O DESAFIO DA HOSPITALIDADE “A hospitalidade é um sinal de nostalgia e uma nova moda intelectual”. Alain Montandon O termo hospitalidade é pleno de ambigüidades. A busca de um entendimento unívoco do termo, comum às diferentes acepções em que é tomado e que permita o enunciado de um conceito é, assim, cheia de armadilhas. A epígrafe acima é a primeira. Hospitalidade evoca a idéia de algo desejável, mas um tanto fora de moda: algo como uma atitude positiva em qualquer código ético, mas que, nas prateleiras do nosso imaginário, parece estar relegada ao lado dos antigos livros de boas maneiras. Há, assim, sempre um tom nostálgico que perpassa a compreensão do termo, mas essa nostalgia apenas nos desvela o sentimento de pesar por sua perda. Assim, mais do que uma realidade observável, hospitalidade soa como algo que se perdeu. Serve às gerações mais antigas como um signo da decadência das novas ou do esgarçamento do vínculo social nas grandes cidades, em expressões como, “hoje os jovens nem sabem conversar” ou “a gente nem mais conhece os vizinhos”. A HOSPITALIDADE PERDIDA Essas expressões, já banalizadas, são, no entanto, portadoras de sentido. Não há como deixar de notar que a sociedade secularizada pós-revolução industrial não sabe o que fazer com os rituais herdados do passado, em especial com os rituais da hospitalidade. O que as pessoas talvez não saibam, contudo, é que esse é um discurso que se repete de geração em geração. Quando Ulisses, em sua penosa odisséia achegava-se a um novo porto, perguntando se iria ser objeto de hospitalidade ou de hostilidade, ou quando os anjos bíblicos recompensaram generosamente Abraão pelo banquete que lhes foi oferecido com a gravidez tardia de sua mulher Sara, estavam implicitamente afirmando que a hospitalidade já não era a regra do convívio humano. Como explicar essa nostalgia? Em algum momento da aventura humana no planeta, a hospitalidade foi regra? Se os estudos de paleoetnologia1 permitem alguma ilação, é de se supor que ao final do paleolítico superior (antes, pois, de 8.000 A.C.) a então reduzida população da terra, não superior ao milhão de pessoas, já espalhada em pequenos grupos por todo o espaço do planeta hoje habitado, era marcada pela intensa expectativa de encontrar, receber e conhecer outros seres humanos, que, ao deixar de povoar o pequeno universo sociológico então existente, passou a se chamar hospitalidade. Que fatos tão importantes teriam acontecido em seguida e promovido tal desarranjo da percepção que os seres humanos tinham de si mesmos, a ponto de a palavra hospitalidade ter aparecido simultaneamente, com o seu verso, de mesma origem etimológica, a hostilidade ? A explicação mais conhecida é a que permeia a quase totalidade da obra marxiana: a assertiva do determinismo do meio de produção sobre o modelo de sociedade e sobre a cultura. Sem dúvida, tal assertiva tem aqui a sua evidência plena: a passagem do sistema coleta/caça do paleolítico para o sistema agricultura/pecuária do neolítico traz consigo a divisão social perversa do trabalho, a exploração do homem pelo homem e o conflito/luta de classes (MARX, 1981). Os estudos do historiador Leroi-Gourhan (1964-65) e do etologista Konrad Lorenz (1991) trazem uma reflexão complementar de grande valia para a compreensão do componente nostálgico implícito na noção corrente de hospitalidade: as necessidades da agricultura e da pecuária durante o neolítico (entre 8.000 e 3.500 A.C.) multiplicaram 8 vezes a população do planeta; os pequenos grupos crescendo e transformando-se em cidades, determinando o início da história da civilização2 nada mais é que a exacerbação desse movimento 3. Tal como também acontece entre os animais gregários, a disputa pelo território determina o início da agressão intra-específica, entre seres de uma mesma espécie. Territorium est terra plus terror, como bem nos lembra Montandon4. Com silos de cereais e rebanhos a defender, o homem passou a ser lobo do homem. 1 Aqui entendida como o estudo de populações pré-históricas ou mesmo de povos atuais que, no início do século XX ainda se mantinham no estágio de coleta e caça. 2 Não custa lembrar que civilização vem do latim civis (cidade). 3 É nesse sentido que se deve entender o quase desabafo de Konrad Lorenz: é possível ser hospitaleiro com onze pessoas; difícil é sê-lo para com 6 bilhões (1991, p. ). 4 Tal como a epígrafe deste artigo, esta lembrança de Montandon está em artigo (Hospitalidade: ontem e hoje) a ser publicado em nova coletânea organizada pelos docentes do Programa de Mestrado em Hospitalidade da Universidade Anhembi Morumbi, a ser publicada pela Ed. Pioneira-Thonson. Nunca saberemos ao certo se as comunidades coletoras e caçadoras foram efetivamente a representação desse paraíso que se perdeu. Leroi-Gourhan é incisivo neste ponto de sua reflexão: De qualquer forma, a nostalgia da solidariedade que se imaginava ter existido em uma época na qual ninguém acumulava mais do que os seus poucos pertences, deve ter adoçado as lembranças e fermentado os relatos orais que chegaram aos primeiros escritores do século VII e VI A.C. (data dos escritos de Homero e Hesíodo na Grécia e dos primeiros escritos bíblicos). Esses textos falam de uma humanidade arrogante e insensata que trocou a felicidade (o paraíso) pelo roubo dos segredos dos deuses (o fogo por Prometeu e do fruto da arvore do conhecimento por Adão) e que por isso foi castigada com a perda do paraíso5. A nostalgia da hospitalidade é, pois, também, a nostalgia de uma inocência perdida6 e, não por acaso, o uso da expressão hospitalidade soa, para muitos, como algo infantil, próprio de povos e de seres que ainda não contam com a autoconfiança necessária para enfrentar um mundo doravante hostil. Aqui, também, a ontogênese repete a filogênese. Da mesma forma, como o mundo foi se tornando desconfiado e cruel e os povos inventaram instituições e práticas para conviver nesse meio, a história da vida do indivíduo também é o progressivo abandono da ingenuidade que em tudo acredita em favor de uma atitude desconfiada e tensa diante do estranho. (RE)NASCE O TEMA DA HOSPITALIDADE Por que, então, um termo tão marcado ao longo da história pelo estigma da nostalgia e da ingenuidade transforma-se hoje em tema de ponta na discussão filosófica e científica? A resposta parece ser simples, já que nos coloca frente a um tema intensamente discutido nos dias atuais: as mazelas da globalização. Em primeiro lugar, as migrações humanas continuam até nossos dias a ser a única alternativa de populações que enfrentam seja a violência de tribos e vizinhos mais fortes, como ocorre na África, ou que enfrentam o caos econômico e a miséria, como é o caso de todas as sociedades atuais que não se enquadram no figurino de sociedade desenvolvida ou que conhecem regressão econômica acentuada e que 5 A “experiência total” que os resorts hoje buscam oferecer não seria também uma expressão dessa nostalgia? E impossível de ser recuperada, se examinarmos a situação das nossas tribos indígenas, após o contato com a civilização. 6 emigram, internamente para províncias mais ricas, ou externamente para países mais ricos. Para citar apenas exemplos de vizinhos, a população paraguaia em diáspora é superior à população autóctone; e, na Argentina já do início da década de 80, quando a crise econômica atual apenas se desenhava, a terceira província mais populosa do país era a população em diáspora. A mídia, uma das pontas de lança da globalização, acentua o fenômeno nos dias atuais. Mesmo o Brasil, que ao longo do século XX, teve seu crescimento populacional intensificado por emigrações de países europeus e asiáticos hoje conhece o estranho fenômeno do regresso (ou ao menos da conquista da dupla nacionalidade) por descendentes desses emigrantes. O passaporte dos países de origem dos avós, hoje desenvolvidos, representa a perspectiva de uma vida melhor ou, ao menos, um seguro de vida contra os percalços de um futuro que assoma tão instável. Em segundo lugar, a preocupação com a progressiva homogeneização de hábitos e costumes, com o conseqüente esvaziamento dos rituais que regem o vínculo social e marcam a identidade dos povos. Diga-se que a mídia desempenha um papel bastante relevante neste processo e no processo envolvido no movimento contrário de reação. Assim, temas como a hospitalidade, a conversação (BURKE, 1995; MILLON, 1999; ZELDIN, 2001) e a comunicação interpessoal, a identidade cultural, a tradição e os rituais (HOBSBAUN & RANGER, 1984) ganham nova atualidade e interesse. Neste caso, a hospitalidade transforma-se em tema da filosofia (a ética da hospitalidade incondicional dos filósofos franceses Emmanuel Levinas e seu discípulo Jacques Derrida), da sociologia (Anne Gotman [2001]), da Ecole de Hautes Etudes em Sciences Sociales de Paris) ou de estudos de semiologia e análise literária (equipe de Alain Montandon, em Clermond-Ferrand). A hospitalidade é também o mote da revisão e da recuperação da importância dos estudos de Marcel Mauss (Revue du Mauss, dirigida por Alain Caillé), em especial do seu clássico Ensaio sobre a dádiva e dom (1974), que, de uma forma quase unânime, constitui o texto fundador da teoria da hospitalidade, como será explicitado adiante. Uma outra vertente do interesse moderno pelo estudo da hospitalidade, de natureza completamente diferente da anterior, é a das migrações turísticas, fenômeno que vem se intensificando desde meados do século XIX, e que, com o desenvolvimento dos transportes, são vistas atualmente, de forma triunfalista, como a indústria do século XXI, das populações que viajam por prazer. Pessoas que viajam necessitam de acolhimento, envolvimento e a hospitalidade torna-se um tema caro à economia moderna, na proporção direta do que as pessoas consomem e gastam nessas migrações lúdicas. Não é, por acaso, assim, que nos EUA, por exemplo, o termo hospitalidade hoje remeta exclusivamente a instituições, empresas e pessoas envolvidas na emissão e recepção dessas migrações. ESCOLAS DE PESQUISA DA HOSPITALIDADE Com isso, temos desenhadas duas escolas de estudo da hospitalidade: • a francesa, que se interessa apenas pela hospitalidade doméstica e pela hospitalidade pública e que têm na matriz maussiana do dar-receber-retribuir a sua base, ignorando a hospitalidade comercial; • e a americana, que passa ao largo dessa matriz e para a qual tudo se passa como se da antiga hospitalidade restasse apenas a sua atual versão comercial, baseada no contrato e na troca estabelecidos por agências operadoras, transportadoras e de viagens e por hotéis e restaurantes7. Seria o caso de aceitar esse conflito teórico como natural e comodamente isolar o estudo da hospitalidade moderna da contribuição maussiana, como fazem os americanos, ou, inversamente, sob a perspectiva francesa, simplesmente deixar de considerar hotéis e restaurantes como espaços de hospitalidade ? Devemos aceitar que a pesquisa sobre hotelaria, turismo, gastronomia, eventos, etc, limite-se aos meros procedimentos e rotinas administrativas e continue ausente de uma perspectiva mais crítica ? Será que não seria mais rico para hotéis e restaurantes passarem a pensar suas práticas como portadoras da mais nobre das missões, de espaço privilegiado para a prática das tradições da hospitalidade, e tentar ir além desse impasse teórico? Para tentar superar esse impasse, surgiram duas iniciativas quase simultâneas: de um lado, o conjunto de autores ingleses reunidos na publicação de 7 O livro de Chon & Sparrowe (Hospitalidade: conceitos e aplicações, Thomson, 2003) é exemplar desta escola. Lashley & Morrison (2.000)8; de outro, o Programa de Mestrado em Hospitalidade criado pela Universidade Anhembi Morumbi, em São Paulo 9. Ambas as iniciativas, ainda que motivadas pelas temáticas do turismo e da hotelaria, tentam integrá-las dentro da matriz maussiana. ESTABELECENDO PONTES Por que franceses e americanos colocam-se em oposições tão opostas? A razão estaria no mesmo mundo dos negócios que tanto atrai os americanos e repugna aos franceses? Será que os franceses, dentro da sua tradição de pesquisa fortemente marcada pelos mesmos ideais da sua Revolução, experimentam algum constrangimento diante da idéia de considerar que os pobres emigrantes fazem parte de uma problemática semelhante à dos ricos turistas? Será que os americanos, dentro do seu pragmatismo, simplesmente relegaram ao esquecimento a hospitalidade não monetizável das casas, das cidades e países? É, então, necessário estabelecer pontes. Mas seria isso possível? O espectro da discussão ideológica faz-se aqui presente e é capaz de minar qualquer esforço. Mais do que nunca deve-se observar que negar as pontes é tão revelador de uma postura ideológica – ao menos antes de um observação sistemática de fatos – quanto tentar artificialmente criá-las. As hipóteses subjacentes às mencionadas iniciativas inglesa e brasileira tentam dar conta deste desafio e podem ser assim formuladas: • tanto a hospitalidade comercial como a hospitalidade pública nutrem-se da mesma matriz, a hospitalidade doméstica; • a inospitalidade tão característica da sociedade moderna e que vitima tanto os migrantes pode ser lida como uma falta de “hospitabilidade”10, de capacidade de hospitalidade tanto de anfitriões como de hóspedes; • o comércio moderno da hospitalidade humana efetivamente abole o sacrifício implícito na dádiva, ao trocar serviços por dinheiro, mas a hospitalidade sempre foi atributo de pessoas e de espaços, e não, de empresas; a observação deve, 8 Esta obra já foi traduzida para o nosso idioma e está no prelo da Ed. Manole, devendo ser publicada ainda em 2.003. 9 Já existe uma coletânea publicada de artigos dos docentes do programa (Dias, 2002). pois, dirigir-se para o que acontece além da troca combinada, além do valor monetizável de um serviço prestado, para o que as pessoas e os espaços proporcionam além do contrato estabelecido. Nesse campo, permanecem vivas a hospitalidade (e, por que não lembrar também?) a hostilidade humanas. A TEORIA DA HOSPITALIDADE Dar, receber e retribuir. Esse tríplice dever que Mauss descobriu no seio da socialidade (do núcleo central do social) nas sociedades arcaicas responde a uma dupla questão: a) qual é a regra de direito e de interesse que, nas sociedades de tipo atrasado ou arcaico, faz com que o presente seja obrigatoriamente retribuído? b) que força há na coisa dada que faz com que o donatário a retribua? Dos próprios fatos observados por Mauss, ressalta uma noção de hospitalidade que começa como uma dádiva e que não se limita à dinâmica das sociedades arcaicas. Ao contrário, essas leis não escritas da hospitalidade continuam a se exprimir com toda a sua força na hospitalidade doméstica atual: convidar alguém para ir à sua casa, oferecer abrigo e comida a alguém em necessidade. No caso, a dádiva sempre desencadeia o processo de hospitalidade, seja ou não precedida de um pedido de ajuda. O que é dádiva? Comecemos com a definição sociológica de dádiva proposta por Caillé (2002, p.142): “toda prestação de serviços ou de bens efetuada sem garantia de retribuição, com o intuito de criar, manter ou reconstituir o vínculo social”. Como diretor da Revue du Mauss, Caillé avança, com sua definição, um elemento essencial da noção de dádiva (e de hospitalidade): mais do que portadora de signo, a dádiva é um signo. Mais do que o dom, a dádiva, o que importa é o vínculo social (a ser) criado. Dar é sacrificar algo que se tem em nome de algo, notadamente no plano ético. O sacrifício é, pois, um componente essencial da hospitalidade. Mas isso não é tão fácil de entender. A dádiva acontece por princípios “nobres” como a ajuda ao próximo em necessidade, um sentimento religioso ou simplesmente filantrópico. Mas, mesmo nesses casos, essa ação de dar é plena de ambigüidades 10 Termo cunhado por Lashey & Morrison (2000, cap.3), estabelecendo uma distinção entre o indivíduo hospitaleiro (que gosta de receber, mas não tem essa “hospitabilidade”, essa qualidade da hospitalidade) e o anfitrião, dotado dessa hospitabilidade. ao longo de diferentes eixos: utilidade-gratuidade, interesse-desinteresse, saberdesconhecer as leis subseqüentes de receber e retribuir. Quem dá algo sempre tem algum interesse. É a “finalidade sem fim” de que fala Kant (1994) ou o “altruísmo interessado” de que fala Caillé (Ibidem, cap. IV), para quem o grande equívoco das religiões e desespero de teólogos é buscar a dádiva sem interesse. Essa lei-não-escrita da dádiva não abole o interesse, apenas exige que ele não se instrumentalize sob a forma de um negócio que se quer fechar, ou simplesmente a troca do que se oferece por um outro bem, principalmente o dinheiro. Não abole igualmente a perspectiva de uma retribuição futura, apenas exige que se aja como se a retribuição não fosse necessária. “Que gentil de ter lembrado!”. Quem não recorda esse dito tão pleno de sentido de uma dona-de-casa que nos convida ao receber as flores com que a regalamos? O dom deve ser recebido, aceito. Recusar um presente, uma honraria, uma lembrança é algo que ainda soa insultuoso mesmo em nossos dias. E esse ato de receber não é tão simples. Porém, receber algo de presente resulta na consciência de uma situação clara de desvantagem. Quem recebe a dádiva deve manifestar alegria mesmo sentindo que assume um débito para com aquele que doou. O donatário fica à mercê do doador. A única forma de livrar-se desse débito é... retribuir. Retribuir é reinstaurar o dom, a dávida. É re-instaurar o sacrifício, criar uma nova dádiva e colocar em marcha esse processo sem fim que alimenta o vínculo humano. Nesse sentido, a hospitalidade assume sua face mais nobre na moral humana, a de costurar, sedimentar e vivificar o tecido social. NA HOSPITALIDADE DOMÉSTICA Essa dinâmica acontece na hospitalidade doméstica, marcada pela socialidade primária, feita de intimidade, de aconchego (ao menos se já não abolimos, em nossas vidas, esse cuidado ancestral de reservar a intimidade do lar às pessoas com quem também desfrutamos de intimidade). Pode-se mesmo dizer que a hospitalidade doméstica é a matriz e o espaço de preservação dos rituais legados pela tradição, tanto na forma de recepcionar, como de hospedar, de alimentar e de entreter. E o que acontece nas situações regidas por todo tipo de socialidade secundária, baseada em crachás (você é o prestador do serviço, eu sou cliente), seja ou não esse vínculo permeado por uma retribuição financeira? NA HOSPITALIDADE COMERCIAL Quando alguém compra um pacote de viagem, efetua uma reserva num hotel, quando o aluno procura o setor de atendimento de sua escola, ele entende que tudo está pago com seu dinheiro, com seu cartão de crédito ou com seus impostos (no caso de serviços públicos). Receber um serviço condizente com o preço pago é condição de cliente e não de hóspede. A sua relação é vigiada pelo Código de Defesa do Consumidor e não pela lei-não-escrita da dádiva. Retribuir, no caso, precede o receber e interrompe o vínculo. Um contrato se finda, se extingue simplesmente, e todos os contratos esmeram-se em deixar claro esse momento. Não há sacrifício. Há troca, simplesmente. Não tenho porque agradecer o belo quarto de hotel, a piscina, a sauna, a boa refeição se todos esses itens já constituíam a minha expectativa de consumidor que já pagou o que já estava dentro da expectativa ou vai pagar adicionalmente algo pelo que acontece a mais. Isto significa que não existe hospitalidade nem sacrifício se existe o contrato? Então, por que, assim mesmo, tantas vezes fazemos questão de agradecer ao recepcionista, ao guia, às vezes até mesmo com lágrimas? Por que escrevemos cartas de agradecimento, elogiamos funcionários para suas chefias? Se tudo se resume a um contrato, por que pessoas mundanas (e, também, registre-se, pessoas não-mundanas) fazem questão de um relacionamento pessoal com o “maitre” (até mesmo, qual é o significado sociológico da metria?), com o “chef” de uma cozinha? Por que, ao final de uma refeição, fazemos questão de convidar esse “chef” à nossa mesa para agradecer a excelência dos pratos, mesmo sabendo que esse “chef” não sabia que os estava preparando para nós? Se não se acredita na hospitalidade comercial ou se não a consideramos hospitalidade (já que abole o sacrifício), devemos utilizar outras reflexões e fatos obscuros e que parece se querer deixarem na obscuridade como pontos de questionamento. É o momento de recolocar nosso ponto de vista inicial e que permanece como hipótese, não obstante tenhamos certeza que estudos empíricos encontrem à farta evidências do fato: na hospitalidade comercial, a hospitalidade propriamente dita acontece após o contrato, sendo que esse após deve ser entendido como “para além do” ou “tudo que se faz além do...” contrato. Recoloquemos o problema na forma da hipótese enunciada por Caillé (ibidem, p.148): “(a tríplice obrigação) continua agindo vigorosamente até no seio da socialidade secundária. Nenhuma empresa, privada ou pública, nenhum emprendimento científico poderia funcionar se não mobilizasse em benefício próprio as redes de primariedade cimentadas pela lei do dom”. Dessa forma, explica-se por que não podemos deixar de agradecer a dádiva de uma camareira que cuida ela própria de uma peça de nosso vestuário, além do horário de recepção dessas peças, ou que “sacrifica” uma parte de seu tempo de lazer em hora-extra que não será remunerada pelo seu contrato pessoal com o empregador e nem sabe se será retribuída por nós. Como deixar de emocionar-se com o recepcionista que ao saber de um acidente com um membro de nossa comitiva, ao invés de burocraticamente nos dar o número de telefone e da polícia, mostra-se humanamente solidário conosco, deixando suas tarefas rotineiras para fazer ou para conseguir alguém que nos auxilie? Como deixar de reconhecer que, nunca somos tão frágeis como quando em território estranho, e que essa “compaixão” para conosco é a marca da solidariedade humana e não pode ser prevista em nenhum contrato? É tão estranho, assim, ao menos imaginar que aquela refeição estava tão ansiosamente aguardada, que o resultado final somente pode ser resultado do fato de o “chef” ter adivinhado a nossa presença e a nossa expectativa? Será estranho agradecer a um “maitre” que percebe a nossa enrascada ao saber que não existe mesa e que esse fato pode abortar o nosso sonhado e planejado encontro romântico? A resposta parece ser óbvia. Esses gestos trazem o reconhecimento à hospitalidade, à dádiva de que recebemos, mesmo sabendo que essas pessoas, dentro da boa norma do “dar”, subentendem a expectativa da retribuição da dádiva aceita, seja sob a forma de um cumprimento, de um elogio ao chefe, do registro enfático da dádiva “desinteressada” recebida na ficha de avaliação que tantas vezes preenchemos no momento do “check-out”. Quando há dinheiro ou objeto material envolvido no processo, o constrangimento do pesquisador é grande. Mas, no caso, uma reflexão sobre o gesto pode ser esclarecedora. Analisemos o caso da gorjeta ou ao menos de algumas gorjetas (naturalmente devemos retirar, para efeito da discussão, o gesto tragicômico do empregado que estende a mão como que afirmando que quer a retribuição em dinheiro). Recebemos o serviço, gratificamos (não faríamos o mesmo se a dádiva tivesse partido do proprietário ou da proprietária do hotel ou restaurante), mas o processo de dar-receber-retribuir continua em marcha. Essa dádiva/retribuição torna o receptor que a aceitou imediatamente disponível para retribuir. NA HOSPITALIDADE PÚBLICA Quando recebemos em nossas casas ou quando, como funcionários de um hotel, efetuamos o “check-in” de um hóspede, nem sempre temos consciência de que o espaço real da hospitalidade não é a nossa casa ou o hotel e sim a cidade. Por melhor que seja a nossa hospitalidade doméstica ou os cuidados com que um hotel cerca o hóspede, seu interesse está na cidade que recebe. Se o visitante não apreciar a cidade, ele não voltará nem para nossa casa nem para nosso hotel. Dessa forma, a hospitalidade doméstica e a hospitalidade comercial são espaços preliminares ao verdadeiro espaço da hospitalidade, que é a cidade. Se os nossos hoteleiros são hoje os maiores incentivadores das políticas de eventos e se um evento é uma justificativa adequada para o convite a que um amigo nos venha visitar é porque ao menos implicitamente aceitamos tal assertiva. É no espaço público que a hospitalidade assume sua dimensão política, com imensos desafios, sobretudo os relativos aos movimentos migratórios. A hospitalidade pública mediada pelo interesse econômico causa aqui os maiores estragos. Habitualmente, cidades e países admitem e incentivam a visita de pessoas capazes de gastar ou de produzir riquezas. E quando assume claramente o intuito de selecionar públicos de seu interesse econômico, mostra a sua face mais perversa. Neste domínio, a crítica inflamada e contundente de Derrida (1999) e seu brado por uma hospitalidade incondicional assumem toda a sua atualidade e importância. É importante acrescentar, contudo, que, mesmo no domínio econômico, tal lógica é estúpida. Um jovem mochileiro que se contenta com o banco de uma estação rodoviária para dormir, no futuro certamente efetuará um balanço de suas experiências de hospitalidade antes de decidir o destino no qual gastará o dinheiro que já possui. E os próprios EUA são o exemplo de um país que se construiu com os braços de migrantes que chegaram carregados com os poucos e únicos pertences de que dispunham e que aos poucos construíram a sua vida e do país que os acolheu. E, em qualquer circunstância, pesará fortemente o balanço hospitalidade/hostilidade. A HOSTILIDADE A hostilidade é a outra face da hospitalidade. Afinal, lembra Caillé, ir ao encontro de alguém era uma expressão contida no termo latino “ad-gredior” da qual resultou o nosso termo agressão. Mas o ritual da hospitalidade já é, em si, um antídoto contra a hostilidade, o que se pode traduzir singelamente no sorriso de acolhimento com o qual desarmamos alguém com semblante pouco amigo a quem nos dirigimos. O sentido antropológico da etiqueta enquanto ritual de minimização da agressividade humana pode ser aqui sentido em toda a extensão. Estar à altura dessas situações exige o domínio do ritual social. A boa etiqueta (retiremos destas reflexões a noção de etiqueta enquanto fórmula de alpinismo social ou de denotar uma condição social superior, presente em tantos manuais) proporciona às pessoas hospitaleiras e dotadas de “hospitabilidade”, a capacidade de manter o vínculo social. Mas, pode-se dizer também que, no plano doméstico, a hospitalidade é mais fator de cimento do que de esgarçamento do tecido social. Já na sociabilidade secundária da hospitalidade comercial as coisas se passam de forma bem diferente. As situações de hostilidade e agressão se multiplicam. Nenhum indivíduo está tão à beira de um colapso nervoso e de descarga agressiva de sentimentos como o hóspede que chega de uma longa viagem e não encontra o receptivo de sua operadora ou que chega com as malas à recepção de um hotel e percebe o embaraço do recepcionista a procurar onde está a sua reserva. Mas as situações de hostilidade não se resumem a esse plano de contatos individuais. Hoje, habitantes de cidades e estações de veraneio mais procuradas não escondem sua aversão por esse turista que engarrafa o trânsito, consome à exaustão reservas precárias de infra-estrutura de água, energia, tratamento de lixo e esgoto, causa congestionamentos monstruosos de trânsito, provoca aumentos nos preços de bens e serviços. Existe hábito tão detestável do ponto de vista da hospitalidade ou tão hostil como aquele, presente em locais de grande demanda turística, de segregar e carregar de preconceitos os lugares “feitos para turistas”, nos quais tudo o que se vê é “fake” e custa o dobro do preço ? Quando, em país estranho, conseguimos superar as barreiras ou lacunas da hospitalidade comercial e conseguimos adentrar a hospitalidade doméstica de alguns desses lugares e ouvimos o famoso “vamos leválo a um endereço que não é divulgado para turistas, onde se come bem e se paga o preço adequado” sentimos o carinho do gesto, mas ao mesmo tempo não deveríamos perguntar-nos o que acontece, aconteceu e acontecerá conosco nos lugares nos quais não temos acesso à instância doméstica da hospitalidade ? O que se quer demonstrar aqui é que tanto o não-cumprimento das cláusulas de um contrato, como a falta de previsão da carga turística suportável desconhecem e violam as leis-não-escritas da hospitalidade, mais do que as leis escritas de defesa do consumidor. Em outras palavras: qualquer quebra de contrato é fonte de agressividade, mas a quebra de um contrato em situação de hospitalidade parece agredir-nos mais ainda. Da mesma forma que a hospitalidade começa após cumprido o contrato comercial, a quebra desse contrato fere-nos ainda mais. Uma das hipóteses é que (isso certamente seria comprovado em estudos empíricos), nunca somos tão frágeis como em terra estranha. Se somos mais ricos, em situação turística, do que no habitual do nosso cotidiano, é porque em terras estranhas, somente o dinheiro pode nos salvar em emergências. Dito de outra forma: confiamos/desconfiando do contrato comercial, mas nada nos leva acreditar na hospitalidade. Além do mais, como está fartamente estudado em pesquisas realizadas, não se vende uma viagem, vende-se um sonho. Uma quebra de contrato pode ser contornada. Mas um sonho quebrado parece perdido para sempre. PARA PENSAR Estas reflexões projetam muitos desafios. Em primeiro lugar, a lembrança basilar: hospitalidade é interação entre seres humanos com seres humanos em tempos e espaços planejados para essa interação. Tudo se passa, como se a mesma camareira mencionada anteriormente nos dissesse o seguinte: “a sua roupa não pode ser levada, limpa e passada, porque o contrato que você assinou com minha empresa prevê que essa roupa seja entregue até um prazo que já se esgotou; mas, como pessoa humana, entendo a sua necessidade e vou, pessoalmente e por minha conta, oferecer esse gesto de hospitalidade”. Daí decorre que a preparação de pessoas para a hospitalidade é o primeiro desafio. O atual planejamento turístico, que, na realidade, é um planejamento da hospitalidade, deve estar atento a muitas rubricas desse desafio: cursos variados para profissionais do setor, para motoristas de táxi, montagem de estandes de orientação e mesmo de polícia turística, conscientização nas escolas, formação de gerentes, de profissionais de hospedagem e restauração. Mas há ainda um longo caminho até que esses currículos sejam menos carregados de procedimentos e mais de conscientização sobre a “hospitabilidade”. Se aceitas as reflexões acima, o passo seguinte será certamente o repensar dos nossos programas de formação, nos diversos níveis, de profissionais do turismo, da hotelaria, de eventos, de lazer, de gastronomia, incluindo não apenas aulas como oficinas de vivência nos diferentes domínios, tanto os espaços (doméstico, público, comercial e virtual), como os tempos (receber, hospedar, alimentar e entreter) da hospitalidade. Hoje, nuvens negras rondam o universo do turismo. Companhias aéreas bradam por uma reengenharia do setor, hotéis e restaurantes antes lotados têm altas margens de ociosidade. Os motivos arrolados são os epidérmicos: terrorismo, guerra, violência, epidemias, falta de confiança na tecnologia de transportes (como já perguntou alguém, como ter segurança em aviões construídos com peças sempre compradas pelo menor preço ?). Esses problemas existem e fazem parte do que se chama de forte sensibilidade do fluxo turístico. Não é desses problemas que se quer falar aqui. Essas conjunturas vêm e vão. De qualquer forma mostram como são inoportunas as reflexões triunfalistas sobre o turismo (“a indústria que mais cresce no mundo”, “a indústria do novo milênio”) até que se ataque a verdadeira doença do turismo que é a inospitalidade, na raiz de todas as manifestações que vimos acima sobre hostilidade. Como você será recebido? É uma pergunta que hoje o turista se faz com muito mais ênfase do que fazia há 30 anos atrás. Essa consciência sutil hoje se instaura nas mentes, com visibilidade cada vez maior do que a qualidade final da viagem. É mais importante do que o simples registro mundano da viagem para amigos e parentes. Outra questão: até quando vamos pensar apenas nos que viajam sem pensar também sobre os que recebem? É justo colocar todo o ônus do crescimento econômico advindo do turismo nas costas da população residente? Quando vamos pensar nas patologias de cidades e condomínios de veraneio que esquizofrenicamente se agitam em algumas datas para se transformarem em locais fantasmas na maior parte do ano ? Quando a sociedade, finalmente confrontada à escassez, vai se insurgir contra tal dilapidação de recursos ? Como valorizar a identidade local, se os moradores se sentem às vezes agredidos pelo comportamento de visitantes que não foram convidados ? Como despejar numa localidade uma horda turística em número já registrado até dez vezes superior ao da população residente ? O estudo moderno da hospitalidade não pode, pois, ignorar esse campo do comércio da hospitalidade. E, reciprocamente, talvez esteja aí o segredo desse abrete-sésamo tão buscado pelo turismo moderno – a tão decantada qualidade ou diferencial de serviços, a responsabilidade social ou qualquer outro termo que a moda mercadológica invente para incentivar a melhoria dos serviços comerciais de hospitalidade. O próprio deslizamento do termo hospitalidade ao longo deste parágrafo já mostra o nosso ponto de vista central: existe, sim, o exercício e o estudo da hospitalidade em serviços do turismo receptivo comercial. Os estudos da hospitalidade querem e precisam resgatar, sobretudo dentro da hospitalidade comercial, as verdadeiras virtudes da hospitalidade, com todos os desafios que esta diretriz implica, quais sejam: repensar as cargas turísticas, repensar os receptivos locais, repensar a formação do pessoal envolvido e, resumidamente, auxiliar as comunidades a pensar um estilo de hospitalidade e educar os turistas para a “hospitabilidade”. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BURKE, Peter. A arte da conversação. São Paulo: UNESP, 1995. CAILLÉ, Alain. Antropologia do dom. Petrópolis: Vozes, 2002. CHON & SPARROWE. Hospitalidade: conceitos e aplicações. Thomson, 2003 DERRIDA, Jacques. Manifeste pour l’hospitalité. Grigny, Paroles d’Aube, 1999. DIAS, Célia (org.). 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