o Tribunal Constitucional reconhece a existência de um direito geral de liberdade: BVerfGE (6,32) 1957. Nessa decisão, ficou consignado que: “a) A Lei Fundamental quis significar com o `livre desenvolvimento da personalidade', não só o desenvolvimento no interior de cada área da personalidade, que distingue a natureza do ser humano como pessoa de costumes espirituais, já que não seria compreensível que o desenvolvimento do interior desse âmbito pudesse ir contra os bons costumes, os direitos do outro ou mesmo contra o ordenamento constitucional de uma democracia livre. Precisamente esta restrição imposta ao indivíduo, como membro da sociedade, significa ao contrário que a Lei Fundamental, no art. 2 inc. 1 LF, referiu-se à liberdade de atuar em sentido amplo. A solene formulação do art. 2 inc. 1 LF foi certamente o motivo para analisá-lo à luz do art. 1 LF e daí deriva que este teria por objeto caracterizar a imagem do ser humano contida na Lei Fundamental. Sem embargo, com isso não se está dizendo nada mais do que o art. 1 LF efetivamente pertence ao contemplado princípio da Constituição, que — como todas as disposições da Lei Fundamental — rege o art. 2 inc. 1 da LF. Visto desde o ponto de vista legal, tem o caráter de um direito fundamental, que garante a liberdade geral de ação humana” In: SCHWABE, Jürgen. Cincuenta años de jurisprudencia del tribunal constitucional federal alemán. Traducción de Marcela Anzola Gil. Colombia: Gustavo Ibáñez, 2003, pp. 20-22. 107 poderes. A crítica à ponderação formulada pela maior parte dos defensores da teoria interna está relacionada à preocupação de impedir o decisionismo judicial, mediante o estabelecimento de critérios hermenêuticos que se julga possam tornar mais previsível e seguro o processo interpretativo. As teses críticas da ponderação, normalmente, são coerentes com a noção de separação de poderes que refuta a possibilidade de uma atuação criativa do Judiciário, advogando o minimalismo como forma de neutralizar o déficit democrático atribuído ao judicial review. Já a teoria externa, por estar atrelada à teoria dos princípios, acaba por defender instrumentos hermenêuticos mais permeáveis a considerações morais, aproximando-se de um modelo de justiça constitucional que pressupõe um papel relevante e ativo do Judiciário no quadro da divisão funcional do poder. 3.6) Análise crítica do tema. Razões teóricas e jurídico-positivas em favor da teoria externa O debate em torno da adoção da teoria interna ou da externa refere-se, essencialmente, ao modo de fundamentar as decisões judiciais. Isso porque, na maior parte das vezes, o resultado final a que se chega adotando um ou outro modelo não é diferente.109 Nesse prisma, o que importa é saber qual é a trajetória interpretativa a ser percorrida.110 Cabe então determinar que caminho hermenêutico é preferível para solucionar problemas relativos a direitos fundamentais. E, para efetivar essa escolha, é inevitável recorrer “a princípios externos à Constituição,”111 pois, como adverte Michel Tropper, em se tratando de interpretar a Constituição, Essa ideia é aceita tanto pelos adeptos da teoria externa quanto pelos defensores da teoria interna. Vejam-se, por todos, SERNA, Pedro; TOLLER, Fernando. La interpretación constitucional..., op. cit., p. 18 e SANCHÍS, Luis Prieto. La limitación de los derechos fundamentales y la norma de clausura del sistema de libertades. Derechos y Libertades, n.8, 2000, p. 464. 110 Nesse sentido: OTTO Y PARDO, Ignacio de, assevera que sua crítica às decisões do Tribunal Constitucional “quer questionar nas sentenças selecionadas não a solução dada aos casos, mas o seu fundamento ou argumentação dogmática”. La regulación del exercício...,op. cit., p.147. Do mesmo modo, SERNA, Pedro; TOLLER, Fernando, ao criticarem o emprego da ponderação na sentença da Suprema Corte do Canadá no caso R. v. Keegstra, pontificam que “o tribunal decidiu corretamente, mas seguindo um caminho incorreto.” Ibidem. 111 Expressão usada por SUNSTEIN, Cass. R. The partial constitution. Cambridge: Harvard University Press, 1997, p. 93, que afirma: “Não há interpretação sem princípios interpretativos, e estes não podem ser encontrados na Constituição. Isso não significa que estamos no caos, ou diante de um abismo, ou que o Direito é simplesmente política. Isso significa apenas que princípios externos devem ser identificados e defendidos.” 109 “não existe regra supraconstitucional prescrevendo o emprego de certos métodos”.112 Assim, a opção por determinada forma de fundamentar decisões — ou de explicar os problemas constitucionais — deve necessariamente passar pela análise da adequação dos métodos empregados a certos objetivos políticoconstitucionais que se colima alcançar. Deveras, constitui communis opinio que a objetividade, a controlabilidade, a transparência e a capacidade de persuasão das decisões judiciais são desígnios a serem perseguidos. Partindo dessa premissa, deve-se questionar em que medida cada um dos modelos explicativos da interpretação dos limites dos direitos fundamentais (teoria interna e externa) atende a esses objetivos. É de se indagar, também, qual delas é mais adequada para explicar os problemas envolvendo direitos fundamentais que surjam no quadro da Constituição de 1988, avaliada como ordem constitucional concreta. 3.6.1) A existência de um direito geral de liberdade Uma premissa fundamental na solução do problema da restringibilidade dos direitos fundamentais diz respeito à existência (ou não) de um direito geral de liberdade na Constituição. Trata-se de uma questão cujo deslinde é fortemente condicionado pela orientação filosófica que se adote. Mas, ainda assim, deve ser examinada à luz do ordenamento constitucional positivo, uma vez que as Constituições, inequivocamente, veiculam preferências por determinados valores e ideologias.113 Cuida-se de elucidar, como destaca Sanchís, se os direitos são “categorias autônomas entre si ou especificações de um direito geral de liberdade”.114 Em outros termos, cabe responder se o ordenamento consagra uma cláusula genérica de acordo com a qual “tudo que não está constitucionalmente proibido ou ordenado está permitido” ou, dito com outras palavras, “se tudo que não pode ser proibido, ou comando com cobertura constitucional suficiente, deve considerar-se permitido”.115 O fundamental não é tanto desvendar se os direitos fundamentais têm relação direta com o princípio de liberdade, mas sim “se a liberdade natural ou de fato conta no ordenamento jurídico com um respaldo genérico, ou se, pelo contrário, só goza de reconhecimento na medida em que a TROPPER, Michel. Pour une théorie juridique de l'état. Paris: Presses Universitaires de France, 1994, p. 263. 113 Como assevera SANCHÍS, Luis Prieto, essa questão “não pode resolver-se em abstrato com caráter geral, mas depende das determinações do Direito positivo e, em particular, da filosofia política que está na base desse Direito positivo”. La limitación de los..., op. cit., p. 157. 114 Idem, ibidem. 115 Idem, ibidem. 112 conduta realizada pode ser incluída dentro do âmbito tutelado por um direito subjetivo”.116 O dilema, portanto, diz respeito a saber se os diversos comandos e proibições do ordenamento jurídico “encontram diante de si um direito geral de liberdade ou o simples vazio jurídico”.117 Essa questão é altamente controvertida. Como se destacou antes, o problema de saber se há um direito geral de liberdade é fortemente condicionado pelo próprio conceito filosófico de liberdade do qual se parta. As repercussões hermenêuticas da aceitação, ou não, de um direito geral de liberdade na ordem constitucional são muito abrangentes. Uma vez que se identifique no ordenamento um direito à liberdade geral de agir, estar-se-á, em palavras de Alexy, reconhecendo duas consequências jurídicas: “de um lado, a cada qual está permitido prima facie — quer dizer, desde de que não intervenham restrições — a fazer e omitir o que queira (norma permissiva). Por outro, cada qual tem prima facie, quer dizer, na medida em que não intervenham restrições, um direito, frente ao Estado, a que este não impeça suas ações e omissões, quer dizer, não intervenha nelas (norma de direitos)”.118 Isso implica uma ampla cobertura jurídica a autorizar as diversas ações humanas. E daí decorre, necessariamente, o entendimento das várias formas de conformação legislativa da liberdade como restrições, que deverão, por isso mesmo, estar justificadas constitucionalmente. De fato, um conceito tão dilatado de liberdade jurídica é necessariamente correlativo de um conceito amplo de restrição. Assim sendo, há uma consequência prática muito relevante que advém do reconhecimento de um direito geral de liberdade, que é precisamente “elevar a critério hermenêutico fundamental que toda norma que imponha comandos ou proibições, limitando assim a liberdade natural, há de ser concebida e tratada como uma norma que limita direitos fundamentais”.119 É preciso, antes de tudo, determinar se há fundamento constitucional para invocar o direito geral à liberdade. No sistema jurídico alemão, por exemplo, Robert Alexy sustenta a existência desse direito com fulcro no art. 2.1 da Lei Fundamental, que consagra o direito ao livre desenvolvimento da personalidade.120 Já no ordenamento espanhol, Luis Prieto Sanchís extrai o direito geral de liberdade do art. 16.1 da Constituição, que estabelece o direito à liberdade religiosa e ideológica. Segundo este autor, a liberdade de consciência Idem, ibidem, p. 158. Idem, ibidem. 118 ALEXY, Robert. Teoria de los derechos..., op. cit., p. 333. 119 SANCHÍS, Luis Prieto. La limitación de los..., op. cit., (2000), p. 434. 120 ALEXY, Robert. Teoria de los derechos..., op. cit., p. 331 et seq. 116 117 contida no referido preceito deve necessariamente ter projeção prática, abarcando a liberdade de agir segundo suas preferências e crenças.121 Na Constituição brasileira de 1988, é bastante fácil encontrar lastro para o direito geral de liberdade.122 O art. 5º, caput, é explícito em consagrar o direito à liberdade, ao lado do direito à vida, à igualdade, à segurança e à propriedade. De outro lado, o art. 5º, II, que consagra o princípio da legalidade, determina que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”, veiculando, a contrario sensu, o princípio geral de autonomia. Também o direito à liberdade consciência, positivado no art. 5º, VI, pode ser apontado como fundamento para um direito à liberdade genérica. Todavia, a identificação de preceitos constitucionais que possam constituir-se em fundamento jurídico para o direito geral de liberdade é algo essencial, mas não suficiente para o deslinde do problema. É que, como foi dito antes, reconhecer ou não um direito geral de liberdade na Constituição depende também da forma como as liberdades fundamentais são compreendidas. Caso se pense que a liberdade jurídica é a institucionalização da liberdade natural, toda interferência na liberdade natural será também uma limitação à liberdade jurídica,123 impondo-se, assim, o atendimento às exigências constitucionais para restrições aos direitos fundamentais. Caso, diversamente, pense-se que a liberdade natural não é equivalente à liberdade jurídica – uma vez que esta protege apenas algumas formas de agir –, será forçoso concluir que nem todos os regramentos da conduta humana limitam a liberdade.124 Dessa forma, aqueles condicionamentos situados fora do âmbito de incidência da liberdade jurídica não constituem restrições. O suporte filosófico dessa polêmica são as já referidas abordagens liberal e comunitária do direito de liberdade. Trata-se, em última análise, de saber se a liberdade existe à medida que não seja vedada ou restringida pelos direitos alheios – e, no quadro de Constituições concretas, por valores comunitários positivados –, ou se, diversamente, a liberdade só existe caso seja reconhecida pelo Estado. Os críticos do enfoque que reconhece o direito geral de liberdade costumam objetar que este se mostra excessivamente individualista, porquanto implicaria conferir valor preponderante à liberdade negativa, desprestigiando SANCHÍS, Luis Prieto. La limitación de los..., op. cit., (1990), p. 161 et seq. Sobre o tema, veja-se o excelente estudo de BARROSO, Luís Roberto, que enumera as diversas dimensões da liberdade positivadas na Constituição de 1988. Eficácia e efetividade do direito à liberdade. In: Temas de Direito Constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 75-151 123 Idem, ibidem, p.158. 124 Idem, ibidem. 121 122 outros valores como a solidariedade e a igualdade, bem como desconsiderando os direitos prestacionais.125 Essa crítica seria pertinente se fosse verdadeira a premissa em que se assenta, ou seja, caso o reconhecimento de um direito geral de liberdade implicasse atribuir ao valor liberdade um prestígio superior ao dos outros valores e bens constitucionalmente tutelados. Como destaca Sanchís, tais críticas assentam-se “numa defeituosa compreensão do que significa o direito geral de liberdade”.126 De fato, o reconhecimento de um direito geral de liberdade não significa atribuir primazia à liberdade jurídica, mas apenas determinar que sempre que esta for limitada deve haver uma ponderação a fim de verificar se a tutela de outros bens e valores constitucionais justifica a restrição. Assim, a existência de tal direito não desconsidera os valores subjacentes ao Estado Social de Direito, mas tão-somente acarreta que estes devem ser sopesados com a liberdade individual. Esse imperativo de ponderação implicará que toda ação está permitida, salvo se uma lei formal e materialmente constitucional proibi-la. A necessidade de que as leis restritivas sejam materialmente constitucionais traduz precisamente a necessidade de conciliar a liberdade com outros valores, ou seja, o fundamento material da lei será dado pela necessidade de restringir a liberdade para salvaguardar a eficácia de outros preceitos constitucionais. 127 Também improcede a objeção de que o reconhecimento de um direito geral de liberdade implica desapreço aos direitos sociais prestacionais. Mais uma vez recorrendo aos dizeres de Sanchís, se os direitos prestacionais e as exigências do Estado social “estão maltratados não é precisamente por culpa da liberdade”.128 De mais a mais, como já foi dito, reconhecer o direito geral de liberdade não é o mesmo que atribuir-lhe primazia sobre outros valores constitucionais. Nesse sentido, é também esclarecedora a lição de Alexy: Pode-se sustentar a concepção de um direito geral de liberdade e, sem embargo, conferir maior relevância, em geral, a princípios que apontam a bens coletivos de forma tal que, ao final, a liberdade negativa seja muito reduzida. Isto mostra o alto grau de neutralidade do direito geral de liberdade frente às teorias concretas sobre a relevância relativa dos direitos individuais e os interesses coletivos. Todavia, a neutralidade do direito geral de liberdade conclui em um ponto decisivo. As intervenções na liberdade negativa seguem sendo o que são, quer dizer, intervenMartinez-Pujalte, Antonio-Luis. La garantía del..., op. cit., p. 57 e PECES-BARBA MARTINEZ, Gregorio. Curso de derechos..., op. cit., p. 365. 126 SANCHÍS, Luis Prieto. La limitación de los..., op. cit., p. 466. 127 Idem, ibidem., p. 467. 128 Idem, ibidem. 125 ções em um determinado tipo de liberdade. Isto significa que, enquanto tais, têm que ser justificáveis.129 Assim sendo, a existência de um direito geral de liberdade não torna legítima toda e qualquer ação humana, nem tampouco significa que o Estado não possa promover o bem-estar da comunidade mediante constrições à liberdade. Significa apenas que as restrições à liberdade das pessoas devem ser amparadas em um juízo ponderativo que tenha em conta todos os direitos e valores em jogo, inclusive a liberdade restringida.130 De fato, tanto a liberdade negativa como os outros direitos fundamentais são exigências da dignidade humana, que devem ser considerados conjuntamente nas diversas manifestações do poder estatal. Isso vale também para os casos em que estejam em questão ações e pretensões humanas aparentemente insignificantes, pois não há como admitir que em relação a coisas pequenas o Estado possa restringir a liberdade de forma arbitrária e ilimitada. Por exemplo, há quem tenha afirmado que falar num direito fundamental a alimentar pássaros seria uma abordagem ALEXY, Robert. Teoria de los derechos..., op. cit., p. 366. A propósito, cabe registrar que o influente filósofo, DWORKIN, Ronald, recusa a tese de que há um direito geral de liberdade. Como exemplo para demonstrar os efeitos nocivos de tal direito, o autor menciona uma proposta de emenda à Constituição dos Estados Unidos que visa a garantir aos estudantes o direito de matricular-se em “escola vizinha”, a fim de que deixe de ser necessário recorrer aos ônibus integrados. Segundo o autor, o fundamento dessa proposta é a ideia — aceitável para muitos norte-americanos — de que ser obrigado a viajar em ônibus integrados consubstancia uma violação tão grave da liberdade quanto a segregação escolar representava para a igualdade. Em outra passagem, Dworkin assevera que o direito à liberdade não significa muito, caso seja invocado para coisas banais. Para ele, não há um direito a conduzir-se nos dois sentidos de uma via pública, se ela foi regulada como via de mão única. O governo não precisa de uma justificativa especial, mas apenas de uma justificativa, para determinar o sentido das ruas. Assim, a liberdade, em sua ótica, não resiste a direitos fortes, como o direito de igualdade. O filósofo conclui que “em qualquer sentido forte da palavra direito, que pudesse competir com o direito a igualdade, não existe, de modo algum, um direito geral à liberdade”. Essa visão não se mostra adequada aos sistemas constitucionais democráticos. Com efeito, tal linha de raciocínio induz à absurda conclusão que a liberdade sairia sempre perdendo quando contraposta a outros direitos, de modo que equivale a estabelecer uma regra de preferência abstrata em desfavor da liberdade. Nesse prisma, trata-se de uma concepção incompatível com documentos constitucionais pluralistas, e especialmente com a Constituição americana, a qual ostenta inequívoco matiz liberal. Ademais, o referido exemplo da proposta de emenda é particularmente infeliz. De fato, o que os defensores da emenda pretendem é exigir prestações positivas do Estado para, a pretexto de fazer valer o direito de liberdade, tornar sem efeito prático a cláusula da igualdade. Isso, de forma alguma, demonstra que não deve existir direito de liberdade, mas apenas prova que há quem pretenda atribuir a tal direito caráter absoluto, desvinculando-o de outros valores constitucionais. Taking rights seriously. Cambridge, Massachusetts: Harvard University, 1978, p. 376. 129 130 ridícula e absurda do direito geral de liberdade.131 Curiosamente, anos mais tarde, o Tribunal Constitucional Alemão veio a decidir que o direito de alimentar pombos está prima facie protegido pela Lei Fundamental.132 Nesse sentido, Robert Alexy, explicando a necessidade de reconhecer um direito prima facie mesmo nesses casos, coloca que: Basta pensar o que significaria se não fosse necessária nenhuma razão suficiente para as restrições à liberdade quando elas são insignificantes. Significaria que nesses casos seriam possíveis restrições arbitrárias. Nas coisas pequenas, o indivíduo estaria exposto a chicanas carentes de todo fundamento. Todavia, ser restringido arbitrariamente na liberdade contradiz a dignidade da pessoa, também quando se trata de miudezas, prescindindo do fato de que as opiniões divergem significativamente quando se trata de determinar o que é o pequeno ou o insignificante. Por isso, o princípio da liberdade negativa pode apoiar-se em toda sua amplitude no princípio da dignidade da pessoa humana.133 Assim sendo, a aceitação de um direito geral de liberdade não implica menosprezo algum aos valores sociais, nem tampouco sugere uma “supervalorização acrítica da liberdade individual”, mas “ao contrário, vem a equilibrar a balança que de outro modo ficaria truncada em favor da autoridade”.134 Ademais, trata-se de um direito que pode ser identificado com muita clareza no sistema constitucional brasileiro. Essa forma de entender a liberdade amolda-se perfeitamente ao caráter dialético da Constituição de 1988, uma vez que absorve postulados liberais sem eliminar a consideração de valores comunitários, sendo compatível com as garantias do Estado social. Viabiliza, assim, uma acomodação dos valores liberais individualistas com as conquistas sociais e as exigências do bem comum. É o que sustentaram os autores germânicos Ehmke e Schmmitt, como informa ALEXY, Robert. Teoria de los derechos..., op. cit., p. 347. 132 BVerfGE (54,143). Apud ALEXY, Robert. Teoria de los derechos..., op. cit. Como assinala este autor “Tem razão o Tribunal Constitucional Federal. Certamente, não é plausível considerar a alimentação de pombos algo especialmente digno de proteção. Mas isso não justifica que se considere como algo que não merece proteção alguma. Pode haver pessoas para quem este tipo atividade seja muito importante; mais importante, quem sabe, que as ações religiosas. Sem dúvida, da importância subjetiva não decorre automaticamente a importância desde o ponto-de-vista da Constituição; todavia, a importância subjetiva é relevante para a Constituição na medida em que o respeito que ela impõe de decisões e forma de vida dos indivíduos exige que não se intervenha sem razão suficiente”. 133 Idem, ibidem, p. 347. 134 SANCHÍS, Luis Prieto. La limitación de los..., op. cit., p. 468. 131 3.6.2) As vantagens da teoria externa no campo hermenêutico e argumentativo Na ótica da teoria interna, os direitos irrestringíveis devem ser interpretados numa única operação hermenêutica, que consiste em determinar seu âmbito de proteção definitivo contido no texto constitucional. Nesse modo de ver as coisas, compete ao operador jurídico apontar que condutas estão compreendidas na “delimitação conceitual do conteúdo mesmo do direito,”135 já que cada direito “ampara o que ampara e nada mais”.136 A ideia de que os direitos não são ilimitados, mas vêm já delimitados na Constituição, não podendo ser restringidos, é lógica e absolutamente coerente com as noções de rigidez constitucional e de vinculação do legislador aos direitos fundamentais. Todavia, a indeterminação das normas constitucionais, assim como a complexidade de grande parte dos casos que envolvem direitos fundamentais, desvanecem a aparente inequivocidade da afirmativa de que estes podem ter seu conteúdo determinado de modo preciso por operações hermenêuticas que visem, pura e simplesmente, a identificar seu alcance conceitual. Como assinala Sanchís, a clareza desse aporte “é mais aparente que real”, já que “revela um certo otimismo sobre a possibilidade de ‘recortar’ com suficiente precisão aquilo que representa um ‘limite vedado’ ao legislador e aquele outro que pode ser objeto de sua livre decisão”.137 Nessa ordem de ideias, o enfoque que vislumbra os direitos como grandezas ilimitáveis “oferece uma estratégia simplificadora dos problemas que tradicionalmente vem colocando a limitação dos direitos”.138 Aliás, não é por acaso que grande parte dos autores que perfilham a teoria interna buscam justificar suas teses com exemplos em que a prevalência de um ou outro direito fundamental revela-se bastante óbvia. Dificilmente alguém afirmaria que pintar num cruzamento movimentado, incitar o racismo ou matar um ator no palco são ações legitimadas pelos direitos fundamentais. Entretanto, nem sempre é possível, tal como nesses exemplos, gizar com nitidez o âmbito de proteção definitiva dos direitos. Isso pode ser evidenciado pelo fato de que mesmo algumas hipóteses que partidários da teoria interna apresentam como inequívocas determinações do conteúdo de direitos, não são objeto de consenso. Com efeito, não é absolutamente insuscetível de questionamento a assertiva de que a propaganda comercial não esteja tutelada pela liberdade de OTTO y PARDO, Ignacio de. La regulación del exercício..., op. cit., p. 137. Idem, ibidem, p. 151. 137 SANCHÍS, Luis Prieto. La limitación de los..., op. cit., p. 432. 138 Idem, ibidem, p. 433. 135 136 informação,139 ou que a união entre pessoas do mesmo sexo não esteja tutelada pela garantia do matrimônio.140 OTTO Y PARDO, Ignacio de. La regulación del exercício..., op. cit., p. 142. A propósito do caráter polêmico do tema, veja-se a posição de BARROSO, Luís Roberto, que, em parecer sobre a legitimidade a da proposta de proibição da propaganda comercial de cigarros por meio do rádio, televisão e da imprensa — para permiti-la apenas em pôsteres, painéis e cartazes fixados na parte interna dos locais de venda (art. 3º do Substitutivo ao Projeto de Lei n. 3310/97) — manifestou-se no sentido de que a propaganda constituiu um dos aspectos do direito à informação, pois é o principal meio pelo qual o consumidor toma conhecimento das características de um determinado produto. Na percepção do autor, a garantia de veicular propaganda ao grande público também tem por objetivo preservar outros princípios constitucionais como a livre iniciativa, a livre concorrência e a liberdade de imprensa. Liberdade de expressão, direito à informação e banimento da publicidade de cigarro. In: Temas de Direito Constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, pp. 243 - 273. De outro lado, na Alemanha, um polêmico anúncio da marca de roupas Benetton — no qual se exibiam nádegas nuas estampadas com a frase “HIV Positive” —, ensejou uma controvérsia entre as duas cortes mais importantes do país: a Corte Federal de Justiça (BGH — Bundesgerichtshof) e a Corte Federal Constitucional (BVerfG — Bundesverfassungsgericht). Por duas vezes, a Corte Federal de Justiça entendeu que o anúncio violava a dignidade humana. Entretanto, as duas decisões foram reformadas pela Corte Constitucional. A decisão mais recente, de 11 de março de 2003, sustentou que o Art. 1 da Lei Fundamental não justifica que a imprensa seja proibida de distribuir anúncio que descreva um sofrimento humano, mesmo que a proposta desta descrição seja apenas a de gerar lucros. Nesta decisão, a Corte Constitucional reiterou o entendimento de que a publicidade está inserida no âmbito da liberdade de imprensa protegida pelo art. 5 da Lei Fundamental. Para o Tribunal Constitucional, a Corte Federal de Justiça equivocou-se ao utilizar o propósito do anúncio para estabelecer a violação da dignidade humana. Esta utilização revela uma interpretação errônea do escopo da limitação na liberdade de expressão criada pela proteção a dignidade humana. A Corte Constitucional também rejeitou o fundamento adicional da Corte de Justiça de que a proibição do anúncio estaria protegendo as pessoas contra o ódio. As informações foram colhidas em: SMITH, Craig. More Disagreement Over Human Dignity: Federal Constitutional Court's Most Recent Benetton Advertising Decision. German Law Journal. Public Law. n. 6. 1 de junho de 2003. Disponível em: http://www.germanlawjournal.com/article.php?id=278. Acesso em: 1 de agosto de 2003. Também no direito americano, entende-se que a propaganda (comercial speech), tem proteção da primeira emenda, embora passível de maior limitação do que outras formas de expressão. Veja-se, sobre o tema: NOWAK, John E., ROTUNDA, Ronald D. Constitutional Law. St. Paul: West Group, 2000, p. 1143 et seq. Sobre o assunto, veja-se, também, a nota de rodapé nº 50, do Capítulo IV de PEREIRA, Jane Reis Gonçalves. Interpretação constitucional…, op. cit.. 140 ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os direitos fundamentais..., op. cit., p. 285, por exemplo, questiona se seria possível que alguém invocasse o direito ao casamento para contrair matrimônio com pessoa do mesmo sexo, com o escopo de frisar que em certos casos a esfera de delimitação dos direitos constitucionais pode ser determinada de forma inequívoca e consensual. No entanto, se é certo que a configuração legal do direito ao matrimônio, em diversos ordenamentos, exclui essa possibilidade, é preciso ter em conta que, quando se coloca o problema no plano constitucional, a matéria não é pacífica. Tanto é assim que, nos Estados Unidos, o reconhecimento do casamento homossexual (gay-marriage) em algumas localidades deflagrou o debate sobre a edição de uma emenda constitucional explicitando que o casamento envolve apenas pessoas de sexos opostos. Confira-se, sobre o tema: SILVA, 139 Mas ainda em casos fáceis, nos quais é praticamente certo estabelecer-se acordo no sentido de que certas situações não se inserem no campo de tutela definitiva dos direitos fundamentais, o abandono à ideia de restrição não parece justificável. Tome-se como exemplo a liberdade religiosa. De acordo com Vieira de Andrade, a liberdade de religião não permite efetuar sacrifícios humanos nem justifica a poligamia. Segundo o autor, a proibição de tais condutas não consubstancia restrição à liberdade religiosa, mas é a Constituição que, ao tutelar esse direito, “exclui do respectivo programa normativo a proteção a esse tipo de situação”.141 É estreme de dúvida que tais modalidades de ação não estão tuteladas, em definitivo, pela Constituição. No entanto, não é preciso, por isso, considerar que as leis penais que criminalizam o homicídio e a poligamia não constituem restrições à liberdade religiosa. Tais práticas, efetivamente, são tidas como intoleráveis na cultura ocidental contemporânea. Mas isso não exclui o fato de que muitas religiões já as defenderam como ações admitidas ou mesmo desejadas por Deus. A ausência de lastro jurídico a legitimar essas condutas decorre da necessidade de tutelar outros bens jurídicos, e não de estarem elas excluídas do conceito de religião. Trata-se de ações proibidas, e a proibição decorre da necessidade de proteger o direito à vida, no primeiro caso, e a segurança jurídica e a ordem pública, no segundo caso. Assim, são restrições à liberdade religiosa justificadas pela tutela de outros bens jurídicos. A justificação aqui é tão óbvia que dispensa maiores esforços argumentativos. Contudo, não é porque a justificação é bastante evidente, que “deixa de ser uma justificação”.142 Há de se considerar, ainda, que mesmo em determinados casos nos quais a prevalência de determinada norma é clara — como, v.g, nas hipóteses em que se pretende invocar a liberdade de expressão para apoiar grupos políticos que empregam a violência — a renúncia pura e simples ao raciocínio ponderativo não parece a melhor opção. Nesse sentido, um exemplo haurido da jurisprudência do Tribunal Constitucional Espanhol mostra-se esclarecedor. Uma organização política legítima cedeu espaço de propaganda ao grupo separatista basco (ETA), tendo os responsáveis sido processados penalmente pelo delito de colaboração com grupo armado. O Tribunal entendeu que a cessão de espaços de propaganda eleitoral ao ETA efetivamente configurava o crime de colaboração com grupo armado, e que, não obstante tal conduta consistisse em comunicação de ideias e opiniões, não se tratava de uma forma de exercício lícita do direito de expressão ou da liberdade política. No entanto, o Tribunal entendeu que, por ser o comportamento em questão uma forma de Fernanda Duarte Lopes Lucas da. Uma questão de direito: a homossexualidade e o universo jurídico. Rio de Janeiro, 2003. Tese de Doutorado — Departamento de Direito, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. 141 ANDRADE, José Carlos Vieira de, op. cit.. 142 SANCHÍS, Luis Prieto. La limitación de los..., op. cit., (2000), p. 435. expressar ideias — ainda que ilegal —, poderia ser empregado um juízo de ponderação que sopesasse a gravidade da pena imposta com a gravidade da conduta. Admitiu-se, assim, que se tratava de um direito em conflito com uma limitação penal, sendo possível, portanto, ponderar as razões que jogam a favor do direito com aquelas que militam a favor da restrição.143 Uma objeção usual a essa forma de interpretar os direitos fundamentais é a de que se trata de uma visão excessivamente ampliativa. Diz-se que se trata uma concepção “newtoniana” que atribui aos direitos uma inércia que só pode ser bloqueada pela colisão com outros direitos fundamentais,144 levando a entender todas as questões jurídicas como conflitos normativos jusfundamentais. Ademais, argumenta-se que haveria o risco de uma ampliação excessiva da competência das Cortes Constitucionais. Todavia, entender uma situação como inicialmente protegida pelos direitos fundamentais implica apenas reconhecer a necessidade de justificação das restrições, o que, em última análise, torna o processo hermenêutico mais racional e controlável. Isso não quer dizer, como é evidente, que o âmbito de proteção definitiva do direito venha a ser mais vasto do que o que resulta da interpretação pautada pela teoria interna. Como se disse, na maior parte das vezes, o resultado a que se chega empregando as duas teorias é o mesmo. Ademais, estabelecer uma interpretação ampliativa dos direitos (que é correlata do conceito dilargado de restrição) não significa necessariamente que todos os problemas jurídicos serão transformados em complexos conflitos de direitos fundamentais.145 O que efetivamente ocorre é que, empregando-se a teoria externa, um número maior de casos poderá ser entendido como conflitos de direitos e resolvido por meio do método da ponderação. Porém, como adverte Alexy, o que importa saber é se essa circunstância deve se encarada como algo contraproducente.146 Esse autor afirma, com razão, que tal crítica pode ser afastada por meio da diferenciação entre casos reais e casos potenciais de direitos fundamentais. Um caso é potencial se é possível argumentar com recurso aos direitos fundamentais, mas, todavia, isso se revela dispensável porquanto não há dúvidas quanto à “correção jusfundamental da solução jurídica ordinária”. 147 Já os casos reais são aqueles em que há uma fundada dúvida sobre a proteção jusfundamental da situação em análise, que torna imperativo empregar uma argumentação pautada por um juízo de ponderação que tenha em conta os Apud SANCHÍS, Luis Prieto.La limitación de los derechos fundamentales y la norma de clausura del sistema de libertades. In: Justicia constitucional y derechos fundamentales. Madrid: Trotta, 2003, p. 248. 144 MARMOR, Andrei. On the limits of rights. Law and Philosophy, v. 16, n. 1, 1997, p. 7. 145 ALEXY, Robert. Teoria de los derechos..., op. cit., p. 316. 146 Idem, ibidem. 147 Idem, ibidem. 143 direitos fundamentais. É bem verdade que essa distinção constituiria um argumento a mais em favor da teoria interna se fosse viável determinar com clareza quando estamos diante de um caso real ou potencial de direitos fundamentais. Porém, há uma ampla zona de incerteza que separa os casos cuja solução é absolutamente duvidosa daqueles em que há uma total segurança quanto à decisão correta. Como diz Alexy, há uma escala que envolve os “diferentes graus de certeza/incerteza” e, ademais, “diferentes pessoas atribuem a casos diferentes postos diferentes na escala de certeza/incerteza”. 148 Nesse contexto, o imperativo de efetivar ponderações mantém o seu significado e utilidade. O fato é que os direitos fundamentais não estão tutelados por normas com significado inequívoco, mas contém uma “zona de penumbra”,149 no âmbito da qual não há como determinar de modo apodítico se certas condutas estão ou não compreendidas em sua esfera de proteção, ou, em outros termos, se a exclusão da tutela jurídica dessa conduta representa ou não uma restrição a seu conteúdo. Dessa forma, a eliminação do raciocínio ponderativo nessas situações implica abrir mão de uma argumentação dialética na qual são sopesadas razões que jogam em favor do direito com as que militem a favor de sua restrição. É certo que nas situações em que o peso de determinado bem é inequivocamente maior, a utilidade da ponderação é bastante mitigada. Todavia, nos casos duvidosos, o sopesamento de razões será fundamental para conferir controlabilidade e transparência às fundamentações. Em razão disso, costuma-se atribuir à teoria interna um “déficit de fundamentação”150 no processo interpretativo de direitos fundamentais, afirmando-se que esta dá azo ao emprego de “pseudofundamentações”.151 Os exemplos acima referidos bem demonstram isso. Nos casos difíceis, o emprego da teoria interna pode levar a soluções que simplifiquem questões muito complexas, pois “o que desde o ponto de vista de um participante da prática jurídica pode estar dentro do âmbito normativo do direito, desde a ótica de outro participante pode estar fora”.152 Ademais, os adeptos da teoria interna parecem crer que, apenas por recorrerem à ideia de “delimitação” legislativa, resta preservada a superioridade jurídica e a intangibilidade dos direitos fundamentais. Em relação a isso, como bem destaca Carlos Bernal Pulido: “pelo mero fato de falarse em delimitação, não se suprime o risco de que as intervenções legislativas Idem, ibidem. SANCHÍS, Luis Prieto. La limitación de los..., op. cit., p. 455. 150 ECKHOFF, R. Der grundrechtseingriff. Colonia-Berlín-Munich-Bonn: Carl Heymanns, 1961, p. 18. Apud PULIDO, Carlos Bernal. El principio de proporcionalidad..., op. cit., p. 471. 151 BOROWSKI, Martin. Grundrechte als..., op. cit., p. 47. Apud PULIDO, Carlos Bernal, idem, ibidem, p. 471. 152 PULIDO, Carlos Bernal, idem, ibidem, p. 472. 148 149 possam vulnerar o conteúdo dos direitos fundamentais [...] Chame-se de delimitação ou de restrição, o importante é ter claro que o legislador intervem nos direitos fundamentais e que toda intervenção legislativa deve estar sujeita a controle”.153 Nesse sentido, é descabida a tese de que a noção de que os direitos são restringíveis deve ser abandonada por subverter a ordenação hierárquica do ordenamento. Sendo a Constituição composta por normas dotadas de alto grau de indeterminação, os riscos de abuso na densificação de seu sentido não são menores do que aqueles que advém do emprego da metódica ponderativa. A noção de que é viável discernir com clareza o conteúdo dos direitos fundamentais – distinguindo-se, assim, os casos de delimitação dos de restrição –, assenta-se na crença de que é sempre possível determinar de forma objetiva e precisa os contornos dos direitos fundamentais. Isso acaba implicando uma interpretação “monotônica” que, em última análise, confere uma discricionariedade substancialmente maior ao Judiciário.154 Além disso, as fundamentações assentadas em aspectos puramente conceituais podem obnubilar certas considerações de ordem moral que, no raciocínio ponderativo, emergem com muito mais clareza.155 Dessa forma, a Idem, ibidem, p. 473. Idem, ibidem, p. 475. O autor pondera que: “Enquanto a teoria interna implica uma argumentação monotônica, em que para decisão só conta o que se derive do direito fundamental intervindo, a teoria externa pressupõe uma argumentação não monotônica, na qual, para a sentença não só contam as razões derivadas do direito intervindo, mas todas aquelas que se desprendam de outros direitos e bens relevantes desde a perspectiva do problema jurídico do caso concreto”. 155 Não se está, com isso, negando que as decisões que empregam a ponderação não possam, também, em certos casos, apresentar-se mal fundamentadas. O vício de fundamentação pode surgir independentemente da técnica que venha a ser utilizada. Nesse sentido, por exemplo, SERNA, Pedro, aponta um “déficit de fundamentação” em uma decisão da Suprema Corte Argentina que empregou o raciocínio ponderativo. Derechos fundamentales: el mito de los conflictos. Reflexiones teóricas a partir de un supuesto jurisprudencial sobre intimidad e información. Humana Iura, n.4, 1994, pp. 197-234. O que aqui se defende é que a teoria interna viabiliza decisões mal fundamentadas sem que isso transpareça, na medida em que as considerações de ordem substantiva inerentes à decisão podem restar opacadas pela atividade de conceituação do direito. No caso das ponderações, a ausência ou deficiência de fundamentação, se acontecer, aparecerá com muita clareza, pois a apresentação detalhada das razões que justificam a aplicação de um direito em detrimento de outro é elemento essencial para o emprego do método ponderativo. Como destacou BARROSO, Luís Roberto “Ainda que se possam admitir motivações concisas em muitos casos, certamente isso não é possível quando se trate de decidir adotando a técnica de ponderação. Nessas hipóteses, é absolutamente indispensável que o julgador exponha analítica e expressamente o raciocínio e a argumentação que o conduziram a uma determinada conclusão, permitindo assim que as partes possam controlá-la”. BARROSO, Luís Roberto; BARCELLOS, Ana Paula de. O começo da história: a nova interpretação constitucional e o papel dos princípios no direito brasileiro. In: BARROSO, Luís Roberto (org.). A nova interpretação constitucional: ponderação, direitos fundamentais e relações privadas. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 354. 153 154 ideia de que todos os problemas interpretativos relativos a direitos fundamentais podem ser resolvidos com fundamento exclusivo no texto constitucional, que seria autossuficiente, presta-se, em verdade, a transferir os aspectos subjetivos que subjazem à ponderação para a operação de delimitação de conteúdo, sem os correspondentes critérios de controle da decisão (teste de proporcionalidade). E isso tem uma consequência grave: o elemento extratextual, que é inexpugnável, passa a ser camuflado no processo interpretativo. Desta forma, a pretexto de dotar a interpretação constitucional de objetividade e segurança, a operação proposta pela teoria interna expele da argumentação jurídica – mas não da decisão em si mesma –, o aspecto valorativo. Nesse prisma, o processo de decisão constitucional, a pretexto de tornar-se mais objetivo, perde em controlabilidade e transparência. Há, ainda, um último aspecto que evidencia ser a teoria externa mais profícua e adequada do que a teoria interna. Pelo fato de aquela operar com um raciocínio de duas etapas — que compreendem i) a identificação do âmbito de proteção inicial do direito com base em critérios flexíveis, e ii) a posterior determinação do âmbito de proteção definitivo a partir do sopesamento do direito com as restrições impostas pela necessidade de tutelar outros direitos e bens — são estabelecidas diferentes “cargas de argumentação” conforme o grau de intervenção operado no direito fundamental. Essas cargas de argumentação defluem da combinação dialética do princípio da presunção de constitucionalidade das leis – que é apanágio do princípio democrático –, com a noção de supremacia dos direitos fundamentais. Quanto mais intensa a intervenção legislativa nos direitos fundamentais, maior será o ônus de argumentação imposto ao legislador para justificar a constitucionalidade da lei. É que quanto mais intensa a restrição ao direito, mais fortes hão de ser as razões em favor dos bens e direitos que amparam a restrição (princípio da proporcionalidade). Assim, nos casos de intervenções severas em que não seja possível identificar com segurança motivos que as justifiquem, há de prevalecer o direito, com a declaração de inconstitucionalidade da lei restritiva. Diversamente, nos casos das intervenções leves nos direitos, entra em jogo o princípio da presunção de constitucionalidade, impondo-se, assim, cargas de argumentação menos severas para a imposição de restrições aos direitos.156 Do que foi dito, conclui-se que a teoria externa, além de comportar mais recursos de hermenêutica do que a teoria interna — pois que não exclui a subsunção, mas apenas aponta sua insuficiência para resolver conflitos Este ponto, aqui apenas sinteticamente esboçado, é objeto de análise mais detalhada no capítulo VI de PEREIRA, Jane Reis Gonçalves. Interpretação constitucional…, op. cit, o qual se ocupa da aplicação do princípio da proporcionalidade como limite às restrições a direitos fundamentais. 156 envolvendo direitos fundamentais — implica uma maior vinculação do Judiciário, que fica obrigado a sopesar todos os bens jurídicos em jogo, orientado pela máxima da proporcionalidade. 4. Um debate correlato: A doutrina da imanência A doutrina da imanência busca justificar dogmaticamente o reconhecimento de limites não expressamente previstos no texto da Constituição, tendo sido elaborada com base em duas premissas genericamente aceitas no pensamento jurídico: i) a ideia de que os direitos fundamentais não são absolutos nem podem ser invocados em todas as situações; e, ii) a noção de que os direitos das pessoas devem ser harmonizados entre si. Cuida-se de formulação que surgiu no constitucionalismo germânico para explicar as limitações dos direitos não submetidos à reserva legal, destacando a ideia de que há limites que defluem da sua própria natureza e da necessidade de conciliação destes com outros direitos e valores protegidos constitucionalmente.157 A palavra imanente expressa a qualidade do que é intrínseco, natural e indispensável. Nessa perspectiva, “imanentes seriam todas aquelas Como informa GAVARA DE CARA, Juan Carlos, os limites imanentes, em princípio, não deveriam ser conceituados como equivalentes exatos dos limites internos dos direitos fundamentais. Os limites internos dos direitos “estão expressos formalmente no texto constitucional, não podendo ser considerados nas hipóteses de limitação aos direitos fundamentais em sentido estrito, já que equivalem a posições de não-direito que formariam parte do pressuposto de fato da norma, que estabelece o direito fundamental”. Todavia, logo no limiar da vigência e interpretação da Lei Fundamental, os limites internos — “no sentido de inerentes aos direitos fundamentais” —, vieram a ser identificados com os limites imanentes. “Este fato possibilitava a existência de limites internos aos direitos fundamentais sem que estivessem estabelecidos direta e expressamente pela Constituição. Deste modo permitia-se que a existência de limites internos que também equivaliam a posições de nãodireito, mas que não eram identificáveis a partir dos pressupostos de fato das normas constitucionais que estabeleciam direitos fundamentais”. Essa formulação, como informa o referido autor, é tributária dos aportes de dois juristas da Escola de Kiel: LARENZ, Karl e, principalmente, SIEBERT, Wolfgang. Este último engendrou um conceito de direito subjetivo alternativo à visão clássica que o considera um poder atribuído à vontade. Para o pensamento tradicional, o direito subjetivo e o dever jurídico são duas categorias autônomas e separadas. Siebert, de modo diverso da lição convencional, sustenta que direito e dever devem ser pensados como uma só posição jurídica: o status. O status é uma posição jurídica ativa quando gera direitos, e passiva quando é fonte de deveres. Siebert defendeu, ainda, que o direito guarda relação com a função social que desempenha o indivíduo, a qual determina seus limites de exercício. Nessa linha de princípio, Siebert critica a teoria externa, propugnando que os limites são elementos internos aos direitos, cujo “conteúdo deveria ser determinado a partir do ordenamento concreto”, de modo que “o direito em sentido subjetivo é relativo, seu conteúdo dependerá das circunstâncias do caso concreto, sendo determinado através de uma atividade interpretativa e de decisões judiciais”. GAVARA DE CARA, Juan Carlos. Derechos fundamentales y..., op. cit., pp. 171-172. 157 características que estão vinculadas inseparavelmente com a propriedade específica de um objeto, de tal modo que não supera, não sobressai ou infringe seus limites”.158 Como assinala Gavara de Cara, a ideia de imanência “parte do fato de que cada direito fundamental comporta em si mesmo determinados limites”, de modo que “para exercer direitos fundamentais seria necessária a configuração jurídica das relações sociais que garantem os direitos fundamentais”.159 Como desdobramento dessa proposição, passou-se a distinguir duas modalidades de limites dos direitos fundamentais: os imanentes e os “exmanentes”.160 Estes últimos seriam os limites explicitados no texto constitucional ou nas leis reguladoras, enquanto os limites imanentes são limites não escritos, que dimanam da própria essência dos direitos fundamentais, estando compreendidos em sua estrutura interna. Para além dessa caracterização simplificada, há diversas construções dogmáticas e pretorianas visando a explanar e a justificar os limites imanentes. Passa-se a analisar, a seguir, algumas da mais importantes. A jurisprudência germânica veio a empregar a noção de limites imanentes poucos anos após a entrada em vigor da Lei Fundamental. O Tribunal Superior Administrativo, no limiar da década de cinquenta, engendrou a tese da “cláusula da comunidade”, que se traduzia no pressuposto de que os direitos fundamentais não poderiam ser invocados quando seu exercício colocasse em risco bens jurídicos relevantes para a comunidade. Entendeu-se que tais bens comunitários eram imanentes aos direitos fundamentais, integrando sua estrutura interna.161 Essa visão foi objeto de severas críticas no plano dogmático, destacando-se que a noção de cláusula da comunidade promove uma inversão da ordem constitucional, porquanto acarreta que os interesses individuais sejam tutelados apenas de forma posterior e condicionada à proteção dos interesses comunitários.162 Ademais, salientou-se que a referida cláusula, dada sua abertura e indeterminação, viabiliza o decisionismo e a arbitrariedade, implicando um grave risco para a segurança jurídica.163 Nessa linha de princípio, sustentou-se que a cláusula da comunidade amplia de modo indeterminado as competências do legislador e coloca os direitos fundamentais à mercê dos poderes públicos, tendo em vista que o controle de constitucionalidade deixa de ser parâmetro normativo, ficando dependente apenas da identificação dos Idem, ibidem, p. 273. Idem, ibidem. 160 Idem, ibidem, p. 274. 161 Idem, ibidem. 162 Idem, ibidem. 163 Idem, ibidem. 158 159 supostos interesses comunitários.164 Além disso, conforme destaca Gavara de Cara, o que mais fragiliza a tese da cláusula da comunidade é a carência de base constitucional a ampará-la, pois que na Lei Fundamental não há norma que justifique a utilização desses fundamentos para o fim de limitar os direitos fundamentais.165 Progressivamente, o Tribunal Administrativo foi-se afastando da concepção da cláusula da comunidade como parâmetro de determinação dos limites imanentes. Ainda na década de cinquenta, o Tribunal entendeu que os direitos ostentavam limites imanentes derivados dos direitos de terceiros, da ordem constitucional e da lei moral (que constituem a cláusula restritiva do art. 2, par. 1, da Lei Fundamental).166 Na década de sessenta, uma outra decisão sobre liberdade artística veio a demonstrar que a noção de limites imanentes, nessa etapa, ainda não tinha um perfil claro, pois se entendeu que os direitos fundamentais não sujeitos à reserva legal podiam ser limitados visando à defesa de outros direitos e bens necessários para a comunidade estatal.167 Em 1975, firmou-se no Tribunal Administrativo tese convergente com a adotada pelo Tribunal Constitucional, tendo-se entendido que os direitos fundamentais podiam ser limitados com base na unidade da Constituição e na ordem de valores por ela estabelecida.168 O Tribunal Constitucional alemão também veio a recorrer ao conceito de limites imanentes para explicar as intervenções legislativas à margem de Essas críticas são enumeradas por GAVARA DE Cara, Juan Carlos, ibidem, p. 173. Como informa o autor, um ponto nodal no debate acerca dos limites imanentes na dogmática germânica consiste em determinar se estes podem ser extraídos da Constituição. A tese majoritária afirma que os limites imanentes podem ser associados aos três critérios limitadores enunciados no parágrafo 1º do art. 2 da Lei Fundamental, que dispõe “Todos têm o direito ao livre desenvolvimento da sua personalidade, desde que não violem os direitos de outrem e não atentem contra a ordem constitucional ou a lei moral”. Esta cláusula ficou conhecida como cláusula medida (soweit-klause). A propósito do referido dispositivo, formaram-se duas interpretações: Uma primeira tese — defendida, entre outros, por Friedrich Klein — advoga que tal cláusula limitadora é aplicável a todos os direitos fundamentais, à medida que o art. 2º deve ser entendido como um princípio geral de liberdade, do qual defluem todos os direitos fundamentais. Uma vez que todos os direitos são desdobramentos desse direito geral e básico ao livre desenvolvimento da personalidade, os limites a serem aplicados a todos são os mesmos; a segunda tese — defendida por Günther Dürig — apregoa que os limites enunciados no art. 2 devem ser aplicados aos outros direitos fundamentais indiretamente. Para Dürig, o referido preceito teria dupla função. De um lado, servir como cláusula de abertura para direitos não enumerados e, de outro, ser empregado como regra de interpretação jurídico-objetiva aplicável aos limites imanentes dos direitos fundamentais em geral, nas hipóteses em que seu exercício se revelasse arbitrário. Ibidem, p. 174 et seq. 166 Sentença de 5 de dezembro de 1958 (BVerwGE 7, 358 (361)). Apud GAVARA DE CARA, Juan Carlos, ibidem, p. 173. 167 Sentença de 7 de dezembro de 1966. Apud GAVARA DE CARA, Juan Carlos, ibidem. 168 Sentença de 7 de outubro de 1975 (BVerwGE, 49, 202). Apud GAVARA DE CARA, Juan Carlos, ibidem. 164 165 habilitações constitucionais expressas, mas, desde o início, adotou postulados diversos, refutando a possibilidade de valores não estipulados constitucionalmente limitarem os direitos fundamentais. Nessa matéria, o precedente basilar foi o caso Mephisto.169 No afamado julgamento, o Tribunal entendeu que o direito à liberdade de expressão artística – em relação ao qual a Lei Fundamental não contempla cláusula de reserva –, não poderia ser relativizado com fundamento em parâmetros destituídos de fundamento constitucional.170 Recusou-se, assim, a formulação dos limites imanentes determinados pelos interesses comunitários, que houvera prevalecido no Tribunal Administrativo. Não obstante isso, naquela mesma decisão, restou assentada a premissa de que a ordem constitucional não contempla direitos ilimitados, de modo que mesmo os direitos fundamentais não submetidos à reserva de lei ostentam limites. Em outra sentença, o Tribunal Constitucional reafirmou a orientação: A garantia da liberdade do art. 4.1 da LF deriva, como todos os direitos fundamentais, da imagem (bild) do homem estabelecida na Lei Fundamental; isto é, com homem como responsabilidade auto-responsável que se desenvolve livremente dentro da comunidade social. Esta vinculação do indivíduo, à comunidade, reconhecida pela Lei Fundamental, faz aplicáveis também, aos direitos reconhecidos sem reservas, certas limitações externas.171 Essa visão, contudo, não significava atribuir aos interesses comunitários um valor prevalente em relação aos individuais. O cerne da construção articulada na jurisprudência do Tribunal Constitucional é a noção de que os direitos fundamentais não submetidos à reserva legal somente podem ser limitados para tutelar outros bens e valores de estatura constitucional. Em outros termos, as limitações impostas pelo legislador apenas poderiam ser entendidas como “configuração de uma delimitação estabelecida pela própria Constituição”.172 Nesse sentido, o Tribunal consignou que: Só os direitos fundamentais de terceiros que entrem em colisão e outros valores jurídicos de grau constitucional, tendo em vista a unidade da Constituição e a ordem de valores por ela protegida, Uma descrição mais detalhada do teor dessa decisão pode ser encontrada em PEREIRA, Jane Reis Gonçalves. Interpretação constitucional…, op. cit, Capítulo IV. 170 GAVARA DE Cara, Juan Carlos. Derechos fundamentales y..., op. cit., p. 282. 171 BVerfGE, 32, 98, 108. Apud GUERRERO, Manuel Medina. La vinculación negativa..., op. cit., pp. 48-49. 172 BVerfGE, 44, 37, 49. Apud Guerrero, Manuel Medina, ibidem. 169 são suscetíveis de limitar também, em determinadas relações, os direitos fundamentais reconhecidos como ilimitáveis.173 Nessa perspectiva, a teoria da imanência tal como concebida pelo Tribunal Constitucional pressupõe que, havendo conflito entre direitos e bens constitucionais, deve ser afastado o que possui menor peso, o que há de ser determinado com recurso ao método da ponderação, observando-se o imperativo de proporcionalidade.174 No plano dogmático, algumas teorias sobre os limites imanentes destacam-se por sua singularidade. Peter Häberle, como se viu anteriormente, busca conciliar o método da ponderação de interesses com a noção de que os direitos são irrestringíveis. Dessa forma, o autor concebe os limites imanentes dos direitos fundamentais como limites identificados a partir de um processo de interpretação que tenha em conta a complexidade da Constituição, considerando sua conexão com todos os bens e valores por ela protegidos. Na visão de Häberle, os limites imanentes demarcam o conteúdo essencial dos direitos fundamentais. Dessa junção dos conceitos de conteúdo essencial e limites imanentes deflui a categoria por ele denominada de “limites dos direitos fundamentais conforme à essência”.175 Em última análise, isso implica que “todo o direito fundamental seja conteúdo essencial”,176 de modo que a determinação dos limites imanentes não é realizada a partir de uma perspectiva exterior ao direito, mas sim mediante uma interpretação que tenha em conta a totalidade da Constituição. Por isso, as leis que regulam os direitos fundamentais não têm natureza constitutiva, limitando-se a interpretar o conteúdo do direito estabelecido na Constituição. Assim, o legislador, ao identificar os limites aos direitos, demarca seu próprio conteúdo. BVerfGE, 28, 243, 261. Apud Guerrero, Manuel Medina, ibidem. Como informa BACIGALUPO, Mariano, o TC entende que a fixação de limites imanentes está sujeita à reserva de lei: “Com efeito, após um momento inicial de sua jurisprudência, em que se afirmou que os ‘imites imanentes’ delimitavam o âmbito de proteção do direito fundamental, o Tribunal Constitucional Federal vem já há bastante tempo sustentando que, em qualquer caso, ditos limites estão submetidos à reserva de lei genérica, ainda que sem especificar se isso é assim em virtude de os conceber como uma limitação em sentido estrito ou, ainda, concebendo-os como uma mera delimitação do campo de garantia do direito, em virtude da teoria da essencialidade”. La aplicación de la doctrina de los “límites inmanentes” a los derechos fundamentales sometidos a reserva de limitación legal: a propósito de la sentencia del tribunal administrativo federal alemán de 18 de octubre de 1990. Revista Española de Derecho Constitucional, n.38, 1993, p. 304. 175 HÄBERLE, Peter. La garantía del contenido..., op. cit., p. 51 et seq. 176 CRUZ, Rafael Naranjo de la. Los límites de los..., op. cit., p. 92. 173 174 Outro autor germânico, Hans-Ulrich Gallwas, emprega a noção de abuso de direito na determinação dos limites imanentes dos direitos fundamentais.177-178 O abuso de direito, que se caracteriza pelo exercício de um direito visando à finalidade diversa daquela que orienta sua proteção jurídica, significa que certas ações que aparentemente consistiriam em formas de exercício de direitos não estejam amparadas pelo ordenamento. Gallwas defende que há abuso de direitos fundamentais sempre que estes são exercidos de modo lesivo a certos interesses alheios dignos de proteção.179 Esses interesses alheios podem ser, segundo o autor, i) de outro titular de direitos, ii) da comunidade ou iii) do Estado. É a identificação do que constitui violação desses interesses alheios que permite determinar os limites dos direitos, mediante a qualificação das ações que, por caracterizarem-se como abuso de direito, são destituídas de proteção constitucional. Na doutrina portuguesa, José Carlos Vieira de Andrade apresenta uma lição acerca dos limites imanentes que, por sua especificidade e influência na doutrina brasileira,180 merece ser mencionada. O autor recusa a ideia de que os limites imanentes seriam “limites de não perturbação”, determinados pela coexistência de diversos direitos, sob o argumento de que essa leitura não permite distinguir de forma adequada o fenômeno das colisões dos limites imanentes. Não aceita, tampouco, a possibilidade de aplicar-se a “cláusula de comunidade”, uma vez que a indeterminação e vagueza dessa fórmula não conduz a uma interpretação racional e controlável da Constituição. Vieira de Andrade ilide, ainda, a ideia de que os limites dos direitos fundamentais podem ser traçados pelas “leis gerais” – como defende Häberle –, afirmando que essa tese promove uma inversão da hierarquia das normas e coloca os direitos fundamentais à disposição do legislador.181 Sustenta, nessa perspectiva, que a determinação dos limites imanentes é: Um problema de interpretação dos direitos constitucionais que prevêem cada um dos direitos fundamentais. O que se pergunta em cada caso é se o programa normativo do preceito em causa inclui ou não um certo aspecto ou modo de exercício, isto é, até GALLWAS, Hans-Ulrich. Der Missbrauch von grundrechten. Berlin: Duncker & Humblot, 1967. Apud GAVARA DE CARA, Juan Carlos. Derechos fundamentales y..., op. cit., p. 278 et seq. 178 Uma visão abrangente da temática do abuso de direitos fundamentais pode ser encontrada em VIÑAS, Antoni Rovira. El abuso de los derechos fundamentales. Barcelona: Península, 1983. 179 CRUZ, Rafael Naranjo de la. Los límites de los..., op. cit., p. 88 et seq. 180 SARMENTO, Daniel. A ponderação de..., op. cit., pp. 100-102; BARROS, Suzana de Toledo. O princípio da proporcionalidade e o controle de constitucionalidade das leis restritivas de direitos fundamentais. Brasília: Brasília Jurídica, 1996, p. 166 et seq. 181 ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os direitos fundamentais..., op. cit., pp. 287-286. 177 onde vai o domínio de proteção (a hipótese da norma). Se num caso hipotético ou concreto se põe em causa o conteúdo essencial de outro direito, se se atingem intoleravelmente valores comunitários básicos ou princípios fundamentais da ordem constitucional, deverá resultar para o intérprete a convicção de que a proteção constitucional não quer ir tão longe.182 Assim, na visão de Vieira de Andrade, os limites imanentes são determinados a partir daquelas situações em que inequivocamente não se pode cogitar da aplicação do direito fundamental. Consoante seu raciocínio, nesses casos o problema das colisões não deve considerado. Pode-se inferir portanto, que, para o autor, os limites imanentes são o mesmo que o âmbito máximo de proteção do direito. A partir da análise das concepções aqui inventariadas, é possível constatar que o conceito de limites imanentes, de um modo geral, é condicionado pela visão que se adote sobre o problema da restringibilidade dos direitos fundamentais. De fato, a imprecisão conceitual que cerca os limites imanentes nada mais é do que um reflexo da discussão teórica, de fundo, relativa à possibilidade lógica de restringir os direitos fundamentais sem reserva legal. Assim, não é por acaso que um dos problemas capitais que se coloca em relação aos limites imanentes é precisamente o de saber se são autênticos limites ou se, diversamente, traduzem apenas as fronteiras do direito. Esta questão nada mais é do que a transposição da contenda teoria externa/interna para o plano mais específico do esforço explicativo dos limites imanentes. Para os que defendem a impossibilidade lógica de se restringirem direitos fundamentais não sujeitos a reserva legal, a tendência será afirmar que os limites imanentes são limites internos, que se confundem, em última análise, com a esfera de proteção do direito que pode ser extraída da Constituição. É certo que os mecanismos explicativos do exercício hermenêutico que conduz à fixação dessas fronteiras não são objeto de consenso, mas há certa convergência entre os adeptos da teoria interna no sentido de identificar os O autor fala em limites imanentes implícitos dos direitos, que existem “...sempre que (e apenas quando) se possa afirmar, com segurança e em termos absolutos, que não é pensável em caso algum que a Constituição, ao proteger especificamente um certo bem através da concessão e garantia de um direito, possa estar a dar cobertura a determinadas situações ou formas do seu exercício; sempre que, pelo contrário, deva concluir-se que a Constituição as exclui sem condições nem reservas”. ANDRADE, José Carlos Vieira de, idem, ibidem, p. 286. E em limites imanentes expressos, para referir aos limites previstos expressamente no texto constitucional, “...como acontece, por exemplo, no caso do dever de pagar impostos em relação ao direito de propriedade”. Idem, ibidem, p. 284. É interessante observar que a expressão “limites imanentes expressos” vai de encontro à tendência da doutrina majoritária, que concebe os limites imanentes como limites não escritos. 182 limites imanentes como marcos que balizam o conteúdo do direito desde seu interior. Para aqueles que, diversamente, se posicionam no sentido de serem os direitos restringíveis, os limites imanentes são entendidos como limites externos, estranhos ao conteúdo do direito. Essa é, por exemplo, a visão de Medina Guerrero, que sustenta que os limites imanentes “se concebem como um elemento alheio, estranho ao conteúdo do direito, com o qual deve ser confrontado e sopesado”, de modo que não podem ser considerados “elementos integrantes do conteúdo do direito”.183 Essa também é a visão de Canotilho, para quem “limites imanentes são o resultado de uma ponderação de princípios constitucionais conducente ao afastamento definitivo, num caso concreto, de uma dimensão que, prima facie, cabia no âmbito prospectivo do direito, liberdade e garantia”.184 De acordo com esse raciocínio, os limites imanentes seriam determinados após o processo de ponderação, quando se identifica a esfera de proteção definitiva do direito. Todavia, cabe sublinhar que certos autores representativos da teoria externa, como Alexy e Borowski,185 não chegam nem mesmo a abordar o problema dos limites imanentes. Isso pode ser explicado, em parte, pelo fato de que a ideia de limites imanentes como resultado de restrições, ou como resultado da ponderação, soa um pouco contraditória. É que, se os limites imanentes são intrínsecos ou inerentes, entreabrem-se duas alternativas para explicar tal conceito de forma coerente: i) ou se adota a teoria interna, entendendo-se que tais limites estão preestabelecidos na Constituição, e então são mesmo intrínsecos e inerentes, ii) ou se entende que os direitos são restringíveis, estando sujeitos a ponderações e limitações, e, então, os limites que resultam das restrições já não podem ser chamados de imanentes, precisamente porque são apurados a posteriori. É lícito supor que essa é a razão por que – analisando a doutrina –, identifica-se uma maior inclinação dos adeptos da teoria interna em manejar tal conceito. De fato, a ideia de limites intrínsecos ou naturais encontra-se no cerne da concepção que recusa a restringibilidade dos direitos não submetidos à reserva legal. É que, como destaca Naranjo de la Cruz, o recurso à teoria da GUERRERO, Manuel Medina. La vinculación negativa..., op. cit., p. 53. “O legislador, como reconhece expressamente o TCF, ao harmonizar os direitos e bens jurídicos que colidem, dispõe de uma apreciável margem de manobra, sempre que sua decisão não resulte desproporcionada.” [...] “Pois, certamente, a técnica da ponderação pressupõe, de um lado, uma determinada posição jurídica que se encontra já, prima facie, no conteúdo do direito objeto da limitação...”. 184 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e..., op. cit., p. 1148. 185 ALEXY, Robert. Teoria de los derechos..., op. cit., p. 267 et seq.; BOROWSKI, Martin. La estrutura de los..., op. cit., p. 65 et seq. Também PULIDO, Carlos Bernal. El principio de proporcionalidad..., op. cit., p. 458 et seq., em densa obra que analisa o princípio da proporcionalidade. 183 imanência “conduz a que a diferença entre âmbito de delimitação do direito fundamental e de seus limites desvaneça-se notavelmente, fundindo-se numa única categoria: a dos limites imanentes”.186 Se há algum consenso nas diversas abordagens doutrinárias, é o de que os limites imanentes correspondem aos contornos da esfera de proteção definitiva do direito. O que se discute é como identificar essa esfera definitiva, pois, no modelo teórico interno, esta já é preestabelecida no texto constitucional e, no externo, será o resultado da ponderação. Sem embargo, é lícito entender que, desde a perspectiva da teoria externa, não há como lidar com a ideia de limites imanentes como a esfera de proteção definitiva que resulta da ponderação de modo coerente. Como foi dito, é ilógico afirmar que os limites intrínsecos do direito são determinados “desde o exterior”. Se são limites externos, não podem ser imanentes, pois são resultado da interação dialética entre o direito e outros valores constitucionais em circunstâncias determinadas, e não de algo que já é inerente ao direito desde o princípio. De fato, a expressão limites imanentes externos enuncia uma contradição em termos. A única forma de compatibilizar a noção de limites imanentes com a teoria externa é recusando a ideia de que estes limites correspondem à esfera de proteção definitiva do direito.187 De modo diverso, cabe entender os limites imanentes como o conteúdo inicial de proteção do direito, como seus limites máximos, ou seja, como a esfera de proteção prima facie do direito, tal como identificada antes das restrições. Empregando-se o conceito com esse sentido, poder-se-ia afirmar que os limites imanentes do direito à intimidade não compreendem o sigilo de movimentações bancárias de verbas públicas em contas de entes públicos.188 Da CRUZ, Rafael Naranjo de la. Los límites de los..., op. cit., p. 86. Outra alternativa é — como fazem ALEXY, Robert. Teoria de los derechos..., op. cit., e BOROWSKI, Martin. La estructura de los..., op. cit., — não recorrer a essa categoria dogmática. 188 Essa foi a orientação adotada pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento do Mandado de Segurança n. 21.729-4/DF, impetrado pelo Banco do Brasil contra ato do órgão do Ministério Público Federal, que, diante de notícia publicada pelo jornal “Folha de São Paulo”, exigiu informações sobre empréstimos concedidos a empresas no setor sucroalcooleiro. Após um longo julgamento em sessão Plenária, o Tribunal indeferiu o pleito, entendendo que o Banco do Brasil não poderia negar ao Ministério Público Federal informações sobre os beneficiários dos empréstimos concedidos pela instituição, com recursos subsidiados pelo Governo Federal, sob invocação do sigilo bancário. Essa linha de argumentação foi desenvolvida no voto do Min. Octávio Gallotti: “No caso, Sr. Presidente, o Banco do Brasil não está simplesmente atuando como banco comercial. Verifica-se, do parecer, que as operações, que se pretende investigar, residem no empréstimo a empresas do setor sucroalcooleiro de cerca de um bilhão e cem milhões de dólares americanos bancados pelo Governo Federal ou seja, entrega subsidiada pelos cofres públicos”. [...]”Penso, Sr. Presidente, que essa é uma operação na qual o Banco do Brasil não age como banco comercial. Não se pretende devassar 186 187 mesma forma, os limites imanentes da inviolabilidade domiciliar não compreendem o ingresso de fiscais em estabelecimentos empresariais abertos ao público, que não podem ser entendidos como domicílio.189 É certo que os limites imanentes, assim entendidos, perdem parte de sua utilidade metodológica como categoria dogmática autônoma, que é justificar o estabelecimento pelo legislador de limitações aos direitos não sujeitos à reserva legal, com o escopo de proteger outros bens e direitos. Essa, contudo, é a leitura que mais se harmoniza com a concepção dos direitos fundamentais como direitos restringíveis, defendida nesse estudo. 5. Conceito de restrição 5.1) Aspectos gerais quanto ao conceito de restrição conta de particulares, mantida em depósito no Banco do Brasil. Está, ele, neste caso desempenhando a função de agente delegado do Governo Federal, e, por isso, não se acha em causa, propriamente, a quebra de um sigilo. Deste se acha imune por sua natureza, a operação realizada em dinheiros públicos, cujo dispêndio, ao revés, está sujeito, pelo art. 37 da Constituição, para não dizer o princípio da moralidade, pelo menos, em dúvida alguma, ao princípio da publicidade”. No mesmo sentido, o voto do Min. Néri da Silveira: “Em primeiro lugar, se se trata de operação em que há dinheiro público, a publicidade deve ser nota característica dessa operação. Não há razão, portanto, para o Banco não dizer quem são os beneficiados por esses empréstimos. Se o Governo Federal está atuando, por intermédio do Banco do Brasil na execução de um plano de amparo a um setor de produção, compreendo que, acerca dessas operações do Banco, com recursos do Tesouro Nacional, não pode lograr procedência a negativa de informações, com a invocação do sigilo bancário”. [...] “Com efeito, o sigilo bancário não pode englobar esse tipo de informação, em se cuidando de aplicação de recursos públicos. Pretender o Ministério Público Federal saber se já houve contratos, quem são os contratantes, a data de sua celebração, a edição do Diário Oficial em que estão publicados esses contratos, tudo isso não há de ficar, sob o manto do sigilo bancário, se se cogita de transações subsidiadas com recursos do erário”. (Supremo Tribunal Federal. Mandado de Segurança n. 21.729-4/DF. Tribunal Pleno. Data do julgamento: 05 de outubro de 1995. Diário de Justiça: 19.10.2001. Relator: Min. Marco Aurélio. Relator para o acórdão: Min. Néri da Silveira). 189 Na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal a garantia da inviolabilidade domiciliar compreende tão-somente os estabelecimentos empresariais que constituam ambientes fechados ou de acesso restrito ao público. A contrario sensu, não podem ser entendidos como domicílio os espaços que não são ocupados com exclusividade. Este posicionamento está explícito no julgamento das preliminares da Ação Penal n. 307-DF, relativa a inadmissibilidade como prova de registros contidos na memória de microcomputador obtido em busca realizada em escritório profissional, sem mandado judicial. Segundo relator, Min. Ilmar Galvão: “[...] não há como negar que o ato promovido pelo Fisco resultou em restrição à garantia da inviolabilidade do domicílio que, numa extensão conceitual mais larga, abrange até mesmo o local onde se exerce a profissão ou a atividade, desde que constitua um ambiente fechado ou de acesso restrito ao público [...] como é o caso típico dos escritórios profissionais” (p. 40 — sem grifos no original). Supremo Tribunal Federal. Ação Penal 307 — Distrito Federal. Órgão julgador: Tribunal Pleno. Relator: Min. Ilmar Galvão. Julgamento: 13.12.1994. Publicação: 13.10.1995. Revista Trimestral de Jurisprudência. n. 162. vol. 1. Analisada a questão relativa à possibilidade lógica de restrições aos direitos fundamentais, cumpre aprofundar tal conceito, abordando as diversas formas pelas quais estas se apresentam na ordem constitucional. Cabe, também, clarificar as relações e diferenças entre o conceito de restrição e certas categorias análogas, agora à luz das premissas teóricas firmadas no tópico anterior. As restrições de direitos fundamentais são normas que estabelecem privações ou supressões de certas formas de exercício dos direitos que, partindo-se de uma interpretação ampliativa, estariam compreendidas no âmbito de proteção dos preceitos constitucionais que os consagram. Ao afirmar-se que as restrições são normas, cabe consignar que, como destaca Robert Alexy, “uma norma pode ser uma restrição de direito fundamental só se é constitucional”. Dessa forma, as restrições – para serem entendidas como tais – hão de mostrar-se constitucionalmente legítimas.190 Ainda segundo Alexy, é imperioso distinguir as normas legais que estabelecem as restrições – dirigidas aos cidadãos –, das normas que conferem competência ao legislador para estatuir restrições aos direitos fundamentais: “Através delas, o legislador fica autorizado a impor restrições a direitos fundamentais. À competência do legislador corresponde a sujeição do titular de direito fundamental”.191 Nessa perspectiva, as reservas legais apostas a certos direitos fundamentais não são restrições, mas apenas estabelecem e fundamentam “a possibilidade jurídica de restrições”, que afinal serão estabelecidas pelos “sujeitos constitucionais”192 competentes. Embora seja certo que, a partir da perspectiva do titular do direito, as reservas legais “têm algo de restringente”, essa natureza restringente é apenas “potencial e mediata”.193 A restrição poderá ser versada em lei geral ou ser produto da interpretação jurídica levada a efeito pelo Judiciário. Ou seja, ela pode surgir não apenas em abstrato, no ato legislativo, mas pode também aparecer no momento aplicativo.194 No plano hermenêutico, a restrição será toda interpretação e aplicação do direito “que conduza a uma exclusão da proteção jusfundamental”.195 Ainda em palavras de ALEXY, Robert. “Se não é (constitucional), sua imposição pode, por certo, ter o caráter de uma intervenção, mas não de uma restrição”. Teoria de los derechos..., op. cit., p. 272. 191 ALEXY, Robert. Teoria de los derechos..., ibidem, p. 273. 192 A expressão é de CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e..., op. cit., p. 767. 193 ALEXY, Robert. Teoria de los derechos..., op. cit., p. 292. 194 PECES-BARBA MARTINEZ, Gregorio. Curso de derechos..., op. cit., p. 590; BACIGALUPO, Mariano. La aplicación de la doctrina..., op. cit., p.300. 195 ALEXY, Robert. Teoria de los derechos..., op. cit., p. 292. No mesmo sentido, QUEIROZ, Cristina. Direitos fundamentais, op. cit., p. 199. 190 Vê-se, assim, que o conceito de restrição liga-se à dimensão negativa da norma de direito fundamental.196 O aspecto positivo do direito corresponde a seu “âmbito de proteção”, que há de ser identificado mediante interpretação extensiva. O âmbito de proteção compreende a parcela da realidade correlativa aos bens tutelados pelos direitos fundamentais, ou, em outras palavras, é o conjunto condutas, estados de coisas197 e posições jurídicas que, por serem necessárias para tutela dos bens jurídicos inerentes aos direitos fundamentais, hão de ser cobertas pelos efeitos da norma jurídica que o consagra.198 5.2) Restrição e configuração; É usual em doutrina traçar diferenças entre a restrição e a configuração199 dos direitos fundamentais. Com referência a tais conceitos, busca-se estremar a atividade de mera regulamentação — ou concretização — dos direitos (não restritiva) da sua autêntica limitação. Esta última teria efeito constritivo e supressivo das faculdades e posições jurídicas abrangidas pelos direitos fundamentais, enquanto aquela teria por escopo apenas desenvolvê-los e densificá-los.200 Essa distinção encontra-se estreitamente ligada à ideia, já referida, de que o legislador está duplamente vinculado aos direitos fundamentais: de um lado deve respeitá-los, abstendo-se de promover constrições indevidas; de outro, deve promovê-los, reforçando sua proteção. Nesse prisma, “lei e direitos fundamentais são mutuamente vinculantes e vinculados”.201 De fato, é possível constatar que a Constituição, certas vezes, é clara no sentido da possibilidade de a lei restringir os direitos e, em outras, contempla a intervenção legislativa primordialmente como um instrumento para desenvolver e configurar os direitos. Alguns exemplos são úteis para ilustrar essa distinção. A Constituição de 1988 prevê de forma expressa a possibilidade de a lei restringir a inviolabilidade do sigilo telefônico (art. 5º, XII), bem como de limitar a liberdade de profissão mediante o estabelecimento de requisitos de qualificação (art. 5º, XIII). Essas são hipóteses em que a mera disciplina legal do direito tem caráter preponderantemente restritivo. De outro lado, há preceitos em que a previsão de intervenção legislativa no âmbito temático dos direitos fundamentais parece estar mais ligada ao ALEXY, Robert. Teoria de los derechos..., op. cit., p. 292. Sobre o conceito de estados de coisas (state of affairs) veja-se: ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. São Paulo: Malheiros, 2003. 198 BOROWSKI, Martin. La estrutura de los..., op. cit., p. 121. 199 Diversas ordens constitucionais contêm preceitos que explicitamente falam em configuração e restrição. 200 Veja-se, por todos, RAWLS, John. O liberalismo político. São Paulo: Ática, 2000, p. 349. 201 GUERRERO, Manuel Medina. La vinculación negativa..., op. cit., p. 24. 196 197 propósito de viabilizar sua tutela efetiva do que de autorizar restrições. É o caso, verbi gratia, do art. 5º, XXVI da Lei Maior, que estatui que “a pequena propriedade rural, assim definida em lei, desde que trabalhada pela família, não será objeto de penhora para pagamentos de débitos decorrentes de sua atividade produtiva, dispondo a lei sobre os meios de financiar o seu desenvolvimento”, bem como do art. 5º, inciso XXXII, que prevê que “o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor”. Em tais casos, de forma diversa dos antes mencionados, a existência de lei reguladora não tem o escopo de comprimir os direitos. Ao contrário, a ação legislativa assume a condição de pressuposto fundamental para uma proteção adequada e eficaz do direito. São também exemplos arquetípicos de normas que conferem ao Legislativo competência de configuração aquelas que veiculam garantias institucionais.202 Assim é que garantias fundamentais como a propriedade, o direito de herança, o matrimônio etc. têm seus perfis delineados por normas de direito civil.203 Nesse sentido, a doutrina alemã, ao tratar dessas hipóteses, refere-se a direitos com âmbito de proteção estrita ou marcadamente normativo.204 Tais direitos são precisamente aqueles cujos mecanismos de proteção são traçados pelo legislador ordinário, uma vez que a abertura e a indeterminação das normas constitucionais — bem como a própria natureza do direito — não permitem haurir exclusivamente da Constituição seu conteúdo normativo. Como explica Gilmar Ferreira Mendes: A vida, a possibilidade de ir e vir, a manifestação de opinião e a possibilidade de reunião preexistem a qualquer disciplina jurídica. Ao contrário, é a ordem jurídica que converte o simples Ter em propriedade, institui o direito de herança e transforma a coabitação entre homem e mulher em casamento. Tal como referido, a proteção constitucional do direito de propriedade e do direito de herança não teria, assim, qualquer sentido sem as normas legais relativas ao direito de propriedade e ao direito de sucessão. Como essa categoria de direito fundamental confia ao legislador, primordialmente, o mister de definir, em essência, o próprio conteúdo do direito regulado, fala-se, nesses casos, de regulação ou de conformação (Regelung oder Ausgestaltung) em Sobre o conceito de garantias institucionais, veja-se a nota nº 43 do Capítulo II de PEREIRA, Jane Reis Gonçalves. Interpretação constitucional…., op. cit.. 203 Exemplos de normas de competência configuradoras são que enunciam instituições de Direito Civil. De fato, garantias jusfundamentais tais como o matrimônio, a propriedade e o direito sucessório pressupõem normas de direito civil. ALEXY, Robert. Teoria de los derechos..., op. cit., p. 325. 204 Como informa MENDES, Gilmar Ferreira. Âmbito de proteção..., op. cit., p. 215. 202 lugar de restrição (Beschrankung). É que as normas legais relativas a esses institutos não se destinam, precipuamente, a estabelecer restrições. Elas cumprem antes relevante e indispensável função como normas de concretização ou de conformação desses direitos.205 Também se fala em configuração ou conformação legislativa para referir, de um modo geral, ao tema dos direitos submetidos à reserva legal, que são aqueles cuja disciplina a Constituição remete à lei. Na dogmática hispânica, emprega-se a expressão direitos de configuração legal206 para designar os direitos que, “dotados — como fundamentais — de um conteúdo constitucional indisponível, exercem-se nas condições fixadas discricionariamente — mas com respeito àquele conteúdo pelo legislador [...]”.207 De qualquer modo, é certo que a competência para conformar os direitos fundamentais não confere ao legislador total liberdade para determinar seu conteúdo, tendo em vista o caráter supremo e vinculante das normas constitucionais. Por isso mesmo, tais direitos e garantias são os arquétipos da dupla vinculação do legislador ordinário, a quem cabe, de um lado, o “dever de preservar” o direito regulado e, de outro, “um dever de legislar, isto é, um dever de conferir conteúdo e efetividade”208 a este. Fixadas essas premissas, questiona-se até que ponto as leis configuradoras podem, também, ser restritivas dos direitos fundamentais. Como se viu, o estabelecimento da distinção conceitual entre restrição e configuração legislativa decorre da ideia de que nem todas as normas que disciplinam o exercício de direitos fundamentais ostentam natureza restritiva. Contudo, interroga-se se é possível inferir daí que a configuração de direitos seja sempre algo diverso de sua restrição, isto é, se é cabível separar as leis configuradoras das leis restritivas. Esse ponto é relevante uma vez que no quadro da teoria externa as restrições a direitos fundamentais só são válidas se atenderem aos imperativos de proporcionalidade e respeito ao núcleo essencial. Já em relação às configurações, a necessidade de justificação da intervenção legislativa emerge à medida Idem, ibidem. Confira-se, por todos, PAGÉS, J. L. Requejo. Derechos de configuración legal. In: REYES, Manuel Aragón (coord.). Temas básicos de derecho constitucional: Tomo III — Tribunal constitucional y derechos fundamentales. Madrid: Civitas, 2001, p. 136. 207 Idem, ibidem, p. 135. “Entre os direitos fundamentais de configuração legal estabelecidos na Constituição figuram, por exemplo, o direito de acesso às funções e cargos públicos (art. 23.2 CE; STC 185/1999, de 11 de outubro), o direito à tutela judicial efetiva (art. 24.1 CE; STC 24/1990, de 15 de fevereiro) ou o direito à objeção de consciência (art. 30.2 CE).” 208 MENDES, Gilmar Ferreira. Âmbito de proteção..., op. cit., pp. 211-222 205 206 que se entenda que há hipóteses nas quais estas implicam, além de uma configuração, uma restrição ao direito fundamental.209 Entender ou não que a configuração de direitos é algo sempre diverso da restrição depende do conceito de configuração que se adote. Como salienta Martin Borowski,210 há duas formas de interpretar o conceito de configuração: i) de um lado, pode-se entender que o objeto da configuração é o próprio direito fundamental, ou seja, que o perfil do direito fundamental é determinado pela ação legislativa; ii) numa outra perspectiva, pode-se pensar que o objeto da configuração não é o direito fundamental em si, mas o direito de índole legal, o qual se insere no âmbito temático do direito fundamental.211 Ao partir-se da primeira ideia — de que a configuração determina o próprio conteúdo do direito fundamental —, descortinam-se duas possibilidades: i) ou se entende que o legislador, ao configurar o direito, não está vinculado ao seu conteúdo constitucional, tendo total liberdade para configurá-lo; ii) ou se entende que o legislador, ao configurar o direito fundamental, está vinculado à Constituição, por meio do dever de respeito ao postulado da proporcionalidade.212 A primeira tese não é compatível com a ideia de Constituição rígida e de vinculação do legislador aos direitos fundamentais, uma vez que permite que, pela ação legislativa, opere-se o total esvaziamento dos direitos.213 Quanto à segunda tese — de que o legislador configura os direitos, mas está vinculado à Constituição pelo princípio da proporcionalidade — incorre em uma evidente incongruência: “só se pode configurar o que se pode modificar. Só se pode modificar objetos aos quais não se está vinculado”.214-215 A segunda forma de interpretar as configurações concebe que estas têm por objeto não o próprio direito fundamental, “mas o direito infraconstitucional, particularmente o direito legal, estabelecido no âmbito temático do direito fundamental correspondente”.216 Nesse caso, também não há como entender, no quadro de uma Constituição rígida, que o legislador vá atuar BOROWSKI, Martin. La estructura de los..., op. cit., p. 94. Idem, ibidem, p. 87. 211 Idem, ibidem, pp. 86-87. 212 Idem, ibidem, pp. 87-91. 213 Idem, ibidem, p. 89. 214 Idem, ibidem, p. 91. 215 Incoerência dessa espécie pode ser identificada na tese de MARTINEZ-PUJALTE, AntonioLuis. La garantía del..., op. cit., p. 80, que afirma: “...a configuração legislativa do direito fundamental comporta a fixação de seus limites; que, desde a posição que se vem sustentando nestas páginas, só podem ser limites internos, derivados do próprio conteúdo do direito. Agora bem, convém matizar que tratá-los como limites internos não significa necessariamente afirmar que sejam limites preexistentes à regulação legislativa, e que existiriam igualmente se tal regulação não houvesse produzindo-se”. 216 BOROWSKI, Martin. La estructura de los..., op. cit., p. 91. 209 210 sem vinculação ao conteúdo dos direitos. E, admitindo-se haver vinculação à Constituição, esta se materializará de forma diferente conforme os direitos fundamentais sejam entendidos i) como regras; ou ii) como princípios.217 A conceber-se os direitos como regras, a atividade do legislador não poderia, “nem mesmo metaforicamente,”218 ser entendida como configuração. É que, se os direitos são vistos como comandos definitivos, não resta ao legislador nenhuma margem de discricionariedade, cabendo a este apenas executar a norma constitucional. E, quando se executa algo que já está dado de antemão, não se configura nada. A atividade legislativa, assim, limitar-se-ia a interpretar o conteúdo constitucional dos direitos. Cabe, então, analisar de que forma deve ser entendida a configuração no modelo de direitos fundamentais como princípios. Com efeito, sendo os direitos pensados como comandos de otimização e não como comandos definitivos, abre-se uma esfera de apreciação ao legislador em sua atividade regulamentadora. As intervenções legislativas irão, nessa perspectiva, estabelecer regras que limitam o exercício do direito mediante a fixação de condições e proibições. Nada obstante, as condições que o legislador venha a estabelecer para o exercício do direito não decorrem diretamente do princípio constitucional, mas de sua regulação infraconstitucional. Por isso, o objeto da configuração não é o direito fundamental propriamente dito, mas o direito legal. Exemplificando: a norma do art. 5º, XV, da Constituição (É livre a locomoção no território nacional em tempo de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, nele entrar, permanecer ou dele sair com seus bens), consagra o princípio da liberdade de ir e vir, que, nos termos do referido preceito, é um direito de configuração legal. O Estatuto do Estrangeiro é uma das leis regulam o exercício dessa liberdade, determinando, em seu artigo art. 22, que “a entrada no território nacional far-se-á somente pelos locais onde houver fiscalização dos órgãos competentes dos Ministérios da Saúde, da Justiça e da Fazenda”. 219 A norma mencionada, ao regular o ingresso em território nacional, estabelece uma restrição ao direito prima facie de ingressar livremente no país. Tal restrição visa a tutelar a segurança nacional, os interesses fazendários e a saúde pública. É possível afirmar, num juízo ponderativo simplificado, que a norma restritiva em questão atende ao postulado da proporcionalidade em suas três dimensões — adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito —, mostrando-se, pois, constitucionalmente legítima. Desse modo, nos casos em que alguém pretenda ingressar no território nacional em locais onde não haja fiscalização dos referidos órgãos estatais, caberá aplicar a regra Idem, ibidem, pp. 92-93. Idem, ibidem, p. 92. 219 A ordem de análise e a conclusão aqui colocadas estão baseadas nas lições de BOROWSKI, Martin. La estructura de los..., op. cit., p. 94 et seq. No entanto, o autor desenvolve tais argumentos utilizando um exemplo um pouco diferente do aqui empregado. 217 218 infraconstitucional que estabelece a vedação, e não o princípio constitucional que tutela prima facie a liberdade ambulatorial.220 Como averba Borowski, quando a configuração é compatível com a Constituição, “então a lei é a norma que deve aplicar-se nos casos concretos, ainda que não tenha validade hierárquica superior, mas sim uma prevalência de aplicação em relação ao direito constitucional”.221 Imagine-se, todavia, que o referido Estatuto contivesse preceito determinando que todas as pessoas que ingressam no país devem aqui permanecer por um ano. Haveria, por evidente, violação ao postulado da proibição de excesso, caracterizando-se, destarte, uma violação ao princípio da liberdade de ir e vir, que deveria ser aplicado em lugar da regra inconstitucional. Assim, no modelo de princípios, há uma “vinculação flexível” do legislador aos direitos fundamentais, determinada pelo imperativo de proporcionalidade. Desse modo, cabe falar “metaforicamente,”222 de configuração do direito fundamental. Com base nesse conceito de configuração, que se mostra compatível com o modelo de princípios, retoma-se a pergunta: são as configurações sempre algo diverso das restrições, ou podem assumir caráter restritivo? É certo que nem todas as normas infraconstitucionais que disciplinam bens tutelados como direitos fundamentais constituem restrições. Por exemplo, quando o Código Civil estatui que “aberta a sucessão, o domínio e a posse da herança transmitem-se, desde logo, aos herdeiros necessários”, não restringe nenhum direito fundamental.223 Mas cabe dizer o mesmo em relação a norma infraconstitucional que determina que o direito de impetrar mandado de segurança deve ser exercido até 120 dias após a ciência do ato impugnado? E quanto à norma que estipula que o direito de impetrar habeas data está condicionado à negativa ou ao silêncio quanto a pedido administrativo de informações ou retificação de dados? 224-225 A restrição transforma um direito prima facie em um não-direito definitivo. BOROWSKI, Martin. La estructura de los..., op. cit., p. 93. 222 Idem, ibidem. 223 ALEXY, Robert. Teoria de los derechos..., op. cit., p. 321. 224 A Lei n. 9.507, de 12 de novembro de 1997 — que regula procedimento do habeas data — estabelece, em seus artigos 8º e 10, como condição para o cabimento da referida garantia processual, a necessidade de configurar-se a recusa ou a omissão administrativa em fornecer as informações disponíveis ou em fazer-se a retificação ou anotação no cadastro do interessado. A ausência dessa condição acarreta a carência de ação por falta de interesse de agir. Tal previsão normativa positivou o entendimento que, logo após o advento da Carta de 1988, fora adotado pelo STJ (Súmula 2: Não cabe o habeas data (CF, art. 5., LXXII, letra “a”) se não houve recusa de informações por parte da autoridade administrativa) e pelo STF (Recurso Ordinário em Habeas Data n. 22-8 Distrito Federal. Tribunal Pleno. Relator: Min. Celso de Mello. Data do Julgamento: 19.09.1991. D.J. 01.09.95 Ementário n.º 1798-01). 225 É interessante mencionar a análise feita por TOLEDO, Suzana de Barros do referido preceito. A autora, formulando uma severa crítica a posições doutrinárias e jurisprudenciais 220 221 Nesses casos, a visualização de caráter restritivo ou configurador na norma reguladora depende da perspectiva de análise que se adote. Como assinala Borowski em articulada explanação, as configurações e as restrições são: Duas formas diferentes de descrever exatamente o mesmo fenômeno. Na restrição de direitos fundamentais, o princípio de direito fundamental limita-se mediante a expedição de uma lei. O destaque aqui está em que um dever prima facie de um princípio converte-se em um não dever definitivo. Mediante a expedição da lei se produz igualmente uma configuração do direito infraconstitucional. Se fala, de outro modo, de uma “configuração de direito fundamental”, se se coloca ênfase na formação do direito infraconstitucional no âmbito do direito fundamental. Sem embargo, os princípios fundamentais que vinculam materialmente ao legislador no processo de configuração restringem-se, por sua vez, pela legislação. Quem põe ênfase no direito fundamental, fala de uma restrição; quem enfatiza o direito infraconstitucional, fala de uma configuração [...].226 que sustentam a inconstitucionalidade (rectius: não recepção) do prazo de 120 dias previsto, à época, na Lei nº 1.533/51 e reproduzido, hoje, na Lei nº 12.016/09, por restringir arbitrariamente o direito a valer-se do mandado de segurança, defende que a hipótese é de mera configuração. Consoante seu raciocínio, “uma lei não há de ser considerada restritiva se, objetivando aclarar o âmbito de proteção de um direito, venha expurgar uma conduta que a própria Constituição, por meio de uma interpretação sistemática, repele”. TOLEDO, Suzana de Barros. O princípio da proporcionalidade e o controle de constitucionalidade das leis restritivas de direitos fundamentais. Brasília: Brasília Jurídica, 1996, p. 145 et seq. Com efeito, se não parece adequado falar em inconstitucionalidade do referido preceito — apenas por atribuir-se natureza restritiva àquela norma —, também não se mostra correto concebêla como mera configuração, afastando, assim, qualquer discussão sobre a necessidade de ponderar o direito a valer-se do referido remédio — que se ancora na necessidade de garantir um mecanismo célere de impugnação contra coações administrativas —, com os princípios do contraditório e da ampla defesa, que são indiscutivelmente mitigados em desfavor do Poder Público no procedimento do mandado de segurança. Assim, é possível sustentar a constitucionalidade do dispositivo sem recusar sua natureza restritiva, a partir de um juízo ponderativo que sopese o fundamento da garantia processual — rapidez e agilidade contra coações ilegais — com os princípios do contraditório e da ampla defesa, que hão de prevalecer sempre que o lesado não optar pela via do mandado de segurança no prazo estipulado. A propósito, o STF adota a tese de que o referido prazo é constitucional, tendo tal entendimento sido consolidado no enunciado nº 632 de sua Súmula de Jurisprudência, que tem o seguinte teor: “É constitucional lei que fixa o prazo de decadência para a impetração de mandado de segurança.” 226 BOROWSKI, Martin. La estructura de los..., op. cit., p. 95. Assim, todas as intervenções legislativas que possam constituir obstáculos ao exercício de direito fundamental devem ser entendidas como restrições, ainda que sejam, ao mesmo tempo, configurações. Nesse sentido, averba Alexy que “quando algo é restritivo desde algum ponto de vista, segue sendo restritivo, ainda quando desde algum outro ponto de vista seja configuração”.227 A distinção entre configuração e restrição, nestes termos, não assume contornos dicotômicos e excludentes. Trata-se de duas dimensões de um mesmo fenômeno. De qualquer modo, caberá estremar configuração e restrição naqueles casos em que a disciplina legal não afete nenhum direito, sendo “neutra em relação a todos os direitos fundamentais”.228 Adota-se, dessa forma, uma concepção ampla de restrição e uma estreita de configuração.229 Isso não significa, no entanto, que — como afirma Borowski — seja “quase inconcebível que existam configurações não restritivas”.230 Há uma série de normas infraconstitucionais que, ao invés de restringir, otimizam e reforçam a proteção dos direitos fundamentais. Os exemplos mais claros são as normas que estabelecem proteção dos indivíduos em face do Estado,231 especificando obrigações por parte deste que, a princípio, não poderiam ser hauridas do preceito constitucional que contempla o direito. No direito brasileiro, um exemplo de norma configuradora é a Lei 9.784, de 29 de janeiro de 1999, que disciplina o processo administrativo no âmbito da Administração Federal direta e indireta. A finalidade desta norma é essencialmente estabelecer uma proteção mais eficiente do administrado, não se vislumbrando, em grande parte de seus preceitos, prescrições de caráter restritivo. Em vista disso, a adoção de um conceito amplo de restrição e de um conceito estrito de configuração não significa que inexistam normas de natureza exclusivamente configuradora. 6. Modalidades de restrições aos direitos fundamentais 6.1) Generalidades Tendo-se adotado, no presente estudo, a teoria externa quanto à restringibilidade dos direitos fundamentais, as classificações aqui enunciadas partem da premissa de que mesmo os direitos fundamentais não sujeitos à ALEXY, Robert. Teoria de los derechos..., op. cit., p. 323. BOROWSKI, Martin. La estructura de los..., op. cit., p. 96. 229 ALEXY, Robert. Teoria de los derechos..., op. cit., p. 321 et seq. BOROWSKI, Martin. La estructura de los..., idem, ibidem. 230 BOROWSKI, Martin. La estructura de los..., ibidem, p. 97. 231 Isso ocorre, com maior frequência, no âmbito do direito administrativo. É que, quanto às normas de direito privado, o incremento na proteção do direito de alguns, normalmente, resulta numa restrição dos direitos de outros particulares. 227 228 reserva legal podem ser objeto de intervenções legislativas de caráter restritivo, as quais deverão mostrar-se compatíveis com a Constituição. Adotase, também, a tese de que os direitos fundamentais tendem a colidir com outros direitos e bens constitucionalmente protegidos, o que poderá justificar restrições recíprocas operadas in concreto, pela via interpretativa. Nessa perspectiva, como já se destacou anteriormente, os direitos fundamentais podem ser restringidos em decorrência da atuação interpretativa do Judiciário ou por meio da ação legislativa. Além disso, em certos casos, o Executivo, ao aplicar lei e a Constituição, restringe os direitos fundamentais no plano concreto. Assim, tendo em vista os “sujeitos constitucionais” 232 competentes para promover restrições aos direitos fundamentais, estas podem ser: i) legislativas ii) judiciais e iii) administrativas.233 Fala-se, de modo semelhante, em restrições: i) no momento legislativo e ii) no momento aplicativo.234 Em virtude da supremacia hierárquica e do caráter vinculante dos direitos fundamentais, as restrições a estes opostas haverão sempre de ter fundamento nas normas constitucionais, mesmo quando forem estabelecidas por normas infraconstitucionais. Desde esse ponto de vista, é adequada a classificação adotada por Alexy, que decompõe as restrições em dois tipos: i) restrições diretamente constitucionais e ii) restrições indiretamente constitucionais. 6.2) Restrição legal (abstrata) e restrição aplicativa (concreta) As restrições aos direitos fundamentais podem ser efetivadas: i) no plano legislativo ou ii) no plano aplicativo. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e..., op. cit., p. 767. No plano dogmático, não costuma ser aceita a ideia de que o Executivo pode promover restrições aos direitos fundamentais, tendo em vista a incidência do princípio da reserva legal nesse domínio. No entanto, é certo que há situações em que o Poder Executivo restringe direitos individuais ao promover a aplicação direta da Constituição. Isso ocorre, por exemplo, no caso do art. 5º, inciso XVI, da Carta Brasileira, que versa sobre o direito de reunião (Todos podem reunir-se pacificamente, sem armas, em locais abertos ao público, independentemente de autorização, desde que não frustem outra reunião anteriormente convocada para o mesmo local, sendo apenas exigido prévio aviso à autoridade competente). Embora o referido preceito faça referência apenas à necessidade de comunicação prévia à autoridade competente, a Administração poderá, em certos casos, intervir a fim de evitar a realização de duas reuniões no mesmo horário e local. Ademais, há hipóteses em que a própria lei confere certa margem de ação ao Executivo para atuar. Um exemplo claro desse caso é o exercício do poder de polícia, que corriqueiramente repercute sobre os direitos individuais. Esse ponto, contudo, remete à complexa discussão em torno do conceito convencional de vinculação do administrador à lei, o qual tem sido objeto de amplo questionamento, e que não cabe aqui aprofundar. Veja-se, a propósito, o item 2 do Capítulo V de PEREIRA, Jane Reis Gonçalves. Interpretação constitucional…, op. cit.. 234 BACIGALUPO, Mariano. La aplicación de la doctrina..., op. cit., p. 300. 232 233 As restrições legislativas operam no plano abstrato e geral, de modo que implicam alterações no conteúdo objetivo dos direitos fundamentais. O recorte operado pelas leis restritivas determina o âmbito de proteção legal vigente do direito, transformando seu conteúdo constitucional prima facie em conteúdo legal definitivo. Já as restrições aplicativas operam no plano concreto e individual, repercutindo na dimensão subjetiva dos direitos fundamentais, sem afetar seu conteúdo objetivo enunciado na Constituição e nas leis restritivas.235 Exemplificando, as normas legais que regulam a interceptação telefônica restringem o sigilo de comunicações na dimensão abstrata, enquanto a decisão judicial que determina tal providência restritiva opera uma restrição in concreto no direito subjetivo ao sigilo. Em sentido semelhante, o preceito do Estatuto da Criança e do Adolescente que veda a divulgação de nome ou fotografia de menor a que se atribua a prática de ato infracional restringe o direito à liberdade de expressão e à informação no plano abstrato,236 sendo que decisão judicial que determine a apreensão de publicação que tenha infringido tal preceito operará uma restrição concreta nos direitos fundamentais em questão. 6.3) A classificação de Robert Alexy 6.3.1) Restrições diretamente constitucionais Para Robert Alexy, as restrições diretamente constitucionais são aquelas que derivam de forma imediata de normas com hierarquia constitucional. Tais Em sentido semelhante, NOVAIS, Jorge Reis, distingue essas duas modalidades de restrição aos direitos fundamentais, denominando as restrições abstratas de restrições em sentido estrito e as concretas de intervenções restritivas. As restrições aos direitos fundamentais não expressamente autorizadas pela constituição. Coimbra: Coimbra, 2003, p. 192 et seq. 236 Art. 247 — “Divulgar, total ou parcialmente, sem autorização devida, por qualquer meio de comunicação, nome, ato ou documento de procedimento policial, administrativo ou judicial relativo a criança ou adolescente a que se atribua ato infracional: Pena — multa de três a vinte salários de referência, aplicando-se o dobro em caso de reincidência. § 1° — Incorre na mesma pena quem exibe, total ou parcialmente, fotografia de criança ou adolescente envolvido em ato infracional, ou qualquer ilustração que lhe diga respeito ou se refira a atos que lhe sejam atribuídos, de forma a permitir sua identificação, direta ou indiretamente. § 2° — Se o fato for praticado por órgão de imprensa ou emissora de rádio ou televisão, além da pena prevista neste artigo, a autoridade judiciária poderá determinar a apreensão da publicação ou a suspensão da programação da emissora até por dois dias, bem como da publicação do periódico até por dois números”. A parte final do § 2º, que autoriza a suspensão judicial da programação e publicação que veiculem a imagem do menor, teve sua inconstitucionalidade declarada pelo Supremo Tribunal Federal na ADIN nº 869-2. 235 restrições emanam de cláusulas restritivas237 constitucionais, que podem ser expressas ou tácitas. O exemplo acadêmico tradicional de cláusula restritiva expressa encontrase no preceito que consagra o direito de reunir-se, o qual, nas diversas constituições democráticas, vem acrescido da expressão “pacificamente e sem armas”.238 Sem embargo, o entendimento de que a referida fórmula exprime uma restrição ao direito de reunião não é uníssono. Discute-se se cláusulas como a mencionada podem ser tratadas como efetivas restrições, ou se, de forma diversa, são “descrições diretamente constitucionais” do conteúdo do direito — ou “limites imanentes expressos”—, 239 que estabeleceriam o seu perímetro de proteção. A visão que nega o caráter restritivo desses preceitos, atribuindo-lhe função meramente prescritiva e delimitadora do direito, é tributária da teoria interna. Considera, assim, que as condições estabelecidas no próprio texto constitucional demarcam o conteúdo máximo da norma protetora, traçando “uma linha entre o direito e o não-direito”.240 A partir dessa perspectiva, não existem “restrições constitucionais”, mas apenas delineamento dos contornos do direito. É importante destacar que tratar essas fórmulas como restrições ou como delimitações tem consequências hermenêuticas importantes. De acordo com Robert Alexy, a tese que concebe a cláusula “pacificamente e sem armas” como mero elemento da definição do direito de reunir-se “não é necessária por razões conceituais e suas consequências tampouco são desejáveis”.241 Isso porque, a entender-se que se trata de limites internos, caberá apenas definir, a cada caso, se as reuniões são ou não pacíficas, sem ter-se em conta nessa interpretação o confronto dialético entre o princípio da liberdade de reunião e os princípios que amparam a cláusula restritiva. Isso se manifesta de forma particularmente clara nos casos duvidosos. Na explicação do autor: ALEXY, Robert. Teoria de los derechos..., op. cit, p. 279. Veja-se: Art. 8º (1) da Lei Fundamental da República Federal da Alemanha: “Todos os alemães têm o direito de reunir-se, pacificamente e sem armas, sem anúncio nem autorização prévias”. Art. 5º, XVI, da Constituição da República Federativa do Brasil: “todos podem reunirse pacificamente, sem armas, ...”. Art. 21, 1 da Constitución Española: “Se reconoce el derecho de reunión pacífica y sin armas. El ejercicio de este derecho no necesitará autorización previa”; e o Art. 45, 1 da Constituição da República Portuguesa: “Os cidadãos têm o direito de se reunir, pacificamente e sem armas, mesmo em lugares abertos ao público, sem necessidade de qualquer autorização”. 239 ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os direitos fundamentais..., op. cit., p. 284. 240 STEINMETZ, Wilson Antônio. Colisão de direitos fundamentais..., op. cit., p. 30. 241 ALEXY, Robert. Teoria de los derechos..., op. cit., p. 278. 237 238 (...) nos casos duvidosos, para constatar que uma reunião não é pacífica, se recorre ao conceito de “não pacífico”. Dentro do marco dessa interpretação, é também sempre necessário sopesar o princípio jusfundamental da liberdade de reunião, entre outros, com os princípios contrapostos que impulsionaram o legislador constitucional a ditar a cláusula restritiva definitiva diretamente constitucional. Isto mostra que a cláusula nada mais é que uma decisão do legislador constitucional em favor de determinadas razões contrárias a proteção jusfundamental. Mas, as razões contra a proteção jusfundamental, qualquer que seja sua formulação, pertencem ao âmbito das restrições. Se se renunciasse a essa adscrição, existiria o perigo de que o jogo de razões a favor e contra fosse substituído por intervenções mais ou menos intuitivas.242 De fato, nos casos duvidosos resta evidenciado o teor restritivo da expressão “pacificamente e sem armas”, à medida que uma interpretação ampliativa ou não de seu significado terá repercussão direta na determinação da esfera de incidência do direito de reunião. Por isso, a solução que confere maior grau de proteção ao direito fundamental é justamente entender cláusulas dessa natureza como restrições. Tal visão, nas hipóteses controvertidas, levará ao raciocínio ponderativo, e permitirá sopesar a dimensão positiva da norma (todos tem direito a reunir-se), com seu aspecto negativo (pacificamente e sem armas). As cláusulas restritivas implícitas são aquelas que defluem da necessidade de conciliar os direitos entre si e com outros bens constitucionalmente protegidos. Nesse sentido, Robert Alexy aponta como exemplo de cláusula restritiva implícita a formulação da Corte Constitucional segundo a qual “tendo em conta a unidade da Constituição e a totalidade de valores protegidos por ela, [...] os direitos fundamentais de terceiros que entram em colisão e outros valores jurídicos de hierarquia constitucional podem excepcionalmente limitar, em casos particulares, também direitos fundamentais irrestringíveis”.243 6.3.2) Restrições indiretamente constitucionais; As restrições indiretamente constitucionais “são aquelas cuja imposição está autorizada pela Constituição”,244 sendo estabelecidas por normas de status infraconstitucional. Essa autorização pode constar de uma cláusula expressa ou decorrer implicitamente do sistema constitucional. No caso das reservas legais, Idem, ibidem. Idem, ibidem, p. 281. 244 Idem, ibidem, p. 282. 242 243 as autorizações ao legislador para intervir nos direitos fundamentais podem ser simples ou qualificadas. Nas primeiras, a Constituição confere ao legislador uma competência genérica e não detalhada para disciplinar o direito, mediante fórmulas do tipo: “na forma da lei”, “nos termos da lei”, “lei regulará” etc. Nas segundas, a autorização para que o legislador limite o direito vem acompanhada de diretivas que condicionam a atividade legislativa. Em nossa Constituição, um exemplo desse tipo de autorização é a reserva de lei limitadora da liberdade de exercício de profissão, que deflui da expressão “atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer” (art. 5º, XIII). A classificação elaborada por Robert Alexy tem o mérito de pôr em evidência o fundamento constitucional de toda e qualquer restrição a direitos. Entretanto, a referida categorização dicotômica, embora assentada em pressupostos teóricos corretos, apresenta o inconveniente de abarcar em uma única classe situações tão diversas como as restrições que advêm dos conflitos de direitos e as estatuídas de forma explícita no texto constitucional. No presente estudo, emprega-se uma classificação alternativa que, sem discrepar, na essência, da de Alexy, decompõe as restrições em três categorias, tendo em consideração dois aspectos: i) se a restrição é diretamente estatuída pela Constituição ou se é apenas autorizada por esta; ii) se a restrição (ou possibilidade de restrição) é prevista de modo expresso ou está implícita no texto constitucional. Combinando tais critérios, extraem-se, da ordem constitucional, três modalidades de restrições: a) Restrições expressamente estatuídas pela Constituição; b) Restrições expressamente autorizadas pela Constituição; c) Restrições implicitamente autorizadas pela Constituição. 6.4) Uma proposta complementar de classificação 6.4.1) Restrições expressamente estatuídas pela Constituição As restrições expressamente estatuídas pela Constituição são aquelas dispostas por meio de cláusulas restritivas explícitas. Na Constituição de 1988, colhe-se o tradicional exemplo do direito de reunião, que vem restringido pelas expressões “pacificamente” e “sem armas” (art. 5º, XVI). São também exemplos de restrições expressas a vedação ao anonimato estampada no art. 5º, IV, que consagra a liberdade de expressão; o estabelecimento da liberdade de ir e vir em tempo de paz, previsto no art. 5º, XV; a vedação de associações de caráter paramilitar contida no art. 5º, XVII, que enuncia a liberdade associativa; e a possibilidade de instituir-se pena de morte em caso de guerra declarada, como previsto no art. 5º XLVI.245 Há, ainda, outros preceitos que contêm restrições expressas: v. art. 5º XI, XIV, XXI, XXIII, XLV, LI . 245 Tais restrições são normas hauridas de dispositivos constitucionais construídos de forma dialética, vale dizer, mediante a enunciação do direito protegido e, simultaneamente, de uma exceção. 6.4.2) Restrições expressamente autorizadas pela Constituição As restrições expressamente autorizadas pela Constituição são as estabelecidas por atos infraconstitucionais com fundamento em competências conferidas de forma explícita no texto constitucional. Nesse caso, o constituinte não restringe o direito: apenas prevê a possibilidade de restrição, atribuindo aos órgãos de poder a competência para intervir nos direitos em certas circunstâncias e sob determinada forma jurídica. Além disso, em determinados casos, a Constituição confere a possibilidade de o Judiciário restringir os direitos, mediante decisões constritivas de posições jurídicas individuais constitucionalmente protegidas. É um exemplo dessa modalidade de autorização o art. 5º inciso XI da Constituição de 1988, que prevê a inviolabilidade domiciliar “salvo em flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial”. Outra modalidade de restrições autorizadas constitucionalmente são as relacionadas aos mecanismos de estabilização da ordem constitucional inerentes ao regime excepcional de estado de necessidade (Estado de Defesa e Estado de Sítio). No caso do Estado de Defesa, a Constituição confere ao Presidente da República o poder de institui-lo por meio de decreto — a ser apreciado pelo Congresso —,246 o qual poderá impor restrições aos direitos de reunião e ao sigilo de correspondência, de comunicação telegráfica e telefônica (art. 136, § 1º). Quanto ao Estado de Sítio, só pode ser decretado após prévia autorização do Congresso Nacional, mas as restrições a direitos autorizadas são ainda mais abrangentes, compreendendo a liberdade de locomoção, o direito de reunião, a liberdade de expressão e comunicação, a inviolabilidade domiciliar e o direito de propriedade (art. 139). Por fim, há as restrições legislativas constitucionalmente autorizadas. Diversos direitos fundamentais são positivados por meio de preceitos que veiculam autorizações expressas ao legislador para interferir em seu âmbito de proteção. Tais cláusulas, que conferem competências ao legislador para intervir nos direitos, são denominadas reservas legais. Essas reservas são, basicamente, de dois tipos: simples e qualificadas. Art. 136, caput, da Constituição da República Federativa do Brasil. “O Presidente da República pode, ouvidos o Conselho da República e o Conselho de Defesa Nacional, decretar estado de defesa para preservar ou prontamente restabelecer, em locais restritos e determinados, a ordem pública ou a paz social ameaçadas por grave e iminente instabilidade institucional ou atingidas por calamidades de grandes proporções na natureza.” 246 Fala-se em reserva legal simples quando o preceito constitucional limita-se a prever a intervenção legislativa sem determinar qual será o objeto ou a finalidade da lei, por meios de fórmulas genéricas do tipo: na forma da lei, nos termos da lei etc. Diversamente, tem-se a reserva legal qualificada nos casos em que o constituinte, além de prever a possibilidade de ação legislativa, determina previamente qual deverá ser o objeto e a finalidade da lei reguladora.247 6.4.2.1) Reservas legais simples As reservas legais simples são caracterizadas pelo fato de traduzirem a exigência formal de que as restrições aos direitos sejam estatuídas por meio de lei.248 Na Carta de 1988, encontram-se diversos exemplos desse tipo de reserva. Pode-se mencionar, verbi gratia, o inciso XV do artigo 5º que consagra a liberdade de locomoção nos termos da lei; bem como o inciso XVIII do artigo 5º, segundo o qual “a criação de associações e, na forma da lei, de cooperativas independem de autorização, sendo vedada a interferência estatal em seu funcionamento”; e, ainda, o inciso LVIII, do mesmo artigo, que estabelece que “o civilmente identificado não será submetido a identificação criminal, salvo nas hipóteses previstas em lei”. São também entendidas como reservas legais simples as cláusulas pelas quais a Constituição determina que a lei venha a concretizar certos conceitos e institutos jurídicos que reclamam densificação. É esse o caso do preceito que estipula “a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos [...]” (art. 5º, XLIII). Nessa hipótese, como destaca Gilmar Ferreira Mendes, “a Constituição conferiu ao legislador ampla liberdade, o que permite quase a conversão da reserva legal em um caso de interpretação da Constituição segundo a lei. Os crimes hediondos passam a ter um tratamento agravado pela simples decisão legislativa”.249 6.4.2.2) Reservas legais qualificadas Na doutrina italiana fala-se em reserva absoluta e reserva reforçada. No primeiro caso, “o legislador ordinário tem (obrigatoriamente) competência plena e exclusiva na matéria”, e a Constituição não restringe sua “relativa discricionariedade substancial”. No caso da reserva reforçada, “a intervenção do legislador deve ser especificamente e unicamente direcionada à busca dos escopos e objetivos exatamente indicados na Constituição”. LILLO, Pasquale. Diritti fondamentali e libertà della persona. Torino: G. Giappichelli, 2001, p. 142. 248 É claro que a lei há de ser, também, materialmente constitucional, observando a exigência de proporcionalidade. 249 MENDES, Gilmar Ferreira. Âmbito de proteção..., op. cit., p. 234. 247 As reservas legais qualificadas não se limitam a enunciar o requisito formal de que a intervenção seja efetivada por lei, mas também estipulam, de antemão, o objeto, a finalidade ou o âmbito temático da lei reguladora. Um preceito que consagra tal espécie de reserva é o inciso XIII, do artigo 5º, da Constituição de 1988, segundo o qual “é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer”. Outro exemplo encontra-se no inciso XII, que contempla a inviolabilidade do sigilo das comunicações telefônicas, salvo “por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal”. Pode-se mencionar, ainda, o inciso LX, que enuncia: “a lei só poderá restringir a publicidade dos atos processuais quando a defesa da intimidade ou o interesse social o exigirem”. 6.4.3) Restrições implicitamente autorizadas pela Constituição Como se viu, as intervenções legislativas em direitos fundamentais não se resumem àquelas explicitamente previstas, cabendo admiti-las sempre que a indeterminação dos preceitos constitucionais ou a necessidade de preservação da unidade da Lei Maior torne imperativa a regulamentação infraconstitucional dos direitos. Há, basicamente, duas categorias de intervenções legais implicitamente autorizadas. De um lado, reconhece-se a competência do Parlamento para promover a harmonização dos diversos — e, por vezes, antagônicos — bens e valores constitucionais, o que poderá implicar, em certos casos, a compressão de uns em detrimento de outros. Noutro giro, há hipóteses em que a Constituição, sem prever de modo explícito a reserva legal, indica restrições aos direitos que hão de ser concretizadas pela via legislativa, tendo em vista sua abertura semântica ou, ainda, o fato de serem mencionados institutos jurídicos que demandam regulamentação infraconstitucional. 6.4.3.1) Conceitos indeterminados e institutos jurídicos sujeitos à regulação legal Nesses casos, a Constituição não faz menção explícita à possibilidade de o legislador determinar o conteúdo de certos conceitos e institutos — como ocorre, v.g., no caso da definição de crimes hediondos (art. 5º, XLIII). O que ocorre é que a mera previsão no texto constitucional do conceito indeterminado250 ou de instituto jurídico abre as portas para a intervenção Como leciona MOREIRA, José Carlos Barbosa: “Nem sempre convém, e às vezes é impossível, que a lei delimite com traço de absoluta nitidez o campo de incidência de uma regra jurídica, isto é, que descreva em termos pormenorizados e exaustivos todas as situações fáticas a que há de ligar-se este ou aquele efeito no mundo jurídico. Recorre então o legislador 250 legislativa, precisamente porque estes, por sua própria natureza, demandam tratamento em lei. Um paradigma dessa espécie de preceito é o art. 5º LXVII, que prevê que “não haverá prisão civil por dívida, salvo a do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel”. Com efeito, o conceito de depositário infiel tem por pressuposto a configuração legal do contrato de depósito. Todavia, a legislação nessa matéria terá sempre caráter restritivo pois, quanto mais abrangente for a definição legal dessa modalidade de ajuste, menor será o âmbito de proteção vigente do direito fundamental a não ser o indivíduo submetido à prisão civil. Caberá, assim, questionar até que ponto o legislador tem liberdade para adotar definições amplas de contrato de depósito.251 ao expediente de fornecer simples indicações de ordem genérica, dizendo o bastante para tornar claro o que lhe parece essencial, e deixando ao aplicador da norma, no momento da subsunção — quer dizer, quando lhe caiba determinar se o fato singular e concreto com que se defronta corresponde ou não ao modelo abstrato, o cuidado de “preencher os claros”, de cobrir os “espaços em branco”. A doutrina costuma falar, ao propósito, em “conceitos juridicamente indeterminados” (unbestimmte Rechtsbegriffe).” Regras de experiência e conceitos juridicamente indeterminados. In: Temas de direito processual. São Paulo: Saraiva, 1980, p. 64, 2ª série. 251 O STF conferiu interpretação extensiva ao conceito de contrato de depósito, entendendo como constitucionais normas que equiparam certas modalidades de ajuste ao depósito, viabilizando, assim, a prisão civil nesses casos. No julgamento do Habeas Corpus nº 75.904/SP, a Primeira Turma considerou admissível a prisão civil em caso de penhor rural, sob a modalidade de penhor agrícola, indeferindo a ordem por maioria. Em voto-vista, o Ministro Moreira Alves consignou que o penhor rural é constituído sob propriedade do devedor que permanece na posse direta dela, na qualidade de depositário, assinalando que: “[...] as coisas dadas em penhor rural — no caso, sob a modalidade de penhor agrícola —, ainda que objetivamente possam ser fungíveis por suas qualidades intrínsecas (coisas que se medem, se contam ou se pesam, e que, em determinada relação jurídica, são consideradas tendo em vista sua específica individualidade), tanto assim que ela exige que sejam especificadas de molde a individualizá-las, com a caracterização do imóvel onde ficarão depositadas, não podendo o proprietário-depositário dispor delas, senão sob consentimento escrito do credor, caso em que a garantia se reduz ao remanescente”. (Habeas Corpus nº 75.904-4/SP — Relator: Ministro Moreira Alves. Julgamento: 23/06/1998. DJ: 25/06/1999). A Corte também decidiu pela admissibilidade da prisão civil do depositário infiel em caso de penhor mercantil. No julgamento do Habeas Corpus nº 75.900-9/MG, o relator, Ministro Ilmar Galvão, aduziu: “As mercadorias dadas em penhor mercantil ao banco foram transferidas por este para a posse do paciente, como fiel depositário, com as responsabilidades inerentes a essa condição e com a expressa recomendação de não dispor dos referidos bens a qualquer título, até que sejam integralmente cumpridas todas as obrigações assumidas. Ora, como fiel depositário da coisa recebida, o paciente estava sujeito a todas as obrigações e responsabilidades declaradas no título, sob pena de se proceder contra ele como depositário infiel.” (Habeas Corpus nº 75.900-9/MG — Relator: Ministro Ilmar Galvão. Julgamento: 23/06/1998. DJ: 21/08/1998). Hoje, todavia, a possibilidade de prisão do depositário infiel foi afastada, em qualquer modalidade de contrato, por força da Súmula Vinculante nº 25, editada, inclusive, em razão da assinatura do Pacto de São José da Costa Rica, pelo Brasil. Outro exemplo de restrição legislativa implicitamente autorizada por meio de recurso a conceitos jurídicos encontra-se no art. 5 º, XI, que contempla a inviolabilidade do domicílio “salvo em caso de flagrante delito”. O conceito de flagrância é dado pela legislação infraconstitucional, sendo que uma formulação mais ampla ou mais estrita deste terá repercussões na identificação do âmbito vigente de proteção da inviolabilidade domiciliar. Tais hipóteses demonstram, de forma derradeira, como, por meio da configuração legislativa, é possível promover restrições aos direitos fundamentais. Mas essa modalidade de restrição assume alguns contornos peculiares. Sua constitucionalidade não dependerá apenas da observância do postulado de proporcionalidade, mas, antes de tudo, o legislador deverá, ao concretizar o conceito indeterminado, abster-se de transformá-lo em algo completamente diverso do que é. Em outras palavras, a presença de tais conceitos não confere ao legislador o poder de, pela manipulação de seu conteúdo normativo, comprimir excessivamente ou esvaziar a garantia constitucional. Efetivamente, a indeterminação do conceito confere certa margem de manobra ao legislador, mas isso não significa que seja possível, pela atuação legislativa, desfigurar-lhe o sentido. 6.4.3.2) Conflitos entre direitos fundamentais e bens constitucionalmente legítimos A tutela dos direitos fundamentais como um conjunto implica, necessariamente, que estes se restrinjam reciprocamente. A positivação simultânea de diversos direitos fundamentais e fins constitucionais, que podem revelar-se conflitantes, opera como uma autorização implícita ao legislador e ao Judiciário para restringi-los, respectivamente, no momento legislativo e no momento aplicativo. O fundamento dessa interpretação é o princípio da unidade da Constituição. Isso não significa, como é evidente, que os “sujeitos constitucionais” tenham liberdade para intervir nos direitos fundamentais de forma indefinida, na medida em que toda e qualquer restrição deverá observar os requisitos formais e materiais que se impõem à atividade limitadora dos direitos. Do ponto de vista formal, as restrições só poderão ser estabelecidas em lei, e, no caso da limitação hermenêutica, o órgão judiciário há de ser competente. No que se refere aos limites materiais, tanto os órgãos legislativos como os judiciários deverão observar o imperativo de proporcionalidade, engendrando uma interpretação coerente com o princípio da dignidade da pessoa humana. O método adequado para solucionar as situações que envolvam conflitos entre os direitos é a ponderação de princípios. Referências bibliográficas ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1997. _____________. Direitos fundamentais no estado constitucional democrático: para a relação entre direitos do homem, direitos fundamentais, democracia e jurisdição constitucional. Revista de Direito Administrativo, n. 217, 1999. ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os direitos fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976. Coimbra: Almedina, 2001. ARNAU, Juan Andrés Muñoz. Los límites de los derechos fundamentales en el derecho constitucional español. Pamplona: Aranzadi, 1998. ASÍS, Rafael de. 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