A ESCOLA CULTURAL COMO RESPOSTA À DISPERSÃO E
DESARTICULAÇÃO CURRICULAR
Ramiro Marques
Instituto Politécnico de Santarém
Passada quase uma década após a reorganização curricular dos 2º e 3º ciclos, que criou
as áreas curriculares não disciplinares, já é possível fazer um balanço crítico, assente
não apenas na filosofia pedagógica que a fundamentou, mas também, nos efeitos que
essa revisão teve 1) na diluição dos papéis do professor, 2) na dispersão curricular e 3)
na erosão da autoridade académica. Analisaremos, mais à frente, esses efeitos e
estabeleceremos um confronto analítico entre a filosofia pedagógica sociocêntrica que
lhe está subjacente e a filosofia pedagógica personalista da escola cultural. Por último,
mostraremos como a aplicação da pedagogia da escola cultural ao desenvolvimento do
currículo poderá evitar os efeitos negativos e potenciar um programa educativo centrado
simultaneamente no cânone cultural (através da dimensão curricular restrita) e na
criação e fruição da cultura (através das dimensões de complemento curricular e
interactiva).
Importa, desde já, começar com alguns números. Actualmente, nos 7º, 8º e 9º anos de
escolaridade, 15% das horas curriculares são destinadas às áreas curriculares não
disciplinares. Todos os anos, os alunos são obrigados a frequentar, por semana, 225
minutos (90 minutos, mais 90 minutos, mais 45 minutos), repartidos pela Área de
Projecto, Estudo Acompanhado e Educação Cívica. Enquanto isso, frequentam apenas 2
blocos de 90 minutos de Língua Portuguesa, 2 blocos de 90 minutos de Matemática e 2
blocos de 90 minutos de Ciências Humanas e Sociais (História e Geografia) no 7º ano e
dois blocos de 90 minutos mais um bloco de 45 minutos nos 8º e 9º anos. Nas Ciências
Física e Naturais (Ciências Naturais e Física e Química), frequentam dois blocos de 90
minutos no 7º e no 8º anos e um bloco de 90 minutos mais 45 minutos, no 9ºano.
Há dois factos a ter em conta na análise que se pode fazer às áreas curriculares não
disciplinares: “comem” 15% das horas curriculares e têm carácter obrigatório. Os
defensores da introdução destas áreas curriculares não disciplinares costumam apontar
as seguintes vantagens: são espaços de aprendizagem autónoma onde se cultivam
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competências de pesquisa, de selecção e tratamento da informação, para além de serem
espaços de educação para a cidadania. Pergunta-se: e os outros espaços curriculares não
são? Por que razão dedicar 15% dos tempos curriculares a áreas não disciplinares, sem
verdadeiros conteúdos, quando as vantagens apontadas atrás podem, perfeitamente, ser
garantidas nos tempos dedicados às disciplinas? Ou será que os defensores dessas áreas
não disciplinares deixaram de acreditar que tal é possível nas áreas disciplinares? Ou
simplesmente optaram por criar guetos no currículo porque não acreditam no potencial
formativo da dimensão lectiva? E por que razão ignorar o potencial que a dimensão de
complemento curricular tem na educação ética e cívica dos alunos? Conhecemos as
justificações. São justificações antigas. Essas justificações conduziram alguns dos
defensores destas áreas curriculares não disciplinares a criarem uma linguagem
pedagógica que muito faz lembrar a linguagem criada por George Orwell, na romance
1984, como instrumento de condicionamento e controlo social das massas. De repente,
o aluno passou a ser chamado de “aprendente” e o papel de transmissão de informações
e conhecimentos diluído numa diversidade de “novas funções” do tipo “facilitação da
aprendizagem”, “dinamização de situações problemáticas” e “animação”. A profissão
de professor passou a ser encarda como mais uma profissão de ajuda, diluindo-se numa
miríade de funções sociais que estão a fazer da escola uma instituição de guarda e não
de ensino e de formação. Daí à diabolização das disciplinas e dos seus conteúdos vai um
passo que já foi dado em muitos casos. À medida que a sociedade se vê impotente para
resolver novos problemas, o Estado vai transferindo para a escola e para os professores
a responsabilidade de os resolverem, tornando a profissão docente numa profissão
impossível. Falar de disciplinas, de ensino, de exposição de conhecimentos e de
transmissão de informações entrou no índex do pedagogicamente incorrecto. Em vez
disso, fala-se de construção de conhecimento e participação dos alunos em projectos de
investigação-acção. A aprendizagem por recepção, tão necessária à retenção da
informação e à compreensão dos conhecimentos, foi banida do discurso e da prática
formativa e os textos normativos e diplomas legais há muito que a colocaram no índex
do pedagogicamente incorrecto. O mesmo aconteceu com a aprendizagem por
observação e por imitação, a qual, sob o rótulo de aprendizagem rotineira e não
significativa, foi incluída na lista de más práticas. Todos os actos de instrução que não
conduzam à construção do conhecimento pelo aluno foram tidos como inapropriados. O
currículo deixou de ser encarado como um conjunto articulado e coerente objectivos,
conteúdos, estratégias e recursos que visa potenciar determinadas aprendizagens nos
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alunos e passou a ser visto como um processo em contínua reconstrução. O currículo
passou a ser o centro da mudança. A razão da mudança.
Os que, tal como nós, se opõem à introdução dessas áreas curriculares não disciplinares
dão a seguinte justificação: são uma perda de tempo e de recursos; as competências que
se desenvolvem nessas áreas devem ser uma preocupação constante de todas as
disciplinas e não remetidas para guetos não sujeitos a avaliação; a educação cívica deve
ser uma preocupação de todo o currículo, assumindo-se como uma aprendizagem
transversal e não apanágio de uma área específica, porque a criação de uma área onde se
ensina educação cívica não dá garantias de pluralismo e imparcialidade.
O processo de reconstrução contínua do currículo tem implicações gravosas para os
professores e os alunos. Os professores dificilmente conseguem acompanhar o ritmo das
mudanças curriculares. Uma grande parte deixa de investir na actualização científica
porque tem a percepção de que, por mais que se queira actualizar, não consegue saber,
antecipadamente, quais são as tendências de mudança curricular. Esse desconhecimento
provoca no professor desânimo e desorientação. Quando o professor tem as matérias
preparadas e os dossiers pedagógicos actualizados, depara-se com uma nova mudança
curricular que tem como efeito a desactualização de todo o trabalho previamente feito.
As consequências são inevitáveis: professores mal preparados e sem recursos
pedagógicos adequados às mudanças súbitas e constantes.
Um professor mal preparado, isto é, que conhece insuficientemente os programas, que
domina mal os novos conteúdos e que não dispõe de recursos pedagógicos suficientes, é
um professor que tende a potenciar a indisciplina dos alunos, por motivo da sua
desautorização. A falta de autoridade do professor salta à vista, quer porque a sua falta
de preparação foi detectada pelos explicadores dos alunos, quer porque a forma pouco
firme como dá as aulas é percepcionada pelos alunos como uma manifestação de
incompetência. Daí à indisciplina geral e à confusão vai um passo curto. As
consequências são inevitáveis: o professor não ensina e o aluno não aprende.
O modelo da escola cultural tem uma resposta adequada para estes problemas. É
possível e desejável ensinar bem, em ambientes ordeiros e saudáveis, mantendo a
autoridade e o prestígio do professor, e, simultaneamente, assegurando a liberdade,
recusando o autoritarismo e dando espaço para a fruição e a criação cultural. O modelo
da escola cultural tem uma resposta e essa solução reside na forma como Manuel
Patrício encara o programa educativo escolar, opondo a visão unidimensional à visão
pluridimensional. Em vez de esgotar o programa educativo escolar na dimensão
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curricular, seja ela disciplinar ou não disciplinar, e no carácter heteroprogramático de
todos os actos educativos, Manuel Patrício alarga o programa educativo a várias
dimensões: a dimensão curricular restrita, ou lectiva, a dimensão de complemento
curricular ou extralectiva, a dimensão interactiva onde a alma da escola se pode afirmar
e a dimensão ecológica como síntese criativa de todas as dimensões.
A dimensão curricular restrita é a dimensão das disciplinas, com os seus conteúdos e
competências próprias e onde se faz a transmissão do cânone cultural, isto é, das
melhores realizações científicas, literárias, artísticas e tecnológicas da Humanidade. É aí
que o ensino assume, por excelência, os modos da exposição, exemplificação e
demonstração. É o espaço da socialização cultural, da preservação, da conservação da
cultura. A dimensão de complemento curricular é autoprogramática e é o espaço de
eleição para a criação cultural, do respeito pelas vocações e pelos interesses dos alunos.
É o espaço da criação, da inovação, da espontaneidade, da liberdade e da autonomia.
O modelo da escola cultural preza a construção de um projecto educativo autónomo,
isto é, que não seja uma mera aplicação do dispositivo normativo proveniente do
Ministério da Educação ou das Direcções Regionais de Educação. A ênfase colocada na
dimensão interactiva, manifesta na realização de actividades e projectos que sejam o
resultado do trabalho conjunto de todos os clubes escolares, destina-se a dar visibilidade
a esse projecto educativo. É essa realidade que ajuda a construir a dimensão ecológica
da escola e que marca a singularidade do seu projecto educativo.
Quer a dimensão de complemento curricular quer a dimensão interactiva são
autoprogramáticas, isto é, não obedecem a planos ou normas provenientes do exterior da
escola, sendo, pelo contrário, a tradução da vontade local, expressa nos planos de
actividades dos clubes escolares, aprovados em conselho pedagógico.
Com uma estrutura curricular deste tipo, dá-se espaço, quer para as actividades de
ensino que traduzem o currículo nacional, as quais são, por excelência,
heteroprogramáticas e obrigatórias e têm lugar nos tempos atribuídos às disciplinas,
quer para as actividades autoprogramáticas, que têm lugar nos clubes escolares. Ficam,
assim, assegurados princípios da equidade e da diversidade. No primeiro caso, há a
garantia de que todos os alunos, independentemente da sua origem regional, social ou
cultural, beneficiam de um currículo nacional e de aprendizagens comuns no âmbito da
componente curricular restrita. No segundo caso, assegura-se o respeito pela diversidade
das vocações e interesses pessoais no âmbito dos clubes escolares e das actividades de
interacção.
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Tendo acompanhado de perto o processo de criação e evolução do movimento da escola
cultural, tenho-me interrogado sobre as razões que levaram tantos ideólogos, pedagogos
e políticos a combatê-lo. Interrogo-me sobre as razões profundas que levaram o então
Ministro da Educação a pôr fim aos apoios institucionais ao Projecto da Escola Cultural.
Pergunto por que razão uma grande parte das revistas de Educação optou por silenciar e
ignorar o movimento da escola cultural e a enorme e diversificada produção pedagógica
que lhe está associada. E por que razão, as bases programáticas da Escola Cultural, bem
como as centenas de projectos educativos influenciados pela pedagogia da Escola
Cultural são tão pouco estudados nos Cursos de Formação de Professores? Há três
razões fundamentais. A primeira relaciona-se com a ideologia. A segunda com o
mercado. A terceira com a pedagogia.
A escola cultural tem uma ideologia clara: o personalismo. Trata-se de um personalismo
que tem as suas fontes na cultura grega, que se alimenta da tradição cultural cristã, e que
se enriquece com as perspectivas axiológicas de Nicolai Hartmann, de Max Scheler,
Mounier e Levinas. Estruturalmente, a escola cultural é fortemente antitotalitária e
recusa todas as ideologias que dissolvem o indivíduo na comunidade e esmaguem a
singularidade da pessoa.
A escola cultural não é contra o mercado da educação, mas também não defende o fim
da intervenção do Estado no ensino. Optando por uma posição intermédia e realista, a
escola cultural defende que há espaço para uma rede pública, para uma rede privada e
para uma rede solidária. Os ideólogos que defendem o fim da rede pública da educação
viram na resposta da escola cultural uma ameaça aos seus intentos. O programa
educativo multidimensional dá resposta, quer à necessidade de assegurar para todos um
currículo nacional, quer à necessidade de respeitar as vocações de cada um e de
potenciar oportunidades de fruição e criação cultural. Assegura o bom desempenho das
duas grandes funções da escola: preservar a herança cultural e proporcionar
oportunidades para a criação e a fruição cultural. Se as escolas da rede pública
funcionarem bem e cumprirem os seus objectivos educativos, deixa de haver pressão
social para a expansão do mercado de educação. É sabido que, quanto mais deficiente e
ineficaz for a escola pública, mais espaço se abre para a criação de escolas privadas.
A pedagogia da escola cultural é realista e pragmática. Não ignora os contributos da
escola nova mas vai muito além. Ultrapassa a questão, vazia de sentido, das
competências versus conteúdos. Não há competências que não se relacionem com
conteúdos e só os conteúdos dão significado às competências. A Educação não visa
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apenas proporcionar o acesso à informação, nem tão pouco apenas o saber ser ou saber
fazer. Visa tudo isso e uma escola de qualidade não se pode contentar com menos do
que isso. A escola cultural dá uma resposta equilibrada a todas essas questões, sem
esquecer o essencial: a liberdade e a singularidade de cada pessoa. A primazia da pessoa
face ao grupo, à comunidade e à sociedade.
O Homem que estamos aqui a homenagear passou a vida inteira a falar e a escrever
sobre isto. Só podemos desejar que não pare de o fazer e que o faça ainda durante
muitos anos para regozijo de todos aqueles que se habituaram a ver no seu discurso e na
sua acção uma visão esclarecida, inteligente e realista.
Bibliografia
Marques, R. (2000). A Arte de Ensinar. Lisboa: Plátano Edições Técnicas
Patrício, M. (1993). Lições de Axiologia Educacional. Lisboa: Universidade Aberta
Patrício, M. (1995). Novas Metodologias em Educação. Porto: Porto Editora
Quintana Cabanas (2002). Teoria da Educação: Concepção Antinómica da Educação.
Porto: Edições Asa
Quintana Cabanas, J. M. (2005). Liber Amicorum: bases para uma Pedagogia
Humanista. Madrid: UNED
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