Henrique Fontes A COMPANHIA DRAMÁTICA JULIETA DOS SANTOS E O MEIO INTELECTUAL DESTERRENSE 1998 - Edição Informatizada Editora Luz e Fontes do Saber - OSG Florianópolis/SC A COMPANHIA DRAMÁTICA JULIETA DOS SANTOS E O MEIO INTELECTUAL DESTERRENSE Na década de 60, o primeiro capítulo deste trabalho - A Organização da Companhia Dramática Julieta dos Santos e parte do segundo capítulo - A Companhia Dramática Julieta dos Santos na Cidade do Desterro - foram, por mim, datilografados e reproduzidos na copiadora a álcool “Fide-cópia”, e o Papai ofereceu alguns exemplares a uns amigos, entre eles, ao Dr. Andrade Muricy, autor das Obras Completas de Cruz e Sousa. Para também participarmos das comemorações do Centenário da morte de Cruz e Sousa, - 19 de março de 1998 resolvemos fazer um Caderno intitulado Henrique da Silva Fontes e João Cruz e Sousa, o nosso Poeta-maior. Recorremos, então, ao arquivo do Papai para tornarmos a imprimir o estudo sobre a Companhia Dramática Julieta dos Santos, e lá encontramos o final do segundo capítulo e o terceiro sobre O meio intelectual Desterrense, ambos já datilografados. Cremos que foi neste ponto que o Papai ficou no seu trabalho, sem, contudo, o ter concluído. Não seriam estes capítulos o seu ponto final! Razões houve para que ele não chegasse ao fim ! Assim, os números de (1) a (33) ficaram sem as especificações que seriam feitas nas respectivas notas. Florianópolis, março de 1998. Theresinha de Jesus da Luz Fontes A COMPANHIA DRAMÁTICA JULIETA DOS SANTOS E O MEIO INTELECTUAL DESTERRENSE Henrique Fontes I A ORGANIZAÇÃO DA COMPANHIA DRAMÁTICA Era natural, nos fins do ano de 1882, na Capital da Província de Santa Catarina, o ansioso aguardamento da Companhia Dramática a que dava nome a menina Julieta dos Santos. É que esta brasileirinha, que entrara a rivalizar com a genial atrizinha italiana, Gemma Cuniberti, não era nenhuma desconhecida para a platéia do Teatro Santa Isabel, pois nele havia estreado a 24 de abril de 1879, aos seis anos e três meses de idade, ao lado da grande atriz Ismênia dos Santos, e merecera registro na crônica teatral. Francisca Julieta dos Santos - tal o seu nome completo - nascera em Alegrete, na Província do Rio Grande do Sul, a 22 de janeiro de 1873. Seus pais Irineu Manoel dos Santos e Rita Leal dos Santos - e seus avós maternos - José Maria Leal Ferreira e Francisca Leal Ferreira - eram artistas dramáticos e tinham trabalhado no Rio de Janeiro e nas províncias do Sul. Filha e neta de atores, viu a luz e fez-se menina no tumulto e nas peregrinações de gente de teatro; e, tendo-lhe morrido a mãe no verdor da idade, foi criada por sua avó, que ficou sendo sua segunda mãe e a sua primeira mestra. Em 1879, já falecido o avô, foram seu pai e seu tio Joaquim Leal Ferreira contratados para a Companhia Dramática organizada na Cidade de Desterro pelo conceituado ator e empresário o português Guilherme da Silveira e de que Ismênia dos Santos, chegada com eles do Rio Grande do Sul a 27 de fevereiro, foi a primeira atriz. Entre as peças de maior sucesso da Companhia estava “Maria Antonieta”, famoso drama de Paolo Giacometti, em que Ismênia dos Santos fazia o papel da protagonista, no qual se haviam celebrizado a grande trágica italiana Adelaide Ristori e a preclara atriz portuguesa Emília Adelaide. O papel de Delfim da França, o filho da desgraçada Rainha, foi dado à menina Francisca. O drama subiu à cena a 24 de abril de 1879. “A linda e simpática rainha, - comentou o crítico teatral do jornal “O Despertador” - esteve sempre ante as vistas dos espectadores admirados e surpreendidos pelo progressivo e gigante trabalho da insigne artista ( ... ). Um bravo entusiástico à nossa primeira atriz! Luís XVI foi belamente representado pelo inteligente ator Guilherme ( ... ). O Sr. Ferreira nos deu um Lafayette que nada deixou a desejar, quer pelo lado do trabalho artístico, quer pelo característico e vestuário, que foram os mais apropriados possíveis. Em geral, o drama correu bem, todos os artistas se esforçaram para o bom desempenho de seus papéis, o que conseguiram mais ou menos”. E segue-se um elogio à pequenina estreante : “Seria uma injustiça deixar de aqui mencionar a menina Francisca, que, no seu papel de Delfim, soube atrair a atenção do público pela naturalidade com que representou.” O aparatoso drama, apesar da sua demorada representação, que, começada às 20 horas e 45 minutos, só terminou perto das duas da madrugada, agradou e foi novamente programado. Mas a menina adoecera e Guilherme da Silveira quis fazê-la substituir, ao que se opôs a primeira atriz: - “Não quero. Nunca trabalhei com uma criança que tanto me agradasse. Não trabalho com outra, ou não vai a peça ou há de esperar-se que a Chiquinha fique boa ...” A “menina Francisca” também teve papel no drama “Fru-fru”, encenado a 11 de maio de 1879, em espetáculo de que foi beneficiada a insigne Ismênia dos Santos. Mas nenhuma notícia ficou de como se aveio na representação.. A 27 de maio de 1879, depois de ter trabalhado na Cidade do Desterro desde os princípios de março, embarcou a Companhia para a Província de São Paulo. Noticiando a partida, disse o jornal “O Conservador”: “O Sr. Guilherme, Dª. Ismênia, Ferreira e seus companheiros deixam gratas recordações ao povo desta Cidade.” Em São Paulo, tomou a família da menina Francisca parte em uma Companhia dirigida por Luís Braga Júnior, que fez excursões de pequeno vulto na Província, mas em que a menina não recebeu nenhum papel. Mudou-se depois para a Capital. Aí, num espetáculo em benefício do grande ator português Eduardo Brasão, que, com a distinta atriz italiana Celestina Paladini, trabalhava na Companhia Simões, procurou a Sra. Francisca Leal Ferreira dar notoriedade à netinha. Para isso fê-la decorar e recitar uma poesia, com a qual a menina surpreendeu e arrebatou o corpo cênico e a platéia. Paladini, abraçando-a, disse-lhe comovida: “Saúdo em ti, no futuro, a primeira atriz brasileira”. Brasão, beijandolhe na testa, chamava-a “A minha ilustre colega”. Pouco depois, agregou-se a família ao ator e empresário Ribeiro Guimarães, começando então a menina a trabalhar com o nome de Francisca dos Santos. A Companhia andou pelo norte de São Paulo, esteve em Campos, Petrópolis, Juiz de Fora e São João d’El Rei, dissolvendo-se nesta última Cidade. Regressou novamente a família Leal Ferreira para a cidade de São Paulo, onde, em março de 1881, com ela entrou em entendimento o jovem ator Francisco Moreira de Vasconcelos, então sócio de uma Companhia que trabalhava no norte da Província e que ficara desfalcada de atores. Moreira de Vasconcelos mandou propor-lhe contrato. Na família Ferreira havia os artistas Joaquim Leal Ferreira, filho, Francisca Leal Ferreira, Jesuína Leal e Irineu dos Santos. Francisca dos Santos ainda não tinha reputação teatral; mas foilhe também indicada: menina de oito anos, que estrearia com a família, recitando “O Opulento”, poesia muito em voga nas camadas populares. Moreira de Vasconcelos encheu-se de curiosidade pela menina-atriz, mas só a viu no palco a 10 de março desse ano de 1881, em São José dos Campos, na Província de São Paulo; e ficou deslumbrado. Demos-lhe a palavra. “Lépida, esbelta, bem conformada, donairosa no andar, uns olhos castanhos, vivos, palpitantes de luz, buliçosos, sem um ponto fixo, um riso alvorecente ao embate dos olhares da platéia, com a trança longa, frisada por uns fios louros, uma voz sonora, timbrada como o som de uma lâmina e vibrante como a nota de cristal ... O público recebeu-a com palmas. O seu porte incutiu-me esse respeito grave que costuma incutir a presença das coisas soberanas ... Descerrou os lábios. O primeiro verso adejou esplêndido de melodia, por sobre as nossas cabeças, como um trino lângüido e suave de pássaros tropicais ... O auditório não respirava. A voz da atrizinha combinava em concentração melíflua as notas mais agradáveis da audição humana. ( ... ) A poesia comum estava-se sublimando na dicção límpida da musa teatral ! Quando o pano baixou, o público entusiasmado, vermelho, fremente, louco, a bater palmas alucinadamente, fê-la subir mais duas vezes, numa grita de possessos. (...) Era um portento que vinha arrebatar-nos as almas com as explosões talmáticas do seu gênio ! E fui, pela primeira vez, abraçar um artista”. “No Rio Claro, - continua Moreira de Vasconcelos, - na noite do seu primeiro benefício, fui ao palco recitar-lhe uma poesia, em que a animava a prosseguir. ( ... ) Ao sair do tablado, toda a família Leal esperava-me de braços abertos... e a velha avó de Julieta, com os olhos inundados desse pranto que brota dos júbilos supremos ! Tinha sido eu o primeiro a ir saudar aquela criança de oito anos, diante de um teatro repleto, quando o seu gênio era apenas comentado na análise de um criança esperta”. De março a maio de 1881, percorreu a Companhia as principais cidades do sul e do oeste de São Paulo, sob aplausos. A menina ia progredindo, tendo sua avó e primeira mestra atendido a indicações de Moreira Vasconcelos quanto à educação artística da netinha; e o seu nome entrou a figurar nas crônicas teatrais, e a exercer nas famílias entusiástica simpatia. Nesta altura, chegou ao Brasil, e passou a arrebatar cultas platéias, a prodigiosa italiana Gemma Cuniberti, atrizinha de onze anos de idade. Principiaram então alguns patriotas brasileiros a louvar e encorajar a patriciazinha, esperançados de nela terem uma competidora da outra menina, considerada rival da grande trágica Adelaide Ristori. Mais cresceram então em Moreira Vasconcelos o propósito e a certeza de ostentar a menina Francisca dos Santos como glória do palco brasileiro. Faltavam, porém, peças adequadas. Ele escreveu a poesia “Luz para o cérebro”, de propaganda da instrução da infância, mais para “estudo lingüístico, dicção e gesticulação, do que propriamente para a seara dos aplausos”. Escreveu depois a comédia “Um diabrete de nove anos”. Andava também a aborrecê-lo o nome “Francisca dos Santos”. Parecia-lhe “nome de criança acrobática de uma companhia eqüestre da província”. Teve uma inspiração. A menina era “Francisca Julieta dos Santos”, passaria a ser “Julieta dos Santos”. E este nome e a sua portadora transpuseram os teatros das cidades provincianas, chegando finalmente à Corte, onde a empresa do “Recreio Dramático” firmou contrato para algumas apresentações da comédia que para ela escrevera Moreira de Vasconcelos. Deu-se a primeira apresentação no dia 22 de maio de 1882. Sobre ela assim se expressou, dois dias depois, o decano dos jornais da Corte, o “Jornal do Comércio”: “Anteontem é que na realidade, se apresentou pela primeira vez ao público desta Capital, no Teatro Recreio Dramático, a menina riograndense Julieta dos Santos, embora uma semana antes já tivesse aparecido naquele palco, onde, na noite de benefício do diretor fiscal da empresa, recitou, com aplauso geral, a poesia “Aurora do Artista”, segundo noticiamos. A mesma poesia recitou anteontem, mas na comédia em um ato “Um diabrete de nove anos”, na qual coube o principal papel, é que ela pôde mostrar o seu talento. Uma criança inteligente e perspicaz; meiga, se lhe falam ao coração; caprichosa e irritadiça, se a contrariam com insistência; um pouco maliciosa, dessa malícia que não é de estranhar na idade de oito a dez anos, e imensamente traquinas, o que lhe valeu o qualificativo de diabrete, tal é a pequena Lili representada pela menina Julieta , com grande talento e muita naturalidade, graça e desembaraço, revelando possuir dotes artísticos que tanto têm feito admirar Gemma Cuniberti, a quem, a despeito de ter tido escola e outro cultivo, não nos parece nada inferior, consideradas ambas em papéis do mesmo gênero. Se a Julieta dos Santos possui as qualidades artísticas múltiplas, que temos admirado na pequena atriz italiana, é um talento digno de ser cultivado com esmero, dando-se à menina riograndense educação apropriada, no sentido de dirigir inteligente e conscientemente o natural desenvolvimento de seus dotes excepcionais, sem nunca obrigá-la a excessivos esforços prematuros, dos quais, em vez do bem desejado, resultará o seu definhamento, senão a sua completa inutilização”. E outros jornais da Corte proclamaram que Julieta não era em nada inferior a Gemma Cuniberti, que então estava a trabalhar no Ginásio Dramático. O Imperador Pedro II, que prestigiara a atrizinha italiana, indo vê-la representar, quis igualmente apreciar a menina brasileira; e a empresa, para ter a honra da augusta presença, realizou um espetáculo no Teatro São Luís, porque o seu não tinha tribuna imperial; e o Monarca aplaudiu a atrizinha brasileira e depois a recebeu em audiência na Quinta da Boa Vista, consagrando-a como uma grande esperança nacional e digna êmula de Gemma Cuniberti. Começaram a ferver conselhos sobre a necessária educação artística da menina. Não apareceu, porém, quem a custeasse. Não surgiu a generosidade de nenhum Barão de Mesquita, conforme o apelo de José Bonifácio pela “Gazeta da Tarde”; nem veio ampará-la “esse pobre-rico, o povo”, conforme conclamou Carlos de Laet, em folhetim do “Jornal de Comércio”. Julieta dos Santos teve um espetáculo em seu benefício, calorosamente auxiliado por Ernesto Senna, do “Jornal do Comércio”, e pelo gaúcho Favilla Nunes. Foi uma das maiores enchentes do Recreio Dramático, sendo a beneficiada freneticamente aplaudida. Mas o festival teve o seu ponto fraco na comédia, em um ato, “A vingança de Bilu”, adrede escrita por Francisco de Freitas, comédia que a crítica agrediu sem dó nem piedade. Renovaram-se então os conselhos à família Vasconcelos, de muita prudência e critério na escolha das peças. Mas nenhum teatrólogo da Corte proporcionou à desabrochante atrizinha provinciana drama ou comédia em que ela pudesse afirmar a sua virtuosidade. Não repetiram o favor dispensado à educada e bem provida Gemma Cuniberti, para quem, expressamente, escreveram Artur Azevedo e Urbano Duarte o drama “O Anjo da Vingança”, e a quem se forneceu, em versão italiana, o “Demônio Familiar”, para que ela brilhasse no papel de moleque Pedro, dessa famosa comédia de José de Alencar. Para fazer Julieta sair da esterilizante monotonia do escasso repertório e para lhe dar mais vasta e variada platéia, traçou o jovem Moreira de Vasconcelos arrojado plano: formar uma companhia a que a menina desse o nome, a exemplo daquela que estava levando Gemma Cuniberti a percorrer o mundo. Parecia-lhe este o caminho para educá-la, pela crítica imparcial; para obter-lhe repertório, “pelo patriotismo desafiado”; para fazê-la a primeira estrela da rampa nacional. “Não seriam as pequenas opiniões, fermentadas no despeito, a julgá-la: seria essa enorme opinião, que vem do Grão-Pará ao Rio Grande do Sul”. Cartão de visita para se apresentar ante qualquer platéia ela já possuía. Desde o Imperador, na Quinta da Boa Vista, às coletividades populares, nos diversos teatros - Fênix Niteroiense, Recreio Dramático, São Luís, Sant’Ana e Recreio Riachuelense, a unanimidade julgara-a um talento excepcional, aplaudindo-a com entusiasmo. Foi, destemerosamente, organizada a companhia; e a 30 de julho desse ano de 1882, a bordo do paquete “Rio Negro” e com rumo ao sul, deixou a Baía de Guanabara, que, três semanas antes, havia deixado a atrizinha italiana, de quem a brasileirinha se fizera rival e a quem devia, “pelo patriotismo desafiado”, os lauréis começados a colher. II A COMPANHIA DRAMÁTICA JULIETA DOS SANTOS NA CIDADE DO DESTERRO A CHEGADA DA COMPANHIA A 22 de dezembro de 1882, sexta-feira, procedente da Província do Paraná e transportada pelo paquete “Rio Negro”, desembarcou na Cidade do Desterro a tão esperada Companhia Dramática Julieta dos Santos. Era um modesto grupo, do qual, além da menina que lhe dava o nome e do empresário Francisco Moreira de Vasconcelos, faziam parte as atrizes Francisca Leal Ferreira, Jesuína Leal e Adelina Castro e os atores, Joaquim Leal Ferreira, Irineu Manoel dos Santos e João Rocha de Quadros. Nesse mesmo dia 22, o jovem desterrense João da Cruz e Sousa dedicou versos à sua primeira figura. “Chegou enfim e o desembarque dela Causou-me logo uma impressão divina! É meiga e pura como sã bonina, Nos olhos vivos doce luz revela! É graciosa, sacudida e bela, Não tem os gestos de qualquer menina, Parece um gênio que seduz, fascina, Tão atraente, singular é ela! Chegou enfim! Eu murmurei contente! Fez-se em minh’ alma purpurina aurora, O entusiasmo me brotou fremente! Vimos-lhe apenas a construção sonora, Vimos a larva, nada mais, somente!... Falta-nos ver a borboleta agora! ...” (1) Memorável coincidência: Julieta foi saudada por um futuro grande poeta, como o fora Gemma Cuniberti pelo futuro grande poeta Raimundo Corrêa. “ É grande a multidão que às suas plantas vê-se, E ela tão débil é, tão fraca e tão pequena, Que eu estremeço, quando a criança aparece Tão pequena, tão fraca e tão débil na cena. Mas quando a sua voz gorjeia, quando um novo Lume e estranho poder no rosto se lhe expande, Transfigura-se tudo, e eu vejo então que o povo É que é pequeno, e que ela, a pequena , é que é grande.” (2) A ESTRÉIA DA COMPANHIA DRAMÁTICA A imprensa local também se rejubilou. O “Jornal do Comércio”, do dia 23, noticiando a chegada e a estréia da Companhia, assinalava que a “insigne e portentosa menina Julieta dos Santos”, era filha do Sr. Irineu dos Santos, já conhecido do povo desterrense. “O Despertador”, desse mesmo dia 23, dizia de Julieta: ” É uma linda e simpática menina cuja viveza e acerto na conversa denunciam um gênio vivo e uma inteligência clara.” E, anunciando a estréia para dois dias depois, expressava o desejo de que o público concorresse em grande número, para apreciar “um portento em miniatura.” “A Regeneração”, de 24, explicando que a estréia da Companhia não se dera na véspera, por estar o Teatro ocupado por um grupo de artistas italianos, reclamava primazia: “Fomos os primeiros a noticiar a chegada às nossas plagas da pequena celebridade, e quer-nos parecer que o nosso público verificará que o não enganamos.” Para a estréia, foram anunciados um drama e uma comédia. O drama, “Georgeta, a cega”, era um dos mais aplaudidos do repertório de Gemma Cuniberti e tinha sido adaptado à cena brasileira pelo ator Leal Ferreira; nele tinham papéis três gerações de artistas: Julieta, sua avó Dona Francisca Leal e seu pai Irineu Manoel dos Santos. A comédia reproduzia costumes da Província do Rio de Janeiro. Encerrando a récita, declamaria Julieta “O melro” , “monumental poesia do primeiro poeta realista Guerra Junqueiro”, conforme dizia o programa estampado nos jornais. A estréia efetuou-se no dia marcado, embora fosse de Natal. “O Despertador”, na edição de 27, deu suas impressões sobre a pequena primeira atriz. “Havíamos lido muitos artigos de nossos colegas da Corte e outras capitais referindo o espantoso e precoce talento dessa encantadora menina; tínhamos ouvido mesmo a opinião de alguns amigos que a tinham visto trabalhar na Corte; achava-se, portanto, o nosso espírito favoravelmente prevenidos; no entanto, fomos completamente surpreendidos na noite de segunda-feira, assistindo à representação do pequeno drama “Georgeta, a cega” (...) Essa encantadora menina, com sua mágica e meiga voz, com sua dicção correta, com seu gesto aprimorado e natural, e, finalmente, dando às palavras a verdadeira entonação, fez conhecer ao público seu grande talento e arrebatou os espectadores , ainda os mais circunspectos, arrancando-lhes muitos e estrondosos aplausos. A pequena Julieta admira, não só pela maneira por que recita seu papel, mas ainda pela naturalidade com que se conduz. O modo de tatear os objetos, de experimentá-los, de abalroar com os móveis, são de uma verdade perfeita, e denunciam o gênio artístico dessa criança.” Registra o Jornal que “Julieta foi cumprimentada em seu camarote por grande número de espectadores, que todos queriam abraçar a pequena atriz.” E aduz palavras de amiga advertência: “ Se nos é dado dar um conselho, diremos à família desse entezinho privilegiado pela natureza, que a afastem das composições inconvenientes, que não exijam trabalho excessivo e que cuidem de cultivar aquele espírito que desabrocha com força espantosa, mas que pode murchar por falta de cultivo.” Cruz e Sousa também expressou o seu encantamento. “Ela começou a falar. Sua voz levemente embaraçada, insinuante, tinha de vez em quando vibrações cristalinas; seus alvinitentes bracinhos , estendidos ao longo buscavam os tropeços que por acaso houvessem em sua passagem. Eu, boquiaberto, extático, vezes colado à cadeira, sentia a algidez de uma estátua de aço; vezes, impelido por uma mola secreta, estranha, erguiame insensivelmente, sentindo percorrer-me nas fibras d’alma uns fluidos magnéticos. (...) Terminou o primeiro ato, amplo, esplendente, sempre ameno, sempre divino... (...) A orquestra dirigida pelo Sr. Brasilício, executou uma melopéia suave. E eu impaciente esperava o segundo ato. Subiu o pano afinal! Apareceu a Georgeta, sempre cega, sempre simpática... (...) Oh! Mas quando ela recupera a luz, quando se abisma na contemplação dos objetos, das flores, quando se aproxima do espelho e tem ante ele aquela cena inimitável, aquela luta gigante como a da treva com o clarão, como a do possível com o impossível, como a da matéria com o espírito, eu, por Deus, senti em meu cérebro uma revolução, como um cataclismo moral. (...) Oh! quanto prende, quanto arrasta essa criança fenomenal! (... ) Gênio, eu te saúdo, porque tu tens o dom de animar as almas de gelo, as organizações de pedra, como Fídias as suas criações esculturais, como Rafael a sua Fornarina. Tu inspiras, tu suplantas, tu avassalas. Trabalhaste na “Georgeta, a cega”, e no entanto encheste de luz!...” (3) O jovem Virgílio dos Reis Várzea também se deslumbrou e, marinheiro que fora, extravasou a sua estupefação em prosopopéias de largo oceano. “O Niágara invadiu os mares, Os grandes rios, rápidos, sussurrantes, Desceram, e se encontraram, quais gigantes, No meio dos profundos, vastos mares! ... Os quatro ventos, com vozes de pesares, Perguntaram assustados, por instantes! “ - Onde vão ? ! ... já cansados, arquejantes, Enquanto nós rasgamos densos ares ? ....” “ Nós ? ... vamos p’r’o colosso americano, Pelos povos chamado Santa Cruz, Em busca de um portento soberano ! ! ... Levamos pérolas e brilhantes bem azuis, Para saudarmos com valor troiano Aquela que de Deus possui a luz !! ...” (4) A esta exaltada louvação também se associou o jovem Manoel dos Santos Lostada, em versos de toada singela. “Há muito as brisas do Norte Traziam a fama de um gênio, Tão colossal no proscênio Quanto pequena de porte. Assemelhando um cometa De ascensão, radiante, Vertiginosa e avante Surgiu enfim - Julieta. Em prismas bem reluzentes Como mágica lanterna, Esta criança superna Faz vistas bem diferentes. A olhos nus, vista é parte - É borboleta no lar ! E é um sol a brilhar Ao telescópio da arte. Menina - tens os quebrantos Da sensitiva singela; Artista - é lúcida estrela Dos matutinos encantos ! Em casa - inocente filha Em graciosa folgança; No palco - foi-se a criança - Eleva-se a maravilha ! ... (5) Vejamos quem são João da Cruz e Sousa, Virgílio dos Reis Várzea e Manoel dos Santos Lostada : são moços que, na sempre renovada lutas das gerações, para ela, nas letras estão abrolhando na Capital da Província de Santa Catarina. Os três haviam publicado em 1881, de maio a setembro, um periódico literário chamado “O Colombo”. João da Cruz e Sousa, preto sem mescla, filho de mãe liberta e pai escravo, nascera na Cidade do Desterro, no ano de 1861, a 24 de novembro, dia de São João da Cruz. Nascera livre, porque a condição materna - o ventre - é que determinava a condição civil do filho. Fora criado com toda a estimação na casa abastada de Guilherme Xavier de Sousa, militar catarinense, herói da Guerra do Paraguai, que chegou ao posto de marechal de campo e faleceu a 21 de dezembro de 1870. Sua viúva, Dona Clara Angélica, viveu até 13 de fevereiro de 1875, quando João da Cruz, já entrado na casa dos catorze anos, era aluno do Ateneu Provincial. Seus pais, Guilherme de Sousa, já liberto e pedreiro, e Carolina Eva da Conceição, que cozinhava e lavava para fora, casados a 16 de agosto de 1871, passaram a sustentá-lo, e ele pôde continuar regularmente os seus estudos. Fez exames preparatórios perante o Delegado da Instrução Pública nos anos de 1875 e 1876, obtendo aprovação em português, francês e geografia. E foi aluno distinto, sendo uma verdadeira consagração o seu exame de francês, prestado na presença do Presidente da Província. Criado no meio de brancos ilustrados, entrou a participar-lhes das atividades já no ano de 1879, antes de completar 18 anos, sem encontrar restrições quanto à habilitação literária nem esbarrar com repulsas por causa da origem familiar ( 6). Possuía até melhores títulos escolares do que os seus dois companheiros brancos. Virgílio dos Reis Várzea, também da Ilha, mas do lado do mar grosso, nascera na Freguesia de Canasvieiras, em 1863, no dia 6 de janeiro - Dia de Reis donde o seu sobrenome. Era filho do capitão da marinha mercante João Esteves Várzea, português, e de Dona Júlia Maria Várzea, filha do Major Luís Alves de Brito e de Dona Miquelina Leonarda de Lemos, gente abastada. Sua família passou a residir na Cidade, onde ele freqüentou escolas, tendo sido aluno distinto na aula gratuita de desenho do pintor Manoel Francisco das Oliveiras. Órfão de pai aos treze anos, tentou fazer o curso na escola Naval. Praticou depois para piloto da marinha mercante e fez viagens transoceânicas. Desembarcando a instâncias maternas, voltou para o Desterro em 1881 e aqui estava a agenciar a vida, ultimamente como partidor do foro, auxiliando a família, que, embora empobrecida com a morte do chefe, não decaíra em decoro, mantendo boas e prestigiosas amizades e participando da vida da Cidade. Manoel dos Santos Lostada , nascido a 8 de março de 1860, era o mais idoso dos três. Era quase ilhéu, pois vira a luz na margem da Baía do Sul da Ilha de Santa Catarina, mas no continente, na Enseada de Brito. Era de modesta família do sítio, filho de Marcelino José Inácio e de Dona Generosa Maria da Glória, casados a 21 de junho de 1845. O nome de Manoel dos Santos Lostada ele o formou com inteira legitimidade, indo buscar os apelidos nas linhas paterna e materna: o avô era José Inácio de Lostada, o materno era Manoel Luís dos Santos. Nenhuns estudos regulares fizera e, na ocasião era caixeiro de venda. A seu respeito será perguntado um ano depois: “Quem é o menino Lostada? Ainda há poucos dias que, na qualidade de caixeiro do cidadão Marciano de Carvalho, vendia copos de cachaça ao balcão ! ! ! ( ... ) Apenas aprendeu a ler pouco, a escrever pouco, a contar pouco, e não conhece a gramática portuguesa senão de nome...” (7 ) Lostada era, entretanto, grandemente conceituado na sua roda. Dele, a esse tempo, dizia Virgílio Várzea: “ Dos talentos da nova geração é um dos que podia ter maior nomeada. Porém a acanhada esfera em que vive o tem impossibilitado de tal. (... ) Tem escrito muitos versos; mas furta-os ao sol da publicidade, pensando que são gotas d’água.” ( 8 ) Apresentados os três campeões da renovação, fanáticos vitoriadores da atrizinha Julieta dos Santos, voltemos às impressões da sua estréia. Murmurou-se que José de Araújo Coutinho, português de nascimento, radicado no Desterro, onde se casara em 1871, antigo homem de teatro, andara espalhando entre os espectadores não haver o menor trabalho em ensinar a qualquer criança o que a laureada menina faz; que ela possui uma dicção não correta, e que nela “fala a cabeça e não o coração” . Daí, um artigo entre indignado e respeitoso, inserto como “publicação a pedido”, em “O Caixeiro”, de 31 de dezembro de 1882, sob o pseudônimo de Argemiro Pontes. E José de Araújo Coutinho, revestindo-se da sua autoridade de teórico e prático de coisas teatrais, - ator e empresário que já fora e ensaiador que ainda era, - varreu a sua testada, em declaração datada de 1º. de janeiro de 1883 e publicada no “Jornal do Comércio”. “Não devo dar-lhe a menor importância e resposta, porque não as merece nem me fica airoso discutir com quem não sei se está habilitado a conhecer os requisitos da arte de Talma e a avaliar o trabalho dos artistas que a adotam como profissão e mesmo se as suas condições intelectuais são iguais às minhas, em estado de perfeito juízo. É, portanto, somente a Julieta dos Santos e ao público, que a tem apreciado e acolhido no seio de suas famílias, que venho dar uma satisfação dessas acres e nojentas acusações de Pontes, que não é Pontes ( ... ) . Disse eu, em pleno saguão do Teatro, em a noite do primeiro espetáculo da Companhia Dramática Julieta dos Santos (...) que esta débil e frágil criança, atrizinha de nove anos, é uma inteligência não cultivada ainda, porém robusta, que raras vezes aparece; uma vocação pela arte como ainda não se apresentou no Brasil, no seu sexo, principalmente na sua idade; que tem alguns pequenos defeitos de dicção e entonação que não existiriam se tivesse como ensaiadores Furtado Coelho, Amoedo, Vitorino Ciríaco e outros com iguais aptidões; que para exceder a Gemma Cuniberti, só lhe faltam estes mestres, guias essenciais para elevá-la ao apogeu do talento artístico dramático, sem o menor defeito, formando-se um gênio, uma raridade e uma glória para o Brasil que se ufanará de possuir em seu seio uma filha como Julieta dos Santos.” E depois de outras considerações e de citar testemunhas, terminou: “Desafio a quem possa desmentir criteriosamente o que acabo de expor, e assim tenho cumprido o meu dever perante a minha consciência, perante Julieta dos Santos, a quem desejo mil venturas, e também perante o público cuja opinião devemos respeitar, julgando o proceder do seu semelhante”. Houve, assim, público e favorável pronunciamento de experimentado profissional sobre a glorificada atrizinha . E há, na sua resposta, uma circunstância que merece relevo : o acolhimento que Julieta encontrou no seio das famílias. Continuemos a ouvir os endeusamentos de Julieta. Os versos em que Virgílio Várzea pôs o Niágara e os grandes rios a dialogar com os quatro ventos sobre o “portento soberano”, são de 26 de dezembro, dia seguinte ao da estréia. Em outros, desse mesmo dia, continuou ele a derramar a sua exaltação; e esses novos versos, de várias medidas e em estrofes variadas, dilatam-se por 207 linhas métricas, tendo por epígrafe palavras do próprio autor - “Dá-me uma centelha do teu gênio, / Se queres que mais diga”. “O Himalaia, aquele monte enorme, Que na Ásia impera, colossal, disforme, Na fronte tão ufana! ... À tua vista é nada; é qual poeira Que na asa do simum passa ligeira Por sobre a caravana ! ...” E as hipérboles atropelam-se, em procurada ressonância de versos de Castro Alves. Vem o Etna, “no auge da erupção”. Vem o Amazonas: “muito mais que o Amazonas / é o teu grande pensamento”. Os anjos e o Sol : “Os anjos te serão espectadores / e o Sol indo perdendo seus fulgores, não mais há de brilhar !” E surgem autores e atores: Racine, Molière, Shakespeare, Voltaire, Mars, Clairon, Raquel, Ristori, Emília das Neves, Fargueil, Sarah Bernhard . “Assim como a noite foge pávida, Quando surge o claro e lindo dia, Que espalha pela terra só magia, Quando o Sol aparece lá no mar! Assim também devem fugir bem rápidas As sombras que povoam o proscênio, Porque já é nascido o sol do gênio, Que ofusca uma Lucinda, uma Favart.” E troam as “cem tubas da fama”. A Natureza aplaude: o Polo Ártico, os Andes, o Polo Antártico, o Hecla, o Vesúvio. Como satélites, à roda de Julieta giram Vitória, Íris, Métis, Mercúrio e Tétis. E Virgílio Várzea , que, para dizer quem é Julieta, “quisera ser Dantão”, desce, afinal, ao palco e à platéia do Teatro Santa Isabel. “A palma da vitória tu tens sempre na mão, Da cega Georgeta, tu és a encarnação . Divina Julieta !” ............................. “E eu arrebatado Fiquei... já sem razão Quis atirar-te aos pés meu pobre coração ! Depois ... subir ao firmamento, Delirante, louco, entusiasta, E os astros roubar neste momento P’ra te c’roar a fronte - grande, vasta, Onde referve um fogo divinal, Que nos eleva aos céus do ideal.” E, achando que nada seriam os “dilúvios de pensamentos de Camões”, e desejoso de pensamentos que fossem à imensidade e ultrapassassem os Andes, termina enfim Virgílio Várzea: “Recebe, pois bem alegre Esta tosca saudação ! É filha do coração Oh! atrizinha ideal ! Eu quisera, pr’a cantar-te, Ser poeta qual Hugo ... Se felicitar-te vou Fico estúpido, irracional ! Por isso, fiz-te estes versos, Que jamais terão valor, Apenas é o penhor Do culto que vou render-te! ... E num trono que se ergue, Lá no mais íntimo dos céus, Perto do trono de Deus Imperando eu hei de ver-te! ...” (9) Com este glorificador cortejo de tão estranhos entes, não esgotou Virgílio Várzea o seu arrebatamento. No dia seguinte, 27 de dezembro, irromperam-lhe novos versos, que abrem com palavras sugeridas pela “Deusa incruenta”, de Castro Alves, e repetem termos e figuras dos versos anteriores. “Quando eu te vi surgir qual astro sublimado ! Da fímbria do horizonte do límpido proscênio, Senti que do teu gênio A luz suave e pura Causava-me no cérebro vertigens de loucura, E frases sem sentido então balbuciei Como criança insonte que mal fala. Depois ... fiquei calado ... E quis ir a teus pés Com força e entusiasmo dizer-te o que tu és. Mas, quando procurei juntar umas idéias, Ouvi um som mais brando de doces melopéias Passarem pelos ares ! E vi também os mares Com as rochas entoando Músicas mil - divinas ! Os vendavais bradavam nos espaços: “Nós vamos abraçá-la co’ os nossos fortes braços, Porque Ela é da cena o grande Briareu, Que veio lá do céu Mostrar à humanidade A gran sublimidade Da arte de Caetano ! E com valor troiano Se tem apresentado Fazendo um novo mundo do mágico tablado !” Assim, com essas vozes, de novo delirei E, abismado em mim mesmo, eu logo me quedei Até descer o pano ... É que do gênio a luz tão de repente Faz a gente ficar quase demente !. ....................................... Salve, pois, atrizinha - enorme, colossal, Que prendes a platéia ao mundo do ideal ! ...”(10) Datados deste mesmo dia 27 de dezembro, publicou “O Caixeiro”, um soneto-acróstico amarrado às letras de dedicatória “À Julieta dos Santos”. Tem por assinatura o nome de “Reis”. Será de Virgílio dos Reis Várzea? Andará ele desejoso de fingir mais um gabador da atrizinha? Não é improvável, porque ele e os do seu grupo costumam acobertar-se debaixo de outros nomes. Assim, exemplificando os fatos já vistos, esclarecendo que Virgílio dos Reis Várzea, no seu já citado elogio de Santos Lostada, se disfarçou em “Val ínio Reis”; e esclarecemos ainda que foi sob o seu conhecido pseudônimo de “Heráclito” que João da Cruz e Sousa publicou os já apreciados louvores de Julieta, tanto em verso como em prosa. Estampamos, a seguir, o soneto-acróstico, antecipando-o com um esclarecimento. Não há, nesta narrativa, o intuito de recolher escritos para antologias nem de fazer crítica literária. O plano é historiar fatos; e, sem detrimento da verdade, reaviválos com simpatia, procurando compenetração na vida e nos sentimentos da gente desterrense, dentro das relatividades e das circunstâncias do meio e da época. O Desterro de então era uma cidadezinha dos seus 10.000 habitantes ( o recenseamento de 1872 contara 9.108, e o de 1890 contará 11.038); era umas oito vezes menor que a Florianópolis de hoje, que ainda é cidade bem pequena. Ruins eram as condições de salubridade; a tuberculose fazia devastação entre a gente moça; freqüentes eram os surtos de varíola, de tifo e câmaras-de-sangue; havia febres endêmicas, sobrevindo a “amarela” por vezes, como já sobreviera a cólera-morbo. Deficiente era o ensino secundário e do superior nenhuma semente existia. Contra a tristeza e a monotonia que sempre ameaçavam desalentar e torpecer a cidadezinha, “reagiam grêmios e entidades particulares, associações de amadores teatrais, associações musicais com bandas e orquestras, sociedades recreativas, sociedades carnavalescas, festas beneficentes, literárias e artísticas, comemorações cívicas, aulas particulares de vário ensino, pagas ou gratuitas, que supriam as deficiências oficiais.” E eram bem recebidas as companhias de teatro e outros empreendimentos de recreação. Aqui, pelas excelentes condições do porto, de escala quase obrigatória, facilmente chegavam; aqui interrompiam a viagem; aqui ficavam de um a outro vapor; e aqui permaneciam, às vezes, mais longamente, “para se refazerem na cidadezinha hospitaleira e de vida barata, lindamente debruçada sobre o mar e cuja categoria de capital de Província ocasionava para as festas solenidade que não lhes podiam emprestar outras cidades mais populosas.” As várias festas e os acontecimentos importantes, e as suas personagens, além de notícias e comentários da imprensa, provocavam manifestações literárias, como estamos a ver no caso da Companhia Dramática Julieta dos Santos. Digna de consideração é esta literatura comemorativa. A propósito dos primeiros versos de Cruz e Sousa, que todos a ela pertencem, já deixamos dito em outro trabalho: “Merecem particular e simpático estudo os versos de circunstância, que são as suas primícias conhecidas; e igual simpatia , igual análise benévola, merecem os versos análogos de seus contemporâneos, que, muitíssimas vezes, nada valem pela substância poética ou pela tessitura métrica, e sim pelos elementos psicológicos e biográficos individuais e coletivos - que neles se tenham fixado. Reconduzidos às conjeturas e aos estudos d’alma que os motivaram, revivem paixões e anseios, atores e espectadores, eventos e coisas que esclarecem o nosso passado, permitindo sobre ele juízos fundamentados.” Ora, no caso presente, em que se quer bosquejar um quadro da vida intelectual desterrense , precisamos exatamente de muitos desses versos de circunstância, porque serão eles - ótimos, bons, medíocres, desajeitados - que, ao vivo, apresentarão os seus autores, no seu temperamento, nos seus conhecimentos literários e de cultura geral, nas suas idéias religiosas, na sua filosofia e na sua participação na vida social. Leiamo-los, pois, indistintamente , com amizade, com compreensão e até com agradecimento pelas mensagens que nos guardaram de passados tempos e de passadas gentes. Eis o soneto-acróstico: “À força de atração, trazes suspensa, Julieta do Céu! - a humanidade; Unissonante te aplaude a mocidade, Laureando-te a fronte - vasta, imensa! Íbis divina! quem há, pois, que vença Essa tu ‘ alma cheia de bondade, Talhada p’ra viver na imensidade Aclarando a treva a mais intensa?! Só se o Ser Eterno - em cólera acesa; Assim mesmo não pode, porque é crime No qual não consentia a natureza!! ... Termino, pois, porque isto não exprime O teu talento, oh! mito de riqueza, Sol brasileiro de fulgor sublime!!!” Seja de quem for o soneto-acróstico, o caso é que ainda não se tinha exaurido o entusiasmo de Virgílio Várzea, porque no dia 28 de dezembro, dia marcado para o segundo espetáculo, novamente se manifestou em dois sonetos dedicados a Julieta dos Santos. Um tem por epígrafe versos de Cruz e Sousa “Quem te vê, delira, chora, / Se arrebata, treme, ri.” Nele continua o glorificador cortejo dos versos de 207 linhas. Desfilam Pitágoras, Tycho-Brahe, Galileu, Aristarco, Herschell, Filolau, Hiparco, Copérnico, Ptolomeu, Newton, Jacques Lapier, Ladislau Imperador: Todas essas cabeças tão dinâmicas, Onde giravam mil grandes pensamentos, Em ondas consteladas e titânicas! ... Sumiram-se num mar de esquecimentos Às rubras chispações - fortes, dardânicas Do mais agigantado dos portentos !! ...” (11) O outro soneto é encimado por versos de Castro Alves : “O Niágara vai contar aos mares, / O Chimboraso arremessa aos ares / a fama do teu nome ! ... “ “Sentiu um choque o continente antigo Ao ver pelos espaços um átomo de luz! Partindo fulgurante do solo - Santa Cruz, Levando estrídulas ovações consigo ! O oceano lhe chamou: - “Amigo, Vem, ilumina-me com clarões e fluz! Que eu te darei constelações azuis ... Vem ... vem depressa conversar comigo !” ... Mas qual, o louco não ouviu o grito, Indo com a força do motor proscênio, Rápido sumiu-se além do infinito ! ... Deixou na Europa todo o povo helêneo Idolatrando-o com fervor contrito Esse emissário do brasíleo gênio ! “ (12) Quem será este “átomo de luz”, esse emissário do “brasíleo gênio”, que “rápido sumiu-se além do infinito” e “deixou na Europa o povo helêneo idolatrando-o com fervor contrito” ? É, manifestamente, figura do teatro, porque leva “estrídulas ovações consigo”, e porque tem a “força do motor proscênio”. Mas, razoavelmente, não será Julieta dos Santos, porque não consta haja a sua fama chegado à Europa ; “Sentiu um choque o continente antigo”. Será o preclaro João Caetano dos Santos ( 1808 - 1863 ), comparado ao trágico francês Talma ( François - Joseph Talma, 1763 - 1826) e mesmo cognominado “Talma Brasileiro” ? Ele em 1860 foi a Portugal e representou com êxito em Lisboa. Seja quem for, o óbvio é que a imagem “átomo de luz”, há de ter sido inspirada no cometa que, nos fins desse ano de 1882, foi visível nos céus do Desterro, conforme noticiou “O Despertador”, de 20 de setembro : “Anteontem de manhã, a população desta cidade foi surpreendida com a aparição de um cometa próximo ao sol e distintamente visível” . E a 30 do mesmo mês, inseriu nova informação: “Continua a ser visível a bela estrela caudal que fora observada ultimamente durante o dia perto do sol. Agora, às cinco para as seis horas, é visível esse magnífico cometa do lado do nascente, pouco antes do despontar do dia.” Este cometa, “numa noite de observação”, já inspirara um soneto a Virgílio Várzea, que o dedicou ao seu “prezadíssimo amigo” Manoel dos Santos Lostada, publicando-o em “O Caixeiro”, com a data de 20 de novembro de 1882. “No firmamento azul, se destacava, Sublime, divinal! Com cauda ardente; O imenso cometa - refulgente Que a mor parte do povo intimidava! Então, só no meu quarto contemplava O grande astro! ... e na minha mente Uma idéia, enorme, bem potente De todo esse meu ser se apoderava! E procurei sondar co’ a sã razão, Os arcanos que envolvem o Universo ... Mas ... foi tudo baldado, tudo em vão! Só cheguei a um ponto mais diverso, A existência de Deus !! ... Que confusão ! ... E num mar d ‘ incerteza fico imerso.” (13) Assinale-se que nos louvores da atrizinha hão de surgir alusões ao cometa, também as fazendo Manoel dos Santos Lostada: “Deus, querendo se fazer De arrojado poeta E uma hipérbole escrever, Pena fez de um cometa, Molhou no céu azulado - E saíste tu, Julieta! ” (14) O SEGUNDO ESPETÁCULO O segundo espetáculo da Companhia realizou-se a 28 de dezembro, quintafeira, tendo como peça principal “A primeira dor”, da qual dizia o programa: “magnífico e muito aplaudido drama em um ato de P. Giacometti, do repertório de Gemma Cuniberti, acomodado à cena nacional pelo ator Leal Ferreira e em que o prodígio do teatro brasileiro, a festejada atrizinha riograndense Julieta dos Santos tem-se mostrado um legítimo fenômeno artístico de subido mérito e digna êmula da rival de Ristori”. Foi também anunciada a comédia de França Júnior “Como se fazia um deputado”. Alguém, certamente um moço, assinando-se “Artur de Lara” e expandindo o seu arroubo pela representação de “A primeira dor” , em “O Caixeiro”, de 7 de janeiro, deixou registrado que Julieta “soube, com a sua arte, arrancar lágrimas dos espectadores por várias vezes, prorrompendo a platéia, depois de findo o drama, em aplausos sinceros, frenéticos e justos” . “Julieta dos Santos é um gênio, que constitui a glória do nosso teatro; é a águia que vai descortinando novos horizontes e que promete ser, daqui a pouco tempo, a Ristori brasileira ... Exigir-se presentemente mais do que faz é exigir-se o impossível.” Cruz e Sousa novamente derramou em versos o seu enfeitiçamento. Descreveu o porte físico da atrizinha e o seu poder de atração. “É delicada, suave, vaporosa A grande atriz, a singular feitura ... É linda e alva, como a neve pura, Débil, franzina, divinal, nervosa! ... E dentre os lábios cetinais, de rosa Libram-se pérolas de nitente alvura ... E doce aroma de subtil frescura Sai-lhe da leve compleição mimosa! ... Quando aparece no febril proscênio, Bem como os mitos do passado, ingentes, Bem como um astro majestoso, helêneo ... Sente-se n’ alma as atrações potentes Que só se operam ao fulgor do gênio, Às rubras chispas, ideais, ferventes! ...!” (15) E insistiu na perturbação espiritual provocada pela extraordinária menina. “Quando apareces, fica-se impassível E mudo e quedo, trêmulo, gelado! ... Quer-se ficar com atenção, calado, Quer-se falar sem mesmo ser possível ! ... Anda-se co’ a alma num estado horrível, O coração completamente ervado ! ... Quer-se dar palmas, mas sem ser notado, Quer-se gritar numa explosão terrível ! ... Sobe-se e desce-se ao país das fadas, Vaga-se co’ as nuvens das mansões doiradas, Sob um esforço colossal titâneo ! E as idéias galopando voam ... Estão lá dentro, sem parar, ressoam As indomáveis convulsões do crânio !!” ( 16) Estes versos de Cruz e Sousa são de 29 de dezembro; e, nesse mesmo dia, ele consagra mais dois sonetos a Julieta dos Santos, mas com uma novidade, que é serem versos alexandrinos. O primeiro soneto tem por epígrafe versos de autor não declarado; “Os trópicos pulando as palmas batem ... / em pé nas ondas, o Equador dá vivas! ...” Ao estrídulo solene dos “bravos!” das platéias, Prossegues altaneira, oh! ídolo da arte! ... - O Sol pára o seu curso p’ra bem de admirar-te - O Sol, o grande Sol, o misto das idéias! ... A velha natureza escreve-te odisséias ... A estrela, a nívea concha, o arbusto ... em toda a parte Retumba a doce orquestra que ousa proclamar-te Assombro do ideal, em duplas melopéias! Perpassam vagos sons na harpa do mistério Lá, quando no proscênio te ergues imperando - Oh! Íbis magistral do mundo azul - sidéreo! Então da imensidade, audaz vem reboando De palmas o tufão, veloz, febril, aéreo Que cai dentro das almas as vai arrebatando ... “ (16 a) O outro soneto, demonstrador de que o poeta ainda não penetrara no segredo da sexta sílaba do metro alexandrino, não tem epígrafe. “Um dia Gutemberg co’ a alma aos céus suspensa, Pegou no escopro ingente e pôs-se a trabalhar! E fez do velho mundo um rútilo alcaçar, Ao mágico clangor de sua idéia imensa! Rolou por todo o globo a luz da sacra imprensa! Ruiu o despotismo no pó, a esbravejar ... Uniram-se, num laço, o céu, a terra , o mar ... Rasgou-se o manto atroz da horrível treva densa! ... Ergueram-se mil povos ao som das melopéias, Das grandes cavatinas olímpicas da arte! Raiou o novo sol das fúlgidas idéias! ... Porém, quem lança luz maior por toda a parte És tu, sublime atriz, ó misto de epopéias, Que sabes no tablado subir, endeusar-te! ... (17) Cruz e Sousa, ainda nesse dia 29 de dezembro, dirigiu outra saudação a Julieta dos Santos, mas extensa e de metro variado, num total de 151 versos. Intitula-se “A idéia do infinito” e tem por epígrafe versos do Dr. Sinfrônio: “... a fama do teu nome, / a inveja não consome, o tempo não destrói.” “Era uma coluna de artistas! ... Ao lado Tasso, Medindo as múltiplas conquistas Co’ as amplidões do espaço! ...” “Seguia-se João Caetano ( ... ). Depois Joaquim Augusto ( ... ). Depois Rachel, Favart, Fargueil ( ... ) . Rola um dilúvio, um grande mar de estrelas ( ... ) . Há um estranho amalgamar de cousas, como os segredos funerais das cousas ( ... ). Do brônzeo espaço, das fibras d’ aço , como que desloca-se um pedaço que vai ruir, com trépido sarcasmo, nas alumbradas regiões do pasmo... . O invisível geme uma música, lângüida, saudosa ( ... ). O Imutável, o Insondável lá vão cair no seio do incriado. E o bosque irado, a soletrar uns cânticos titâneos, lança nos crânios aluvião de duras epopéias, tétricas idéias! E o pensamento embrenha-se nos mares ( ... ) .” “Mas a idéia, o pensamento insano As asas bate em busca de outro arcano, E o manto rasga do horizonte eterno, Vai ao superno Ao criador, ao Menestrel dos mundos !”( ... ) “Quer escalar o templo do impossível ( ... ), quer se fartar de luz e divindade e de saber ( ... ) Ou quer ousado descortinar os crimes do passado ( ... ) E esbarrar nesse montão de ossos ( ... ) .” “Mas a idéia, o pensamento audaz Quer ainda mais ! ... Quer o ribombo do trovão pujante, Já num esforço adamastóreo, tredo, Embora o medo, O atroz segredo, Com que ele faz a terra palpitante! E quer dos ventos, Dos elementos, Quer do mistério a solução! - Nas trevas, Hórridas, sevas, A gargalhada Ríspida, negra, irônica, pesada, Estruje, enfim, da morte legendária, E a idéia vária Ainda nisso ousando penetrar Tenta sondar! ... E em vão, em vão A mergulhar-se em tanta confusão Não mais compr’ende O que saber pretende! ... Assim, oh! gênio, Na ofuscadora auréola do proscênio Não sei se és astro, se és Esfinge ou mito, Se do infinito Possuis o encanto, os esplendores grandes, Ou se dos Andes Águia tu és, ou és condor divino, - Ou és cometa de cuja calda enorme E multiforme Só lágrimas de prata Ou mesmo se desata Um vagalhão de palma diamantino ! ! ... Minh’ alma oscila e até na fronte sinto Medonho labirinto, Estúpida babel, E vou cair, revel, No pélago sem fim dos nadas materiais! E como os racionais Eu fico a ruminar umas idéias De erguer-te, ó novo Talma Um trono singular, mas feito de Odisséias, De brancas alvoradas, Olímpicas, nevadas, Dos êxtases magnéticos, nervosos de minh’ alma! “ (18) Virgílio Várzea também tributou novas homenagens a Julieta, e delas através de 28 versos, é portador o cometa já nosso conhecido. “Do Universo o grande Obreiro (...) trabalhou (...), seu trabalho foi diário; e, quando concluiu, mandou um emissário dizer a todo o mundo o gênio tão profundo que tinha de enviar-nos... E foi este cometa, que disse a toda a terra o nome - Julieta !”. É esse, pois, o nome do máximo dos portentos, Que, de luz em cada floco, milhões de pensamentos Atira sobre nós, Fazendo estremecer os ossos dos heróis, Que dormem há mil anos nas campas bem sepultos ! Com força magnética reergue os nobres vultos, Maiores que os titãs, imensos e tão grandes Que vão ao infinito e passam além dos Andes ! Depois ... abrem seus olhos de órbitas tamanhas Que parecem mil lagos cercados de montanhas, Contemplando os céus ! ... E vão os Briareus Unidos em coorte Saudá-lo, com os presentes, do império da morte! Então é toda a terra um grande Coliseu, Onde se representam os dramas lá do Céu !” (19) Manoel dos Santos Lostada saiu da toada singela para versos vários, abundantes e arrebatados, tomando por lema versos de Moreira de Vasconcelos “É que tu tens o dom magnético do gênio ... / Para prender o mundo à rampa do proscênio !” “Depois que alou-se ao Panteon da Glória O colosso da cena - o João Caetano, Mais que luas quem viu no céu da arte Do mundo de Cabral ? ! Surge Joaquim Augusto E surgem mais e mais. Eram cometas. Fraco luar apenas se derrama. Eis que de repente Surge no Oriente Um sol radiante De luz febriciante, Que o mundo assombra e arrebata À proporção que cresce e se dilata. E esse astro de luz, de luz dileta És tu, oh! Julieta! Quando pisas o proscênio, Do crânio - vulcão - as lavas do teu gênio Acendem na platéia o mágico entusiasmo, Que o sábio velho queda e deixa pasmo A derramar uma lágrima tão doce, Como se angélica harmonia ouvindo fosse, Ao fluido magnético da fala As elétricas faíscas, Que relampejam de teus olhos fulgurantes E vão cair na platéia palpitantes, Que, de arrebatada, Sem a vista afastar do céu que brilha, Não se tem em pé nem assentada, Cada peito estrebucha na golilha Das convulsões patéticas do belo ! Dos épicos aplausos O espectador, fanatizado então, Sente na garganta um aluvião, Que vem e se desfaz Na boca ressequida. Alma embevecida Sobe e sobe mais. O coração palpita, treme, Se biparte, geme E cai alucinado e arquejante, Sem poder modular naquele instante Nem um bravo sequer ! Oh! Magno poder, Misterioso encanto! Da santa comoção Borbulha mudo pranto! Mas, eis que retumbante Ergue-se o mar agitado que te aplaude, A tempestade de palavras que rebrama ................................................................ Desdobrou-se o enredo. É findo o drama. Então, em furor descomunal, No auge do delírio, O povo te coloca no empíreo Da arte divinal, É que tu és deste séc’lo a maga filha, Dum esforço de Deus a maravilha!...” (20) Estas novas glorificações deixam manifesto que Julieta dos Santos, na segunda representação, afervorara os entusiasmos acendidos na estréia. E entremostram outro fator é que os jovens, na Companhia Dramática, não encontraram apenas a maravilha que era a atrizinha, mas ainda se beneficiaram com outra rica surpresa, que era o diretor. Francisco Moreira de Vasconcelos não era empresário do tipo habitual. Era brasileiro, quando comum era ser português, e era moço; era da geração a que eles pertenciam. Nascido na Corte a 25 de julho de 1859, estava na casa dos vinte e três anos. Ora, Santos Lostada estava na dos vinte e dois, Cruz e Sousa acabara de entrar na dos vinte e um, e Virgílio Várzea ia passar para a dos vinte. O empresário, filho de José Moreira de Vasconcelos, remediado negociante e de Dª. Libânia Moreira de Vasconcelos, fora aluno de humanidades do Colégio Vitório e do Colégio Pedro II; mas, seduzido pelo teatro, abandonara os estudos, estreando como ator em Itaboraí, na Província de Rio de Janeiro, em 1875 (21). Na Corte, teve relações com os rapazes renovadores que publicaram “A Comédia”, em 1881, de 2 de março a 23 de maio, periódico de que eram proprietários Valentim Magalhães, também redator-chefe, Silva Jardim, Gustavo Júlio Pinto Pacca e Adolfo Carneiro de Almeida Maia, e em que colaboraram Raimundo Corrêa, Raul Pompéia, Eduardo Prado, Afonso Celso Júnior, Assis Brasil, Fontoura Xavier e Filinto de Almeida (22). Já o vimos como ator, já lemos trechos da sua prosa, e já conhecemos peripécias de seu encontro com Julieta dos Santos e da organização da Companhia Dramática. Sabemos também que escrevera a comédia “Um diabrete de nove anos”, com que Julieta se afirmara no “Recreio Dramático”. Era jornalista e escrevia com fluência, derramadamente e com exaltação. Também versejava com facilidade. Aspirava reformas sociais e, para elas, via no teatro poderoso instrumento e, por isso, e não só pela arte, o teatro o empolgava. A influência de Moreira de Vasconcelos em Santos Lostada revela-se na epígrafe que este deu aos seus versos: “É que tu tens o dom magnético do gênio / para prender o mundo do proscênio!”, epígrafe tirada de uma saudação a Julieta dos Santos: “Quando surges no palco, a arena dos artistas, E, intrépida, conquistas Os louros que se dão somente aos grandes vultos, Como os que dormem já nos túmulos ocultos, E só se podem ver pelos portais da História, Banhados pela luz fantástica da glória; Ou como esses que vão por esse mundo além, A carregar o peso estrídulo que tem As grandes ovações, Que nos fazem lembrar a cauda de um cometa, Feita de corações E pérolas de violeta; Eu sinto-me pequeno, estúpido, acanhado E vou cair-te aos pés como um fanatizado!... É que tu tens o dom magnético do gênio Para prender o mundo a rampa do proscênio!...” (21) A influência em Cruz e Sousa aparece na métrica, no verso alexandrino, em que Moreira de Vasconcelos costumava postar e que é o básico na saudação a Julieta. Até aí, na produção poética de Cruz e Sousa, não são conhecidos esses versos dodecassílabos. Era muito natural que o jovem e ardoroso empresário, ator, escritor teatral, poeta, jornalista e propugnador de reformas, nascido e criado na Corte e conhecedor de outros meios cultos, trouxesse novidades e conquistasse a admiração dos rapazes literatos. Estes, certamente, até ali não se teriam aproximado de figura de maior prestígio. Cruz e Sousa e Santos Lostada nunca haviam saído do insulado meio desterrense. Virgílio Várzea tinha corrido muito mundo, mas esse mundo não fora o das letras. O TERCEIRO ESPETÁCULO O terceiro espetáculo realizou-se a 1º de janeiro de 1883, compondo-se da comédia-drama em um ato e ornada de música “Miguel, o Toureiro”, da recitação do poema “A judia”, de Tomás Ribeiro, e da comédia em dois atos “As almas do outro mundo”, do teatrólogo português Gervásio Lobato. Sobre a récita deu a sua impressão um espectador, confessando ter tido, pela primeira vez, ocasião de aplaudir “a mais brilhante estrela do nosso palco”. Publicou-o em “O Caixeiro”, do dia 7, sob a assinatura de Sylvinio Pons: “Pela segunda vez subia o pano. A digna rival de Gemma Cuniberti apareceu radiante... os espectadores, ansiosos, fitavam os olhos na gentil criança ... (...) recebida com estrepitosos aplausos. Recitou (e com que sublimidade!) a poesia do autor do “Dom Jaime”, “A judia”. Desde as primeiras às últimas estrofes, a mimosa borboleta que esvoaçava garbosa pelos jardins da arte, cujas flores, na sua luminosa passagem saúdam-na, bafejadas pelos brandos zéfiros, trouxe a platéia suspensa, arrebatada pela grandeza do seu prodigioso talento artístico! (...) . Ao terminar, foi calorosa e entusiasticamente aplaudida, e, chamada à cena, foi recebida com estrepitosas palmas, sendo antes, quando recitava, saudada por inúmeros bravos, constantemente partidos de peitos entusiastas. Seguiu-se a comédia “As almas do outro mundo” (...) Imensamente aplaudidos, receberam os distintos artistas estrepitosas salvas de palmas e foram chamados à cena”. Digamos quem é “Sylvinio Pons”. É José Artur Boiteux, ex-aluno do Ateneu Provincial, onde, em 1879, obteve o primeiro prêmio. Em 17 de dezembro do ano seguinte, Cruz e Sousa dedicou-lhe calorosos versos, animando-o e prognosticando-lhe glórias: “Avante, sempre, nessa luz serena, Empunha a pena, sem temor, com fé... Eleva às turbas as idéias d´ouro, Que um tesouro tua fronte é!...” E estende-se por mais nove quadras, sendo esta a final: “Eis que sempre na brasílea história De alta glória colherás o jus! O livro augusto do porvir descerra, Se desta terra precursor da luz!” (22) José Artur Boiteux é do grupo dos novos, tendo sido colaborador, em 1881, do jornalzinho “Colombo” e, então, o era de “O Caixeiro”. Filho do comerciante Henrique Carlos Boiteux e de Dª. Maria Carolina Jacques Boiteux, e neto paterno do suíço-francês Lucas Boiteux e da Senhora Marie Magdaleine Anastasie, de nacionalidade francesa, e materno do abastado armador e comerciante do Desterro Alexandre Martins Jacques e de Dª. Luísa Maria de Sousa Lobo, nasceu em Tijucas, tendo completado 17 anos a 9 de dezembro de 1882. Fez exames preparatórios no Desterro e proximamente seguirá para a Corte, a fim de estudar medicina. É irmão de Henrique Boiteux, nascido a 17 de setembro de 1862, também do grupo dos novos e também colaborador de “O Caixeiro”, que está a terminar o curso da Escola Naval e então se achava em férias, na Cidade do Desterro. Cruz e Sousa consagrou novos versos a Julieta - dois sonetos um em metro alexandrino e outro em metro heróico. O primeiro tem a data de 3 de janeiro. “Parece que nasceste, oh! pálida divina, Para seres o farol, a luz das puras almas! ... Parece que ao estridor, ao frêmito das palmas Exalças-te feliz à plaga cristalina! ... Parece que se partem, angélica Bambina, As campas glaciais dos Tassos e dos Talmas, Lá quando no tablado as turbas sempre calmas Transmutas em vulcão, em raio que fulmina!... E quando majestosa, em lance sublimado, Dardejas do olhar, olímpico, sagrado Mil chispas ideais, titânicas, ardentes!... Então sente-se n´alma o trêmulo nervoso Que deve ter o mar, fantástico, espumoso Nos grossos vagalhões, indômitos, frementes!...” (23) O soneto em metro heróico é datado de 4 de janeiro. “Imaginai um misto de alvoradas Assim com uns vagos longes de falena, Ou mesmo uns “quês” suaves de açucena Co’os magos prantos bons das madrugadas!... Imaginai mil coisas encantadas, O tímido dulçor da tarde amena, As esquisitas graças de uma Helena, As vaporosas noites estreladas... Que encontrareis então em Julieta O tipo são, fiel da Georgeta Nos dois brilhantes, primorosos atos!... E sentireis um fluido magnético Trêmulo, nervoso, mórbido, patético, Bem como a voz dos langues pizzicatos!... “(24) Entrementes, recebeu a atrizinha prova de grande apreço de Horácio Nunes Pires, que, por iniciativa própria, para ela escreveu o drama em dois atos “O anjo do lar”. Horácio Nunes Pires, então na casa dos 28 anos, era escritor teatral, poeta, jornalista, funcionário público e chefe de família. “O nome do autor, - disse o “Jornal do Comércio”, de 4 de janeiro, - já bastante conhecido na república das letras, é suficiente garantia da peça, cuja representação esperamos para, com mais segurança, emitirmos nossa opinião.” O próprio autor, mais tarde, defender-se-á de uma das censuras que lhe foram feitas: ser impossível que uma criança de 10 anos, por muito viva, por mais talentosa que seja, emita uma linguagem como a da protagonista, a menina Júlia. “A linguagem, - declara ele, - é realmente, demasiado elevada para uma criança. Mas, quando criei o papel de Júlia, não o fiz para que o considerassem como um modelo de naturalidade. Foi unicamente para pôr à prova o talento genial da atrizinha para quem o destinava, tornando-o de difícil execução, não só quanto à parte literária, quanto também à dramática.” (25) O QUARTO ESPETÁCULO O quarto espetáculo realizou-se a 4 de janeiro, em benefício do ator Leal Ferreira. Foi anunciado com o seguinte programa: inicialmente seria executada uma “brilhante ouvertura” pelos “hábeis professores da orquestra regida pelo inteligente Sr. José Brasilício de Sousa”. Seguir-se-ia a representação, pela segunda vez, do drama “Georgeta, a cega”. Viria depois o vaudeville em um ato “Corda sensível”, recomendado como o “grande sucesso do império de Napoleão III, cujo mérito estava provado pelas inúmeras representações em Paris, Portugal e Brasil e que subiam a mais de seiscentas récitas.” Por último, atendendo a pedidos, recitaria Julieta a aplaudida poesia “O melro”. Do beneficiado sabemos que é tio de Julieta dos Santos e que já a vinha acompanhando desde antes da estréia em 24 de abril de 1879. Dos programas das récitas vemos que ele também se tinha arvorado em escritor teatral, porquanto, para prestígio da sobrinha, acomodara à cena brasileira o drama “Georgeta, a cega”, em que Gemma Cuniberti se sublimava. “O Despertador”, noticiando a realização do espetáculo, só faz referências ao drama, no qual “Julieta dos Santos, artista em miniatura, toma no palco proporções colossais, graças ao brilhante trabalho que executa.” E faz crítica da peça: “É pena que o drama não seja vazado em outro molde, e que a linguagem não seja também mais castigada, porque ainda sobressairia mais a espantosa habilidade da pequena atriz”. Declamado “O melro”, - continua a notícia, - e chamada Julieta à cena e coberta de aplausos, recitou o Professor Wenceslau Bueno um brilhante improviso, que também foi muito aplaudido. “Salve, aurora de magia, Prenúncio dum claro dia, Dourado e purpúreo véu! Salve, mimosa atrizinha, Três vezes salve, aguiazinha, Que arrostas o infinito céu! Inda em teu ninho materno, Ensaias vôo superno, Fitas o núcleo solar! Cresce, mede o espaço, ó gênio, Anima o pátrio proscênio, Leva teu nome além-mar!... Cresce, dos céus toma altura, Sonha a grandeza futura De tuas coroas mil! Revoa com liberdade, Dize a toda imensidade: Tem Julieta o Brasil!... Salve, mimosa atrizinha, Três vezes salve, aguiazinha, Que arrostas o céu azul!... Revoa p´ra o céu retundo, E mostra que viste o mundo, Sob o Cruzeiro do Sul!...” (26) O poeta e declamador, Wenceslau Bueno de Gouvêa, é professor secundário. Anda na casa dos 38 anos, tendo nascido a 7 de agosto de 1844, em São Luís de Paraitinga, na Província de São Paulo. Fez estudos no Seminário São José, no Rio de Janeiro e é seguro conhecedor do vernáculo e de latim. Cruz e Sousa continuava extasiado. Assim cantou a 5 de janeiro: “Dizem que a arte é a clâmide da idéia, A peregrina irradiação celeste, E disso a prova singular já deste Sorvendo dela a divinal sabéia!... Da “Georgeta” na feliz estréia, Asseverar-nos ainda mais vieste Que és um gênio, que te vais de preste Tornando o assombro de qualquer platéia!... Sinto uns transportes fervorosos, ledos Quando nas cenas de subtis enredos Fulgem-te os olhos co’ a expressão dos astros!... E as turbas mudas, impassíveis, calmas Sentem mil mundos lhes crescer nas almas... Vão-te seguindo os luminosos rastros!...” (27) E a 6 de janeiro: “Lágrimas da aurora, poemas cristalinos, Que rebentais das dobras do mistério! Aves azuis do manto, auri-sidério... Raios de luz, fantásticos, divinos! ... Astros diáfanos, brandos, opalinos, Brancas cecéns do Paraíso etéreo, Canto da tarde, límpido, aéreo, Harpa ideal, dos encantados hinos!... Brisas suaves, virações amenas, Lírios do vale, roseirais do lago, Bandos errantes de subtis falenas!... Vinde do arcano, num potente afago, Louvar o gênio das mansões serenas, Esse prodígio singular e mago!! ...” (28) O QUINTO ESPETÁCULO O quinto espetáculo foi dado a 6 de janeiro, dia de Reis, em benefício de Adelina Castro e de Moreira de Vasconcelos. O programa constou da comédia “As almas do outro mundo” e do drama em verso “A órfã”, escrito pelo ator brasileiro Francisco Corrêa Vasques para a primeira atriz Adelaide Amaral, sendo que em ambas as peças teve papel a menina Julieta. Encerrou o espetáculo a comédia em um ato “A espadelada”, de costumes portugueses, toda ornada de músicas e danças, original de Costa Lima. “O Despertador” assim apreciou o espetáculo: “Tivemos o prazer de admirar a inteligente menina Julieta dos Santos na “Órfã”. Enquanto a nós, é uma das suas mais bonitas criações. Aquela criança parecia-nos uma atriz amestrada, até na queda de costas com que termina o seu trabalho. Nas “Almas do outro mundo”, trabalhou Julieta sem desmerecer do conceito que já o público dela havia formado na anterior representação.” Virgílio Várzea novamente saudou a atrizinha. “Tu triunfas na luta sobranceira... Quando pisas no palco, majestosa, Do zoilo vil a boca venenosa Solta um “bravo”, atrizinha brasileira! Oh! menina feliz! Oh! feiticeira, Que és amável, risonha, esp’rituosa, Que nos fazes a vida deleitosa, Quando mostras teu gênio, prazenteira! Rainha do proscênio o céu te aclama Com estrídulo clangor, por todo o mundo Corre teu nome nos anais da fama!! ... Dás glória ao teu país, belo, fecundo, Brasílea Cuniberti!... Assim te chama O nosso imperador - Pedro Segundo” (29) Não consta do noticiário que poetas ou jornalistas haviam aclamado a atriz beneficiada. Gentil artista seria, entretanto, Adelina Castro. O colega e empresário Francisco Moreira de Vasconcelos, em outra oportunidade, manifestar-lhe-á sua paixão. “Não rias-te ao saber que aqui pus o teu nome. É este um livro - de método singelo, Sem lances de terror e ímpetos de Otelo, Discursos de moral e palavrões de fome... Faceto, como tu e, como tu, nervoso, Tem páginas azuis, traçadas com humor, Que arrulam mansamente, em êxtase d’ amor, Idílios de galã, simpático, vaidoso...” (30) E Cruz e Sousa, na Corte, em outubro desse ano de 1883, festejará “O seu boné”, o boné de Adelina Castro. “É um boné ideal, de feltros e de plumas, Que ela usa agora, assim como um turbante Turco, aveludado, doce como algumas Nuvens matinais que rolam no levante. Lembro quando ao vê-lo a rubra Marselhesa, Lembro sensações e cousas de prodígio E penso que ele tem a máscula grandeza Desse sedutor, vital barrete frígio!... Às vezes meu olhar, medindo-lhe o contorno E a flácida plumagem que serve-lhe de adorno, - Satânico, voraz, esplêndido de fé! Exclama num idílio cândido e singelo, Por entre as convulsões artísticas do Belo: Oh! tem coração e alma, esse boné!...” (31) Igual silêncio, quanto a aclamações no teatro, ocorreu com outro beneficiado, Francisco Moreira de Vasconcelos. Ele, nesta altura, estava estampando no diário desterrense “Jornal do Comércio”, em rodapé, o perfil biográfico de Julieta dos Santos, escrito em que, mostrando a sua torrencial facilidade de expressão, ia também doutrinando sobre teatro: “O drama moderno há de ser um dos elementos poderosos da grande revolução: reforma social, e é preciso que exista o drama moderno, acentuado, característico, surdido, com suas bases, suas conclusões lógicas, racionais, boas, úteis e novas como os hodiernos produtos da nossa hidráulica e mecânica.” Desse escrito disse “A Regeneração”, de 14 de janeiro, que era “trabalho delicado e moldado na estética da arte dramática”, e qualificou o autor como “brilhante talento, cérebro pensador, banhado na luz do estudo.” Fora do teatro, houve manifestações de alta admiração a Moreira de Vasconcelos em dois sonetos, datados ambos de 13 de janeiro, um de Virgílio Várzea e outro de Cruz e Sousa. O de Virgílio Várzea, tentativa de versos alexandrinos, foi estampado em “O Despertador”, de 17 de janeiro. Tem duas epígrafes. A primeira de Almeida Garret: “Qualquer os fará mais belos. / ninguém tão d´alma os faria.” A segunda, de Mendes Leal: “Valha o desejo, se não vale o canto.” “Tu tens nesse teu crânio um mágico talento, Lavas mil heclânicas te abrasam toda a mente Oh! grande Vasconcelos!... Em vôo bem ardente Remonta-se às alturas teu ágil pensamento! Das nossas pátrias letras tu és o ornamento, Nos versos colossais te exprimes eloqüente, Condor lá do porvir!... Teu nome tão ingente Jamais se apagará ao frio esquecimento!... Ao ver dos teus escritos a luz, bela, prismática, Senti dentro em meu cérebro (te digo sem mentir) A flama rubicunda, poética, entusiástica! E... fiz-te este soneto, à toa, sem medir, Desculpa os meus erros, oh! filho lá da Ática Que sabes para a glória subir, subir, subir!!...” O soneto de Cruz e Sousa, publicado no “Jornal do Comércio”, de 27 de janeiro, é encimado por versos do próprio autor: “Na luta dos impossíveis / do espírito e da matéria, / tu és a águia sidéria / dos pensamentos terríveis!...” “É um pensar flamejador, dardânico, Uma explosão de rábidas idéias, Que, como um mar de estranhas odisséias, Saem-lhe do crânio escultural, titânico!... Parece haver um cataclismo enorme Lá dentro, em ânsia a rebentar, fremente! Parece haver a convulsão potente, Dos rubros astros num fragor disforme! Hão de ruir na transfusão dos mundos Os monumentos colossais, profundos, As cousas vãs da brasileira história! Mas o seu vulto, sobre a luz alçado, Oh! há de erguer-se de arrebóis c’roado, Como Atalaia nos umbrais da glória!! ...”(32) Para abono do entusiasmo dos rapazes desterrenses, registre-se que Moreira de Vasconcelos, em outro meio mais culto, arrebatou um vitorioso e vibrante poeta da sua geração e até dois anos mais velho do que ele, o riograndense Múcio Teixeira, também escritor teatral, que, o saudou como a chefe de escola. Sentimos dentro em nós aquela febre ardente Dos antigos heróis dos séculos sem luz, Que, em castelos feudais soltando a voz plangente Iam morrer mais tarde a defender a cruz!... Batalhamos também à viva luz do dia, Tendo uma pena em vez de gládio a cintilar, Fosse mister morrer pela razão que iria A falange moderna os louros conquistar!... Eu sei que há por travar batalhas portentosas, Que hão de enlutar de fumo a vastidão dos céus, Quais serão os heróis das lutas grandiosas? Colheremos ou não os marciais troféus? Não sei! Mas, com meu sabre, o alexandrino verso, Estou pronto a lutar no pelotão dos teus... Aninhando na escola os pássaros do berço Abriremos espaço aos grandes vôos seus! Sou fraco, porém, tendo a justa inspiração Dos mestres, sem jamais ficar parado e mudo, Irei contigo ouvir os hinos da ovação À idéia que nos guia - a qual em ti saúdo.” (33) O SEXTO ESPETÁCULO O sexto espetáculo marcado para 7 de janeiro, foi anunciado como “todo novo”. Subiria à cena, “com todo o capricho do mise-en-scène”, o drama em dois atos, original de Carlos d´Abreu, escrito expressamente para a atrizinha, “O anjo do perdão”, em que tomava parte toda a Companhia. Seguir-se-ia uma cena cômica, representada pelo ator João Rocha. Vinha depois um número musical, a mazurca “Glória ao gênio”, de Rebelo Júnior, oferecida a Julieta. Por último, seria representada “A vingança de Bilu”, a comédia que Francisco Freitas escrevera, no Rio de Janeiro, para benefício da atrizinha no “Recreio Dramático”, e que sabemos ter sido asperamente criticada, mas apresentada no programa como tendo merecido “grandes aplausos das platéias do Rio de Janeiro e Paraná”. Nela representavam Julieta dos Santos, Adelina Castro, Jesuína Leal, Irineu dos Santos, Leal Ferreira e João Rocha. Nenhum registro ficou de como se desenvolveu a récita. Parece, entretanto, que não foi levada à cena “A vingança de Bilu”, porque ela aparecerá em outro programa com a nota de ser “a primeira apresentação”. O SÉTIMO ESPETÁCULO O sétimo espetáculo realizou-se a 11 de janeiro, em benefício de Jesuína Leal e João Rocha. Para ele, pediu amparo o “Jornal do Comércio”: “Sendo os artistas que fazem seu benefício (...) hábeis e dedicados à arte, é de supor público que os auxilie valiosamente. A Sra. D. Jesuína Leal merece essa coadjuvação pelo duplo motivo de catarinense e atriz inteligente”. “O Despertador” disse, por sua vez: “É de esperar que o nosso público não deixe de auxiliar uma patrícia que pela primeira vez lhe pede proteção”. Houve também o apelo de “A Regeneração”; ela também pediu pela “simpática e inteligente atriz Jesuína Leal, que tem revelado gosto e habilidade para a arte da Talma.” Assim foi anunciada a representação: “Depois que a orquestra executar uma brilhante sinfonia de ouvertura pela primeira vez nesta Capital, Julieta dos Santos, a festejada atrizinha de nove anos, única rival de Gemma Cuniberti em todo o Universo, recitará a esplêndida poesia do Exmo. Sr. Dr. Barros Júnior, um dos seus grandes sucessos a par do “Melro” e “Judia”, e cuja recitação mereceu do público do Rio de Janeiro os maiores aplausos e elogios do “Jornal do Comércio”, “Cruzeiro”, Jornal da Noite” e “Gazeta dos Teatros”, que ofereceram-lhe estes dois últimos números especiais: “A aurora da Artista”. Seguir-se-á o grande sucesso do Recreio Dramático, a espirituosa comédia em três atos, original do primeiro comediógrafo brasileiro o Sr. França Júnior: “Como se fazia um deputado”, maior sucesso no Rio de Janeiro”. Ficou a notícia de como foi declamada a poesia “A aurora da artista”. Deu-a o “Jornal do Comércio”, em sua edição de 13 de janeiro: “Os aplausos entusiásticos, frenéticos que a platéia soube dispensar à encantadora Julieta, constituem a mais derradeira prova de que ela interpretou magistral, divinamente estes versos que formam “A aurora da artista”... O OITAVO ESPETÁCULO O oitavo espetáculo, anunciado como “grande e esplêndido espetáculo”, realizou-se a 14 de janeiro, domingo, tendo sido transferido do dia anterior, por causa do mau tempo. Foi dado em benefício da igreja da Venerável Ordem Terceira de São Francisco da Penitência. Constava do seu programa “A primeira dor”, drama em que tinham papéis Julieta dos Santos, como protagonista, Francisca Leal, Jesuína Leal e Adelina Castro e os atores Moreira de Vasconcelos, Irineu dos Santos e Leal Ferreira. Seguia-se a comédia em três atos “Um casamento singular”, de que participava toda a Companhia. Finalizaria o espetáculo a cena cômica do ator Leal Ferreira “O mundo vai torto”, que, segundo informava o programa, vinha merecendo “gostosas gargalhadas”. O jornal “O Despertador” inseriu a simpática notícia: “O teatro acha-se vistosamente embandeirado e enfeitado, devendo tocar de tarde e à noite, durante os intervalos, algumas peças de música a Sociedade “União Artística”, que generosamente se presta a abrilhantar a festa. Temos, portanto, dois atrativos, que chamarão por certo grande concorrência ao espetáculo de hoje: um, o fim a que é destinado; outro, o excelente programa, que é convidativo. Previnam-se, pois, com os competentes bilhetes.” Da récita fez o “Jornal do Comércio”, de 16, esta concisa apreciação: “O seu desempenho foi bom”. Dela também faremos um conciso comentário: “Por muito respeitável que fosse a beneficiada, se a Companhia a favoreceu com um espetáculo, foi certamente porque estes estavam sendo compensadores.” A ESTRADA DE FERRO DOM PEDRO PRIMEIRO O espetáculo culminante seria marcado para o dia 18 de janeiro, em benefício da atrizinha Julieta dos Santos. Mas, antes dele e concomitantemente com as récitas de 11 e 14, veio um auspicioso acontecimento alvoroçar a Cidade do Desterro: fora dada garantia de juros ao capital da projetada estrada de ferro que, partindo do Continente fronteiro à Ilha, iria a Porto Alegre. O “Jornal do Comércio” e “O Caixeiro”, por meio de boletins, apressaram-se em divulgar o animador evento. “Raiou a aurora de um grande dia”, disse o boletim do “Jornal do Comércio”. A Estrada de Ferro Dom Pedro Primeiro será finalmente uma realidade. A notícia oficial que se aguardava acaba de chegar. Não há mais dúvida alguma. O decreto acha-se assinado por Sua Majestade o Imperador.” E seguia-se o telegrama em que o Engenheiro Sebastião Antônio Rodrigues Braga comunicara o fato: “Foi ontem referendado por Sua Majestade o Imperador o decreto garantindo juros ao capital necessário à realização da maior aspiração da Província de Santa Catarina - a Estrada de Ferro Dom Pedro Primeiro. Aos distintos brasileiros que intervieram dedicadamente para este ato, o Conselheiro Henrique Francisco d´Ávila, Ministro da Agricultura, e Lourenço de Albuquerque, Ministro dos Negócios Estrangeiros, Almirante Barão da Laguna, o ilustre Senador por essa Província, deverá este perene reconhecimento. Congratulo-me com os catarinenses, por saber que em curto prazo derramar-se-á o progresso e a riqueza por toda a sua Província.” À noite, - segundo noticiou o mesmo jornal, - “cidadãos de todas as classes e de todos os credos políticos reuniram-se no Clube Doze de Agosto, para dar expansão ao nobre entusiasmo de que se achavam possuídos. A essa reunião compareceram, a convite da comissão encarregada dos festejos, Suas Excelências os Srs. Dr. Presidente da Província, Dr. Chefe de Polícia, Conselheiro João Silveira de Sousa e outros cavalheiros distintos. O Sr. Eliseu Guilherme, com a palavra, historiou rapidamente os fatos que se prendiam ao grandioso assunto de que se tratava, fazendo notar os hercúleos esforços que o Dr. Sebastião Braga, há vinte anos, emprega na sustentação da sua idéia. Falaram em seguida os Srs. Eufrásio Cunha, Cristóvão Pires e Conselheiro Silveira de Sousa. Muitos brindes foram levantados às pessoas que mais de perto se interessaram por esta importante idéia, e com especialidade ao Dr. Sebastião Braga.” Isto ocorreu no dia 11, subindo ao ar muitos foguetes e tocando no ato a banda da Sociedade Musical “União Artística”. A comissão dos festejos procurou angariar donativos, recolhendo-os as seguintes firmas comerciais: André Wendhausen & Cia, Severo Francisco Pereira, Ricardo Barbosa & Cia, Eufrásio José da Cunha, Ernesto Bainha, Joaquim Martins Jacques e Luís Horn & Cia. A população foi convidada a participar das festas que se realizariam nas noites de 12, 13 e 14, pedindo-se a todos, naturais e estrangeiros, que conservassem iluminadas as frentes de suas casas. O mau tempo embaraçou os primeiros festejos populares, mas a cidade manteve-se iluminada e bandas de música percorreram as ruas até adiantadas horas da noite. A festa principal foi realizada pelo corpo comercial, que, segundo noticiou “O Despertador”, se reuniu, no espaçoso salão do Clube Doze de Agosto, e “grande quantidade de cidadãos de todas as classes, sem distinção de política e em verdadeira fraternidade, fizeram uma passeata, acompanhadas pelas bandas de músicas das sociedades “Comercial”, “Trajano” e “União Artística”, percorrendo várias ruas, dando vivas, subindo ao ar imensidade de foguetes e queimando-se alguns fogos de bengala, “ (...) “ sem se esquecer nunca do nome do Dr. Braga.” A classe caixeiral, - correspondente à dos atuais comerciários, classe considerável, que era o mais fácil refúgio dos rapazes pobres com propensões literárias, que, guardadas as proporções, fazia movimentos hoje promovidos pelos estudantes, também efetuou as suas manifestações. O seu órgão, “O Caixeiro”, distribuiu, como já foi referido, boletim divulgando a garantia de juros dada à ferrovia; e por ele foi convocada “a briosa classe caixeiral” para comparecer, às 7 horas da tarde, no edifício da Sociedade Musical Comercial, para festejar a gloriosa notícia. Isto ocorreu a 12 de janeiro. Na noite de 17, realizou a classe uma grande passeata, puxada pelas bandas musicais “Trajano” e “Comercial”. “À luz dos flambeaux, - descreveu o seu jornalzinho - ao som harmonioso da música, ao troar dos foguetes, levantaram-se vivas a Sua Majestade o Imperador, ao Dr. Braga, ao corpo comercial, ao patriótico gabinete Paranaguá, ao laureado riograndense Henrique d´Ávila, ao exmo. Barão de Laguna, ao Conselheiro Lourenço de Albuquerque, ao Conselheiro Silveira de Sousa e ao Dr. Taunay. Dirigiram-se à Câmara Municipal, onde o seu muito digno Presidente levantou vivas correspondentes ao assunto que festejavam, e ao Palácio do exmo. Presidente; falando S. Exa. ao grande número de povo que acompanhava a marcha, mostrou, em poucas palavras, o júbilo de que se achava possuído por ter-se realizado a loira esperança da Província de Santa Catarina”. Recolheram-se enfim ao edifício da Sociedade Musical Comercial, onde foi servido um “copo d´água”, - nome então dado ao que hoje se chama coquetel, sendo erguidos vivas, especialmente do Dr. Sebastião Braga. Foram promotores das manifestações da classe o seus membros Francisco Vieira da Rosa, João Batista Peixoto, Rodolfo Raul da Costa Oliveira, Francisco de Assis Costa e João Moreira da Silva. As justificadas alegrias que acabam de ser referidas foram, como se viu e como é fácil de entender, principalmente do pessoal do comércio e dos políticos. Nelas, só se nos deparou uma contribuição poética, que foi um soneto de saudação ao Engenheiro Sebastião Antônio Rodrigues Braga, publicado no “Jornal do Comércio”, de 18 de janeiro, encimado pelos conhecidíssimos versos de Camões: “Depois de procelosa tempestade...”, datado de 15 e subscrito pelas letras “S.L.” Quem estará nelas encolhido? Será Santos Lostada, que também se ocultava no pseudônimo “Severo Lima”, em que há as duas iniciais “S.L.”? Mais ainda: Santos Lostada era caixeiro. Cabe ainda, entretanto, uma dúvida: nesta altura ele fazia melhores versos. Recolhamos, porém, o soneto, de acordo com a nossa explicada benevolência. “Exulta de prazer, nobre Engenheiro, A Província te contempla ansiosa Ao recolher de ti a grata nova De um futuro que lhe é tão lisonjeiro! Foste tu, exímio Braga, o primeiro A lhe abrir a senda gloriosa Que há de fazer esplendorosa Ante esse melhoramento verdadeiro! Novo Alexandre, batalhador ousado, Quebraste as peias, preconceitos frívolos Que o fero egoísmo assim o tinha formado! Teu nome será mais um dos símbolos Que em nossos corações será gravado Para eterno descalabro dos malévolos.” Houve, em compensação, expansões oratórias em discursos de improviso, e expansões jornalísticas em artigos editoriais e de colaboração, todos esperançosos e laudatórios. Pela sua nunca esmorecida tenacidade, bem merecia admiração e louvores o Engenheiro Sebastião Braga. Nascido no Rio de Janeiro em 1836, estava então com 47 anos de idade. Era bacharel em matemáticas pela antiga Escola Militar, tendo servido no exército de 1854 até março de 1866, quando se reformou no posto de capitão do corpo de engenheiros. Elaborou e publicou, em 1861, o “Projeto de uma estrada de ferro de Santa Catarina a Porto Alegre”, e para este projeto, que se tornou a sua idéia fixa, conseguiu, afinal, a atenção de círculos econômicos, sendo, com capitais ingleses, fundada a Estrada de Ferro Dom Pedro Primeiro (The D. Pedro I Railway Company Limited), da qual ele ficou sendo representante no Brasil; e, nessa qualidade, em 1877, se dirigiu à Assembléia Geral. Estava, pois, a lutar, havia mais de 20 anos, conforme assinalou Eliseu Guilherme; e estava a lutar bravamente, com prejuízo de seus interesses e até de sua saúde. Na Capital da Província, gozava de alto conceito, tendo sido recomendado para uma cadeira de deputado à Assembléia Geral pelas classes conservadoras, quando elas, em 1881, resolveram ter representantes seus, tanto na Assembléia como na Provincial. O noticiário das festas frisou a circunstância de terem concorrido “cidadãos de todos os credos políticos”, “em verdadeira fraternidade”. Era, realmente, circunstância digna de relevo, porque a política partidária, talvez ainda mais do que hoje, em tudo penetrava, a tudo se antepunha e tudo separava. E, naqueles fins de 1882 e começos de 1883 era de extrema confusão o ambiente partidário e administrativo. Nas mãos dos liberais, por ser liberal o gabinete de Ministros - o Gabinete Paranaguá, estava o executivo provincial; mas a maioria da Assembléia era do Partido Conservador e votou um orçamento a que o Presidente Antônio Gonçalves Chaves negou sanção. Estava, assim, a Província sem lei de meios. Exata era a assinalada ausência de partidarismo nos festejos. Na primeira reunião, efetuada no Clube Doze de Agosto, estava presente o Dr. Antônio Gonçalves Chaves, Presidente da Província e liberal; nela, discursaram o ilustre desterrense Conselheiro Silveira de Sousa, então em visita à sua terra, também liberal, e Eliseu Guilherme da Silva, do mesmo partido, e seu deputado na Assembléia Provincial. Nela, discursou um deputado do partido conservador, o então Farmacêutico Eufrásio José da Cunha; e também discursou Cristóvão Nunes Pires, deputado do terceiro partido, ultimamente organizado - o Partido das Classes, que, embora não tivesse conseguido mandar representante seu à Assembléia Geral - e ele, conforme sabemos, seria o engenheiro Sebastião Braga - pudera eleger dois para a Assembléia Provincial. Na passeata da classe caixeiral, foram erguidos vivas a Sua Majestade o Imperador que estava acima dos partidos; mas o foram também ao gabinete Paranaguá e aos seus ministros Henrique Francisco d´Ávila e Lourenço de Albuquerque, e ao Conselheiro Silveira de Sousa, liberais; e foram também vivados os parlamentares conservadores senador Barão da Laguna e deputado Alfredo d´Escragnolle Taunay, que vinham trabalhando pela Estrada de Ferro; e foi acima de todos aclamado o Dr. Sebastião Braga que tinha ligações políticas com o Partido das Classes. São muito de assinalar as aclamações conjuntas ao Conselheiro Silveira de Sousa, e ao deputado Alfredo de Taunay, adversários aguerridos, ambos figuras de prol nas letras, com os quais esperamos ter a satisfação de ainda nos encontrar com as representações da Companhia Dramática. Encerremos esta digressão, motivada pelas ruidosas alegrias que coincidiram com as representações da Companhia Dramática. Sabemos que a Estrada de Ferro Dom Pedro Primeiro ainda está por construir; e sabemos que é hoje nome olvidado e desconhecido o do seu heróico idealizador e empreendedor, o Engenheiro Sebastião Antônio Rodrigues Braga. Lembremo-lo nós e participemos das homenagens que lhe tributaram os velhos desterrenses; e, juntamente com eles, voltemos ao Teatro Santa Isabel, para acompanhar os triunfos da menina Julieta dos Santos. O ESPETÁCULO EM BENEFÍCIO DA ATRIZINHA JULIETA DOS SANTOS A 18 de janeiro, quinta-feira realizou-se o espetáculo em benefício da atrizinha Julieta dos Santos, anunciado com “sarau dramático e musical” e “grande festival artístico”. Dele, com exaltados encômios, fez propaganda “O Despertador”. “Realiza-se, amanhã, se o tempo permitir, o benefício da encantadora menina Julieta dos Santos, esse verdadeiro gênio do palco, glória artística do Império do Cruzeiro, e de que se deve orgulhar a Província do Rio Grande do Sul, que a viu nascer. Santa Catarina pode e deve também orgulhar-se de ter sido no palco de seu primeiro teatro que esse gênio privilegiado começou a revelar-se ao mundo ensaiando os seus primeiros passos no caminho da arte.” Com igual calor, preconizou o espetáculo o bi-semanário “A Regeneração”. “Será essa a ocasião dos admiradores da nossa pequena Desajet tributarem-lhe as maiores homenagens, os mais altos louvores (...)”. “Esperamos que o nosso público corra pressuroso ao teatro, para admirar esse prodigiozinho, essa verdadeira rival de Gemma Cuniberti e que, ao vê-la despontar no proscênio, como a estrela d´alva na fímbria do horizonte saiba, num delírio soberbo de palmas, de bouquets, de coroas, render-lhe entusiasticamente, com amor patriótico, com esse apreço ao que é bom, ao que é belo, ao que é altamente agradável, as honras que ela tanto e tanto merece. Ao teatro, pois, exmas. famílias! Ao teatro briosa mocidade! Faz benefício o gênio brasileiro - Julieta dos Santos.” O entusiasmo de “A Regeneração” traduziu-se em outra homenagem: em edição especial publicada no dia do benefício, para qual convidou “a todos os amantes da literatura a prepararem suas produções, quer em prosa, quer em verso.” Assim, a cidade do Desterro imitaria o que outras haviam praticado. “Um pouco de trabalho intelectual e teremos acompanhado as nossas irmãs, mormente Paranaguá, se não no todo, ao menos em parte, nos brilhantes e esplêndidos festejos que têm promovido a esta privilegiada atrizinha.” Lamentavelmente, falta esta poliantéia na coleção de velho periódico existente na Biblioteca Pública. Quantos subsídios interessantes não há de ter recolhido! Do espetáculo deram circunstanciadas notícias “O Despertador” e o “Jornal do Comércio”. O teatro, rica e vistosamente ornamentado, às nove horas da noite, achavase repleto, vendo-se na platéia grande número de senhoras, que não puderam obter camarotes. Depois da “ouvertura”, executada pela orquestra, cujos professores trajavam preto e gravata branca, sobe o pano e aparece no proscênio a atrizinha. A assistência, entusiasmada, põe-se de pé, prorrompe em estrondosos aplausos e flores, em chuveiro, jogadas de todos os lados por mãos febris, vão, como por encanto, beijar as delicadas plantas da beneficiada, tapizando completamente o tablado. Toca-se, em seguida, em cena aberta, o “Hino artístico”, composto pelo regente da orquestra, Professor José Brasilício , e consagrado à atrizinha. Do primeiro camarote da direita, levanta-se Horácio Nunes Pires e, pronunciando curta mas brilhante alocução, depõe nas mãos de Julieta o drama “O anjo do perdão”, que para ela escrevera. De igual camarote da esquerda, oferece-lhe Guelfo Zanirati uma polca de sua composição, intitulada “A atrizinha brasileira” . Da bancada da orquestra, ergue-se o Professor Luís dos Santos Barbosa, primeiro clarinete, e apresenta à heroína da festa a valsa que ela lhe inspirara e a que dera o seu nome. Tudo sob os aplausos da platéia. Segue-se a representação, pela primeira vez no Teatro Santa Isabel, da comédia “Vingança de Bilu”, escrita por Francisco de Freitas, que sabemos ter sido duramente criticada na Corte. Também não lhe foi favorável o cronista de “O Despertador”. “O autor, - disse ele, - talhou papel abaixo do talento artístico da atrizinha (...). Uma menina viva, que descobre o namoro das irmãs e trata de se divertir à custa dos namorados destas! Isto pode ser muito espirituoso e até verossímil; mas não nos parece muito próprio pôr em cena uma menina falando em namoros e namorados, etc.” O “Jornal do Comércio” apreciou apenas a ação da protagonista: " ... a menina sustenta com bastante graça e desembaraço incomparável o importante papel que lhe cabe”. A atrizinha é saudada pelo Professor Wenceslau Bueno de Gouvêa, que, de um dos camarotes, recita versos a ela dedicados, “um bouquet de algumas bem inspiradas estrofes” na opinião do mesmo jornal. Segue-se número de música, em cena aberta: a execução pela orquestra da polca de Guelfo Zanirati. Vem o segundo número teatral: “A paixão de Lélia”, cena dramática escrita por Elias dos Santos e que, segundo informava o programa, tinha causado verdadeiro delírio no Teatro Recreio Riachuelense, onde as famílias invadiram o camarim da atrizinha, para a cumprimentarem. Mas, novamente, não mereceu o entrecho da peça louvores do cronista de “O Despertador” . “A paixão de Lélia”, comentou ele, - apesar de escrita expressamente para a atriz-menina, parece que antes o fora para uma atriz-mulher. Na realidade é uma concepção verdadeiramente original a tal “Paixão de Lélia” ! Uma menina de nove para dez anos, amorosamente apaixonada, falando em “seu primeiro amor de criança, seu palpitar de coração, seus ciúmes” e outras frases deste gênero, muito vulgares nas damas galãs e galãs de dramas e comédias, mas impróprias na boca de uma criança; afinal, envenena-se com um forte veneno, que naturalmente tinha adrede preparado, e que a mata quase instantaneamente! É bastante inverossímil, e até quase repugnante” . O censor encantou-se, porém, com a representação: “No entanto o trabalho da menina-atriz é admirável, e custa a crer que uma menina de dez anos o possa desempenhar com tanto sentimento”. Cessados os aplausos, toca a orquestra, em cena aberta, a valsa Julieta dos Santos, homenagem do Professor Francisco Luís dos Santos Barbosa. Segue-se a comédia “O diabrete de nove anos”, de Moreira Vasconcelos, que, segundo “O Despertador” , todos esperavam com ansiedade, “porque, desde que os jornais da terra falaram, pela primeira vez, no nome de Julieta, foi sempre de envolta com o título desta comédia, donde se concluiu que era ela o melhor florão da brilhante coroa de glórias que orna a infantil cabeça de Julieta dos Santos”. “Enganaram-se, - esclarece o cronista, - os que assim pensaram”. E analisa a peça. “O “Diabrete de nove anos” é vazado quase nos mesmos moldes da “Vingança de Bilu”, queremos dizer: foi escolhido o mesmo assunto: uma menina que descobre o namoro da irmã e que começa a espreitar os dos namorados, até ter ocasião de fechá-los em um quarto! Se o autor tivesse escrito a sua comédia de forma a apresentar ao público a menina fazendo todas essas diabruras, sem consciência do que fazia, e só por mera criancice, vá, não teríamos reparos a fazer; mas patentear-nos uma menina de nove anos, fazendo reflexões sobre namoro, dizendo aos namorados, no momento em que os deixa na sala, “eu os deixo sós, agora vejam lá o que fazem...” , que tem monólogos em que diz para o público “estes namorados pensam que as crianças não têm olhos nem ouvidos”, - há de permitir-nos o Sr. Vasconcelos, não nos parece de bom gosto.” E o cronista, prevendo objeção, defende o seu ponto de vista: “E verdade que podem observar-nos ser a comédia escrita no mais puro realismo; mas, ainda assim, para que ir atirando desde já o bafo da corrupção sobre o espírito ainda inocente da interessante menina.” A representação, entretanto, conforme assinala, correu bem, Julieta nada deixou a desejar, sendo o autor chamado à cena e muito aplaudido. O “Jornal do Comércio” não trata do enredo da peça e lamenta faltar-lhe espaço para dizer “duas palavras sobre a espirituosa e fina comédia (...), que muito faz realçar o gênero artístico da pequena Julieta”. Moreira de Vasconcelos, após os aplausos que lhe valeu a comédia, outros colhe com a recitação de sua poesia “A Alemanha”, “moldada, - diz “O Despertador”, - pelo estilo elegante do poeta português Guerra Junqueiro”, e na qual, - diz o “Jornal do Comércio”, - “traduz a vivacidade de seu gênio de harmonia com a grandeza das idéias”, patenteando “os firmes traços de sua robusta inteligência” e “a força indômita de seu vigoroso talento.” Depois do número musical “Gloria ao gênio”, mazurca de Rebelo Júnior, já executada na récita de 7 de janeiro, sobe à cena uma peça de autor catarinense: o entreato “Diabruras de Julieta”, escrito por Francisco de Paula Sena Pereira da Costa. Ouçamos a opinião do atento e entendido cronista de “O Despertador”. “O autor teve em vista, segundo nos parece, em uma pequena composição fazer trabalhar a sua protagonista em diferentes gêneros e conseguiu perfeitamente o seu fim. Ao levantar o pano, Julieta, que se acha presa em um quarto, tem arrebatamentos de mau gênio, bate, atira com cadeiras, etc., mas em seguida cai no sentimental e larga a chorar, recordandose de sua mãe, que já não existe. Não dura muito este estado, e seu orgulho de filha revolta-se contra a prepotência de uma governante que a prende entre quatro paredes, vindo então o desejo de uma vingança, que passa logo a pôr em prática, espalhando pelo chão toda a roupa que se acha nas gavetas e baús. Como criança que é, esquece facilmente da vingança, para se ocupar de brinquedos e, vestindo uma saia de mulher, finge um vestido de cauda e começa a imitar as atrizes, recitando bocadinhos da “Morgadinha de Val Flor”, “Niniche” e outros. Ouve a voz da governante e mete-se na cama, fingindo-se doente; entra aquela, fica desesperada com o estado em que se encontra o quarto, mas é iludida pela pequena, a quem julga realmente doente, e vai buscar água com açúcar, que ela lhe pede; de volta, e quando se chega à cama, Julieta lhe atira com a roupa, envolvendo-a de tal forma que a velha dá uma porção de voltas sem se poder desvencilhar, e quando o consegue, e corre atrás da pequena, esta dá com a mão em uma garrafa de cristal que está em cima da mesa, atirando com ela aos pés da governante, que pára espantada, fugindo Julieta pela porta que a velha deixou aberta. Não tarda o diabinho em voltar e, apanhando a governante arrumando a roupa do baú, empurra a tampa deste, ficando a velha com o pescoço entalado; conseguindo safar-se, agarra Julieta, a quem quer obrigar a ajoelhar e pedir perdão; mas a menina liberta-se e diz, apontando para o público: Não tenho medo da senhora, porque aqui estão todos esses senhores para me defenderem”, e cai o pano.” “Por esta breve descrição, - continua o cronista , - já o leitor pode avaliar o trabalho que pesa sobre o papel da pequena Julieta; esta, porém, nada deixou a desejar, representando com uma naturalidade e graça admiráveis. O Sr. Sena Pereira abusou um pouco das forças da simpática menina, conservando-a tanto tempo em cena e escrevendo-lhe um papel difícil, mas ela venceu essas dificuldades com suma facilidade.” “O entreato acaba frio, - observa o cronista. Depois de tanto movimento em todo correr da representação, o final é realmente desanimador! O Sr. Sena Pereira contava talvez que o dito da menina tivesse em resposta uma roda de palmas, mas não aconteceu assim; e, portanto, parece-nos que será conveniente que o autor retoque aquele final,” Entretanto, segundo o próprio cronista, “os aplausos não faltaram, e o Sr. Sena Pereira foi chamado à cena”. Vem o número final: “Umas variações de flauta”, que Julieta, coadjuvada pela orquestra, devidamente ensaiada pelo Professor José Brasilício, executa em uma flauta, “vinda do Rio de Janeiro pelo paquete “Rio Negro”. Era esclarecimento exarado no programa, que também informava estar Julieta “vestida como um gentleman pela Alfaiataria do Bom Gosto.” Com as tais “variações de flauta” Julieta “flauteia, com graça, a tudo e a todos” - disse o “Jornal do Comércio”. O mesmo disse “O Despertador”: “flauteou o público com uma graça infantil, que lhe valeu estrondosos aplausos.” E acrescenta: “Chamada à cena, foi novamente a beneficiada coberta de palmas, flores, chuva de ouro, e muitos ramos lhe foram oferecidos, assim como um álbum de poesias, um grande retrato quase em tamanho natural e outros objetos”. O “Jornal do Comércio” é mais minucioso. “Depois de terminado o programa, sobem ao palco os entusiastas admiradores da rainha da festa, os jovens João da Cruz, Virgílio Várzea e Santos Lostada, oferecem-lhe, no meio dos mais estrepitosos aplausos da platéia, o seu retrato à crayon, muitos bouquets e um volume de versos, primorosamente encadernados, escrito e mandado imprimir pelos referidos jovens e a expensas de diversos admiradores de Julieta. O Sr. Cruz recitou um soneto, em homenagem ao brilhantíssimo talento da bambina americana. Nesta ocasião, vem ao proscênio o inteligente moço Moreira de Vasconcelos, e, ainda uma vez, saúda a simpática atrizinha, dizendo-lhe duas palavras: “Trabalha e aspira !” “Duas palavras que traduzem o ardor de sua alma de poeta, que revelam a grandeza do seu gênio de artista. O poeta e artista Moreira de Vasconcelos, ao saudar a mimosa Julieta, solta do lábio o verbo ardente e arrebata a platéia nos vôos de águia! ” “E o pano desce, ao calor dos mais entusiásticos vivas, ao estrépito dos mais ardentes e fervorosos bravos.” A Sociedade Musical “União dos Artistas”, que obsequiosamente tocara no saguão do teatro, completou a gentileza, acompanhando a beneficiada até sua casa, apesar da chuva, com séquito do povo, à luz de fogos de bengala e sob aplausos, sendo a menina carregada ao colo por algum dos seus admiradores. Ali, - conclui o “Jornal do Comércio”, - “foram ainda proferidos breves discursos e sinceros brindes, terminando assim a merecida homenagem à incomparável atrizinha, em cuja fronte já a glória depôs os seus lauréis, já o gênio estampou o seu cunho, já a imortalidade imprimiu os seus beijos ao clarão dos mais vívidos raios! ”. E congratula-se com os promotores das manifestações, “que ao mesmo tempo que rendem o devido preito ao gênio, elevam e enobrecem o nome catarinense.” “Sem medo de errar, - disse, por sua vez, “O Despertador” , - foi uma brilhante festa artística, e talvez a primeira deste gênero presenciada nesta Capital”. Completemos a narração do encerramento do espetáculo, dando informações sobre o retrato e o livro oferecidos a Julieta. O retrato é desenho de Virgílio Várzea. O livro intitula-se “Julieta dos Santos - Homenagem ao gênio dramático brasileiro” e reúne versos dos três moços, versos já nossos conhecidos, porque, datados como estão, foram, sucessivamente, incluídos na descrição dos espetáculos. Abrem com palavras inflamadas, nas quais os jovens se mostram cônscios de poderem agitar, inovar e altear o meio catarinense, afrontando impecilhos que já rastejam. O ESPETÁCULO DO DIA 21 DE JANEIRO A vitoriosa temporada da Companhia Julieta dos Santos encerrou-se, praticamente, com o espetáculo do dia 18. O realizado a 21, domingo, não há de ter despertado particular atenção, sendo os jornais omissos quanto ao seu desempenho. Fora anunciado com o seguinte programa: repetição do drama “O anjo do perdão” e da comédia “Um diabrete de nove anos”, esta a pedido “de algumas excelentíssimas famílias” , havendo entre as duas peças uma nova: a cena cômica “Agüente-se no balanço”, de Francisco Vasques Corrêa, representado pelo ator João da Rocha. O ANIVERSÁRIO DA ATRIZINHA JULIETA DOS SANTOS Festivo foi, em compensação, o dia seguinte deste espetáculo, o dia 22 de janeiro de 1883, porque nele completou Julieta dos Santos dez anos de idade. “À noite, segundo registra o “Jornal do Comércio”, alguns jovens admiradores da atrizinha Julieta do Santos, à frente de excelente orquestra, foram à sua casa saudá-la ( ... ). Como orador da comissão, falou o Sr. João da Cruz, expondo o motivo da visita. Depois, foi servido um copo d’água. O Sr. Vasconcelos, diretor da Companhia, em breve discurso, agradeceu, em nome de Julieta, essas sinceras e simpática menina,” espontâneas manifestações de que era alvo a CRÔNICA DE EUCLIDES DE CASTRO “A CARVÃO” No dia subseqüente - 23 de janeiro, publicou o “Jornal do Comércio”, em rodapé, uma crônica do seu colaborador que usava o pseudônimo de “Euclides de Castro” e que as subordinava ao título “A carvão”. Eis-me de volta, leitoras, são e escorreito, e, de mais a mais, inspirado. Pois quem há que se não sinta inspirado, arrebatado às altas concepções do espírito ante a jovem Julieta dos Santos? É realmente um gênio aquela menina! Mas é um gênio que está mais para perder-se, que para aproveitar-se, porque eu e outros fracos mortais temos feito tanto barulho, temos queimado tanto incenso, que a menina atordoada, sufocada pelo fumo dos nossos turíbulos, pode julgar-se levada nas asas de uma falsa sublimidade a outras esferas mais lúcidas que a nossa, desconhecer o meio em que vive realmente, desnortear, desprezar o estudo da arte, desatender aos prudentes conselhos dos mestres que com tanto amor, com tamanha proficiência a têm encaminhado para um futuro glorioso, e a tornar-se - antes que tenham desabrochado as mais donosas flores daquele talento privilegiado - orgulhosa, intratável, altiva, ela, a Julieta, que é tão meiga, tão dócil, tão modesta ! ” O cronista, conforme exibe este intróito, sabe pensar, saber escrever, e o seguimento demonstra que é lido na “Arte Poética” de Horácio, e também nos mestres de ironia. O alvo não apontado, mas claramente visível, são os que versejavam com arrebatamento. O cronista também fabricou um soneto arrebatado e nele, fingindo autocrítica, descarrega manhosa pancadaria. Não houve, de parte dos alvejados, reação escrita, razão pela qual interrompemos aqui o assunto, para o retornar em outra oportunidade. OS VERSOS DE MOREIRA DE VASCONCELOS À EXMA. SRA. Dª. AURÉLIA J. VÁRZEA Enquanto a Companhia Dramática aguardava transporte para a Província do Rio Grande do Sul, ia o empresário Moreira de Vasconcelos enchendo o seu tempo como escritor; e, no “Jornal do Comércio”, que continuava a divulgar-lhe as notas biográficas de Julieta dos Santos, iniciou, a 25 de janeiro, uma série de crônicas com o título geral de “Atualidades”, tendo o primeiro por assunto “A bisnaga”, que era uma inovação nas brincadeiras do entrudo. No mesmo periódico, a 28, deu publicidade aos versos que escrevera no álbum de Dª. Aurélia J. Várzea, datados da véspera e intitulados “Reconhecimento”. Há uma lei que rege os grandes organismos, Autócrata, robusta, esbelta e onipotente, Como a lei que levanta os grandes cataclismos; É a lei da consciência, a filha da Razão! É rude como a luz na luta consciente. É boa como Deus nos atos do perdão.” E seguem-se mais vinte tercetos, e deles se vê que precioso era o álbum de Dª. Aurélia, irmã de Virgílio Várzea. “Cantaram-vos, Senhora, as Musas cristalinas ... Cantaram-vos, Senhora os astros inflamados Pela boca de abril na tuba das boninas! Lançaram-vos aos pés da primavera as franças, Tapetes de utopia - páramos dourados, D´astros vos salpicando as setinosas tranças.” A CRÔNICA DE MOREIRA DE VASCONCELOS SOBRE O CARNAVAL DO DESTERRO A partida da Companhia Dramática deveria efetuar-se no paquete esperado da Corte no dia 28 de janeiro, e assim a apreciou o “Jornal do Comércio”: “Julieta dos Santos deve ir satisfeita. Os fervorosos aplausos, as justas ovações de que foi alvo hão de encorajá-la a trilhar com passo firme o escabroso caminho da arte. Vá, e lá na terra que lhe deu o berço, esplêndidos triunfos a acompanhem em sua gloriosa carreira artística.” Entretanto, no dia seguinte, informou que, à vista de diversos convites da Laguna, garantindo quatro espetáculos, resolveu a Companhia ir até lá, seguindo no dia 29 no vapor “São Lourenço”; lá se demoraria até 9 de fevereiro, transferida para o dia 14 a viagem para o Rio Grande. E aplaude a iniciativa dos moradores da Laguna: “Ainda bem que os lagunenses não quiseram deixar passar esse mimoso astro do teatro brasileiro, sem as suas homenagens de povo civilizado.” - Teria a Companhia ido à cidade da Laguna? - Nada informam os jornais do Desterro, mas há fundamento para admitir que não. É que nos dias do Carnaval, a saber: 4, 5 e 6 de fevereiro, estava Moreira de Vasconcelos no Desterro, tendo feito encomiástica apreciação dos festejos em crônica estampada no “Jornal do Comércio” e que foi a terceira da série “Atualidades”. “Se pelo critério, ordem e pujança de um divertimento público, pode-se aferir o quilate da civilização de um povo - os dias 4, 5 e 6 do corrente colocaram a Capital da Província de Santa Catarina à direita das mais adiantadas do Sul Americano. Não há no Brasil cinco capitais de Província que possam competir com esta nas festas consagradas ao rubicundo Momo!” E entra em minúcias, merecendo-lhe elogios os dois bailes realizados na noite de 5, o dos “Bons Arcanjos”, no “Clube Doze de Agosto”, que durou até as 4 horas e meia da madrugada; e o do “Diabo a Quatro”, no Teatro Santa Isabel, que foi o primeiro ali efetuado, que se prolongou até as 5 horas e em que dançaram duzentos e cinqüenta pares. E descreve a “Caverna Isabelina”. “Nivelada a platéia com o palco, enfeitados os camarotes, o tablado transformado em um bosque delicioso, dando acesso - à direita, para um amplo pavimento, cuidadosamente ornamentado, servindo de toilette du femmes, - à esquerda para um sortido e escrupuloso buffet, - ao fundo, para uma refrigerante cascata que subia quase às bambolinas, e que tornava agradabilíssimo aquele petit bois, mais próprio dos sonhos de Narciso e da frauta de Ovídio, que de uns maganões, mortais como nós, disfarçados de Mefistófeles e Guaranis.” Valeria a pena, continuando a aproveitar os ricos subsídios de Moreira de Vasconcelos e tomando outras descrições e apreciações publicadas na imprensa, traçar um quadro do carnaval de 1883. Mas isto alongaria demais esta narração; e, por outro lado, o Carnaval no Desterro pede estudo especial, porquanto está entre os seus fautores de progresso artístico e de animação social. Voltando a Moreira de Vasconcelos, respingaremos - e o Leitor logo verá o motivo - o que ele disse de um dos carros do cortejo dos “Bons Arcanjos”, que era de crítica à Câmara Municipal: “Achamos de espírito a panela municipal e digno de elogio o cuidado com que trajaram-se os manequins que a cercavam.” Era muito natural que Moreira de Vasconcelos, com a sua multiforme e pomposa atividade, fosse conquistando admiradores e sequazes, mormente entre os moços; mas não menos natural era que, ao mesmo tempo, provocasse irritações e criasse opositores, entre os que, na retumbância verbal, facilmente percebiam deficiências literárias e científicas. Há ainda, entre os humanos, os que, nas imperfeições dos moços, em vez de imaturidade, que será superada, vêem incapacidade congênita. Há também os inimigos de novidades. E há ainda quem não suporte a glória dos outros. Seja como for, o caso é que, contra Moreira de Vasconcelos, havia armas engatilhadas, e contra ele, e por causa da descrição do Carnaval, foram desfechadas duas morfinas. A primeira, motivada pela “Caverna Isabelina”, saiu nas “Publicações a pedido”, de “O Despertador”, de 10 de fevereiro. “Pede-se ao inspirado publicista Sr. Moreira de Vasconcelos, autor da descrição dos festejos carnavalescos, que, quando brilhar com seus conhecimentos da língua francesa, para o futuro não continue a qualificar as excelentíssimas senhoras de femmes. Ao mesmo tempo toma-se a liberdade de ensinar ao supra dito profundo conhecedor da língua francesa, que é um atentado grave à gramática o dizer-se - toilette du femmes - , pois admitindose o termo impróprio femmes, devia ser toilette des femmes.” O censor, que, no despropositado emprego de du por des, não admitiu óbvio erro tipográfico, encobriu-se na vaga assinatura de “um apreciador”. A outra descarga rebentou em “A Regeneração”, de 14 de fevereiro, também nas “Publicações a pedido” e sob a assinatura de “os da panela”. “Ao Sr. Moreira de Vasconcelos. Lembra-se Sua Senhoria que, quando tenha de descrever outro Carnaval, não qualifique as pessoas que se mascaram ou fantasiam, de manequins, mormente quando se tem recebido dessas pessoas generosa hospitalidade. Manequins é uma coisa muito parecida com cômicos vulgares.” O AGRADECIMENTO DE JULIETA DOS, SANTOS À GENTE DESTERRENSE Julieta dos Santos manifestou seu reconhecimento à gente desterrense, publicando-o no “Jornal do Comércio”, de 14 de fevereiro. “A abaixo assinada, retirando-se para o Rio Grande, agradece, penhoradíssima, todos os obséquios de que foi alvo, não só da generalidade pública, como especialmente dos ilmos. Srs. Capitão tenente Sena Pereira, Tenente-coronel Virgílio José Vilela, Cândido Melquíades, João Linhares, Alferes Olímpio, Virgílio Várzea, Cruz e Sousa, Santos Lostada, Brasilício de Sousa, Guelfo Zanirati, João Barbosa e Alexandre Margarida, às distintas redações da Regeneração, Jornal do Comércio e Despertador, assim como a consideração do periódico Matraca, e o concurso à noite de seu benefício da conceituada sociedade Particular de Música União Artística. A todos reitera o seu inolvidável reconhecimento e acrisolada gratidão. Desterro, 13 de fevereiro de 1883. A atrizinha Julieta dos Santos.” Este agradecimento, em publicação subseqüente, foi, com desculpas pela omissão, estendida à redação do “Caixeiro” e ao Sr. Horácio Nunes. A CARTA DE MOREIRA VASCONCELOS AO JORNAL DO COMÉRCIO O “Jornal do Comércio” do dia 14 noticiou a partida da Companhia. “A Companhia Dramática, dirigida pelo Sr. Moreira de Vasconcelos e da qual faz parte a talentosa atrizinha Julieta dos Santos, segue hoje a visitar as principais cidades do Rio Grande do Sul e pretende ir também a Montevidéu. As festas do Carnaval, informam-nos, foram o motivo que obrigou a Companhia a adiar a sua viagem para agora, ficando os riograndenses, por isso, privados de terem, há mais tempo, tido ocasião de apreciar e render a devida homenagem ao gênio artístico da simpática Julieta dos Santos. Recomendando a Companhia, na qual se destaca o mimoso vulto da menina Julieta, não podemos esquecer o nome de seu diretor o Sr. Moreira de Vasconcelos, que, pela sua cultivada inteligência e pelos recursos literários de que dispõe, muito tem contribuído para o aperfeiçoamento intelectual da jovem atrizinha.” A partida não se realizou a 14, o que ensejou a Moreira de Vasconcelos endereçar, no dia seguinte, ao “Jornal do Comércio” ardorosa carta a propósito da recém-chegada notícia de ter o Município cearense de Aracaju libertado seus escravos, fato que coincidiu com a morte de Léon Gambetta, político a que ele dedicara a segunda crônica da série “Atualidades”. “Quando em Ville d´Avray morria o maior atleta da República moderna, esse homem que, segundo a expressão de Bismarck, tem a cabeça um palmo acima do nível geral - no berço da primeira individualidade literária da América Brasileira, José de Alencar, poucas horas depois rasgara-se o horizonte a alguns indivíduos que representavam o mais nefando atentado político de uma raça banhada pela civilização dos povos mais adiantados.” (...) “Eu aplaudo essa heroicidade com os êxtases de minha alma e peço-lhes que façam chegar até às plantas desses missionários da religião da felicidade humana, por intermédio do seu conceituado órgão jornalístico, os delumbramentos do meu másculo entusiasmo.” A PARTIDA DA COMPANHIA DRAMÁTICA PARA O RIO GRANDE E A SAÍDA DE JOÃO DA CRUZ E SOUSA DA SUA ILHA Finalmente, tomou a Companhia o paquete que a levou ao Rio Grande, a que há de ter sido o desse nome. “A Regeneração”, de 15, fez este breve comentário: “Esta Companhia deu aqui vários espetáculos, onde nos mostrou a interessante atrizinha brasileira e, se elogio temos a tecer-lhe, basta dizer que é um Gênio.” E acrescentou esta informação: “Segue como empregado da Companhia o jovem e inteligente patrício João da Cruz e Sousa”. Virgílio Várzea apresentou-lhe despedidas cheias de ternura. “É a hora da partida... Quero dar-lhe estreito abraço, E qual ímã junto ao aço Vai minh’alma à tua unida. Nunca desates na vida Da nossa amizade o laço, Tão pura como é o espaço Agora ... na despedida. Vai, amigo, sulca os mares, Que feliz de novo aos lares Voltarás a ver os teus ! - Numa vida, só magia, Seja a virtude teu guia. É pois este o meu Adeus ! ...” Como ficou nos fatos memorados, a Companhia Dramática Julieta dos Santos, já pela surpreendente pequenina primeira atriz, já pelo exuberante e progressista diretor, sacudiu e movimentou fortemente o meio intelectual desterrense. Mais ainda: marcou-lhe o início de nova época, porque fortaleceu a união dos moços que seriam os batalhadores do que depois se chamaria a Idéia Nova, cuja bandeira já desfraldam no livro exaltador da atrizinha. “Aí vão, como uns peregrinos alados, estes pálidos e mesquinhos versos, que ao certo destoarão no quase universal concerto poético em homenagem à simpática “bambina” do Sul ( ... ) É preciso combater-se de frente, com viva certeza de triunfar, o indiferentismo, essa como que letargia, que nos apoucanha e torna velhos. Somos catarinenses, somos brasileiros, filhos deste belo país, rico de grandiosas aspirações, fértil em produzir talentos de “elite”, vultos de fina têmpera ( ... ). Somos catarinenses, somos brasileiros, filhos dessa parte da América, banhada pela águas do Prata e do Amazonas, filhos desse Tyarayú soberbo, fundado para representar o universo na eloqüente e solene propaganda do progresso e civilização ( ... ) um progresso bom, prometido, em progresso que tende a refundir os povos no crisol de novas idéias, a modelar as crenças pela igualdade das nações ! ... ( ... ) Se não podemos marchar na vanguarda das outras Províncias ao menos marchemos no flanco ( ... ). Façamos agitar as fibras do corpo e as fibras do espírito. Somos obreiros do porvir. Somos as aves da luz ! ... Ensaiemos o vôo, perpassemos a cabeça para a luta da região. ( ... ) Julieta dos Santos é brasileira como nós, precisa, como os filhos do pelicano, um seio para alimentar-se, um teto hospitaleiro e amigo para abrigar a sua mimosa compleição, a sua delicada feitura. ( ... ) Para as organizações frias, que têm por índole a ganância material da coisa, estas nossas humildes, porém justas asserções, se dissiparão como as nuvens ou ... quem sabe, se não serão comentadas ad libitum, “com uma verdade e precisão a toda a prova, com uma imparcialidade e sensatez” inabaláveis ? ! ... Quem sabe ? ! ... Parece já sentirmos a aguçada ponta do estilete da crítica e do sarcasmo nos traspassar a fronte. Mas não a censuremos. ( ... ) Enquanto ao mais, se os pobres versos que seguem penetrarem em muitos desses espíritos levianos e mal intencionados que por aí há, cremos que penetrarão no da nossa dileta festejada e isso já nos é bastante. Estamos acostumados a não curvar a cerviz a ouropéis, a grandezas e a tronos, mas sabemos tirar o chapéu, sempre que deparamos com um escopro, com um malho ou pincel, emblema da arte ! ... Assim o fazemos diante de Julieta dos Santos . Nunca serão demasiadas as honras, que se tributam aos gênios essencialmente reconhecidos. Quem quiser que nos julgue.” Mas a conseqüência principal e decisiva da vinda ao Desterro da Companhia Dramática Julieta dos Santos foi o arrancar João da Cruz e Sousa da sua Ilha e da sua Província levando a ver e a sentir o Brasil do Sul ao Norte, e clareando-lhe a contemplação e a interpretação das paisagens, dos homens e da Arte. Fiquemos nós na Cidade do Desterro e vejamo-la na sua vida intelectual . Veni, Creator Spiritus ! 29-10-63. III O MEIO INTELECTUAL DESTERRENSE Nesta altura, eram não só respeitosas e pacíficas mas até cordiais as relações entre os homens maduros e os moços. Em novembro de 1881, haviam-se os rapazes congregado em sociedade literária, constituída por iniciativa do velho capitão-de-mar-e-guerra Antônio Ximenes de Araújo Pitada , o “Grêmio Literário Catarinense Oliveira Paiva”, de que o fundador foi presidente, sendo vice-presidente o Professor Wenceslau Bueno de Gouvêa, então na casa dos 38 anos. Os outros membros da diretoria eram todos moços: os irmãos Boiteux eram os secretários, Henrique o primeiro e José o segundo, Manoel dos Santos Lostada era o tesoureiro, João Praxedes Marques Aleixo o procurador e João da Cruz e Sousa o orador. Outra ocasião em que velhos e moços andaram a trabalhar juntos foi nas grandes comemorações, em setembro de 1882, do sexagésimo aniversário da Independência do Brasil. Promovida por José Olímpio Cardoso da Costa, José da Silva Cascais, Cândido Melquíades de Sousa, João Francisco Duarte de Oliveira e Carlos Guilherme Schmidt foi organizada uma comissão geral de mais de sessenta membros, que se subdividia em comissões especiais: comissão popular, comissão comercial, comissão de funcionários públicos, comissão militar, comissão artística, comissão de ornamentos e comissão de oradores. Nesta última foi incluído um moço: o preto João da Cruz e Sousa, o que mostra o seu bom conceito entre os letrados da capital da Província. Os demais componentes da comissão eram todos homens feitos: Dr. Pedro Gomes d’Argollo Ferrão, José Delfino dos Santos, Cônego Joaquim Elói de Medeiros, Eliseu Guilherme da Silva, José Ramos da Silva Júnior, Francisco Tolentino Vieira de Sousa, Eduardo Nunes Pires, Eufrásio José da Cunha, Manoel Bernardino Augusto Varela, Antônio Ximenes de Araújo Pitada, Presalindo Lery Santos, Horácio Nunes Pires, Alfredo Teotônio da Costa, Juvêncio Martins da Costa e Wenceslau Bueno de Gouvêa. A imprensa teve parte relevante nas comemorações, no sector literário, que é o que particularmente nos interessa, e aí aparecem homens feitos e moços a contribuírem com prosa e verso. “A Regeneração” publicou um editorial cheio de cordura: ... “Dois povos irmãos deram-se as mãos, e entre a paz e a razão a independência do Brasil foi feita, sem que uma gota de sangue borrifasse a Terra de Santa Cruz” ... Entre os escritos em prosa, há um subscrito por três estrelinhas (***) e outros por “W.B.”, que é o professor secundário Wenceslau Bueno de Gouvêa, por “J.W.”, que há de ser o professor primário e deputado provincial João Wendhausen, por “L”, não identificado, e por Alfredo de Albuquerque. Há também um assinado pelo jovem José Artur Boiteux. Na parte poética, aparecem os homens feitos, representados por Antônio Teotônio da Costa, Manoel Bernardino Augusto Varela, e Franc de Paulicea Marques de Carvalho. Há um soneto, subscrito por “Eurico”, que pelo tom parece de moço, tanto mais porque entre os colaboradores de “O Caixeiro” aparece um que se assina “Eurico”; e há versos de Cruz e Sousa. Os versos de Antônio Teotônio da Costa, “Saudação ao glorioso e memorável Sete de Setembro” são uma ode em seis estâncias. “Hosana ao majestoso imortal dia, Que cingido de glória e ufania Assoma no Oriente! Hosana ao mensageiro retumbante Desse brado partido alti-sonante Dum peito igni-potente ! ....................................................... A colaboração de Franc de Paulicea Marques de Carvalho foi um soneto “Ao Sete de Setembro”, que tem como assinatura as suas iniciais. “Eu te saúdo, Memorável Dia, De júbilo, de glória, de excelência, Em que surgiu à Pátria - Independência E doou ao Brasil plena alegria ! ... Dos ferros de Colônia em que jazia Libertado se ergueu à preeminência De Livre e Soberano; - alta existência No gozo de sublime Autonomia ! ... Seus Filhos respiraram Liberdade, Beberam das ciências o tesouro, E na Indústria e no Comércio progrediram, Sob as leis liberais prosperidade Conseguem os seus lares ! dias de ouro De paz e de ventura lhes fulgiram ! ...” 1882. F. de P. M. de C. Manoel Bernardino Augusto Varela subscreve o soneto “A Independência e a emancipação do Brasil”, que ele oferece “aos ilmos. Srs. Horácio Nunes Pires e João da Cruz da Cruz e Sousa, dignos membros da comissão de oradores”. Note-se: o primeiro é da geração que já pontificava nas letras, e o outro um dos rapazes da nova geração. “Preso aos duros grilhões da Tirania Triste o Brasil gemia escravizado, Reinava o despotismo mais ousado, A terra de Cabral não florescia ! Mas eis que de improviso surge um dia, Em que se ouviu na Pátria o alto brado Dos lares do Ipiranga dimanado, Que a Liberdade aos povos anuncia !! ... Não mais escravidão tão dolorosa ! Já vê-se no Brasil nobre Ciência, Comércio, livre Indústria proveitosa ! Triunfa pois a causa da inocência, A Pátria, que gemia desditosa, Desfruta mui feliz a Independência !!” Os versos de “Eurico” intitulados “Sete de Setembro”, são estes: “Em pleno céu de nuvens cor de rosa Radiante assomou serena aurora, Que extinguiu o viver atro d’outr’ora, Depois de noute treda e tormentosa. Da liberdade a voz soou ruidosa E o Brasil ergue a fronte sedutora, Hinos entoa à benfadada hora Da sua independência gloriosa. A lei impera, o erro desfalece, Brilha a luz, a razão, brilha a verdade, Que em almos peitos com fervor se aquece. Desfralda-se o pendão da liberdade, A Pátria exulta, o entusiasmo cresce, Cresce a vida, a ventura, a felicidade!” Os versos de Cruz e Sousa são nove oitavas setessílabas, de ímpeto castroalviano, “Entre luz e sombra”, e sob a epígrafe “Libertas lux Dei !” O que há neles de mais notável é o brado abolicionista. O jovem preto faz vibrar uma corda patriótica e humana que não soa nos demais escritos comemorativos. À libertação política associa a libertação dos escravos. “Assim, brasílea coorte, Falange excelsa de obreiros, Soberbos, almos luzeiros De nossa gleba gentil, Quebrai os elos d’escravos Que vivem tristes, ignavos, Formando deles uns bravos - P’ra glória mais do Brasil ! Lançai a luz nesses crânios Que vão nas trevas tombando E ide assim preparando Uns homens mais p’ro porvir ! Fazei dos pobres aflitos Sem crenças, lares, proscritos, Uns entes puros, benditos Que saibam ver e sentir ! ... Do carro azul do progresso Fazei girar essa mola ! Prendei-os sim, - mas à escola, Matai-os sim, mas na luz ! E então tereis trabalhado, O negro abismo sondado E em vossos ombros levado Ao seu destino essa cruz !! ...” ............................................... No mesmo periódico, na edição de 10 de setembro, estampa Cruz e Souza outros versos comemorativos da Independência e também declaradamente abolicionistas. Eis algumas de suas estâncias: “Muito embora, meus senhores, Se festeje a liberdade, A gentil Fraternidade Não raiou de todo não ! ... E a pátria dos Andradas Dos Abreu, Gonçalves Dias Inda vê nuvens sombrias, Vê no céu fatal bulcão! Muito embora Rio Branco, Esse cérebro profundo Que passou por entre o mundo, Do Brasil como um Tupá ! ... Muito embora em catadupas Derramasse o verbo augusto, Da nação no enorme busto Inda a mancha existe, há ! ... É preciso com esforço, Colossal, estranho, ingente, Ir o cancro, de repente, Esmagar que nos corrói ! ... É preciso que essa Deusa, A excelsa Liberdade, Raie enfim na Imensidade Mais altiva como sói ! ... .......................................... Eia ! sim ! - p’ra Liberdade Irromper qual verbo eterno. Como o - Fiat - supremo Pelos ares a rolar ! Eia ! sim - que nossa pátria Só precisa - mas de bravos ... E em prol desses escravos Seu dever é trabalhar !! ...” Talvez se prenda a esse brado do jovem João da Cruz e Sousa a iniciativa que “A Regeneração” , de 14 de setembro, registrou com alegria: “ ter sido apresentado à comissão dos festejos do dia 7 de setembro o plano para a formação de uma sociedade que tenha por fim solenizar o dia da Independência do Brasil, libertando todos os anos um ou mais escravos.” E manifestou a sua certeza de que “todo o homem que tiver alma e um pouco de ilustração, quer seja nacional quer estrangeiro, terá orgulho de pertencer a uma sociedade que tem por fim comemorar o grande dia da Pátria, restituindo a essa mesma Pátria alguns filhos que jaziam no cativeiro, fazendo de um escravo um cidadão ! ” Passemos agora ao que publicou o “Jornal do Comércio”, de 7 de setembro de 1882. A primeira página foi ocupada por um artigo - “Sete de Setembro”, assinado por Alfredo Teotônio da Costa, que, como já se viu, publicou versos em “A Regeneração”. Na segunda página, há um artigo editorial comemorativo e há um soneto de Manoel Bernardino Augusto Varela, também colaborador de “A Regeneração”, soneto “À Independência”, dedicado a dois outros membros da comissão de oradores: os Srs. Wenceslau Bueno de Gouvêa e Eliseu Guilherme da Silva. “Brasil, pátrio Brasil, ufano exulta Neste dia - de teus dias o primeiro! Mostra à face do mundo, ao estrangeiro Como o progresso no teu seio avulta! Se à tua tolerância alguém insulta Não sofres já nefando cativeiro: Ergue a fronte, - com gesto sobranceiro Mostra o brio e valor que em ti se oculta. Ah! volta a face tua ao despotismo, Ama a virtude, acolhe a grã Ciência, De teu Monarca prega o Heroísmo! És livre! e pois repele a insolência, Dos filhos teus invoca o patriotismo No dia festival da Independência!!!” O jornal “O Despertador”, em sua edição de véspera do dia 7 de setembro, publicou um longo e otimista editorial alusivo à grande data e inseriu um soneto de Manoel Bernardino Augusto Varela. “À Independência” Salve! Salve, ó Brasil, pátria adorada! Terra de Santa Cruz fecunda e forte! Quanto é venturosa a tua sorte! Pelas outras Nações quanto invejada!! Tu foste pelo céu mimoseada ... Em toda a parte, desde o Sul ao Norte, Com justo, patriótico transporte, Hoje a tua Independência é celebrada! Do Desterro este povo devotado, À doce liberdade, à Monarquia, Brada todo a uma voz regozijado: “Salve d´áureo setembro feliz dia, Em que o jovem Brasil afortunado Lançou por terra antiga tirania!!” A poesia, a exemplo das anteriores, tinha também dedicatória: “aos ilmos. Srs. Alfredo Teotônio da Costa e Eduardo Nunes Pires, dignos membros da comissão de oradores da Independência do Império”. O órgão de classe “O Caixeiro” dedicou uma edição inteira às comemorações. A primeira página, impressa em verde e amarelo e reproduzindo o retângulo e o losango da bandeira brasileira, trazia esta legenda, encimada pela coroa imperial: “Homenagem da Classe Caixeiral ao glorioso dia Sete de Setembro”. Outra demonstração de cordialidade reinante entre as duas gerações é a série de artigos que, de 27 de agosto a 29 de outubro de 1882, publicou o jovem José Artur Boiteux em “O Caixeiro”, jornal dos moços, e que são o início do que ele fez até o final de seus dias: glorificar a terra catarinense pela celebração de seus filhos gloriosos. “Glórias pátrias - O ano de 1869” é o título dos escritos. “Triste bem triste foi o ano de 1869, para os catarinenses. Os filhos mais eminentes de então, da bela Exiliópolis tombaram no frio vácuo da tumba nesse ano”. O primeiro artigo, consagrado a Fernando Machado, herói da guerra do Paraguai, “O Anjo da Vitória, guia inseparável dos vencedores hostis brasileiros”, foi dedicado ao jovem Severo Lima, ou seja a Manoel dos Santos Lostada; o segundo, em que era memorado outro herói da mesma Guerra, foi dedicado ao amigo “Heraclytus” - J. da C. S., ou seja a João da Cruz e Sousa. O terceiro artigo, que celebrava o “eminente pugnador catarinense Joaquim Gomes de Oliveira Paiva”, foi dedicado “ao ilmo. Sr. Manuel Bernardino Augusto Varela, em sinal de profundo reconhecimento”. O quarto e o quinto artigos rendiam homenagens a dois médicos: o Dr. Cristóvão José dos Santos, “o distinto compatriota do P. Schutel, Luís Delfino e Lacerda Coutinho”, e o Dr. Cláudio Luís da Costa, tendo sido dedicados um ao jovem João Praxedes Marques Aleixo e outro “ao reverendíssimo Padre José Leite Mendes de Almeida, em homenagem à sua vasta ilustração”. O sexto e último artigo, dedicado ao jovem José C. Bessa louvava João Francisco de Sousa Coutinho, cheio de serviços à administração pública, que também se devotara à arte que imortalizou Donizetti e Carlos Gomes, “arte em cujo proscênio se apresenta o nosso jovem conterrâneo Adolfo Ferreira, discípulo do aplaudido José Brasilício”.