HISTÓRIA DA AMÉRICA II
HISTÓRIA DA
AMÉRICA II
1
História da
América II
SOMESB
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Faculdade de Tecnologia e Ciências - Ensino a Distância
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2
Sumário
DA AMÉRICA COLONIAL À AMÉRICA PÓS-INDEPENDENTE
AS AMÉRICAS INGLESA E FRANCESA: DA COLÔNIA AO
IMPERIALISMO NORTE-AMERICANO
As colonizações inglesa e francesa na América
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A Independência norte-americana
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A consolidação da nação americana
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Os EUA em fins do século XIX: a formação do império
Atividade Complementar
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DA CRISE DO SISTEMA COLONIAL À FORMAÇÃO DOS
ESTADOS NACIONAIS LATINO-AMERICANOS
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Desenvolvimento neocolonial latino-americano
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Atividade Complementar
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Crise do sistema colonial
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As independências na América Latina
O período pós-independência
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O SÉCULO XX NA AMÉRICA: NACIONALISMOS,
REVOLUÇÕES E REGIMES MILITARES
NACIONALISMO E REVOLUÇÃO NA
AMÉRICA LATINA
A Revolução Mexicana de 1910
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Os nacionalismos na América Latina
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Os movimentos revolucionários na América Latina
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A Revolução Cubana de 1959
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Sumário
História da
América II
EUA, REGIMES MILITARES, REDEMOCRATIZAÇÕES E
NEOLIBERALISMO NA AMÉRICA
O poderio norte-americano e as relações exteriores intercontinentais
Os movimentos reacionários e regimes militares
A redemocratização na América Latina
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Atividade Complementar
Atividade Orientada
Glossário
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Referências Bibliográficas
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Neoliberalismo e movimentos sociais latino-americanos
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Apresentação da Disciplina
Caro (a) aluno (a),
O continente americano, desde seu passado colonial,
configurou-se como um espaço de contrastes a partir das áreas que
se desenvolveram de modos distintos, como, por exemplo, as regiões
norte e latino-americana. Ao mesmo tempo, percebemos que muitos
dos países (latino) americanos experimentaram, ao longo de sua
história, processos sócio-políticos e econômicos em comum, apesar
de especificidades. A América é, assim, terra de contrastes, de
contradições e antagonismos, principalmente no sentido norte-sul.
Continente rico em culturas, povos, línguas, meio ambientes e
história, a América contemporânea é fruto de seu passado colonial,
bem como de seu ulterior desenvolvimento pós-independência, quando
a sociedade de cada país recém criado procurou seu caminho, tendo
(menos) sucessos e (mais) fracassos em suas evoluções nacionais.
Como diria Eduardo Galeano, a história da América é feita de “mais
náufragos que navegantes”.
É justamente desta epopéia americana que trataremos aqui. A
disciplina História da América II tem como objetivo problematizar a
trajetória das sociedades desde a colonização (no caso da América
anglo-saxônica), passando pela crise do sistema colonial e emergência
dos Estados Nacionais de fins do século XVIII e primeiro quartel do
XIX. A consolidação dos Estados Unidos da América, enquanto nação,
ao longo de seu primeiro centenário, bem como suas relações com o
restante do continente são igualmente temas de suma importância,
como qualquer observador da atual realidade latino-americana pode
constatar.
As grandes “ondas históricas” por que passou a América Latina
ao longo do século XX, com seus nacionalismos, revoluções e regimes
militares, são vislumbradas dialeticamente com a expansão do poderio
norte-americano no mesmo período, bem como todas as influências
extracontinentais recebidas, que, por vezes, desviaram os povos latinoamericanos de seus projetos nacionais independentes.
Assim, as contradições entre os EUA desenvolvidos e os povos
subdesenvolvidos abaixo do Rio Grande, as alternativas de
desenvolvimento empreendidas pelos últimos, além dos movimentos
sociais que contesta(ra)m a ordem elitista vigente, integram o conteúdo
desta disciplina. Trabalhar a história dos latino-americanos através de
suas lutas constitui o nexo entre a pluralidade e a unidade de povos
distintos, porém iguais em sua caminhada por um caminho tortuoso,
mas que não lhes tira a esperança por mudanças.
Forte abraço,
Lucas Junqueira
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História da
América II
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DA AMÉRICA COLONIAL À AMÉRICA
PÓS-INDEPENDENTE
AS AMÉRICA INGLESA E FRANCESA: DA COLÔNIA AO
IMPERIALISMO NORTE-AMERICANO
Desde 1492, quando Cristóvão Colombo chegara
ao continente americano, os povos nativos sofreram com
a conquista e conseqüente colonização por parte dos
europeus – primeiramente ibéricos (espanhóis e
portugueses), posteriormente ingleses, franceses e
holandeses – configurando-se o mundo colonial
americano, com seus desenvolvimentos diferenciados a
partir dos modelos de colonização implementados.
Trataremos, agora, das colonizações levadas a acabo pelos “retardatários” na colonização
americana: ingleses, franceses e holandeses.
As Colonizações Inglesa e Francesa na América
É conhecido o pioneirismo ibérico na realização das grandes navegações devido à
anterior configuração dos Estados nacionais português e espanhol. Ingleses e franceses,
somente após a partilha de grande parte do continente americano entre os ibéricos, lograram
estabelecer-se enquanto Estados nacionais, passo fundamental para a realização dos
empreendimentos coloniais. Assim, o desenvolvimento de seus projetos coloniais foram
retardatários em relação aos ibéricos, pertencendo ao século XVII, quando as monarquias
hispânica e lusa perderam seus postos de vanguarda na expansão marítima-comercial pelo
mundo.
Entretanto, o atraso cronológico e as condições em que foram gerados os projetos
inglês e francês determinaram caminhos distintos daqueles traçados pelos ibéricos, bem
como por estabelecer um domínio menos duradouro para suas possessões, pois a grande
roda da História não pára, nem gira para trás.
•
A América Inglesa
No século XV, enquanto os portugueses empreenderam sua expansão africana
tendendo alcançar as riquezas orientais, o que lograram concluir com a viagem de Vasco
da Gama à Índia (1497-8), e os espanhóis, em seu processo de Reconquista da Península
Ibérica contra os mouros, forjaram seu Estado nacional, os ingleses iniciaram seu processo
de unificação política. Duas guerras contribuíram para o êxito em tal empreitada: a Guerra
dos Cem Anos (1337-1453) e a Guerra das Duas Rosas (1455-1485). A dinastia Tudor
(1485-1603) fora a responsável pela afirmação do poder real frente à nobreza (KARNAL,
2001, pp. 19-20). A Reforma religiosa empreendida por Henrique VIII, no século XVI, ao
fundar o anglicanismo aumentou o poderio da realeza, agora chefe da estatal Igreja
Anglicana. Estava em formação o Estado centralizado que possibilitara a emergência de
um projeto colonizador no século XVII.
7
Não obstante, entre fins do século XV e durante o século XVI, iniciativas
foram tomadas no sentido de descobrir novas rotas comerciais, enquadradas
no que Marc Ferro denominou de “’nacionalização’ das forças econômicas”
História da na Inglaterra (FERRO, 1996, p. 66). Tratava-se de aumentar a importância
América II comercial inglesa, dinamizando a economia. Não havia então um “projeto
colonizador” propriamente dito, e sim tentativas de seguir o sucesso dos
ibéricos nas “Grandes Navegações”. Giovanni Gaboto, comandando cinco
navios da Marinha inglesa, tentara descobrir uma rota pelo Noroeste da América, em 1497,
visando alcançar a Ásia. No ano seguinte realiza nova empreitada, tendo em suas viagens
navegado pelas costas da América do Norte e encontrado rios e baías que futuramente
seriam as portas de entrada da colonização.
Contudo, fora durante o reinado de Elizabeth I, em fins do século XVI, que os ingleses,
em crescente rivalidade com os espanhóis, deram um impulso “à construção naval e ao
comércio marítimo, envolvendo também a atividade corsária” (AQUINO, 2000, p. 123). O
poderio espanhol era uma ameaça concreta para os ingleses, tendo estes em resposta
formulado os princípios do seu mercantilismo:
Se para a Inglaterra só interessavam, ainda no final do século
XVI, as rotas e o comércio, uma reviravolta ocorre na época
de Elizabeth I, quando Walter Raleigh torna-se o teórico de
uma espécie de imperialismo marítimo: “Quem comanda o
mar comanda o comércio; quem comanda o comércio
comanda a riqueza do mundo, e por conseguinte o próprio
mundo...” (FERRO, 1996, p. 67)
A partir daí se intensificaram as viagens à América, “seja para saquear as
embarcações e colônias espanholas, ou para empreender lucrativo contrabando
nas Antilhas, seja para começar a colonização” (AQUINO, 2000, p. 123). Os ingleses,
assim como os franceses, tiveram inicialmente uma atitude parasitária para com
os negócios coloniais espanhóis. Somente nas três expedições de Raleigh à
América do Norte – 1584, 1585 e 1587 – houvera o intento de iniciar a colonização,
sendo, contudo frustrados seus planos pela resistência indígena, que dizimara os
colonos. Os conflitos entre nativos e colonos foram constantes no período colonial, e
mesmo no pós-colonial. Não havia projeto de evangelização das populações
indígenas, com apoio estatal e levado a cabo por missionários, nos moldes
vislumbrados na América ibérica.
O processo de colonização inglesa sofrera uma pausa por conta da guerra
contra a Espanha, mais poderoso Estado ocidental. A tentativa malograda de
invasão à Inglaterra pela Invencível Armada espanhola, em1588, fora o ponto crítico
para a guinada no jogo das forças entre os Estados europeus. Com a derrota
fragorosa, a Espanha veria seu poder em declínio ser suplantado por uma Inglaterra
que abrira caminho para sua vocação marítima se tornar imperial e mundial, processo
consolidado entre os séculos XVII e XIX. Somente as duas guerras mundiais do
século XX levaram ao ocaso do imperialismo britânico.
Livres da ameaça espanhola e tendo concluída a ascensão da dinastia Stuart
(1603), puderam os ingleses retomar suas investidas coloniais na América. A
conjuntura inglesa era agora favorável – não obstante as conturbações políticas. Senhora
dos mares, a Inglaterra e sua crescente burguesia dispunham de condições para reativar
negócios coloniais. Assim, o rei Jaime I concedeu a duas companhias – a Cia. de Londres
e a Cia. de Plymouth – parte do litoral norte-americano. Entre os paralelos 34º e 38º e 41º e
45º, tiveram as companhias de Londres e Plymouth, respectivamente, seus espaços de
atuação, resguardando-se a faixa territorial entre eles para evitar disputas.
8
•
As Colônias do Sul
No natal de 1606, a Cia. de Londres mandara a
primeira vaga de colonização efetiva inglesa, com a
fundação de Jamestown, em 1607-8, na Virgínia. O começo
para os colonos lá estabelecidos fora difícil, flagelados pela
fome e pelos ataques indígenas. O povoado fora
massacrado pelos nativos em 1622, perdendo um quarto
de sua população (FERRO, 1996, p. 68). Superando os
obstáculos, conseguiram os colonos empreender o cultivo
Massacre de Jametown.
daquele que seria o produto responsável pela
Gravura de Theodore de Bry
prosperidade das colônias do sul: o tabaco.
O endividamento (por conta dos investimentos) da Cia. de Londres frente ao progresso
da Virgínia levara a Coroa a convertê-la em colônia real (1624). O Estado também passara
a conceder territórios a figuras destacadas para a fundação de colônias. Assim nascera
Maryland, em 1634, com o estabelecimento de colonos católicos que se dedicaram ao
cultivo do tabaco.
Mas quem eram estes colonos que para a América vieram? Fruto da conturbada
conjuntura inglesa do século XVII, a imigração para o Novo Mundo teve múltiplos estímulos.
A começar pela situação rural inglesa, com o processo dos cercamentos (enclouseres),
que impelira o excedente camponês expulso do campo para as cidades. Levas de
empobrecidos camponeses apinhavam os centros ingleses, reservatórios de imigrantes
rumo à América. Carentes de mão-de-obra para expandir a colonização (os indígenas,
relativamente pouco numerosos e resistentes ao trabalho não se configuravam como força
produtiva disponível), as companhias, a Coroa ou os detentores de doações no Novo Mundo
escoavam o excedente populacional inglês em direção das plantações americanas.
Para custear a vinda para a América, os pobres ingleses assinavam um contrato de
servidão por sete anos. Tal servidão por dívidas (indentured servant) fora generalizada nas
Treze Colônias, atingindo cerca de 70 % dos imigrantes (AQUINO, 2000, p. 125). Segundo
Pierre Chaunu, a servidão branca era “de facto uma forma de escravatura, cujas modalidades
práticas, senão as suas bases jurídicas, não diferem fundamentalmente da escravatura [dos
negros africanos trazidos para a América]” (CHAUNU, 1969, p. 117).
Além dos pobres dos centros ingleses, os condenados pela justiça, mulheres e
crianças raptadas, e renegados de toda sorte estiveram incluídos nas sucessivas levas de
imigrantes, bem como os perseguidos pelas disputas religiosas, dos quais trataremos
adiante.
Com a restauração dos Stuart, novas colônias surgiram no Sul:
A Carolina do Norte e a Carolina do Sul, doadas a dois
proprietários: John Coleton e William Berkeley (1663).
Povoadas por grupos deslocados de outras colônias, de
huguenotes franceses e imigrantes da Escócia, Suíça e
Alemanha, as duas colônias basearam sua economia no
cultivo do índigo e do arroz, produzidos por escravos negros
em grandes propriedades.” (AQUINO, 2000, pp. 129-30)
A mão-de-obra escrava composta pelos negros africanos viera a complementar a
servidão branca ao longo do século XVII, tendo o primeiro carregamento chegado na Virgínia
em 1619. Em fins deste século já predominava, nas colônias do Sul, empregados nas
monoculturas das plantations.
Outra colônia que seguira este modelo econômico fora a Geórgia, última colônia a
ser fundada na região (1732), formada inicialmente por condenados à prisão por dívidas,
9
trazidos pelo proprietário James Oglethorpe. Em 1752, passara a Geórgia a
ser colônia real, onde os escravos negros trabalhavam no cultivo do arroz em
grandes propriedades.
A estrutura social das colônias do Sul advinha de sua organização
História da
América II econômica. Os latifúndios das plantations escravistas conformavam uma
sociedade polarizada entre uma aristocracia fundiária ávida por terras e uma
massa de escravos negros, assim como uma parcela de servos brancos.
Devido ao esgotamento das terras pelo cultivo do tabaco, novas fronteiras latifundiárias
eram abertas, tendo a terra altos valor e impostos, o que bloqueava a difusão de pequenos
proprietários, ademais sem condições de adquirir a mão-de-obra escrava ou mesmo resistir
à pressão dos latifúndios por mais terras. Muito mais ligado à metrópole, o Sul escravista
seria o bastião do mercantilismo e do conservadorismo na América inglesa, mesmo na
época das lutas pela independência.
•
As Colônias do Norte
Paralela ao desenvolvimento dos latifúndios destinados às plantations escravistas
do Sul, ao Norte a colonização desenvolvera-se diversamente. A partir de 1620, as
perseguições religiosas na Inglaterra levaram católicos, huguenotes, quakers e puritanos
(entre outras dissidências protestantes) a imigrarem para a América, situando-se na região
da Nova Inglaterra. Fora esta última leva, a dos
puritanos, que entrara para a história norte-americana
como o núcleo original de sua cultura.
Em 1620, quando chegaram à costa do que
seria Massachusetts, a bordo do Mayflower, um grupo
de puritanos (entre muitos outros passageiros) firmara
um pacto (The Mayflower Compact).
Este grupo ficara conhecido como os “Pais
Pelegrinos” (Pilgrim Fathers). Fundaram New
Plymouth, posteriormente absorvida por
Perseguição religiosa na
Inglaterra do Séc. XVII
Massachusetts, que era ligada à Cia. da Baía de
Massachusetts, dirigida por uma “burguesia puritana”. Esta Cia. trouxera uma nova leva de
puritanos, em 1630, quando desembarcaram na Baía de Massachussetts os colonos
liderados por John Winthrop, também considerados “Pais Pelegrinos”. Winthrop, ao longo
da viagem, pregava entre os seus: Nós seremos como uma cidade no alto da colina, e os
olhos de todos se voltarão para nós [...] a nossa história será contada e dela será passada
palavra pelo mundo” (BOORSTIN, 1997, p. 15). Antes de desembarcarem do navio Arbela,
Winthrop também firmou um pacto (The Arbela Compact), declarando:
Nós devemos agir nessa empreitada como um só homem,
devemos alegrar-nos na companhia dos nossos, divertir-nos
juntos, tendo sempre presente no espírito a missão de nossa
comunidade, na qual todos devem ser membros de um
mesmo corpo. (In: História Viva, n°17, março de 2005, p. 63)
Os ditos “Pais Pelegrinos” vieram para a América devido à intolerância religiosa
inglesa do século XVII, pois desejavam atingir uma pureza religiosa em meio ao ambiente
anglicano inglês (os puritanos formavam a Igreja Congregacionista). Procuraram estabelecer
esta pureza religiosa na Nova Inglaterra, intentando fundar uma “Nova Jerusalém”.
Consideravam-se os eleitos por Deus para iniciar uma nova civilização e todas as provações
(eram muitas as dificuldades, sendo que a celebração da primeira colheita realizada por
eles, em 1621, dera origem ao Dia de Ação de Graças – Thanksgiving – data nacional dos
EUA) pelas quais passaram na travessia e no início de seu estabelecimento reforçaram a
10
idéia de que eram predestinados. É o mito fundador da América WASP (white, anglo-saxon,
protestant – branca, anglo-saxônica e protestante). Os norte-americanos (ou estadunidenses,
se preferir) consideram este o ponto de partida para sua história de sucesso – não a
colonização virginiana. Sobre o grau de penetração deste mito no imaginário daquele povo
Chaunu escrevera:
A Nova-Inglaterra não é a primeira América inglesa, os Pilgrim
Fathers nem sequer foram os seus fundadores. E contudo a
sua lenda é mais verídica que a história. 1620-1621 acaba
por marcar profundamente uma viragem capital na história
da América. (CHAUNU, 1969, p. 118)
É praticamente onipresente esta versão mítica dentro da historiografia norteamericana. Não é por acaso que Daniel Boorstin inicia sua trilogia sobre a história dos EUA
com a narrativa deixada pelo governador que presenciou a chegada dos “Pais Pelegrinos”,
e todas as provações a que foram submetidos, arrematando em seguida:
Nunca antes uma terra prometida fora tão pouco promissora.
Porém, no espaço de século e meio – mesmo antes da
revolução americana – este cenário que os tolhia transformarase numa das partes mais civilizadas do mundo. Haviam
nascido os contornos gerais de uma civilização nova.
(BOORSTIN, 1997, p. 8)
Os puritanos e sua Igreja Congregacionista, situados no
âmbito da Cia. da Baía de Massachusetts, estabeleceram uma
forma de governo, ou comunidade política baseada em preceitos
religiosos, sediada em Boston, mais importante centro da NovaInglaterra. Estabeleceu-se, portanto, “a união entre Igreja e
Estado, cabendo o governo a elementos da Igreja
Congregacionista. O predomínio da oligarquia puritana resultou A chegada dos Pais Pelegrinos
com John Winthrop.
na intolerância religiosa.” (AQUINO, 2000, p. 131)
Tal intolerância levou colonos não puritanos a deixarem Massachusetts, daí originando
outras colônias na região. Rhode Island, fundada por uma corrente de dissidentes (1636),
teve sua Carta de reconhecimento pelo Parlamento inglês em 1644, à qual fixava “a separação
entre Igreja e Estado, a liberdade religiosa, a proibição da servidão e da escravidão, a
obediência às leis aprovadas pela maioria e ao governo eleito pelos próprios colonos”.
(AQUINO, 2000, p. 132) originando outras col Massachussetsna rno a elementos da Igreja
Congregacionista.iedades.na Inglaterra, dos quais trataremos a
No bojo do processo de dissidência na Nova-Inglaterra foram fundadas também New
Hampshire (1623, convertida em colônia real em 1679) e Connecticut (1635). Diferenças
religiosas e políticas à parte, em termos sócio-econômicos havia certa homogeneidade
entre as colônias do Norte. O clima temperado (semelhante ao da Inglaterra) inviabilizava a
implementação das monoculturas para exportação, portanto excluía as plantations
escravistas existentes nas colônias do Sul. A estrutura fundiária estabelecida na NovaInglaterra fora marcada pela pequena propriedade, cultivada pelas famílias dos colonos,
acrescidas dos servos brancos quando possível. As desigualdades sociais não foram assim
tão grandes como no Sul.
A economia das colônias do Norte era baseada na plantação de gêneros de
subsistência (que também geravam excedentes comerciáveis) como o trigo, a aveia, o milho,
bem como na criação de gado, porcos e ovelhas. À produção do campo juntava-se a pesca
como importante atividade, bem como a indústria naval, beneficiada pela grande quantidade
de madeira propícia disponível. O desenvolvimento das cidades fez com que tanto as
manufaturas quanto o comércio prosperassem, apesar das proibições e restrições impostas
a uma e outra atividade. O comércio de peles, valiosas no mercado europeu, também
compunha o quadro econômico da região.
11
No âmbito da dinâmica interna da colonização, o Sul, voltado à
agroexportação, carecia de gêneros de subsistência para alimentação da
escravatura, adquirindo os produtos necessários nas colônias do Norte. Estas,
além deste comércio, desenvolveram amplamente um circuito comercial não
só ligado à Inglaterra, como também à África e às Antilhas. O controle
metropolitano
sempre fora burlado, perfazendo o contrabando cerca de 84%
História da
América II do comércio realizado pelas Treze Colônias. (CHAUNU, 1969, p. 172) O mapa
abaixo apresenta os dois circuitos contidos no “comércio triangular” EuropaAmérica-África.
O COMÉRCIO TRIANGULAR
Fonte: AQUINO, 2000 , p. 134.
•
As Colônias do Centro
Entre os territórios delegados à Cia. de Londres e à Cia. de Plymouth desenvolverase um terceiro grupo de colônias, denominadas colônias do Centro. O vazio territorial fora
ocupado por outros europeus, principalmente holandeses. Entre os anos de 1624 e 1633, a
Cia. das Índias Ocidentais holandesa funda uma série de estabelecimentos, destacandose a Nova Amsterdã (núcleo original de Nova Iorque). Suecos, finlandeses e alemães também
juntaram-se aos holandeses no vale de Delaware (CHAUNU, 1969, pp. 150-1).
A restauração dos Stuart, na década de 1660, levara os ingleses a um novo impulso
colonizador, sendo o centro da América do Norte o alvo primordial da sua expansão. Nesta
região os ingleses, entre idas e vindas, conseguem estabelecer o controle sobre a colônia
holandesa, agora denominada Nova Iorque.
Outras colônias foram fundadas, na esteira da conquista inglesa. Deleware, habitada
originalmente por suecos, após um rasgo de dominação holandesa, passara ao controle
inglês em 1664, ligada a Nova Iorque. Seria transformada em colônia autônoma em 1701.
No mesmo ano da conquista de Delaware, surgira Nova Jérsei, já habitada por puritanos
ingleses e holandeses vindos da Nova-Inglaterra, agora propriedade de Lord John Berkley
e Sir George Carteret. Igualmente Carlos II doara a Willian Penn, líder dos quakers, um
território, dando origem a colônia da Pensilvânia (1681). A liberdade religiosa e a facilidade
na aquisição de terras trouxeram imigrantes de diversas partes da Europa, principalmente
alemães.
Marcadas pela heterogeneidade do povoamento e de religiosidade, ao longo de
seu desenvolvimento as colônias centrais perderiam parte de sua originalidade, ao
assemelhar-se gradualmente a Nova-Inglaterra. Contribuíra para tal a imensa vaga de colonos
germânicos – 9000 habitantes em 1685 (CHAUNU, 1969, p. 152) – levando os descendentes
12
dos primeiros imigrantes extremistas à formação de uma sociedade aristocrática e censitária,
para garantir suas prerrogativas e privilégios, e barrar a diluição de sua cultura em meio às
demais contribuições “estrangeiras”.
•
As Instituições Político-administrativas.
O processo de colonização inglesa na América, realizado através do empenho das
companhias privadas e de proprietários e colonos responsáveis pela viabilização e defesa
dos empreendimentos coloniais, conformara um modelo colonizador distinto dos
vislumbrados na América ibérica. Como afirmara Leandro Karnal, o “Estado e a Igreja oficial,
na verdade, não acompanharam os colonos ingleses” (KARNAL, 2001, p. 27). Situação
diversa da encontrada nas Américas espanhola e portuguesa, onde seus Estados
metropolitanos e a Igreja Católica a eles interligada fizeram-se presentes.
As instituições político-administrativas das Treze Colônias tiveram variações entre
si, mas de modo geral todas possuíam suas próprias autoridades e autonomia em relação
as demais e a metrópole. Podem ser enquadradas em três modelos administrativos:
- Colônias de companhias de comércio – foram as primeiras a ser fundadas: Virgínia
e Massachusetts;
- Colônias de proprietários – concedidas a particulares pela Coroa: Maryland, New
Hampshire, Nova Jérsei, Carolina do Norte, Carolina do Sul, Pensilvânia, Nova Iorque e
Geórgia;
- Colônias reais – foram aquelas que a Coroa assumira a direção da colonização,
sendo que nenhuma fora fundada pelo Estado. A primeira fora a da Virgínia. No século VXII
constituíam a menor parte das colônias, mas ao longo do XVIII se tornaram a maioria, exceto
Maryland, Deleware, Pensilvânia, Connecticut e Rhode Island.
AS TREZES COLÔNIAS INGLESAS
Fonte: AQUINO, 2000 , p. 128.
13
As instâncias administrativas contidas em cada colônia eram a) um
governador, representante dos interesses metropolitanos, possuindo amplos
poderes. Nas colônias das companhias o governador era eleito pelos colonos,
História da geralmente para um mandato de um ano e sem direito a veto às leis das
América II assembléias, b) um conselho ou câmara alta composto por membros
nomeados dentre os colonos mais influentes, ou eleitos, funcionando como
órgão assessor do governador e c) as assembléias eleitas pelos homens
livres, geralmente de forma censitária, que elaboravam leis e fixavam impostos nas colônias
(AQUINO, 2000, p. 138).
Esta forma de governo, bastante distinta da América ibérica, levava os colonos a
experimentarem um sentimento de autogoverno, o que contribuiu para a emancipação quando
a Inglaterra lançara mão de medidas que pretendiam estabelecer um maior controle
administrativo e tributário sobre as Treze Colônias.
•
As Antilhas e as Guianas
Na região das Antilhas, ingleses, franceses, holandeses e dinamarqueses, entre
outros, se aproveitaram do declínio do poderio espanhol e do vazio deixado pelo genocídio
da época da conquista nos séculos XV e XVI. Este vazio fora preenchido, ao longo do
século seguinte, quando a Inglaterra (São Cristóvão, Nevis, Montserrat, Barbados e Jamaica),
a França (principalmente a parte de São Domingos, denominada Haiti), a Holanda (Curaçao,
Margarida, Bonária, Santo Eustáquio e Aruba) e a Dinamarca (os dinamarqueses fundaram
a Companhia Dinamarquesa das Índias Ocidentais em 1671, sendo que permaneceram
nas Ilhas Virgens até 1917) partilharam as ilhas tomadas à Espanha (CHAUNU, 1969, p.
142).
Contudo, juntamente com as espanholas Cuba, São Domingos e Porto Rico, foram a
Jamaica e o atual Haiti as mais importantes porções antilhanas para o comércio colonial.
Seu produto principal, o açúcar, florescera pelo lucrativo comércio, beneficiado pelo eclipse
do Nordeste açucareiro da América portuguesa.
Tanto os ingleses como os franceses deixaram para trás o século XVI da pirataria e
do corsarismo, levado a cabo por flibusteiros baseados em ilhas tomadas ou abandonadas
para estabelecer bases econômicas nos moldes das plantations escravistas no século XVII.
Podemos perceber o desenvolvimento da parte francesa de São Domingos pela descrição
feita, em 1789, por Moreau de Saint-Méry:
[...] 793 engenhos de açúcar, 3150 plantações de anil, 789 de
algodão, 3117 de café, 182 destilarias de cachaça e outras
aguardentes de cana, 36 fábricas de tejolos e telhas, 6 fábricas
de curtumes, 370 fornas de cal, 29 olarias e 50 plantações de
cacau, independentemente de um sem número de outros
estabelecimentos conhecidos [...] (in: CHAUNU, 1969, p. 143)
A parte inglesa das Antilhas, além de integrar-se de
forma mais completa no projeto mercantilista inglês,
participará do comércio triangular com as colônias norteamericanas, trocando açúcar e melaço por produtos
manufaturados e rum, bem como consumia sucessivas levas
de escravos africanos trazidos pelos comerciantes coloniais
e metropolitanos.
Engenho da Martinica
14
As guianas seguiram o mesmo padrão da conquista antilhana, por conta da
incapacidade espanhola em efetivar o povoamento da costa Norte da América do Sul, dando
origem às três guianas – inglesa, holandesa e francesa:
Assim, entre o Orenoco e o Amazonas, toda uma frente
costeira, por traição da Espanha, demasiado longe da América,
demasiado sobrecarregada de trabalhos na Europa, escapará
no fim das contas e definitivamente aos Ibéricos. O primeiro
estabelecimento inglês duradouro na Guiana – obra de Walter
Raleigh – data de 1595; a primeira colônia holandesa
duradoura, de 1621, é o forte “Kijk over all”, numa ilha costeira.
O forte Nassau data de 1624. Quanto aos Franceses,
expulsos da França equinoxial, instalam-se na Cayenne em
1650, sob a égide da Companhia do cabo do Norte. (CHAUNU,
1969, p. 111)
•
A América Francesa
A França em relação à sua história colonizadora na América, passara por um processo
semelhante ao inglês nas etapas iniciais: fora retardatária, devido ao atraso em sua
centralização política em comparação aos ibéricos, bem como vacilante em suas iniciativas,
ainda mais que os ingleses. Porém tivera uma diferença básica em relação aos ingleses
que os aproximava dos ibéricos: a presença de missionários no Canadá, com o fito de
catequizar os indígenas, processo sempre incompleto.
Não obstante o atraso na concretização de um projeto colonizador, os franceses não
estiveram alheios à expansão marítima ibérica:
Aliás, Francisco I pediu para ver “a cláusula do testamento de
Adão” que, segundo o papado, o excluiu da partilha do mundo.
Na verdade, por muito tempo faltaram à França meios para
montar um grande dispositivo comercial, e no século XVI
ninguém teve realmente essa idéia. Foi preciso que a guerra
de corso se iniciasse para que Saint-Malo, Nantes etc. se
lançassem, mas várias décadas depois de Portugal e
Espanha, e com menos determinação do que a Inglaterra.
Foi preciso, sobretudo, que o Estado quisesse ter colônias.
(FERRO, 1996, p. 61)
Envolta pelas guerras religiosas e pelo conflito interno entre católicos e huguenotes,
a França indispunha de energias para rivalizar com espanhóis e lusitanos nos
empreendimentos coloniais americanos. Entretanto, no bojo da centralização política e
construção do Estado absolutista, iniciativas foram tomadas, em parte decorrentes dos
conflitos religiosos. Foi assim que entre 1555 e 1567 huguenotes chefiados por Nicolau de
Villegagnon fundaram a França Antártica, destruída pelos portugueses. Expulsos da Baía
da Guanabara, tentaram ainda se estabelecer ao norte, no litoral maranhense, sendo
igualmente repelidos pelos lusitanos.
Seria na América do Norte, contudo que os franceses lograriam estabelecer-se. O
estímulo inicial se dera pela pesca, praticada há tempos no Mar do Norte. Mas não somente
pela pesca. Assim como os ingleses, os franceses intentaram descobrir uma passagem ao
norte para o Pacífico, objetivando o contato com o Oriente asiático. Jacques Cartier, em
1535 descobre a rota do São Lourenço, via de penetração para o interior continental.
Entretanto Cartier não logrou estabelecer uma ocupação duradoura na região.
Somente no reinado de Henrique IV (1589-1610), quando o absolutismo encontravase consolidado e a política mercantilista tornara-se uma de suas bases de sustentação, os
15
franceses efetivaram sua presença em terras americanas. Samuel Champlain,
em 1605, fundou Port-Royal no litoral atlântico e Quebec (1608), nas margens
do rio São Lourenço. Entretanto, o povoamento significativo não se dera senão
após um longo período de relativo abandono, tendo o Estado pouco investido
na colonização. Neste momento inicial prevalecia a pesca e o comércio com
História da os nativos, fornecedores das peles negociadas na Europa. Em 1660, apenas
América II 2000 colonos habitam as povoações francesas da Nova França (CHAUNU,
1969, p. 113).
Franciscanos e jesuítas encetaram o trabalho missionário durante o
governo do cardeal Richelieu, dificultado pela resistência nativa e pelos conflitos decorrentes.
Os iroqueses, verdadeiros algozes dos franceses no Canadá, dificultaram maiores
empreendimentos pelo interior.
Um novo impulso na colonização ocorrera durante o
reinado de Luis XIV, enquadrado na política mercantilista
desenvolvida por Colbert, secretário das finanças. O Canadá foi
transformado em colônia real, bem como medidas foram tomadas
para aumentar a ocupação da região, que manteve-se porém
pequena, dispersa, ligada principalmente ao comércio de peles.
Para estabelecer o comando metropolitano fora criado o
governo geral, situado em Quebec, além do intendente (justiça e
finanças) e um Conselho formado por representantes de Quebec,
Montreal e Trois Rivières. Dera-se estímulo à emigração para a
Jean Baptiste Colbert
Nova França. Entretanto, ao longo de todo o período colonial o
povoamento mantivera-se diminuto e disperso.
O comércio de peles incentivava expedições pelos grandes rios do interior, sendo
que nelas se descobrira o Mississipi, dando origem a uma nova zona de colonização: a
Louisiana. Na virada do século XVII para o XVIII foram fundadas Biloxi e Mobille, núcleos
que atraíram colonos para a região. New Orleans, criada pela companhia organizada para
a exploração da Louisiana, se tornou a capital desta colônia. Não obstante as iniciativas, a
Louisiana permaneceu fracamente povoada (muitos dos que vieram eram engajés, ou
engajados, servos brancos – por três anos – semelhantes aos existentes nas Treze Colônias)
e constantemente ameaçada pelos ataques de indígenas, de espanhóis da Flórida e de
colonos das Treze Colônias que se chocavam com os franceses em sua expansão para o
interior.
A colonização francesa, menos expressiva que a inglesa, sentira o peso dos conflitos
contra os nativos, ao mesmo tempo em que se aliava a algumas nações nativas para
atacarem os colonos ingleses. Foram constantes os choques e guerras na América do Norte,
seguindo a lógica da rivalidade franco-inglesa na Europa. Com a derrota na Guerra dos
Sete Anos (1756-63) e a decorrente assinatura do Tratado de Paris, a colonização francesa
na América iniciara seu ocaso, com a entrega do Canadá e de diversas ilhas das Antilhas
ao poderio inglês.
•
Os Holandeses na América
Tradicionalmente ligados ao mar (os Países Baixos formam uma região de
aterramentos e diques), os holandeses, em sua luta pela independência frente à Espanha,
deram sua partida para a expansão ultramarina. A União Ibérica (1580-1640) transformara
as possessões portuguesas em alvos primordiais para os holandeses, por conta de sua
fragilidade. A República das Províncias Unidas, instituição política dos Países Baixos, teve
sua complementação econômica nas Companhias das Índias Orientais e Ocidentais, que
fizeram da primeira metade do século XVII um período de hegemonia holandesa. O lucro
era seu único objetivo: “Quando os holandeses se lançam mundo afora, têm um projeto
simples: ganhar dinheiro. Jesus Cristo está ausente de suas preocupações, evangelizar
não lhes interessa.” (FERRO, 1996, p. 65)
16
Na América os holandeses da Companhia das Índias Ocidentais atacam Salvador
(1624) e conquistam parte do Nordeste, centrados em Pernambuco (1630-54). Ao Norte,
ocuparam os espaços entre os territórios das companhias de Londres e Plymouth, fundando
o futuro núcleo da cidade de Nova Yorque.
O sucesso holandês estava escorado na fraqueza ibérica momentânea e no seu
modelo de gestão empresarial, visando unicamente o lucro, e dirigido pelas companhias do
ocidente e oriente. Mas, quando tiveram que sustentar a implantação do aparato colonial e
defender-se da reação dos colonos brasileiros, bem como da concorrência do comércio
inglês, os holandeses perderam seu ímpeto e foram forçados a recuar para pequenos
enclaves ao redor do mundo, terminando assim a fase áurea de seu desenvolvimento
colonialista.
A Independência Norte-americana
Vimos que, ao longo do primeiro século da colonização inglesa na América do Norte,
os colonos tiveram autonomia para se desenvolverem e prosperarem por seus próprios
méritos. O empreendimento colonial se dera muito mais pela atuação de companhias e
particulares do que pelo empenho estatal. A começar pela defesa. Cada colono era
responsável por salvaguardar suas terras e família dos ataques indígenas. Coletivamente, a
defesa dos povoados e colônias era realizada pelas milícias organizadas pelos próprios
colonos, que tantas vezes teriam que enfrentar as nações indígenas e os franceses (aliados
ou não aos nativos). A presença das tropas inglesas era reduzida, somente se tornando
mais constante a partir da Guerra dos Sete Anos.
É justamente no segundo quartel do século XVIII que a metrópole se lançara com
afinco no projeto de consolidação do império ultramarino, através de um controle mais rígido
dos negócios e da vida coloniais. Pierre Chaunu faz uma síntese do processo:
Ao império britânico, comunidade antiga mas realidade política
recente, falta o peso dos hábitos duas vezes e meia seculares
que actuam a favor do Império espanhol. No momento em
que a Inglaterra procura dar-lhe um conteúdo mais preciso,
as dificuldades surgem de todos os lados. Tanto mais que a
Inglaterra está mais distante da América que a América da
Inglaterra.
O tempo, ademais, aumenta as dificuldades. Uma temtativa
de império teria sido mais fácil no século XVII. Mas o século
XVII com sua vida econômica enfadonha não se prestava a
tais construções custosas. Entretanto, pouco a pouco a
América inglesa individualiza-se em relação à Inglaterra. De
muitas maneiras: o modo de vida, a distância, a fraca
densidade das comunidades, a interrupção prematura da
emigração propriamente inglesa. A população anlgoamericana é, desde meados do século XVIII, crioula em 97
ou 98%. Seu aumento é essencialmente natural. Os novos
emigrantes são na maioria alemães, irlandeses, escoceses.
(CHAUNU, 1969, p. 170)
Assim, quando a metrópole intentara reforçar os laços com as colônias – reverter sua
“Negligência Salutar” – o projeto se mostrara anacrônico. Pertence a um outro tempo. Os
ventos do liberalismo iluminista do século XVIII sopravam na América inglesa. Processo
facilitado por dois motivos: primeiramente, o alto índice de alfabetização entre os colonos
(pois todo bom protestante tinha que ler a Bíblia para concretizar sua religiosidade), derivado
da criação de instituições de ensino – Harvard e Yale, por exemplo –; se junta a isto a ausência
17
de instituições restritivas como a Inquisição, presente nas terras da América
espanhola. O acesso às obras iluministas, portanto era aberto.
Para além da influência das idéias iluministas, havia um conjunto de
História da fatores que impulsionaram os colonos à independência: senso de autonomia,
América II liberdade religiosa em relação à Igreja Anglicana, heterogeneidade de
povoamento, resistência às imposições fiscais...
Durante o século XVIII, os encargos coloniais, bem como a fiscalização
e controle sobre o contrabando, foram aumentados. As guerras e conflitos geravam despesas
que a metrópole intentava compartilhar com as colônias. O Estado inglês saíra vitorioso,
porém endividado, da Guerra dos Sete Anos. O Parlamento britânico queria dividir com as
colônias o custo de 400 mil libras anuais que as tropas inglesas na América acarretavam.
Para os colonos, eliminado o perigo francês do Canadá, pagar a conta parecia indigesto:
tinham que “pagar por um exército que, a rigor, estava ali para policiá-los.” (KARNAL, 2001,
p. 71) Acreditavam que, pelo contrário, sem a presença francesa ao Norte não careciam
das tropas inglesas para segura-las.
Mas, sem voz no Parlamento inglês, viram encargos sendo criados sem contrapartidas.
A Lei do Açúcar (1764) reduzira o imposto sobre o melaço estrangeiro, ao mesmo tempo
em que estabelecia impostos adicionais sobre vários produtos. Fora criada uma corte na
Nova Escócia com jurisdição sobre as Treze Colônias para punição dos que burlassem o
fisco, o que prejudicava o tradicional comércio triangular dos colonos. A corte estava
enquadrada no âmbito da política mercantilista revigorada.
Houve reação. Para os colonos, imbuídos pelo princípio inglês de que “taxação sem
representação é ilegal”, protestaram, além de boicotar artigos importados da Inglaterra.
Iniciava-se o processo de contestação-rompimento. Desejavam os colonos co-participação
nas decisões do império. Não foram atendidos, porém os protestos obrigaram a revogação
da Lei dois anos depois. Entretanto não impedira que mais leis restritivas e taxativas fossem
criadas:
• Mesmo antes, em 1763, o rei declarara a proibição do acesso dos colonos a
diversas áreas entre os Apalaches e o Mississipi, reconhecendo a soberania indígena sobre
a região, numa tentativa de apaziguar os nativos. Isto feria diretamente os interesses dos
colonos comerciantes de peles e produtores de tabaco, interessados na expansão da área
de cultivo.
• Lei da Moeda (1764), que proibia a emissão de papéis de crédito, o que
prejudicava o comércio.
• Lei do Selo (1765), que obrigava a utilização de selo em qualquer documento,
jornais ou contratos nas colônias, afetando a todos os setores da sociedade colonial,
principalmente os comerciantes. A oposição radical à Lei criou o início da resitência
organizada das Treze Colônias, conseguindo novamente a revogação da Lei, em 1766.
•
Atos Townshend (1767), como ficaram conhecidas as leis que taxavam a
importação de diversos produtos de consumo, além de criavam os Tribunais Alfandegários
que aumentaram a fiscalização. A reação, principalmente em Boston, fora reprimida,
ocorrendo o denominado Massacre de Boston (1770).
• Lei do Chá (1773), que garantia o monpólio do comércio de chá para a Cia. das
Índias Orientais, contrariando os interesses coloniais. Novamente em Boston a reação dos
colonos gerara incidentes como a Boston Tea Party, quando uma carga de chá fora lançada
ao mar.
• Leis Intoleráveis (1774), impostas após a manifestação do Porto de Boston,
interditavam o porto da cidade, bem como convertiam Massachussets em colônia real,
maximizando o poder do governador indicado por George III.
• Ato de Quebec (1774), que impedia que as colônias de Massachussets, Virgínia,
Connecticut e Pensilvânia ocupassem terras à oeste.
18
Massacre de Boston
Os patriotas se organizando: mulheres fazendo boicote
Todas estas medidas serviram para unificar diversos grupos de interesses nas
colônias frente à dominação inglesa. Clubes de radicais formavam comitês que discutiam a
indepandência, enquanto moderados preferiam a manutenção do status quo, em movimentos
concilliatórios.
A partir de 1774, os anglo-americanos, divididos entre partidários da separação e
os defensores da conciliação (temerosos da participação popular no movimento, o que
ameaçava seus privilégios), organizaram o Primeiro Congresso Continental, em Filadélfia,
um dos mais importantes centros das colônias. Era chegada a hora de unificar as
dissidências para sanar o impasse metrópole-colônias. Representantes das Treze Colônias
(exceto da Geórgia) elaboraram uma petição ao rei protestando contra as medidas
metropolitanas.
A reação inglesa fora aumentar os efetivos ingleses, gerando atritos com os grupos
patriotas. Em Lexington e Concord ocorreram os primeiros choques (1775), dando início à
Guerra de Independência. Neste mesmo ano reunira-se o Segundo Congresso Continental
de Filadélfia, contando com a presença de todas as colônias, que enviaram líderes seus
mais destacados líderes, como Thomas Jefferson, Benjamin Franklin, Samuel Adams etc.
Enquanto debatiam a situação de rebeldia, um folheto intitulado Commom Sense, escrito
por Thomas Paine deu corpo às idéias e protestos anti-metropolitanos:
A Inglaterra é, apesar de tudo, a pátria mãe, dizem alguns.
Sendo assim, mais vergonhosa resulta sua conduta, porque
nem sequer os animais devoram suas crias nem fazem os
selvagens guerras a suas famílias; de modo que este fato
volta-se ainda mais para a condenação da Inglaterra [...]
Europa é nossa pátria mãe, não a Inglaterra. Com efeito, este
novo continente foi asilo dos amantes perseguidos da
liberdade civil e religiosa de qualquer parte da Europa [...] a
mesma tirania que obrigou aos primeiros imigrantes a deixar
o país, segue perseguindo a seus descendentes. (in:
KARNAL, 2001, p. 84)
Gradualmente, os elementos resistentes tiveram que ceder à aprovação da Declaração
de Independência (tendo Thomas Jefferson como principal autor), finalmente redigida em 4
de julho de 1776 – data cívica máxima para os norte-americanos. Estava aberta a luta
completa pela independência, que seria dirigida por George Washington, rico proprietário
de terras e comandante miliciano. Foi criado o Exército Continental, chefiado por Washington,
que juntamente com as milícias combatera as tropas inglesas.
A Declaração de Independência fora recebida com entusiasmo pela maioria dos
colonos. A estátua do rei George III foi derrubada pela população eufórica de Nova Yorque.
Porém, ao deixar de fora do texto (ver mais a frente a seção História através de documentos)
qualquer referência sobre a escravidão, exigência dos aristocratas escravistas do Sul, excluía
de seus princípios liberais cerca de um sexto da população ( perto de 500 mil escravos e
2.5 milhões de homens livres). A soberania popular, essência da Declaração, não era para
todos.
19
Declerar a independência era apenas uma das
etapas de luta patriota. Organizar a combate conjunto
aos (13) Estados Unidos (termo de 1776) contra as
forças inglesas mostrara-se mais complicado. O
História da apego à autonomia e o medo de uma revolução
América II popular fizeram-se presentes, dificultando o
andamento da Guerra. Para conduzir o conflito e
sistematizara a união entre os Estados, entre 177888 vigorou a Confederação:
A derrubada da estátua de George III
ou seja, não havia um governo central forte, mas uma
instância que deveria reunir e analisar as vontades e interesses
dos 13 estados. Tal instância era chamada de Congresso
Continental, o qual tomava decisões baseadas num conjunto
de normas chamado de Artigos da Confederação. Como não
podia deixar de ser, tal arranjo criou alguns problemas: alguns
estados tinham sua própria milícia, outros cunhavam a sua
própria moeda, outros ainda comercializavam com quem
queriam de acordo com interesses particulares. Era então
um país ou 13 países? (JUNQUEIRA, 2001, p. 21)
A pergunta da Profª. Mary Junqueira é realmente pertinente. Apenas foi respondida
pelos estadunidenses ao longo do século XIX, no processo de cosntrução do Estado nacional.
Mas antes era preciso derrotar os ingleses...
A Guerra, que durou seis anos, começou com uma série de vitórias inglesas. Os
desencontros entre o Exército Continental e as milícias, que relutavam em seguir os generais
sob comando de Washington, foram sintetizados pelo mesmo:
Se, para todos os efeitos, tivéssemos um exército, ou treze
exércitos aliados para a defesa comum, não haveria
dificuldades em resolver a questão que me põem [sobre as
promoções militares], mas, se umas vezes somos ambas
as coisas, não andarei longe da verdade se disser que outras
vezes não somos nenhuma delas, mas uma amálgama de
ambas. (in: BOORSTIN, 1997, p. 337)
Não obstante as dificuldades internas, a Guerra começou a pender para os norteamericanos entre 1777 (com a vitória dos patriotas em Saratoga, primeira grande batalha
do conflito) e 1778-9 (quando a França, depois a Espanha, passaram a apoiar os
estadunidenses). A França enviara homens, armas e mantimentos, bem como combatia a
Marinha britânica juntamente com os corsários. Não podia a Inglaterra combater do outro
lado do Atlântico contra tantos inimigos. O decisivo apoio do poderio naval francês na derrota
das tropas do general Cornwallis, em Yorktown (costa da Virgínia), selou o fim da resistência
inglesa.
Tratava-se, agora, de acordar a paz. Em Versalhes, foi celebrada a Paz de Paris
(1783), quando ficaram reconhecidas a independência, a liberdade e soberania das exTreze Colônias sobre o território do Oeste até o Mississipi, ao Sul até a Flórida, recuperada
pela Espanha e ao Norte até os Grandes Lagos. A França conseguiu ficar com algumas
ilhas inglesas nas Antilhas (e uma enorme dívida, uma das origens da Revolução Francesa).
Entretanto, agora os Estados Unidos deveriam solucionar seus conflitos internos no bojo do
processo de construção da nação norte-americana.
20
A Consolidação da Nação Norte-americana
Concluída a Paz, os impasses vislumbrados entre o Congresso Continental e os
estados continuavam. O fraco poder confederado do Congresso impedia um avanço na
construção de estruturas político-administrativas nacionais. Não havia ainda nação. Esta
fora uma construção ideológica que levaria quase um século para se afirmar.
O período da Confederação foi um ponto crítico na história do recém criado país. A
anarquia de interesses dos diversos estados precisava ser equacionada, sob risco de
completa fragmentação. Em 25 de maio de 1787, reuniram-se em Filadélfia as figuras mais
ilustres dos estados. Apenas Rhode Island não enviou representantes. Os 55 delegados
elegeram George Washington como presidente da Convenção. Era chegada a hora de
discutir uma Constituição. Na Convenção, o embate entre confederados e federalistas dera
o tom – poder local versus centralizado.
O texto constitucional redigido, onde prevalecera o espírito federalista, precisava de
aprovação. Os federalistas, mais organizados e fortes junto à opinião pública (tinham a
imprensa ao seu lado), “rejeitavam a participação popular na política, pois temiam ‘um caos’,
‘uma anarquia’ ou se estabelecesse uma ‘irreversível desordem’” (JUNQUEIRA, 2001, p.
26). Seu projeto saíra vencedor, tendo a Constituição, que recebera poucas emendas,
ratificada, em 13 de setembro de 1788, por 11 estados. Desde sua redação até 1992, a
Constituição norte-americana tinha recebido apenas 27 emendas, em flagrante contraste
com as constituições latino-americanas, constantemente refeitas e emendadas. Isto se deve
ao fato de que o texto constitucional dos EUA é baseado em princípios, o que lhe dá maior
flexibilidade e por isso pouco necessita ser reformado.
Um dos documentos mais importantes da história
política contemporânea, a Constituição norte-americana
estabeleceu um poder central (Executivo), chefiado pelo
presidente eleito, com funções que incluem
regulamentação do comércio, cunhagem de moedas,
controle das terras públicas e manutenção das Forças
Armadas nacionais. O poder Legislativo ficara a cargo Assinatura da Constituição Norte-Americana
de duas assembléias: a Câmara dos Deputados e o
Senado. O Judiciário, a nível federal, é representado por uma Suprema Corte
(importantíssima na cultura política dos EUA, pois é ela a responsável por interpretar os
princípios da Constituição, decidindo o que é ou não constitucional).
A soberania popular era efetivamente limitada pelo voto censitário, pois apenas os
homens que possuíam determinada renda – em terras ou investimentos – poderiam votar
ou serem eleitos (AQUINO, 2000, pp. 193-4). Isto excluía a maioria da população, sem
contar os escravos, obviamente ausentes da participação política. O sistema eleitoral
estabelecido vigora até hoje: os eleitores votam em delegados do seu estado, que por sua
vez escolhem o presidente. Assim, a eleição é indireta.
Mesmo vencidos, os antifederalistas conseguiram a aprovação da famosa Bill of
Rights (Declaração de Direitos), que garantia alguns direitos civis, como as liberdades de
expressão, de reunião, de imprensa, de fé religiosa, bem como a separação entre Igreja e
Estado.
Como parecia natural, o primeiro presidente foi George Washington (eleito para dois
mandatos – 1789-97), pois era uma figura de prestígio pelo comando durante a Guerra,
capaz de dar um sentimento de unidade ao poder Executivo. Juntamente com Washington,
outras personalidades como Thomas Jefferson (eleito presidente de 1801 a 1809) figuram
no panteão cívico norte-americano como os “Pais Fundadores” (Founding Fathers) da nação.
Verdadeiros ídolos públicos, tinham seus feitos ligados aos “Pais Pelegrinos”, como se
fossem seus herdeiros diretos, contribuindo para a formação do espírito de união da
comunidade norte-americana.
21
Assim como Winthrop, abordo do Arbela, tinha estabelecido um pacto
de união entre os puritanos, no início do século XIX os “Pais Fundadores”
seriam os responsáveis pela consolidação da comunidade WASP dos
Estados Unidos da América. Como aqueles que pretendiam fundar a “Nova
Jerusalém”, estes desejavam fundar uma “Nova Roma”, evocando os virtuosos
princípios republicanos da antiguidade romana (é ilustrativo disto a arquitetura
História da
neoclássica das instituições máximas da política dos EUA, a Casa Branca e
América II
o Capitólio – como é chamado o prédio do Congresso). Era necessário romper
com a tradição monárquica inglesa para legitimar o novo regime – a República
– e foi Roma o referencial escolhido.
Casa Branca
Capitólio
Mas a concretização deste amálgama sobre a sociedade norte-americana não fora
automática. A heterogeneidade regional, social, econômica e religiosa tinha que ser
minimizada frente aos valores comuns a todos, e estes só poderiam ser cívicos – não é por
acaso que o nacionalismo dos EUA é considerado por seus historiadores como um
nacionalismo cívico (ver CHASTEEN, 2001, p. 179).
•
A Expansão para o Oeste
Primeiramente, os EUA deviam resolver os problemas relacionados ao povoamento
de suas fronteiras. As questões fronteiriças já figuravam no período da Confederação: em
1787, o Estatuto (ou Ordenações) do Noroeste deu corpo jurídico ao estabelecer que
nenhum Estado poderia constituir colônias nas terras do
Oeste, consideradas territórios federais até que estes
atingissem determinada quantidade de eleitores, quando então
se transformariam em Estados e seriam admitidos à união
com os mesmos direitos dos Treze Estados originários.
(AQUINO, 2000, p. 192)
Pois, caso contrário, se um dos estados já existentes apenas incorporasse novas
terras e populações poderiam desequilibrar a Federação. Este mecanismo de inclusão
dos novos estados possibilitou a expansão para o Oeste, que caracterizaria a primeira
metade do século XIX norte-americano. A questão do Oeste aparece como um nexo que
interliga os problemas centrais para os EUA da época: a inclusão dos homens de fronteira
no sistema político, e a delicada temática da escravidão.
O primeiro tivera solução a partir do Estatuto do Noroeste. Através dele novos estados
foram sendo anexados: “Vermont foi o 14° estado a entrar para a União, em 1791. O Kentucky
tornou-se o 15° estado, em 1792, e Ohio, o 16° estado dos Estados Unidos, em 1803”
(JUNQUEIRA, 2001, p. 41). A expansão para o Oeste esbarrava na existência da Louisiana,
pertencente à França. A solução foi comprá-la da França napoleônica em 1803. Apenas a
Guerra contra a Inglaterra entre 1812-14 distraíra os norte-americanos em sua expansão.
Terminada com a vitória dos EUA, novos territórios foram criados na extensa área da
Louisiana, que após completarem os 60 mil habitantes requeridos pela lei, tornaram-se
estados federados à União. Ao Sul, a Flórida, ainda sob domínio espanhol, foi comprada
em 1822.
Tendo em vista que a maioria dos colonos que se fixavam nos territórios de fronteira
era composta por proprietários descapitalizados, o voto censitário impediria por muito tempo
a inclusão de tais territórios como novos estados. A saída fora universalizar o voto a todos
22
os homens livres. Este processo pode ser denominado como “democracia jacksoniana”
(HOBSBAWM, 1977, p. 129), pois Andrew Jackson, comandante militar de prestígio e
nascido no Oeste, baseava seu apoio político nos recém-criados estados (ele se tornou o
primeiro governador da Flórida). Com o auxílio dos homens da fronteira, Jackson consagrouse presidente dos EUA por dois mandatos seguidos (1829-37). Sua defesa da democracia
alargada revolucionou a política norte-americana. Por mais que alguns estados mantivessem
o voto censitário, os novos ventos da democracia universal sopravam os EUA rumo ao
posto de vanguarda da política democrática, processo em consolidação no Ocidente entre
fins do século XIX e a primeira metade do XX.
A postura igualitária de Jackson enquadrava-se no que seria um mito norte-americano:
a valorização do homem comum, que, pelo seu trabalho, conseguia prosperar, pois o Oeste
era visto como a terra das possibilidades, onde – após o extermínio ou a expulsão dos
indígenas – tudo poderia ser realizado.
A política adotada por Jackson foi dirigida em benefício do
pequeno proprietário, estimulando a mobilidade social e o
espírito individualista. Era o tempo da valorização do self made
man, imagem tão celebrada nos Estados Unidos desde então.
(JUNQUEIRA, 2001, p. 46)
Na expansão para o Oeste era inevitável o choque com as nações indígenas. Apenas
eliminando a ameaça indígena os colonos (em sua ótica) poderiam desenvolver a civilização
nos territórios abertos pelo avanço do povoamento no centro do continente. A imagem dos
conflitos entre brancos e índios ficou imortalizada pelas produções hollywoodianas, dando
origem a um novo gênero cinematográfico: o faroeste.
Jackson, defensor dos pequenos proprietários do Oeste, quando presidente,
estabeleceu o Indian Removal Act (Ato de Remoção Indígena - 1830) que forçou a remoção
de milhares de índios para reservas longe (por enquanto) dos territórios pretendidos pelos
colonizadores da região do Mississipi. Aos resistentes, a cavalaria norte-americana travava
duros combates, exterminando tribos inteiras.
O contraste entre os indígenas, considerados
“selvagens”, portanto impossibilitados de serem
integrados à sociedade dos EUA, e o homem branco,
tido como realizador de uma nova sociedade no interior
continental, davam uma idéia de superioridade marcante
aos norte-americanos. Como vimos desde o período
colonial havia a concepção de que os colonos tinham
vindo para a América fundar um novo mundo, distinto da
Trilha das Lágrimas
velha Europa. No século XIX, esta ótica seria
sistematizada na Doutrina do Destino Manifesto (fundamental para entender a lógica
imperialista dos EUA em pleno século XXI), expressão cunhada pelo jornalista John
O’Sullivan (JUNQUEIRA, 2001, p. 50). Os estadunidenses acreditavam que tinham o direito,
concedido por Deus, de tomar todo o território continental da América do Norte. Sua
civilização, considerada superior, tinha o direito de expulsar indígenas e depois os
mexicanos, pois sua missão era ser o grande farol que iluminaria toda a humanidade.
Assim, resolvidos os entraves indígenas, os norte-americanos, em sua expansão
desenfreada, chegaram às terras mexicanas na década de 1830. Colonos fundaram uma
“república independente” no Texas, território mexicano. Posteriormente decidiram anexarse aos EUA, provocando a guerra contra o México (1846-8). O resultado de uma luta desigual
foi a tomada de metade do território mexicano pelos EUA, terminando a expansão rumo ao
Oeste, com a chegada à costa do Pacífico e a posterior criação de diversos estados norteamericanos. A descoberta de ouro na Califórnia levaria à Corrida do Ouro, que se tornara
uma febre na década de 1850, estimulando o povoamento.
Agora, as atenções voltaram-se para o Norte: o Oregon, disputado com os ingleses
e o Alasca, território Russo, foram incorporados mediante acordos nas décadas de 1840 e
23
1860. Estava consolidada a plataforma continental dos EUA.
A questão do Oeste, como dito, também abarcava a temática sensível
da escravidão. O problema girava em torno da expansão ou não da escravidão
para os novos estados criados. A maioria deste decidira pela adoção da
escravidão, fazendo pender a balança de poder para o Sul, no âmbito do
História da Congresso Nacional. Estavam em choque diferentes modelos econômicoAmérica II sociais: o Norte, onde vigoravam o trabalho assalariado e as manufaturas,
tinha seus homens de negócios defendendo o fim da escravidão, objetivando
a expansão do mercado consumidor; já o Sul, essencialmente agroexportador
(o algodão norte-americano foi essencial para a industrialização inglesa) e escravista, tinha
uma aristocracia conservadora ciosa de seus direitos e ressentida pelo endividamento frente
aos nortistas que a financiavam, além das divergências alfandegárias entre eles. O impasse fora decidido pela sorte das armas.
•
A Guerra Civil Norte-americana
A Guerra Civil, conhecida também como Guerra de Secessão, foi um dos eventos
mais marcantes da história dos EUA. O país quase se dividiu em dois. O aumento do poderio
sulista, ao mesmo tempo em que crescia no Norte o movimento abolicionista, polarizava os
debates no Congresso. Desde 1808, o tráfico de africanos estava proibido. Porém, além
do contrabando persistir, o sistema escravista dos EUA era baseado na reprodução interna,
através dos filhos dos escravos.
A eleição de Abraham Lincoln (do Estado de Illinois), em 1860, foi um duro golpe
para os sulistas, pois seu Partido Republicano
defendia a abolição. A tensão chegara ao limite,
levando 11 estados sulistas a se separarem da
União e formarem uma nova Confederação
(Estados Confederados da América).
Fonte: THE TIMES, Atlas de História Universal, 1995, 233.
24
O conflito se iniciara em abril de 1861, porém apesar de diversas vitórias da
Confederação, o Norte saiu vitorioso, quatro anos depois – 9 de abril de 1865, sendo que o
presidente Lincoln foi assassinado quatro dias após, por um simpatizante sulista. Sua
população muito superior à do Sul (22 contra 9 milhões, respectivamente), seu
desenvolvimento industrial (que facilitara a produção voltada para a Guerra), suas facilidades
de transporte pelas estradas de ferro e o bloqueio da costa sulina, que estrangulava a
exportação e impedia a importação de material bélico foram decisivos.
No bojo do conflito a abolição foi decretada – 1862 – mas a igualdade política entre
brancos e negros não garantiu a igualdade
social, nem o fim do racismo. A nação,
reintegrada politicamente com a volta dos
Confederados à União, permanecia dividida
racialmente, como ainda o é nos dias de
hoje.
A Guerra, que causara mais de 620
mil mortes, acabou por modernizar os EUA,
pois o conflito contribuíra para o
desenvolvimento tecnológico e industrial do
Norte. Após o conflito, a burguesia nortista
passara a investir também na modernização
do Sul, em processo de reconstrução de sua
economia, duramente afetada pelo conflito.
A introdução do contingente oriundo da
A Guerra em imagens
escravidão no mercado consumidor também
serviu de catalisador do capitalismo norte-americano, que terminaria o século XIX como um
dos mais prósperos e importantes do mundo.
Os EUA em Fins do Século XIX
Os Estados Unidos da América conheceram um grande desenvolvimento ao longo
de seu primeiro século e meio de existência. A começar pela expansão territorial, que
multiplicara seu território em cerca de 11 vezes (JUNQUEIRA, 2001, p. 39). A população
crescera tão espetacularmente quanto o território, por conta do forte movimento imigratório
ao longo do século XIX e da elevada taxa de natalidade. Já entre 1790 e 1820, a população
norte-americana passou de 3.929.214 para 9.638.453 (CHAUNU, 1969, p. 184). Os
imigrantes na segunda metade do século chegavam em massa: “2,4 milhões na década de
1870 e 5,3 milhões na década de 1880” (BANDEIRA, 1998, p. 24). E o número de imigrantes
não parou de crescer, pois a partir de 1880, os EUA instalaram na Europa agências para
atrair imigrantes que foram incorporados nas manufaturas em expansão:
entre 1880 e 1920, os Estados Unidos receberam perto de
22 milhões de imigrantes – asiáticos, russos, judeus, tchecos,
húngaros, poloneses, sérvios, croatas, romenos, gregos e
7um grande contingente de italianos. Foram o país das
Américas a receber o maior número de imigrantes nessa
época. (JUNQUEIRA, 2001, p. 119)
Todo este movimento migratório contribuiu para a diversidade cultural norte-americana,
uma das marcas daquele país. Uma cultura voltada para o progresso, para a expansão
(eram a terra das oportunidades), onde o espírito capitalista protestante transformara uma
sociedade agrária do século XVIII em uma potência industrial ao longo do XIX.
O desenvolvimento manufatureiro já havia sido observado em tempos coloniais
(pequeno é verdade, muito aquém da agricultura), porém foi no século seguinte à
25
independência que o processo se consolidara. Já na primeira metade do XIX,
os EUA cresciam com uma rapidez assombrosa, ocupando, por volta de 1850,
o quinto lugar no mundo como potência manufatureira (BANDEIRA, 1998, p.
História da 16).
Após a Guerra de Secessão, os norte-americanos experimentaram um
América II
grandioso desenvolvimento econômico. O conflito acelerara a industrialização,
bem como a necessidade de incorporar as terras do Oeste de fato, ligando o
país pelas estradas de ferro. Ao longo da década de 1860, foi construída uma grande ferrovia
que ia da costa do Atlântico à do Pacífico. E a construção das ferrovias, ao mesmo tempo
em que integrava mais terras e populações aos circuitos comerciais do Leste – permitindo
a expansão industrial –, engendrava por si só a expansão fabril, especialmente nos setores
de metalurgia e siderurgia.
A Guerra também estimulara a mecanização fabril, pois o crescimento das
necessidades de fornecimento de material para o conflito foi acompanhado do recrutamento
e morte de parte do contingente proletário. Os industriais que dispunham de capitais para
investir tornaram-se riquíssimos. Outro efeito decorrente do conflito foi a ocorrência inúmeras
fusões de empresas, visando a agilização do fornecimento e das comunicações,
principalmente das tropas nortistas. A década seguinte foi marcada pela aceleração e
fortalecimento da expansão dos grandes grupos industriais, dedicados à reconstrução das
áreas devastadas pela Guerra e a novas aquisições de pequenas empresas, possibilitando
investimentos em tecnologia e procura por mercados externos:
Do quinto lugar como potência industrial, em 1840, os EUA,
que até a Guerra de Secessão foram um país de pequenos
negócios, saltaram para o quarto em 1860 e para o segundo
em 1870, quando o processo de concentração e centralização
da economia, impulsionado pelo crack de 1873, começou a
produzir novas formas de associação empresarial – pools,
trusts, cartéis e sindicatos – com o objetivo de monopolizar
mercados e fontes de matérias-primas, bem como controlar
preços e exportar capitais. Em tais circunstâncias, com as
forças produtivas do capitalismo desbordando os limites do
estado nacional, a América Latina, agrícola e atrasada, se
configurava como a continuidade natural do seu espaço
econômico. (BANDEIRA, 1998, p. 24)
Com efeito, a expansão do capitalismo industrial norte-americano estava intimamente
ligada ao seu expansionismo territorial. Mais terras, mais matérias-primas para a produção,
mais imigrantes atraídos pelas possibilidades de enriquecimento, mais braços para as
indústrias. Estas se desenvolveram na chamada “segunda Revolução Industrial”, marcada
pela indústria petrolífera, e os EUA foram protagonistas de ponta neste processo. Os
monopólios, como o da Standart Oil Co., fortaleceram os grandes grupos econômicos e o
avanço tecnológico. Seguindo os exemplos europeus, os EUA organizaram as chamadas
“exposições universais”, onde os progressos científicos – e suas invenções –
impressionavam seus visitantes. Boa parte das patentes tecnológicas registradas desde
então são norte-americanas (Hollywood produziu inúmeros filmes que ilustram a mentalidade
criativa dos estadunidenses, com suas personagens inventoras).
Assim os EUA tiveram, no século XIX, um grande círculo virtuoso, uma conjuntura
favorável ao seu crescimento. E os políticos não ficaram alheios às necessidades e
oportunidades abertas nesta era.
Na década de 1820, a política estava permeada pela atmosfera expansionista. Em
resposta à criação da Santa Aliança na Europa, e dos decorrentes riscos de recolonização
das Américas ibéricas, o presidente James Monroe (1817-25) proclamou a Doutrina Monroe
(1823), que tinha como lema “a América para os americanos”. Estava já inserida na esfera
26
do imperialismo, que se concretizara em fins do século, após a consolidação das fronteiras
continentais dos EUA.
A cultura norte-americana é permeada pelos princípios expansionistas, pois os
estadunidenses se consideram como o “povo eleito” por Deus para civilizar o restante da
humanidade. Assim, a concepção do “Destino Manifesto” se materializava na conquista do
Oeste, bem como na anexação de grande parte dos territórios mexicanos. Era natural que
pensassem em expandir-se além de suas fronteiras. O capitalismo voraz do último quartel
do XIX impelira os norte-americanos a buscarem reservas de matérias-primas e mercado
consumidor na América Latina, impulsionando os investimentos na região.
As atenções se voltaram para Cuba e Porto Rico, ainda possessões espanholas.
Desde fins do XVIII, os políticos consideravam ambas como “apêndices naturais” do território
norte-americano, concepção que vigorou por todo o XIX (JUNQUEIRA, 2001, p. 100). Em
1895, a oportunidade de controle sobre tais ilhas caribenhas abriu-se com a luta pela
independência levada a cabo pelos patriotas cubanos, que solicitaram apoio dos EUA contra
a Espanha. A explosão e naufrágio do Maine, navio da Marinha norte-americana estacionado
no porto de Havana, deu o pretexto para o início da guerra (1898), pois os espanhóis foram
responsabilizados pelo incidente. Sem dificuldades, a vitória dos EUA na que foi chamada
de “explêndida guerrinha” pelo Secretário de Estado, consolidara o status imperial norteamericano, ao manter Cuba como protetorado por 35 anos, e administrar as Filipinas até
1940 (CHASTEEN, 2001, pp. 166-7). Porto Rico e o Hawaí até hoje fazem parte dos EUA,
o primeiro como “estado autônomo associado” (um eufemismo para colônia) e o segundo
incluído como estado da Federação.
Os interesses norte-americanos, após a concretização do seu poder no Caribe,
voltaram-se para a construção de um canal na América Central que servisse de via comercial
de ligação entre o Atlântico e o Pacífico. Theodore Roosevelt principal personagem da política
do Big Stick (grande porrete), defendia as pressões e intervenções dos EUA onde parecia
conveniente. Em 1903, Roosevelt conseguiu adquirir uma base militar no Panamá e depois
o direito de construir e controlar o canal desejado. Não sem antes influenciar na separação
do Panamá, então pertencente à Colômbia. Era uma amostra do poderio americano que se
extendia para toda a América Central, e de forma geral a toda a América Latina. O presidente
também foi o responsável pelo “corolário Roosevelt”, que, em 1904, afirmava:
Na realidade, são idênticos os nossos interesses e os dos
nossos vizinhos sulinos. Eles possuem grandes riquezas
naturais e a prosperidade certamente chegará a eles, se reinar
a lei e a justiça dentro de suas fronteiras. Enquanto
obedecerem às leis elementares da sociedade civilizada,
podem estar seguros de que serão tratados por nós com
ânimo cordial e compreensivo. Interviríamos somente em
último caso, somente se se tornasse evidente a sua
inabilidade ou má vontade, quanto a fazer justiça interna e,
em plano externo, se tivessem violado os direitos dos Estados
Unidos; ou ainda, se tivessem favorecido a agressão externa,
em detrimento da comunidade das nações americanas. (in:
IANNI, 1988, p. 24)
Fica patente o preconceito de Roosevelt para com os latino-americanos, tratados
como crianças que precisam ser educadas e civilizadas, sob direção dos EUA. Esta é uma
hipócrita visão quanto ao grau de civilidade latino-americana, tendo em vista a discriminação
racial e a exclusão social vislumbradas nos EUA em fins do século XIX. Os negros continuaram
segregados e os trabalhadores explorados ao máximo, sendo reprimidos os seus
movimentos por direitos trabalhistas. São aspectos da contraditória história norte-americana
ainda presentes nos dias de hoje...
27
Texto Complementar
“Ao iniciarmos a análise da dimensão histórica da mudança econômica
História da
América II latino-americana, caberia fazer a seguinte pergunta: como explicar que as
duas áreas anteriormente coloniais, os Estados Unidos e a América Latina,
desenvolveram padrões de crescimento econômico tão marcadamente
constrastantes após as respectivas independências? Como pôde a nação norte-americana
emergir, por volta de 1870, como segunda potência econômica mundial em termos de
produção industrial, ao passo que a América Latina permanecia, fundalmentalmente,
desempenhando o mesmo papel de principal fornecedor de matérias-primas e gêneros
alimentícios para os países do Atlântico norte? [...]
Nessa tentativa de encontrar uma resposta que sirva de base para estudos
comparativos entre as duas áreas em seu desenvolvimento pós-colonial, somos levados
(inevitavelmente) aos complexos culturais europeus, berço dos colonizadores ingleses e
ibéricos, em cujo seio esses modelos de atividade colonial foram concebidos. Não será
suficiente comparar o grau de censura e tolerância, as perspectivas coloniauis em termos
de educação, a extensão da liberdade econômica colonial; dever-se-á, forçosamente,
encontrar a origem de tais elementos em suas matrizes européias. Em contraste com a
Espanha [...], os colonizadores ingleses saíram de uma Inglaterra em processo de
modernização, que encarava o conhecimento, a tolerância, os direitos individuais, a liberdade
econômica, a poupança e o investimento como elementos inseparáveis do processo de
transformação e crescimento. [...]
Além disso, o meio natural (objeto da colonização inglesa) constrastava, em pontos
essenciais, com aquele encontrado pelos primeiros colonizadores ibéricos. Embora as
primeirascompanhias comerciais inglesas buscassem decobrir minas de metais preciosos,
nenhuma foi encontrada. [...] os europeus ocidentais que vieram para a América do Norte
não tiveram que entrar em choque ou incorporar culturas indígenas de vulto: expulsaram os
ameríndios nômades que encontraram ao longo de sua penetração, mataram-nos ou
isolaram os sobreviventes em tratos de terra improdutiva [...] Os indígenas norte-americanos
permaneceram não-incorporados e não-integrados. [...] Em termos mais amplos, a existência
de uma terra virgem, de vastas dimensões e subabitada, possuidora de extraordinários
recursos, situada em posição favorável face à Europa e desfrutando de condições climáticas
comparáveis àquelas encontradas em solos europeus representava, em realidade, condição
fortemente potencial para o desenvolvimento, inexistente em qualquer outra parte do Novo
Mundo. [...] Há muito confinadas às limitadas possibilidades agrícolas oferecidas pela orla
marítima, as colônias inglesas do norte desenvolveram a construção náutica e as atividades
mercantis, estas últimas particularmente após 1763, na região do Caribe; por seu turno, as
colônias do sul estabeleceram as bases para uma agricultura de exportação utilizadora da
mão-de-obra escrava. [...] Nos anos que se seguiram a 1814, a demanda externa do algodão
e, ao longo da década de 30, o crescimento e ascensão dos preços de esportação
estimularam a concentração das das áreas agrícolas do sul em torno da produção algodoeira
voltada para o comércio com a Europa ocidental e a região nordeste dos próprios Estados
unidos até a eclosão da Guerra de Secessão.
O norte do país adquirira os contornos bem marcados de um centro financeiro para a
atividade agrícola do sul, um entreposto para suas importações de manufaturas e artigos
de luxo e um fornecedor de manufaturaas tais como têxteis de algodão e utensílios de
ferro.após 1830, a ocupação e colonização do território oeste ampliaram a importância do
nordeste como exportador de cereais, alargando, concomitantemente, os mercados
consumidores de sua produção industrial. [...] Ao eclodir a Guerra de Secessão, o
crescimento econômico dos Estados Unidos havia sido estimulado por fatores externos e
pela criação de um mercado nacional, não obstante a presença da escravidão ao sul. E, o
28
que é mais relevante para o estudo comparativo com a América Latina, a Guerra de
Secessão abrira o caminho para a industrialização norte-americana.”
STEIN, Stanley J. A Herança Colonial da América Latina: ensaios de dependência
econômica. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976, pp. 98-101.
Fonte: AQUINO, 2000, p. 228.
História através de Documentos
“No Congresso, 4 de julho de 1776
Declaração Unânime dos Treze Estados Unidos da América
Quando, no curso dos acontecimentos humanos, se torna necessário um povo
dissolver laços políticos que o ligavam a outro, e assumir, entre os poderes da Terra, posição
igual e separada, a que lhe dão direito as leis da natureza e as do Deus da natureza, o
respeito digno às opiniões dos homens exige que se declarem as causas que os levam a
essa separação.
Consideramos estas verdades como evidentes por si mesmas, que todos os homens
foram criados iguais, foram dotados pelo Criador de certos direitos inalienáveis, que entre
estes estão a vida, a liberdade e a busca da felicidade.
Que a fim de assegurar esses direitos, governos são instituídos entre os homens,
derivando seus justos poderes do consentimento dos governados; que, sempre que qualquer
forma de governo se torne destrutiva de tais fins, cabe ao povo o direito de alterá-la ou
aboli-la e instituir novo governo, baseando-o em tais princípios e organizando-lhe os poderes
pela forma que lhe pareça mais conveniente para realizar-lhe a segurança e a felicidade.
Na realidade, a prudência recomenda que não se mudem os governos instituídos há muito
tempo por motivos leves e passageiros; e, assim sendo, toda experiência tem mostrado
que os homens estão mais dispostos a sofrer, enquanto os males são suportáveis, do que
a se desagravar, abolindo as formas a que se acostumaram. Mas, quando uma longa série
de abusos e usurpações, perseguindo invariavelmente o mesmo objeto, indica o desígnio
de reduzi-los ao despotismo absoluto, assistem-lhes o direito, bem como o dever, de abolir
tais governos e instituir novos-Guardas para sua futura segurança. Tal tem sido o sofrimento
paciente destas colônias e tal agora a necessidade que as força a alterar os sistemas
anteriores de governo. A história do atual Rei da Grã-Bretanha compõe-se de repetidos
danos e usurpações, tendo todos por objetivo direto o estabelecimento da tirania absoluta
sobre estes Estados. Para prová-lo, permitam-nos submeter os fatos a um cândido mundo.
29
Recusou assentimento a leis das mais salutares e necessárias ao bem
público.
Proibiu aos governadores a promulgação de leis de importância
imediata e urgente, a menos que a aplicação fosse suspensa até que se
obtivesse o seu assentimento, e, uma vez suspensas, deixou inteiramente de
História da
dispensar-lhes atenção.
América II
Recusou promulgar outras leis para o bem-estar de grande distritos de
povo, a menos que abandonassem o direito à representação no Legislativo,
direito inestimável para eles temível apenas para os tiranos,
Convocou os corpos legislativos a lugares não usuais, ser conforto e distantes dos
locais em que se encontram os arquivos públicos, com o único fito de arrancar-lhes, pela
fadiga o assentimento às medidas que lhe conviessem.
Dissolveu Casas de Representantes repetidamente porque: opunham com máscula
firmeza às invasões dos direitos do povo.
Recusou por muito tempo, depois de tais dissoluções, fazer com que outros fossem
eleitos; em virtude do que os poderes legislativos incapazes de aniquilação voltaram ao
povo em geral para que os exercesse; ficando nesse ínterim o Estado exposto a todos os
perigos de invasão externa ou convulsão interna.
Procurou impedir o povoamento destes estados, obstruindo para esse fim as leis de
naturalização de estrangeiros, recusando promulgar outras que animassem as migrações
para cá e complicando as condições para novas apropriações de terras.
Dificultou a administração da justiça pela recusa de assentimento a leis que
estabeleciam poderes judiciários.
Tornou os juízes dependentes apenas da vontade dele para gozo do cargo e valor e
pagamento dos respectivos salários.
Criou uma multidão de novos cargos e para eles enviou enxames de funcionários
para perseguir o povo e devorar-nos a substância.
Manteve entre nós, em tempo de paz, exércitos permanentes sem o consentimento
de nossos corpos legislativos.
Tentou tornar o militar independente do poder civil e a ele superior.
Combinou com outros sujeitar-nos a jurisdição estranha à nossa Constituição e não
reconhecida por nossas leis, dando assentimento a seus atos de pretensa legislação:
por aquartelar grandes corpos de tropas entre nós;
por protegê-las por meio de julgamentos simulados, de punição por assassinatos
que viessem a cometer contra os habitantes destes estados;
por fazer cessar nosso comércio com todas as partes do mundo;
pelo lançamento de taxas sem nosso consentimento;
por privar-nos, em muitos casos, dos benefícios do julgamento pelo júri;
por transportar-nos para além-mar para julgamento por pretensas ofensas;
por abolir o sistema livre de leis inglesas em província vizinha, aí estabelecendo
governo arbitrário e ampliando-lhe os limites, de sorte a torná-lo, de imediato, exemplo e
instrumento apropriado para a introdução do mesmo domínio absoluto nestas colônias;
por tirar-nos nossas cartas, abolindo nossas leis mais valiosas e alterando
fundamentalmente a forma de nosso governo;
por suspender nossos corpos legislativos, declarando se investido do poder de legislar
para nós em todos e quaisquer casos.
Abdicou do governo aqui por declarar-nos fora de sua proteção e movendo guerra
contra nós.
Saqueou nossos mares, devastou nossas costas, incendiou nossas cidades e
destruiu a vida de nosso povo.
Está, agora mesmo, transportando grandes exércitos de mercenários estrangeiros
para completar a obra da morte, desolação e tirania, já iniciada em circunstâncias de
30
crueldade e perfídia raramente igualadas nas idades mais bárbaras e totalmente indignas
do chefe de uma nação civilizada.
Obrigou nossos concidadãos aprisionados em alto-mar a tomarem armas contra a
própria pátria, para que se tornassem algozes dos amigos e irmãos ou para que caíssem
por suas mãos.
Provocou insurreições internas entre nós e procurou trazer contra os habitantes das
fronteiras os índios selvagens e impiedosos, cuja regra sabida de guerra é a destruição
sem distinção de idade, sexo e condições.
Em cada fase dessas opressões solicitamos reparação nos termos mais humildes;
responderam a nossas apenas com repetido agravo. Um príncipe cujo caráter se assinala
deste modo por todos os atos capazes de definir tirano não está em condições de governar
um povo livre. Tampouco deixamos de chamar a atenção de nossos irmãos britânicos. De
tempos em tempos, os advertimos sobre as tentativas do Legislativo deles de estender
sobre nós jurisdição insustentável. Lembramos a eles das circunstâncias de nossa migração
e estabelecimento aqui. Apelamos para a justiça natural e para a magnanimidade, e os
conjuramos, pelos laços de nosso parentesco comum, a repudiarem essas usurpações que
interromperiam, inevitavelmente, nossas ligações e nossa correspondência. Permaneceram
também surdos à voz da justiça e da consangüinidade. Temos, portanto, de aquiescer na
necessidade de denunciar nossa separação e considerá-los, como consideramos o restante
dos homens, inimigos na guerra e amigos na paz.
Nós, por conseguinte, representantes dos Estados Unidos da América, reunidos em
Congresso Geral, apelando para o Juiz Supremo do mundo pela retidão de nossas intenções,
em nome e por autoridade do bom povo destas colônias, publicamos e declaramos
solenemente: que estas colônias unidas são e de direito têm de ser Estados livres e
independentes, que estão desoneradas de qualquer vassalagem para com a Coroa Britânica,
e que todo vínculo político entre elas e a Grã-Bretanha está e deve ficar totalmente dissolvido;
e que, como Estados livres e independentes, têm inteiro poder para declarar guerra, concluir
paz, contratar alianças, estabelecer comércio e praticar todos os atos e ações a que têm
direito os estados independentes. E em apoio desta declaração, plenos de firme confiança
na proteção da Divina Providência, empenhamos mutuamente nossas vidas, nossas fortunas
e nossa sagrada honra.
John Hancock”
Documento de domínio público. A Declaração foi assinada pelos representantes das
Treze Colônias, agora tratadas como Treze Estados.
Seção Estante do Historiador
JUNQUEIRA, Mary
Anne. Estados
Unidos: a
consolidação da
nação. São Paulo:
Contexto, 2001.
KARNAL, Leandro.
Estados Unidos:
a formação da
nação. São Paulo:
Contexto, 2001.
31
História da
América II
1.
Complementares
Analise o processo de colonização inglesa, destacando sua economia e administração.
2.
3.
32
Atividades
Discuta a noção do Destino Manifesto, tão importante na cultura norte-americana.
Descreva as causas do desenvolvimento norte-americano ao longo do século XIX.
DA CRISE DO SISTEMA COLONIAL À FORMAÇÃO DOS
ESTADOS NACIONAIS LATINO-AMERICANOS
Crise do Sistema Colonial
Nos séculos XVII e XVIII, os pilares da civilização européia foram abalados e
transformados, configurando-se as bases para o desenvolvimento da civilização ocidental
contemporânea, à qual a América Latina se insere. As mudanças foram de ordens diversas.
No âmbito econômico, a transição do capitalismo mercantil para o industrial implicara
na superação dos entraves mercantilistas, materializados no Pacto Colonial que regia as
relações entre metrópoles e colônias. Os monopólios não mais satisfaziam às necessidades
coloniais, levando os colonos à prática do contrabando ou mesmo à produção interna de
produtos antes vindos da Europa. A Inglaterra, berço da Revolução Industrial na segunda
metade do século XVIII, pressionava o sistema colonial ibérico:
Na busca pela ampliação dos mercados, os ingleses impõe
ao mundo o livre comércio e o abandono dos princípios
mercantilistas, ao mesmo tempo que tratam de proteger seu
próprio mercado e o de suas colônias com tarifas
protecionistas. Em suas relações com a América portuguesa
e espanhola, abrem brechas cada vez maiores no sistema
colonial, por meio de acordos comerciais, contrabando e
aliança com os comerciantes locais. (FAUSTO, 2000, p. 108)
De modo geral, o desenvolvimento das forças produtivas na América colonial fazia
com que os interesses metropolitanos se chocassem com os interesses dos colonos,
desejosos de comerciar livremente sua produção, sem as amarras impostas pelo sistema.
O antagonismo crioulos versus peninsulares levou os primeiros a uma lenta tomada
de consciência quanto ao novo papel que almejavam desempenhar. Queriam dirigir seus
próprios destinos, sem interferência de além-mar. Tinham como justificativa ideológica o
pensamento iluminista, que sacudira o Antigo Regime na Europa e embasava suas
reivindicações referentes à liberdade comercial e autonomia administrativa.
Portugal e Espanha, outrora poderosos impérios marítimos, no século XVIII
desempenhavam um papel secundário no jogo de forças das potências européias. Suas
marinhas e frotas mercantes eram diminutas em relação ao poderio naval inglês.
Embarcações inglesas comerciavam legal (através dos asientos) ou ilegalmente, via
contrabando. Para solucionar a crise em suas economias, os ibéricos tentaram implementar
reformas que revertessem o atraso em que se encontravam.
Em Portugal, o responsável pelas reformas (1750-1777) foi o Marquês de Pombal.
Tais reformas, que misturavam velhos (criação de companhias privilegiadas de comércio,
aumento na fiscalização) e novos elementos (expulsão dos jesuítas, extinção da escravidão
indígena – 1757), tiveram resultados frustrantes, devido principalmente à depressão comercial
pela qual passava a América portuguesa.
Na Espanha, a ascensão dos Bourbons (1713), após a crise de sucessão ao trono,
levara a uma aparência de estabilidade. Lançaram-se novas bases para a política colonial,
caracterizadas por uma “nacionalização” da economia interna e colonial. Havia a
necessidade de retomar as rédeas do sistema, freando a participação dos estrangeiros no
comércio direto e nas casas comerciais em Cadiz, que funcionavam como entrepostos de
companhias inglesas e francesas. Internamente, a Espanha, incapacitada de fornecer os
artigos demandados pelos colonos, carecia de fomento à agricultura e manufaturas
“desenvolvendo a autonomia econômica via maximização do pacto colonial” (STEIN, 1976,
p. 70). Pretendia-se substituir as importações de manufaturas pela produção interna.
33
Contudo, devido à pressão dos grupos afetados pelas reformas e à
inabilidade governamental, pouco fora feito até a subida de Carlos III (1759)
ao trono espanhol. Carlos constituiu um corpo de administradores capazes,
História da dispostos a interferir nos privilégios e tradições, visando a uma reformulação
América II das instituições metropolitanas, imbuído de propósitos nacionalistas protoeconômicos. A estrutura do comércio colonial fora modificada, com a abertura
de diversos portos no Caribe (1765, posteriormente alargado a portos
continentais), a permissão de que 13 portos espanhóis realizassem o comércio direto com
a América, bem como no consentimento ao comércio intercolonial, mesmo que restrito. Era
uma espécie de liberalismo comercial no interior dos limites imperiais. Por fim, o sistema
das frotas foi gradualmente abolido, sendo eliminado em 1798. Aliado a tal “liberalismo”, o
governo metropolitano, visando reduzir o contrabando e elevar a arrecadação, aumentou a
fiscalização e a carga tributária nas colônias, o que provocou descontentamento e
resistências por parte das elites crioulas.
Além do comércio, o setor produtivo colonial foi estimulado, tendo áreas antes
negligenciadas experimentado um incremento das exportações agrícolas. A mineração teve
um crescimento apreciável, constituindo um cenário de apogeu do colonialismo espanhol
na América.
Entretanto, mesmo as reformas foram insuficientes para reerguer definitivamente a
economia espanhola, pois desde o Tratado de Utrecht (1713), ingleses e franceses tinham
prerrogativas comerciais e disputavam entre si os mercados coloniais, direta ou
indiretamente, contrariando o espírito nacionalista das reformas. As resistências que minavam
o esforço também vinham de dentro da Espanha:
Os oligopolistas de Cadiz e seus associados ultramarinos
opuseram-se ao intercâmbio internacional, bloquearam a
expansão da construção náutica colonial, optaram por lidar
com seus fornecedores tradicionais na Inglaterra e na França
[...] em lugar de produtores espanhóis não competitivos. Em
resumo, preferiram monopolizar o fluxo de mercadorias
européias ocidentais através de Cadiz, resistindo às tentativas
dos funcionários madrilenhos voltadas para o fomento da
economia das áreas periféricas do país, abrindo-lhes o acesso
aos mercados coloniais americanos. A própria estrutura do
oligopólio em cadiz e nas colônias, e a política de restrições à
oferta e aos preços, serviram de estímulo ao contrabando.
Em Portugal e Espanha, por volta de 1780, raros
administradores acreditavam ser possível igualar a atuação
econômica inglesa, caracterizada por uma indústria náutica
mais eficiente, taxas de seguro mais baratas, e artigos de
algodão de preços mais reduzidos e que estimularam uma
demanda insaciável junto aos mercados espanhol e português
e, especialmente, em suas colônias tropicais e subtropicais.
(STEIN, 1976, p. 81)
Aliada aos empecilhos econômicos, a conjuntura política de fins do século XVIII atuara
poderosamente contra a dominação ibérica na América. Os ventos do liberalismo, o exemplo
da independência norte-americana e a Revolução Francesa deram condições ideológicas
e objetivas para a independência dos ibero-americanos.
As Independências na América Latina
O processo de independência na América Latina não irrompeu de forma planejada
antecipadamente, alheia aos acontecimentos europeus. Poucos foram os projetos neste
34
sentido durante os trezentos anos de colonialismo. Somente os antagonismos crescentes
entre os interesses dos colonos frente aos metropolitanos, aliados à conjuntura européia de
fins do século XVIII e princípios do XIX, podem explicá-lo. Não havia, antes de meados do
XVIII, séria ameaça à dominação ibérica, posto que a elite crioula, setor responsável pela
direção do movimento emancipatório, somente desfrutava de sua liderança nas colônias
pela hegemonia metropolitana. Na verdade, como salienta J. Chasteen, uma das marcas
da dominação ibérica na América fora sua estabilidade geral (CHASTEEN, 2001, p. 79).
Alguns abalos ocorreram antes que o processo deslanchasse definitivamente para o caminho
da independência, mas não havia condições objetivas para a separação antes que o
terremoto da Revolução Francesa abalasse os impérios ibéricos (os EUA, como vimos,
tiveram um processo à parte no tocante à emancipação).
Isto não quer dizer que tentativas pontuais de rebeldia e resistência não tenham
ocorrido. A história colonial brasileira é permeada por eventos dessa natureza, mas
circunscritos a demandas específicas, não questionando o sistema em geral. Na América
espanhola, revoltas indígenas e mesmo de colonos se deram, em oposição a medidas
metropolitanas. Contudo, o primeiro grande movimento contra a dominação espanhola foi a
rebelião andina de Tupac Amaru II (1780-1783), líder mestiço que conclamou uma união
entre indígenas e brancos contra os peninsulares. Mas o movimento logo de começo tornouse basicamente indígena, pois sua radicalização afastara as elites crioulas. A rebelião se
alastrou pelo alto Peru, onde um novo líder, Tupac Catari, aterrorizava tanto crioulos quanto
peninsulares, levantando bandeiras contra a opressão branca que humilhava os nativos. O
sufocamento do movimento foi brutal e sanguinário (cerca de cem mil vítimas).
Uma nova conjuntura se abrira em fins do XVIII, com a Revolução Americana de
independência, que dera o exemplo de que a independência era possível. Os ideais de
liberdade que sustentaram o movimento emancipatório dos EUA também chegavam à
América Latina colonial, mesmo que em menor medida, pelo controle ideológico da Igreja
Católica. No Brasil, o exemplo norte-americano influenciara os inconfidentes em Minas
Gerais (1789), primeiro movimento separatista na América portuguesa.
Mas o evento que realmente dera condições para a independência frente à dominação
ibérica fora a Revolução Francesa (1789-1799, e as conseqüentes Guerras Napoleônicas,
até 1815). Os primeiros a sentirem a influência dos acontecimentos engendrados pela França
napoleônica foram os próprios colonos franceses das Antilhas.
•
A Independência do Haiti
As Antilhas francesas compartilhavam do mesmo modelo econômico dos latifúndios
monocultores escravistas da América portuguesa, por exemplo. O sistema de opressão da
massa de escravos africanos era vez ou outra perturbado por revoltas desta mão-de-obra.
Entretanto a estrutura social pouco era abalada. A partir de 1971, a situação se agravara
com sucessivas revoltas de escravos e mulatos, que incendiavam as propriedades e
matavam os brancos na ilha de São Domingos. A conturbada conjuntura revolucionária
francesa desarticulava o comércio e enfraquecia o poder metropolitano, principalmente
quando as guerras européias antagonizaram ingleses e franceses, sendo que os últimos
viram-se em dificuldades para manter contato com suas colônias americanas.
Em 1793, a República Francesa libertou os escravos da ilha, que dois anos depois,
pelo Tratado de Basiléia (com os espanhóis), passou integralmente para o domínio francês.
Em princípio, os ideais revolucionários, bem como a libertação dos escravos permitiram
uma aliança entre os negros mais destacados, como Toussaint Louverture, e os proprietários
progressistas (uma parcela do todo). Contudo a estrutura social não se alterara com a
abolição, tendo os ex-escravos permanecido como mão-de-obra dos latifúndios, recebendo
péssimos rendimentos pelo seu trabalho.
Após a expulsão dos ingleses (1798), que tentaram apoderar-se da ilha e batidos os
espanhóis da parte oriental, os exércitos de Toussaint, antes aliado dos franceses, partiram
35
para a radicalização da luta pela autonomia e igualdade. Conseguiram controlar
toda a ilha e instauraram uma Assembléia Constituinte (formada, não obstante
a massa de negros e mulatos, por apenas um dos primeiros e três dos
segundos, contra seis brancos). A Constituição de 1801 sagrara Toussaint
História da governador geral vitalício, com prerrogativa de escolher o sucessor (AQUINO,
América II 2000, p. 199).
O governo de Toussaint criou uma estrutura administrativa objetivando
integrar toda a ilha e implementara medidas econômicas que trouxeram
prosperidade econômica. Mas o modelo colonial continuara vigente, tendo a elite branca
mantido suas posses, perpetuando a dependência econômica que até hoje aflige os
haitianos. Os contatos com os comerciantes ingleses e norte-americanos, juntamente com
o comando de Toussaint, que governava à revelia dos ditames franceses fez com que
Napoleão enviasse tropas para subordinar os rebeldes, em 1801. No ano seguinte as forças
de Toussaint capitularam, sendo ele enviado à França, onde morreu preso.
Mas a dominação francesa fora novamente sacudida com o reagrupamento das forças
anticolonialistas, lideradas por Jean-Jacques Dessalines, que contava com apoios inglês e
norte-americano, conseguindo expulsar os franceses e proclamar a independência da parte
ocidental da ilha, em 1804. Dessalines, ex-escravo, tornou-se imperador, ao longo de seu
curto governo (1804-6). Sua morte foi seguida por lutas separatistas e disputas entre os
setores médios mulatos e os ex-escravos negros. Jean-Pierre Boyer conseguira unificara
ilha em proveito da elite mulata, proclamando uma República, que teve sua independência
reconhecida pela França, em 1825.
•
As Independências na América ibérica
Nas Américas portuguesa e espanhola, os problemas internos de suas metrópoles,
aliados à conjuntura política européia de princípios do século XIX, ocasionaram as condições
objetivas para seus movimentos emancipatórios. Ambas as metrópoles perderam sua
primazia no desenvolvimento do capitalismo ao longo dos séculos XVII e XVIII, quando
Inglaterra e França assumiram a dianteira. Eram Estados, não obstante as tentativas de
reformas, apegados à tradição e economicamente atrasados. Portugal, outrora importante
império, estava agora dependente da tutela inglesa e atrelado aos tratados que tinham
como resultado o escoamento das rendas coloniais para os novos centros hegemônicos,
possibilitando, principalmente na Inglaterra, a “acumulação primitiva” necessária para o salto
da Revolução Industrial.
A Espanha, mesmo que em melhor situação, se via embaraçada pelo jogo diplomático
europeu, que por vezes a opunha à Inglaterra, senhora dos mares. As relativas melhorias
advindas das reformas, em parte bloqueadas, foram desmoronando no limiar da passagem
para os anos oitocentos. O reinado calamitoso de Carlos IV, que se esquivou de suas
responsabilidades reais, e a série de onerosas guerras do século XVIII, faliram o Estado
espanhol. Para reverter o quadro, os impostos foram elevados, a venda de cargos na
burocracia colonial atingira níveis escandalosos e a impopular execução de hipotecas
compuseram o conjunto de medidas que afastaram os colonos da metrópole. O antagonismo
tendera a crescer, sem, contudo levar ainda à ruptura.
A partir da guerra contra a Inglaterra (começada em 1796 e que se estendeu, com
interrupções, pela década seguinte), a Espanha se viu virtualmente alijada do comércio
colonial, pelo esfacelamento de sua marinha. Os ataques ingleses às possessões espanholas
na América (como em Buenos Aires) deram a sensação de inutilidade da metrópole em
relação a segurança dos colonos. Impotente, o Estado espanhol apenas assistia os hispanoamericanos se defenderem.
O turbilhão da Revolução Francesa, e as conseqüentes Guerras Napoleônicas
atingiram poderosamente a o império espanhol na América. A começar pelas questões
ideológicas, posto que os ideais de liberdade e igualdade emanados do ambiente
36
revolucionário eram contrariados pelas restrições comerciais e pela hierarquia imposta
pela metrópole. Os colonos que entravam em contato com os princípios ilustrados notavam
a opressão que o sistema colonial lhes impunha. Entretanto, foi necessário mais que ideais
para sacudir o jugo espanhol na América.
A invasão da Espanha pelas tropas de Napoleão, em 1807, e o posterior
aprisionamento e abdicação de Carlos IV e seu filho, Fernando, ocasionara uma crise de
legitimidade no poderio espanhol em terras americanas. O vazio de poder pela queda da
monarquia e a conseqüente recusa em aceitar o irmão de Napoleão, José, como rei, não
fora preenchido pelas juntas de governo que afirmavam agir em nome de Fernando, o
herdeiro aprisionado. Na América, seja pela difusão do princípio revolucionário de soberania
popular, que animava colonos radicais a defenderem a proclamação de repúblicas
independentes, seja pela sensação de abandono pela ausência do rei, que atingia mesmo
conservadores, bem como a negação da autoridade de qualquer junta metropolitana, levaram
os colonos a refletir sobre a hora de se emancipar.
Enquanto que a Coroa espanhola estava cada vez mais distante dos colonos
hispano-americanos, a Coroa portuguesa se instalara no Brasil, com a transplantação da
Família Real (1807-1808) fugida das tropas napoleônicas. Por mais paradoxal que possa
parecer, tanto o distanciamento – no caso espanhol –, como a maior proximidade – no
caso português –, contribuíram para as independências na América ibérica.
A elite crioula que conduzira o processo de separação das colônias em relação às
metrópoles não se configurava como um grupo homogêneo. Havia grupos mercantis urbanos
em meio à maioria rural aristocrática, divergências ideológicas e embates devidos à
fragmentação administrativa e geográfica. Interesses conflitantes estavam em jogo.
Os entraves impostos pelo sistema colonial, que tendiam sempre a prejudicar os
colonos no desenvolvimento das forças produtivas americanas uniram a maior parte da
elite colonial. Ademais, estavam os crioulos insatisfeitos com os privilégios desfrutados
pelos peninsulares, que ocupavam os altos cargos da burocracia e mantinham a primazia
no circuito colonial monopolista, em detrimento dos que produziam nas colônias sem uma
contrapartida de representatividade ou autonomia administrativa.
O conflito crioulos versus peninsulares tendera a crescer, principalmente pela
ausência da autoridade real entre 1808-13. As juntas metropolitanas (depois subordinadas
a uma Junta Central) que afirmavam governar em nome de Fernando VII não tinham
legitimidade para subordinar as elites regionais coloniais, que transformaram os cabildos
também em juntas governativas. Em princípio a maioria jurava lealdade ao rei sem trono,
mas os choques entre as juntas metropolitanas e as coloniais gradualmente levaram os
defensores da separação total a uma posição dominante. A partir daí, desenvolveu-se o
processo de luta, polarizado mesmo no interior das sociedades coloniais:
Na América colonial, a paciência e as expectativas dos criollos
chegaram ao fim e se constituíram juntas revolucionárias em
nome do processo de autonomia [...]
Começava a se desenvolver a longa e sangrenta lita que
perduraria por mais de uma década, frequentemente com
conotações de guerra civil. Muitos americanos haviam
percebido que um sistema injusto somente poderia ser
transformado com o recurso à derrubada violenta das
estruturas existentes e que, por outro lado, a modernização
defensiva apenas contribuía para a preservação de uma
sociedade e economia tradicionais, agora intoleráveis. (STEIN,
1976, p. 88)
Mas as elites crioulas não conseguiriam levar a frente seus planos sem o apoio das
massas, principalmente das castas (mestiços), que cresciam em proporção no seio das
sociedades coloniais e tornavam-se cada vez mais importantes. A ascensão sócioeconômica de mestiços que prosperavam no artesanato, na agricultura e no pequeno
37
comércio pressionava o sistema das castas. A oposição ao colonialismo, que
sustentava o sistema na América, fez dos mestiços aliados dos crioulos
separatistas.
Contudo, o apoio dos diversos setores coloniais ao movimento da
História da independência não foi automático. Segregados pela hierarquia racial, muitos
América II tinham pouco ou nada em comum com a elite descendente dos espanhóis. O
único elo plausível era o local de nascimento: as terras americanas. E foi
justamente o nativismo que constituíra o cimento necessário à construção de
um sentimento de nação, ainda longe de existir quando a luta se iniciara. E mesmo assim,
tanto as elites crioulas quanto as castas mestiças desconfiavam umas das outras. As
primeiras iniciativas em direção à independência demonstraram tal coisa.
No México, principal região sob domínio espanhol na América, em 1810, uma
conspiração crioula no norte desencadeou uma maciça rebelião de camponeses mestiços
e indígenas. O líder da parte camponesa da rebelião, o padre crioulo Miguel Hidalgo,
ultrapassou os limites dos interesses de sua classe ao dirigir-se aos seus seguidores com
uma retórica que contrapunha hispano-americanos versus peninsulares. As massas que
aderiram ao seu movimento cada vez em maior número pouco diferenciavam peninsulares
e crioulos, para eles, ambos brancos e opressores. Assassinatos tanto de peninsulares
como de crioulos afastou os últimos do movimento, enfraquecendo-o. Poucos meses depois
Hidalgo foi preso e executado.
Mas a luta prosseguira no sul, onde o também padre José María Morelos, um mestiço,
liderava um “exército bem organizado e seus principais objetivos eram claros: fim da
escravidão, do sistema de castas e do tributo pago pelos povos indígenas” (CHASTEEN,
2001, p. 86). Em 1813, Morelos proclamou a independência, mas não conseguiu atrair
muitos os crioulos para sua causa, tendo lutado até sua prisão e execução, dois anos depois.
Mesmo o desaparecimento de Morelos não impediu que grupos guerrilheiros patriotas
espalhados pelo México continuassem levantando a bandeira da independência, praticando
ações que prejudicavam o governo colonial.
Em áreas periféricas da colonização, como a Região Platina ou a Venezuela, os
crioulos tiveram menos receio em relação aos povos indígenas oprimidos, menos
expressivos em número, além de ressentir-se com o domínio colonial, que privilegiava as
áreas centrais do México e Peru. As juntas (cabildos) de Buenos Aires e Caracas, compostas
pelos crioulos mais influentes, logo que a crise de legitimidade se abrira passaram a defender
a independência total.
Na capital do Vice-Reinado do Rio da Prata, Buenos Aires, em maio de 1810, os
crioulos patriotas tomaram o poder e posteriormente seguiram em direção do republicanismo.
Tiveram que lutar contra os realistas das demais províncias, leais a Fernando, dificultando o
andamento do processo, somente declarando a completa independência em 1816.
Em Caracas, os crioulos tentaram a instauração de uma
república, em 1811, liderada por Francisco de Miranda, feito ditador.
Divergências internas entre os líderes derrubam Miranda e o entregam
aos contrários. Outro líder crioulo, Simóm Bolívar, assume o movimento
e funda a segunda República venezuelana, em 1812, sendo proclamado
dois anos depois como “Libertador” (CHAUNU, 1983, p. 71). Mas Bolívar
tivera que enfrentar a oposição do clero e dos realistas, apoiados pelos
llaneros – vaqueiros mestiços do interior – que mantiveram sua lealdade
ao rei, pois desprezavam a elite de Caracas. Mesmo conseguindo
espalhar a rebelião na vizinha Nova Granada (atual Colômbia), os
Simón Bolívar
revolucionários de Caracas foram derrotados pela aliança realistasllaneros, agora fortalecidos com a subida de Fernando VII ao trono, após a expulsão dos
Franceses da Espanha.
38
A restauração da monarquia freou os movimentos pela independência, pois o rei
agiu energicamente no sufocamento das rebeliões, enviando grandes contingentes para a
América. Também revogara a Constituição liberal de 1812 (influenciada pelos franceses)
feita por representantes espanhóis e mesmo das colônias (em menor número), restaurando
o absolutismo. Ficou claro para os hispano-americanos que a corda que asfixiava a liberdade
na América iria apertar ainda mais.
Era preciso retomar o ânimo dos defensores da independência, após as fracassadas
tentativas de emancipação iniciais (afora em Buenos Aires, por demais distante da Espanha
e próxima dos interesses ingleses, beneficiados com a abertura do porto, em 1810).
Entretanto, antes as elites crioulas deveriam concretizar sua aliança com os setores mestiços
para aumentar suas forças:
No momento em que parte para o rompimento dos controles
metropolitanos, a elite colonial encontra aliados naturais nos
mestiços, mulatos e castas em geral. As massas indígenas
foram cautelosamente manobradas; embora reconhecessem
a exploração sofrida dentro dos quadros do sistema colonial,
nunca haviam podido encontrar expressão efetiva para sua
amargura e revolta. [...] O apoio das castas fortaleceu a
posição da elite e assegurou auxílio no controle sobre as
massas indígenas. (STEIN, 1976, p. 89)
A cooptação dos setores médios mestiços, que vislumbravam possibilidades de maior
inclusão social através do discurso liberal e de soberania popular dos crioulos, permitira o
retorno do movimento emancipatório assim que houvesse a oportunidade. A chance para a
segunda onda revolucionaria aparecera com os movimentos constitucionais de 1820, que
abalaram o absolutismo na Península Ibérica.
Mesmo antes, Bolívar tinha retornado de seu exílio na inglesa Jamaica, em 1817,
retomando a luta na Venezuela. Contratou um exército de mercenários ingleses e irlandeses,
bem como soube atrair para o seu lado parte dos llaneros. Entre 1819 e 1821, o Libertador
conseguiu libertar Nova Granada e depois a Venezuela: Bogotá, Caracas e Quito estavam
livres do jugo espanhol.
Neste meio tempo, a Revolução Liberal de Cadiz (1820-1823) impusera à Espanha
uma nova Constituição, que não obstante seu liberalismo em relação aos assuntos internos,
não se decidira pelo apoio aos movimentos libertários na América. Tanto na Espanha quanto
na América, constitucionalistas e absolutistas se dividiram, enfraquecendo a reação aos
movimentos emancipatórios.
Contribuíra igualmente os apoios inglês e norte-americano aos “patriotas”, à medida
que se tornavam vitoriosos:
Nas suas simpatias interesseiras pelas jovens Repúblicas, a
Inlgaterra, única capaz de agir, já não se sentia estorvada
pela preocupação de não ferir as suscetibilidades da Espanha,
sua aliada contra a França. E não cessava de defender o
imenso mercado que lhe oferecia a “América Livre”. A
Inglaterra, que iniciava a sua revolução industrial cinqüenta
anos antes do resto da Europa, não podia deixar escapar essa
ocasião única de abrir novos mercados para suas jovens
manufaturas. No momento decisivo tinha de levantar
obstáculos a qualquer ajuda efetiva da Metrópole contra os
insurretos. A simpatia inglesa foi uma simpatia ativa: graças
a ela, não faltaram armas e capitais aos crioulos revoltados.
Mais tímido a princípio, mais decisivo no momento crítico
(1823), veio a revelar-se o auxílio da jovem República norteamericana, que saía reforçada da crise da segunda guerra
de Independência (1812-1814). (CHAUNU, 1983, p. 73)
39
Vitoriosos nos extremos Norte e Sul da América do Sul, os patriotas
puderam mover-se contra o bastião metropolitano na região: o Peru. A elite
crioula de Lima, traumatizada pelas rebeliões indígenas da década de 1780,
História da mantêm-se fiel à Espanha. Ao Sul, consolidada a independência, em 1816,
América II das Províncias Unidas do Rio da Prata (atual Argentina), José de San Martín,
chefe dos exércitos platinos, atravessa os Andes e no ano seguinte liberta o
Chile. Em fins da década de 1820, o Chile, após passar por um período de
disputas internas, com “ditadores supremos” no poder, funda sua República.
Feita a independência chilena, San Martín parte para o Peru, onde, juntamente com a
esquadra corsária de lorde Cochrane, consegue bater os realistas e ocupa Lima, sendo a
independência proclamada em 1921. Mas as forças metropolitanas reorganizadas
encastelam-se no alto Peru (atual Bolívia). Em julho de 1822, San Martín e Bolívar encontramse em Guaiaquil (Equador). Não se sabe ao certo o que os líderes da independência
sulamericana acordaram, mas o resultado foi a retirada de San Martín da luta, deixando a
Bolívar a tarefa de concluir a vitória americana sobre os realistas. Seu lugar-tenente, Antonio
José de Sucre, em dezembro de 1824 captura o último vice-rei espanhol na América. Faltava
apenas a rendição da guarnição de Callao, ocorrida em janeiro de 1826. Afora Cuba e
Porto Rico, a América espanhola é livre.
Enquanto isso, no Vice-Reinado da Nova Espanha, a repercussão da Revolução
Liberal espanhola fez com que muitos realistas passassem para o lado separatista. O próprio
comandante das tropas espanholas, Augustín de Iturbide aderiu ao movimento e fez-se
proclamar imperador do México em maio de 1822, com o nome de Augustín I. Mas logo o
imperador se indispôs com a Assembléia Constituinte, levando a um conflito que terminou
com sua abdicação. O México tornou-se uma República Federal, semelhante aos Estados
Unidos.
O processo de independência libertou uma imensa região, que tendeu a seguir – e
extremar – a fragmentação administrativa colonial. O fim da luta emancipatória foi apenas o
início de outras lutas, agora entre as oligarquias crioulas das diversas frações recém-libertas,
tendo a América Latina ainda um século para solucionar os problemas decorridos de sua
libertação.
A HISPANO-AMÉRICA APÓS A INDEPENDÊNCIA
Fonte: AQUINO, 2000, p. 220.
40
O Período Pós-independência
A guerra de independência foi sangrenta e longa. Deixou a economia desarticulada,
a produção agrícola arruinada e jovens repúblicas militarizadas e endividadas. Como os
latino-americanos logo descobriram, libertar-se da Espanha era mais fácil que construir
nações dos escombros da guerra. Muitas das esperanças postas na emancipação foram
frustradas. Os estudiosos da América Latina constataram a imensa dificuldade que as nações
em formação enfrentaram.
Maria Ligia Coelho Prado, em seu trabalho sobre a intelectualidade latino-americana
no século XIX, escrevera sobre as desilusões do período pós-independência:
Quando a guerra terminou e a independência foi alcançada, esperavase que tempos novos e gloriosos surgissem, acontecendo um
renascer nas terras “subjugadas e oprimidas por séculos”, como se
costumava proclamar. Na concepção dos letrados liberais, a liberdade,
a justiça, o progresso, a riqueza deveriam florescer na América.
Entretanto, a guerra nas colônias espanholas foi longa e cruel, e o
sofrimento e o empobrecimento visíveis. Assistia-se ao espetáculo
da ruína econômica e da devastação geral. Muitas das riquezas
produzidas tinham sido destruídas: plantações, criação de gado,
minas. Os tesouros públicos encontravam-se esgotados, os líderes
políticos disputavam o poder, divididos em facções. De repente, tudo
parecia ter sido em vão, especialmente para aqueles que haviam se
empenhado tanto nas lutas. (PRADO, 1999, pp. 68-9)
À herança colonial somou-se a herança da guerra: a militarização da sociedade e
do poder político. O historiador argentino Túlio Halperin Donghi ressaltou que a militarização
não se prolongara somente pelo poder e prestígio proeminentes dos líderes militares das
novas sociedades. Mesmo as elites civis não quiseram prescindir do apoio dos militares
para a manutenção da ordem que lhes interessava:
O peso das forças armadas – que se faz sentir no exato momento
em que tem início uma democratização, ainda que limitada, mas real,
da vida política e social da América espanhola – é inicialmente um
aspecto do processo de democratização; mas, bem cedo, transformase numa garantia contra uma extensão excessiva desse processo.
Por isso (e não porque pareça inevitável) é que mesmo os que
deploram algumas de suas manifestações fazem pouco para acabar
com eles. (DONGHI, 1975, p. 99)
Os liberais que tinham estado na vanguarda do movimento pela independência
assumiram o controle das nascentes repúblicas. Mas governar por princípios liberais as
sociedades tradicionalistas latino-americanas era problemático. Se houvesse condições
de incluir as massas no progresso econômico-social seus governos teriam maior
legitimidade, mais o caos infra-estrutural deixado pelo colonialismo e pela guerra inviabilizava
seus projetos:
Em poucas palavras, os primeiros governos da América espanhola
independente dispunham de poucos recursos e enfrentavam
tremendos obstáculos. Os sonhos liberais de novos países prósperos
e progressivos logo se dissolveram em frustração e fracasso
econômico. Esperanças de verdadeira democracia foram esmagadas
pelos velhos hábitos da hierarquia conservadora. Padrões recorrentes
de violência política e corrupção alienaram a maioria do povo dos
governos que supostamente o representavam. A política tornou-se,
acima de tudo, uma busca dos benefícios pessoais dos cargos
públicos. Em suma, a primeira geração pós-colonial (1825-1850) não
viu a América Latina progredir em nenhuma direção. (CHASTEEN,
2001, pp. 101-2)
41
Assim, os liberais, geralmente integrantes das elites crioulas urbanas
ligadas ao comércio exterior, tiveram seus governos derrubados pelos
caudilhos militares que se revezaram no poder nas primeiras décadas pósHistória da independência. Tais caudilhos eram proprietários de terras que tinham posto
América II suas milícias privadas a serviço dos exércitos de libertação, sendo integrados
nos altos opostos da hierarquia militar. Vencida a guerra, puseram seu poder
militar na balança do jogo político. Quando não derrubavam governos eleitos
e revogavam constituições liberais (influenciadas hora pelos ideais norte-americanos, hora
pelos franceses), aproveitando-se da fragilidade institucional que a nova política democrática
possuía, utilizavam-se do clientelismo e do “voto de cabresto” para se eleger. Os homens
eram (são?) mais importantes que as leis nas sociedades latino-americanas. O personalismo
é uma das marcas principais da cultura destas sociedades.
O fato das aristocracias militares governarem os novos países reproduziu o atraso
econômico dos tempos coloniais, pois pouco tinham de mentalidade progressista em termos
econômicos. Manter a hierarquia social e a “vocação” agrícola de suas economias eram
seus objetivos. O comércio passou externo passou das mãos metropolitanas para as dos
comerciantes ingleses, franceses e norte-americanos, transmutando as estruturas de
dependência externa que assolam a América Latina até hoje.
Com isto não queremos desprezar as transformações pelas quais passaram os povos
da região. Ao menos oficialmente o sistema das castas foi abolido e a escravidão recuou
na maioria dos países, exceto no Brasil e nas remanescentes colônias espanholas de Cuba
e Porto Rico. Mas a política democrática continuou sendo uma planta exótica em terras
latino-americanas, e por mais que o princípio da soberania popular fosse propagado por
todos, participação e representação políticas foram diminutas. O “povo”, acreditavam as
elites, tinham que “conhecer seu lugar” e deixar o governo em mãos dos “superiores” – leiase integrantes das elites brancas descendentes dos colonizadores. As organizações políticas
geralmente limitavam-se aos partidos denominados conservadores ou liberais. Muitas vezes
pouca diferença prática existia entre eles.
Outros problemas que perturbaram a estabilidade política na região foram as
fragmentações e guerras que destruíam e reconstruíam entidades políticas que costumamos
denominar como países. A inexistência de um sentimento de nação e as subdivisões
administrativas coloniais impediram a unidade dos povos recém libertados. Tentativas de
unificação levadas a cabo por Bolívar na Grã-Colômbia e no rio da Prata pelos portenhos
fracassaram. As elites de cada sub-região, cada cabildo, que tinham lutado lado a lado na
época da guerra não aceitaram se subordinar umas às outras. Cada qual tinha interesses
específicos, e viam na autonomia a forma de melhor defende-los. Assim, por exemplo, o
Vice-Reinado do Rio da Prata fragmentou-se em quatro países: Argentina, Uruguai, Paraguai
e Bolívia. O mesmo ocorrera ao Norte da América do Sul (com o tempo, a Grã-Colômbia
dividiu-se em Venezuela, Colômbia, Equador e depois Panamá) e na América Central.
Ao longo do século XIX e mesmo em princípios do XX, as guerras foram uma
constante. Mais uma vez, a Região Platina ilustra o processo. Já em 1825, portenhos
disputaram com o Império brasileiro o controle sobre o Uruguai (à época conhecido como
Banda Oriental ou Província Cisplatina) na Guerra Cisplatina (1825-1828) que terminou
sem vencedores, com a independência do Uruguai. Em 1851-2, mais uma vez brasileiros e
platinos lutaram pela hegemonia na região, agora com vitória brasileira, que pôs termo no
sonho do caudilho Juan Manoel de Rosas de reunificar os países da região, recompondo o
antigo Vice-Reinado sob hegemonia de Buenos Aires. Duas décadas depois (1865-1870)
ocorrera a Guerra da Tríplice Aliança (Brasil, Argentina e Uruguai contra o Paraguai), ou
Guerra do Paraguai, que exterminou a população paraguaia e destruiu o progresso
econômico daquele país, condenando-o desde então ao subdesenvolvimento.
42
Outras guerras sacudiram a América do Sul, como a Guerra da Confederação
Peruano-Boliviana (1836-1839), quando o Chile não aceitou a unificação do Peru com a
Bolívia, que voltaram a se separar; a Guerra do Pacífico (1879-1873), em que mais uma vez
o Chile derrotara ambos os países – Peru e Bolívia – que disputavam uma faixa de terras ao
norte do Chile, este último saindo vencedor; e a Guerra do Chaco (1932-1935), entre Bolívia
e Paraguai, sendo este último derrotado e obrigado a ceder o território do Chaco.
Fonte: CHASTEEN, 2001, pp. 145-6.
Por volta de meados do século XIX, não obstante as guerras, certa estabilidade era
experimentada na política interna dos países latino-americanos. Os sonhos de progresso
liberal não pareciam agora tão distantes dos povos da região. Os conservadores, que por
décadas governavam seus países, não encontravam mais eco com seus discursos pela
manutenção da ordem. Os mestiços que ascendiam socialmente, alcançando os setores
médios da população, eram atraídos pelos discursos progressistas dos liberais. Passado o
período de instabilidade pós-independência, gradualmente os países voltaram a crescer
economicamente, pela reorganização de suas atividades econômicas, juntamente com as
oportunidades abertas pelos investimentos estrangeiros. A Inglaterra industrial dispunha de
capitais excedentes para aplicar na América Latina, que parecia agora um lugar mais tranqüilo
para investimentos. E os políticos mais indicados para conduzir o desenvolvimento pareciam
ser os liberais, dispostos a realizar reformas que modernizassem seus países. Eles ganharam
terreno frente aos conservadores, inaugurando uma era de avanço econômico na segunda
metade do século XIX e primeira do XX. O texto abaixo faz uma síntese da situação sócioeconômica latino-americana no século XIX.
“No Plano econômico, a herança colonial persistiu na manutenção da economia
produtora de gêneros alimentícios e matérias-primas para o mercado externo, segundo
as diretrizes da divisão internacional do trabalho no decorrer do período compreendido
entre as Guerras Napoleônicas e a primeira Guerra Mundial. Essa divisão dos mercados
mundiais entre os países capitalistas avançados (Inglaterra, França, Estados Unidos)
implicava a formação de economias periféricas ou dependentes nos países da América
latina, da África e da Ásia. Na América, criaram-se verdadeiros enclaves capitalistas,
estimulando-se a agricultura de exportação e a exploração de recursos minerais, ativo
comércio de exportação e importação, criação de bancos, companhias de seguros,
redes ferroviárias etc. Ao mesmo tempo, vastas áreas permaneciam submetidas a uma
43
economia de subsistência e a um estado de empobrecimento crônico. Essa
desigualdade de desenvolvimento econômico era uma estratégia necessária
do capitalismo internacional, ao qual não interessava que os países latinoHistória da americanos tivessem condições de um desenvolvimento capitalista autoAmérica II sustentado. Assim, apenas alguns setores econômicos foram modernizados
sob influxo do capital estrangeiro, traduzido em aplicação de investimentos
maciços, aquisição de propriedades territoriais, exploração de minas,
empréstimos com juros extorsivos etc.
Nesse contexto, não havia condições históricas para o surgimento de uma
burguesia nacional nos estados latino-americanos, dado o seu comprometimento com
o capital internacional. E os poucos grupos capitalistas então surgidos não possuíam,
evidentemente, condições concretas para impor a sua hegemonia política sobre a
sociedade como um todo. A implantação do capitalismo na América Latina no século
XIX não trouxe a unificação, pois não havia praticamente mercado interno ou nacional.
A pequena burguesia era fraca, inexpressiva ou até inexistente. A massa da população,
majoritariamente camponesa e analfabeta, vivia sob um sistema de relações précapitalistas, uma espécie de semi-servidão, e não constituía mercado consumidor
apreciável para artigos industrializados. As classes dominantes eram formadas pelas
oligarquias agroexportadoras – cada vez mais dependentes da aliança com o
imperialismo – e pela burguesia mercantil – esta localizada em centros bem definidos,
como as cidades portuárias 9MOntevidáo, Buenos Aires, Valparaíso).”
AQUINO, Rubim Santos Leão de. História das sociedades americanas. Rio de
Janeiro: Record, 2000, pp. 296-7.
Pela leitura do texto acima podemos perceber as contradições do liberalismo latinoamericano, moldado a alimentar o capitalismo central. A riqueza, baseada na propriedade
da terra, era extremamente concentrada. O século XIX foi marcado por um avanço sobre as
terras da Igreja (pelas reformas liberais) e das comunidades indígenas. E os liberais, que
viam nas comunidades um símbolo de atraso, trataram de repartir as terras comunais em
lotes familiares, que posteriormente eram englobados pelos latifúndios, jogando as
populações indígenas na servidão por dívidas e no peonato. E os latifúndios, que exploravam
tal mão-de-obra, eram voltados à produção para o mercado externo. Assim, mesmo o
progresso liberal não salvou a América Latina das garras do neocolonialismo, pois não
engendrou, num primeiro momento, o desenvolvimento industrial necessário para a afirmação
das economias nacionais.
Desenvolvimento Neocolonial Latino-americano
O período neocolonial latino-americano, que compreende as décadas de 1870-80 a
1920-30, foi caracterizado pelo avanço da integração da região ao capitalismo mundial
contemporâneo, com vagas de progresso econômico em determinados locais e setores
sociais. Atingiu a todos, mas nem todos progrediram igualmente.
Foi uma época em que praticamente todos os países latino-americanos
experimentaram mudanças, em maior ou menor grau, pelo progresso econômico que
modernizara suas infra-estruturas e lançara as bases para a industrialização na primeira
metade do século XX.
O historiador norte-americano John Charles Chateen resume as transformações pelas
quais passou a região:
44
O plano liberal para tornar a América Latina como a Europa ou os
Estados Unidos teve sucesso parcial. Mas o “Progresso” se manifestou
diferentemente na América Latina. Ocorreram mudanças verdadeiras
e maciças, que afetaram as vidas de todos, ricos e pobres, urbanos e
rurais. As grandes cidades latino-americanas perderam as pedras de
cantaria coloniais, as paredes de emboço branco e os telhados de
telhas vermelhas, tornando-se metrópoles modernas, comparáveis aos
gigantes urbanos de qualquer parte. Bondes sacolejavam, telefones
tilintavam e filmes mudos tremeluziam de Montevidéu e Santiago à
Cidade do México e Havana. As ferrovias multiplicaram-se
fabulosamente, assim como as exportações de açúcar, café, cobre,
cereais, nitrato, estanho, cacau, borracha, bananas, carne, lã e tabaco.
As instalações portuárias totalmente inadequadas de Buenos Aires e
outras partes foram substituídas.
Os proprietários rurais e a classe média urbana prosperaram, mas a
vida da maioria rural latino-americana melhorou pouco, se é que
melhorou. Pelo contrário, o capitalismo agrário devastou o interior e
destruiu modos de vida tradicionais, empobrecendo a população rural
espiritual e materialmente. E o Progresso trouxe uma nova espécie de
imperialismo da Grã-Bretanha e dos Estados Unidos. Os mesmos
países que serviram de modelo para o Progresso da América Latina
ajudaram a estabelecê-lo ali e, às vezes, foram seus praticantes diretos.
A influência estrangeira foi tão disseminada e poderosa que os
historiadores latino-americanos chamam os anos de 1880 a 1930 de
seu período neocolonial. (CHASTEEN, 2001, p. 149)
Assim, as transformações vislumbradas no período neocolonialista puderam
ser percebidas concretamente, por exemplo, nos centros urbanos: Rio de Janeiro,
São Paulo, Salvador, Montevidéu, Buenos Aires, Santiago del Chile, Lima, Caracas,
Cidade do México, Havana, entre outros cresceram e se modernizaram, com seus
novos traçados de avenidas largas, à moda da Champs Élysées parisiense.
A modernização urbana estava associada aos novos ares da
contemporaneidade e às elites liberais que a empreenderam imitavam os modelos
europeu ou norte-americano. Mas o interior continuava atrasado, apesar da
capitalização do campo, pois a modernidade atingia somente as áreas exportadoras:
as linhas férreas ligavam as zonas produtoras aos portos litorâneos, não as cidades
entre si, muito menos os povoados esquecidos das áreas de cultivo de subsistência.
Não houve integração nacional. O bonde do progresso era para poucos. A afinidade
(ou subordinação) ideológica das elites latino-americanas com os modismos do
centro capitalista mundial era reforçada por interesses na manutenção de seus
privilégios:
Apesar das muitas transformações, nem a relação de subordinação
da América Latina aos países europeus, nem sua hierarquia social
básica, criada pela colonização, haviam mudado. As relações
hierárquicas de raça e classe, em que aqueles no topo derivam prestígio
e vantagem decisivos de suas relações com o exterior, permaneceram
a norma. Se antes espanhóis e portugueses peninsulares
desembarcavam com seus ares irritantes de superioridade e suas
nomeações reais firmemente na mão, agora era um mister de língua
inglesa que chegava com ares semelhantes de superioridade e somas
vultosas para emprestar ou investir em bancos, ferrovias ou instalações
portuárias. [...] Em última instância, o próprio status e prosperidade
das “pessoas respeitáveis” estavam associados aos forasteiros e eles
sabiam disso. Noventa por cento de sua riqueza advinha do que
vendiam nos mercados europeus e norte-americanos, e suas próprias
pretensões sociais, seu próprio ar de superioridade em casa, advinham
da tez portuguesa, dos cristais austríacos, da familiaridade dos filhos
com Paris. O neocolonialismo, além de uma relação entre países,
também era um fenômeno interno, e familiar, na América Latina.
(CHASTEEN, 2001, p. 150)
45
Um exemplo de como as influências estrangeiras afetavam as elites
História da
América II pode ser percebido em uma figura emblemática – mesmo que excepcional,
pelo seu gênio: Alberto Santos Dumont. Filho de proprietários cafeicultores
de Minas Gerais, Santos Dumont foi para a Europa respirar os ares da
vanguarda tecnológica: é ilustrativo que seu primeiro vôo com o 14 Bis, em 1906, tenha
acontecido em Paris, fazendo do brasileiro uma figura mundialmente famosa fazendo do
brasileiro contecido em ParisEuropa emblemugueza, dos cristais austrorte-americanos, e
suas pr em bancos, ferrovias.
Outro elemento que contribuíra para a grande influência estrangeira na América Latina
da época foi a imigração maciça de europeus empobrecidos, que buscavam um lugar ao
sol no Novo Mundo:
A América Latina foi profundamente modificada na sua
estrutura humana. Era um continente índio e negro até o meio
do século XIX. Depois, o fluxo da emigração branca submergiu
a sua zona temperada: a Argentina, o Uruguai e o Brasil
receberam uma massa de imigrantes que modificou a
natureza das suas populações.
O fluxo de imigrantes que deixou a Europa a partir de 1850
dirigiu-se sobretudo para os Estados Unidos (26.180.000
fixam-se aí entre 1820 e 1930) e depois para a América Latina
(cerca de 6.000.000). Diferentemente da ida para os Estados
Unidos, esta emigração é essencialmente proveniente dos
países latinos do sul da Europa, menos da Espanha e Portugal
que da Itália, a qual fornece os maiores batalhões.
Esta segunda conquista humana da América Latina pela
Europa afeta em cheio os países temperados: a Argentina, o
Uruguai, o Sul do Brasil e, em menos escala, o Chile,
precisamente a fração do Continente que a conquista ibérica,
ávida de metais e de especulações agrícolas, negligenciara.
[...]
Muito mais importante do que a primeira, no que concerne
às massas humanas movimentadas, a segunda conquista
do continente latino—americano pelos povos europeus é
muito mais localizada. Se sairmos da Argentina, do Uruguai
e do Brasil, a contribuição humana da Europa é muito limitada
para poder modificar sensivelmente o equilíbrio étnico dos
países que afeta. O Chile recebeu 50.000 imigrantes de 1880
a 1916, sobretudo latinos e alguns alemães na região da
Valdivia e Llanquihue. Aliás, em toda parte, essa contribuição
quase nula em quantidade só é importante pela sua qualidade:
quadros econômicos, chefes de empresa, engenheiros, um
punhado de homens. A pequena colônia de naturais de
Barcelonette no México, que detinha boa parte do comércio
do país, valerá também mais pela qualidade do que pelo
número? (CHAUNU, 1983)
46
MAPA DA IMIGRAÇÃO
Fonte: CHAUNU, 1983, p. 102.
A onda de regimes liberais, que festejavam a vinda dos imigrantes europeus para
embranquecimento de seus países, chegara a fins do século XIX difundida por praticamente
todos os países, apesar do “liberalismo” ter se esvaído em discursos (mantendo apenas
seu conteúdo econômico) com a instauração de governos fraudulentos e por vezes ditatoriais.
Estas elites utilizavam-se dos aparatos estatais para defenderem seus interesses classistas.
Afinal de contas, o patrimonialismo é uma das marcas deixadas pela herança colonial
ibérica.
O alargamento do progresso aos estratos intermediários também se subordinara
ao desenvolvimento do setor agroexportador. O aumento das rendas dos estados
exportadores de matérias-primas possibilitou o crescimento das burocracias e do setor de
serviços: funcionários públicos em geral, médicos, jornalistas, advogados, engenheiros
empregados nas empresas de geração de luz ou comunicações, todos se inseriram nas
bordas do progresso, resguardando para si uma parcela da riqueza gerada pelos solos
latino-americanos.
A riqueza neocolonial saía do solo. Seja advinda da agricultura, seja dos recursos
minerais, a América Latina acabou vítima de sua própria riqueza. Os dentes afiados dos
imperialismos europeu e principalmente norte-americano sugavam suas riquezas
incansavelmente. A lista de produtos dragados é interminável: no México, prata, petróleo,
açúcar, café e fibras; no Brasil, principalmente o café, somado ainda à borracha e cacau;
em Cuba, o açúcar; no Peru, o guano; no Chile, nitrato, cobre e ferro; na Bolívia, o estanho;
na Argentina, carne, couros e trigo; na América Central, o café e bananas e assim
47
sucessivamente... Todos os países, mesmo os pequenos, experimentaram
suas próprias versões do grande surto de exportações do período. Para escoar
tais riquezas, a malha ferroviária cresceu de 3.200 quilômetros para 95.000
História da quilômetros em cerca de trinta anos.
América II
MAPA DOS PRODUTOS EXPORTADOS
Fonte: CHASTEEN, 2001, p. 157.
48
A expansão das exportações levavam os grandes proprietários a adquirirem cada
vez mais terras, quase sempre às custas de camponeses indígenas ou pequenos
proprietários que não suportavam a enorme valorização das terras, sendo expulsos legal ou
ilegalmente, à medida que os trilhos alcançavam as redondezas. Parte destas terras recémadquiridas tornou-se propriedade de estrangeiros particulares ou de grandes companhias.
Elas detinham também, por míseras tarifas fiscais, direitos de exploração das enormes
jazidas de minérios, às vezes associadas com poderosas famílias locais.
Os trabalhadores empregados nas plantações monocultoras ou na mineração
ganhavam salários irrisórios, sem direitos trabalhistas e oprimidos pela condição de
dependência. Não havia mais como manterem sua subsistência fora do sistema, pois a
concentração de terras em poucas mãos impedia o acesso ao solo que dantes os
alimentava. A cooptação das elites governamentais via suborno ou afinidade de interesses
fazia de seus supostos representantes inimigos na defesa contra a exploração estrangeira.
Caso exemplar foi o da United Fruit Company. Fruto do processo de fusões
empresariais ocorrido nos Estados Unidos entre fins do século XIX e princípios do XX, a
United Fruit tornou-se a maior exportadora de bananas da América Latina, baseando suas
operações principalmente nas pequenas repúblicas da América Central. Seu poderio
econômico e a posse de imensas extensões territoriais faziam dela senhora do destino de
milhares de latino-americanos. Fazia e desfazia presidentes ao sabor de seus interesses.
O suborno como expediente de cooptação era eficaz, e quando necessário financiava
opositores golpistas que derrubavam governantes inconvenientes.
De forma geral, entretanto, a política latino-americana, na virada do XIX para o XX,
fora caracterizada por uma estabilidade que contrastava com a série de golpes e
contragolpes do meio século pós-independência. Regimes dotados das receitas do
comércio exterior montaram forças armadas bem equipadas que mantinham caudilhos
opositores afastados do poder. Verdadeiras ditaduras ou governos oligárquicos (como a
República do Café-com-Leite no Brasil) vicejavam pela região, apesar das aparências
republicanas e constitucionais.
Encontramos um bom exemplo do processo na história mexicana. O governo de
Porfírio Díaz (1876-1911), conhecido como Pofiriato, foi a expressão máxima dos regimes
autoritários latino-americanos. Influenciado pelo positivismo, o Porfiriato possuía uma
espécie de conselho tecnocrático que era responsável por dinamizar a economia
exportadora. A burocracia cresceu enormemente, pois o Estado agora dispunha de recursos
para satisfazer os desejos de inclusão sócio-econômica das “classes médias”. A infraestrutura foi aperfeiçoada com investimentos estrangeiros e a concessão de extração
petrolífera para a norte-americana Standart Oil fizera jorrar o petróleo que alimentava a
industrialização dos EUA.
As massas camponesas sofreram com as desapropriações e, impossibilitadas de
participar do jogo político pelas restrições censitárias e pela exigência de alfabetização,
assistiram sem voz o progresso chegar para cerca de um quinto da população, principalmente
as parcelas urbanas que conseguiram pegar o bonde neocolonial. O sistema eleitoral
(fraudulento, manipulado) além de garantir um aspecto “democrático” ao Porfiriato, reproduzia
sua dominação.
Porém, mesmo o governo tecnocrático de Díaz não logrou industrializar o México,
atrelado que estava à herança colonialista, aos interesses estrangeiros que saudavam o
ditador com brindes e elogios, mantendo o mesmo sentido da economia “voltada para fora”,
para a Europa e os Estados Unidos da América.
O pouco de industrialização vislumbrada (no México como em outros países da região,
como Argentina e Brasil) em princípios do século XX só fora possível pela incapacidade do
centro capitalista em fornecer seus manufaturados na época da Primeira Guerra Mundial
(1914-1918), engendrando um processo de industrialização por substituições de
49
importações (ou ISI). Mas então o período neocolonial começara a desmoronar,
deixando, ao menos em parte, para trás séculos de total dependência externa...
História da
América II
As antigas colônias, então e agora, não se achavam capacitadas a
desprender-se de um legado econômico resultante de séculos de
colonialismo, não podendo igualmente eliminar o hiato existente entre
atraso e modernidade, entre tecnologia primitiva e avançada, entre níveis
elevados e mínimos de renda, poupança e investimentos, entre cultura
e analfabetismo, entre obscurantismo e iluminismo, entre sociedades
fechadas e abertas, entre – na fraseologia sociológica – sociedades
baseadas em papéis adscritos e sociedades baseadas em papéis
adquiridos. Não será, assim, surpreendente constatar que a América
Latina não logrou iniciar a modernização de sua economia via
industrialização senão um século após a independência. (STEIN, 1976,
p. 106)
O período neocolonial, desta forma, com suas contradições entre tradicional e
moderno, dependência e desenvolvimento, inclusão e exclusão social, impulsionara a
eclosão de movimentos nacionalistas e revoluções antiimperialistas que agitaram o século
XX na América Latina.
Texto Complementar
“A herança social da América Latina colonial não foi simplesmente a rígida estrutura
de uma elite caracterizada pela riqueza, posição social e poder, no vértice, e pela imensa
massa de seres humanos empobrecidos na base da pirâmide. Esse tipo de sociedade
pode ser encontrado em outros momentos e em outros sítios da história. A tragédia da
herança colonial consistiu no reforçamento dessa estrutura social estratificada pela cor e
fisionomia – o que os antropólogos designam como fenótipo –: uma elite de brancos ou
quase-brancos e uma vasta massa de homens de cor, indígenas e negros mestiços e mulatos,
e uma gama resultante da mistura de brancos, indígenas e negros, isto é, as castas. Como
a América do Norte viria perceber mais tarde, uma sociedade pode perpetuar as
desigualdades sociais de forma muito mais efetiva quando a má distribuição de renda apóiase nos fenótipos.
Uma comparação superficial entre as sociedades ibéricas e ibero-americanas por
volta de 1700 sugere que os ibéricos haviam logrado reproduzir no México, no altiplano
andino e ao longo das costas brasileiras uma réplica (ou pelo menos um simulacro) de suas
próprias sociedades: uma estrutura caracterizada pela presença de duas classes, ou dois
estratos (uma elite de proprietários fundiários e de minas, altos burocratas e eclesiásticos,
de um lado; uma ampla massa de habitantes rurais reunidos em comunidades ameríndias,
fazendas ou plantações tropicais, de outro), permeadas por reduzido grupo de comerciantes,
pequenos burocratas e eclesiásticos de menor expressão. Em outras palavras: pela
constituição no novo e no velho continentes, de uma estrutura social característica de uma
economia agrária, pré-industrial ou subdesenvolvida. Se, na Península Ibérica, a renda, o
status e o poder posicionavam os indivíduos em um ou outro estratos, nas colônias o fator
cor juntava-se àqueles itens anteriormente mencionados na determinação dessa posição
social.”
STEIN, Stanley J. A Herança Colonial da América Latina: ensaios de dependência
econômica. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976, p. 50.
50
Seção Estante do Historiador
STEIN, Stanley J. A
Herança Colonial da
América Latina: ensaios
de dependência
econômica. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1989.
Atividades
Complementares
1.
2.
Aponte os elementos principais da crise do sistema colonial.
Discuta o processo da independência latino-americana, ressaltando as influências
externas.
51
História da
América II
3.
4.
52
Descreva o processo histórico pós-colonial latino-americano.
Quais as características mais marcantes do período neocolonial?
O SÉCULO XX NA AMÉRICA: NACIONALISMOS,
REVOLUÇÕES E REGIMES MILITARES
NACIONALISMO E REVOLUÇÃO NA AMÉRICA LATINA
A Revolução Mexicana de 1910
A Revolução Mexicana de 1910 foi o primeiro dos grandes movimentos latinoamericanos de contestação da ordem vigente interna e de suas relações com os países do
centro capitalista.
O avanço do progresso neocolonial não produzira um projeto de independente de
desenvolvimento no México. Apesar da riqueza gerada e concentrada em poucas mãos,
estas estavam alheias a qualquer iniciativa neste sentido. O México continuava um grande
exportador de matérias-primas, o que beneficiava os setores ligados ao presidente Porfírio
Díaz. O modelo econômico agroexportador concentrou a terra, excluiu os camponeses
indígenas do progresso e frustrou aqueles setores que desejavam um desenvolvimento
independente, baseado na industrialização, bem como maior participação política.
Em 1910, Porfírio Díaz já governava havia 34 anos. Começaram a surgir movimentos
de contestação ao seu domínio, denunciando as fraudes e manipulações eleitorais, bem
como sua aliança com os interesses imperialistas, malvista por muitos mexicanos. Os
reformistas, liderados por Francisco Madero, pretendiam um compartilhamento do poder
que permitisse um alargamento na participação governamental, mas Díaz recusou-se a
formar qualquer aliança do gênero na eleição de 1910. Ambos disputaram-na, mas o resultado
já era esperado: venceu o sistema manipulador do Porfiriato. Enquanto isso, Madero foi
preso e exilado. No exílio, Madero radicalizou seu discurso, defendendo a devolução das
terras tomadas das populações indígenas, o fim da reeleição e a derrubada do regime. Ao
mesmo tempo, eclodiram movimentos armados pelo interior mexicano, demonstrando a
insatisfação reprimida por tantos anos. O ditador, em 1911, velho e sem disposição para
combater os rebeldes, renunciou e se exilou em Paris.
Madero assumiu o governo, mas ao não dar vazão às demandas populares, como a
radical distribuição de terras e melhorias ao proletariado urbano, perdeu popularidade. Os
reacionários, apoiados pelos EUA, derrubaram e depois executaram-no, em 1913. Subiu
ao poder o general porfirista Victoriano Huerta, apoiado pela Igreja e pelo capitalismo
internacional (AQUINO, 2000, pp. 550-551).
No interior, ao Sul, concentravam-se rebeldes camponeses indígenas comandados
por Emiliano Zapata, que incendiavam fazendas e refinarias de açúcar. Ao Norte, Pancho
Villa formou um exército de vaqueiros, mineiros e camponeses também lutava por melhorias
nas condições de vida, encarnadas na distribuição de terras e melhores salários.
Paralelamente, um movimento armado denominado Constitucionalista, formado por setores
médios urbanos, mais articulados, chefiados por Venustiano Carranza, lutava igualmente
pela derrubada de Huerta. As facções em luta minaram as forças do governo, que finalmente
fora derrubado pelos constitucionalistas, em 1914.
53
História da
América II
Madero
Zapata
Villa
A partir de então, Venustiano assumira o governo enquanto que Zapata e Villa
continuavam sua luta pela reforma agrária. A pressão dos movimentos do interior, aliada às
reivindicações do proletariado urbano que apoiou em parte a luta contra eles, levaram os
constitucionalistas a decretar medidas que regulamentavam “a distribuição de terras
improdutivas, aboliram a peonage e melhoraram as condições de trabalho dos operários”
(AQUINO, 2000, p. 554). A instabilidade reinante no México levara à convocação de uma
Convenção Constituinte, formada por elementos do grupo constitucionalista, que para atender
às reivindicações dos diversos setores em luta promulgaram uma Constituição de cunho
nacionalista, popular e antilatifundiário:
A Constituição de 1917, que vigora até hoje, mostrou uma forte
inspiração nacionalista. O Artigo 27 recuperava para a nação todos os
direitos aos minerais, a exemplo do petróleo, então em mãos de
empresas estrangeiras. Ela também abriu caminho para os aldeões
recuperarem as terras comunitárias (denominadas ejidos) e para a
subdivisão das grandes propriedades e sua distribuição aos
camponeses sem terra. Em princípio, o Artigo 123 instituiu proteções
avançadas (embora na prática variasse), como leis regendo salários
e jornada de trabalho, pensões e benefícios sociais, direito de
sindicalização e greve. A nova Constituição também limitou muito os
privilégios dos estrangeiros e, como um legado dos radicais mexicanos
anteriores, restringiu os direitos da Igreja Católica. (CHASTEEN, 2001,
pp. 181-182)
Os constitucionalistas conseguiram neutralizar os movimentos de Zapata e Villa,
consolidando-se no poder ao longo da década de 1920. Fundaram um partido, que após
denominar-se Nacional, depois Mexicano, finalmente teve seu nome consagrado como
Institucional. Nascia o Partido Revolucionário Institucional (PRI), que dominaria a vida política
mexicana pelos próximos 70 anos, sem alternância de poder.
Os governos nacionalistas do PRI organizaram projetos educacionais, visando reduzir
o alarmante nível de analfabetismo, bem como incentivaram as manifestações da cultura
nacional. Tais manifestações podem ser percebidas pelas obras de dois grandes pintores
mexicanos: Diego Rivera e Frida Kahlo, que se casaram em 1929. Nos enormes murais de
Rivera e nas telas de Frida a cultura mexicana de raízes indígenas, bem como os temas
revolucionários ganharam cores e formas.
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Mural de Rivera
Tela de Frida
A Revolução Mexicana, com seu conteúdo nacionalista (antiimperialista), mais vivo
ainda pelo rancor decorrente de duas intervenções norte-americanas no transcurso do
processo revolucionário, influenciou muitos intelectuais latino-americanos, que perceberam
com seu exemplo a possibilidade de trilhar caminhos autônomos de desenvolvimento
nacional.
Os Nacionalismos na América Latina
O progresso neoliberal trouxe prosperidade para as elites urbanas e rurais que se
inseriam no comércio exterior, bem como para setores das “classes médias”, que nas
margens do sistema conseguiam incluir-se. Verdadeiras bolhas de modernização foram
criadas nos centros urbanos em meio à esmagadora maioria territorial e populacional do
interior atrasado. Não havia meios (e interesse) de incluir as massas camponesas
dependentes na onda de progresso. O sistema político fraudulento e excludente reproduzia
o domínio das elites oligárquicas neocoloniais, obstruindo a ascensão de forças
contestatórias.
O que os nacionalistas das primeiras décadas do século XX queriam era o
alargamento dos benefícios gerados pelo desenvolvimento das exportações e a superação
do atraso industrial. E somente vislumbravam concretizar seus objetivos mediante a tomada
do poder das mãos neocoloniais, que em sua aliança com os interesses imperialistas
moldavam o Estado para a gestão de seus negócios e riquezas.
Podemos enquadrar o nacionalismo latino-americano em um contexto de crise sóciopolítica, devido a um “efeito colateral” do neocolonialismo: o crescimento das camadas
intermediárias urbanas, que em maior ou menor grau prosperaram economicamente, porém
estavam alijadas da representatividade política. Estes setores conseguiram se inserir no
ensino, realizavam carreiras em diversos ramos de atividades urbanas, como no pequeno
comércio, no setor de serviços ou mesmo na burocracia, mas não desfrutavam do luxo
consumista das oligarquias, nem possuíam meios de se fazerem representar politicamente
por conta do sistema eleitoral manipulado, baseado no clientelismo e no “voto do cabresto”.
Constatavam a importação da cultura européia ou norte-americana pelas elites, que
consumiam artigos de luxo franceses, eletrodomésticos ingleses e automóveis norteamericanos, objetos de desejo distantes do grande público latino-americano. Assim,
rancorosos e sequiosos por mudanças reais, que incluíssem um número muito superior nos
benefícios do progresso, valorizavam tanto suas culturas nacionais, como a industrialização,
vista como veículo de transformação rumo a uma sociedade mais justa e moderna. A
modernidade, para os nacionalistas, era simbolizada pela fumaça saindo de chaminés de
fábricas que produziam artigos variados, acessíveis aos bolsos da maioria. Contrastando
com os neocolonialistas, os nacionalistas tinham os olhos voltados para o interior de suas
sociedades.
55
No início do século XX, o racismo científico europeu deu lugar, na
América Latina, a uma apreciação do elemento mestiço próprio da estrutura
étnica regional. Tal discurso atraía as massas como nunca o neocolonialismo
História da havia feito. A retórica antiimperialista saída das bocas dos líderes nacionalistas
América II enchia os ouvidos e corações mestiços de emoção, pelo ressentimento frente
à dominação estrangeira, materializada nas intervenções militares, nas dívidas
contraídas desde há muito, na arrogância dos proprietários forasteiros que
pagavam salários de fome. O foco de resistência ao imperialismo dava um senso de unidade,
um sentimento de pertencimento a uma comunidade, a uma nação. Por vezes este sentimento
de identidade nascia como resposta a uma invasão, agressão ou humilhação sofridas.
A Revolução Mexicana tomou um rumo nacionalista, pois a pressão exercida pelo
imperialismo ianque impelira os mexicanos a esta tomada de posição, tendo em vista que
os interesses do povo somente poderiam ser atendidos caso os dos estrangeiros fossem
contrariados, o que de fato aconteceu.
Não foi um episódio isolado:
No final da década de 1920, fuzileiros navais norte-americanos travaram
uma guerra quente contra os guerrilheiros patriotas nicaragüenses. O
líder dos guerrilheiros, César Augusto Sandino, acusou os Estados
Unidos de “imperialismo”. Ele se tornou um herói para muitos latinoamericanos (como Fidel Castro mais tarde) precisamente por resistir
aos Estados Unidos. Várias intervenções norte-americanas instalaram
líderes que se tornaram ditadores por longos períodos, tiranetes
corruptos, famosos pela cobiça e obediência à política norte-americana.
(CHASTEEN, 2001, p. 169)
Era desta forma que os estadunidenses combatiam movimentos nacionalistas que
preconizavam a autodeterminação dos povos. Mas tal forma de atuação, direta, via
intervenção militar, não podia ser levada a cabo facilmente em países maiores e/ou mais
distantes, como Uruguai, Argentina e o Brasil, que experimentaram, com o Batlismo (19031907/1911-1915), a União Cívica Radical (1916 até fins da década de 1920) e o Getulismo
(1930-1945), respectivamente, movimentos de caráter nacionalista baseados em setores
urbanos, quebrando a hegemonia neocolonial das oligarquias.
A Grande Depressão de 1929 contribuíra para sepultar o liberalismo neocolonial na
América Latina. A década de 1930 assistiu a um desmantelamento dos setores
exportadores, pois a demanda e os preços dos produtos latino-americanos despencaram
no mercado mundial. Este processo, se por um lado enfraqueceu as oligarquias que
dependiam das exportações e provocou altos índices de desempregados, por outro
possibilitou um novo impulso às ISIs. Sem condições de continuar importando muito do que
consumia, os latino-americanos tiveram que recorrer aos seus próprios setores industriais
para suprir suas demandas.
Assim, a década de 1930 foi um período importante no processo de consolidação
da industrialização na América Latina. E, claro, a industrialização engendrava dois processos
que corroíam os vestígios neocoloniais ainda existentes: urbanização e ascensão política
de setores da burguesia nacional. Tudo, agora, favorecia a onda nacionalista na região. As
massas urbanas, mais permeáveis ao discurso nacionalista, iniciaram nas décadas de 1930
e 1940 (processo alargado na década de 1950) a sua aparição na cena política, com a
dilatação dos direitos políticos a cada vez mais pessoas, inserindo inclusive o voto feminino.
Este processo favorecia os nacionalistas, bem como posteriormente os populistas, que
tinham nas populações urbanizadas (a inversão da relação populacional campo-cidade se
deu na região por volta da metade do século) suas áreas de atuação.
56
Após a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), o quadro mudara. Os nacionalistas
sofreram um baque com a vitória do liberalismo encarnado nos Aliados, bem como com
uma nova onda de pressão norte-americana que se abatera sobre a região, pois se adentrava
no período da Guerra Fria. Para Whashington, movimentos de cunho nacionalista na América
Latina eram perigosos, pois necessitava garantir para si a condução das políticas externas
da área que considerava como sua zona de influência. Assim, ser nacionalista na América
Latina, dado o caráter histórico da dominação estrangeira capitalista, em tempos de Guerra
Fria, significava quase sempre uma adesão à única forma alternativa de tentar vencer os
oponentes internos e externos: o socialismo revolucionário.
Os Movimentos Revolucionários na América Latina
Na América Latina, devido à superioridade industrial e militar dos
Estados Unidos e sua ingerência nos negócios internos dos países da
região, os movimentos nacionalistas conviviam com dificuldades
constantes pós-1945. Para fazer valer seus planos de nacionalização
econômica, alguns movimentos nacionalistas deram uma guinada rumo ao
socialismo, visto como um avanço na luta antiimperialista e por igualdades
sociais, tentando superar o abismo escavado por séculos de exploração e
manutenção das disparidades sociais. Em um mundo bipolar como o da Guerra Fria, para
fugir das pressões norte-americanas e tentar trilhar um caminho livre do imperialismo ianque,
os latino-americanos passaram a olhar com bons olhos para a outra superpotência: a União
Soviética.
Mas a influência soviética sobre os intelectuais latino-americanos não tinha somente
um cunho ideológico de superação das desigualdades ou mesmo do imperialismo
estadunidense. Havia questões ainda mais pragmáticas do que suprimir a presença
imperialista dos EUA: o exemplo do desenvolvimento soviético. A receita de industrialização
acelerada da URSS, que partira de um tremendo atraso sócio-econômico na década de
1920, para um status de potência industrial vinte anos depois, capaz de superar a poderosa
Alemanha nazista durante a Segunda Guerra Mundial, impressionava muitos latinoamericanos. Parecia o remédio ideal para superar seus próprios atrasos e desigualdades
sociais. Partidos comunistas foram fundados a partir da década de 1920 (o PC brasileiro é
de 1922), na esteira da Revolução de Outubro de 1917, mas sua representatividade era
pequena. Em países tradicionalistas católicos, com populações majoritariamente rurais e
analfabetas, a difusão do comunismo não era tarefa fácil. E nem sempre ser nacionalista
significava ter um viés esquerdista, como muitos movimentos reacionários das décadas de
1960 e 1970 demonstraram.
No período pós-guerra, os nacionalistas latino-americanos enfrentaram inúmeros
desafios: “necessidades sociais prementes, um contra ataque de seus velhos adversários
políticos, um enfraquecimento da base econômica e a hostilidade dos Estados Unidos.”
(CHASTEEN, 2001, p. 206).
Para vencê-los, os nacionalistas empreenderam duas estratégias distintas: o
populismo e o socialismo (ou algo próximo deste, pois nem tudo que o Departamento de
Estado norte-americano enxergava como comunista realmente o era).
Na Guatemala, entre 1944 e 1954, o país passara por um período democrático em
que os eleitos (José Arévalo e Jacobo Arbenz) tomaram medidas de cunho social, tais
como assistência social e melhor remuneração para os trabalhadores. Arbenz, a certa altura,
para os políticos norte-americanos, foi longe demais: reforma agrária, expropriações de
ferrovias, contato com comunistas... até comprar armas da Tchecoslováquia. Para os EUA
tais medidas eram inadmissíveis (a United Fruit possuía muitas plantações de bananas na
57
Guatemala). Arbenz foi derrubado por um misto de invasão norte-americana
e golpe militar reacionário.
Na Bolívia, onde o Movimento Nacional Revolucionário (MNR) assumiu
História da o poder entre 1952 e 1964, a intervenção norte-americana fora mais branda.
América II O programa de expropriações do MRN não ferira diretamente os interesses
dos EUA, que por isso mantiveram-se “construtivamente envolvidos”. A principal
riqueza da Bolívia era o estanho, cuja propriedade era da família Patiño. Estes,
entretanto não se incomodaram muito com a nacionalização, haja vista o estado decadente
em que as minas se achavam, além da vultosa indenização paga. Ademais, em seus refúgios
europeus, a família Patiño continua lucrando com a exploração, pois o estanho que sai bruto
da Bolívia é beneficiado em uma empresa da família na Inglaterra (GALEANO, 2001, pp.
161-2). O que sobrou desta riqueza foi consumido pelas melhorias salariais dos mineiros,
não obstante os preços pagos pelo mesmo não terem acompanhado os ganhos salariais,
fazendo as minas operarem no vermelho. Além da nacionalização, os bolivianos do MNR
realizaram uma reforma agrária que amenizara a penúria das famílias campesinas. A longo
prazo, a política dos EUA na Bolívia mostrou-se mais profícua que uma intervenção direta,
pois os elementos mais conservadores do MNR assumiram a direção do governo, retirando
sua áurea marxista revolucionária.
Com a vitória da Revolução Cubana (1959), os movimentos revolucionários na América
Latina ganharam novo ímpeto. O exemplo cubano animou os nacionalistas marxistas da
região a tentarem empreender a luta revolucionária seguindo (entre modalidades urbanas e
rurais) o modelo da guerrilha vitorioso em Cuba.
Mas nos demais países latino-americanos não haviam condições objetivas para a
concretização dos planos revolucionários. Após a vitória de Fidel Castro, o avanço das
pressões norte-americanas, apoiando financeira e militarmente os regimes conservadores,
aliada às conjunturas internas de cada país limitaram as possibilidades de ação dos grupos
guerrilheiros. Não obstante a difusão das idéias marxistas pela intelectualidade latinoamericana, as mensagens de libertação nacional e igualdade social permaneceram restritas
a um público geralmente jovem e universitário, e foram eles os porta-vozes da revolução.
As táticas dos grupos guerrilheiros urbanos, predominantes nas décadas de 1960 e
1970 incluíam assaltos a bancos (expropriações revolucionárias) e ações de impacto na
mídia, como seqüestros de embaixadores ou ataques a quartéis. Mas nada disso angariava
apoio popular para sua causa, pouco contribuindo para o progresso dos movimentos rumo
a uma revolução socialista. Os guerrilheiros universitários se consideravam como
verdadeiros apóstolos da verdade socialista, tentando convencer os jovens dos centros
urbanos ou os camponeses do interior a aderirem a seus movimentos, coisa que poucos
fizeram. Somente onde havia movimentos genuinamente camponeses (como na América
Central ou na Colômbia, por exemplo) ocorreram adesões e os movimentos tiveram
continuidade e relativo êxito.
Vejamos alguns movimentos ou grupos guerrilheiros deste período:
- Montoneros na Argentina: ao longo da década de 1970 foram aguerridos
combatentes dos governos militares sendo, entretanto barbaramente reprimidos, sem
ameaçar a ordem vigente;
- Tupamaros no Uruguai: formado em 1964, empreenderam
ações planejadas de guerrilha urbana sendo, contudo reprimidos,
presos e executados, levando ao ocaso de suas pretensões;
- Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC) e
Exército de Libertação Nacional (ELN) na Colômbia: na década
de 1960, tanto as FARC como o ELN iniciaram suas atividades
guerrilheiras pelo interior, delimitando territórios, mas sem
possibilidade de vitória. Até hoje guerrilheiros e paramilitares de
Guerrilheiros das FARC
direita se enfrentam na Colômbia.
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- Guatemala: ao longo das décadas de 1960 e 1970, diversos movimentos
guerrilheiros camponeses e urbanos combateram as ditaduras militares, sem conseguirem
tomar o poder;
- Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN), na Nicarágua: em 1961, o
movimento revolucionário formado em Havana, iniciou suas ações revolucionárias para
derrubar a dinastia de ditadores nicaragüenses da família Somoza, aliada dos EUA. Durante
duas décadas os sandinistas combateram os Somoza, quando em 1978, o assassinato do
jornalista Joaquín Chamorro uniu direita e esquerda contra a ditadura, derrubando o regime
em 1979. Os sandinistas assumiram o poder, porém sua aliança com os cubanos estimulou
o presidente dos EUA, Ronald Reagan, a apoiar os contra-revolucionários remanescentes
das forças ditatoriais, no escândalo que ficou conhecido como os Contras. Os contrarevolucionários combateram os sandinistas de suas bases em Honduras, abastecidos pelos
norte-americanos até que em 1990, o país, esgotado pela guerra, elegeu Violeta Chamorro
(primeira presidente da América Latina), dividindo o país mais pondo fim à guerra.
Cartazes da FMLN
- Frente Faribundo Martí de Libertação Nacional (FMLN), em El Salvador: na década
de 1980, a FMLN lutou para derrubar o regime autoritário oligárquico que dominava o país
há décadas. Apoiado pelos EUA, o governo reprimiu violentamente os revolucionários, que
depois de anos entre vitórias e derrotas depuseram as armas assinando um tratado de paz,
em 1992.
Salvador Allende
Cartaz da Unidade Popular
- União Popular, no Chile: exemplo distinto de processo político, o Chile possuía, em
meados do século XX, um regime político constitucional sólido. A esquerda comunista seguia
a linha soviética de coalizões nacionais, formando alianças com setores progressistas. Em
1970, o candidato da coalizão denominada Unidade Popular (UP), Salvador Allende, venceu
as eleições presidenciais. Allende um médico marxista, acreditava numa “via chilena para o
socialismo”, mais moderada e gradual, distinta dos exemplos revolucionários como o
Cubano. Congelava os preços de produtos e aumentava os salários dos trabalhadores,
mas com resultados insatisfatórios, pois a inflação estava sem controle. Ocorrera a
59
expropriação da indústria do cobre, bem como movimentos trabalhistas que
assumiam o controle de empresas devido à lentidão do governo.
A oposição ao governo Allende, levada a cabo por ultranacionalistas
História da de direita apoiados por Washington, desestabilizava o governo. Havia
América II desabastecimento e a economia balançava. Enquanto os trabalhadores pobres
urbanos apoiavam o presidente, os setores da elite e das classes médias,
com ajuda dos EUA apoiaram o golpe de setembro de 1973, que assassinara
Allende em seu gabinete. (CHASTEEN, 2001, pp. 211-250)
- Diversos movimentos entre eles a Guerrilha do Araguaia, ALN, MR-8 etc. no Brasil
(fins da década de 1960 a meados de 1970): após o AI 5, a juventude revolucionária
brasileira, sem canais legais para exprimir sua insatisfação com o regime militar, caiu na
clandestinidade tanto da guerrilha urbana, como da rural, com resultados pífios, apesar ações
espetaculares. O Milagre Econômico do início da década de 1970 dava legitimidade aos
militares brasileiros, tirando qualquer chance de vitória dos pequenos grupos armados.
Gradualmente a repressão se abateu sobre eles, desativando um a um, exilando, prendendo
e exterminando seus membros.
MOVIMENTOS REVOLUCIONÁRIOS E REGIMES MILITARES
Fonte: CHASTEEN, 2001, p. 240.
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A Revolução Cubana de 1959
A Revolução Cubana, seguramente foi a Revolução por excelência da história latinoamericana do século XX. Imagens com o rosto de Ernesto “Che” Guevara estampam
camisetas e adesivos pelos quatro cantos da região, sendo um dos ícones da juventude.
Mas para entendermos a Revolução de 1959 precisamos voltar ao século XIX.
Ao longo de todo o século XIX, os EUA – maiores compradores do açúcar cubano –
alentaram a anexação de Cuba, ainda sob domínio espanhol. A oportunidade surgiu na
guerra contra a Espanha, em 1898. Cuba e Porto Rico passaram para o comando norteamericano, sendo que até hoje Porto Rico continua sendo uma colônia disfarçada
estadunidense. Em 1901, o Congresso dos Estados Unidos aprovou a Emenda Platt, que
limitava sobremaneira a soberania de cubana.
Funcionando como centro turístico e local de investimentos para os norte-americanos,
Cuba passou pela fase neocolonial como outras áreas da América Latina: dependente,
com forte presença de interesses econômicos e militares dos EUA.
Seu simulacro de independência política não enganava a muitos: Emir Sader
denomina o regime cubano pré-revolucionário de “pseudo-república” (SADER, 2001, p.
19). Esta tutela norte-americana abrangia vários aspectos da vida cubana, pois os EUA
influenciavam em sua política interna, além de praticamente dominar sua economia, não só
pela cota do açúcar , seu mais importante produto no mercado internacional, como também
pelo monopólio das empresas norte-americanas que operavam em Cuba.
Dentro deste contexto em que o povo cubano vivia submetido a uma política próEUA e a uma servidão econômica que colocava a maioria da população na pobreza, no
analfabetismo e na marginalidade, seria de se esperar que qualquer movimento popular
que visasse a mudanças profundas na sociedade tendesse a ser antiamericano, portanto
nacionalista. Tão próxima do maior império da História humana, a apenas 140 km da costa
da Flórida, Cuba sofria de uma dependência incomum, até mesmo para os padrões
neocoloniais. A corrupção imperava nos governos eleitos e também na ditadura de Fungêncio
Batista, em sua segunda subida ao poder (1952).
O jovem advogado Fidel Castro tinha 24 anos quando
Batista instaurou sua ditadura. Como muitos jovens cubanos, Fidel
era imbuído dos ideais nacionalistas de independência. Vira no
regime instaurado um retrocesso na luta por uma Cuba
progressista. Tentara iniciar um movimento nacionalista pela
tomada do poder juntamente com um grupo de 168 pessoas,
assaltando o Quartel Moncada, em julho de 1953. O ataque foi um
fracasso, muitos morreram e outros foram presos, inclusive Fidel,
dias depois. Foi julgado (apresentando um documento de defesa
Guevara e Fidel
denominado “A história me absolverá”) e condenado, mas
posteriormente solto. Exilou-se no México para organizar um ataque decisivo. Foi aí que
conheceu o médico argentino Ernesto “Che” Guevara. Eles, mais 80 pessoas, partiram (em
novembro de 1956) para fazer a Revolução, a bordo do Granma, mas o desembarque
ocorreu na hora e local equivocados, fazendo com que perdessem muitos homens. Somente
12 deles sobreviveram, deslocando-se em direção à Sierra Maestra. A partir de então, as
surpreendentes vitórias dos revolucionários, que angariavam apoio crescente do povo
cubano, desmoralizavam o regime de Batista, fazendo-o renunciar e fugir, na virada de
1958 para 1959. Estava consolidada a vitória revolucionária.
Estabelecida a Revolução, formou-se um governo de coalizão composto por
variados matizes políticos, considerado liberal. A Revolução não foi, a priori, socialista. A
própria aproximação de Fidel com o marxismo não fora exteriorizada antes de 1960-61.
61
Ora, a própria guerrilha que combateu na Sierra Maestra era composta por
poucos marxistas, mesmo que importantes, como o próprio Che Guevara,
sendo que a importância do PSP (Partido Socialista Popular, o PC cubano)
História da na luta pela derrubada de Batista não fora significativa até 1958 e uma maior
América II aproximação com Fidel se dera apenas após a vitória revolucionária. Foi a
partir de 1960 que os comunistas foram se tornando maioria no governo de
coalizão. A organização do partido (comum nos PC’s leninistas), foi importante
para a construção do novo regime, e Fidel a adotara como meio de sustentar suas medidas,
como a reforma agrária e a nacionalização das empresas estrangeiras. A partir daí as
relações com os EUA foram se deteriorando.
Os norte-americanos, mesmo duvidando do caráter socialista da Revolução em seu
início, não aceitariam as medidas do novo governo, que atacavam diretamente seus
interesses na ilha. Ataques terroristas atribuídos à CIA e o bombardeiro por aviões ianques
ocorreriam em 1961, mesmo antes do anúncio de Fidel em abril daquele ano, de que o
regime era socialista. Nas palavras de Eric Hobsbawm encontramos uma síntese sobre
como se deu a consolidação da Revolução como socialista:
tudo empurrava o movimento fidelista na direção do comunismo, desde
a ideologia social-revolucionária daqueles que tinham probabilidade de
fazer insurreições armadas de guerrilha até o anticomunismo
apaixonado dos EUA na década de 1950 do senador McCarthy, que
automaticamente inclinava os rebeldes latinos antiimperialistas a olhar
Marx com mais bondade. A Guerra Fria fez o resto. Se o novo regime
antagonizasse os EUA, o que era quase certo que faria, quando nada
ameaçando os investimentos americanos, podia contar com os quase
certos garantia e apoio do maior antagonista dos EUA [a URSS]
(HOBSBAWM, 1995, p.427).
Assim, percebemos que todo o movimento de cunho emancipatório e reformista ia
de encontro com os interesses dos EUA, sendo, portanto antiimperialista. E em decorrência
da pressão norte-americana contra as medidas tomadas pelo governo revolucionário, aliada
ao crescente peso dos comunistas no governo, dentro do contexto da ordem bipolar seria
de se esperar a busca de um apoio que garantisse a sobrevivência da Revolução. Este
apoio só poderia vir da URSS ou da China. Mesmo que a URSS em 1960 ainda adotasse
a linha do Comintern da década de 1930, que preconizava a coexistência pacífica e a
formação de frentes populares com setores da burguesia nacional em detrimento de
revoluções, os primeiros acordos se deram já em 1960. Não obstante não incentivasse
diretamente movimentos revolucionários, os soviéticos não poderiam deixar de simpatizar
com um aliado tão estratégico como Cuba.
Em represália ao corte da cota cubana de açúcar pelos norte-americanos e o
embargo comercial imposto por eles, o novo regime firmou acordos com o bloco socialista
capitaneado pela URSS, que garantiam a venda do açúcar e a compra do petróleo a preços
extremamente vantajosos aos cubanos. Foi este apoio que permitiu que Cuba tivesse
avanços em vários campos como o científico, o industrial e o social.
E a partir da junção entre a situação interna cubana, extremamente dependente dos
EUA, e o contexto internacional da Guerra Fria, que podemos entender a opção pelo
socialismo. Foi a dependência externa e a ditadura que ocasionaram a Revolução, mas foi
a Guerra Fria que a fez socialista.
•
Cuba e a Guerra Fria
Tendo em vista que em 1961 a Revolução Cubana tomara a via socialista, na mente
dos estrategistas de Washington era preciso agir para derrubar o regime fidelista. Atentados
62
contra Fidel, queima de canaviais e bombardeio de aeroportos foram perpetrados pelos
EUA sem que se conseguisse reverter o quadro. Era preciso invadir a ilha e derrubar o
regime, e para tanto foram treinados exilados cubanos pela CIA, na Nicarágua. O fracasso
da operação e a vitória de Fidel só fizeram com que a prevenção ante a contra-revolução se
tornasse permanente (legitimando as medidas repressoras adotadas pelo governo), bem
como garantia o aumento do apoio ao regime internamente e externamente, como se veria
no caso da crise dos mísseis.
A definição pelo socialismo levou os EUA a tentarem a deposição de Fidel, mas
também proporcionou o ápice da tensão entre as duas superpotências, quando da instalação
de mísseis nucleares soviéticos em solo cubano. A manobra ousada do líder russo Nikita
Kruschev, em outubro de 1962, objetivava a não interferência dos EUA em Cuba, além da
retirada dos mísseis norte-americanos da Turquia. .
A partir daí estava consolidada a vinculação de Cuba junto a Moscou, sendo que os
soviéticos auxiliaram o desenvolvimento dos programas sociais cubanos, enviando materiais
e técnicos para a América. Entretanto, não podemos extrapolar o valor da ajuda soviética à
Cuba. Se o bloco proporcionava vantagens comerciais, principalmente no tocante ao açúcar
cubano, também acabara colocando os cubanos em uma dependência deste circuito
comercial. Pois ao governo da URSS não interessava uma Cuba industrializada (ao contrário
das primeiras promessas soviéticas de que construiriam um parque industrial cubano, quase
nada neste sentido foi feito) e sim um mercado para a exportação de seus produtos.
Mesmo que se contem os esforços cubanos para fugir desta situação, o fato de que
o programa industrial teria que começar do zero, pois Cuba era essencialmente agrária,
aliado à completa falta de recursos energéticos próprios e o reduzido estoque de matériasprimas dificultavam em muito as iniciativas do governo. De maneira geral, podemos
considerar que o apoio da URSS a Cuba garantiu certa estabilidade ao regime, sem, contudo
proporcionar o desenvolvimento das forças produtivas tão almejado por Fidel.
Uma questão das mais polêmicas quando se debate a Cuba revolucionária é a
referente ao apoio cubano aos movimentos revolucionários da África e da América Latina.
Somente onde havia um movimento genuinamente nacional e com base camponesa estes
movimentos foram possíveis (o caso das FARC, na Colômbia, serve como exemplo). A
tentativa de reproduzir a experiência cubana em outros países prescindia de uma análise
profunda sobre as particularidades da situação da Cuba antes de 1959. O Brasil não é
Cuba. Foi com o sangue de guerrilheiros como Che Guevara (morto na Bolívia, em outubro
de 1967, tentando difundir a revolução no coração da América do Sul) ou Carlos Marighella
que o sonho revolucionário se transformou em pesadelo.
Emir Sader faz uma síntese do problema demonstrando o peso do exemplo cubano:
Nos anos 60 e 70 Cuba representou uma alternativa aos outros países,
porque o país havia conseguido, num curto espaço de tempo, algumas
conquistas que até hoje estão ausentes na maior parte dos países da
periferia do capitalismo; como por exemplo, o fim do analfabetismo, a
extensão da educação mínima a 9 anos para toda a população, a
universalização do direito à saúde gratuita, com índices de esperança
de vida ao nascer e de mortalidade infantil idênticos aos países mais
avançados do mundo.
Esses avanços se davam num país de economia agrícola, que vivia
da exportação de praticamente um único produto – o açúcar –, em
condições de conflito direto com os EUA. A economia cubana não
avançou significativamente, o país não deixou de viver essencialmente
da exportação do açúcar; porém, uma economia planificada e a
integração num planejamento internacional fora do mercado capitalista
permitiu construir uma sociedade justa, equilibrada e solidária, com
os melhores índices de distribuição de renda do mundo. Via-se que
uma sociedade justa não necessita ser rica, basta se orientar por
princípios coletivos de igualdade social. (SADER, 2001, pp. 11-12)
63
Devemos incluir nas conquistas revolucionárias a nacionalização das
empresas estrangeiras (a estatização de qualquer empresa privada, em
verdade), a reforma agrária (baseada na coletivização do campo, via
História da cooperativas), a reforma urbana, acabando com os aluguéis, o pleno emprego
América II etc. A lista cresceria bastante se observarmos a descrição de Cuba feita pelo
jornalista Fernando Morais em sua obra, já clássica, A Ilha (MORAIS, 2001)
•
Cuba e o Desmantelamento da URSS: a Continuidade do Regime
Na década de 1980, a URSS passou pelo processo de abertura e reforma de seu
sistema político e econômico. A crise de estagnação e o atraso tecnológico, bem como a
crescente resistência dos satélites soviéticos desde 1968, levaram o sistema ao colapso. A
partir de então, Cuba teria que caminhar sozinha, sem os privilégios comerciais que detinha
com o bloco socialista.
Desde o início da década, Cuba passava por uma crise da dívida externa, pois
precisava importar de países capitalistas parte da matéria-prima, bem como do maquinário
para seu desenvolvimento industrial. Com a deterioração dos termos de troca, os cubanos
se viram com uma crescente dívida externa, tendo como resultado a moratória de 1986.
Sem financiamento externo, foi implementada uma política de incremento das relações
comerciais com o bloco, processo este abortado com o desmantelamento da URSS e de
seu sistema comercial, entre 1989 e 1991.
Cuba se viu privada de seu fornecimento de petróleo e teve que se inserir
completamente dentro do mercado mundial de comércio. Um país ainda essencialmente
dependente do açúcar como moeda de troca ficara em situação precária. O regime, para
não abrir mão das conquistas sociais alcançadas, teve que lançar mão de reformas e
campanhas visando uma reestruturação de sua economia. Importaram-se milhões de
bicicletas e ocorreram cortes no fornecimento de energia elétrica. Houve uma crise geral no
abastecimento, não só do petróleo como de gêneros básicos como produtos de higiene e
alimentares. A renda dos cubanos caiu em média um terço, agravando ainda mais o
abastecimento dos mais carentes.
Para combater a crise foi permitida a abertura de mercados para a comercialização
do excedente pelos camponeses, como forma de estimular o aumento da produção. Foram
implementadas campanhas pelo trabalho voluntário e de reafirmação dos valores morais
da Revolução (algo que já estava bastante degradado no Leste Europeu, muito mais que
em Cuba), além de uma reformulação do modelo de produção das fábricas e o
remanejamento de operários para o campo, a fim de combater o desabastecimento alimentar.
A reforma mais importante para a redução da crise foi a que se deu com o turismo.
Para resolver os conflitos com o capital externo a solução encontrada foi abrir o turismo a
grupos estrangeiros. Não só os investimentos atrairiam dólares, mas acima de tudo eram
(e são) os turistas quem movimentam boa parte da economia cubana. Os dólares dos turistas
permitem que uma parte dos cubanos tenha um nível de renda bastante superior à maioria
da população.
Se o contrato com as redes hoteleiras fez com que 50% da renda vá para o governo,
dentro do mercado informal surgiu uma nova categoria social. Aqueles que trabalham com
o turismo (sem vinculação empregatícia, pois nesta recebem como os demais, em pesos)
vendendo charutos desviados, na prostituição (que estava extinta e recentemente reapareceu)
na abertura de um restaurante caseiro ou de pensões nos casarões coloniais, conseguem
viver bem melhor com os dólares ganhos dos turistas.
Está se formando em Cuba o que poderíamos chamar de “pequena-burguesia”, que
possui um nível de renda diferenciado do restante da população que ganha em pesos. Outra
64
forma de obter aumento na renda é a remessa de dólares do exterior, vinda dos parentes
vivendo principalmente nos EUA.
Não obstante estas transformações econômico-sociais ocorridas nos últimos anos,
o regime Cubano não caiu junto com a URSS e o Leste Europeu, como esperava a imprensa
internacional. Por que Cuba não seguiu a tendência dos países do Leste Europeu?
Primeiramente, podemos colocar uma diferença básica entre o Leste Europeu e
Cuba. Esta não sofreu a tutela militar direta como sofreram os europeus. O controle e a
exploração sofridos pelos países do Leste ocasionaram um descontentamento difundido
entre a população. Faltava legitimidade aos regimes comunistas europeus, vistos por muitos
como uma imposição de Moscou. Cuba não pereceu destes problemas, pois sua Revolução
foi autóctone e seu líder sustenta até hoje suficiente legitimidade frente à maioria dos cubanos.
Outro ponto que os distancia é o fato de que a geração que fez a Revolução ainda
está no poder. Ainda que os jovens de hoje percam o interesse pelo ideal revolucionário,
pois não viram as transformações sociais sofridas nas duas primeiras décadas pós-1959,
encontramos certa moral que permite uma menor contestação pelas novas gerações do
regime cubano. Mesmo que, por exemplo, os jovens cubanos não desejem mais cursar
uma faculdade (pois podem ganhar muito mais que um médico trabalhando de garçom em
um restaurante), ainda vemos as conquistas sociais, tanto na educação como na saúde,
servindo como referenciais em comparação aos demais países latino-americanos.
Pois se para os europeus do Leste os referenciais adotado são os países de primeiro
mundo como a Alemanha e a França, para os cubanos os referenciais são países como o
Haiti, o Panamá etc. que nem de longe alcançaram o nível de qualidade de vida visto em
Cuba.
Cuba foi o único país latino-americano a conseguir a consolidação do ideal socialista
e a enfrentar a supremacia norte-americana no continente, a ponto de estar sempre na lista
do “Eixo do Mal” dos estrategistas de Washignton. E um exemplo de como, apesar de
todas as dificuldades e de todas as vicissitudes de seu regime (antidemocrático, sem
liberdade de expressão e de imprensa, com graves violações aos direitos humanos), chegou
a ser o país mais igualitário do mundo, sem analfabetismo e com a melhor rede de
assistência social entre os países de terceiro mundo. Isso tudo conseguido pela montagem
de um regime socialista a 140 km do império norte-americano.
Texto Complementar
CUBA REVOLUCIONÁRIA
“Que fizemos nós para nos libertamos desse poderoso sistema imperialista, com
seu cortejo de governos fantoches em cada país e seus exércitos mercenários defendendo
esse completo sistema da exploração do homem pelo homem? As condições objetivas
para a luta eram fornecidas pela fome do povo e, em reação contra essa fome, pelo terror
que convocava à reação popular e pela vaga de ódio que a repressão criava por si mesma.
Faltavam na América as condições subjetivas, a mais importante das quais sendo a
consciência de uma vitória possível, através de uma luta violenta contra o poder imperialista
e seus aliados internos. Estas condições foram criadas por nossa luta armada, que permitiu
tornar mais clara a necessidade de uma mudança, possibilitando também a derrota e a
liquidação total do exército (condição indispensável a toda revolução verdadeira) pelas
forças populares.
Nossa força armada, criada nos campos, conquistou as cidades a partir do exterior,
uniu-se com a classe operária e desenvolveu senso político no contato com esta última.”
65
Guevara. “Che”. Revolução Cubana. Trad. De Juan Martinez de La Cruz.
São Paulo, Edições Populares,1981, pp. 41-42. In: PINSK, Jaime [et al.]
História da América através de textos. São Paulo: Contexto, 2001, pp. 103História da 4
América II
História através de Documentos
“A Emenda Platt (1901)
Quem em cumprimento da declaração contida na resolução conjunta aprovada em
20 de abril de 1898, intitulada “Para o reconhecimento da independência do povo de Cuba,
exigindo que o governo da Espanha renuncie à sua autoridade e ao governo na ilha de
Cuba, retire de Cuba e das águas cubanas suas forças de reserva de terra e mar e indicando
o presidente dos Estados Unidos para usar as forças de terra e mar dos Estados Unidos
para levar a efeito essas resoluções”, o Presidente é, pela presente, autorizado a “ deixar o
governo e o controle da ilha de Cuba ao seu povo”, tão logo tenha sido estabelecido um
governo na referida ilha sob uma constituição à qual, quer como uma parte dele ou como
uma ordenação a ele anexada, defina as futuras relações dos Estados Unidos com Cuba,
substancialmente como se segue:
Artigo 1º - Que o Governo de Cuba nunca afirmará nenhum tratado ou outro acordo
com qualquer potência ou potências estrangeiras que venha prejudicar ou possa vir prejudicar
a independência de Cuba, nem, de forma alguma, autorizará ou permitirá que qualquer
potência ou potências estrangeiras venham, por colonização ou com objetivos militares ou
navais ou quaisquer outros, alojar-se em ou controlar qualquer porção da referida ilha.
Artigo 2º - Que o referido governo não assumirá nem contrairá nenhuma dívida pública
para sobre ela pagar juros e para fazer razoável provisão de fundos de amortização, quando,
para seu final resgate, as rendas comuns da ilha, após os custeio das despesas correntes
do governo, possam ser inadequadas.
Artigo 3° - Que o governo de Cuba consente que os Estados Unidos possam exercer
o direito de intervir para a preservação da independência cubana, para a manutenção de
um governo adequado à proteção da vida, da propriedade e da liberdade individual e para
o cumprimento das obrigações que, a respeito de Cuba foram impostas pelo Tratado de
Paris aos Estados Unidos, e que devem agora ser assumidas e cumpridas pelo governo de
Cuba.
Artigo 4º - Que todos os Atos dos Estados Unidos em Cuba durante sua ocupação
militar são, pelo presente, ratificados e validados e todos os direitos adquiridos sobre ela
serão mantidos e protegidos.
Artigo 5º - Que o governo de Cuba executará e, até onde for necessário, ampliará os
planos já elaborados ou outros a serem mutuamente aceitos para o saneamento das cidades
da ilha, a fim de evitar a ocorrência de doenças epidêmicas e infecciosas, assegurando
dessa forma a proteção ao povo e ao comércio de Cuba bem como ao comércio e ao povo
dos portos do sul dos Estados Unidos.
Artigo 6º - Que a ilha de Pinos será retirada dos propostos limites constitucionais de
Cuba, deixando-se para um futuro acordo por tratados, o direito à propriedade da mesma.
Artigo 7º - Que para capacitar os Estados Unidos a manter a independência de Cuba
e para proteger seu povo, assim como para sua própria defesa, o governo de Cuba venderá
ou arrendará aos Estados Unidos terra necessária para postos navais ou de abastecimento
em certos pontos especificados, a serem discutidos e aceitos pelo Presidente dos Estados
Unidos.
66
Artigo 8º - Que por meio de um ulterior compromisso, o governo de Cuba consolidará
as presentes disposições num tratado permanente com os Estado Unidos.”
WILGUS, A, Curtis – (org.) Readings in Latin American Civilization. N. York, Barnes &
Noble. 1946, p.321/323. In: BELLOTO, Manoel Lelo; CORRÊA, Maria Martinez. América
Latina de colonização espanhola. São Paulo: HUCITEC, 1991, pp.211-212.
Seção Estante do Historiador
PINSK, Jaime [et al.] História da
América através de textos. São
Paulo: Contexto, 2001.
Atividades
1.
Complementares
Faça uma análise do processo da Revolução Mexicana, enquadrando-a no contexto
nacionalista latino-americano da primeira metade do século XX.
2.
Descreva, em linhas gerais, as transformações e principais reivindicações
vislumbradas no período nacionalista da América Latina.
67
3.
Discuta as conquistas sociais da Revolução Cubana, contrapondo-as
História da com os pontos negativos do regime cubano.
América II
EUA, REGIMES MILITARES, REDEMOCRATIZAÇÕES E
NEOLIBERALISMO NA AMÉRICA
O Poderio Norte-americano e as Relações Exteriores Intercontinentais
O grande desenvolvimento dos Estados Unidos entre
fins do século XIX e a Segunda Guerra Mundial, quando tivera
seu papel de maior potência industrial assegurado, teve
reflexos na América Latina. O maquinário industrial sugava
crescentemente recursos naturais vindos dos vizinhos sulinos.
Era natural, dados o histórico de intervenções na região
e a cultura imperialista norte-americana, que os EUA
tendessem a aumentar sua presença nos diversos países do
continente. Os capitais norte-americanos precisavam ser
invertidos para se reproduzirem, e o solo latino-americano
Tio Sam “ensina” aos latino-americanos
estava pronto para recebê-los.
Desde antes da Doutrina Monroe (1823), passando pela Doutrina do Destino
Manifesto, em meados do século XIX, que tinham um cunho político-cultural até mais forte
que o conteúdo econômico, até chegar ao fim do século, os Estados Unidos consolidaram
uma forma de pensar que se cristalizara em seu imaginário relativo aos latino-americanos:
A crença na inferioridade latino-americana é o núcleo essencial da
política dos Estados Unidos em relação à América Latina, porque ela
determina os passos precisos que os Estados Unidos assumem para
proteger seus interesses na região. Uma vez que existiu desde o início,
uma maneira de entender a política atual e suas suposições
subjacentes é voltar ao século XVIII e examinar como o pensamento
hegemônico de hoje começou a evoluir como corolário lógico de crenças
sobre o caráter dos latino-americanos. [...] procurando provas de um
sutil mas poderoso mind-set [espécie de estrutura mental que dirige o
olhar norte-americano, informa como pensar a América Latina e
interpretar a cultura latino-americana] que impediu uma política baseada
no respeito mútuo. Ali, nas mentes dos funcionários dos EUA,
encontraremos a explicação da política dos EUA num processo que
mistura auto-interesse com o que os britânicos vitorianos chamavam
seu Fardo do Homem Branco e os franceses, sua mission civilisatrice,
um processo pelo qual um povo superior ajuda uma civilização mais
fraca a superar os efeitos perniciosos de sua triste deficiência. Um
exame minucioso requer que analisemos como os funcionários dos
68
EUA processam a informação que recebem da América Latina. Despida
de nuanças, o processo é razoavelmente simples. Por exemplo, quando
um funcionário do Departamento de Estado abre uma reunião com o
comentário “temos um problema com o governo do Peru”, em menos
de um segundo é evocada uma imagem mental de um Estado
estrangeiro que é completamente diferente daquela que teria sido
lembrada se o funcionário em questão tivesse dito, em contraste, “temos
um problema com o governo da França.” (SCHOULTZ, 2000, pp. 13-14)
Assim, com tal mentalidade, os norte-americanos vão balizar suas ações na América
Latina. Este conteúdo político-cultural ganhara cada vez mais um cunho econômico à medida
que os interesses materiais do EUA na região cresceram (em 1929, do total de investimentos
norte-americanos no exterior, quarenta por cento se concentravam na América Latina).
Desta feita, a missão civilizadora dos EUA tivera um senso de pragmatismo que
sempre tentara tirar o máximo de proveito nas suas relações com os subdesenvolvidos e
inferiores latino-americanos. E o Pan-Americanismo de fins do XIX se enquadra nesta visão
pragmática.
Afinal, a segunda metade do século foi marcada pelo progresso econômico nos EUA
e pela inserção dos países latino-americanos nas redes do comércio internacional.
Para os norte-americanos era chegada a hora de pôr em prática uma política
comercial mais agressiva, visando garantir reservas de mercado e de matérias-primas. A
disparidade no desenvolvimento das forças produtivas entre o Norte e o Sul do continente
deu uma vantagem gigantesca aos EUA, que fazia a balança do comércio e das relações
exteriores pender ao seu favor.
O processo de concentração econômica no bojo da Guerra de Secessão permitiu a
formação de grandes corporações, que atuaram na região latino-americana. E para facilitar
tal atuação os EUA empreenderam duas formas de ação: intervenção militar de um lado e
diplomacia de aproximação por outro. Aos norte-americanos era interessante forjar
instituições que possibilitassem a integração econômica em toda a América, capitaneada,
naturalmente, por eles.
Para institucionalizar seu projeto, o Departamento de Estado norte-americano
convidara os países latino-americanos (17 estiveram presentes) a se reunirem em
Washington, entre outubro de 1889 e abril de 1890, na Primeira Conferência Internacional
Americana, onde questões aduaneiras e vagos princípios de unidade foram discutidos,
dando origem à União Pan-Americana, com sede em Washington. Órgão essencialmente
comercial tinha como objetivo final a concretização de uma reunião aduaneira continental
(algo como uma versão da ALCA – Área de Livre Comércio das Américas – do século XIX).
O projeto fracassou pela resistência argentina. Mas a partir de então, diversas reuniões
semelhantes discutiram princípios de “solidariedade” continental. Os objetivos interesseiros
dos EUA no Congresso Internacional foram denunciados pelo poeta José Martí, prócere do
movimento pela independência cubana na década de 1890, ao afirmar que “chegou para a
América espanhola a hora de declarar sua segunda independência.” (MARTÍ, 1983, p. 170)
Mente lúcida e crítica a de Martí. Se pudesse constatar as relações entre os EUA e a América
Latina no século XX, teria se considerado um profeta.
Os vários episódios nas relações Norte-Sul do continente americano confirmaram
as idéias negativas de Martí quanto aos interesses dos norte-americanos. Não viveu para
ver sua amada Cuba cair vítima da investida estadunidense, estabelecendo duradouro
domínio, só rompido com a Revolução Cubana.
Quando o século XIX deu lugar ao XX, o poder imperial norte-americano estava em
franca expansão. O corolário à Doutrina Monroe (1904) do presidente T. Roosevelt
transparecia os preconceitos em relação aos latino-americanos. Nessa época, as opções
de atuação imperialistas estavam bem definidas: a diplomacia do dólar ou do big stick. Na
prática, como lembra Octavio Ianni, há uma conjunção de interesses econômicos e políticos
69
nas estratégias norte-americanas no exercício de sua hegemonia, configurando
uma “diplomacia total” (IANNI, 1988, p. 23). Intervenções militares pontuais ou
apoio a regimes que defendessem seus negócios neocoloniais foram comuns
História da nas primeiras décadas do século XX. Mas no período entre-guerras, a
América II possibilidade de um conflito de grandes proporções fez com que o presidente
Franklin D. Roosevelt anunciasse, em seu discurso de posse, em 1933, uma
“Política de Boa Vizinhança”, que em muito melhorou as relações entre os
EUA e a América Latina, pela renúncia de seu governo em intervir militarmente nos seus
vizinhos sulinos. Mesmo a nacionalização da indústria petrolífera mexicana (1938), que
afetava diretamente os interesses norte-americanos, ocasionou qualquer tipo de intervenção
militar.
Terminada a Segunda Guerra Mundial, que deixara os EUA mais fortes do que nunca
(mesmo com a emergência da URSS como superpotência), a situação das relações
exteriores interamericanas tendeu a mudar. A Guerra Fria exigia uma nova abordagem na
hegemonia norte-americana, que se cristalizou na “Doutrina da Segurança Hemisférica”.
Ianni fez um resumo dos eventos mais importantes das relações exteriores americanas
pós-Segunda Guerra:
Ata de Chapultepec, sobre a agressão externa e problemas de pósguerra das repúblicas americanas, México, março de 1945; Discurso
de Winston Churchill, em Fulton de 1946, sobre as tarefas mundiais
dos Estados Unidos; Doutrina Truman, Washington, março de 1947,
sobre as responsabilidades políticas econômicas e militares dos Estados
Unidos para com os povos que esse país considerasse ameaçados
pelo comunismo; Tratado Interamericano de Assistência Recíproca, ou
Defesa Hemisférica, Rio de Janeiro, setembro de 1947; Carta da
Organização dos Estados Americanos (OEA), Bogotá, maio de 1948;
Tratados Americano de Soluções Pacíficas (Pacto de Bogotá), Bogotá,
maio de 1948; Ponto IV, para assistência aos povos das áreas
subdesenvolvidas, Washington,janeiro de 1949; Declaração de
Solidariedade pela Preservação da Integridade Política da Américas,
Contra a Intervenção do Comunismo Internacional, Caracas, março de
1954; Deposição do governo Jacobo Arbenz Guzmán, Guatemala, 1954;
Deposição do governo de Perón, Argentina, 1955; Vitória da Revolução
liderada por Fidel Castro, Cuba, 1959; Criação do Banco Interamericano
de Desenvolvimento (BID), 1959; Criação da Associação LatinoAmericana de Livre Comércio (ALALC), 1960; Criação do Mercado
Comum Centro Americano (MCCA), 1960; Invasão da Baía dos Porcos,
Cuba, abril de 1961;Carta de Punta Del Este, agosto de 1961; Expulsão
de Cuba socialista da Organização dos Estados Americanos (OEA),
janeiro de 1962; Deposição do presidente João Goulart, Brasil, 1964;
Deposição do presidente Victor Paz Estensoro, Bolívia, 1946; Intervenção
Militar na República Dominicana, liderada pelo governo dos Estados
Unidos, 1965; Declaração dos Presidentes da América, Punta del Este,
Abril de 1967; Assassinato de Ernesto Che Guevara, Bolívia, outubro de
1967; Deposição do presidente Belaúnde e início do governo de Velasco
Alvarado, Peru, 1968; Consenso Latino-Americano de Viña del Mar, Chile,
maio de 1969; Relatório Rockefeller, sobre “A Qualidade de Vida nas
Américas”, agosto de 1969; O presidente Nixon anuncia a política do
seu governo para o hemisfério, Washington, outubro de 1969; Vitória de
Salvador Allende, candidato socialista da Unidade Popular nas eleições
presidenciais chilenas de setembro de 1970; Golpe de Estado contra o
governo Allende 1973; invasão de Granada em1983; e a contra-revolução
em marcha na América Central em 1986. (IANNI, 1988, pp. 28-29)
70
Extensa a lista de acontecimentos que marcaram as relações interamericanas, boa
parte deles protagonizados pelos EUA, contra a soberania dos povos latino-americanos.
A Doutrina de Segurança Hemisférica implicava uma maior interdependência política,
militar e econômica. Em termos políticos, os EUA atuaram no sentido de interferir nas
questões internas dos países latino-americanos, bem como conseguiram institucionalizar
órgãos que permitissem sua hegemonia. O mais importante deles é a Organização dos
Estados Americanos, criada em 1948, responsável por coordenar o anticomunismo:
O principal foro da diplomacia anticomunista norte americana era a
Organização dos Estados Americanos (OEA), uma versão reforçada
da União Pan-Americana, não mais comandada exclusivamente pelos
Estados Unidos, mas sempre dominada por eles. Um coro de ditadores
abjetos como Rafael Trujillo na República Dominicana, “Papa Doc”
Duvalier no Haiti e Anastásio Somoza na Nicarágua seguiam a linha
norte-americana na OEA, sobrepujando qualquer oposição (em um
sistema de cada país, um voto) de nações maiores como o México,
Brasil e Argentina. Em 1954, a OEA emitiu a Declaração de Caracas,
sustentando que toda ideologia revolucionária marxista era
necessariamente “antiamericana”. (CHASTEEN, 2001, p. 211)
O fracasso das políticas de Whashington evidenciadas pela vitória da Revolução
Cubana fez com que os EUA instituíssem um plano de ajuda para os países latino-americanos,
denominado Aliança para o Progresso (1961). Com ele, os norte-americanos esperavam
conter o avanço da revolução no continente através de repasses financeiros aos aliados da
política anticomunista.
As Contradições Internas do Império.
Martin Luther King
Os Estados Unidos conheceram um grande
desenvolvimento econômico ao longo do século XX.
Entretanto, vale lembrar que tal desenvolvimento não
chegava para todos os norte-americanos. Ao
mesmo tempo em que policiavam os países latinoamericanos quanto aos seus movimentos sociais,
os EUA enfrentavam internamente suas próprias
contradições. As desigualdades econômicas, e
principalmente a segregação racial, dividiam a
sociedade norte-americana. A década de 1960 foi
marcada pelos conflitos decorrentes das
contradições entre os discursos inclusivos e a
realidade excludente. Os movimentos negros, dos
quais se destacou as Panteras Negras (Black
Panthers) agitaram a cena política norte-americana,
conseguindo a aprovação, em 1964, da Lei dos
Direitos Civis, destinada a combater a
discriminação racial. Não obstante, os negros, que
não percebiam muitas melhorias práticas em seu
cotidiano, prosseguiram em sua luta, destacandose Martin Luther King, assassinado em 1968. Até
hoje os EUA enfrentam o problema do preconceito
racial, que nas últimas décadas ganhou um novo
elemento: a grande onda de imigração latinoamericana, atualmente a questão social mais
explosiva dentro das fronteiras do império.
71
Assim, os Estados Unidos atuaram nas diversas frentes contrarevolucionárias nas décadas de 1960 a 1980. É conhecida a influência e o
apoio dos norte-americanos à instalação de regimes autoritários na América
História da Latina. Para além das questões ideológicas, havia um senso bem pragmático
América II na defesa dos interesses dos EUA na região, pois dependem em parte das
matérias-primas latino-americanas para seu desenvolvimento industrial, bem
como na garantia do retorno dos seus investimentos:
Esta dependência crescente, em relação aos fornecimentos externos,
determina uma identificação também crescente dos interesses
capitalistas norte-americanos na América Latina com a segurança
nacional dos Estados Unidos. A estabilidade interior da primeira potência
do mundo está intimamente ligada às inversões norte-americanas ao
sul do rio Bravo. (GALEANO, 2001, pp. 147-8)
Desta forma, precisamos entender a onda de instauração dos regimes militares na
América Latina enquadrando-a no contexto internacional aliado aos interesses internos das
classes dominantes, que não só temiam o comunismo, como mal-disfarçavam o desprezo
pelo liberalismo político (leia-se alargamento da participação política e eleições
democráticas) que quebrava seu monopólio na direção dos destinos nacionais.
Os Movimentos Reacionários e Regimes Militares
A ocorrência de uma série de golpes militares reacionários evidenciava a emergência
de forças políticas populares e antiimperialistas, aqui e ali, ligadas ao comunismo. Foi gerado
um impasse entre parcelas das burguesias nacionais (sequiosas por um desenvolvimento
independente, que lhes beneficiaria) e os velhos grupos ligados ao sistema agroexportador:
O exercício da democracia e os mecanismos por meio dos quais se
efetivava pareciam oferecer um espetáculo degradante aos olhos de
quem se sentia possuidor não somente dos meios de produção mas,
também, de um certo grau sublime de dignidade. Rigorosamente os
grupos senhoriais não possuíam em sua tradição mais que uma política
de poder. Quando tiveram de descer às formas competitivas da política,
não só perderam o equilíbrio que lhes é peculiar como também tiveram
de aceitar, tal qual no campo econômico, a intermediação dos grupos
burgueses [...]
A investida mais beligerante dos grupos senhoriais – ou melhor, daqueles
que planejavam salvar o que dessa tradição parecia resgatável – adotou
o caráter de um ataque frontal contra a política liberal, em nome dos
princípios do catolicismo, aos quais os liberais respeitavam, porém
tratavam de isolar, secularizando a vida pública. ( Adaptado de ROMERO,
José L., El pensamento político de la derecha latinoamericana.
Buenos Aires: Paidós, 1970, pp. 110-28. In: PINSKY, 2001, pp. 112-113)
Entretanto, mesmo a existência de atritos entre as novas forças burguesas
nacionalistas – que defendiam seus interesses industriais frente à concorrência externa – e
os setores mais conservadores, ligados ao comércio exterior, não encobre a aliança de
interesses frente ao avanço das forças populares. A democracia, para uns e outros, tinha
ido longe demais. Não há como pensar o ataque às instituições democráticas (que agora,
com a emergência das massas na arena política, pendiam para reformas que beneficiariam
a população desprivilegiada) fora do âmbito da luta de classes. Afinal, Octávio Ianni
considerava a Guerra Fria como uma “guerra civil” internacional, da qual a instalação de
regimes militares na América Latina era mero subproduto (IANNI, 1988, p. 27).
Bom exemplo disso é o caso brasileiro, em princípios da década de 1960. Nesta
época, com a ascensão de João Goulart à presidência, após a renúncia de Jânio Quadros
72
em 1961, o acirramento das tensões entre os movimentos trabalhistas, base de sustentação
de Goulart, herdeiro do trabalhismo/populismo de G. Vargas, e os setores patronais, levou a
um impasse político:
As classes dominantes do país, as elites culturais e as lideranças
militares formadas sob influência direta das escolas de treinamento
militar dos Estados Unidos, onde predominava a mentalidade da guerra
fria, sabiam do avanço, cada vez firme, do voto das esquerdas e perdiam
a esperança de, no âmbito do regime democrático, impedir a ascensão
do reformismo trabalhista no poder. (SILVA, 1990, p. 357)
Goulart, que se aproximava do campo esquerdista, era no momento o representante
de tais reformas, chamadas “Reformas de Base”, que incluíam a reforma agrária. A tentativa
de implementar as Reformas, juntamente com a indisposição do presidente com os militares,
levou a sua derrubada, em 31 de março de 1964. O Golpe de 1964 foi implementado com
o apoio das elites agrárias, da burguesia industrial e mesmo da classe média, que pouco
antes realizava a “Marcha da família, com Deus, pela liberdade”, contra o governo Goulart.
Externamente, os EUA, avisados da eminência do golpe pelos militares brasileiros, viram
com satisfação a ocorrência dele.
Assim, havia uma confluência de interesses entre os militares (e as elites) dos países
da América Latina e os norte-americanos. Para estimular o entrelaçamento de tais
interesses, os recursos da Aliança para o Progresso funcionavam como prêmios para aliados
incondicionais da política de Washington.
Os militares brasileiros, assim como outros latino-americanos, recebiam auxílio dos
EUA no serviço de inteligência e mesmo no treinamento de contra-insurgência, realizado na
Escola das Américas (School of the Americas). Os militares de toda a região especializaramse, sob influência dos EUA, em vigiar os “inimigos internos da liberdade” (leia-se comunistas).
Com isso, “os movimentos revolucionários marxistas, compostos de camponeses,
trabalhadores e estudantes universitários, seriam tratados como invasões estrangeiras no
hemisfério ocidental” (CHASTEEN, 2001, p. 211).
Mesmo movimentos não comunistas, mas marcados pela participação popular e
pelo nacionalismo, foram combatidos. Na década de 1950, os populismos de Getúlio Vargas
no Brasil e de Juan Perón na Argentina demonstram tal coisa. O antiimperialismo de ambos
fez com que os EUA se indispusessem para com seus regimes e as elites civis e militares
conservadoras de seus países agissem para derrubá-los (Vargas se suicidou antes).
Vejamos alguns dos casos em que os interesses norte-americanos estiveram
presentes na ocorrência de regimes autoritários e no combate à Revolução Cubana:
Na Venezuela, no grande lago de petróleo da Standard Oil e da Gulf, tem
lugar a maior missão militar norte-americana da América Latina. Os
freqüentes golpes de estado na Argentina explodem antes e depois de
cada licitação petrolífera. O cobre não está de modo algum alheio à
desproporcionada ajuda militar que o Chile recebia do Pentágono até o
triunfo eleitoral das forças de esquerda encabeçadas por Salvador
Allende; as reservas norte-americanas de cobre tinham caído em mais
de 60% entre 1965 e 1969. Em 1964, em seu gabinete de Havana, Che
Guevara me mostrou que a Cuba de Batista não era só de açúcar: as
grandes jazidas cubanas de níquel e manganês explicavam melhor, em
seu juízo, a fúria cega do Império contra a Revolução. Desde aquela
conversação, as reservas de níquel dos Estados Unidos se reduziram
a um terço: a empresa norte-americana Nicro-Nickel fora nacionalizada
e o presidente Johnson ameaçara os metalúrgicos franceses com o
embargo de seus envios aos Estados Unidos, se comprassem o minério
de Cuba. (GALEANO, 2001, p. 149)
73
Golpes militares se sucederam na América Latina nas décadas de 1960
e 1970. Vejamos apenas dois exemplos:
- Argentina (1976-1983): caracterizado pela existência de juntas militares
História da no governo e pela “guerra suja”, que fez “desaparecer” cerca de 20.000
América II argentinos que se opunham ao regime. As Mâes da Praça de Maio, que
denunciavam o sumiço de seus filhos, ilustram o tamanho do drama que fora
a repressão durante o regime militar argentino
- Chile (1973-1998): caracterizado pela sua anterior estabilidade política, o Chile
representou o ápice da tendência de militarização latino-americana. A ditadura foi
basicamente um regime burocrático autoritário, liderado pelo general Augusto Pinochet,
que reprimiu severamente os opositores do regime. Na década de 1990 houve uma gradual
abertura, mas o gereral Augusto Pinochet somente deixou o comando das Forças Armadas
em 1998.
A Redemocratização na América Latina
O processo de redemocratização latino-americano fora marcado por “aberturas
políticas” ocorridas entre 1979 e princípios da década de 1990. O fervor revolucionário,
combatido pelos regimes autoritários, se esfriara nas décadas de 1970 e 1980. A justificativa
para suas instalações – o combate ao “perigo comunista” ou a “anarquia trabalhista” – não
existia mais. Desgastados, sem contar mais com apoio social, os militares retornaram aos
quartéis, entregando o governo de volta às mãos dos civis.
No Brasil, o “milagre econômico” do início dos anos setenta dera legitimidade aos
militares. Mas, no final da década, o impulso econômico refreara, e a ausência do “perigo
comunista” fez com que os militares iniciassem a abertura política em 1979, processo
concluído em 1985. As pressões populares para que fossem realizadas eleições diretas
ficaram conhecidas como movimento das “Diretas já”, porém os militares e os políticos
civis mais conservadores permitiram apenas eleições indiretas, naquele momento.
Na Argentina, o desastre da Guerra das Malvinas (1983) contra os ingleses, bem
como o fracasso econômico, levou os militares a deixarem o poder no mesmo ano da derrota.
O regime já vinha sendo desgastado pela denúncia das “Mães da Praça de Maio” contra as
arbitrariedades cometidas pelo regime.
No vizinho Paraguai, o regime do ditador Alfredo Stroessner, com mais de 35 anos
de duração, terminou em 1989 quando ele se retirou do governo, exilando-se no Brasil.
74
O Chile, país que representou mais fortemente a tendência autoritária na América
Latina, teve uma abertura gradual ao longo da década de 1990, inclusive implementando
reformas liberais na economia chilena.
Ao longo da década de 1980 e princípios da de 1990, tanto na América Central,
como na América do Sul, os regimes militares, sacudidos pelos baixos índices de crescimento
econômico e pela pressão das sociedades pelo retorno da democracia, foram dando lugar
aos civis no poder.
Entretanto, o retorno dos países latino-americanos à democracia frustrou muito dos
que tinham lutado por ele. As democracias ainda “imaturas” trouxeram experiências infelizes
para alguns países, como a eleição de Fernando Collor de Mello para presidente do Brasil
(impedido pelo Congresso de continuar o governo, em 1992, devido à corrupção), ou de
Alberto Fujimori, no Peru. Eleito presidente em 1990, Fujimori implementou medidas
drásticas que fizeram a inflação despencar de 7,650% em 1990 a 139% em 1991. Entretanto,
enfentava a oposição de setores descontentes com seu governo. Para resolver o impasse,
Fujimori dissolveu Congresso em 5 de abril de 1992, instaurando uma ditadura até 2000.
Afora tais desajustes, previsíveis em regimes democráticos muito jovens, os latinoamericanos enfrentariam a partir de então os desafios mais uma vez vindos de fora: a pressão
do capitalismo neoliberal.
Neoliberalismo e Movimentos Sociais Latino-americanos
Os países latino-americanos, ao findarem-se os regimes ditatoriais, enfrentaram
dificuldades econômicas advindas das crises de endividamento externo que levaram à
decretação de moratórias e ao fracasso dos projetos de desenvolvimento independente. A
década de 1980 ficou conhecida como “a década perdida”, tamanha a crise generalizada
que se abateu sobre a América Latina.
Para salvar suas economias, os latino-americanos recorreram ao Fundo Monetário
Internacional (FMI) para renegociar suas dívidas. Contudo, para amenizar o endividamento
dos países da região, o FMI impôs a subordinação das elites econômicas e políticas aos
ajustes estruturais neoliberais. O receituário reformista ficou conhecido como Consenso de
Washington (1989).
Segundo o Consenso, os latino-americanos deveriam, entre outros pontos, cortar
despesas em políticas sociais e investimentos visando o equilíbrio fiscal, flexibilizar o mercado
financeiro abrindo-o à livre circulação e atuação dos capitais internacionais e
desregulamentar atividades estratégicas – como mineração, prospecção petrolífera etc.
(SILVA, 2006, p. 6).
A ideologia neoliberal prevalecera na década de 1990, pois a conjuntura geopolítica
mundial favorecia a sua primazia. Após o colapso da URSS e dos regimes socialistas do
Leste Europeu, apenas restara uma superpotência no mundo atual: os Estados Unidos da
América. O fracasso da alternativa socialista na Europa difundiu a idéia de que havia apenas
uma via de desenvolvimento histórico: a capitalista. E a ideologia que agora a embasava,
no bojo do processo de globalização, era o neoliberalismo.
75
História da
América II
Fonte: CHASTEEN, 2001 , p. 21.
Para a América Latina, eterna zona de influência norte-americana, o neoliberalismo
significava seguir os passos dos mandamentos dos sábios economistas do centro capitalista
que pareciam ter as respostas para os problemas de subdesenvolvimento regional. Para
se modernizarem, os países latino-americanos tinham que se inserir a qualquer custo na
nova economia globalizada, mesmo que num papel periférico.
Primeiramente (seguindo o Consenso), isto denotava a abertura de suas economias
ao comércio mundial, pela supressão das barreiras alfandegárias que protegiam seus velhos
parques industriais, considerados ineficientes, portanto atrasados. O Brasil ilustra as
conseqüências imediatas do processo: no governo de Fernando Collor de Mello, a
instantânea abertura comercial levou à quebra de certos setores produtivos, como a nascente
indústria automobilística genuinamente nacional (a Gurgel, fabricante de automóveis
brasileira, foi à bancarrota pouco depois). Não houve um planejamento para uma lenta
abertura que permitisse uma adaptação dos setores menos competitivos ao novo cenário
do mercado. O “Deus” do livre mercado, mascarado pela hipocrisia dos países do centro
capitalista (que protegem, sempre que lhes convêm, suas indústrias nacionais), agora ditava
as regras na América Latina.
A abertura dos mercados deu a oportunidade a uma nova enxurrada de investimentos
estrangeiros na região, ao sabor das circunstâncias, dependendo da disponibilidade de
capitais no mercado mundial.
76
Governos inseridos nas tendências neoliberais assumiram a direção dos países latinoamericanos. Na Argentina, Carlos Menem (1989-2001) dolarizou a economia, privatizou
estatais como a YPF que monopolizava a exploração de petróleo, e abriu a economia,
favorecendo a entrada de produtos e investimentos estrangeiros. O resultado da dolarização
foi sentido no princípio da década atual, quando o desastroso processo de encerramento
da dolarização da economia levou ao caos econômico e político, com presidentes se
sucedendo em uma velocidade estonteante.
No Brasil, os governos do presidente Fernando Henrique Cardoso (1994-2002)
tiveram características semelhantes aos de Carlos Menen: o real, criado para controlar a
inflação, foi mantido em equivalência ao dólar até 1998, quando a economia brasileira quase
foi à bancarrota. Para salvar o Brasil do desastre, o governo recorreu a empréstimos junto
ao FMI que em contrapartida determinava o cumprimento de metas enquadradas na lógica
neoliberal. Ademais, assim como na Argentina, o governo FHC privatizou a maioria das
empresas estatais, vendidas em grande parte a grupos econômicos estrangeiros.
As privatizações, que se alastraram por praticamente todos os governos dos anos
noventa, estavam inseridas no conjunto das reformas estruturais. Reformas estas que visam
à redução do peso do Estado na economia (menos regulamentação), deixando à livre
iniciativa do mercado a gestão da mesma. Pretendem desmontar o aparato de seguridade
social quando ele nem se encontra ainda plenamente estabelecido. As discussões sobre
as reformas dos sistemas previdenciários ilustra tal tendência.
No campo do comércio internacional, a tendência foi a formação de blocos comerciais
no continente americano: NAFTA (North America Free Trde Agreement – ou Tratado de
Livre Comércio da América do Norte), MERCOSUL (Mercado Livre do Cone Sul) e, mais
recentemente, a tentativa de criação da ALCA (Área de Livre Comércio das Américas).
O fracasso das políticas neoliberais na América Latina da década de 1990,
percebidos através do baixo crescimento econômico, desemprego, especulação financeira,
endividamento dos Estados etc. fez com que na década seguinte a maré se invertesse. A
resposta dos povos latino-americanos não se fez esperar: eleições de governantes contrários
ao neoliberalismo se tornaram a tendência atual na região, como as de Hugo Chávez (1998),
na Venezuela, de Luís Inácio Lula da Silva (2002), no Brasil, Néstor Kirchner, na Argentina,
Tabaré Vásquez (2004), no Uruguai e Evo Morales (2005), na Bolívia configuram um novo
cenário para a região.
Em dezembro de 2001, os “panelaços” pelas ruas de Buenos Aires derrubaram o
presidente Fernando De la Rúa. O saldo: 32 mortos e cinco presidentes em 12 dias. A
situação somente se acalmou com a eleição de Néstor Kirchner, de tendências nacionalistas
peronistas. Os “panelaços” mostraram a força da sociedade civil contra o receituário
neoliberal, que privatizara as estatais e causara altos níveis de desemprego e
empobrecimento, além de baixo crescimento.
Na Venezuela, o presidente Hugo Cháves leva adiante, apesar das pressões dos
EUA, sua “revolução bolivariana”, de cunho nacionalista e popular. Não obstante a oposição
da elite venezuelana, a população mais carente, maioria absoluta na pobre Venezuela, apóia
o presidente.
Além de governos eleitos, os movimentos sociais parecem ter se revigorado em
fins da década de 1990 e emergido com força na década atual, pressionando seus
governantes, derrubando outros, mantendo viva a chama da luta por igualdade social e
desenvolvimento autônomo:
Os movimentos sociais que advêm de meados da década de 1990 e
que se intensificam em movimentos de insurgência revelariam a
crescente resistência às políticas neoliberais. O fracasso econômico
neoliberal gerou novos atores sociais (piqueteiros, pequenos agricultores
endividados no México, os jovens e diversos movimentos de identidade,
gênero, opção sexual, etnia, língua), além dos movimentos
77
História da
América II
“alterglobalização”. Canalizou forças já existentes para um projeto
nacional, camponeses brasileiros e mexicanos, indígenas do Equador,
Bolívia e partes do México e Mesoamérica. Além de trazer para cena
grupos e setores sociais das chamadas “classes médias”, ao exemplo
da Argentina (caçaroleiros), os médicos e trabalhadores da saúde em
El Salvador e os grupos mobilizados. (SILVA, 2006, p. 12)
No México, em janeiro de 1994, teve início a rebelião zapatista empreendida pelo
EZLN (Exército Zapatista de Libertação Nacional), tendo como líder o subcomandante
Marcos. O EZLN é herdeiro de cinco séculos de resistência indígena à opressão e
exploração, vislumbradas desde conquistadores aos neoliberais. A imagem de Zapata, líder
dos despossuídos indígenas na Revolução Mexicana, ilustra as lutas dos povos da região
de Chiapas contra a marginalização imposta através do tempo.
Cocaleiros da Bolívia
Subcomandante Marcos
Na Bolívia, em meados da década de 1990, organizara-se o movimento dos indígenas
plantadores de coca, defensores de um costume milenar de mascar a coca – símbolo de
identidade, bem distinto da cocaína – que dera nome ao movimento: os cocaleros. Sem
condições de registrar um partido, os cocaleros, encabeçados por Evo Morales, assumiram
a sigla já registrada do MAS (Movimento ao Socialismo) para institucionalizar sua
organização. Em 2005, Evo Morales, após a crise política que levou à derrubada do
presidente Gonzalo Sanches de Lozada pelas massas que desejam a nacionalização da
maior riqueza do país, o gás, foi eleito presidente da Bolívia. Primeiro índio a governar o
mais indígena dos países latino-americanos, Evo se comprometeu a defender os colaleros
e proceder à nacionalização do gás boliviano, processo em curso atualmente.
Movimentos como o Zapatismo, no México e o Cocalero, na Bolívia, revivem um
passado de lutas indígenas contra a hegemonia opressora branca interna e externa, em
defesa de seus costumes e da posse das terras que milênios antes dos europeus tocarem
o continente americano já eram suas.
Texto Complementar
“O TERCEIRO LADRÃO: O TIO SAM
As condições no ponto de partida
Os Estados Unidos, vizinhos que são da América Latina, parecem colocados pela
natureza numa situação geográfica predestinada para exercerem a sua influência sobre as
repúblicas latino-americanas. As duas Américas, libertas na mesma altura do jugo colonial,
e tendo conhecido os mesmos males da luta pela Independência , com vinte anos de
78
intervalo, deram por um momento a impressão de se aproximarem nas primeiras décadas
do século XIX.
Profundamente diferentes pela sua cultura, ibérica e católica de um lado, anglosaxônica e protestante do outro, e infinitamente mais distantes do que as aparências indicam,
as duas frações do Continente viveram, durante os séculos da sua história colonial, fechadas
nos tabus do Pacto colonial, na ignorância mais completa uma da outra. No início do século
XIX, a ignorância dos EUA em face dos seus vizinhos do sul é total; pior ainda, toda uma
black legend (legenda negra) gela antecipadamente as simpatias, existe todo um complexo
de superioridade, de ignorância e de desprezo. [...]
•
As Modalidades da Expansão Ianque
Com o apetite despertado por esse primeiro êxito, os Estados Unidos esforçaramse por estabelecer o seu domínio sobre o conjunto do Mediterrâneo americano. É a política
do big stick. A sorte de Cuba não passara de um pretexto. Em junho de 1901, a emenda
Platt, votada pelo Senado, transformou Cuba num protetorado de fato dos EUA, Haiti e São
Domingos sofreram o mesmo destino em 1916 e 1924. Os Estados Unidos, que haviam
comprado em 1903 os trabalhos iniciados no Istmo do Panamá pela Companhia francesa
Lesseps, conseguiram mediante um esforço imenso, cortar o Istmo, abrindo através da
América Latina uma grande via de comunicação mundial. A proteção ao Canal serviu de
pretexto para uma intervenção. A pequena República panamenha foi criada em 1903 para
as necessidades da causa, na seqüência de uma revolta habilmente maquinada contra a
Colômbia. E teve ao logo de pagar tributo pelo nascimento, cedendo aos Estados Unidos
os seus direitos de soberania sobre uma faixa de território de 10 milhas, de ambos os lados
do Canal. Intervenções repetidas na política interna das pequenas repúblicas da América
Central e, em 1914, intervenção armada no próprio México, foram alguns aspectos da política
de intervenção brutal do jovem imperialismo ianque nos países ribeirinhos do Mediterrâneo
americano onde, já antes de 1914, o comércio e os capitais norte-americanos
desempenhavam um papel de primeiro plano. [...]
Com a Primeira Guerra Mundial e o sério golpe que ela representou para a economia
européia, a parte dos Estados Unidos na América Latina elevou-se. No volume total das
trocas com os diferentes Estados da América Latina, assumem, muito adiante da Inglaterra,
o primeiro lugar: 38,7% das vendas em 1929 contra 14,9% da Grã-Bretanha, 36,1% contra
12,2% em 1938. No que se refere às compras, nos mesmos anos, os algarismos respectivos
para os dois países – escolhe-se a Inglaterra como termômetro da Europa – permanecem
bem favoráveis aos Estados Unidos: 34% contra 18% em 1929 e 31,7% contra 16,3% em
1938. Nas vésperas da depressão, o total dos capitais ianques investidos na América Latina
ascendia a US$ 4.050.000.000, ou seja, 37% do total dos investimentos dos Estados Unidos
no estrangeiro, quase tanto como a própria Grã-Bretanha.
A tendência que se esboçara durante a Primeira Guerra Mundial acentuou-se no
decurso da segunda. Tornou-se dramática sob todos os pontos de vista a situação da
América Latina, sobretudo da Argentina, que antes de 39 vivia ainda em grande parte das
importações da Europa. O bloqueio inglês, depois anglo-americano, interrompeu
completamente as relações comerciais entre a América Latina e a Alemanha a qual, nos
últimos anos do período compreendido entre as duas guerras, desempenhava um papel
comparável ao da Inglaterra. As necessidades da guerra total e as terríveis destruições
feitas à frota comercial britânica pela guerra submarina paralisaram quase completamente
79
as exportações inglesas para a Argentina: “o tráfego de Buenos Aires sofreu
uma redução de 2/3 de 1939 a 1942”. A Argentina, privada do carvão inglês,
utiliza o milho e o trigo como combustível. No decurso desses anos, por toda
História da parte, faltam têxteis e máquinas. Os EUA, na medida do possível, assumiram
América II as posições definitivas. As necessidades da economia de guerra vieram
aumentar consideravelmente a sua carteira na América Latina. Para
encontrarem as matérias-primas necessárias à sua economia de guerra,
fizeram um esforço considerável nas minas sul-americanas. A produção de estanho da Bolívia
duplicou para suprir a da Malásia britânica ocupada pelos japoneses. A produção de
tungstênio também aumentou. E no Brasil foram investidos capitais nas plantações de
seringueiras ...
Da mesma forma que os Estados Unidos são incontestavelmente os melhores clientes
e os mais importantes vendedores da América Latina, souberam tornar-se os seus
banqueiros. Situação perigosa essa, com o andar do tempo.”
CHAUNU, Pierre. História da América Latina. São Paulo: DIFEL, 1983, pp. 113120.
História através de Documentos
O IMPERIALISMO
“Durante a presidência de Theodore Roosevelt (1901-1909) a Doutrina Monroe
adquiriu um objetivo caro e preciso que não conseguia esconder mais a finalidade
imperialista. A interpretação dada, mais conhecida como Corolário Roosevelt, não passava
de uma pitoresca doutrina que permitia castigar as repúblicas latino-americanas por seu
mau comportamento. O próprio presidente afirmou: “Tudo o que este país deseja é ver que
nos países vizinhos reinam a estabilidade, a ordem e a prosperidade. Todo Estado cujo
povo se conduz bem pode contar com nossa cordial amizade. Se uma nação se mostrar
capaz de atuar com eficiência e decência do ponto de vista social e político, se mantém a
ordem pública e cumpre com suas obrigações, não deverá temer intervenções dos Estados
Unidos. No entanto, uma desordem crônica ou uma impotência resultante do relaxamento
geral dos laços da sociedade poderiam exigir na América, como em qualquer outra parte, a
intervenção de uma nação civilizada. No hemisfério ocidental, a Doutrina Monroe pode obrigar
os Estados Unidos, embora contra a vontade, a exercer, em casos de flagrante desordem
ou de impotência, um poder de polícia internacional. (...)”
O Corolário Roosevelt inaugurava a política do big Stick, isto é, como aconselhava
o próprio presidente, “falar manso com um garrote na mão”. Os governos latino-americanos
não apenas deveriam cumprir religiosamente suas obrigações financeiras, mas fazer uma
política que protegesse os interesses econômicos das empresas norte-americanas. Como
isto nem sempre era possível, a política do garrote se abateu devastadoramente sobre toda
a área do Caribe e ameaçou todo o continente.
Entre 1900 e 1933, os Estados Unidos intervieram militarmente quarenta vezes,
além de fazerem pressões diplomáticas, chantagem econômica, advertências e ameaças
dissimuladas.
Estava nascendo uma nova potência imperialista, brandindo o garrote em uma
das mãos e os dólares na outra. O próprio secretário de Estado, John Hay, declarou com
otimismo: “A nação devedora converteu-se em principal credor. O centro financeiro do mundo,
80
que precisou de milhares de anos para viajar do Eufrates para o Tamisa e o Sena, dir-se-ia
que vem ao Hudson entre o amanhecer e o crepúsculo”.
Nada pode ser mais patético e convincente que as famosas declarações do
major-general Smedley D. Butler, publicadas em uma revista americana em 1935:
Dediquei trinta e três anos e quatro meses ao serviço ativo de nossa
força militar mais ágil: a Infantaria de Marinha. Ascendi do posto de
segundo-tenente até o posto de major-general. Durante todo este período
dediquei a maior parte do meu tempo a servir aos interesses dos Grandes
Negócios, a Wall Street e aos banqueiros. Em resumo, fui um pistoleiro
às ordens do capitalismo...
Contribuí para converter o México e especialmente Tampico em lugar
seguro para os interesses petrolíferos dos norte-americanos em 1914.
Ajudei o Haiti e Cuba a se tornarem um lugar seguro para os rapazes do
National City Bank efetuarem suas cobranças... Ajudei também a
Nicarágua a cumprir seus compromissos com a casa bancária
internacional de Brow Brothers em 1919-1922. Em 1916, facilitei os
interesses açucareiros norte-americanos na República Dominicana.
Contribuí para que Honduras seguisse uma política “apropriada” para
as companhias bananeiras norte-americanas em 1903. Em 1927, servi
na China para que a Standard Oil seguisse seu caminho sem ser
perturbada.
Durante todos esses anos desfrutei, como disseram os “rapazes” de
magníficas prebendas. Fui premiado com honrarias, medalhas e
promoções. Olhando para trás, penso que até poderia ter dado alguns
conselhos para Al Capanone. Ele, no máximo, pôde operar seus
negócios sujos em três distritos da cidade de Chicago; nós marines
operávamos em três continentes.”
Bruit, H. O Imperialismo. Campinas/São Paulo; Edunicamp/Atual, 1983, pp. 48, 501. In: PINSK, Jaime [et al.] História da América através de textos. São Paulo: Contexto,
2001, pp. 96-97.
Atividades
1.
Complementares
Faça uma análise da mentalidade norte-americana em relação aos latino-americanos.
81
2.
Disserte sobre a influência dos EUA na ocorrência dos regimes militares
História da na América Latina.
América II
3.
Discuta a etapa neoliberal na região latino-americana, destacando suas conseqüências
para a atualidade.
82
Atividade
Orientada
Caro aluno,
Chegou a hora de iniciarmos a fixação do conteúdo estudado ao longo
da disciplina. As atividades propostas, de cunho avaliativo, devem ser
realizadas com atenção e zelo, para que efetivamente cumpram os objetivos
para as quais foram formuladas.
Etapa
1
Etapa
2
Etapa
3
Faça um quadro comparativo entre a colonização inglesa na América do
Norte e as colonizações ibéricas na América Latina, destacando os aspectos culturais,
administrativos e econômicos que permitiram desenvolvimentos distintos em ambas as
regiões após seus processos de independência. Esta atividade deverá ser feita em grupo.
Elabore um texto dissertativo (mínimo de 40 linhas) sobre o processo
histórico latino-americano desde a independência até a difusão dos movimentos
nacionalistas da primeira metade do século XX. Esta atividade deverá ser feita
individualmente.
Faça uma apresentação (seminário) sobre as relações entre os Estados
Unidos e a América Latina nos séculos XIX e XX, destacando as conseqüências destas
para o desenvolvimento sócio-econômico e político latino-americano.
83
Glossário
História da
América II
Caudilho – Forte líder político que conta com a lealdade pessoal de muitos
seguidores, sendo geralmente um latifundiário ou militar.
Guano – Resíduo das fezes de pássaros depositado ao longo do tempo utilizado
na fertilização do solo.
Huguenotes – Grupo protestante francês de orientação calvinista.
Nativismo – Pensamento político que opunha aqueles de nascimento nativo aos
nascidos em outros lugares, sendo uma fase inicial do nacionalismo.
Patrimonialismo – Formas de pensar daqueles que confundem o público com o
privado.
Positivismo – Doutrina oriunda das idéias do filósofo francês Augusto Comte, o
positivismo preconizava a existência de regimes autoritários responsáveis pela manutenção
da ordem, bem como um cientificismo tecnocrático para se atingir o progresso.
Puritanos – Grupo religioso protestante presbiteriano rígido que prega a pureza
religiosa e de costumes.
Quakers – Grupo religioso de tradição protestante, criado em 1652, pelo inglês
George Fox. Originalmente, chamavam-se Sociedade dos Amigos. Os membros desta
sociedade, ridicularizados com o nome de quakers, ou tremedores, rejeitam qualquer
organização clerical, para viver, no recolhimento, a apureza moral e a prática ativa do
pacifismo, da solidariedade e da filantropia.
84
Referências
Bibliográficas
AQUINO, Rubim Santos Leão de. História das sociedades americanas. Rio de Janeiro:
Record, 2000.
BANDEIRA, Luiz Alberto Moniz. O expansionismo brasileiro e a formação dos estados
na Bacia do Prata: da colonização à guerra da tríplice aliança. São Paulo: Ensaio;
Brasília, DF: Ed. da UNB, 1995.
_________. De Martí a Fidel: A Revolução Cubana e a
América Latina. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998.
BELLOTO, Manoel Lelo; CORRÊA, Maria Martinez. América Latina de colonização
espanhola. São Paulo: HUCITEC, 1991.
BOORSTIN, Daniel J. Os Americanos: a Experiência Colonial. Lisboa: Gradiva, 1997.
BROWN, Dee. Enterrem meu coração na curva do rio. São Paulo: Círculo do
Livro; Melhoramentos, s/d,
CHASTEEN, John Charles. América Latina: uma história de sangue e fogo. Rio de
Janeiro: Campus, 2001.
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História da
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FTC - EaD
Faculdade de Tecnologia e Ciências - Educação a Distância
Democratizando a Educação.
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