Revista da
Escola da Magistratura
do Distrito Federal
ESCOLA DE MAGISTRATURA
DISTRITO FEDERAL
Nº 13 - 2011
ASSOCIAÇÃO DOS MAGISTRADOS DO DISTRITO FEDERAL
REVISTA DA ESCOLA DA
MAGISTRATURA
DO DISTRITO FEDERAL
Associação dos Magistrados do Distrito Federal - AMAGIS/DF
Fórum Desembargador Milton Sebastião Barbosa
Praça Municipal, Lote 1, Bloco B, 10º Andar, Ala “C” - Brasília-DF
CEP: 70094-900 Fones: (61) 3103-7548
Escola da Magistratura do Distrito Federal
ISSN – 1516-8514
Escola da Magistratura do Distrito Federal
Revista da Escola da Magistratura
do Distrito Federal
NÚMERO 13 - 2011
BRASÍLIA
2011
Associação dos Magistrados do Distrito Federal - AMAGIS/DF
Presidente
Juiz GILMAR TADEU SORIANO
Escola da Magistratura do Distrito Federal - ESMA/DF
Diretora-Geral
Desembargadora ANA MARIA DUARTE AMARANTE BRITO
Coordenador da Revista
Juiz MARCIO EVANGELISTA FERREIRA DA SILVA
Conselho
Juiz GILMAR TADEU SORIANO
Desembargadora ANA MARIA DUARTE AMARANTE BRITO
Juíza CARLA PATRÍCIA FRADE NOGUEIRA LOPES
Juiz RENATO CASTRO TEIXEIRA MARTINS
Juiz MARCIO EVANGELISTA FERREIRA DA SILVA
Coordenadores
Juíza CARLA PATRÍCIA FRADE NOGUEIRA LOPES
Juiz RENATO CASTRO TEIXEIRA MARTINS
Revisão e Formatação
Serviço de Revista e Ementário do TJDFT
Os artigos jurídicos aqui publicados são da responsabilidade de seus respectivos autores, resguardando-se a pluralidade de pensamento, e os conceitos
emitidos não expressam a opinião dos editores.
Composição Plena do Tribunal de Justiça do Distrito Federal
e dos Territórios - ordem de antiguidade
DES. LÉCIO RESENDE DA SILVA
DES. OTÁVIO AUGUSTO BARBOSA
DES. GETÚLIO VARGAS DE MORAES OLIVEIRA
DES. JOÃO DE ASSIS MARIOSI
DES. ROMÃO CÍCERO DE OLIVEIRA
DES. DÁCIO VIEIRA
DES. MARIO MACHADO VIEIRA NETTO
DES. SÉRGIO BITTENCOURT
DES. LECIR MANOEL DA LUZ
DES. ROMEU GONZAGA NEIVA
DESA. CARMELITA INDIANO AMERICANO DO BRASIL DIAS
DES. JOSÉ CRUZ MACEDO
DES. WALDIR LEÔNCIO CORDEIRO LOPES JÚNIOR
DES. HUMBERTO ADJUTO ULHÔA
DES. JOSÉ JACINTO COSTA CARVALHO
DESA. SANDRA DE SANTIS MENDES DE FARIAS MELLO
DESA. ANA MARIA DUARTE AMARANTE BRITO
DES. JAIR OLIVEIRA SOARES
DESA. VERA LÚCIA ANDRIGHI
DES. MÁRIO-ZAM BELMIRO ROSA
DES. FLAVIO RENATO JAQUET ROSTIROLA
DESA. NÍDIA CORRÊA LIMA
DES. GEORGE LOPES LEITE
DES. ANGELO CANDUCCI PASSARELI
DES. JOSÉ DIVINO DE OLIVEIRA
DES. ROBERVAL CASEMIRO BELINATI
DES. SILVANIO BARBOSA DOS SANTOS
DES. SÉRGIO XAVIER DE SOUZA ROCHA
DES. ARNOLDO CAMANHO DE ASSIS
DES. FERNANDO ANTONIO HABIBE PEREIRA
DES. JOÃO TIMÓTEO DE OLIVEIRA
DES. ANTONINHO LOPES
DES. JOÃO EGMONT LEÔNCIO LOPES
DES. LUCIANO MOREIRA VASCONCELLOS
DES. JOSÉ CARLOS SOUZA E AVILA
DES. TEÓFILO RODRIGUES CAETANO NETO
Sumário
Apresentação
Juiz Marcio Evangelista Ferreira da Silva - Coordenador da Revista da
ESMA/DF...........................................................................................................9
Evolução do Conceito de Família
Juíza Ana Maria Gonçalves Louzada................................................................11
A Sucessão Legítima do Cônjuge no Novo Código Civil
Juiz Wagner Junqueira Prado............................................................................25
A Inconstitucionalidade do Art. 273 do Código Penal
Juiz Marcio Evangelista Ferreira da Silva ........................................................39
Quem tem Medo do Racismo?
Juíza Carla Patrícia Frade Nogueira Lopes........................................................45
Incidente de Julgamento de Demandas Repetitivas no PLS 166: uma Apresentação
da Proposta no Novo CPC
Juíza Marília de Ávila e Silva Sampaio ............................................................55
O Juiz-Administrador
Juíza Oriana Piske de Azevedo Barbosa...........................................................61
O Dever de Informar nas Relações de Consumo
Juiz Atalá Correia..............................................................................................79
Partidos e Coligações: a Sucessão dos Suplentes
Juiz Rodrigo Cordeiro de Souza Rodrigues.......................................................97
Sentença Cível em Interdito Proibitório e Manutenção de Posse
Juíza Ana Maria Ferreira da Silva...................................................................103
Drawback segundo a Jurisprudência do STJ
José Roberto da Silva - Ex-aluno da ESMA/DF.............................................115
Colisão de Direitos Fundamentais
Alessandra Lopes da Silva - Ex-aluna da ESMA/DF......................................167
O Contrato e o Tempo: um Suposto Embate Principiológico
Rui Eduardo Silva de Oliveira Pamplona - Ex-aluno da ESMA/DF............. 207
O Alcance da Autonomia Universitária à Luz do Artigo 207 da Constituição
Federal de 1988
Jaqueline Santos Silva - Ex-aluna da ESMA/DF ...........................................245
A Comunicação Social sob o Enfoque da Constituição Federal de 1988
Mariana Caetano da Silva Souza Schwindt - Ex-aluna da ESMA/DF ..........279
Fertilização in Vitro e suas Implicações no Ordenamento Jurídico Brasileiro
Eduardo Navarro Pereira - Ex-aluno da ESMA/DF.......................................287
A Obrigação como Processo: um Estudo sobre a Obra de Clóvis do Couto e Silva
Daphne de Carvalho Pereira Nunes - Ex-aluna da ESMA/DF......................355
A Responsabilidade Criminal nas Atividades Desportivas: particularidades
em Relação à Prática de Discriminação Racial no Futebol
Bianca Fernandes Pieratti - Ex-aluna da ESMA/DF......................................371
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Revista da Escola da Magistratura - nº 13
Apresentação
Juiz Marcio Evangelista Ferreira da Silva
Coordenador da Revista da Escola da Magistratura do Distrito Federal – ESMA/DF
A
Escola da Magistratura do Distrito Federal – com muita satisfação – apresenta a
toda comunidade jurídica mais uma edição de sua revista, mantendo a tradição
de ser um veículo das ideias de magistrados, professores e ex-alunos.
A maior novidade é o abandono das edições impressas para a versão em CD.
Tal alteração atende a orientação mundial de respeito ao meio ambiente – evitar o
gasto de papel.
Referida novidade além de preservar o meio ambiente e inserir a escola na era
da modernidade, também faz com que a periodicidade da revista seja reduzida, pois
suprimido o tempo gasto com impressão de versão impressa.
No mais, após a última edição, várias foram as mudanças na Esma/DF, tanto no
espaço físico como no currículo dos cursos oferecidos.
Hoje há uma estrutura física a altura da história da Esma-DF, pois contamos com
três salas confortáveis para as aulas, sala de estudo e secretaria para melhor atender os
alunos, palestrantes e professores.
A estrutura do curso também sofreu alterações em atendimento a exigências
do Conselho Nacional de Justiça – Resolução n.º 75 – e hoje aos alunos são oferecidas
aulas de Filosofia, Sociologia e Psicologia Jurídica.
A Revista, como de costume, abriu espaço para que todos enviassem seus artigos,
sendo que muitos foram recebidos e pré-selecionados. Após rigorosa escolha temática,
a Esma/DF apresenta artigos que são o resultado da reflexão e do pensamento atual de
ex-alunos, professores e magistrados.
Variados e atuais são os temas, trazendo ao leitor um leque amplo de assuntos
para refletir, cumprindo, assim, a Esma/DF, seu mister, qual seja, fazer com que chegue
às mãos de todos os operadores do direito um instrumento capaz de auxiliá-lo no desempenho da tão nobre profissão que é aplicar o direito.
Boa leitura!
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
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Revista da Escola da Magistratura - nº 13
Evolução do Conceito de Família
Ana Maria Gonçalves Louzada
Juíza
“Não é a cópula em si,
mas o afeto,
que constitui o matrimônio.”
ULPIANO
Breve panorama histórico:
A
humanidade sempre se portou e se mostrou de forma aglomerada, tendo em
vista a necessidade do homem de viver em comunidade. É psicologicamente
difícil ao ser humano a vida segregada, sem compartilhamentos, sem trocas. E
a partir desta junção de pessoas começaram a se formar as famílias. A ideia de família
surgiu muito antes do Direito, dos códigos, da ingerência do Estado e da Igreja na vida
das pessoas.
Em verdade, família é um caleidoscópio de relações que muda no tempo de sua
constituição e consolidação em cada geração, que se transforma com a evolução da
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cultura, de geração para geração.
Na Antiguidade, com o advento do Código de Hammurabi, o sistema familiar da
Babilônia passou a ser por lei patriarcal e o casamento monogâmico, embora admitia-se
o concubinato. Esta aparente discrepância era resolvida pelo fato de uma concubina
jamais ter o status ou os mesmos direitos da esposa. Ademais, o casamento dito legítimo
só era válido mediante contrato. Naquela época, havia a possibilidade de casamentos
entre diferentes camadas sociais, e o código regulava especificamente a herança dos
filhos nascidos deste relacionamento. Também admitia-se o divórcio, onde o marido
podia repudiar a mulher nos casos de recusa ou negligência em “seus deveres de esposa e
dona-de-casa”. Qualquer dos cônjuges poderia repudiar o outro por mau procedimento,
mas neste caso a mulher deveria ter conduta ilibada. No respeitante ao homem era,
no máximo, cúmplice. Quando pegos, os adúlteros pagavam com a vida, entretanto o
Código previa o perdão do marido.
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
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O amor entre os homens era plenamente aceito entre os povos antigos, sendo,
contudo, valorizado apenas o “polo ativo” da relação. Isso se explica porque o machismo,
já naquela época, vislumbrava o ato sexual ativo como a postura masculina, sendo
o ato sexual passivo tido como a feminina. Em outras palavras, não era analisado o
sexo biológico para a qual o homem direcionava seu amor, mas o papel sexual que ele
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desempenhava. Com relação ao amor entre mulheres, não há dados esclarecedores,
uma vez que sua sexualidade era ignorada.
Já no direito hebraico não havia qualquer menção à palavra matrimônio, pois
este era um assunto particular entre duas famílias. Ressaltamos que todos os povos
da Antiguidade admitiam o divórcio, que começou a ser proibido somente após o
advento do cristianismo. Contudo, na legislação mosaica, somente os homens podiam
divorciar-se, não cabendo às mulheres tal iniciativa. Além disso, deveria ocorrer algo
vergonhoso na esposa para que o marido pudesse repudiá-la. Também admitia-se o
concubinato.
Com relação ao Código de Manu, este reiterou explicitamente a incapacidade
da mulher de sozinha se reger. Apesar de também admitir o divórcio, a separação só
poderia ocorrer caso a deficiência fosse da esposa, vale dizer, era o marido quem decidia
sobre a mantença ou não do casamento. A fidelidade no casamento era exigida por lei.
Geralmente a pena de morte era aplicada no adultério.
No Direito Romano, a palavra família podia ser aplicada tanto às coisas como
às pessoas. Aplicada às coisas, refere-se ao conjunto de um patrimônio. No respeitante
às pessoas, pressupõe parentesco, podendo ter sentido estritamente jurídico, chamado
agnatio, e outro biológico, a cognatio. O parentesco jurídico englobava todos sob o poder
de um mesmo pater famílias, sendo transmitido somente pela linha paterna. Durante a
evolução do Direito Romano, estes dois tipos de parentesco foram, muitas vezes, postos
em contraposição, o que gerou juridicamente a prevalência do princípio do parentesco
consanguíneo sobre a agnação.
Os romanos distinguiam duas espécies de casamento: o cum manu e o sine manu.
No primeiro caso, a mulher saía da dependência do pater famílias para a do marido
e do pater famílias da família do marido. O casamento sine manu não oferecia esta
possibilidade de sujeição, podendo a mulher continuar sob o poder de seu próprio pater
famílias, conservando o direito sucessório de sua família de origem. Para os romanos,
o casamento era um ato consensual de contínua convivência. Era um fato e não um
estado de direito.
Por outro lado, o casamento em Roma jamais foi indissolúvel, e desde o direito
arcaico romano já previa o divórcio. No início, o divórcio somente podia ocorrer por
vontade do marido. Com o passar do tempo, esta possibilidade foi estendida também
às mulheres.
Na Idade Média o Direito Canônico passou a ter relevante importância na
sociedade, tendo em vista o domínio da Igreja neste período. Como o poder laico
enfraquecia pelo declínio do poder real, em consequência do feudalismo, a jurisdição
eclesiástica aumentava seu poder também em relação aos leigos. A Igreja acabou sendo
a única a julgar assuntos relativos a casamento, legitimidade dos filhos, divórcio, etc.
O casamento deixou de ser contrato para ser considerado sacramento. Assim, como a
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Igreja só aceitava o sexo dentro do casamento e com finalidade de procriação, tudo o
que se afastasse desta regra era tido como contrário a Deus.
O Direito Islâmico tem na família a sua base de formação da sociedade. É
o casamento que dá a concessão social para a maternidade e paternidade, sendo
ele essencial, pois os muçulmanos só atingem seu apogeu depois de terem filhos. O
casamento possui duas fases: primeiramente se assina um contrato entre o marido e
o representante legal da mulher, sendo este seu pai ou representante masculino mais
próximo. Contudo, para sua validade é imprescindível seu consentimento, bastando,
para isso, seu silêncio. Após assinaturas e consentimento, ambos são considerados
casados e a ruptura do contrato se iguala ao divórcio. Destacamos que o casamento
só se completa após a noite nupcial, tendo sido o casamento regulado objetivamente
no Alcorão. As famílias poderiam intervir diretamente no matrimônio, pois ele não
era tido somente como união entre marido e mulher, mas entre duas famílias. Há a
possibilidade de o homem casar-se com várias mulheres, podendo também ter várias
concubinas. Em suma, o casamento é considerado como sendo o único objetivo na
vida de uma mulher! Elas devem manter o pudor por completo, não exibir seu corpo,
não olhar as pessoas nos olhos, devendo usar véu em público. Quanto ao divórcio, a
mulher só pode ter iniciativa se houver no contrato este direito e se isso for permitido
pela escola jurídica do lugar onde vive, não havendo qualquer ressalva em relação
ao homem. Com o divórcio, se o marido quiser, poderá ter sua mulher de volta caso
ela ainda esteja livre.
A Revolução Francesa foi um marco, um divisor de águas, na busca pela igualdade
entre homens e mulheres, uma vez que estas últimas ainda eram consideradas incapazes.
Contudo, ainda que se buscasse a reversão desta cruel discriminação, o Código Civil de
Napoleão reforçou o poder patriarcal, outorgando ao pai maiores direitos sobre os filhos.
Também ressaltou que o poder patriarcal é estendido à esposa, que continua sob seu
jugo. O divórcio é admitido, sendo sempre o adultério feminino considerado como uma
de suas causas, sendo aceito somente o masculino se o marido levar a concubina para
dentro da residência. Também há diferenciação quanto aos filhos, sendo considerados
filhos legítimos e ilegítimos, esses últimos nascidos fora do casamento. Sua legitimação
só poderia ocorrer com o casamento dos pais. Caso o pai já fosse casado, poderia
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reconhecê-lo, mas este não teria os mesmos direitos do filho legítimo .
Assim, mesmo a visão iluminista, que via na liberdade sexual uma forma de atingir
o progresso, a ordem e a felicidade, condenou com veemência o amor homoafetivo.
Acreditava-se que os homens tinham apenas uma limitada quantidade de sêmen em
seu corpo. Assim, não é à toa que esse período da história fez que a sexualidade nãoheterosexual passasse a ser ainda mais condenada, pois se entendia que ela “gastava” a
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semente da vida de forma inútil, ou seja, não-procriativa.
No século XIX passou-se a se afastar da dogmática religiosa, dirigindo-se para
um estudo científico acerca da homossexualidade. Observa-se que primeiramente
houve a definição da homossexualidade como doença, sem qualquer dado concreto.
Isso fez com que tratamentos desumanos fossem abertamente utilizados, sem nenhuma
punição estatal. Terapias com choque convulsivos, lobotomia e terapias por aversão
foram largamente utilizadas. Queriam, a todo custo descobrir uma forma de reverter
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a homossexualidade. Obviamente que não conseguiram – pois não se cura algo que
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não é patológico.
Somente ao final do século XX é que a ciência passou a aceitar a homossexualidade
como forma de orientação sexual, e não mais como doença.
Na pós-modernidade, muito embora ainda possamos enxergar algum ranço
preconceituoso, já é possível aceitarmos a família como sendo um conjunto de indivíduos
unidos por laços de afetos.
Foi a Dinamarca quem primeiramente regulou as uniões homoafetivas, quando
autorizou seu registro com os mesmo efeitos do casamento (com exceção apenas ao
direito de adotar), nos idos de 1989. Em 1993 foi a vez de a Noruega permitir o registro
destas uniões. No ano de 1995, a Suécia pronunciou-se sobre o tema, concedendo os
mesmos direitos que anteriormente haviam sido deferidos pela Dinamarca. Em 1996 a
Islândia oficializou o registro das uniões homossexuais. Neste mesmo ano, a África do
Sul proibiu constitucionalmente a discriminação por sexo. A França, através do Pacto
Civil de Solidariedade (Lei n. 99.944/99) garantiu o direito à sucessão, imigração e
declaração de renda conjunta. Em 1999 a Inglaterra reconheceu o status de família aos
casais homossexuais. A Argentina, notadamente Buenos Aires, no ano de 2003 passou
a autorizar uniões civis entre homossexuais, acompanhada pela Cidade do México e o
Uruguai no ano de 2007.
Muito embora já haja o reconhecimento de uniões homoafetivas em diversos
países desde 1989, somente foi possível este reconhecimento em relação ao casamento
civil no ano de 2001, na Holanda. A seguir, no ano de 2003, o mesmo aconteceu na
Bélgica. Em 2005, também a Espanha, o Canadá e a Grã-Bretanha passaram a admiti-lo. Nos Estados Unidos, o estado de Massachusetts autoriza o casamento de pessoas
do mesmo sexo desde 2004. Em 2006 foi a vez de a África do Sul. No ano de 2008 a
Noruega veio a se juntar ao rol dos países que admitem casamento entre homossexuais.
Hoje, a Argentina é o primeiro país latino-americano a reconhecer o casamento entre
homossexuais em 2010.
Para ilustrar, destacamos uma decisão da Suprema Corte do Estado de
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Massachusetts dos Estados Unidos
“O casamento é uma instituição social vital. O compromisso exclusivo de duas pessoas uma à outra nutre amor e mútua assistência;
ele traz estabilidade à nossa sociedade. (...) Uma pessoa que entra
em uma união íntima e exclusiva com outra do mesmo sexo e tem
acesso barrado às proteções, benefícios e obrigações do casamento
civil é arbitrariamente privada do acesso a uma das instituições mais
estimadas e compensatórias da nossa comunidade. Essa exclusão é
incompatível com os princípios constitucionais de respeito à autonomia individual e à igualdade perante a lei”.
Em sentido oposto encontra-se o direito no Irã, onde além de ser proibida a
relação entre pessoas do mesmo sexo, ainda há a punição com pena de morte.
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Note-se, que o que se repudia é o objeto de desejo da pessoa homossexual,
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demonstrando um preconceito desmedido e vergonhoso.
Em relação às características intrínsecas das diversas modalidades de família,
que vêm se descortinando, podemos entender que convivem simultaneamente a família
casamentária, a família formada por união estável, a família concubinária, a família
monoparental, a família homossexual e a família formada nos estados intersexuais,
que embora representem um campo farto de discussões no direito brasileiro, no plano
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internacional, fincam-se cada vez mais garantidas.
Tal digressão mostra-se necessária para ressaltar que o Direito veio a subsidiar
os anseios da sociedade em cada momento histórico. Assim, com o decorrer do tempo,
com a evolução do pensamento humano, com a quebra de paradigmas, não cabe mais
ao legislador escudar-se atrás do véu da hipocrisia e deixar de outorgar direitos aos
casais homoafetivos. É certo que a homossexualidade sempre existiu e que em épocas
passadas os casais homoafetivos não possuíam direitos, tendo em vista que a sociedade
ainda mostrava-se avessa em aceitar tal condição, talvez por imposição da Igreja que
insiste ainda em dizer que se cuida de pecado.
Dada a dependência e o desamparo emocional que é da natureza humana, a
finalidade da família, embora sofra variações históricas, mantém-se essencialmente como
instituição estruturante do indivíduo em função das diferenças entre os elementos que
a compõem e que determinam lugares que este ocupa e funções diferentes que exerce,
9
de acordo com o ciclo vital.
A família é muito mais que a um casamento estabelecido entre um homem e
uma mulher. Família é comunhão de afetos, troca de amparo e responsabilidade.
Conceito de Família no Direito Brasileiro:
A evolução legislativa demonstra as necessidades mais pungentes da sociedade
em cada época. Nota-se que a Constituição de 1824 não fez qualquer menção relevante
à família, havendo como determinante, somente o casamento religioso. Naquele tempo,
a Igreja assumiu um caráter delineador da moralidade, não aceitando qualquer outra
forma de união que não aquela por ela definida.
Assim, até 1891, as pessoas apenas podiam se unir para formação da família,
através do casamento religioso. A partir de então, passou-se a admitir o casamento
civil indissolúvel. A primeira constituição a se preocupar em delinear a família em seu
contexto, foi a de 1934. Nesta, houve a determinação da indissolubilidade do casamento,
ressalvando somente os casos de anulação ou desquite. Também foi sob sua égide que
foi autorizado as mulheres votar. Já a Constituição de 1937 nos trouxe a igualdade
entre os filhos considerados legítimos e naturais. A de 1946 não inovou no conceito de
família e a de 1967 manteve a ideia de que família somente era aquela constituída pelo
casamento civil. Em contrapartida, a emenda constitucional de 1969, que manteve a
indissolubilidade do casamento, foi modificada com o advento da Lei do Divórcio de
1977, passando-se a haver aceitação de novos paradigmas.
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
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O Código Civil de 1916 admitia unicamente o casamento civil como elemento
formador da família, muito embora a doutrina, jurisprudência e leis especiais já passassem
a admitir o reconhecimento das uniões estáveis. Contudo, inovou a Constituição Federal
de 1988 quando, de forma exemplificativa, admitiu a existência de outras espécies
de família, notadamente quando reconheceu a união estável e o núcleo formado por
qualquer dos pais e seus descendentes, como entidade familiar. Ou seja, trouxe à seara
constitucional outros arranjos de convivência de pessoas, que não somente aquele
oriundo do casamento. E o fez erigindo o afeto como um dos princípios constitucionais
implícitos, na medida em que aceita, reconhece, alberga, ampara e subsidia relações
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afetivas distintas do casamento.
Ainda que se busque identificar a possibilidade do casamento homoafetivo, há
quem entenda que a união entre pessoas do mesmo sexo só pode ter tratada pelo direito
das obrigações, por se tratar de uma sociedade de fato. Outros acatam somente a ideia
de que se o par homossexual possui os mesmos direitos da união estável hetereoafetiva.
Destacamos que na sociedade de fato as pessoas que dela fazem parte são
consideradas sócias, e não companheiros, visando lucro e não comunhão de vida.
Ademais, para a divisão do patrimônio comum, necessário se faz a prova de sua
contribuição.
Com relação à união estável, não há dúvidas de que, efetivamente, se duas pessoas
do mesmo sexo se unirem por laços de afeto, de forma pública, duradoura, contínua e
com objetivo de constituição de família, estabelecerão entre elas um vínculo familiar
de união estável.
O que se quer evidenciar é que o instituto do matrimônio civil não é privilégio
dos heterossexuais. Há que haver esta possibilidade também para os homossexuais,
que não podem se ver alijados de seus direitos, tendo em vista a orientação sexual que
possuem. Não é crível que no dias de hoje ainda se queira impor tratamento diferenciado
aos homossexuais, considerando-os como pessoas menos dignas e tratando suas uniões
como de segunda categoria.
O discurso não pode ser mais homofóbico, vez que sublinha a hierarquização
das sexualidades. Vale dizer, o indivíduo é categorizado tendo em vista o objeto de seu
desejo. Aquele que deseja pessoa do mesmo sexo é considerado uma categoria inferior
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de cidadão, não podendo usufruir de direitos outorgados aos heterossexuais.
Na esteira de subsidiar preconceito por sexo, surgiram algumas correntes que
visam impedir o reconhecimento do casamento civil homoafetivo, notadamente as que
defendem a ideia da impossibilidade jurídica do pedido ou de sua inexistência.
Assim, o conceito de família restou flexibilizado, indicando que seu elemento
formador precípuo é, antes mesmo do que qualquer fator genético, o afeto. Hoje o afeto
dá os contornos do que seja uma família. Se tivermos em mente que é o afeto o elemento
fundante da família, e que a Constituição Federal nos trouxe um rol exemplificativo
de núcleos familiares, forçoso admitir que duas pessoas do mesmo sexo, unidas pelo
12
afeto, formam uma família. Neste sentido Paulo Lobo : “os tipos de entidades familiares
explicitados nos parágrafos do art. 226 da Constituição são meramente exemplificativos,
sem embargo de serem os mais comuns, por isso mesmo merecendo referência expressa.
As demais entidades familiares são tipos implícitos incluídos no âmbito de abrangência
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Revista da Escola da Magistratura - nº 13
do conceito amplo e indeterminado de família, indicado no caput. Como todo conceito
indeterminado, depende de concretização dos tipos, na experiência da vida, conduzindo
à tipicidade aberta, dotada de ductilidade e adaptabilidade”.
Ainda que não haja norma expressa neste sentido, é importante refletir sobre
o fato de que “o silêncio sobre a diversidade sexual é atrelado à naturalização da
heterossexualidade – a heteronormatividade. Esta deixa pouco espaço para que outros
sentidos da sexualidade surjam. O silêncio heteronormativo reflete visões homofóbicas
de mundo, pois prioriza os discursos que ligam a sexualidade à reprodução, de
maneira que a relação sexual heterossexual se torna a única possibilidade legítima. A
heteronormatividade, ao silenciar sobre a diversidade sexual, acaba por não contribuir
13
para o enfrentamento da homofobia”.
As formas idealizadas dos gêneros geram hierarquia e exclusão. Os regimes de
verdades estipulam que determinadas expressões relacionadas com o gênero são falsas,
enquanto outras são verdadeiras e originais, condenando a uma morte em vida, exilando
14
em si mesmos os sujeitos que não se ajustam a idealizações.
Destarte, ainda que o discurso homofóbico muitas vezes se apresente somente
nas entrelinhas do silêncio, das palavras não pronunciadas, mostra-se ainda mais
perverso e dizimador, pois fere a alma, a dignidade do ser humano. Novos paradigmas
devem nos levar a novas realidades, realidades estas pautadas em isonomia de
tratamento. A discriminação contra o negro e a mulher, apesar de ainda persistirem
em nossa sociedade, são objetos de cuidados legislativos, enquanto que a discriminação
contra os homossexuais continua a ser velada, sóbria e sórdida, pois os pares
homoafetivos são tratados como pessoas inexistentes, pessoas sem direitos, mas com
muitas obrigações perante o fisco. Não se cuida de se fazer apologia ao não pagamento
de impostos, mas prega-se, sobretudo a igualdade de condições, de oportunidades,
de tratamento. Se os homossexuais possuem os mesmos deveres perante o Estado, o
mínimo que se espera é que este mesmo Estado lhe estenda todos os direitos que tem
os cidadãos heterossexuais.
É imprescindível que a lei dialogue com as transformações sociais. Por óbvio
que a união de pessoas do mesmo sexo pautadas em afeto, respeito e cumplicidade
descortinam o nascimento de uma nova família. Não pode o preconceito se sobrepor à
dignidade, à igualdade, e ao direito à felicidade.
Família Homoafetiva:
Se considerarmos e entendermos somente o casamento, a união estável e a família
monoparental como elementos fundantes de entidade familiar, deixaremos desabrigados
um enorme feixe de indivíduos, que destinam seus afetos a pessoas de sexos iguais ao seu.
Se retrocedermos um pouco, observamos que antes somente o casamento era
elemento formador de família. É dizer, havia uma separação entre os que eram casados
e os que não eram e entre aqueles que tinham o direito de casar e aqueles a que estes
direitos não eram reconhecidos. Para os pares homoafetivos, esta possibilidade lhes é
retirada. Continuam a ser uma minoria ostracizada e privada de direitos.
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
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A reivindicação do casamento “gay” não exprime simplesmente a aspiração,
que seria o sinal de uma abdicação diante de modos de vida heterossexuais, de
certos homossexuais a entrar na instituição matrimonial; ela traria, também, caso
se realizasse, uma mudança profunda na própria instituição, que não poderia mais
ser a mesma que antes, e isso ainda mais que, se os gays podem hoje reivindicar o
direito de a ela ter acesso, é porque já não é mais o que era. É a dessacralização do
casamento que torna possível a própria reivindicação de que se deva abri-lo aos casais
15
do mesmo sexo.
Nota-se que a aversão à outorga de direitos a homossexuais, quer no sentido de
aceitar o casamento, o reconhecimento de uniões estáveis homoafetivas, ou direito a
adoção, esta a infirmar uma superioridade biológica que se desenha pela dualidade de
sexos numa relação. Critica-se a alteridade e alberga-se a exclusão do outro.
Não há vontade política em deferir direitos, apenas para outorgar deveres. O
discurso heteronormativo ainda constitui a base do pensamento político pós-moderno
no Brasil, colocando os pares homoafetivos numa situação de inferioridade simbólica
no espaço social.
A sexualidade é uma das dimensões do ser humano que envolve gênero,
identidade sexual, orientação sexual, erotismo, envolvimento emocional, amor
e reprodução. É experimentada ou expressa em pensamentos, fantasias, desejos,
crenças, atitudes, valores, atividades, práticas, papéis e relacionamentos. Envolve,
além do nosso corpo, nossa história, nossos costumes, nossas relações afetivas,
16
nossa cultura.
A heterossexualidade se define em grande parte por aquilo que ela rejeita, da
mesma maneira que, de modo mais geral, uma sociedade se define por aquilo que ela
exclui, como dizia Foucult em História da Loucura.
Os ordenamentos jurídicos têm influência no desenvolvimento das famílias, têm
influência efetivamente afetiva, incluindo ou excluindo da pertinência à família mais
ampla, o social. O tratamento que as famílias recebem deste representante paterno,
17
que é o Estado e o Judiciário, em muito influenciará seu destino.
O modelo familiar hoje, é o da família eudemonista, onde cada indivíduo
é importante em sua singularidade, tendo o direito se ser feliz em seu contexto,
independentemente de sua orientação sexual. Pautar direitos tendo como parâmetro o
sexo a quem é destinado nosso afeto, é perverso e injusto.
A família é muito mais do que reunião de pessoas com o mesmo sangue. Família
é encontro, afeto, companheirismo, é dividir para somar.
E o sentido de cidadania é justamente o da inclusão social. Não é humano e
tampouco jurídico deixar ao desabrigo pessoas que possuem os mesmos deveres perante
o Estado, mas têm subtraídos direitos.
Ainda que o direito brasileiro hodierno não admita o casamento entre
homossexuais, é de mister relevância que seja aceita como união estável, com todos os
direitos daí advindos.
A equiparação das uniões homossexuais à união estável, pela analogia, implica
a consideração da presença de vínculos formais e a presença de uma comunidade de
18
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
vida duradoura entre os companheiros do mesmo sexo, assim como ocorre com os
companheiros de sexo diferentes, valorizando sempre, e principalmente, os princípios
constitucionais da dignidade da pessoa humana, da isonomia, da não discriminação em
18
virtude de sexo ou orientação sexual.
Neste sentido a jurisprudência de vanguarda:
AÇÃO ORDINÁRIA - UNIÃO HOMOAFETIVA - ANALOGIA
COM A UNIÃO ESTÁVEL PROTEGIDA PELA CONSTITUIÇÃO FEDERAL - PRINCÍPIO DA IGUALDADE (NÃO-DISCRIMINAÇÃO) E DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA
- RECONHECIMENTO DA RELAÇÃO DE DEPENDÊNCIA
DE UM PARCEIRO EM RELAÇÃO AO OUTRO, PARA TODOS OS FINS DE DIREITO - REQUISITOS PREENCHIDOS
- PEDIDO PROCEDENTE. - À união homoafetiva, que preenche
os requisitos da união estável entre casais heterossexuais, deve ser
conferido o caráter de entidade familiar, impondo-se reconhecer os
direitos decorrentes desse vínculo, sob pena de ofensa aos princípios da igualdade e da dignidade da pessoa humana. - O art. 226,
da Constituição Federal não pode ser analisado isoladamente, restritivamente, devendo observar-se os princípios constitucionais da
igualdade e da dignidade da pessoa humana. Referido dispositivo,
ao declarar a proteção do Estado à união estável entre o homem
e a mulher, não pretendeu excluir dessa proteção a união homoafetiva, até porque, à época em que entrou em vigor a atual Carta
Política, há quase 20 anos, não teve o legislador essa preocupação,
o que cede espaço para a aplicação analógica da norma a situações
atuais, antes não pensadas. - A lacuna existente na legislação não
pode servir como obstáculo para o reconhecimento de um direito.
(TJMG, APC 1.0024.06.930324-6/001, rel. Desª. Heloisa Combat,
j. 22.05.2007, d.p. 27.07.2007)
O silêncio legislativo não pode ser interpretado como falta de direitos, e sim,
como descaso institucional. Infelizmente, as minorias ainda sofrem nas mãos de alguns
parlamentares que insistem em não se comprometer com medo de perderem votos para
a próxima eleição.
DIREITO DE FAMÍLIA - AÇÃO DE RECONHECIMENTO DE
UNIÃO HOMOAFETIVA - ART. 226, §3º DA CF/88 - UNIÃO
ESTÁVEL - ANALOGIA - OBSERVÂNCIA DOS PRINCÍPIOS
DA IGUALDADE E DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA
- POSSIBILIDADE JURÍDICA DO PEDIDO - VERIFICAÇÃO. Inexistindo na legislação lei específica sobre a união homoafetiva e
seus efeitos civis, não há que se falar em análise isolada e restritiva do
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
19
art. 226, §3º da CF/88, devendo-se utilizar, por analogia, o conceito
de união estável disposto no art. 1.723 do Código Civil/2002, a ser
aplicado em consonância com os princípios constitucionais da igualdade (art. 5º, caput, e inc. I da Carta Magna) e da dignidade humana
(art. 1º, inc. III, c/c art. 5º, inc. X, todos da CF/88). (TJMG, APC
1.0024.09.484555-9/001, rel. Des. Elias Camilo, 8ª Câmara Cível, j.
25.11.2009, d.p. 12.02.2010)
Conclusão:
Como visto, é da natureza do ser humano, da sua essência, a diversidade de
orientação sexual.
Veja-se que a união homoafetiva passou a ser aceita somente no ano de 1989,
na Dinamarca, tendo sido reconhecido o como casamento civil apenas no ano de 2001
da Holanda.
É bem verdade que em nosso ordenamento jurídico positivo, não há qualquer
regra específica para o tema, quer no que diz com a união estável ou casamento.
Contudo, é de se ver que a Constituição Federal, através de seus princípios,
princípios estes que norteiam todos os vetores nas normas infraconstitucionais,
reconhece, subsidia, ampara e autoriza o casamento entre pessoas do mesmo sexo.
Destacamos o princípio da dignidade da pessoa humana, onde cada um deve ser
respeitado em sua individualidade. Ratificamos o fato de que nenhum indivíduo possui
a faculdade de escolher com que cor de olhos quer nascer, nem sua orientação sexual.
A pessoa simplesmente nasce desta ou daquela forma. Assim, mostra-se hipócrita a
19
sociedade quando aceita o ódio entre os homens, mas recrimina o seu amor.
Ao depois, nunca é demais nos reportarmos aos princípios da igualdade, (que
ratifica a isonomia de tratamento a todas as pessoas), da liberdade, (que embasa a
livre escolha de parceiros), do pluralismo das entidades familiares (pois a Constituição
ampliou o conceito de família) e da afetividade (onde o que efetivamente importa
na relação familiar, muito mais do que o aspecto biológico ou sexual é o afeto que a
envolve), princípios estes que direcionam todo o contexto do novo direito de família.
Já é hora de deixarmos de lado o descaso, o preconceito e o desrespeito. De
pararmos para refletir que o homossexual não é melhor nem pior que o heterossexual,
apenas se distinguem em sua orientação sexual. É bem verdade que os mais conservadores
assustam-se com o diferente, com o novo, e o inaudito. Contudo, precisamos ter coragem
para tirarmos a venda da repulsa e do menosprezo, e alcançarmos direitos às relações
homoafetivas.
A relação de casal tem se mostrado um grande concentrado da vida psíquica
familiar em qualidade e intensidade de emoções que é capaz de mobilizar. Os humanos,
pelo menos desde o ingresso na adolescência, passam a ser atravessados pela conjuntura
do casal, isto é, ter presente a alternativa de fazer parte de um casal. Não haverá quem
fique de fora destas questões, mesmo aqueles que venham a optar pela renúncia à vida
20
em casal, estabelecendo outras prioridades para a sua existência .
20
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
Como já dito alhures, há quem sustente que as uniões homoafetivas devem ser
tratadas no âmbito do direito das obrigações, uma vez que não a Constituição Federal ao
mencionar o instituto da união estável teria se referido à união entre homem e mulher.
Olvidam-se que se cuida de norma de caráter exemplificativo, não tendo a Constituição
da República abarcado todos os tipos de relacionamento possíveis. Ademais, dizer que
uma relação afetiva entre indivíduos do mesmo sexo deva ser tratada como se sócios
fossem, é efetivamente elevar o preconceito em detrimento do justo.
Com relação à união estável, pensamos que não há qualquer óbice para seu
reconhecimento, ainda que não tenhamos lei específica para tanto. Ademais, é só nos
ampararmos no texto constitucional para alcançarmos os mesmos direitos referentes
às uniões estáveis heterossexuais.
Mas avançamos mais: entendemos que a aceitação do casamento civil
homoafetivo independe de lei específica, uma vez que a própria Constituição assim o
autoriza. Não há qualquer artigo do Código Civil que faça restrição de que casamento
é privilégio dos heterossexuais. É de se ter em mente também que o reconhecimento
do casamento homoafetivo não traria prejuízo a quem quer que seja. Ao contrário,
visaria apenas estabelecer igualdade e dignidade àqueles que possuem como objeto de
seu desejo, pessoas de seu mesmo sexo.
É imprescindível que a Igreja deixe seus dogmas para seus fiéis, não devendo
manifestar-se com relação a leis civis que visem à proteção de direitos de uma minoria
que é por ela, reiteradamente, repudiada.
Até mesmo o Superior Tribunal de Justiça, quando instado a se manifestar sobre
o sentido que deve-se dar à entidade familiar insculpida na Lei 8.009/90, considerou a
possibilidade de ser os irmãos solteiros que vivem juntos, o viúvo sem descendentes, o
cônjuge separado, dentre outros. Ou seja, a própria Constituição Federal, albergada no
princípio da dignidade da pessoa humana, ampara diferentes formas de entidade familiar.
É que o amor e o afeto independem de sexo, cor ou raça, sendo preciso que
se enfrente o problema, deixando de fazer vistas grossas a uma realidade que bate
à porta da hodiernidade, e mesmo que a situação não se enquadre nos moldes da
relação estável padronizada, não se abdica de atribuir à união homossexual os efeitos
21
e natureza dela.
O reconhecimento da união homoafetiva como família é apenas a consequência
lógica de uma sociedade democrática, que tem por fim último a dignidade de cada
pessoa, que deve ser respeitada em sua individualidade de forma integral e absoluta.
Até porque nascemos para sermos felizes e há de chegar o dia em que a infelicidade será
considerada apenas uma questão de prefixo, como diria Guimarães Rosa.
Referências Bibliográficas:
- ABRAMOVAY, M. Juventude e Sexualidade, Brasília, UNESCO Brasil, 2004;
- BARROSO, Luiz Roberto, Diferentes, mas iguais: o reconhecimento jurídico das
relações homoafetivas no Brasil, acessado no site http://pfdc.pgr.mpf.gov.br, no
dia 17.7.2009
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
21
- BENTO, Berenice. O que é transexualidade. Ed. Brasiliense,São Paulo, 2008;
- BUTLER, Judith, The Psychic Life of Power. Theories in Subjection, Stanford
(Califórnia), Stanford University Press, 1997;
- CASTRO, Flávia Lages de, História do Direito Geral e do Brasil, 7ª ed. Rio de Janeiro,
Lúmen Júris:2009;
- GIORGIS, José Carlos Teixeira, Direito de Família Contemporâneo, Ed. Livraria do
Advogado, Porto Alegre, 2010;
- GROENINGA, Giselle Câmara, Direito e Psicanálise – Rumo a uma nova
epistemologia, coord. Giselle Câmara Groeninga e Rodrigo da Cunha Pereira, ed.
Imago, 2003, Rio de Janeiro;
- LÔBO, Paulo, Direito Civil – Famílias, São Paulo: ed. Saraiva, 2ª ed., 2009;
- LOUZADA, Ana Maria Gonçalves, Direito das Famílias - em homenagem a Rodrigo
da Cunha Pereira, org. Maria Berenice Dias Comentado, São Paulo, ed. RT, 2009;
- MALUF, Adriana Caldas do Rego Freitas Dabus, Novas Modalidades de Família na
Pós-Modernidade, ed. Atlas, São Paulo, 2010;
- POCAHY, Fernando, OLIVEIRA, Rosana e IMPERATORI Thaís. Cores e dores do
preconceito: entre o boxe e o balé, in Homofobia e Educação, Brasília: ed. UNB,
2009;
- RIOS, Roger Raupp. A igualdade de tratamento nas relações de família em A justiça
e os direitos de gays e lésbicas. Porto Alegre, Ed. Sulina, 2003;
- TURKENICZ, Abraão, A Aventura do Casal, ed. Artes Médicas, Porto Alegre, 1995;
- VECCHIATTI, Paulo Roberto Iotti, Manual da Homoafetividade, ed.. Método, Rio
de Janeiro, 2008
-www.mass.gov.br/courts/courtsandjudges/courts/supremejudicialcourt/goodridge.html,
em julho de 2009
Notas
1
GROENINGA, Giselle Câmara, Direito e Psicanálise – Rumo a uma nova epistemologia, coord. Giselle
Câmara Groeninga e Rodrigo da Cunha Pereira, ed. Imago, 2003, Rio de Janeiro, p. 125
VECCHIATTI, Paulo Roberto Iotti, Manual da Homoafetividade, ed.. Método, Rio de Janeiro, 2008, p.
42
3
Dados obtidos do livro “História do Direito Geral e do Brasil”, Flávia Lages de Castro, 7ª ed. Rio de Janeiro,
Lúmen Júris:2009
4
VECCHIATTI, Paulo Roberto Iotti, ob. cit. p. 59
5
Ibidem, p.61
6
Acessado pelo www.mass.gov.br/courts/courtsandjudges/courts/supremejudicialcourt/goodridge.html, em
julho de 2009
7
LOUZADA, Ana Maria Gonçalves, Direito das Famílias - em homenagem a Rodrigo da Cunha Pereira,
org. Maria Berenice Dias Comentado, São Paulo, ed. RT, 2009, p. 246
8
MALUF, Adriana Caldas do Rego Freitas Dabus, Novas Modalidades de Família na Pós-Modernidade,
ed. Atlas, São Paulo, 2010, p. 28
2
22
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
9
GROENINGA, Giselle Câmara, op. cit. p. 137
LOUZADA, Ana Maria Gonçalves, ob. cit. p. 244
Ibidem, p. 247
12
LÔBO, Paulo, Direito Civil – Famílias, São Paulo: ed. Saraiva, 2ª ed., 2009, p. 61
13
POCAHY, Fernando, OLIVEIRA, Rosana e IMPERATORI Thaís. Cores e dores do preconceito: entre
o boxe e o balé, in Homofobia e Educação, Brasília: ed. UNB, 2009, p.118
14
BENTO,
Berenice. O que é transexualidade. Ed. Brasiliense,São Paulo, 2008, p. 35
15
BUTLER, Judith, The Psychic Life of Power. Theories in Subjection, Stanford (Califórnia), Stanford
University Press, 1997, p. 137
16
ABRAMOVAY, M. Juventude e Sexualidade, Brasília, UNESCO Brasil, 2004, p. 29
17
GROENINGA, Giselle Câmara, op. cit. p. 141
18
RIOS, Roger Raupp. A igualdade de tratamento nas relações de família em A justiça e os direitos de gays
e lésbicas. Porto Alegre, Ed. Sulina, 2003, p. 191
19
“Na década de 70, nos Estados Unidos, um soldado que havia sido condecorado por bravura na Guerra do
Vietnã escreveu ao Secretário da Força Aérea declinando sua condição homossexual. Foi imediatamente
expulso da corporação, com desonra. Ao comentar o episódio, o militar produziu uma frase antológica:
‘Deram-se uma medalha por matar dois homens, e uma expulsão por amar outro’.” BARROSO, Luiz
Roberto, Diferentes, mas iguais: o reconhecimento jurídico das relações homoafetivas no Brasil, acessado
no site http://pfdc.pgr.mpf.gov.br, no dia 17.7.2009
20
TURKENICZ, Abraão, A Aventura do Casal, ed. Artes Médicas, Porto Alegre, 1995, p. 5
21
GIORGIS, José Carlos Teixeira, Direito de Família Contemporâneo, Ed. Livraria do Advogado, Porto
Alegre, 2010, p. 295
10
11
——— • ———
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
23
A Sucessão Legítima
do Cônjuge no
Novo Código Civil
Wagner Junqueira Prado
Mestrando em Direito e Políticas Públicas pelo UniCEUB.
Juiz de Direito no Distrito Federal.
1. INTRODUÇÃO
O
Novo Código Civil (Lei nº 10.406/2002), que entrou em vigor em 11 de
janeiro de 2003, trouxe diversas novidades em relação ao tema da sucessão
legítima do cônjuge.
O cônjuge sobrevivente que, na vigência do Código Civil anterior (Lei nº
3.071/1916), herdava apenas na ausência de descendentes e ascendentes do falecido,
passou a ser herdeiro necessário e a concorrer com os descendentes ou ascendentes
à herança. A participação do cônjuge como herdeiro, todavia, restou condicionada a
certos fatores, como veremos no decorrer deste trabalho.
Os dispositivos legais que trouxeram tais novidades, entretanto, apresentam
muitas dificuldades interpretativas, gerando diversas dúvidas, o que complica
sobremaneira o processo de inventário e partilha, principalmente após o art. 982 do
Código de Processo Civil ganhar nova redação, dada pela Lei nº 11.441/2007, passando
a permitir que o inventário e a partilha sejam realizados extrajudicialmente, desde que
não haja testamento e todos os herdeiros sejam capazes e estejam concordes.
Apesar dos numerosos trabalhos doutrinários existentes a respeito da matéria,
não se pretende aqui realizar uma compilação das diferentes opiniões esboçadas pelos
seus autores, seja para apoiar-se nelas, seja para refutá-las. A ideia é, ao contrário,
obter uma interpretação própria, com base exclusivamente na legislação, mas que
procure refletir uma coerência do direito sucessório legislado como um todo. Isso
explica a carência de referências bibliográficas sobre obras doutrinárias que tratem do
direito das sucessões.
No presente trabalho, nosso objetivo é buscar uma interpretação coerente
e que contemple uma visão holística do direito das sucessões em vigor, ao invés
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
25
de procurar obter uma interpretação meramente individual de cada dispositivo
isoladamente, dissociada de uma visão geral, o que poderia conduzir a soluções ilógicas
ou desvinculadas dos princípios sucessórios elementares expressos no próprio Código
1
Civil . Dessa forma, esperamos enfrentar as dificuldades existentes na legislação
(que não são poucas) e fornecer uma solução para a maioria dos problemas práticos
envolvendo a sucessão legítima do cônjuge no Novo Código Civil.
2. O DIREITO SUCESSÓRIO DO CÔNJUGE SOBREVIVENTE
Inicialmente, vejamos os dizeres dos dois primeiros artigos do Capítulo I do
Título II do Livro V da Parte Especial do Novo Código Civil:
“Art. 1.829. A sucessão legítima defere-se na ordem seguinte:
I – aos descendentes, em concorrência com o cônjuge sobrevivente,
salvo se casado este com o falecido no regime da comunhão universal, ou no da separação obrigatória de bens (art. 1.640, parágrafo
único); ou se, no regime da comunhão parcial, o autor da herança
não houver deixado bens particulares;
II – aos ascendentes, em concorrência com o cônjuge;
III – ao cônjuge sobrevivente;
IV – aos colaterais.
Art. 1.830. Somente é reconhecido direito sucessório ao cônjuge sobrevivente se, ao tempo da morte do outro, não estavam separados
judicialmente, nem separados de fato há mais de 2 (dois) anos, salvo
prova, neste caso, de que essa convivência se tornara impossível sem
culpa do sobrevivente”.
Apesar da ordem dos dispositivos no Código, é conveniente iniciar a nossa
análise pelo art. 1830. Ele estipula que o cônjuge sobrevivente, separado judicialmente
ou separado de fato há mais de dois anos do cônjuge falecido ao tempo de sua morte
(exceto quando a convivência se tornou impossível sem culpa sua), não tem direito
sucessório, mesmo na ausência de descendentes e ascendentes (hipótese em que
devem herdar os colaterais). Portanto, o cônjuge sobrevivente, para participar da
sucessão legítima, não pode estar (1) separado judicialmente do autor da herança nem
(2) separado de fato há mais de dois anos ao tempo da morte de seu consorte.
Apesar do art. 1.830 fazer referência apenas à separação judicial, o art. 1.124A do Código de Processo Civil, com a redação dada pela Lei nº 11.441/2007, permite
que a separação consensual, não havendo filhos menores ou incapazes, seja feita
extrajudicialmente. A coerência do sistema exige, portanto, que também não seja
reconhecido direito sucessório ao cônjuge separado extrajudicialmente, por escritura
pública.
Evidentemente, a prova da separação (judicial ou extrajudicial) se faz através
da certidão de casamento com a separação averbada. Já a prova do tempo de separação
26
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
de fato é mais problemática, e pode ser feita documentalmente (por exemplo, através
da comprovação de que houve ajuizamento de ação de alimentos por um dos cônjuges
contra o outro, motivado pela separação de fato) ou através de testemunhas.
Cabe aos descendentes ou aos ascendentes, nos casos dos incisos I e II do art.
1.829, e aos colaterais, no caso de inexistência de descendentes e ascendentes do
falecido (inciso III do art. 1.829), arguir a ausência de direito sucessório do cônjuge
sobrevivente. Tal alegação deve ser formulada na própria petição inicial do inventário,
nas primeiras declarações do inventariante (art. 993 do Código de Processo Civil) ou
em forma de impugnação, nos termos do art. 1.000 do Código de Processo Civil, após as
primeiras declarações. Os colaterais, que a princípio não são citados para o inventário
(art. 999 do mesmo diploma legal), exceto se o inventário for promovido por um deles,
ainda poderão, a qualquer tempo, desde que antes da partilha, caso o inventário seja
promovido pelo cônjuge sobrevivente, pedir a sua admissão no inventário nos termos
do art. 1.001 do Código de Processo Civil.
Em caso de impugnação nos termos do art. 1.000 ou de pedido dos colaterais
de admissão no inventário nos termos do art. 1.001 do diploma processual, deve o
magistrado ouvir a respeito o inventariante e o cônjuge sobrevivente, designar audiência
para colher a prova testemunhal, caso haja necessidade, e depois decidir acerca da
impugnação ou do pedido. Cabe ao cônjuge sobrevivente, em sua manifestação e sendo
o caso, alegar e comprovar documentalmente (ou arrolar testemunhas), na hipótese
de mera separação de fato, que a convivência se tornou impossível sem culpa sua.
Observe-se que a alegação de inexistência de direito sucessório do cônjuge
sobrevivente não constitui matéria de alta indagação, devendo sempre ser decidida
nos próprios autos do inventário, seja porque a separação judicial ou de fato pode ser
comprovada documentalmente, seja porque quando a existência e data da separação
de fato tiverem que ser comprovadas por testemunhas, a prova oral a ser produzida é
bastante simples. Da mesma maneira, havendo alegação do cônjuge sobrevivente, em
caso de mera separação de fato, de que a convivência se tornou impossível sem culpa
sua, ainda que a prova não possa ser feita documentalmente, a prova oral a respeito
também é de simples produção. Não há necessidade, portanto, de remessa da questão
aos meios ordinários.
No sistema anterior, o cônjuge era apenas meeiro, jamais concorrendo na
sucessão com os descendentes ou ascendentes do autor da herança. Segundo o art.
1.611 do Código Civil anterior (Lei nº 3.071/1916), o cônjuge era herdeiro legítimo
apenas na ausência de descendentes e ascendentes, se ao tempo da morte do outro
2
não estava dissolvida a sociedade conjugal , hipótese em que lhe cabia a totalidade da
herança. Mas não era herdeiro necessário. Por essa razão, e na ausência de descendentes
e ascendentes, o testador podia excluí-lo da herança testando todo o seu patrimônio.
No novo Código Civil, passando o cônjuge a ter o status de herdeiro necessário
(art. 1.845), e concorrendo na sucessão com os descendentes ou ascendentes do
falecido (art. 1.829, incisos I e II), houve a necessidade de se estipular outra hipótese
em que não se reconhece direito sucessório ao cônjuge sobrevivente: a da separação
de fato. É que, no Brasil, principalmente nas comunidades mais carentes e com maior
dificuldade de acesso à justiça, é muito comum a pessoa permanecer separada de
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
27
fato de seu cônjuge por longo período (até mesmo por décadas) sem providenciar
o divórcio, mesmo depois de formar outro núcleo familiar, através da união estável.
Evidentemente que, em casos tais, não seria coerente permitir que o cônjuge figurasse
como herdeiro legítimo, pois inexistente qualquer vínculo afetivo entre ele e o autor
da herança. Se o relacionamento (vida afetiva) do casal já estava rompido, seja pela
separação judicial, seja pela separação de fato, há necessidade realmente de exclusão
da qualidade de herdeiro do cônjuge.
Todavia, andou mal o legislador ao exigir, para exclusão do direito sucessório
do cônjuge, uma separação de fato por prazo superior a dois anos. Entendemos que
seria mais coerente estabelecer simplesmente a separação de fato, sem qualquer prazo.
É que, nos termos do art. 1.723, § 1º, do Novo Código Civil, mesmo casada, mas
estando separada judicialmente ou de fato (independentemente de qualquer prazo),
a pessoa pode constituir união estável. Portanto, no sistema em vigor, é possível que
alguém, separado de fato do cônjuge há menos de dois anos, constitua união estável
com terceiro, vindo posteriormente a falecer. Nessa hipótese, o texto legal do art.
1.830 permite ao cônjuge sobrevivente pleitear a qualidade de herdeiro, ao mesmo
tempo em que o companheiro, nos termos do art. 1.790 do mesmo diploma legal,
também está autorizado a herdar.
Não há coerência em se permitir que essas duas pessoas (cônjuge e
companheiro) figurem como herdeiros ao mesmo tempo, já que, antes de seu
falecimento, o autor da herança não tinha mais vínculo afetivo com seu cônjuge, em
virtude da separação de fato, vínculo esse que, à época de sua morte, existia somente
em relação ao companheiro. Em nosso entender, se existe união estável com terceiro
posterior à separação de fato do cônjuge, independentemente do prazo dessa separação
de fato, por uma questão de coerência e integridade no direito, o cônjuge perde a
qualidade de herdeiro legítimo necessário, devendo participar do inventário apenas
na qualidade de meeiro dos bens comuns, adquiridos anteriormente à separação de
fato. O companheiro, além de meeiro dos bens adquiridos onerosamente no curso
da união estável (em virtude do regime de bens adotado na hipótese, por força do
art. 1.725 do Código Civil), figuraria como herdeiro desses mesmos bens, nos termos
do art. 1.790 do Código Civil. Do contrário, teríamos que aceitar a abusiva hipótese
do cônjuge sobrevivente herdar parte dos bens adquiridos onerosamente pelo
autor da herança na vigência de união estável posterior à separação de fato (bens
particulares do falecido, em relação ao cônjuge; porém, bens comuns, em relação
3
ao companheiro) . Na inexistência de união estável posterior à separação de fato,
todavia, permanece o cônjuge sobrevivente com direito sucessório, se no momento
do óbito o tempo de separação de fato não era superior a dois anos.
Também não se houve bem o legislador ao permitir ao cônjuge separado de fato
manter o direito sucessório quando não tiver culpa na separação de fato. É que, se nem
mesmo na ação de separação judicial se permite atualmente a perquirição da culpa,
também não faz sentido a apuração da culpa exclusivamente para fins sucessórios.
Estaria melhor o art. 1.830 se se limitasse a estabelecer a separação de fato como
causa de exclusão do direito sucessório do cônjuge, sem abordar a questão da culpa do
cônjuge supérstite.
28
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
Possuindo o cônjuge sobrevivente direito sucessório, nos termos do art. 1.830
do Código Civil, além da meação decorrente do regime de bens do casamento, ele
4
ainda poderá figurar como herdeiro necessário , em concorrência com os descendentes
ou ascendentes do autor da herança.
3. O CÔNJUGE SOBREVIVENTE CONCORRENDO COM OS DESCENDENTES DO FALECIDO
Voltemo-nos agora ao art. 1.829 e seu inciso I do Código Civil.
Segundo tais dispositivos, a sucessão legítima defere-se primeiramente aos
descendentes, em concorrência com o cônjuge sobrevivente, desde, é claro, que o
cônjuge possua direito sucessório, nos termos do já analisado art. 1.830. O inciso I do
art. 1.829, porém, traz outros requisitos para que o cônjuge supérstite possa herdar, ao
excluí-lo da sucessão quando: (1) casado com o falecido sob o regime da comunhão
universal; (2) casado com o falecido sob o regime da separação obrigatória de bens; (3)
casado com o falecido sob o regime da comunhão parcial, quando o autor da herança
não houver deixado bens particulares.
As duas primeiras hipóteses não comportam maior debate. No regime da
comunhão universal, comunicam-se todos os bens adquiridos pelos cônjuges, antes ou
depois do casamento (art. 1.667 do Código Civil). Assim, como o cônjuge supérstite
já é meeiro de todos os bens adquiridos pelo falecido, ainda que anteriormente ao
casamento, não há necessidade de protegê-lo na sucessão, atribuindo-lhe quinhão na
herança, pois de qualquer maneira ele já é detentor de metade do patrimônio total
do casal. Já no regime da separação obrigatória de bens, aplicável nas hipóteses de
(1) casamento contraído com inobservância das causas suspensivas da celebração do
casamento, (2) casamento de pessoa maior de 60 anos e (3) casamento de pessoa
que dependeu de suprimento judicial (art. 1.641 do Código Civil), é a própria lei que
obriga os contraentes a administrarem com exclusividade os seus bens particulares,
adquiridos anteriormente ao casamento (art. 1.687 do Código Civil). Assim, não
seria coerente, na dissolução do casamento pela morte de um dos cônjuges, que o
outro pudesse herdar parte do patrimônio particular do falecido, já que o regime da
separação obrigatória de bens tinha o objetivo oposto, ou seja, impedir que os bens
particulares de um cônjuge se comunicassem ao patrimônio do outro. Vale ressaltar
que o inciso I do art. 1.829 fez remissão equivocada ao art. 1.640, parágrafo único, já
que as hipóteses de obrigatoriedade de adoção do regime da separação de bens estão
descritas, na verdade, no art. 1.641 do Código Civil.
Estranhamente, ao excluir expressamente da qualidade de herdeiro, em
concorrência com os descendentes, o cônjuge supérstite casado com o falecido no
regime da separação obrigatória de bens, o art. 1.829, inciso I, permite que o cônjuge
casado sob tal regime não em virtude de obrigação legal, mas por opção do casal
(separação convencional de bens), ocupe a qualidade de herdeiro. É uma incongruência
5
da lei, já que, se o próprio Código Civil, em seu art. 1.640, parágrafo único , permite
que os contraentes optem pelo regime da separação de bens, não deveria agora, após a
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
29
morte de um dos cônjuges, aquinhoar o outro com parte na herança, em concorrência
com os descendentes, já que isso obviamente contraria o objetivo do casal ao optar
por aquele regime. Não cabe aqui, todavia, qualquer interpretação restritiva que
possa prejudicar o cônjuge casado sob o regime da separação convencional de bens,
sendo recomendável, no entanto, alteração legislativa que venha a suprimir a palavra
“obrigatória” no inciso I do art. 1.829, a fim de melhorar a coerência do sistema.
O ponto nevrálgico é, sem dúvida, a situação do cônjuge casado sob o regime
da comunhão parcial. Lembre-se que, no Brasil, na quase totalidade dos casamentos
celebrados a partir da vigência da Lei nº 6.515/1977 (Lei do Divórcio), que modificou
6
o art. 258 do Código Civil de 1916 , foi adotado o regime da comunhão parcial. O
Novo Código Civil continua adotando o regime da comunhão parcial como regime
7
legal de bens, na ausência de estipulação em contrário pelos cônjuges .
De acordo com o art. 1.829, inciso I, e apesar da péssima redação do dispositivo,
acreditamos que o fator mais importante a ser analisado não é a estranha pontuação
utilizada pelo legislador, mas sim a finalidade da norma, que é, sem dúvida, proteger o
cônjuge sobrevivente em determinada situação, aumentando-lhe o patrimônio através
da atribuição de quinhão na herança.
A melhor interpretação, portanto, é a de que o cônjuge supérstite, casado com
o autor da herança sob o regime da comunhão parcial, e desde que possua direito
sucessório (art. 1.830), só concorre à herança com os descendentes caso o falecido
tenha deixado bens particulares. Evidentemente, na ausência de bens particulares do
falecido, não é necessário atribuir ao viúvo o status de herdeiro, pelas mesmas razões
já expostas quando tratamos do regime da comunhão universal: é que a meação
do cônjuge sobrevivente, nesse caso, já é equivalente à metade de todos os bens
do casal (ou até superior, caso ele próprio possua bens particulares), não havendo
necessidade de protegê-lo na sucessão. Ao contrário, havendo bens particulares do
falecido (adquiridos anteriormente ao casamento, ou recebidos em virtude de doação
ou sucessão), e sendo tais bens de valor significativo, a meação do cônjuge supérstite
será proporcionalmente pequena em relação à totalidade dos bens do casal. Nessa
hipótese, é perfeitamente justificável a intenção da lei de aquinhoar o cônjuge
sobrevivente, como forma de proteção patrimonial, evitando que ele permaneça
apenas com a sua meação, que poderia ser, comparada ao patrimônio total do casal,
ínfima ou desproporcional, incapaz de manter o seu padrão de vida após a viuvez. Por
outro lado, todavia, caso os bens particulares deixados pelo autor da herança sejam
de pequeno valor, em comparação com o montante dos bens pertencentes ao casal,
ou se, ao contrário, é o viúvo quem possui bens particulares de valor significativo,
o cônjuge sobrevivente ficará em vantagem despropositada na partilha dos bens, ao
figurar como meeiro e herdeiro, ainda que ausente qualquer necessidade protetiva, em
prejuízo, portanto, dos descendentes, que terão seu quinhão reduzido injustamente.
Esse, infelizmente, é o preço a pagar pela fórmula açodada que o legislador adotou, e
cujo objetivo é aumentar o amparo patrimonial do cônjuge sobrevivente, casado sob o
regime da comunhão parcial, mas que pode, em certos casos, aumentar indevidamente
o patrimônio de quem não precisa dessa proteção. Caberá, portanto, à jurisprudência,
nos casos em que a aplicação do dispositivo venha provocar uma situação contrária à
30
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
pretendida pela finalidade da norma, optar pela sua não utilização, a fim de manter a
coerência e integridade do sistema.
Apesar da redação do dispositivo exigir que o falecido tenha deixado “bens
particulares” (no plural), entendemos que, por uma questão de coerência do sistema,
basta que o falecido tenha deixado um único bem particular para que o cônjuge
supérstite, casado sob o regime da comunhão parcial, possa concorrer à sucessão com
os descendentes. Observe-se que um único bem particular autor da herança pode ter
valor superior à totalidade dos aquestos.
Nos demais regimes de bens (de participação final nos aquestos ou dotal, este
último no caso de casamento celebrado sob a vigência do antigo Código Civil), o
cônjuge, possuindo direito sucessório (art. 1.830), é sempre herdeiro em concorrência
com os descendentes.
Evidentemente, e não havendo no art. 1.829 nenhuma restrição, o quinhão
de herança do cônjuge sobrevivente, da mesma maneira que o dos demais herdeiros
necessários, recai sobre a totalidade da herança, formada pela meação do falecido
sobre os bens comuns do casal e pelos seus bens particulares, sobre os quais o viúvo
não possui meação, em decorrência do regime de bens do casamento (de comunhão
parcial, de separação convencional, de participação final nos aquestos ou dotal, este
último celebrado na vigência do Código Civil anterior).
A interpretação realizada por parte da doutrina, no sentido de que o quinhão
do cônjuge supérstite não recai sobre a totalidade do monte, mas apenas sobre os
bens particulares do falecido, não encontra amparo algum na lei. Todos os herdeiros
legítimos, constantes do rol do art. 1.829, participam da partilha de todos os bens do
espólio, à exceção dos legados. É o que prevê o art. 1.788 do Código Civil:
“Art. 1.788. Morrendo a pessoa sem testamento, transmite a herança aos
herdeiros legítimos; o mesmo ocorrerá quanto aos bens que não forem compreendidos
no testamento; e subsiste a sucessão legítima se o testamento caducar, ou for julgado
nulo”.
8
Além disso, o art. 1.832 do Código Civil estipula, como regra, que concorrendo
com os descendentes, caberá ao cônjuge quinhão igual ao dos que sucederem por
cabeça. Evidentemente, não será possível respeitar tal disposição atribuindo-se
quinhão aos herdeiros sobre a totalidade dos bens passíveis de sucessão legítima e
quinhão ao viúvo incidente apenas sobre parte daquele acervo (os bens particulares
do falecido).
O art. 1.829 não formulou nenhuma exceção à regra geral, de que o quinhão
recai sobre todos os bens não testados, que possa ser aplicada ao cônjuge sobrevivente.
Pelo contrário, a referência do inciso I à existência de bens particulares do falecido serve
apenas para conferir ao viúvo, casado sob o regime da comunhão parcial, a qualidade
de herdeiro concorrente, jamais para limitar o quinhão do cônjuge, qualquer que seja
o regime de bens do casamento (exceto, evidentemente, os da comunhão universal e
da separação obrigatória de bens, em que o cônjuge não é herdeiro concorrente por
expressa disposição legal), aos bens particulares deixados pelo autor da herança.
Entender o contrário seria permitir, por absurdo, que o companheiro pudesse
9
vir a ter um tratamento mais afortunado que o cônjuge no tocante à herança (quando
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
31
os bens comuns totalizarem valor muito superior aos bens particulares do falecido),
já que o quinhão daquele recai exclusivamente sobre os bens comuns (art. 1.790
do Código Civil). Por esse motivo também, entendemos que o quinhão do cônjuge,
casado sob regime de bens que lhe permita herdar concorrendo com os descendentes
do falecido, deve incidir sobre todos os bens do espólio (comuns e particulares).
Resta esclarecer que não estamos sustentando aqui que o cônjuge merece tratamento
privilegiado em relação ao companheiro no tocante à sucessão, mas apenas buscando
a interpretação mais coerente dentre as possíveis na hipótese. Desde a Constituição
Federal de 1988, passando pelas Leis de nº 8.971/1994 e 9.278/1996, e agora pelo Novo
Código Civil, a legislação tem buscado garantir, cada vez mais, os direitos daqueles
que vivem em união estável. Se ainda não chegamos à situação ideal, ou se o Novo
Código Civil acabou suprimindo direitos sucessórios anteriormente materializados nas
Leis de nº 8.971/1994 e 9.278/1996, é possível sustentar que a legislação deve evoluir
no sentido de equiparar a situação do companheiro à do cônjuge em relação aos
direitos sucessórios. Não é possível, porém, a nosso ver, afirmar que, em determinadas
situações, o companheiro pode receber tratamento privilegiado em relação ao cônjuge
no tocante à sucessão, pois tal interpretação é portadora de inconfundível incoerência,
seja do ponto de vista histórico, seja do ponto de vista sistemático, violando qualquer
integridade que se pretenda atribuir ao sistema.
Por fim, vale acrescentar que o legislador atribuiu ao cônjuge supérstite não
somente a condição de herdeiro concorrente com os descendentes (art. 1.829, inciso
I), mas também a condição de herdeiro necessário (art. 1.845). Dessa forma, não pode
o intérprete trilhar o caminho de, como regra, privilegiar o interesse dos descendentes
em relação ao do cônjuge (por exemplo, reduzindo o monte sobre o qual recai a
herança do viúvo), sem que a lei expressamente o permita, sob pena de estar agindo
na contramão do que pretendeu o legislador. Se for assim, melhor seria retornarmos
ao sistema do Código Civil de 1916, em que o cônjuge, além de não ser considerado
herdeiro necessário, somente herdava na ausência de descendentes e ascendentes,
jamais concorrendo com eles à sucessão.
Situação bem diferente é a do companheiro que, nos termos do art. 1.790,
também é herdeiro legítimo (apesar da estranha localização que o legislador deu a
esse dispositivo), mas seu quinhão incide apenas sobre a meação do falecido nos
bens adquiridos onerosamente durante a união estável. Note-se, ainda, que como
o companheiro não é herdeiro necessário (conforme o art. 1.845 do Código Civil),
nada impede que o testador o exclua da sucessão legítima, dispondo da metade de
seu patrimônio, se houver herdeiros necessários, ou da totalidade, não os havendo.
Observe-se que, havendo herdeiros necessários, eles possuem direito, nos termos do
art. 1.846 do Código Civil, à metade dos bens da herança (legítima). Se o testador
dispôs da outra metade sem contemplar o companheiro, nada lhe caberá nos termos
do art. 1.790, pois o companheiro não poderá ter quinhão incidindo sobre a legítima
dos herdeiros necessários, sob pena de redução da legítima e violação ao art. 1.846.
Essa é a solução apresentada pela conjugação dos arts. 1.790, 1.845 e 1.846 do
Código Civil. Não foi boa, todavia, a opção legislativa. Seria melhor se o legislador,
suprimindo o art. 1.790, incluísse o companheiro no art. 1.829, tratando cônjuge e
companheiro da mesma maneira no tocante à sucessão legítima.
32
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
Não é recomendável, todavia, a inclusão do companheiro no rol dos herdeiros
necessários constante do art. 1.845, mas sim a retirada dessa qualidade do cônjuge,
10
pelas razões que ainda teremos oportunidade de expor . O tema da sucessão legítima
do companheiro, todavia, é matéria para outro trabalho.
Sobre o tema deste item, resta analisar o art. 1.832 do Código Civil, que dispõe:
“Art. 1.832. Em concorrência com os descendentes (art. 1.829, I)
caberá ao cônjuge quinhão igual ao dos que sucederem por cabeça,
não podendo a sua quota ser inferior à quarta parte da herança, se for
ascendente dos herdeiros com que concorrer”.
A regra, portanto, é de que cabe ao cônjuge sobrevivente a mesma fração da
herança atribuída aos demais herdeiros que sucedem por direito próprio (por cabeça).
Assim, concorrendo com filhos do falecido (sejam também filhos seus ou não), caberá
ao cônjuge ¼ da herança, havendo três filhos, 1/3 da herança, havendo dois filhos, e
metade da herança, havendo apenas um filho.
Por exceção, a parte final do dispositivo atribuiu ao cônjuge supérstite uma
quota mínima de ¼ da herança, desde que ele seja ascendente de todos os herdeiros
com que concorrer, ou seja, desde que não existam descendentes exclusivos do
falecido concorrendo à sucessão. Nesse caso, havendo quatro filhos do casal, caberá
¼ da herança ao cônjuge, e 3/16 a cada um dos filhos; havendo cinco filhos do
casal, caberá ¼ da herança ao cônjuge, e 3/20 a cada um dos filhos; havendo seis
filhos do casal, caberá ¼ da herança ao cônjuge, e 3/24 a cada um dos filhos; e assim
sucessivamente.
Havendo, todavia, pelo menos um descendente exclusivo do falecido,
não se podendo aplicar a exceção, aplica-se a regra geral da primeira parte do
artigo. Não comungamos, portanto, da opinião de que o legislador esqueceu-se
de prever a hipótese de existência de descendentes comuns e exclusivos do autor
da herança concorrendo com o cônjuge supérstite à sucessão. Na verdade, o art.
1.832 é bastante claro ao atribuir, por exceção, uma quota mínima da herança
ao viúvo somente na hipótese de concorrência à sucessão exclusivamente com
descendentes comuns, não se podendo falar em quota mínima do cônjuge quando
houver pelo menos um descendente exclusivo do falecido, restando ao cônjuge,
nessa hipótese, a aplicação da regra geral, atribuindo-lhe quota igual a dos
herdeiros que sucederem por cabeça.
É princípio básico do direito sucessório que os herdeiros que ocupam a mesma
categoria devem receber o mesmo quinhão na herança. O Novo Código Civil, a
respeito do tema, estipula:
“Art. 1.834. Os descendentes da mesma classe têm os mesmos direitos à sucessão de seus ascendentes”.
Esse dispositivo afasta, por absoluta incoerência com o sistema, qualquer
interpretação que, garantindo uma fração mínima da herança ao cônjuge sobrevivente,
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
33
permita que os descendentes comuns e os descendentes exclusivos do falecido,
ocupantes da mesma classe (filhos, por exemplo), recebam quinhões desiguais.
Considerando, todavia, a possibilidade do testador destinar parte do patrimônio
a título de sucessão testamentária, deve-se interpretar a palavra “herança”, constante
do art. 1.832, como sendo a parte da herança sujeita à sucessão legítima. Dessa maneira,
a quota mínima do cônjuge, caso concorra exclusivamente com seus descendentes,
não é a quarta parte da herança, mas sim a quarta parte do montante passível de
sucessão legítima. Se aplicássemos aqui uma interpretação literal, tendo o falecido
testado metade da herança, e cabendo ao cônjuge sobrevivente ¼ da mesma (25% do
total da herança), restariam aos filhos comuns apenas ¼ do total, para ser entre eles
dividido.
Em nossa opinião, não foi boa ideia estabelecer, ainda que por exceção, uma
quota mínima em favor do viúvo. É que o número de descendentes comuns do casal é
variável, de forma que é impossível ao legislador estabelecer uma quota fixa que reflita
uma situação justa em qualquer hipótese. Seria melhor suprimir do art. 1.832 a parte
final, ou seja, a exceção da quota mínima, mantendo exclusivamente a regra contida
na primeira parte.
4. O CÔNJUGE SOBREVIVENTE CONCORRENDO COM OS ASCENDENTES DO FALECIDO
Inexistindo descendentes do autor da herança, o cônjuge sobrevivente
possuidor de direito sucessório (nos termos do art. 1.830) concorre na sucessão com
os ascendentes (arts. 1.829, inciso II, e 1.836, ambos do Novo Código Civil). Note-se
que, ao contrário da hipótese anterior (concorrência com os descendentes), o cônjuge
supérstite agora herda qualquer que seja o regime de bens do casamento.
Nos termos do art. 1.837 do Código Civil, se concorrer com ascendente em
primeiro grau (pais do falecido), caberá ao cônjuge sobrevivente um terço da herança.
Porém, se houver um só ascendente, ou se for maior aquele grau (avós do falecido),
caberá ao cônjuge metade da herança. Na última hipótese, a outra metade da herança
ainda deverá ser dividida entre os ascendentes da linha paterna e da linha materna do
falecido (art. 1.836, § 2º, do Novo Código Civil), à razão de 25% do espólio para cada
linha (já que os outros 50% cabem ao cônjuge sobrevivente). Observe-se que a divisão
aqui não é por cabeça entre os ascendentes de segundo grau ou superior, mas por linha.
Apenas dentro de cada linha é que a divisão é por cabeça (por exemplo, entre o avô
e a avó maternos).
Não existe direito de representação na classe dos ascendentes, de forma que o
grau mais próximo exclui o mais remoto, sem distinção de linhas (art. 1.836, § 1º, do
Novo Código Civil).
Não havendo descendentes nem ascendentes do falecido no momento da
abertura da sucessão, ao cônjuge sobrevivente, desde que possua direito sucessório
(art. 1.830 do Novo Código Civil), caberá a totalidade da herança (arts. 1.829, inciso
III, e 1.838, ambos do mesmo diploma legal).
34
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
Se o cônjuge sobrevivente não tiver direito sucessório, a totalidade da herança
caberá aos colaterais até o quarto grau (art. 1.839 do Código Civil).
5. O CÔNJUGE COMO HERDEIRO NECESSÁRIO
Estipula o Novo Código Civil:
“Art. 1.845. São herdeiros necessários os descendentes, os ascendentes e o cônjuge”.
É importante ressaltar que, apesar do teor do dispositivo, o cônjuge sobrevivente
nem sempre é herdeiro necessário. Somente possuirá esse status o cônjuge que tiver
11
direito sucessório (art. 1.830) e, se concorrer com os descendentes do falecido (art.
12
1.829, inciso I), o regime de bens do casamento também o permitir . Concorrendo, ao
contrário, com ascendentes do falecido, e tendo direito sucessório, nos termos do art.
1.830, independentemente do regime de bens do casamento, o cônjuge será herdeiro
necessário.
Portanto, não nos parece correto incluir o cônjuge no rol dos herdeiros
necessários, já que, para ser herdeiro, deverá ele preencher os requisitos dos arts.
1.829, inciso I, e 1.830 do Código Civil, requisitos esses que não se aplicam aos demais
herdeiros necessários. Assim, os descendentes e ascendentes sempre terão assegurada
a sua participação na sucessão legítima, enquanto que a concorrência do cônjuge fica
condicionada a certos fatores. Assim, seria mais lógico e coerente excluir o cônjuge do
art. 1.845, já que nem sempre ele poderá participar da sucessão legítima.
6. O DIREITO REAL DE HABITAÇÃO
A respeito do tema, o Novo Código Civil estipula que:
“Art. 1.831. Ao cônjuge sobrevivente, qualquer que seja o regime de
bens, será assegurado, sem prejuízo da participação que lhe caiba na
herança, o direito real de habitação relativamente ao imóvel destinado à residência da família, desde que seja o único daquela natureza
a inventariar”.
Portanto, o cônjuge sobrevivente, possuindo direito sucessório ou não, e
independentemente do regime de bens do casamento, tem o direito real de habitação
sobre o imóvel destinado à residência da família, desde que seja o único imóvel residencial
do espólio. A finalidade do dispositivo é resguardar o cônjuge supérstite, garantindo-lhe
a mesma moradia que possuía na constância do casamento após a partilha dos bens,
evitando o seu desamparo. Todavia, se constar do espólio mais de um bem imóvel de
natureza residencial, não haverá direito real de habitação em favor do viúvo.
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
35
Lamentavelmente, sendo omisso a respeito o art. 1.831, o direito real de
habitação é conferido vitaliciamente ao cônjuge supérstite. Atualmente, seria
recomendável estipular a cessação desse direito real em caso de novo casamento ou
união estável do titular do benefício. Aliás, o art. 1.611, § 2º, do revogado Código Civil
de 1916, já previa a limitação do direito real de habitação enquanto durasse a viuvez
do cônjuge sobrevivente.
Note-se que o Novo Código Civil não concedeu o direito real de habitação ao
companheiro. E não é possível invocar tal direito com base no art. 7º, parágrafo único,
da Lei nº 9.278/1996, não revogada expressamente pelo Novo Código Civil.
A nosso ver, o Novo Código Civil, ao regulamentar integralmente a união
estável no Título III do Livro IV da Parte Especial, ab-rogou as Leis de nº 8.971/1994
e 9.278/1996. A respeito do tema, estabelece a Lei de Introdução ao Código Civil
(Decreto-lei nº 4.657/1942):
“Art. 2º. Não se destinando à vigência temporária, a lei terá vigor até
que outra a modifique ou revogue.
§ 1º. A lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja com ela incompatível ou quando regule inteiramente
a matéria de que tratava a lei anterior”.
Além disso, o inciso IV do art. 7º da Lei Complementar nº 95/1998 estabelece
que “o mesmo assunto não poderá ser disciplinado por mais de uma lei, exceto quando
a subsequente se destine a complementar lei considerada básica, vinculando-se a esta
por remissão expressa”. O Novo Código Civil, evidentemente, não quis complementar
as leis anteriores que tratavam da união estável, nem fez qualquer remissão expressa
aos referidos diplomas legais.
Assim, como o Novo Código Civil regulamentou inteiramente a união estável
nos arts. 1.723 a 1.727 e 1.790, estão revogados os diplomas legais anteriores que
tratavam do mesmo tema. É bem verdade, todavia, que o Novo Código Civil deveria
ter revogado expressamente as Leis de nº 8.971/1994 e 9.278/1996, como estipula o
13
art. 9o da Lei Complementar 95/1998 .
Reconhecemos, por fim, que seria recomendável incluir o companheiro na
redação do art. 1.831 do Código Civil, garantindo-lhe tratamento igualitário ao
cônjuge também no tocante ao direito real de habitação sobre o imóvel destinado à
residência familiar, se for o único bem imóvel residencial a inventariar.
7. CONCLUSÃO
Ao tentar obter uma interpretação coerente do direito sucessório como um
todo, e que esteja calcada exclusivamente na lei, chegamos, evidentemente, a algumas
conclusões que podem ser contestadas por diversos motivos.
Para exemplificar, nossa opinião de que o cônjuge sobrevivente, casado sob o
regime da comunhão parcial, herda sobre a totalidade da herança passível de sucessão
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Revista da Escola da Magistratura - nº 13
legítima (e não apenas sobre os bens particulares do falecido) não reflete a posição
majoritária na doutrina nacional.
Esperamos, todavia, ter obtido a melhor interpretação que uma visão holística
da legislação sucessória permitiria, considerando que, apesar de nossos esforços em
realçar a integridade do sistema, diversas falhas legislativas, que foram abordadas em
nossa exposição, dificultaram o nosso propósito. Isso nos levou, inclusive, a elaborar
algumas sugestões de reforma, visando tornar a legislação mais coerente.
Não foi nossa intenção desconsiderar os trabalhos doutrinários já realizados,
mas apenas produzir uma interpretação sob uma ótica diferente, que focasse não em
cada dispositivo separadamente, mas que procurasse uma lógica no direito sucessório
visto em seu conjunto, que encontrasse ali os seus princípios e os respeitasse, para
que tais princípios viessem, depois, nos ajudar na interpretação de cada dispositivo
individualmente. Por isso, deixamos de embasar nossas conclusões em trabalhos
realizados por outros autores, procurando sempre realçar o fundamento legal.
8. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BRASIL. Decreto-lei nº 4.657, de 4 set. 1942 (Lei de Introdução ao Código Civil).
______. Lei nº 3.071, de 1º jan. 1916 (antigo Código Civil).
______. Lei nº 6.515, de 26 dez. 1977 (Lei do Divórcio).
______. Lei nº 8.971, de 29 dez. 1994.
______. Lei nº 9.278, de 10 mai. 1996.
______. Lei nº 10.406, de 10 jan. 2002 (Novo Código Civil).
______. Lei nº 11.441, de 4 jan. 2007.
______. Lei Complementar nº 95, de 26 fev. 1998.
DWORKIN, Ronald. O império do direito. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
Notas
1
Segundo Ronald Dworkin, “temos dois princípios de integridade política: um princípio legislativo, que pede
aos legisladores que tentem tornar o conjunto de leis moralmente coerente, e um princípio jurisdicional,
que demanda que a lei, tanto quanto possível, seja vista como coerente nesse sentido” (O império do direito,
p. 213). Ao defender a integridade no direito, Dworkin esclarece que a integridade na legislação restringe
aquilo que nossos legisladores podem fazer ao expandir ou alterar nossas normas, e que a integridade na
deliberação judicial requer que nossos juízes tratem nosso sistema de normas como se este expressasse
e respeitasse um conjunto coerente de princípios, e que interpretem essas normas de modo a descobrir
normas implícitas entre e sob as normas explícitas (idem, p. 261). Para ele, “a integridade é uma virtude
ao lado da justiça, da eqüidade e do devido processo legal, mas isso não significa que... a integridade seja
necessariamente, ou sempre, superior às outras virtudes” (idem, pp. 261-262).
1
Nos termos do art. 2º da Lei nº 6.515/1977 (Lei do Divórcio), a sociedade conjugal termina pela morte
de um dos cônjuges, pela nulidade ou anulação do casamento, pela separação judicial e pelo divórcio.
2
Esta passagem será melhor compreendida após a leitura do item 3.
3
Conforme esclareceremos no item 5, não nos parece correto incluir o cônjuge no rol dos herdeiros necessários, já que sua qualidade de herdeiro depende de outros fatores, não aplicáveis aos demais herdeiros
necessários (descendentes e ascendentes).
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4
“Poderão os nubentes, no processo de habilitação, optar por qualquer dos regimes que este Código regula...”
Art. 258. Não havendo convenção, ou sendo nula, vigorará, quanto aos bens entre os cônjuges, o regime
da comunhão parcial.
6
Art. 1.640. Não havendo convenção, ou sendo ela nula ou ineficaz, vigorará, quanto aos bens entre os
cônjuges, o regime da comunhão parcial.
7
Tal dispositivo será melhor analisado ao final deste item.
9
Recorde-se, aqui, que na união estável, salvo contrato escrito entre os companheiros, aplica-se o regime de
comunhão parcial de bens (art. 1.725 do Código Civil), o que já garante ao companheiro um tratamento
igual ao da grande maioria dos casamentos na constituição do patrimônio comum.
8
Vide item 5 deste trabalho.
9
Vide item 2 deste trabalho.
10
Vide item 3 deste trabalho.
11
“Art. 9º. A cláusula de revogação deverá enumerar, expressamente, as leis ou disposições legais revogadas”.
5
—— • ——
38
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
A Inconstitucionalidade do Art.
273 do Código Penal
Marcio Evangelista Ferreira da Silva
Juiz de Direito
Introdução
O
1
Código Penal vigente no Título
VIII, Capítulo III, trata dos crimes contra
2
a saúde pública e o art. 273 trata especificamente do crime de falsificação,
corrupção, adulteração ou alteração de produto destinado a fins terapêuticos
ou medicinais.
O citado artigo já foi alvo de alterações legislativas no decorrer
dos anos,
3
mas a mais sensível – oriunda da Lei n.º 9.677/98 – segundo NUCCI , foi a elevação
“excessiva” da pena.
Imediatamente após a entrada em vigência da nova redação do art. 273 do
Código Penal vozes se levantaram acoimando-o de inconstitucional.
No presente articulado será abordado o tema à luz da Constituição Federal e
seus princípios, para ao final apresentarmos uma conclusão sobre a novel legislação
reformadora do Código Penal.
Da proporcionalidade
As primeiras vozes argumentaram que o art. 273 do Código Penal seria
desproporcional,
eis que sua pena seria extremamente alta.
4
NUCCI relatou que a pena sofreu “uma abrupta e excessiva elevação”, pois no
seu entender a sanção está em descompasso com a classificação do crime, qual seja,
crime abstrato.
Realmente a pena
é elevada e mais, é superior de crimes de dano, c.p.e., o crime
5
de homicídio simples .
Há, no meu sentir, um descompasso, pois o autor do crime de dano – que
efetivamente lesiona um bem jurídico tutelado – tem uma reprimenda estatal inferior
à sanção do crime abstrato, que apenas expõe a perigo de lesão.
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
39
Com efeito, a sanção penal prevista no citado dispositivo é desproporcional
6
ferindo, assim, o princípio da proporcionalidade, que segundo FRANCO “... obriga a
ponderar a gravidade da conduta, o objeto da tutela e a consequência jurídica.”
7
GOMES abordando o tema relata que a intervenção penal do legislador só
tem fundamento se houver “... proporcionalidade e equilíbrio na medida ou na pena”
argumentando ainda que há se realizar um “juízo de ponderação” para um balanço entre
os bens em conflito.
Após a análise supra, fica cristalino que se a conduta que se visa repreender, pelo
artigo em comento, tem uma sanção inadequada, ou seja, o legislador infraconstitucional
ofendeu o princípio da proporcionalidade.
Ora, basta uma análise perfunctória no preceito secundário que encontramos um
vício legislativo, qual seja, o de legislar em desrespeito ao princípio da proporcionalidade.
8
É um vício legislativo pelo fato de que o legislador – como ensina PERELMAN
– não tem liberdade plena para legislar, deve respeitar os princípios como se regras
positivas fossem.
W. J. GANSHOT, citado por PERELMAN, argumenta que o juiz é quem faz o
direito ao aplicar a lei ao caso concreto. Deve o juiz, segundo GANSHOT, sempre ter
em mente – ao adaptar os dispositivos legais ao caso concreto – os princípios gerais de
direito, pois a aplicação só tem validade se a legislação em análise os respeita.
Confira:
“Os princípios gerais do direito, que são ‘aplicáveis mesmo na ausência
de um texto’ (acórdão Aramu, Conselho de Estado francês, 26 de out. de
1945, G.A., p. 260), não são uma criação jurisprudencial e não poderiam
ser confundidos com simples considerações de equidade. Não são, tampouco, regras consuetudinárias: o juiz, aplicando-os ou controlando-lhes a
aplicação, não se refere à constância de usa aplicação. Eles têm valor de
direito positivo: sua autoridade e sua força não se reportam uma fonte escrita; eles existem independentemente da forma que lhes dá o texto quando
eles se refere; o juiz os declara; constata-lhes a existência, o que permite
dizer que a determinação dos princípios gerais do direito não autoriza uma
investigação científica livre. Eles se formam independentemente do juiz,
mas, uma vez formados, impõem-se a ele. O juiz é obrigado a garantir-lhes
9
o respeito.”
FR. GORPHE traz a pá de cal sobre o assunto, pois para ele “Todas as vezes
que as consequências das regras escritas parecerem ir além da medida, procura-se afastá-las
10
recorrendo a princípios mais justos.”
QUEIROZ apresentando comentários ao art. 273, §1º-B do Código Penal,
também levanta a pecha de inconstitucionalidade pelo fato de que o legislador
equiparou condutas graves a condutas que não são tão graves, apontando, assim – uma
desproporcionalidade, pois “... acabou por colocar em pé de igualdade condutas absolutamente
distintas do ponto de vista da lesividade/gravidade que representam, igualando situações
11
jurídico-penalmente inigualáveis.”
40
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
Outro aspecto considerado pelo citado autor – reforçando a ideia da
desproporcionalidade – é o fato de que a pena prevista para o crime de perigo abstrato
(art. 273, §1º-B do CP) é superior ao crime de dano que o produto vendido poderia
causar.
E continua o citado autor relatando que:
“... a pena mínima cominada/aplicada ao crime do art. 273, §1°-B (e
incisos), do CP, excede em mais de três vezes a pena máxima do homicídio
culposo (CP, art. 121, §3°), corresponde a quase o dobro da pena mínima
do homicídio doloso simples (CP, art. 121, caput), é igual à pena máxima
do aborto provocado sem consentimento da gestante (CP, art. 125), além
de corresponder à cinco vezes a pena mínima da lesão corporal de natureza
12
grave (CP, art. 129, §1°).”
Assim, fica nítido que o crime mencionado no art. 273 do Código Penal é uma
conduta que deve ser reprimida, mas não com a sanção que o legislador estipulou – pois
desproporcional.
A conveniência política do legislador em criminalizar condutas e estabelecer a
sanção é inquestionável, mas a interpretação das normas deve ser em conformidade com
a Constituição Federal, pois como ensina CANOTILHO “o princípio da interpretação
das leis em conformidade com a Constituição é fundamentalmente um princípio de controlo
13
(tem como função assegurar a constitucionalidade da interpretação)...”
Destarte, diante da flagrante desproporcionalidade e ofensa explícita ao Princípio
da Proporcionalidade o preceito secundário do art. 273 do Código Penal é realmente
inconstitucional e como tal deve ser considerado e não aplicado pelos operadores do
direito.
Da interpretação na norma penal e a inconstitucionalidade de seu preceito secundário
Como vimos, o art. 273 do Código Penal tem uma sanção inconstitucional,
entretanto, cabe salientar que a conduta prevista abstratamente como crime merece
reprovação social - não deve ser declarada inconstitucional.
A sociedade não tolera que condutas – como a narrada no citado artigo – sejam
cometidas e fiquem impunes, pois a potencialidade de dano causa uma reprovação social.
Note-se que afastada a incidência do preceito secundário previsto no art. 273 do
14
Código Penal não faz com que o preceito primário também seja afastado, entretanto,
cabe ao intérprete estabelecer o preceito secundário proporcional à conduta incriminada.
Poder-se-ia argumentar que o juiz – assim agindo – estaria legislando, entretanto,
sem razão críticas de tal estirpe, eis que o juiz moderno tem novo papel na aplicação da
lei, pois a muito se abandonou a antiga máxima de que o juiz é a boca da lei.
Neste sentido confira o escólio de PERELMAN:
“Essa dialética, implicada pela busca de uma solução convincente, instauradora da paz judiciária, por ser ao mesmo tempo razoável e conforme
o direito, coloca o Poder Judiciário numa relação nova diante o Poder
Legislativo. Nem inteiramente subordinado, nem simplesmente oposto ao
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41
Poder Legislativo, constitui um aspecto complementar indispensável seu,
que lhe impõe uma tarefa não apenas jurídica, mas também política, a de
harmonizar a ordem jurídica de origem legislativa com as ideias dominantes sobre o que é justo e equitativo em dado meio. É por essa razão que a
aplicação do direito, a passagem da regra abstrata ao caso concreto, não é
um simples processo dedutivo, mas uma adaptação constante dos dispositi15
vos legais aos valores em conflito nas controvérsias judiciais.”
E continua PERELMAN:
“Em uma sociedade democrática, é impossível manter a visão positivista do
direito, segundo a qual este seria apenas a expressão arbitrária da vontade
do soberano. Pois o direito, para funcionar eficazmente, deve ser aceito e
16
não só imposto por coação.”
17
Surgiu então uma interpretação de que poder-se-ia aplicar o preceito secundário
da Lei n.º 11.343/06, entretanto, no meu entender seria uma aplicação de analogia in
malam partem, vedada no sistema penal vigente.
Ora, a interpretação deve atender ao que mais se aproxime dos princípios
norteadores do direito penal. Verifica-se que o preceito secundário que mais se adapta
18
ao caso é o previsto na antiga redação do art. 273 do Código Penal , eis que o legislador
foi proporcional e razoável.
19
O escólio de MEDEIROS , vem bem a calhar, vejamos:
“A norma inconstitucional impede, frequentemente, a aplicação de normas diversas que se situam aliunde. A correspondente decisão de inconstitucionalidade tem, então eficácia positiva. Isto mesmo pode ser, facilmente
ilustrado com o chamado efeito repristinatório. O próprio Mestre da escola
de Viena, teorizados do Tribunal Constitucional como legislador negativo,
considerava que uma decisão de inconstitucionalidade que determinasse
a repristinação da norma anterior constituía ‘não um simples acto negativo de legislação, mas um acto positivo’. ... As normas repristinadas não
são, seguramente, criadas pelo órgão de controlo da constitucionalidade,
não se confundindo portanto com as normas resultantes de uma decisão
modificativa.”
E mais, se tal interpretação for acoimada de analogia, será in bonam parte –
permitida no direito penal moderno.
Neste sentido confira o voto do Exmo. Sr. Desembargador Sérgio Rocha:
“Seguindo tal entendimento, admito a aplicação do preceito secundário do
art. 273 do CP, em sua redação original (pena de reclusão de um a três
anos e multa) ao art. 273 do CP com a redação dada pela Lei 9.677/98,
tendo em vista a inconstitucionalidade do preceito secundário estabelecido
20
pela nova legislação.”
42
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21
Tal entendimento é corroborado pelo que ensina MEDEIROS , verbis:
“A decisão de inconstitucionalidade deve, segundo este entendimento, atingir apenas a norma que expressa ou implicitamente restringe o âmbito de
aplicação da lei, obtendo-se, por essa via, a ampliatio do regime favorável.”
Ao fim e ao cabo, atender-se-á a vontade da sociedade em reprimir as condutas
descritas no art. 273 do Código Penal e se aplicará uma sanção proporcional, conforme
a Constituição Federal e seus princípios.
Conclusão
Concluindo, o preceito primário do art. 273 do Código Penal é constitucional,
seu preceito secundário é inconstitucional e, quando da aplicação do citado artigo, deve
incidir o antigo preceito secundário do citado dispositivo.
Notas
1
de 7 de dezembro de 1940
pena – reclusão, de 10 (dez) a 15 (quinze) anos, e multa.
3
NUCCI. Guilherme de Souza. Código Penal Comentado, São Paulo, RT, 2009, p. 927/928
4
obra citada
5
pena – reclusão, de 6 (seis) a 20 (vinte) anos.
6
FRANCO, Alberto Silva. Crimes Hediondos. São Paulo: RT, 2005, p. 364
7
apud LAURENTINO, Wendel. A inconstitucionalidade do artigo 273 do Código Penal. Disponível em
http://www.lfg.com.br. 05 agosto. 2008 – acesso em 06/09/2010
8
PERELMAN, Chaïm. Lógica Jurídica, Martins Fontes, 1998, p. 92
9
apud PERELMAN - ob. cit. p. 103
10
FR. GORPHE. Les décisions de justice, Presses Universitaires de France, 1952, p. 38, apud PERELMAN
ob. cit. p. 230
11
http://pauloqueiroz.net/a-proposito-do-art-273-%C2%A71%C2%B0-b-do-codigo-penal/ - acesso em
06/09/2010
12
ibidem
13
CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7ª Edição. Coimbra: Almedina, 2003, p. 1226
14
descrição
abstrata da conduta criminosa
15
ob. cit. p. 116
16
ob. cit. p. 241
17
algumas vezes foi sustentada por membros do MPDFT
18
reclusão de 1 (um) a 3 (três) anos e multa
19
MEDEIROS, Rui. A decisão de Inconstitucionalidade. Os autores, o Conteúdo e os Efeitos da Decisão de
Inconstitucionalidade da Lei. Lisboa: Universidade Católica, 1999, P. 491
20
TJDFT – Argüição de Inconstitucionalidade n.º 2010.00.2.008435-4
21
ob. citada, p. 456
2
—— • ——
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43
Quem tem Medo do Racismo?
Carla Patrícia Frade Nogueira Lopes
Juíza de Direito do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios
O
jornal Correio Braziliense publicou em 14 de dezembro de 2010 no caderno Brasil
matéria intitulada “Na rede, racismo. Na cadeia, quem?”. A história revelada
pelo jornalista Vinicius Sassine mostra a aceitação pacífica da sociedade brasileira em torno de manifestações discriminatórias divulgadas em vários sistemas de redes
sociais e virtuais à margem do controle estatal. Trata-se de relatos sobre fatos ocorridos
há mais de cinco anos sem que se tenha conseguido tirar do ar as páginas com conteúdos
racistas. Segundo a matéria, em um único mês, mais de 700 denúncias apontam casos
de discriminações veiculadas na internet. Sob o título “A Justiça não deu jeito”, uma
das reportagens dedica espaço ao caso do promotor de justiça de São Paulo Nadir de
Campos Júnior que é alvo de uma série de ofensas em comunidade criada no Orkut
e que, embora tenha havido remessa de ofício para retirada do conteúdo, a empresa
mantém íntegras as mensagens, sob os argumentos de que só com a identificação dos
autores das manifestações poderiam ser tomadas providências, a menos que houvesse
sentença judicial determinando a retirada da comunidade do ar.
A questão pontual é que há complacência velada e expressa em relação a esses
tipos delituosos, comportamento natural não só da sociedade civil como dos representantes do Estado. De uma maneira geral, vive-se no Brasil sob o signo da democracia
racial preconizada por Gilberto Freire que acaba por escamotear o racismo. O máximo
que se permite é o reconhecimento da discriminação sob o viés social ou econômico,
não se admitindo, porém, o critério ideológico que domina as posturas racistas. O juiz
de direito sergipano Edinaldo César Santos Junior, em entrevista à Revista de Cultura
e Direitos Humanos da AMB editada em outubro de 2010, deixa ver que a realidade é
bem outra:
Uma última pesquisa realizada pela AMB entre os juízes do Brasil constatou
que da totalidade de juízes no país, apenas 0,9% é negro. Essa é uma estatística preocupante, a demonstrar, por exemplo, que o acesso à magistratura para o negro é ainda
um sonho distante. Faço parte da exceção. Ora, partindo da premissa da ausência de
racismo ideológico, muitos poderiam afirmar que um negro juiz não seria alvo de preconceito ou discriminação. Sou a prova do contrário. Não importa como ou onde esteja,
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
45
a consciência social ainda não crê na possibilidade de ascensão do negro e, por isso,
discrimina-o. Se o negro social e economicamente bem situado dirige o carro zero, é o
motorista particular, se está de traje formal no shopping, é abordado como segurança,
se está de pasta a tiracolo, é o fotógrafo do evento, e mesmo dentro do “gabinete do
juiz”, se está acompanhado do assessor não-negro, a ele a palavra sequer é dirigida.
Todos esses fatos já ocorreram comigo.
Esse chamado critério ideológico do racismo é também entendido como insulto
1
moral (CARDOSO DE OLIVEIRA, 2004) . Caracteriza-se pelo poder exercido por
quem discrimina com base exclusiva na cor. Daí a dificuldade de percepção do fenômeno,
que muitas vezes passa desapercebido porquanto é quase sempre velado e dissimulado
como nas hipóteses lançadas pelo juiz Edinaldo César e transcritas acima. Só com atenção especial é possível reconhecer-se a prática indesejada, sobretudo porque o racismo
à brasileira, embora enraizado culturalmente, é também e por paradoxo socialmente
repugnante. Não é por outra razão que há uma tendência perigosa de relativizar-se o
preconceito racial, legitimando-se o negro com suporte nos parâmetros considerados
brancos, o que se vulgariza e pode ser sintetizado pela máxima cruel “negro de alma
branca”. Exemplo marcante é o citado por Cardoso de Oliveira (2004) referente a uma
líder do movimento negro, filha de mãe branca e racista e pai negro; ao ser indagada pela
filha sobre o casamento e a contrariedade de suas convicções racistas, a mãe explicitou
de forma espontânea e natural: “Ah! seu pai é especial, é um homem inteligente, bonito,
elegante, charmoso etc....”
É nesse contexto que o problema se apresenta ao Direito e ao Poder Judiciário.
No mais das vezes, torna-se improvável a leitura do racismo por esses dois sistemas
ante a falta de violência em sua forma evidenciada e material. Entretanto, é ainda
2
Cardoso de Oliveira (2005) que, retomando o conceito de insulto moral, explicita
suas características de maneira irrepreensível: (1) trata-se de uma agressão objetiva
a direitos que não pode ser adequadamente traduzida em evidências materiais; e, (2)
sempre implica uma desvalorização ou negação da identidade do outro. Tais atributos e
consequências, a despeito de suas estruturas jurídicas, são pouco assimilados e difundidos
pelo Direito, seja pela via legislativa, seja no âmbito do Poder Judiciário. O resultado é
a impunidade temperada pelo sentimento de abandono e impotência. Raras vezes em
que a prática do racismo é reconhecida como crime e, nessas poucas oportunidades,
ainda subsiste a possibilidade de não observância da decisão judicial, como narrado na
matéria jornalística mencionada no início deste estudo.
A Lei 7.716/89 define os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor;
há um rol de situações normatizadas pela referida legislação caracterizando-as como
o que convencionalmente passou a ser conhecido como “crime de racismo”. Uma boa
parte das condutas descritas na lei relaciona-se a impedimentos, óbices ou empecilhos
de acesso a espaços públicos e privados pelas pessoas, se tais condutas operam-se em
razão da raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional, vale dizer, são condutas
3
segregacionistas. O art. 20 , contudo, prevê como ilícito criminal a prática em si, além
da incitação e do induzimento, do preconceito ou da discriminação em razão daqueles
critérios. Aí reside a resistência dos juristas em geral e dos juízes em particular em reconhecer em determinadas atitudes o preconceito ou a discriminação em razão da cor,
46
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
tendo em vista que esse ato, como dito, é revestido de alta simbologia e normalmente
desacompanhado de vestígios materiais. Não restam dúvidas de que “praticar a discriminação ou preconceito de cor” é uma norma penal em branco, que exige do aplicador
do Direito o preenchimento de seus contornos. É nesse dever que se omitem, muitas
vezes, os julgadores, preferindo a via facilitadora e cômoda da atipicidade.
Afinal, os juízes em sua grande maioria também são forjados na crença de que
a miscigenação benigna no Brasil é prova viva de democracia racial e, portanto, de
convivência harmônica, pacífica e livre de preconceito de cor. Contudo, é preciso
um aprofundamento da questão, observando-se que nem sempre o crime exigirá
4
a presença real e material da violência física ou até mesmo moral . Ainda assim
poderá subsistir o delito pela ocorrência da violação à dignidade da pessoa humana
numa perspectiva conceitual evolutiva da ideia de honra para a de identidade, como
5
sugerimos em outra oportunidade (LOPES, 2008) . Não há hoje outra possibilidade de
leitura e aplicação do art. 20 da Lei 7.716/89, sob pena de alijarmos o país da agenda
e do projeto transnacional em prol do diálogo da tolerância por meio da pauta de
prevalência dos direitos humanos.
Para tanto, o aprofundamento a que aludimos acima deve passar pela
6
compreensão da política do reconhecimento (TAYLOR, 1994) , associada ao ideal da
identidade, definida por Charles Taylor “como a maneira como uma pessoa se define,
como é que suas características fundamentais fazem dela um ser humano” (1994: p. 45).
Essa política não se resume à esfera da pessoa, para atingir um status além e transmudarse no reconhecimento igualitário (TAYLOR, 1994: p. 48), fruto das ondas renovatórias
da democracia e disseminadas no período pós Guerra Fria projetadas na exigência de
um estatuto igualitário para as diversas culturas. Interessante anotar que essa igualdade
a ser emprestada às variadas culturas condiz com a importância dedicada à diversidade
de manifestações culturais. Com isso quer-se dizer que a política do reconhecimento
igualitário comporta novo componente: o da diferença (TAYLOR, 1994: p. 58). É
necessário reconhecer-se a singularidade de cada grupo social (e de cada indivíduo),
percebendo-se, assim, que a igualdade e a diferença são os dois lados da mesma moeda.
7
A moeda do reconhecimento .
A omissão do Estado brasileiro em relação a casos de prática de racismo tem
levado o país a ser demandado na órbita internacional, o que está a exigir premente
mudança de postura. Existem dois processos em tramitação na Comissão Interamericana
8
envolvendo o Brasil em matéria de racismo. O primeiro diz respeito à morte de Wallace
de Almeida, ocorrida em 13 de setembro de 1998, que teria sido ocasionada por policiais
militares em missão no morro da Babilônia, Rio de Janeiro. Wallace era um jovem negro,
de dezoito anos, servindo o Exército como recruta; a questão foi levada à Comissão
pela ONG Justiça Global, em 20 de dezembro de 2001, obtendo o protocolo 872/2001
9
e se transformando no Caso 12.440 . Segundo a petição, houve excesso na operação
dos policiais e, passados mais de três anos e meio do fato, o inquérito distribuído às 12ª
Delegacia de Polícia do Rio de Janeiro, em 14 de setembro de 1998, não foi concluído
e não havia denúncia oferecida pelo Ministério Público. Os peticionantes apontam
10
violações aos arts. 4º, 8º e 25, c/c o art. 1º,1 todos da Convenção Americana de
Direitos Humanos. No pedido, há descrição dos fatos, reportando-se aos antecedentes
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
47
relacionados à violência policial no Brasil, à força letal da Polícia fluminense e à
11
violência e raça ; a seguir, há narrativa sobre o homicídio e a investigação realizada
no Brasil, além de considerações sobre a admissibilidade do pedido e acerca do mérito,
com registro da análise dos recursos internos e das violações de direitos humanos. Ao
final, o pedido está assim posto:
1 – Que sejam iniciados os trâmites formais para abertura desse caso
contra o Estado do Brasil.
2 – Que a República Federativa do Brasil seja condenada pelas violações descritas acima.
3 – Que ordene o governo brasileiro a investigar, julgar e punir criminalmente os responsáveis.
4 – Que ordene ao governo brasileiro pagar indenização às vítimas
ou seus familiares.
5 – Que ordene o governo brasileiro a tomar medidas eficazes para
garantir que não mais existam ações policiais violentas, desta natureza, e que adote medidas eficazes para proteger os direitos da população em geral, contra policiais violentos.
6 – Que ordene o governo brasileiro, como medida preventiva, incorporar aos cursos de reciclagens já existentes para policiais, e implementar onde não existam, palestras sobre a questão racial, a ser
ministrado pelas ONGs do movimento negro do Brasil.
A Comissão Interamericana, após o trâmite do Caso, fez as seguintes
recomendações ao Estado brasileiro:
1. Levar a cabo uma investigação completa, imparcial e efetiva dos
fatos, por órgãos judiciais independentes do foro policial civil/militar,
a fim de estabelecer e punir a responsabilidade pelos atos relacionados com o assassinato de Wallace de Almeida e os impedimentos
que impossibilitaram a realização tanto de uma investigação quanto
de um julgamento efetivos.
2. Proporcionar plena reparação aos familiares de Wallace de Almeida, incluindo tanto o aspecto moral quanto o material, pelas
violações de direitos humanos indicadas no presente relatório e, em
particular,
3. Adotar e instrumentar as medidas necessárias à efetiva implementação da disposição constante no artigo 10 do Código de Processo
Penal Brasileiro.
4. Adotar e instrumentar medidas adequadas dirigidas aos funcionários da justiça e da polícia, a fim de evitar ações que impliquem
48
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
discriminação racial nas operações policiais, nas investigações, no
processo ou na sentença penal.
Em março de 2009 foram avaliadas as medidas adotadas pelo Brasil, considerandose que houve algum avanço, mas não foram cumpridas as metas estipuladas, o que levou
a Comissão Interamericana de Direitos Humanos a reiterar as recomendações.
12
O outro caso, sob o número 12.100 , refere-se a Simone André Diniz, que
teria sofrido discriminação racial na busca de um emprego. Em 7 de outubro de 1997,
a ONG CEJIL – Centro pela Justiça e o Direito Internacional apresentou petição
junto à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, que, por meio do Relatório
13
37/02 , de 9 de outubro de 2002, declarou a admissibilidade do pedido relativamente
14
a eventuais violações aos arts. 1º, 8º, 24 e 25 da Convenção. Segundo consta, Simone
15
teria atendido a um anúncio de jornal para ocupar a vaga de empregada doméstica na
residência de Aparecida Gisele Mota da Silva, mas foi recusada por ser negra. Houve
inquérito policial, manifestando-se o Ministério Público pelo arquivamento, por ausência
de provas do crime de racismo, o que foi acatado pelo Poder Judiciário de São Paulo. O
Caso 12.001 teve tramitação na Comissão, que se colocou à disposição das partes para
iniciar procedimento de solução amistosa, em maio de 2003, sobrevindo desistência dos
peticionários em novembro do mesmo ano, por ausência de proposta do Estado brasileiro.
Assim é que em 28 de outubro de 2004, em seu 121º período de sessões, a Comissão
aprovou o Relatório de Mérito 83/04, elencando um rol de doze recomendações a
serem cumpridas pelo Brasil. Em razão da inércia do Estado brasileiro, recentemente,
16
em 21 de outubro de 2006, em cumprimento ao art. 51 da Convenção, foi publicado
17
o Relatório de Mérito 66/06 , ratificando as recomendações do documento anterior.
Nesse relatório, a Comissão inicia por analisar a responsabilidade internacional
por fato praticado por particular, assinalando que o Estado deve velar pelo respeito aos
direitos humanos nas relações entre particulares. Em seguida, a Comissão dedica-se à
apreciação do direito à igualdade perante a lei e à não-discriminação; nesse item, tece
18
considerações sobre a situação racial no Brasil , a evolução do ordenamento jurídico
19
anti-racismo no país, os problemas de aplicação da lei anti-racismo , além de abordar
os fatores que levaram à constatação da violação do direito de Simone André Diniz à
20
igualdade e à não-discriminação, tecendo juízo de valor sobre a conduta praticada em
desfavor da vítima. Consta, ainda, no relatório, análise do direito às garantias judiciais
e à proteção judicial, com repúdio da Comissão à não-instauração da ação penal no
caso denunciado por Simone. Ao final, ratificam-se as recomendações feitas ao Brasil,
nestes termos:
1. Reparar plenamente a vítima Simone André Diniz, considerando
tanto o aspecto moral como o material, pelas violações de direitos
humanos determinadas no relatório de mérito e, em especial,
2. Reconhecer publicamente a responsabilidade internacional por
violação dos direitos humanos de Simone André Diniz;
3. Conceder apoio financeiro à vítima para que esta possa iniciar e
concluir curso superior;
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
49
4. Estabelecer um valor pecuniário a ser pago à vítima à título de
indenização por danos morais;
5. Realizar as modificações legislativas e administrativas necessárias
para que a legislação anti-racismo seja efetiva, com
o fim de sanar os
21
obstáculos demonstrados nos parágrafos 78 e 94 do presente relatório;
6. Realizar uma investigação completa, imparcial e efetiva dos fatos,
com o objetivo de estabelecer e sancionar a responsabilidade a respeito dos fatos relacionados com a discriminação racial sofrida por
Simone André Diniz;
7. Adotar e instrumentalizar medidas de educação dos funcionários
de justiça e da polícia a fim de evitar ações que impliquem discriminação nas investigações, no processo ou na condenação civil ou
penal das denúncias de discriminação racial e racismo;
8. Promover um encontro com organismos representantes da imprensa brasileira, com a participação dos peticionários, com o fim de
elaborar um compromisso para evitar a publicidade de denúncias de
cunho racista, tudo de acordo com a Declaração de Princípios sobre
Liberdade de Expressão;
9. Organizar Seminários estaduais com representantes do Poder Judiciário, Ministério Público e Secretarias de Segurança Pública locais
com o objetivo de fortalecer a proteção contra a discriminação racial
e o racismo;
10. Solicitar aos governos estaduais a criação de delegacias especializadas na investigação de crimes de racismo e discriminação racial;
11. Solicitar aos Ministérios Públicos Estaduais a criação de Promotorias Públicas Estaduais Especializadas no combate ao racismo e a
discriminação racial;
12. Promover campanhas publicitárias contra a discriminação racial
e o racismo.
Em março de 2006, com a aprovação do relatório, a Comissão sugeriu ao Brasil
o cumprimento das recomendações, sendo que em outubro do mesmo ano os autores
informaram que nenhuma medida havia sido adotada, o que levou a Comissão a reiterar
as recomendações.
É preciso aprofundar a reflexão sobre o tema, ao menos até que tenhamos
resposta para esta indagação: até quando vamos nos omitir?
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CARDOSO DE OLIVEIRA, Luís R. Racismo, direitos e cidadania, em Estud.
av. vol.18 no.50 São Paulo Jan./Apr. 2004
Direitos, Insulto e Cidadania (Existe Violência Sem Agressão Moral?), em http://
vsites.unb.br
50
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
LOPES, Carla Patrícia Frade Nogueira. O sistema de cotas para afrodescendentes e o
possível diálogo com o direito. Brasília: Dédalo, 2008
SANTOS, Boaventura de Sousa. Reconhecer para libertar: os caminhos do
cosmopolitismo multicultural. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003
TAYLOR, Charles. Multiculturalismo – Examinando a política de reconhecimento.
Lisboa: Instituto Piaget, 1994.
Notas
1
Racismo, direitos e cidadania, em Estud. av. vol.18 no.50 São Paulo Jan./Apr. 2004 (acesso em 29/12/2010).
Direitos, Insulto e Cidadania (Existe Violência Sem Agressão Moral?), em http://vsites.unb.br (acesso em
29/12/2010).
3
Art. 20. Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. (Redação dada pela Lei nº 9.459, de 15/05/97)
Pena: reclusão de um a três anos e multa.
§ 1º Fabricar, comercializar, distribuir ou veicular símbolos, emblemas, ornamentos, distintivos ou propaganda que utilizem a cruz suástica ou gamada, para fins de divulgação do nazismo. (Redação dada pela
Lei nº 9.459, de 15/05/97)
Pena: reclusão de dois a cinco anos e multa.
§ 2º Se qualquer dos crimes previstos no caput é cometido por intermédio dos meios de comunicação
social ou publicação de qualquer natureza: (Redação dada pela Lei nº 9.459, de 15/05/97)
Pena: reclusão de dois a cinco anos e multa.
§ 3º No caso do parágrafo anterior, o juiz poderá determinar, ouvido o Ministério Público ou a pedido
deste, ainda antes do inquérito policial, sob pena de desobediência: (Redação dada pela Lei nº 9.459, de
15/05/97) I - o recolhimento imediato ou a busca e apreensão dos exemplares do material respectivo;
II - a cessação das respectivas transmissões radiofônicas ou televisivas.
III - a interdição das respectivas mensagens ou páginas de informação na rede mundial de computadores.
(Incluído pela Lei nº 12.288, de 2010)
§ 4º Na hipótese do § 2º, constitui efeito da condenação, após o trânsito em julgado da decisão, a destruição
do material apreendido. (Parágrafo incluído pela Lei nº 9.459, de 15/05/97).
4
Em tais hipóteses, será possível a configuração da injúria qualificada prevista no art. 140, § 3º, do Código
Penal:
Art. 140. Injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro:
§ 3º Se a injúria consiste na utilização de elementos referentes a raça, cor, etnia, religião, origem ou a
condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência:
5 Pena – reclusão de 1 (um) a 3 (três) anos e multa.
LOPES, Carla Patrícia Frade Nogueira, O sistema de cotas para afrodescendentes e o possível diálogo com o
direito. Brasília: Dédalo, 2008.
6
TAYLOR, Charles. Multiculturalismo – Examinando a política de reconhecimento. Lisboa: Instituto Piaget,
1994.
7
Coincidente com essa posição é o entendimento de Boaventura de Sousa Santos (Reconhecer para libertar:
os caminhos do cosmopolitismo multicultural. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003: p. 458): “O multiculturalismo progressista pressupõe que o princípio da igualdade seja utilizado de par com o princípio do
reconhecimento da diferença [...] temos o direito de ser iguais quando a diferença nos inferioriza; temos
o direito de ser diferentes quando a igualdade nos descaracteriza.”
8
Os dados estão disponíveis no site da ONG Justiça Global: www.global.org.br (acessos em 20 e 21/12/2006)
e no site da Comissão Interamericana de Direitos Humanos: www.cidh.org (acesso em 21/12/2006).
9
A petição foi encaminhada pelo Ofício JG/RJ 231/01; segundo consta no site www.global.org.br (acessos
em 20 e 21/12/2006), o pedido teria sido aberto em 24/01/2001, o que, à primeira vista, parece ser um
equívoco em relação a ano, que deve ser 2002. Não foi encontrado, no site da Comissão Interamericana de
Direitos Humanos (acesso em 21/12/2006) o relatório de admissibilidade ou inadmissibilidade da petição;
há dados contidos no relatório do 121º período ordinário de sessões, datado de 28/10/2004, no sentido de
que a Comissão realizou audiência sobre a violência policial no Estado do Rio de Janeiro, em função do
Caso Wallace de Almeida.
2
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
51
10
“Artigo 4º - Direito à vida
1. Toda pessoa tem o direito de que se respeite sua vida. Esse direito deve ser protegido pela lei e, em
geral, desde o momento da concepção. Ninguém pode ser privado da vida arbitrariamente.
2. Nos países que não houverem abolido a pena de morte, esta só poderá ser imposta pelos delitos mais
graves, em cumprimento de sentença final de tribunal competente e em conformidade com a lei que estabeleça tal pena, promulgada antes de haver o delito sido cometido. Tampouco se estenderá sua aplicação
a delitos aos quais não se aplique atualmente.
3. Não se pode restabelecer a pena de morte nos Estados que a hajam abolido.
4. Em nenhum caso pode a pena de morte ser aplicada a delitos políticos, nem a delitos comuns conexos
com delitos políticos.
5. Não se deve impor a pena de morte e pessoa que, no momento da perpetração do delito, for menor de
dezoito anos, ou maior de setenta, nem aplicá-la a mulher em estado de gravidez.
6. Toda pessoa condenada à morte tem direito a solicitar anistia, indulto ou comutação da pena, os quais
podem ser concedidos em todos os casos. Não se pode executar a pena de morte enquanto o pedido estiver
pendente de decisão ante a autoridade competente.”
“Artigo 8º - Garantias judiciais
1. Toda pessoa terá o direito de ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por
um juiz ou Tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei, na apuração
de qualquer acusação penal formulada contra ela, ou na determinação de seus direitos e obrigações de
caráter civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra natureza.
2. Toda pessoa acusada de um delito tem direito a que se presuma sua inocência, enquanto não for
legalmente comprovada sua culpa. Durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena igualdade, às
seguintes garantias mínimas:
a) direito do acusado de ser assistido por um tradutor ou intérprete, caso não compreenda ou não fale a
língua do juízo ou tribunal;
b) comunicação prévia e pormenorizada ao acusado da acusação formulada;
c) concessão ao acusado do tempo e dos meios necessários à preparação de sua defesa;
d)direito do acusado de defender-se pessoalmente ou de ser assistido por um defensor de sua escolha e
de comunicar-se, livremente e em particular, com seu defensor;
e) direito irrenunciável de ser assistido por um defensor proporcionado pelo Estado, remunerado ou não,
segundo a legislação interna, se o acusado não se defender ele próprio, nem nomear defensor dentro do
prazo estabelecido pela lei;
f) direito da defesa de inquirir as testemunhas presentes no Tribunal e de obter o comparecimento, como
testemunhas ou peritos, de outras pessoas que possam lançar luz sobre os fatos;
g) direito de não ser obrigada a depor contra si mesma, nem a confessar-se culpada; e
h)direito de recorrer da sentença a juiz ou tribunal superior.
3. A confissão do acusado só é válida se feita sem coação de nenhuma natureza.
4. O acusado absolvido por sentença transitada em julgado não poderá ser submetida a novo processo
pelos mesmos fatos.
5. O processo penal deve ser público, salvo no que for necessário para preservar os interesses da justiça.”
“Artigo 25 – Proteção judicial
1. Toda pessoa tem direito a um recurso simples e rápido ou a qualquer outro recurso efetivo, perante os
juízes ou tribunais competentes, que a proteja contra atos que violem seus direitos fundamentais reconhecidos pela Constituição, pela lei ou pela presente Convenção, mesmo quando tal violação seja cometida
por pessoas que estejam atuando no exercício de suas funções oficiais.
2. Os Estados-partes comprometem-se:
a) a assegurar que a autoridade competente prevista pelo sistema legal do Estado decida sobre os direitos
de toda pessoa que interpuser tal recurso;
b) a desenvolver as possibilidades de recurso judicial; e
c) a assegurar o cumprimento, pelas autoridades competentes, de toda decisão em que se tenha considerado
procedente o recurso.”
O artigo 1º, 1 encontra-se transcrito na nota 130.
11
Sob esse aspecto, encontra-se o seguinte trecho na petição, que merece transcrição: “De acordo com o
relatório do pesquisador do ISER, Professor Ignácio Cano, o papel da raça no uso da força policial letal,
talvez seja a fonte das violações mais severas dos direitos humanos no Brasil. Após avaliar mais de 1000
homicídios cometidos pela polícia do Rio de Janeiro, entre os anos de 1993 e 1996, o relatório conclui
que a raça constitui um fator que influencia a polícia – seja conscientemente ou não – quando se atira
para matar. Quanto mais escura a pele da pessoa, mais suscetível ela está de ser vítima de uma violência
52
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
fatal por parte da polícia. Os registros apontam que entre os mortos, pela polícia, os negros e pardos são
70,2% e os brancos 29,8%.”
Os dados estão disponíveis nos sites da ONG CEJIL – www.cejil.org e da Comissão Interamericana de
Direitos Humanos – www.cidh.org (acessos em 21/12/2006).
13
De acordo com este Relatório, a posição dos peticionantes sobre o caso é assim resumida: “Segundo os
peticionários, na data de 2 de março de 1997, a senhora Aparecida Gisele Mota da Silva, fez publicar no
jornal A Folha de São Paulo, jornal de grande circulação no Estado Paulista, na parte de Classificados,
nota através da qual comunicava o seu interesse em contratar uma empregada doméstica onde informava
dentre outras coisas, que tinha preferência por pessoa de cor branca. Tomando conhecimento do anúncio,
a estudante e empregada doméstica Simone André Diniz, chamou o número indicado, apresentando-se
como candidata ao emprego. Atendida pela senhora Maria Tereza - pessoa encarregada por D. Aparecida
para atender os telefonemas das candidatas, foi indagada por esta sobre a cor de sua pele, que de pronto
contestou ser negra, sendo informada, então, que não preenchia os requisitos para o emprego.
8
. Incontinenti, a senhora Simone Diniz, denunciou a discriminação racial sofrida e o anúncio racista à Ordem dos Advogados do Brasil, Seção São Paulo, na Subcomissão do Negro e, acompanhada de advogado,
prestou notitia criminis junto à então Delegacia de Crimes Raciais. Em 5 de março de 1997 foi instaurado
Inquérito Policial sob o número 10.541/97-4 para apurar a violação do artigo 20 da Lei 7716/89, que define
a prática de discriminação ou preconceito de raça como crime. O delegado de polícia responsável pelo
Inquérito tomou depoimento de todas as pessoas envolvidas: a suposta autora da violação e seu esposo, a
suposta vítima e uma amiga e a senhora que atendeu o telefonema da senhora Simone Diniz.
9
. De acordo com os peticionários, na data de 19 de março de 1997 o delegado de polícia elaborou relatório
sobre a notícia crime e o enviou ao Juiz de Direito. Dando ciência ao Ministério Público sobre a Inquérito
– somente o Ministério Público tem legitimidade para começar a Ação Penal pública, este manifestou-se
em 02 de abril de 1997 pedindo arquivamento do processo fundamentando que
“… não se logrou apurar nos autos que Aparecida Gisele tenha praticado qualquer ato que pudesse constituir crime
de racismo, previsto na Lei 7.716/89…” e que não havia nos autos “… qualquer base para o oferecimento de
denúncia”.
10
.Os peticionários informaram que o Juiz de Direito, prolatou sentença de arquivamento em 07 de abril de
1997, com fundamento nas razões expostas pelo membro do Ministério Público.” A posição do Estado
brasileiro foi no sentido de que a petição era manifestamente improcedente, e que a investigação, o processo
e o julgamento do caso no Brasil se operaram de acordo com a legislação interna aplicável à hipótese.
14
“Artigo 24 – Igualdade perante a lei
Todas as pessoas são iguais perante a lei. Por conseguinte, têm direito, sem discriminação alguma, à igual
proteção da lei.”
O artigo 1º encontra-se transcrito na nota 130, e os artigos 8º e 25 na nota 134.
15
O anúncio foi publicado nos Classificados do jornal Folha de São Paulo, edição de 02/03/1997, com o
seguinte texto: “doméstica. Lar. P/ morar no empr. C/ exp. Toda rotina, cuidar de crianças, c/ docum. E
ref.; Pref. Branca, s/ filhos, solteira, maior de 21 a. Gisele”.
16
“Artigo 51 – 1. Se no prazo de três meses, a partir da remessa aos Estados interessados do relatório da
Comissão, o assunto não houver sido solucionado ou submetido à decisão da Corte pela Comissão ou pelo
Estado interessado, aceitando sua competência, a Comissão poderá emitir, pelo voto da maioria absoluta
de seus membros, sua opinião e conclusões sobre a questão submetida à sua consideração.
2.A Comissão fará as recomendações pertinentes e fixará um prazo dentro do qual o Estado deve tomar
as medidas que lhe competir para remediar a situação examinada.
3.Transcorrido o prazo fixado, a Comissão decidirá, pelo voto da maioria absoluta dos seus membros, se
o Estado tomou ou não as medidas adequadas e se publica ou não seu relatório.”
17
A íntegra do relatório está disponível no site da Comissão Interamericana de Direitos Humanos:
www.cidh.org (acesso em 21/12/2006).
18
Nessa parte do relatório, a Comissão apresenta alguns dados estatísticos sobre a questão racial no Brasil:
reporta-se a uma pesquisa do IPEA pela qual se verificou que em 1999 os negros eram 45% da população brasileira, mas correspondiam a 64% da população pobre e 68% da população indigente; segundo
conclusão dessa pesquisa, “nascer negro no Brasil está relacionado a uma maior probabilidade de crescer
pobre.” Na área da educação, o relatório cita dados do IBGE de que em 1999, 21% dos afrodescendentes
eram analfabetos, enquanto 8% dos brancos também o eram; partindo-se do conceito de “analfabeto
funcional”, elaborado pela UNESCO (educação até o 4º ano do ensino fundamental), 22,7% dos brancos
ostentavam essa condição e, na mesma situação, 41% de afrodescendentes. No item mortalidade infantil,
o relatório da CIDH cita que, no mesmo ano, para cada grupo de 1000 crianças negras ou mestiças, 62
não viviam até a idade de 1 ano, enquanto a taxa para as crianças brancas era de 37 para cada grupo de
1000 crianças. Um outro dado é o relacionado ao sistema criminal judicial brasileiro: na cidade de São
12
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
53
Paulo, em 1980, a população branca era de 72,1%, e a negra (pretos e pardos), de 24,6%; nesse universo,
era encontrada uma maior proporção de réus negros condenados (68,8%) do que réus brancos (59,4%)
pelo mesmo crime; a absolvição favorecia preferencialmente brancos (37,5%) comparativamente a negros
(31,2%). Outra pesquisa apontada é um levantamento feito no Rio de Janeiro mostrando que o perfil
da maioria das crianças e adolescentes assassinados, em um conjunto de 265 investigações, é de pobre,
sexo masculino, negro e mulato. No que concerne às relações de emprego, o relatório alude à pesquisa do
IBGE em que se vê que 5.7% da população branca empregada ocupava funções de empregadores, contra
1.3% de negros e 2.1% de mestiços; igualmente, 5.7% da população branca empregada ocupava posição
de trabalhador doméstico contra 13.4% de negros e 8,4% de mestiços.
19
Sobre essa questão, elucidativo é o item 75 do relatório: “75. Para ilustrar com alguns dados o padrão
de desigualdade no acesso à justiça para as vítimas de crimes de cunho racial, de 300 Boletins de Ocorrência analisados, de 1951 a 1997, nas cidades do Rio de Janeiro, São Paulo, Salvador e Porto Alegre,
apenas 150 foram considerados como crime pelos delegados de polícia achegando ao estágio de inquérito
policial. Desses, somente 40 foram encaminhados pelo Ministério Público para uma ação pena contra o
discriminador, dos quais apenas nove – cinco em São Paulo e quatro no Rio Grande do Sul – chegaram
a julgamento.”
20
Este o posicionamento da CIDH: “Em primeiro lugar a Comissão entende que excluir uma pessoa do acesso
ao mercado de trabalho por sua raça constitui um ato de discriminação racial”, passando a referir-se ao
art. 1º da Convenção Internacional para Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial (esse
dispositivo encontra-se transcrito no item 3.3 deste capítulo). Nesse contexto, está redigido o item 107
do relatório, como advertência: “107. A Comissão chama a atenção do governo brasileiro que a omissão
de autoridades públicas em efetuar diligente e adequada persecução criminal de autores de discriminação
racial e racismo cria o risco de produzir não somente um racismo institucional, onde o Poder Judiciário é
visto pela comunidade afro-descendente como um poder racista, como também resulta grave pelo impacto
que tem sobre a sociedade na medida em que a impunidade estimula a prática do racismo.”
21
“78. Segundo ilação da Comissão, a Lei 7716/89, ‘não representou maior avanço no campo da discriminação
racial por ser excessivamente evasiva e lacônica e exigir, para a tipificação do crime de racismo, o autor,
após praticar o ato discriminatório racial, declare expressamente que sua conduta foi motivada por razões
de discriminação racial’. Se não o fizesse, seria sua palavra contra a do discriminado.”
“94. Mesmo com a posterior criação da figura penal da injúria racista, aquela que associa elementos como
raça, cor, etnia, religião ou origem, o governo vai mais longe e aponta que mesmo que a lei tenha feito
distinção entre injúria genérica e aquelas baseadas em discriminação (por raça, cor, origem, etnia ou religião), conferindo a esta uma pena mais severa, essa lei permanece mais fraca que o tratamento prescrito
para os crimes de racismos prescritos na lei 7716/89, além do que, por ser esse crime perseguível somente
por ação privada, quando um particular tipo de conduta é reduzida de racismo para injúria, a vítima é
forçada a abrir uma ação de breve prazo de seis meses restantes, o que leva o crime a não ser punido.”
—— • ——
54
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
Incidente de Julgamento de
Demandas Repetitivas no PLS 166:
uma Apresentação da Proposta
no Novo CPC.
Marília de Ávila e Silva Sampaio
Juíza de Direito titular da 14a Vara Cível de Brasília. Mestre em Direito pela Universidade de Brasília.
Doutoranda em Direito e Políticas Públicas pelo Centro Universitário de Brasília – Uniceub.
1- Apresentação do tema
P
1
or ocasião dos debates acerca do PLS166/10 , que cria o novo Código de Processo
Civil, algumas inovações chamaram de pronto a atenção da comunidade
jurídica, sendo certo que uma das mais interessantes foi o incidente de resolução
de demandas repetitivas. Sem precedente no CPC atual, o procedimento pretende
organizar o julgamento das demandas que versem sobre idêntica questão de direito e com
possibilidade de causar grave insegurança jurídica, decorrente do risco de coexistência
de decisões conflitantes.
O objetivo do presente ensaio é fazer uma apresentação panorâmica do instituto,
principalmente à luz da justificativa apresentada pelos membros da comissão de juristas
responsável pela elaboração do anteprojeto do código.
Conforme apresentado na exposição de motivos do anteprojeto, o procedimento
foi inspirado no direito alemão, o “musterverfahren e gera decisão que serve de modelo
(= muster) para resolução de uma quantidade expressiva de processos em que as partes
estejam na mesma situação, não se tratando necessariamente do mesmo autor e nem
do mesmo réu.”
Assim, o julgamento de demandas identificadas a partir da mesma questão
de direito, ainda em primeiro grau de jurisdição e que tenham potencial para gerar
uma expressiva repercussão de demandas com risco de decisões conflitantes, cria a
possibilidade de suspensão do processamento das demais ações, “tanto no juízo de
primeiro grau, quanto dos demais recursos extraordinários ou especiais, que estejam
2
tramitando nos tribunais superiores, aguardando julgamento.”
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
55
Ainda segundo a exposição de motivos, a medida reflete a tendência de
3
coletivização do processo , nesse caso caracterizado em função do julgamento de um
número expressivo de demandas. A coletivização do processo inclui-se entre as linhas
atuais do processo civil moderno, na busca de um processo civil de resultado, com o qual
se busca a obtenção do maior efeito útil possível, num cotejo entre o máximo resultado,
com o mínimo de custo. Assim, vem o procedimento ao encontro do julgamento de
demandas que englobem interesses de segmentos sociais de largo espectro, como os
consumidores, deficientes, crianças e adolescentes, idosos, entre tantos outros.
Na atual sistemática já existem algumas tentativas pontuais de julgamento de
feitos repetitivos como é o caso do art. 285-A, que permite o julgamento liminar de
mérito ou o julgamento de recursos representativos da controvérsia, nos termos do
art. 543, b e c. Este último estabelece critérios para aferição da repercussão geral, por
meio da seleção de recursos representativos da controvérsia, com o sobrestamento
dos demais recursos até decisão final da corte, ou o julgamento pelo STJ de recurso
especial representativo de controvérsia (art.543-C, § 1º, do CPC), que pressupõe o
reconhecimento, pelos Tribunais de Justiça, da existência de multiplicidade de recursos
com o mesmo tema, sendo o processo, nestas circunstâncias, remetido ao STJ, com
4
suspensão das demais ações semelhantes .
O incidente de julgamento de demandas repetitivas, tal como proposto,
representa ainda, uma forma de desvencilhamento da chamada jurisprudência defensiva
para o julgamento de teses relevantes.
Segundo afirmou o Ministro Luiz Fux, presidente da Comissão que elaborou o
anteprojeto do Código, o incidente é uma das principais novidades no sentido de reduzir
o numero de processos em tramitação, afirmando que “graças a esse incidente, será
possível selecionar um número reduzido de processos-piloto em ações de massa para
serem julgados pelos tribunais (estaduais, regionais ou superiores) – os demais ficam
parados. Uma vez julgados os processos-piloto, a decisão adotada se aplica a todos os
outros casos idênticos, novos e em trâmite. Na prática, o novo instrumento adapta o
previsto pela Lei dos Recursos Repetitivos, utilizado exclusivamente pelo STJ, para os
demais tribunais”.
2 – Requisitos
O art. 895 do projeto 166/10 estabelece como requisitos para a instauração do
incidente:
• Controvérsia com potencial de gerar relevante multiplicação de
processos;
• Fundado em idêntica questão de direito;
• Capaz de causar grave insegurança jurídica decorrente do risco de
coexistência de decisões conflitantes;
• Análise da conveniência da adoção da decisão paradigmática (art.
898, § 1º).
56
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
À instauração do incidente seguir-se-á a mais ampla publicidade, por meio do
registro eletrônico no CNJ (art. 896), devendo os tribunais promover a atualização
de banco eletrônico de dados sobre questões de direito submetidas ao incidente,
comunicando imediatamente ao CNJ (parágrafo único). Tal procedimento vem previsto
também no projeto da nova Lei de Ação Civil Pública, em tramitação no Congresso
Nacional.
3 - Competência
O art. 30, parágrafo único do projeto estabelece que a competência para decidir
o incidente será do órgão especial, onde houver ou do tribunal pleno. Trata-se de
modalidade de competência funcional, inserida na seção, III, do título III da parte
geral do projeto.
O mesmo disciplinamento vem repetido no art. 898, segundo o qual o juízo de
admissibilidade e o julgamento do incidente competirão ao pleno do tribunal ou, onde
houver, ao órgão especial.
Admitido o incidente, o tribunal julgará a questão de direito, que vinculará os
demais órgãos fracionários situados no âmbito de sua competência (898, § 2º).
4 - Procedimento
• Legitimação para o pedido de instauração: relator ou juiz, por ofício e partes, Ministério Público e Defensoria Pública, por petição.
O pedido deverá ser instruído com os documentos necessários à demonstração da necessidade de instauração do incidente. (art. 895)
• O Ministério Público intervirá obrigatoriamente no processo e
pode assumir a titularidade se houver desistência ou abandono. (art.
895,§ 3º)
• Pedido de informações: após a distribuição o relator pode requisitar informações ao juízo onde originalmente tramita o processo, que
deverão ser apresentadas num prazo de 15 dias. (art. 897)
• Suspensão dos feitos: admitido o incidente, na própria sessão o
presidente do tribunal determinará a suspensão dos processos pendentes em primeiro e segundo grau de jurisdição. Durante a suspensão poderão ser concedidas medidas urgentes no juízo de origem.
• Oitiva das partes e pedidos de diligências: o relator ouvirá as partes e demais interessados, que num prazo comum de 15 dias, poderão
requerer providências e juntada de documentos. No mesmo prazo se
manifestará o Ministério Público. (art. 901)
• Do julgamento: após a exposição do incidente pelo relator, autor e réu no processo originário e, em seguida o Ministério Público,
poderão se manifestar pelo prazo de 30 minutos. Depois os demais
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
57
interessados terão 30 minutos, divididos entre todos (art. 902). O
prazo para julgamento será de seis meses e terá preferência sobre os
demais, ressalvados os que envolvam réu preso e os pedidos de habeas
corpus (art. 904).
• Fim da suspensão: superado o prazo de seis meses para julgamento,
cessará a eficácia suspensiva do incidente, salvo decisão fundamentada do relator em sentido contrário.
5 - Julgamento dos Recursos Extraordinários e dos Recursos Especiais
Nos termos do disposto no PLS 166, as partes, os interessados, o Ministério Público e a Defensoria Pública são legitimados a requerer, nos recursos extraordinários ou
Recursos especiais, a suspensão dos processos em tramitação em todo território nacional
que versem sobre questão objeto do5 incidente competente. Admite-se a intervenção
do amicus curiae (art. 900, § único).
Esclarece o texto do projeto que o recurso extraordinário ou o recurso especial
interposto pelas partes, pelo Ministério Público ou por terceiro interessado da decisão
do incidente terá efeito suspensivo, presumindo-se a repercussão geral de questão
constitucional eventualmente discutida. Por fim, mantém-se o julgamento de recurso
extraordinário e Recurso especial, quando repetitivos, sempre que houver multiplicidade de recursos com fundamento em idêntica questão de direito, selecionando-se um
recurso representativo da controvérsia e suspendendo-se os demais, até a decisão do
recurso representativo.
6 – Reclamação
A decisão do incidente que julgar questão de direito será de observância obrigatória pelos demais juízes e órgãos fracionários situados no âmbito de sua competência.
Não observada a tese adotada pela decisão proferida no incidente, caberá reclamação
para o tribunal competente, sendo o julgamento da reclamação processado nos termos
dos regimentos internos dos tribunais. (art.906)
7- Julgamento liminar dos processos
O juiz rejeitará liminarmente a demanda, sem julgamento do réu se o pedido
contrariar entendimento do STF ou STJ, sumulado ou adotado em julgamento de casos
repetitivos de casos repetitivos.
8- Considerações finais
Após uma breve apresentação dos principais aspectos atinentes ao incidente de
julgamento de demandas repetitivas, verifica-se que sua proposição vem em resposta
aos anseios da sociedade em relação a uma atuação judicial mais célere e efetiva. Não
58
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
obstante, após amplos debates acerca do novo texto, algumas perplexidades merecem
ser pontuadas, uma vez que não apreciadas no projeto. A primeira delas diz respeito
a como selecionar o processo-piloto, qual o critério de escolha a ser adotado? O mais
abrangente? A tese mais representativa? E quando existirem teses remanescentes nos
processos escolhidos para julgamento?
Outro ponto não esclarecido, diz respeito ao efeito vinculante da decisão do
incidente, pois, na forma como disciplinada a questão, parece-nos haver a criação de
uma espécie de súmula vinculante não prevista constitucionalmente.
Por fim, releva destacar que se não houver um controle eficiente do banco de
dados relativo à suspensão dos feitos, os efeitos pretendidos não serão alcançados.
Notas
1
O texto encontra-se atualmente na Câmara dos Deputados e recebeu o n. PL nº 8046/2010, tendo sido
aprovado no Senado Federal. No Senado Federal O relator geral foi o Senador Valter Pereira. Na Câmara,
até 26/04/2011, não houve a designação de relator.
2
Exposição de motivos do PLS 166, pág. 28.
3
Verifica- se uma tendência à superação do modelo clássico do processo civil dos séculos XVIII e XIX,
centrado, sobretudo, no individualismo, pois em sociedades complexas e plurais como as contemporâneas
esse modelo de processo não se apresenta como apto a dar respostas às demandas da chamada sociedade
de massa. Sobre o tema preleciona Ives Gandra Martins: “Constituição de 1988 albergou, em seu art.129,
III, instrumento de extrema importância para a defesa de direitos coletivos e difusos, que é a ação civil
pública. Trata-se do principal veículo da coletivização do processo, em que as demandas individuais,
que caracterizaram o processo tradicional, passam a se concentrarem em ações coletivas, nas quais uma
associação ou o Ministério Público esgrime, em nome da coletividade, o direito genericamente lesado.O
futuro aponta para o crescimento dessa modalidade processual, na medida em que o Poder Judiciário
não tem condições de dar resposta célere e satisfatória a uma infinidade de ações de caráter individual
e repetitivo. Assim, a concentração de demandas num único processo, para reconhecimento genérico
da existência de lesão de determinado direito, em ação de caráter cominatório, permite um sensível
desafogamento do Poder Judiciário. (Os Direitos fundamentais e os Direitos Sociais na Constituição
de 1988 e sua defesa; Brasília, vol. 1, n. 4, agosto 1999; http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/revista/
Rev_04/direitos_fundamentais.htm)
4
O regime seguido pelos recursos repetitivos dentro do STJ, nos termos da Resolução 8/STJ, prescreve que,
havendo multiplicidade de recursos sobre a mesma matéria num TJ ou TRF, é facultado ao Presidente, em
juízo de admissibilidade, selecionar 1 ou 2 processos que são enviados ao STJ para fixação da tese, ficando
sobrestados os demais. Os paradigmas enviados ao STJ são autuados distintamente, recebendo uma capa
de cor azul, seguindo trâmite diferenciado na forma do 543-C e seguintes.
5
“Termo latino que significa “amigo da corte”, refere-se a uma pessoa, entidade ou órgão, com profundo
interesse em uma questão jurídica, na qual se envolve como um terceiro, que não os litigantes, movido
por um interesse maior que o das partes envolvidas no processo. O amicus é amigo da corte e não das
partes. Originado de leis romanas, foi plenamente desenvolvido na Inglaterra pela English Common Law
e, atualmente, é aplicado com grande ênfase nos Estados Unidos (EUA). Seu papel é servir como fonte
de conhecimento em assuntos inusitados, inéditos, difíceis ou controversos, ampliando a discussão antes
da decisão dos juízes da corte. A função histórica do amicus curiae é chamar a atenção da corte para fatos
ou circunstâncias que poderiam não ser notados.Por esse instrumento, o amicus apresenta um documento
ou memorial, informando à Corte Suprema sobre determinado assunto polêmico de relevante interesse
social, objeto de julgamento. Tem como objetivo não favorecer uma das partes, mas dar suporte fático e
jurídico à questão sub judice, enfatizando os efeitos dessa questão na sociedade, na economia, na indústria,
no meio ambiente, ou em quaisquer outras áreas onde essa discussão possa causar influências.” (Esther
Maria Brighenti dos Santos. Amicus curiae:um instrumento de aperfeiçoamento nos processos de controle de
constitucionalidade. WWW. Jus navegandi.com.br)
—— • ——
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
59
O Juiz-Administrador
*
Oriana Piske de Azevedo Barbosa
*
Juíza de Direito do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJDFT).
Mestre em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).
Pós-graduação em: Teoria da Constituição; Direito do Trabalho; e
Direito Civil pelo CESAP – UniCEUB.
Doutoranda em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidad del Museo Social Argentino
(UMSA).
INTRODUÇÃO
O
objetivo da presente ensaio é tecer algumas reflexões sobre o juiz administrador,
no desenvolvimento de uma Gestão Democrática do Poder Judiciário,
que está se construindo nas últimas décadas. Nessa reflexão abordamos os
seguintes aspectos: o dilema do acesso à Justiça; a nova reengenharia do processo:
formas alternativas de resolução de conflito, informática e simplificação da linguagem
jurídica; o juiz no Estado Democrático de Direito; o juiz e a conciliação; o juiz como
administrador; e a Gestão democrática do Judiciário.
Nesse panorama, procuramos delinear os desafios da magistratura contemporânea, destacando dentre eles a necessidade da concretização dos direitos de cidadania,
para tanto, analisamos a nova revolução processual – mudança de mentalidade dos
operadores do Direito, em especial –, do juiz-conciliador e pacificador social, na emergência dos novos direitos, que se apresentam. Examinamos a necessidade de recorrer
a interdisciplinariedade, melhor dizendo – da transdiciplinariedade –, em busca das
decisões mais eficazes e eficientes, seja no âmbito judicial ou administrativo.
Nesse trilhar, observamos, no contexto – juiz-administrador –, que os princípios
e conhecimentos da Ciência da Administração, tanto na seara pública, quanto na privada serão fundamentais para uma Gestão judiciária que prime pela qualidade de seus
serviços e contribua para viabilizar o maior acesso à Justiça brasileira.
Foram utilizados e manejados, para o desenvolvimento do trabalho, livros e
artigos jurídicos, e de outras Ciências Sociais, ou seja, a pesquisa bibliográfica. Na conclusão, construímos uma síntese a partir das abordagens jurídicas e de Administração
visando delinear o papel da magistratura brasileira no fortalecimento da cultura de
Direitos humanos.
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
61
1. O DILEMA DO ACESSO À JUSTIÇA
O acesso à Justiça sempre foi um dilema a ser solucionado pela humanidade. Ao
longo da história, observa-se que as estruturas dos Tribunais passaram a ter uma administração cada vez mais lenta e congestionada, seja, por um lado, pelo reconhecimento
de um maior número de direitos, seja, de outro, pelo excesso de rigor, de formalismo e
de recursos processuais gerando insatisfação e falta de confiança dos cidadãos quanto
ao Poder Judiciário como instituição.
É preciso que um número cada vez maior de pessoas tenha a oportunidade de
chegar aos umbrais da Justiça, como um fato natural e inerente à condição da própria
pessoa humana, como parte indispensável do complexo de direitos e deveres que caracteriza o viver em sociedade. Só assim se conseguirá estabelecer o acesso à ordem
1
jurídica justa.
Atualmente, há uma tendência para simplificar as normas processuais, tanto
no campo cível como no penal, uma vez que sem elas não será possível restabelecer
a paz social rompida nos limites comportamentais das partes. As sistemáticas processuais formalistas que antes representavam etapas de garantias de direitos individuais e coletivos, para um devido processo legal, hoje, em excesso, caracterizam
uma justiça tardia e inconcebível deformação de valores, conceitos e atitudes, os
quais devem ser repensados e modificados para atender aos reclamos da sociedade
contemporânea.
A propósito, quando se almeja equacionar as dificuldades do acesso à Justiça,
não se pode perder de vista que uma grande parcela da população passa ao largo da
proteção jurídica, em função da situação particular em que vive, causada notadamente
pela gritante diferença na distribuição da renda, criando camadas e subcamadas populacionais que vivem à margem da sociedade.
Ressalte-se que, muitas vezes diante da pequenez do bem jurídico violado, quase
sempre o ofendido acaba renunciando ao próprio direito por saber que a morosidade do
Judiciário lhe trará mais prejuízo do que benefício. Em geral, é a camada menos favorecida da população quem sofre com as consequências mais desastrosas da dificuldade
do acesso à Justiça. A falta de acesso ao Judiciário constitui um dos problemas que mais
afligem a sociedade brasileira moderna.
Algo em torno de 80% da nossa população é considerada carente, na acepção
social e jurídica do termo, já que não pode pagar as despesas processuais sem prejuízo
do sustento próprio ou da família. E mesmo aqueles que reúnem condições para tais
gastos, são afastados do Judiciário por variados motivos, dentre eles o longo tempo para
2
solução da demanda. Garantia maior da cidadania, um dos fundamentos do Estado
o
democrático (artigo 1 , inciso II, da Constituição Federal), é o acesso ao Judiciário – por
sua vez um dos mais importantes direitos fundamentais elencados na Constituição (art.
o
5 , incisos XXXV e LXXIV).
É oportuno destacar que o Brasil, infelizmente, é um dos primeiros colocados na
pesquisa do BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento) em desigualdade social no
mundo. Em nosso país, 5% dos mais ricos detém 37% do PIB e 10% dos mais ricos detém
3
56% do PIB (produto interno bruto). Outro problema que se revela preocupante são as
62
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
consequências do fenômeno da demanda reprimida oriunda de uma gama de conflitos
de interesses não solucionados. A sua banalização vem gerando desestabilidade social e
diversas formas de violência, visto que, sem acesso à Justiça, a sociedade busca formas
alternativas de solução, nem sempre dotadas de ética e orientadas pelos caminhos legais.
2. A REENGENHARIA DO PROCESSO: FORMAS ALTERNATIVAS DE
RESOLUÇÃO DE CONFLITO, INFORMÁTICA E SIMPLIFICAÇÃO DA
LINGUAGEM JURÍDICA
o
Verifica-se que a Constituição Federal, no artigo 5 , inciso XXXV, ao dispor que
“a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça de direito”, não
pretendeu impor limitação à forma de soluções de conflitos, mas, ao contrário, implicitamente pretende possibilitar a composição dos litígios de um modo geral, mesmo que
fora de seu âmbito.
O Poder Judiciário caminha atualmente ao encontro de formas alternativas
de resolução das demandas, por meio de instrumentos de ação social participativa. E
dentro desse raciocínio, insere-se, em última ratio, toda filosofia e o próprio idealismo
daqueles que estão empenhados em mudanças razoáveis e factíveis para que outras
perspectivas e outros horizontes se abram para o povo em geral, especialmente para os
hipossuficientes econômicos, graças à facilitação do acesso à Justiça, com a utilização
de meios e instrumentos alternativos, como, v. gratia, a conciliação, a mediação e a
arbitragem, com todos os desdobramentos deles derivados.
Estamos passando, atualmente, por uma revolução na forma de fazer justiça,
caminhando, com a reengenharia do processo, para uma modificação estrutural e funcional do Judiciário em si. Procura-se remodelar o seu perfil no sentido de adequá-lo ao
da Justiça que se espera na nova era pós-industrial, que vem sendo constituída principalmente nas três últimas décadas, na qual a informática transforma o conhecimento
no instrumento de satisfação das necessidades da sociedade e é ferramenta de trabalho
hábil para encurtar o tempo e a distância.
Esses fatores, em uma sociedade que anda à velocidade da luz e em constante
competição globalizada, assumem destaque como a espinha dorsal da qualidade de
todo e qualquer serviço. A Justiça, como serviço e instrumento de pacificação social,
precisa comungar das idéias que estão modificando a civilização, sob pena de perder-se
no tempo e no espaço.
Uma dessas valorosas idéias é a simplificação da linguagem jurídica, que é um
instrumento fundamental para a Justiça, que oportuniza o acesso à Justiça e contribui
para a compreensão do funcionamento e da atuação do Poder Judiciário. Reconhecer a
necessidade de simplificação da linguagem jurídica é um dos primeiros passos na direção
da democratização e pluralização da Justiça.
De outra face, é de se observar que inúmeras críticas têm sido feitas recentemente à atuação do Poder Judiciário no Brasil. Contudo, carece o Judiciário de
melhores instrumentos de trabalho. A legislação nacional, além da técnica deficiente,
é hoje de produção verdadeiramente caótica. Deficientes são os instrumentos dispoRevista da Escola da Magistratura - nº 13
63
níveis ao Judiciário, porque já não se aceita a verdadeira liturgia do processo, o amor
desmedido pelos ritos, que quase passaram a ter fim em si mesmos, numa inversão
de valores.
É certo que a entrega da prestação jurisdicional não pode deixar de transitar
por um processo, previamente regrado, no qual os interessados possam ser ouvidos.
Trata-se de elemento essencial para a legitimação da atividade do juiz. Mas, este processo deve ser caminho de realização da Justiça desejada pelos cidadãos, não estorvo
incompreensível e inaceitável.
É preciso perceber que o contato diário do juiz com o jurisdicionado e a própria
sociedade não enfraquece o Poder Judiciário. Ao inverso, tende a conferir-lhe maior grau
de legitimidade. Com efeito, “a prestação da tutela jurisdicional não pode ser enxergada
apenas como a desincumbência, por um dos componentes do Estado tripartite, de uma
tarefa que lhe é ínsita. É muito mais do que isso. Além de perseguir a pacificação social,
ao instante em que diz a quem pertence o direito, tem a atividade jurisdicional um plus
deveras salutar: a pedagogia de mostrar aos jurisdicionados como deve ser a conduta
4
destes nas suas relações interpessoais e interinstitucionais.”
Neste passo é que a Lei dos Juizados Especiais veio propiciar Justiça ágil,
desburocratizada, simplificada, desformalizada e acessível a todos os cidadãos. Desta
forma, os Juízes estão despertando para deixar de lado o monólogo criptografado
nas suas sentenças para exercitar um diálogo compreensível que aproxime a Justiça
de todos.
Neste sentido, é fundamental que os Tribunais adotem uma linguagem mais
compreensível; realizem campanhas de simplificação da linguagem jurídica, como a feita
pela AMB; promovam cursos de atualização da linguagem jurídica que integrem uma
percepção simplificadora; criem revistas que contemplem peças jurídicas que contenham
exemplos de expressões substituídas por alternativas mais simples.
Assim, percebemos que a necessidade de adaptar o Poder Judiciário às múltiplas
demandas do mundo moderno, a premência de torná-lo mais eficiente, de definir suas
reais funções, sua exata dimensão dentro do Estado Constitucional e Democrático de
Direito, a incessante busca de um modelo de Judiciário que cumpra seus variados papéis
de modo a atender às expectativas dos seus usuários.
3. O JUIZ NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
O Estado Constitucional de Direito caracteriza-se por ser direito e limite, direito e garantia. Cabe ao juiz assegurar o seu reconhecimento e a sua eficácia. Deve
concretizar o significado dos enunciados constitucionais para, a partir deles, julgar a
validade ou invalidade da obra do legislador. É na observância estrita da Constituição,
assim como na sua função de garante do Estado Constitucional de Direito, que assenta,
5
o fundamento da legitimação e da independência do Poder Judiciário.
Trata-se de uma revolução de envergadura. É, em suma, a substituição do Estado
Legal pelo Estado de Direitos. A positivação dos direitos já não está, em última instância,
nas mãos do Legislador, senão nas do Juiz, a quem cabe concretizar o significado dos
64
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
enunciados constitucionais para julgar, a partir deles, a validade ou invalidade da obra
do legislador, mediante uma atuação judicial criativa e pragmática.
O Estado Democrático de Direito não mais aceita uma postura omissa e passiva
do Poder Judiciário. Este deixou de ser um Poder distanciado da realidade social, para
tornar-se um efetivo partícipe da construção dos destinos da sociedade e do país, sendo,
6
além disso, responsável pelo bem da coletividade.
A missão do juiz não se esgota nos autos de um processo, mas está, também,
compreendida na defesa do regime democrático. O Judiciário enfrenta a articulação de
um direito positivo, conjuntural, evasivo, transitório, complexo e contraditório, numa
sociedade de conflitos crescentes, e, por isso, impõe-se a diversificação do Judiciário
para atender às necessidades de controle da norma positiva.
O juiz, como agente político (não partidário), deve estar atento às transformações do mundo moderno, ao aplicar o Direito, valorando os aspectos sociais, políticos e
econômicos dos fatos que lhe são submetidos. Cabe ao juiz exercer a atividade recriadora
do Direito através do processo hermenêutico, bem como a de adaptador das regras
jurídicas às novas e constantes condições da realidade social e, com responsabilidade,
deve buscar as soluções justas aos conflitos, visando à paz social.
Verifica-se que a politização do juiz deriva do fato de que ele soluciona litígios
aplicando normas, que são condutoras de valores e expressões de um poder político.
Não existe, assim, norma neutra. Logo, se o juiz é um aplicador de normas, não existe
juiz neutro. Em verdade, no marco do Estado Constitucional de Direito, a atividade
política e a atividade judicial estão estreitamente unidas pelo império do Direito.
Um outro aspecto da politização do juiz está no fato de que as constituições
modernas contemplam normas de conteúdo poroso, a ser complementado pela
práxis. E o Poder Legislativo derivado, em muitas situações, não só não se esforça
para preencher o vazio, senão prima por seguir a mesma técnica da legislação aberta
e indeterminada. Incapaz de solucionar alguns megaconflitos modernos, muitas
vezes o legislador acaba atribuindo ao Judiciário a responsabilidade de moldar a
norma final aplicável.
Assim, o Judiciário não somente passou a solucionar os conflitos intersubjetivos
de interesses, segundo o modelo liberal individualista, como também a atuar como órgão calibrador de tensões sociais, solucionando conflitos de conteúdo social, político e
jurídico, além de implementar o conteúdo promocional do Direito contido nas normas
7
constitucionais e nas leis que consagram direitos sociais.
4. O JUIZ E A CONCILIAÇÃO
Atualmente, está surgindo um modo novo de pensar a Justiça, não mais problema do Estado, mas também da sociedade, que é chamada a participar do exercício
da jurisdição através da atuação de voluntários como conciliadores. Por outro lado,
exige-se dos operadores do direito que saiam de seus gabinetes e procurem, em outras
instituições e segmentos sociais, respostas adequadas para os problemas jurídicos, muitos
deles associados a questões sociais.
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
65
A comunidade, através de associações, escolas, universidades, hospitais, etc. têm
papel importante na ação preventiva de atos contrários ao direito. Neste contexto, os
Juizados Especiais apresentam-se como uma alternativa nova e moderna para problemas
do nosso tempo, instrumentado para enfrentar os problemas que lhe são postos de acordo
com o grande pilar do direito moderno que é a busca de maior eficácia às garantias dos
Direitos fundamentais do cidadão, mediante suas práticas simplificadoras.
Neste panorama, os conciliadores passam a ser fundamentais para o bom desempenho dos Juizados Especiais e da Justiça como um todo. A presença e a atuação
constante dos conciliadores permite uma inequívoca agilidade e dinamismo processual
com a efetiva solução de um número extraordinário de demandas contribuindo para
a eficiência da Justiça.
Afinal, como conciliar? O dia-a-dia, a experiência dos casos concretos, o tirocínio
de cada um e as técnicas de mediação e composição já consagradas na teoria levarão à
resposta. Os conciliadores dirigem com a supervisão do Juiz o ato processual conciliatório sendo que ficam investidos da imparcialidade, equidistância e, principalmente,
da ponderação de agir e de proceder com reflexão, pois conciliador e árbitro falam em
nome da Justiça que deve, antes de tudo, prevenir e promover o bem-comum.
Os conciliadores devem ter conhecimento da matéria, de fato e de direito,
objeto do conflito. Necessário mostrar os riscos do processo, na hipótese de não haver
acordo e, principalmente, as vantagens da conciliação. O juiz leigo e o conciliador
são funções relevantes que contribuem com a sua participação para a racionalização
da Justiça.
O conciliador deve garantir às partes que a discussão proporcione um acordo
fiel e justo ao direito da comunidade em que vivem. É, o terceiro neutro, que deve ter
conhecimento jurídico e técnico necessário para o bom desenvolvimento do processo;
sua função é a de restabelecer a comunicação entre as partes, conduzindo as negociações
quanto à maneira mais conveniente a portarem-se perante o curso do processo com o
objetivo de obterem a sua efetiva concretização.
O interesse pela conciliação e a importância de que as vias conciliativas se revestem na sociedade contemporânea foram considerados pelo legislador no sentido de
que a conciliação, é mais uma dessas relevantes alternativas. Portanto, é fundamental
que o juiz seja, antes de tudo, um conciliador e um pacificador social.
Nesta tarefa, o juiz deve recorrer a interdisciplinariedade, melhor dizendo – a
transdiciplinariedade –, em busca das decisões mais justas, efetivas e eficientes –, seja
no contexto judicial ou administrativo, vez que os fenômenos humanos devem ser
compreendidos numa perspectiva única, globalizada. Segundo o professor Ubiratan
D’Ambrósio,
A transdisciplinariedade procura superar a organização disciplinar encarando
sempre fatos e fenômenos como um todo. Naturalmente, não se nega a importância
do tratamento disciplinar, multidisciplinar e interdisciplinar para se conhecer detalhes
dos fenômenos. Mas a análise disciplinar, inclusive a multi e a interdisciplinar, será
sempre subordinada ao fato e ao fenômeno como um todo, com todas as suas implicações e inter-relações, em nenhum instante perdendo-se a percepção e a reflexão da
totalidade. As propostas da visão holística, da complexidade, da sinergia e, em geral,
66
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
a busca de novos paradigmas de comportamento e conhecimento são típicas da busca
8
transdisciplinar do conhecimento.
É preciso acreditar nessa visão e utilizar os diversos referenciais teóricos trazidos
pelos profissionais advindos da Psicologia, do Serviço Social, da Antropologia, e demais
Ciências Sociais, além das abordagens sistêmica, psicanalítica e da teoria de resolução de
conflitos a fim de não perder a riqueza que a diversidade de conhecimentos oferece ao
desenvolvimento desse trabalho humanístico em prol da dignidade da pessoa humana
da construção de uma cultura de efetivação da cidadania.
De outra face, é fundamental que o juiz, sem comprometer sua imparcialidade,
tenha um compromisso marcado com a racionalização dos serviços judiciários, com o
atendimento ao público e aos advogados, e com um diálogo próximo aos demais órgãos
públicos, entidades de classe e com outros âmbitos da sociedade civil.
A interdisciplinariedade é, sem dúvida, fator marcante na racionalização dos
serviços prestados pelo Judiciário, na medida em que possibilita agregar o conhecimento
jurídico ao de outras Ciências, permitindo a otimização de métodos de gerenciamento
do serviço judiciário, objetivando práticas mais eficazes e eficientes.
Nesse trilhar, observamos que os princípios e conhecimentos da Ciência da Administração, tanto na seara pública, quanto na privada serão, certamente, fundamentais
para uma gestão judiciária que prime pela qualidade de seus serviços e contribua para
viabilizar o maior acesso à Justiça brasileira, como veremos a seguir.
5. O JUIZ ADMINISTRADOR
Os princípios da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da publicidade
e da eficiência, constantes na Carta Constitucional, no art. 37, deverão orientar a administração pública direta e indireta de quaisquer dos Poderes da União, dos Estados,
do Distrito Federal e dos Municípios, a fim de dar fiel aplicação à nova ordem jurídica
constitucional que visa assegurar a defesa e o equilíbrio entre os interesses públicos,
individuais e coletivos.
A atividade administrativa pública é o exercício da função, ou seja, o cumprimento obrigatório do “dever jurídico funcional” de acertar, ante a ocorrência do caso
9
concreto, a medida tendente a alcançar da melhor forma possível a finalidade da lei. Por
conseguinte, o administrador público deverá observar com rigor os aludidos princípios
insculpidos na Constituição Federal, simultaneamente com os princípios da razoabilidade, da proporcionalidade e os princípios gerais de Direito, bem como a finalidade da
lei, como condição para a validade e legitimidade de seus atos.
De outra banda, impõe-se a adoção de conduta administrativa pública em harmonia com os termos e requisitos estabelecidos na norma, a fim de resguardar os princípios
democráticos. Os princípios constitucionais da administração pública encontram-se em
consonância com os princípios basilares éticos da administração como um todo, posto
que ambos têm como escopo desenvolver, respectivamente, atividades e relações que
promovam o progresso social-econômico do Estado e da sociedade. Ressalte-se que
os princípios constitucionais da administração pública apresentam-se, ainda, como
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
67
valioso critério de atuação e desempenho, seja nos atos administrativos, legislativos
10
ou judiciais.
Desta forma, ao administrador público compete o dever de bem administrar. Não
seria diferente a responsabilidade do juiz-administrador no Poder Judiciário. No que
concerne aos princípios gerais da Administração, estes permitem que o administrador
possa bem exercer as suas funções. Neste sentido, é a abalizada assertiva de Idalberto
Chiavenato:
O administrador deve obedecer a certas normas ou regras de comportamento, isto é, a princípios gerais que lhe permitam bem desempenhar as suas funções de planejar, organizar, dirigir, coordenar e controlar. Daí surgirem os chamados princípios gerais de Administração ou
simplesmente princípios de Administração, desenvolvidos por quase
todos os autores clássicos, como normas ou leis capazes de resolver os
problemas organizacionais. Contudo, a colocação dos princípios mostra algumas divergências entre os autores clássicos. Fayol chegou a
11
coletar cerca de quatorze princípios.
O rol de princípios gerais da administração sistematizados por Henri Fayol são:
1. Divisão do trabalho: consiste na especialização das tarefas e das pessoas
para aumentar a eficiência.
2. Autoridade e responsabilidade: autoridade é o direito de dar ordens e
o poder de esperar obediência. A responsabilidade é uma consequência
natural da autoridade e significa o dever de prestar contas. Ambas devem
estar equilibradas entre si.
3. Disciplina: depende da obediência, aplicação, energia, comportamento e
respeito aos acordos estabelecidos.
4. Unidade de comando: cada empregado deve receber ordens de apenas
um superior. É o princípio da autoridade única.
5. Unidade de direção: uma cabeça e um plano para cada grupo de atividades que tenham o mesmo objetivo.
6. Subordinação dos interesses individuais aos interesses gerais: os interesses gerais devem sobrepor-se aos interesses particulares.
7. Remuneração do pessoal: deve haver justa e garantida satisfação para
os empregados e para a organização em termos de retribuição.
8. Centralização: refere-se à concentração da autoridade no topo da hierarquia da organização.
9. Cadeia escalar: é a linha de autoridade que vai do escalão mais alto ao
mais baixo. É o princípio do comando.
10. Ordem: um lugar para cada coisa e cada coisa em seu lugar. É a
ordem material e humana .
11. Equidade: amabilidade e justiça para alcançar lealdade do pessoal.
12. Estabilidade do pessoal: a rotatividade tem um impacto negativo sobre
a eficiência da organização. Quanto mais tempo uma pessoa permanecer
num cargo, tanto melhor.
68
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
13. Iniciativa: a capacidade de visualizar um plano e assegurar pessoalmente o seu sucesso.
14. Espírito de equipe: harmonia
e união entre as pessoas são grandes
12
forças para a organização.
Esta enumeração de princípios da Administração realizada por Henri Fayol
– fundador da Teoria Clássica da Administração – demonstra sua visão universal e
global da empresa. Verifica-se, neste contexto, que os referidos princípios gerais da
administração encontram-se em sintonia com os princípios constitucionais constantes
no art. 37 da Constituição brasileira de 1988. Assim, são parâmetros orientadores para
a ação dos administradores públicos e privados, por serem linhas de conduta a serem
seguidas pelos mesmos.
Com efeito, entendemos que esta abordagem principiológica revela a compatibilidade das disposições, dos princípios e da filosofia de ação tanto da administração
pública quanto da privada. Os indivíduos, os administradores são, também, como o
Estado, agentes que devem orientar suas ações de acordo com os princípios gerais
constitucionais da atividade. O administrador é capaz de exercer uma notável influência
nos vários âmbitos sociais e econômicos, como destaca Chiavenato:
é ele um agente de mudança e de transformação das empresas, levando-as
a novos rumos, novos processos, novos objetivos, novas estratégias, novas
tecnologias; é ele um agente educador no sentido de que, com sua direção
e orientação, modifica comportamentos e atitudes das pessoas; é ele um
agente cultural na medida em que, com o seu estilo de Administração,
modifica a cultura organizacional existente nas empresas. Mais do que
isso, o administrador deixa marcas profundas na vida das pessoas, à medida que lida com elas e com seus destinos dentro das empresas e à medida
que sua atuação na empresa influi no comportamento dos consumidores,
13
fornecedores, concorrentes e demais organizações humanas. (grifo nosso)
Assim, verifica-se que o papel do administrador público e privado é fundamental
pois, à medida que desenvolve uma postura ética, manifesta atenção aos princípios
atinentes à administração e às disposições constitucionais que velam por uma sociedade mais justa e equânime. Portanto, para realizar uma boa gestão administrativa, o
administrador precisa considerar a pauta de cidadania que a Constituição Federal de
1988 expressa.
6. GESTÃO DEMOCRÁTICA DO PODER JUDICIÁRIO
O Judiciário contemporâneo não pode se propor a exercer função apenas jurídica,
técnica, secundária, mas deve exercer papel ativo, inovador da ordem jurídica e social,
visto que é chamado a contribuir para a efetivação dos direitos sociais, procurando
dar-lhes sua real densidade e concretude.
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
69
Desta forma, o Poder Judiciário brasileiro depara-se, nos últimos tempos, com
o desafio da concretização dos direitos de cidadania mediante adoção de uma gestão
democrática. Para tamanho desafio, não há fórmula pronta. É preciso estar sempre
disposto para essa luta.
É importante não esmorecer ante a adversidade do volume de serviço crescente, mas recusar-se a entregar uma jurisdição de papel, alienada, sem a necessária
e profunda reflexão sobre os valores em litígio, em que as partes sejam vistas somente
como números. É preciso que os juízes tenham o propósito de realizar uma jurisdição
que proporcione pacificação social.
É preciso reconhecer que a maior parte dos brasileiros ainda não tem acesso à
Justiça e que é preciso reverter esse débito de cidadania. Neste panorama, verifica-se
que a Gestão Democrática do Poder Judiciário será fator determinante no sentido de
garantir a concretização dos direitos de cidadania, mediante uma prestação jurisdicional
célere, eficiente e eficaz.
O Poder Judiciário possui vários gestores – magistrados, servidores – Diretores
de Secretaria, etc., os quais, nesta Gestão Democrática, competem colocar em prática
o objetivo angular do Poder Judiciário – a entrega da prestação jurisdicional de forma
eficiente. Para Sidnei Agostinho Beneti:
O juiz deve ser encarado como um gerente de empresa, de um estabelecimento. Tem sua linha de produção e o produto final, que é a prestação
jurisdicional. Tem de terminar o processo, entregar a sentença e a execução. Como profissional de produção, é imprescindível mantenha ponto de
vista gerencial, aspecto da atividade judicial que tem sido abandonado. É
falsa a separação estanque entre as funções de julgar e de dirigir o processo – que implica orientação ao cartório. (...) Como um gerente, o juiz
tem seus instrumentos, assim como um fabricante os seus recursos. São o
pessoal do cartório, as máquinas de que dispõe, os impressos. É o lugar em
que trabalha; são os carimbos, as cadeiras, o espaço da sala de audiências
e de seu gabinete; são a própria caneta, a máquina de escrever, o fluxo de
14
organização dos serviços e algumas coisas imateriais .
Nessa Gestão Democrática é fundamental desenvolver estratégias visando o
melhor aproveitamento dos recursos disponíveis; a padronização eficiente dos procedimentos judiciais e cartorários. Para tanto, deve-se verificar: os recursos materiais
(Inventário) e humanos disponíveis (quantitativo e qualitativo); as necessidades
imediatas e tomada de ações pertinentes; os serviços a serem executados no cartório;
a distribuição de atividades atendendo ao perfil do servidor o qual deve ser capacitado
para este fim.
É importante realizar: fluxograma – Detalhamento dos procedimentos a serem
executados; o compartilhamento de idéias para aprimorar os procedimentos com uma
visão global do processo, com envolvimento, motivação e comprometimento da equipe
(Juiz, Diretor, Oficial de Gabinete, Secretário, Servidores e Estagiários); a criação de
andamentos racionalizados e otimizados à real situação dos processos; o posicionamento
70
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
estratégico dos escaninhos; a organização dos documentos de juntada, os quais devem
ser selecionados por categorias (petições, mandados cíveis, criminais, ofícios e Ar’s) e
juntados diariamente; a criação e manutenção das pastas imprescindíveis.
É necessária a racionalização da expedição com a criação de rotinas simplificadas
que concentrem informações imprescindíveis, como exemplo, nos Juizados Especiais – do
ato citatório constar a data e a hora da audiência de conciliação, instrução e julgamento,
número máximo de testemunhas, da obrigatoriedade de presença pessoal das partes
em audiência, necessidade das partes informarem as alterações de endereço, sob pena
de reputarem–se eficazes as que forem expedidas nos endereços constantes nos autos.
É importante a designação de servidor com linha direta com o Diretor de Secretaria para coordenação da sala de conciliação; a análise processual do Juiz com fito
de suprimir diligências prescindíveis, tais como: intimações sem observância do art. 19
caput e §2º da Lei nº 9.099/95; condenação em custas processuais em valores inexeqüíveis; conclusões desnecessárias, para tanto, baixando portaria delegando a execução de
atos de mero expediente aos Diretores de Secretaria; a implementação de Pauta una
de Conciliação, Instrução e Julgamento. È indispensável que em curto, médio e longo
prazo seja feita avaliação de todos os aspectos acima elencados e o estabelecimento de
novas metas a cada ano.
Assim, a Gestão Democrática do Judiciário dar-se-á mediante planos estratégicos
e operacionais mais eficazes para atingir os objetivos propostos; com a concepção de
estruturas e estabelecimento de regras, políticas e procedimentos mais adequadas aos
planos desenvolvidos; implementação, coordenação e execução desses planos mediante
o comando e o controle dessas ações. Portanto, essa gestão, mediante o envolvimento
diuturno de todas as pessoas ligadas a esse processo, deve ser volvida para a excelência
do serviço prestado pelo Poder Judiciário.
CONCLUSÕES
A sociedade vem clamando uma postura cada vez mais ativa do Judiciário,
não podendo este ficar distanciado dos debates sociais, devendo assumir seu papel de
partícipe no processo evolutivo das nações. Eis que é também responsável pelo bem
comum, notadamente em temas como a dignidade da pessoa humana, a redução das
desigualdades sociais e a defesa dos direitos de cidadania.
O juiz contemporâneo deve estar atento às transformações do mundo moderno,
porque, ao aplicar o Direito, não pode desconhecer os aspectos sociais, políticos e econômicos dos fatos que lhe são submetidos. Cabe ao juiz exercer a atividade recriadora
do Direito através do processo hermenêutico, bem como adaptar as regras jurídicas às
novas e constantes condições da realidade social e, com responsabilidade, deve buscar
soluções justas, eficazes e eficientes.
Neste mister, temos que a prestação jurisdicional deve ser exercida como instrumento de pacificação social e afirmação da cidadania, o que é facilmente verificado
quando da ocorrência de sua aplicação célere e justa, consubstanciando-se, dessa forma,
como um poderoso instrumento a serviço da população. Esta sim, é a razão primordial
da existência do Poder Judiciário.
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
71
Dentro do sistema jurídico-constitucional vigente, deve a Magistratura desempenhar as seguintes funções básicas: solução de litígios, controle da constitucionalidade
das leis, tutela dos direitos fundamentais e garante da preservação e desenvolvimento
do Estado Constitucional e Democrático de Direito contemplado na Constituição
de 1988. Mas para que cumpra suas funções a Magistratura deve ser independente,
responsável e criativo.
O Judiciário enfrenta a articulação de um direito positivo, conjuntural, evasivo,
transitório, complexo e contraditório, numa sociedade de conflitos crescentes, e, por
isso, impõe-se a diversificação do Judiciário para atender às necessidades de controle
da norma positiva. Por outro lado, o Poder Legislativo derivado, em muitas situações,
não só não se esforça para preencher o vazio, senão prima por seguir a mesma técnica
da legislação aberta e indeterminada. Incapaz de solucionar alguns megaconflitos modernos, muitas vezes o legislador acaba atribuindo ao Judiciário a responsabilidade de
moldar a norma final aplicável.
Assim, o Judiciário não somente passou a solucionar os conflitos intersubjetivos
de interesses, segundo o modelo liberal individualista, como também a atuar como órgão calibrador de tensões sociais, solucionando conflitos de conteúdo social, político e
jurídico, além de implementar o conteúdo promocional do Direito contido nas normas
constitucionais e nas leis que consagram direitos sociais, visando permitir o acesso
15
pleno e eficaz à Justiça.
O acesso à Justiça sempre foi um dilema a ser solucionado pela humanidade. Ao
longo da história, observa-se que as estruturas dos Tribunais passaram a ter uma administração cada vez mais lenta e congestionada, seja, por um lado, pelo reconhecimento
de um maior número de direitos, seja, de outro, pelo excesso de rigor, de formalismo e
de recursos processuais gerando insatisfação e falta de confiança dos cidadãos quanto
ao Poder Judiciário como instituição.
É preciso que um número cada vez maior de pessoas tenha a oportunidade de
chegar aos umbrais da Justiça, como um fato natural e inerente à condição da própria
pessoa humana, como parte indispensável do complexo de direitos e deveres que caracteriza o viver em sociedade. Só assim se conseguirá estabelecer o acesso à ordem
16
jurídica justa.
As sistemáticas processuais formalistas que antes representavam etapas de
garantias de direitos individuais e coletivos, para um devido processo legal, hoje, em
excesso, caracterizam uma justiça tardia e inconcebível deformação de valores, conceitos
e atitudes, os quais devem ser repensados e modificados para atender aos reclamos da
sociedade contemporânea.
O Poder Judiciário caminha atualmente ao encontro de formas alternativas
de resolução das demandas, por meio de instrumentos de ação social participativa. E
dentro desse raciocínio, insere-se, em última ratio, toda filosofia e o próprio idealismo
daqueles que estão empenhados em mudanças razoáveis e factíveis para que outras
perspectivas e outros horizontes se abram para o povo em geral, especialmente para os
hipossuficientes econômicos, graças à facilitação do acesso à Justiça, com a utilização
de meios e instrumentos alternativos, como, v. gratia, a conciliação, a mediação e a
arbitragem, com todos os desdobramentos deles derivados.
72
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
Estamos passando, atualmente, por uma revolução na forma de fazer justiça,
caminhando, com a reengenharia do processo, para uma modificação estrutural e funcional do Judiciário em si. Procura-se remodelar o seu perfil no sentido de adequá-lo ao
da Justiça que se espera na nova era pós-industrial, que vem sendo constituída principalmente nas três últimas décadas, na qual a informática transforma o conhecimento
no instrumento de satisfação das necessidades da sociedade e é ferramenta de trabalho
hábil para encurtar o tempo e a distância. Esses fatores, em uma sociedade que anda à
velocidade da luz e em constante competição globalizada, assumem destaque como a
espinha dorsal da qualidade de todo e qualquer serviço.
A Justiça, como serviço e instrumento de pacificação social, precisa comungar
das idéias que estão modificando a civilização, sob pena de perder-se no tempo e no
espaço. Uma dessas valorosas idéias é a simplificação da linguagem jurídica, que é um
instrumento fundamental para a Justiça, que oportuniza o acesso à Justiça e contribui
para a compreensão do funcionamento e da atuação do Poder Judiciário. Reconhecer a
necessidade de simplificação da linguagem jurídica é um dos primeiros passos na direção
da democratização da Justiça.
De outra face, é de se observar que inúmeras críticas têm sido feitas recentemente à atuação do Poder Judiciário no Brasil. Contudo, carece o Judiciário de melhores
instrumentos de trabalho. A legislação nacional, além da técnica deficiente, é hoje
de produção verdadeiramente caótica. Deficientes são os instrumentos disponíveis ao
Judiciário, porque já não se aceita a verdadeira liturgia do processo, o amor desmedido
pelos ritos, que quase passaram a ter fim em si mesmos, numa inversão de valores.
É certo que a entrega da prestação jurisdicional não pode deixar de transitar
por um processo, previamente regrado, no qual os interessados possam ser ouvidos.
Trata-se de elemento essencial para a legitimação da atividade do juiz. Mas, este processo deve ser caminho de realização da Justiça desejada pelos cidadãos, não estorvo
incompreensível e inaceitável.
Assim, percebemos a necessidade de adaptar o Poder Judiciário às múltiplas
demandas do mundo moderno, a premência de torná-lo mais eficiente, de definir suas
reais funções, sua exata dimensão dentro do Estado Constitucional e Democrático de
Direito, a incessante busca de um modelo de Judiciário que cumpra seus variados papéis
de modo a atender às expectativas dos seus usuários.
Atualmente, está surgindo um modo novo de pensar a Justiça, não mais problema do Estado, mas também da sociedade, que é chamada a participar do exercício da
jurisdição através da atuação de voluntários como conciliadores. A presença e a atuação
constante dos conciliadores permite uma inequívoca agilidade e dinamismo processual
com a efetiva solução de um número extraordinário de demandas contribuindo para
a eficiência da Justiça.
A comunidade, através de associações, escolas, universidades, hospitais, etc.,
também, têm papel importante na ação preventiva de atos contrários ao direito. Por
outro lado, exige-se dos operadores do direito que saiam de seus gabinetes e procurem,
em outras instituições e segmentos sociais, respostas adequadas para os problemas jurídicos, muitos deles associados a questões sociais. Portanto, é fundamental que o juiz
seja, antes de tudo, um conciliador e um pacificador social.
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
73
Nesta tarefa, o juiz deve recorrer a interdisciplinariedade, melhor dizendo – a
transdiciplinariedade –, em busca das decisões mais efetivas e eficientes –, seja no
contexto judicial ou administrativo, vez que os fenômenos humanos devem ser compreendidos numa perspectiva única, globalizada. De outra face, é fundamental que o
juiz, sem comprometer sua imparcialidade, tenha um compromisso marcado com a
racionalização dos serviços judiciários, com o atendimento ao público e aos advogados,
e com um diálogo próximo aos demais órgãos públicos, entidades de classe e com outros
âmbitos da sociedade civil.
A interdisciplinariedade é, sem dúvida, fator marcante na racionalização dos
serviços prestados pelo Judiciário, na medida em que possibilita agregar o conhecimento
jurídico ao de outras Ciências, permitindo a otimização de métodos de gerenciamento
do serviço judiciário, objetivando práticas mais eficazes e eficientes.
Nesse trilhar, observamos que os princípios e conhecimentos da Ciência da
Administração, tanto na seara pública, quanto na privada serão, certamente, fundamentais para uma gestão judiciária que prime pela qualidade de seus serviços. Os princípios constitucionais da administração pública encontram-se em consonância com os
princípios basilares éticos da administração como um todo, posto que ambos têm como
escopo desenvolver, respectivamente, atividades e relações que promovam o progresso
social-econômico do Estado e da sociedade.
Ressalte-se que os princípios constitucionais da administração pública apresentam-se, ainda, como valioso critério de atuação e desempenho, seja nos atos adminis17
trativos, legislativos ou judiciais. Desta forma, ao administrador público compete o
dever de bem administrar. Não seria diferente a responsabilidade do juiz-administrador
e do juiz-gestor no Poder Judiciário.
O Judiciário possui vários gestores – magistrados, servidores – Diretores de
Secretaria, etc., os quais, nesta Gestão Democrática, competem colocar em prática o
objetivo angular do Poder Judiciário – a entrega da prestação jurisdicional de forma
eficiente. Nessa Gestão Democrática é fundamental desenvolver estratégias visando o
melhor aproveitamento dos recursos disponíveis; a padronização eficiente dos procedimentos judiciais e cartorários.
Assim, a Gestão Democrática do Poder Judiciário dar-se-á mediante planos
estratégicos e operacionais mais eficazes para atingir os objetivos propostos; com a
concepção de estruturas e estabelecimento de regras, políticas e procedimentos mais
adequadas aos planos desenvolvidos; implementação, coordenação e execução desses
planos mediante o comando e o controle dessas ações.
Desta forma, o Poder Judiciário brasileiro depara-se, nos últimos tempos, com
o desafio da concretização dos direitos de cidadania mediante adoção de uma gestão
democrática que prime pela excelência de seus serviços e que viabilize o maior acesso
à Justiça brasileira. Lembramos, que é importante reconhecer que a maior parte dos
brasileiros ainda não tem acesso pleno à Justiça e que é preciso reverter esse débito de
cidadania. Neste panorama, verifica-se que a Gestão Democrática do Poder Judiciário
será fator determinante no sentido de garantir a implementação dos direitos sociais, mediante a transdisciplinariedade e a interdisciplinariedade, objetivando, diuturnamente,
uma prestação jurisdicional célere, eficiente e eficaz; contribuindo para o fortalecimento
da cultura da plenitude dos direitos humanos.
74
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
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RESUMO
O presente ensaio analisou o juiz-administrador no desenvolvimento de uma
Gestão Democrática do Poder Judiciário, que está se construindo nas últimas décadas.
Nessa reflexão abordamos os seguintes aspectos: o dilema do acesso à Justiça; a nova
reengenharia do processo: formas alternativas de resolução de conflito, informática e
simplificação da linguagem jurídica; o juiz no Estado Democrático de Direito; o juiz e
a conciliação; o juiz como administrador; e a Gestão democrática do Judiciário. Nesse
panorama, procuramos delinear os desafios da magistratura contemporânea, destacando
dentre eles a necessidade da concretização dos direitos de cidadania, para tanto,
analisamos a nova revolução processual, – mudança de mentalidade dos operadores
do Direito, em especial –, do juiz-conciliador e pacificador social, na emergência
dos novos direitos, que se apresentam. Examinamos a necessidade de recorrer à
transdiciplinariedade, em busca das decisões mais eficazes e eficientes, seja no âmbito
judicial ou administrativo. Nesse trilhar, observamos, no contexto – juiz-administrador
–, que os princípios e conhecimentos da Ciência da Administração, tanto na seara
pública, quanto na privada serão fundamentais para uma Gestão judiciária que prime
pela qualidade de seus serviços e contribua para viabilizar o maior acesso à Justiça
brasileira. Foram utilizados e manejados, para o desenvolvimento do trabalho, livros
e artigos jurídicos, e de outras Ciências Sociais, ou seja, a pesquisa bibliográfica. Na
conclusão, construímos uma síntese a partir das abordagens jurídicas e de Administração
visando delinear o papel da magistratura brasileira no fortalecimento da cultura de
Direitos Humanos.
Palavras-chave: juiz-administrador, gestão democrática, Justiça eficiente.
Notas
1
3
4
MORAES, Silvana Campos. Juizados de Pequenas Causas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1991. p. 33.
SALOMÃO, Luis Felipe. Roteiro dos Juizados Especiais Cíveis. Rio de Janeiro: Destaque, 1997. p. 24.
Idem, ibidem.
CARVALHO, Ivan Lira de. Eficácia e democracia na atividade judicante. Revista Trimestral de Jurisprudência dos Estados, v. 171, jul./ago. 1999, p. 53-63.
5
GOMES, Luís Flávio, A dimensão da magistratura no Estado Constitucional e Democrático de Direito: independência judicial, controle judiciário, legitimação da jurisdição, politização e responsabilidade do juiz. São Paulo:
Editora Revista dos Tribunais, 1997. p. 116-117.
2
76
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6
TEIXEIRA, Sálvio de Figueiredo. O juiz: seleção e formação do magistrado no mundo contemporâneo. Belo
Horizonte: Del Rey, 1999. p. 182.
GOMES, Luís Flávio, A dimensão da magistratura no Estado Constitucional e Democrático de Direito: independência judicial, controle judiciário, legitimação da jurisdição, politização e responsabilidade do juiz. São Paulo:
Editora Revista dos Tribunais, 1997. p. 47.
8
D’AMBRÓSIO, Ubiratan. Paz ética e educação: uma visão transdisciplinar. Caderno Técnico de Metodologias
e Técnicas do Serviço Social, Brasília: SESI-DN, n. 23, 1996, p. 44-50.
9
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Discricionariedade e controle jurisdicional. 2. ed. São Paulo: Malheiros,
2000.
10
MORAES, Germana de Oliveira. Controle jurisdicional da Administração Pública. São Paulo: Dialética,
1999.
11
CHIAVENATO, Idalberto. Introdução à teoria geral da administração. 5 ed. Rio de Janeiro: Campus, 1999,
p. 115-116.
12
Apud, CHIAVENATO, Idalberto. Introdução à teoria geral da administração. 5 ed. Rio de Janeiro: Campus,
1999, p. 106-107.
7
13
CHIAVENATO, Idalberto. Introdução à teoria geral da administração. 5 ed. Rio de Janeiro: Campus, 1999,
p. 15.
BENETI, Sidnei Agostinho. Da conduta do juiz. São Paulo: Saraiva, 1997, p. 12.
15
GOMES, Luís Flávio, A dimensão da magistratura no Estado Constitucional e Democrático de Direito: independência judicial, controle judiciário, legitimação da jurisdição, politização e responsabilidade do juiz. São Paulo:
Editora Revista dos Tribunais, 1997. p. 47.
16
MORAES,
Silvana Campos. Juizados de Pequenas Causas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1991. p. 33.
17
MORAES, Germana de Oliveira. Controle jurisdicional da Administração Pública. São Paulo: Dialética,
1999.
14
—— • ——
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
77
O Dever de Informar nas
Relações de Consumo
Atalá Correia
Juiz de Direito
I. Introdução.
O
objeto do presente artigo é a análise do dever de informar, suas características
no âmbito da Lei 8.078, de 11 de setembro de 1990, o assim chamado Código
de Defesa do Consumidor (“CDC”).
II. A Liberdade Contratual e seus Limites.
Foi com o iluminismo cultural que a sociedade ocidental procurou desvincular-se
de um determinismo religioso teocentrista que predominava até os fins da Idade Média.
Apenas a razão haveria de ser pautar o agir humano, sendo que alguns direitos eram
naturais ao homem, podendo ser deduzidos racionalmente e preexistentes ao Estado.
Entre tais direitos encontrava-se a liberdade, irrestrita num estado natural, mas restrita
no estado de direito apenas e tão somente nos termos impostos pelo contrato social.
Mas a liberdade não designava apenas um valor positivo que devesse ser respeitado e alcançado. Pelo contrário, a liberdade no início da idade moderna tinha um
conteúdo descritivo claro, qual seja, a capacidade dos homens em ditar o seu próprio
destino ou sua própria conduta. A liberdade contratual é vista, portanto, como assente
na dignidade humana. Um dos precursores desta visão de liberdade como autodeterminação, em oposição ao determinismo religioso onipresente no decorrer da idade
medida, foi Giovanni Pico della Mirandola, que em sua famosa obra “Oratio. De Hominis
Dignitate” assim trata do tema:
“Ó suprema liberalidade de Deus Pai, ó suprema e admirável felicidade do homem! Ao qual é dado de obter aquilo que deseja, de
ser aquilo que quer. Os brutos, ao nascer, trazem consigo, no seio
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
79
materno, tudo o que terão. Os espíritos superiores, ou desde o início,
ou pouco depois, foram aquilo que serão nos séculos dos séculos. No
homem nascente, o Pai colocou sementes e germes de toda e qualquer vida. E conforme cada um os houver cultivado, eles crescerão
e darão nele os seus frutos. E se forem vegetais, será planta; se forem
sensíveis, será bruto; se racionais, tornar-se-á animal celeste; se intelectuais, será anjo e filho de Deus. Mas se, não contente com a sorte
de nenhuma criatura, ele se recolher no centro de sua unidade, feito
um só espírito com Deus, na solitária escuridão do Pai, aquele que
foi colocado sobre todas as coisas estará sobre todas as coisas” (De
Hominis Dignitate, 131r-131-v, Ed. E. Garin, Vallecchi ed. Firenze,
1942, pp. 104/107 – apud CZERNA, Renato Cirell. Justiça e História.
Ensaios. São Paulo: Edusp, 1987, p. 13),
Na visão de Pico os homens gozam de liberdade para escolher entre serem
“brutos”, “vegetais” ou “animais celestes”. E aí a liberdade não pode ser compreendida
apenas como a autodeterminação, mas também como responsabilidade ou assunção
de riscos pela escolha realizada. Se Deus teria dado dons (“sementes e germes”) aos
1
homens, fazê-los frutificar, ou não, seria legado à, e resultado da, escolha humana .
Assim, o racionalismo característico do iluminismo leva à conclusão de que a
liberdade é universal, porque verdadeiro direito natural, sendo que todos os homens
teriam a capacidade de se autodeterminar. Consequentemente, todos os homens teriam a capacidade de ser responsabilizados pelas condutas que livremente realizaram.
Esta responsabilização, note-se, rapidamente deixou de ser apenas fática e passou a
ser também deôntica ou jurídica. Se o Estado salvaguardava a liberdade individual, os
indivíduos haveriam de ser responsabilizados perante o Estado pelo exercício de sua
liberdade além dos limites legais.
Por isto, desde o advento do iluminismo até a Segunda Guerra Mundial, época
em que também prevaleceu a doutrina do liberalismo econômico, o contratual foi entendido como sinônimo de justo. O contrato correspondia a regras de conduta ditadas
por aquele que as haveria de cumprir, ou seja, correspondia ao autoestabelecimento de
regras jurídicas. Nenhuma obrigação contratual poderia ser imposta contra a vontade
daquele que seria vinculado. Pressupunha-se que as pessoas de um modo geral fossem
livres, porque dotadas de capacidade de se autodeterminar. E a responsabilidade contratual, porque advinda da liberdade, seria a exata medida da justiça.
A racionalização e a abstração que lhe é particular levaram, assim, a sociedade
moderna a obnublar diferenças ou desigualdades particulares. Isto é, a racionalização
típica do iluminismo pressupõe a liberdade como algo natural, ou imanente ao ser
humano. Mas não se pode olvidar que nem todos terão a mesma capacidade de ditar
o seu destino. A liberdade não é irrestrita. Pressupô-la assim seria admitir o irreal. É
por isto que o homem não é livre para realizar algo que está além de suas capacidades,
como caminhar sobre a água.
É a capacidade, portanto, que dita a medida de liberdade. Quanto mais capaz,
mais livre. E se faticamente nem todos os homens são dotados da mesma capacidade
80
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
(econômica, de discernimento, de compreensão, de realização de seus atos, etc), nem
todos serão igualmente livres para pactuar aquilo que bem desejarem.
A história tratou de expor estas incongruências do pensamento liberal.
Durante todo o decorrer do século passado a iniquidade do pressuposto de uma
igualdade formal e do dogma da vontade livre dos contratantes acabou sendo
revelada. Com efeito, a expansão de uma ordem econômica predominantemente
capitalista possibilitou uma concentração de riquezas sem precedentes na história.
Tais riquezas concentram-se justamente nas mãos daqueles que exploravam uma
atividade econômica de forma profissional e organizada, ou seja, os empresários.
Eram estes empresários quem contratavam com empregados e consumidores, que
não detinham nada mais que sua força de trabalho e a necessidade de sobrevivência.
É neste sentido que inúmeros trabalhadores foram obrigados a trabalhar por longas
jornadas de trabalho apenas porque não tinham capacidade econômica (e social) de
buscar trabalho mais ameno ou de sobreviver de outra forma. Igualmente, inúmeros
foram os consumidores que adquiram produtos que lhes eram lesivos por não ter a
capacidade de compreender os riscos que tal aquisição implicaria nem capacidade
de utilizá-los de forma correta.
O avanço das tecnologias veio, da mesma forma, contradizer o pressuposto de
igualdade que fora imaginado pela sociedade liberal. Cada vez mais os produtos passaram
a ser resultado de uma longa e complexa cadeia de produção, sendo que só o empresário
poderia conhecer perfeitamente o produto ou serviço por ele desenvolvido. Ao adquirente
do produto/serviço restaria apenas acreditar no que lhe fora informado pelo vendedor. Da
mesma forma, a técnica ou tecnologia de venda desenvolveu-se de forma excepcional. A
publicidade, entre outras técnicas ou tecnologias de venda, passou a criar no consumidor
a necessidade de adquirir este ou aquele produto, ou seja, a convencer as pessoas a
adquirir determinado produto ou serviço. E a própria hiper-especialização profissional
acaba contribuindo para esta necessidade de consumo, pois atualmente ninguém é
autossuficiente. Ou se consome, ou se está fadado à indigência. O ato de adquirir deixou
de ser, consequentemente, voluntário e livre, como supunha a ótica liberal. Na sociedade
contemporânea não há lugar para a liberdade de não consumir, sendo praticamente inviável
imaginar que alguém possa sobreviver sem energia elétrica, por exemplo. Isto equivale a
dizer que atualmente as pessoas não são capazes de se abster do consumo.
Isto não significa, entretanto, que o consumo seja um mal em si. Com efeito,
desenvolvimento nacional é um dos fins da República Federativa do Brasil (art. 3º,
2
II, CF ), devendo ser entendido como a majoração do nível de qualidade de vida fato
que pressupõe a expansão do sistema de produção e do próprio consumo. Ou seja, o
consumo, em sua acepção econômica, passou a ser uma das finalidades essenciais de
toda a sociedade.
A liberdade contratual e a sua conseqüência imediata de obrigatoriedade perdem
força na sociedade atual, sobretudo naqueles contratos, como os de consumo, onde a
vulnerabilidade de uma das partes, assim entendida como falta de capacidade do amplo
exercício da sua liberdade, é patente. Não se quer dizer, todavia, que a obrigatoriedade
simplesmente não exista em relações como a de consumo, pois admitir tamanho
despautério significaria por abaixo o postulado de segurança jurídica.
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
81
III.
O Dever de Informação.
Dadas as imensas diferenças fáticas entre as partes contratantes, as legislações
nacionais, entre as quais se inclui a brasileira, têm procurado reequilibrar as relações
de consumo. Para aplacar tais desigualdades, muitas soluções têm sido adotadas, como
3
a previsão de um direito de arrependimento , a lesão e a onerosidade excessiva.
Todas estas compensações ou ajustes ao contrato fundamentam-se em dois
“novos” princípios do direito privado: a boa-fé objetiva e o equilíbrio contratual.
O equilíbrio contratual é princípio adstrito aos contratos sinalagmáticos e visa a
manter uma razoável correspondência entre prestação e contraprestação. Tal princípio
4
manifesta-se, sobretudo, em institutos como a lesão e a revisão contratual . Assim,
deixa-se de lado, como única medida de justiça, a vontade livremente manifestada,
procurando-se adotar como padrão de justiça contratual a igualdade, ou ao menos
5
correspondência, entre prestação e contraprestação .
Por sua vez, a boa-fé objetiva é verdadeira regra de conduta estabelecida pelo art.
6
4º, III, do Código de Defesa do Consumidor e impõe que tanto o fornecedor quanto o
consumidor não quebrem o vínculo de confiança que a relação contratual pressupõe.
Cada uma das partes contratantes deve agir com lealdade buscando aquilo que é melhor
para si e para o outro, e não apenas aquilo que é melhor para si.
Por ser regra de conduta devemos entender que a boa-fé objetiva é um dever
legal a ser cumprido e cuja não observância trará consequências jurídicas. A boa-fé neste
sentido objetivo difere amplamente daquele sentido com o qual estamos habituados
a lidar, o subjetivo, pois neste último a boa-fé está relacionada com o estado anímico
do agente.
O conteúdo do dever de agir consoante a boa-fé é amplo, ou seja, pressupõe a
7
análise do quanto seja esperado segundo padrões socialmente aceitos . Mas a significação do que seja agir segundo a boa-fé não é ampla a ponto de retirar a eficácia de tal
dever. Inúmeras normas, sobretudo em termos de direito do consumidor, acabam por
descrever a conduta a ser seguida para que se esteja cumprindo a boa-fé objetiva. Por
isto, tem-se comumente dito que é a boa-fé quem cria os chamados deveres laterais,
como o de informar, o de colaborar na execução do contrato, e quem também limita a
validade de cláusulas pactuadas, como as abusivas.
Mas a par de criar deveres laterais e limitar, a boa fé objetiva pode ser vista também como princípio jurídico. Como princípio, a boa-fé objetiva terá a função principal
de orientar qual o sentido em que as demais normas deste do microssistema de defesa
do consumidor deverão ser interpretadas. O princípio é, portanto, o guia deontológico
do intérprete, do aplicador e de todos aqueles que devem seguir a conduta prescrita
8
nas normas insertas em um determinado sistema . Isto corresponde a dizer que, se
determinada regra pode ser cumprida de mais de uma maneira, não se poderá cumpri-la de modo a ferir a orientação dada a esta regra pelo princípio jurídico. Ou seja, as
regras do Código de Defesa do Consumidor não podem ser cumpridas de modo a violar
o princípio da boa-fé objetiva.
Dito isto, voltemos nossa atenção para a boa-fé objetiva como a criação de deveres
laterais. Naquilo que diz respeito à criação de deveres laterais a boa-fé impõe basicamente
82
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
que as partes não façam da sua relação uma fonte de prejuízos para o outro. Jorge Cesa
Ferreira da Silva, baseando-se em Stoll, é claro no sentido de que o vínculo obrigacional
não implicaria apenas a prestação e obtenção, em contrapartida, da contraprestação.
As partes estariam, ainda, interessadas na manutenção de seus bens (materiais ou não)
e direitos, pois “quando se estabelece uma relação entre duas partes, ambas esperam
9
legitimamente que essa relação não seja o veículo para a sujeição a danos”.
Entre tais deveres laterais o de maior relevância é sem dúvida o dever de informar, que é objeto de nosso estudo. Assim, o dever de informar deve ser visto como um
dever lateral imposto pela boa fé objetiva. Mas como visto o dever de informar não é
exigido pela lei como um mero capricho. A informação exercerá duas funções básicas
que nos cumpre analisar: (i) permitir a livre contratação; e (ii) evitar que o vínculo
obrigacional seja fonte de prejuízos para quaisquer das partes.
(a) O Dever de Informar como viabilizador da livre contratação.
Uma contratação livre pressupõe uma parte que saiba, ou pelo menos tenha
capacidade de saber, diante de quais possibilidades de conduta ele se encontra. Ou
seja, o contratante deve compreender que ele está sempre diante de algumas opções.
Ele pode contratar desta ou daquela forma, este ou aquele produto/serviço, com uma
ou outra parte, neste momento ou posteriormente, por este ou aquele preço, bem como
simplesmente se abster de contratar. Ademais, a parte deve ser apta a compreender qual
consequência advirá de seu ato, sopesando, portanto, quais vantagens e desvantagens
obterá.
Como já ressaltado, na relação contratual contemporânea praticamente não
há partes com capacidades iguais de discernimento, sobretudo no que diz respeito ao
objeto da prestação. Isto é, as relações fáticas e jurídicas destes tempos pós-modernos
são marcadas essencialmente pela hiper-complexidade, daí advindo a natural dificuldade
10
para se compreender as principais consequências dos vínculos obrigacionais assumidos .
Em outras palavras, são raros os negócios jurídicos em que as partes detêm o mesmo
grau de liberdade contratual porque amplamente capazes que compreender a realidade
que as cerca.
A tamanha especialização e desenvolvimento técnico a que chegamos impede a
exata mensuração pelo consumidor dos benefícios e consequências dos contratos que
celebra. Mesmo a aquisição da mais simples das verduras pode envolver o emprego
de técnicas agrícolas que possam representar riscos para o consumidor. O consumidor
não se encontra, assim, em posição de conhecer todas as características, vantagens e
desvantagens do produto ou serviço. O resultado inexorável desta hiper-complexidade
contemporânea é que a parte mais fraca, como o consumidor, ao contratar algo, arca
com o risco de que aquela contratação não lhe traga as vantagens esperadas.
Neste sentido, Ronaldo Porto Macedo Junior traz-nos a ideia de que o consumidor tem racionalidade limitada (bounded rationality). Sobre o assunto este autor
assevera o seguinte:
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
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“A ideia de racionalidade limitada (bounded rationality) reconhece
que os indivíduos não estão aptos a receber, armazenar e processar
um grande volume de informações. Diante de decisões complexas,
eles tendem a simplificar o problema e reduzir alternativas. Este conceito é de fundamental importância para a regulação dos contratos
de consumo. As transações de consumo que importam em maiores
quantias e valores, como, por exemplo, a compra de um carro ou
a contratação de um plano de saúde ou previdência privada, muitas vezes envolvem relações que se estendem por um longo período.
Ademais elas costumam ter natureza complexa, visto que envolvem
compromissos de crédito, contratos de serviço, garantias, assistência
técnica prolongada etc. É improvável que os consumidores ao tempo
em que firmam um contrato estejam aptos a prever, a planejar todas
as possíveis contingências futuras. Conforme já apontado anteriormente, esta impossibilidade de planejar o futuro é uma característica
geral dos contratos contemporâneos, em especial dos contratos rela11
cionais de consumo” .
Assim, para reequilibrar tal situação de natural racionalidade limitada, o ordenamento jurídico nacional impõe, com base na boa-fé objetiva, o dever de que o
fornecedor informe ao consumidor tudo aquilo que ele pode esperar do produto, bem
como os riscos contra os quais ele deve se precaver. Ao cumprir com o dever de informar,
o fornecedor quer que o consumidor seja trazido para um nível superior de capacidade
cognitiva, ou para uma racionalidade equivalente à do fornecedor, fazendo com que,
consequentemente, a contratação seja livre e, nesta acepção, justa.
Vê-se, portanto, que o legislador não abandona totalmente o dogma da vontade como paradigma de justiça contratual. Pelo contrário, diante da realidade fática, o
legislador procura igualar as partes materialmente desiguais, pelo menos naquilo que é
necessário à livre contratação. O fornecedor se transforma, portanto, em muito mais
que um mero provedor de serviços e produtos; ele se torna um provedor de informação
12
para que os consumidores possam contratar de forma livre e, consequentemente, digna .
Não é demais lembrar que esta função do dever de informar, equilibrando partes
a fim de viabilizar uma justa contratação, só está presente em dois momentos: antes e
durante a formação do contrato. Não haveria sentido em se falar em função equilibradora do dever de informar durante a execução ou posteriormente ao contrato, pois aí
o vínculo jurídico já está formado.
Foi com este intuito, portanto, que o Código de Defesa do Consumidor estabeleceu uma série de deveres de informação pré-contratuais, fazendo constar até mesmo
a forma pela qual a informação deve ser prestada. Neste contexto vale destacar as
seguintes normas do CDC:
Art. 6º - “São direitos do consumidor: (...) II – a educação e divulgação sobre o consumo adequado dos produtos e serviços, asseguradas a liberdade de escolha e a igualdade nas contratações;
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Revista da Escola da Magistratura - nº 13
III - a informação adequada e clara sobre os diferentes produtos e
serviços, com especificação correta de quantidade, características,
composição, qualidade e preço, bem como sobre os riscos que
apresentem” (grifamos).
Art. 31 – “A oferta e a apresentação de produtos ou serviços devem assegurar informações corretas, claras, precisas, ostensivas
e em língua portuguesa sobre suas características, qualidades,
quantidade, composição, preço, garantia, prazos de validade e origem entre outros dados, bem como sobre os riscos que apresentem à saúde e a segurança dos consumidores”.
Art. 66 – “Fazer afirmação falsa ou enganosa, ou omitir informação relevante sobre a natureza, característica, qualidade, quantidade, segurança, desempenho, durabilidade, preço ou garantia de
produtos ou serviços: Pena - Detenção de três meses a um ano e
multa”.
Não se olvide aqui o papel da publicidade na formação da vontade do consumidor. Como já destacado, a melhoria dos padrões de qualidade de vida implica na
necessidade de desenvolvimento nacional, que quase impreterivelmente é traduzido
em crescimento econômico (que abrange o crescimento do consumo). Um dos fatores
importantes, mas não o único, que conduzem a este crescimento do consumo é, sem
dúvida, a eficiência da publicidade. Seu papel fundamental é persuadir o consumidor
a contratar determinado produto ou serviço, sem deixar de colocar à sua disposição
informações que uma contratação livre.
O correto papel da informação publicitária afasta-se, consequentemente, da
sugestão, que é descrita pelo Prof. Alcides Tomazzetti Junior como “o ato ou a situação
que provoca uma acentuada ou integral paralisia (senão mesmos supressão) do senso
de discernimento e crítica da pessoa, conservando-se no entanto em níveis normais
13
ou próximos da normalidade todas as suas outras funções psíquicas” . A publicidade
sugestiva é, desta forma, abusiva na medida em que suprime ou falseia informação que,
se transmitida ao consumidor, o levaria a não contratar ou, pelo menos, contratar de
forma diversa. A dicção do art. 37, § 1º do Código de Defesa do Consumidor não deixa
dúvidas sobre o caráter informativo, e não sugestivo, da publicidade, reconhecendo a
importância desta última na formação do contrato. Confira-se:
Art. 37, § 1º - “É proibida toda publicidade enganosa ou abusiva. §
1º É enganosa qualquer modalidade de informação ou comunicação
de caráter publicitário, inteira ou parcialmente falsa, ou, por, qualquer outro modo, mesmo por omissão, capaz de induzir em erro o
consumidor a respeito da natureza, características, qualidade, quantidade, propriedades, origem, preço e quaisquer outros dados sobre
produtos e serviços”.
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Assim, resta claro que dentro do sistema de proteção ao consumidor o legislador preencheu o conteúdo de uma cláusula que poderia ser geral e abstrata, a boa-fé,
determinando até mesmo quais informações serão essencialmente fornecidas à parte
vulnerável e qual a forma pela qual esta informação será transmitida. É por isto que
a informação deve ser transmitida de maneira eficiente, ou seja, de forma clara com
conteúdo compreensível e suficiente, possibilitando a livre escolha do consumidor. Desta
forma, a performance do dever de informar deve levar em conta a sua função, que é a
de ser instrumento da justiça contratual.
Estando clara esta primeira função do dever de informar especialmente nas fases
pré-contratual e de formação do contrato, qual seja, permitir a contratação livre, resta-nos averiguar neste momento qual a sanção imposta pela lei àquele que o descumprir. A
resposta parece ser intuitiva. Caso não seja adequadamente informado sobre o conteúdo
de suas obrigações e sobre aquilo que legitimamente pode esperar do produto ou do
serviço, o consumidor não se encontra vinculado ao que houvera prometido. Esta é a
clara dicção do artigo 46 do Código Brasileiro de Defesa do Consumidor.
Art. 46 – “Os contratos que regulam as relações de consumo não
obrigarão os consumidores, se não lhes for dada a oportunidade de
tomar conhecimento prévio de seu conteúdo, ou se os respectivos
instrumentos forem redigidos de modo a dificultar a compreensão de
seu sentido e alcance”.
Como veremos a consequência do descumprimento do dever de informar pode
ir além, possibilitando a rescisão do contrato. Entretanto, parece-nos que este outro
efeito está mais ligado a uma segunda função do dever de informar e, por isto trataremos
do assunto no tópico a seguir.
(b) O Dever de Informar na Função de Prevenir Prejuízos.
Como visto o dever de informar, como decorrência da boa-fé objetiva, tem ainda
a função de evitar que vínculo obrigacional seja fonte de prejuízos para quaisquer das
partes. As informações prestadas ao consumidor devem orientá-lo, portanto, sobre as
características dos produtos e serviços ofertados, sobre a sua forma de utilização e sobre
os riscos que lhes são inerentes. Esta segunda função do dever de informar difere-se,
assim, da primeira por estar muito mais relacionada ao princípio “altere non laedere” (“a
ninguém lesar”) do que à liberdade contratual propriamente dita.
Ora, se uma das decorrências claras da boa-fé, e do dever de informar que dela
se desdobra, é a prevenção de prejuízos”, não há como se negar que o Código de Defesa
do Consumidor agiu bem ao deixar tal regra clara em seu artigo 6º, VI. Confira-se:
Art. 6º - “São direitos básicos do consumidor: (...) VI a efetiva prevenção e reparação de danos patrimoniais e morais, individuais, coletivos e difusos” (grifou-se).
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Revista da Escola da Magistratura - nº 13
Pois bem. Mas quais prejuízos seriam evitados pela correta, clara e suficiente
informação? Dada a sistemática adotada pelo Código de Defesa do Consumidor, parece
ser razoável dividir estes prejuízos evitáveis em dois grupos distintos. Haveria um prejuízo
imanente à contratação e outra alheio a ela.
Os primeiros prejuízos seriam aqueles “imanentes” à contratação. São aqueles
danos que o consumidor experimenta por ter contratado um produto ou um serviço que
não desejaria se soubesse de suas reais qualidades. Assim, se a contratação corresponde
a um automóvel anunciado com determinadas características, mas a entrega corresponde a um veículo com outras características, o consumidor sofre dano equivalente
ao preço pago.
Os outros prejuízos são, por assim dizer, “mediatos”, ou seja, alheios ao que se
despendeu para a contratação. Bens, patrimoniais ou não patrimoniais, do consumidor
podem ser atingidos pelo descumprimento do dever de informar. Assim, a ausência
de informação sobre o conteúdo de um filme que contenha, por exemplo, cenas de
violência podem lesionar bens não patrimoniais de menores (integridade psicológica),
sendo claro que tal dano não pode ser resumido aos valores envolvidos na contratação.
Ademais, cabe frisar que a classificação ora adotada toma como base apenas a
sistemática proposta pelo Código de Defesa do Consumidor e não diferenças ontológicos na natureza do prejuízo. Com efeito, a diferença da classificação proposta reside na
relação do dano experimentado pelo consumidor com aqueles bens que inicialmente
estavam envolvidos na relação de consumo.
Esta classificação dos tipos de prejuízos que podem ser evitados com a adequada
informação do consumidor é importante, pois para cada um deles o Código de Defesa
do Consumidor reservará uma consequência jurídica diversa. Eis aí a utilidade da
classificação proposta: a correta inteligência da sistemática adotada pelo sistema de
proteção ao consumidor.
É assim, portanto, que nos casos de prejuízo meramente contratual, o Código de
Defesa do Consumidor assegura ao consumidor (i) a devolução do preço eventualmente
pago caso ele tenha sido levado a ter falsas expectativas sobre o produto ou serviço; (ii)
o abatimento no preço quando a má prestação das informações trouxeram como consequência o pagamento de quantia superior ao valor do bem; ou (iii) a substituição do
produto ou reexecução do serviço para que estes se adeqüem às informações prestadas.
É esta a clara dicção dos artigos 18 e 20 do CDC:
Art.18 – “Os fornecedores de produtos de consumo duráveis ou não
duráveis respondem solidariamente pelos vícios de qualidade ou
quantidade que os tornem impróprios ou inadequados ao consumo
a que se destinam ou lhes diminuam o valor, assim como por aqueles decorrentes da disparidade, com as indicações constantes do
recipiente, da embalagem, rotulagem ou mensagem publicitária,
respeitadas os variações decorrentes de sua natureza, podendo o
consumidor exigir a substituição das partes viciadas.
§ 1º Não sendo o vício sanado no prazo máximo de 30 (trinta) dias,
pode o consumidor exigir, alternativamente e à sua escolha: I - a
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substituição do produto por outro da mesma espécie, em perfeitas
condições de uso; II - a restituição imediata da quantia paga, monetariamente atualizada, sem prejuízo de eventuais perdas e danos; III - o
abatimento proporcional do preço”.
Art. 20 – “O fornecedor de serviços responde pelos vícios de qualidade que os tornem impróprios ao consumo ou lhes diminuam o valor,
assim como por aqueles decorrentes da disparidade com as indicações constantes da oferta ou mensagem publicitária, podendo o
consumidor exigir, alternativamente e à sua escolha: I - a reexecução
dos serviços, sem custo adicional e quando cabível; II - a restituição
imediata da quantia paga, monetariamente atualizada, sem prejuízo
de eventuais perdas e danos; III - o abatimento proporcional do preço” (grifou-se).
Já naqueles casos em que o prejuízo experimentado pelo ultrapassa a esfera contratual (mediatos), atingindo-lhe bens outros que não estavam inicialmente envolvidos
na relação de consumo, o Código de Defesa do Consumidor assegura a sua efetiva
reparação, o que envolve a indenização das perdas e danos bem como a compensação
dos danos morais. Neste sentido, os artigos 12 e 14 são claros:
Art.12 – “O fabricante, o produtor, o construtor, nacional ou estrangeiro, e o importador respondem, independentemente da existência
de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por
defeitos decorrentes de projeto, fabricação, construção, montagem,
fórmulas, manipulação, apresentação ou acondicionamento de seus
produtos, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua utilização e riscos” (grifou-se).
Art.14 – “O fornecedor de serviços responde, independentemente
da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos relativos à prestação dos serviços, bem como
por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua fruição e
riscos” (grifou-se).
Ou seja, a fim de evitar que prejuízos imanentes ou mediatos ocorram, o Código
de Defesa do Consumidor impõe ao fornecedor o dever de informar eficientemente,
possibilitando ao consumidor uma escolha livre e alertando-o sobre os riscos do produto ou serviço. Para o descumprimento de tal dever, são impostas as sanções jurídicas
acima destacadas.
Assim, de acordo com a sistemática adotada pelo Código de Defesa do Consumidor, o dever de informar cumpre a função de evitar tantos os danos imanentes (contratuais) como os mediatos. E neste sentido, não se pode dizer que o dever de informar
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esteja presente apenas na fase pré-contratual, mas também na fase de conclusão e
execução do contrato e até mesmo após o seu fim. E a mero título exemplificativo, vale
lembra que um dos claros exemplos de dever de informar após a conclusão contratual
14
com base na prevenção de danos ao consumidor envolve o procedimento de “recall” .
Até aqui procuramos dissecar a dinâmica inerente ao direito de informar à luz de
suas duas funções básicas, a de possibilitar a contratação livre e a de prevenir prejuízos.
Mas para que se possa ter uma visão adequada do dever de informar, deve-se ademais,
analisar as formas pelas quais ele pode ser inadimplido. Esta análise nos possibilitará,
ao final, visualizar qual o conteúdo da informação que deve ser passada ao consumidor.
IV.
O Conteúdo do Dever de Informar.
O Código de Defesa do Consumidor trata o cumprimento do dever de informar
numa base meramente dicotômica. Ou o dever é cumprido, e não há consequências
jurídicas, ou o dever não é cumprido e aí se tem um vício ou um defeito de informação. Estes casos de não cumprimento do dever de informar poderiam ser chamados
simplesmente de ineficiência informativa, pois neles a informação não foi passada ou,
se passada, não foi compreendida pelo consumidor. Em outras palavras, a informação
não eficiente é aquela que não atinge o seu fim.
Mas algo ainda deve ser dito acerca da diferenciação das ineficiências em vícios
e defeitos, pois esta é a nomenclatura adotada pela lei brasileira. No primeiro caso, o
de vício de informação (arts. 18 e 20 transcritos acima) dá origem a danos imanentes
ou circunscritos à contratação. Já no segundo caso, o de defeito (arts. 12 e 14 acima
mencionados), a falha no cumprimento do dever de informar origina danos mediatos,
isto é, em bens jurídicos que não eram inicialmente abrangidos pela relação jurídica de
consumo. Tal divisão das ineficiências informativas em vício ou defeito leva em consideração, portanto, a sua conseqüência para o patrimônio dos consumidores.
Outras classificações, entretanto, podem ser propostas. Uma classificação que
leve em conta, por exemplo, a qualidade das informações transmitidas ao consumidor
pode-se revelar muito útil para compreendermos o que exatamente deve ser transmitido
ao consumidor para que ele possa se precaver de danos e contratar livremente. Assim,
pode-se dizer que pode haver: (i) falta total de informações; (ii) insuficiência das informações prestadas; e (iv) informações suficientes ou eficientes e (iii) hipereficiência.
Interessa-nos a princípio apenas analisar as três hipótese ligadas à ineficiência das
informações prestadas (falta, insuficiência e hipereficiência). A falta ou a insuficiência
são os tipos de ineficiência mais comuns, sendo constatados com a omissão, total ou
parcial, daqueles dados que permitiriam ao consumidor decidir acerca da contratação
bem como precaver-se contra eventuais danos. Por outro lado, os casos de hipereficiência
não são assim tão comuns. A identificação deste último tipo de violação ao dever de
15
informar pode ser atribuída ao Prof. Alcides Tomasetti Junior . Para ele haveria vício
ou defeito por hipereficiência quando as informações são prestadas em quantidade
tamanha que ao consumidor torna-se difícil distinguir quais os aspectos que realmente
lhe parecem ser importantes para a contratação. Estes vícios, entretanto, tendem a ser
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mais frequentes na praxe comercial, especialmente porque a circulação de informações
torna-se a cada dia mais fácil e mais barata. Com efeito, não são raros os exemplos,
sobretudo nas redes de computação, onde é exigido consumidor a aceitação de contratos
enormes, cuja leitura demandaria horas. E estas práticas não possibilitam ao consumidor
distinguir o que é importante daquilo que não o é.
Mas qual seria, então, o grau ou a medida da eficiência? Qual a qualidade que
deve ser atribuída à informação prestada ao consumidor para que não haja vício ou
defeito? O Código de Defesa do Consumidor se vale de expressões vagas para definir
a eficiência da informação, mas de um modo geral pode-se dizer que suficiente é a
informação que transmite ao consumidor uma legítima expectativa sobre os fins e usos
do produto ou do serviço oferecido. Esta fórmula geral de eficiência pode ser extraída
dos seguintes artigos do CDC:
Art. 12, § 1º - “O produto é defeituoso quando não oferece a segurança que dele legitimamente se espera, levando-se em consideração
as circunstâncias relevantes, entre as quais: I - sua apresentação; II
- o uso e os riscos que razoavelmente dele se esperam; III - a época
em que foi colocada em circulação”.
Art. 14, § 1º - “O serviço é defeituoso quando não fornece a segurança que o consumidor dele pode esperar, levando-se em consideração as circunstâncias relevantes, entre as quais: I - o modo de seu
fornecimento; II - o resultado e os riscos que razoavelmente dele
se esperam; III - a época em que foi fornecido”.
Art. 18, § 6º - “São impróprios ao uso e consumo: I - os produtos cujos prazos de validade estejam vencidos; II - os produtos deteriorados, alterados, adulterados, avariados, falsificados,
corrompidos, fraudados, nocivos à vida ou à saúde, perigosos ou,
ainda, aqueles em desacordo com as normas regulamentares de
fabricação, distribuição ou apresentação; III - os produtos que,
por qualquer motivo, se revelem inadequados ao fim a que se
destinam” (grifou-se).
Art. 20, § 2º - “São impróprios os serviços que se mostrem inadequados para os fins que razoavelmente deles se esperam, bem como
aqueles que não atendam as normas regulamentares de prestabilidade”.
Melhor explicando, tem-se que a lei considera impróprio ou defeituoso aqueles
produtos ou serviços que não atendam aos fins, ou que não tenham o uso, que deles
razoavelmente se espera. Ao fornecedor impõe-se, portanto, a obrigação de entregar
16
serviços ou produtos que atendam à expectativas legítimas de seus consumidores .
O problema resume-se, consequentemente, na razoabilidade das expectativas
do consumidor. Pois bem. Em termos de contratação, podemos dizer que a expectativa
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Revista da Escola da Magistratura - nº 13
corresponde a uma ideia formada sobre um produto ou um serviço antes mesmo de se
ter acesso ou contato a estes produtos e serviços. A origem das expectativas só pode
ser, assim, encontrada na própria pessoa ou fora dela. Ou o consumidor já vivenciou
experiências semelhantes no decorrer de sua vida, e isto lhe dá a ideia sobre o que está
prestes a contratar, ou outras pessoas lhes passaram informações, conhecimentos e
opiniões sobre tais serviços e produtos. Temos, consequentemente, que a expectativa
só deixa de ser razoável quando ela não corresponde à experiência pessoalmente adquirida ou quando ela não corresponde às informações fornecidas. Assim, não atende
às expectativas de consumo, uma faca que não corte.
É justamente neste ponto que entra a importância da informação. O fornecedor
tem obrigação de esclarecer ao fornecedor todas as informações relativas às características e aos riscos de seu produto ou serviço a fim de que (i) o consumidor não crie
expectativas errôneas sobre a contratação que realizará e (ii) eventuais expectativas
errôneas já existentes na mente do consumidor sejam afastadas. Tome-se o exemplo da
faca novamente e se poderá visualizar melhor o problema. A expectativa geral, presente
em toda a população, é de que facas cortem. Uma faca de cozinha que não corte será
considerada defeituosa, pois afinal ela não atende ao fim que legitimamente dela se
espera. Isto impede, portanto, que facas de enfeite não cortantes sejam vendidas? A
resposta, que pode ser dada até mesmo intuitivamente, é a negativa. Facas que não
cortam podem ser vendidas. Entretanto, é dever de seu fornecedor informar que a
utilidade de seu produto é diversa daquela razoavelmente esperável.
Ou seja, a informação é correta e eficiente quando não cria, mas afasta, uma
expectativa incorreta que o consumidor fazia sobre o produto, seus fins e suas utilidades. Neste sentido, vale destacar que Iain Ramsay já asseverou que “a ‘via informativa’
leva em consideração as preferências existentes, partindo-se do entendimento que,
17
corrigindo-se os erros de informação, alcançar-se-á a soberania do consumidor” . A
lição de Alcides Tomasetti Junior não destoa de tal afirmação:
“As disfunções do mercado (...) são, na sua maior parte, explicáveis
em suas manifestações e suscetíveis de modificações ao nível de minoração e/ou correção, pelo intermédio de aplicações progressivas
do modelo de transparência potenciado pela difusão de informação
18
suficiente nas relações jurídicas de consumo” .
A verdade deve estar acessível ao consumidor para que ele possa fazer livremente suas escolhas, bem como se prevenir adequadamente de eventuais danos.
Dispor tal verdade, informando o consumidor, é conduta esperável e devida pelos
fornecedores, com base na boa-fé objetiva, como vimos demonstrando no decorrer
deste trabalho.
Isto equivale a dizer que o fornecedor cumpre seu dever de informar eficazmente
quando a o consumidor sabe o que pode esperar do produto ou serviço que lhe é oferecido. Por outro lado, ao não informar eficazmente o consumidor, o fornecedor contraria
a boa-fé objetiva frustrando a legítima expectativa de seus consumidores e obtendo
vantagem econômica que não obteria caso todas as informações sobre seu produto ou
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serviço estivessem à disposição da coletividade consumidora. Justamente por isto o
Código de Defesa do Consumidor sanciona a falha de informação.
Mas antes de concluir o tema, algumas outras considerações devem ser tecidas
sobre o conteúdo das informações que devem ser prestadas pelo fornecedor. E aqui
passamos a entrar no campo das limitações impostas ao dever de informar.
Questiona-se frequentemente se o fornecedor estaria obrigado a divulgar, em
nome da boa-fé, que o mesmo produto que é por si oferecido também é vendido no
estabelecimento de seu concorrente por preço menor. A resposta parece a tal questão
parece ser negativa, pois a boa-fé não é sinônimo de altruísmo, mas de honestidade
e de atuação em conformidade com padrões socialmente aceitos. Há de se convir,
19
entretanto, que não uma obrigação jurídica nem social de altruísmo . E neste ponto
não seria incorreto afirmarmos que existe para o consumidor o dever de se informar
minimamente antes de celebrar qualquer contratação.
Da mesma forma, não parece razoável que o fornecedor seja obrigado a informar
mesmo aqueles fatos cunho conhecimento seja notório e que integrem, assim, a legítima expectativa de qualquer consumidor. Que facas cortam todos nós sabemos e, por
isto, o fornecedor estaria eximido de informar tal fato na embalagem de seu produto.
A boa-fé não impõe o dever de que o fornecedor transmita experiências mínimas
de vida aos consumidores para que estes formem, assim, corretas expectativas sobre seus
produtos ou serviços. Exigir o contrário seria ignorar que o princípio da boa-fé não se
aplica apenas aos fornecedores, mas também aos consumidores. Não encontra amparo
jurídico o consumidor que age de má-fé, alegando que sua expectativa não foi atendida
e que danos lhe foram causados, quando tal expectativa diverge daquela comum à uma
série de consumidores em situações semelhantes.
Por isto é acertada a conclusão de que a expectativa a ser atendida pelo fornecedor não deve ser exclusivamente subjetiva, pois, como a lei deixa claro, apenas
aquelas expectativas razoáveis deverão ser satisfeitas. E razoabilidade pressupõe padrões
objetivos de conduta reiterada num mesmo grupo social.
VI. Conclusão.
Viu-se que o dever de informar é decorrência direta da boa-fé objetiva, entendido
como um dos princípios fundamentais das relações de consumo. A informação prestada
pelo fornecedor ao consumidor deve ser eficiente, ou seja, cumprir suas funções que são
a viabilização da contratação livre e a efetiva prevenção de danos para o consumidor.
A informação eficiente, ademais, não deve criar expectativas errôneas no consumidor,
mas, pelo contrário, deve afastá-las. Isto não implica, entretanto, a obrigação de se
fornecer toda e qualquer informação ao consumidor, que deve agir de boa-fé e procurar
se informar minimamente sobre a contratação que irá realizar.
VII. Referências Bibliográficas.
• AMARAL JÚNIOR, Alberto. Proteção do Consumidor no Contrato de Compra e
Venda. São Paulo: RT, 1993.
92
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
• ASCENSAO, José de Oliveria. Direito Civil - Teoria Geral. Acções e Factos Jurídicos.
Vol. II. Coimbra: Coimbra Editora, 1999
• AZEVEDO, Antônio Junqueira de. O Direito Pós-Moderno e a Codificação. In Revista
de Direito do Consumidor, n. 33. São Paulo: RT, jan-mar/2000, p. 123.
• _________________. A Boa-fé na Formação dos Contratos. In Revista de Direito
do Consumidor, n. 3. São Paulo: RT, 1993, p. 78.
• BINETTI, Saffo Testoni. Iluminismo. In Dicionário de Política. Brasília: Ed. UnB,
1993. Coord. de Norberto Bobbio, Nicola Matteucci e Gianfranco Pasquino. Trad.
Carmem C. Varriale et. al.
• CASTILLA, Gustavo Ordoqui. Deber de Informacion en la Ley 17.189, de 20 de
setiembre de 1999. In Revista de Direito do Consumidor, n. 34. São Paulo: RT,
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• CARPENA, Heloísa. Abuso do Direito nos Contratos de Consumo. Rio de Janeiro:
Renovar, 2001.
• CZERNA, Renato Cirell. Justiça e História. Ensaios. São Paulo: Edusp, 1987.
• FERREIRA DA SILVA, Jorge Cesa. A Boa-fé a Violação Positiva do Contrato. Rio de
Janeiro: Renovar, 2002, p. 19
• FILOMENO, José Geraldo Brito et alie. Código de Defesa do Consumidor Comentado
pelos Autores do Anteprojeto. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001.
• GRAU, Eros Roberto. O Direito Posto e o Direito Pressuposto. São Paulo: Malheiros,
1996.
• GRIMBERG, Rosana. O Sentido do Artigo 31 do Código de Defesa do Consumidor. In
Revista de Direito do Consumidor, n. 4. São Paulo: RT, 1992, p. 235.
• MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor. São Paulo:
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• MARTINS-COSTA, Judith. A Incidência do Princípio da Boa Fé no Período PréNegocial: Reflexões em Torno de uma Notícia Jornalística. In Revista de Direito do
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• MARTINS, Marcelo Guerra. Lesão Contratual no Direito Brasileiro. Rio de Janeiro:
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• OPPENHEIM, Felix E. Liberdade. In Dicionário de Política. Brasília: Ed. UnB,
1993. Coord. de Norberto Bobbio, Nicola Matteucci e Gianfranco Pasquino. Trad.
Carmem C. Varriale et. al.
• TOMASETTI JUNIOR, Alcides. O Objetivo de Transparência e o Regime Jurídico dos
Deveres e Riscos de Informação nas Relações Negociais para Consumo. In Revista de
Direito do Consumidor, n. 4. São Paulo: RT, 1992, p. 52.
• RAMSAY, Iain. O Controle da Publicidade em um Mundo Pós-Moderno. Trad. Míriam
de Almeida Souza. In Revista de Direito do Consumidor, n. 4. São Paulo: RT,
1992, p. 26.
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
93
Notas
1
Neste sentido, Czerna (op. cit, p. 14) assim trata do tema, citando Guido De Ruggiero (RUGGIERO, Guido
de. Rinascimento, Riforma e Contrariforma, vol. I, p. 138/9): “Expressão de uma intuição mais luminosa
são as palavras de Guido de Ruggiero; ‘Não é somente uma predeterminação natural que leva o homem,
pelo fato de sua posição média na criação, a ser a síntese do universo, mas uma atividade livre, que não
exercida conforme a natureza pode torná-lo bruto. Portanto ele não é uma mera essência média, mas uma
atividade mediadora, que tem em sai razão, e por conseqüência também a responsabilidade da sua própria
obra’”.
2
Art. 3º, Constituição Federal – “Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:
(...) II - garantir o desenvolvimento nacional”.
3
Art. 49, CDC. Além disto, é de crucial importância para o correto entendimento do direito à reflexão as
seguintes lições de Alberto do Amaral Júnior: “A exigência de divulgar informações verdadeiras a respeito
dos diferentes produtos e serviços colocados no mercado é insuficiente para garantir a proteção do consumidor se não lhe é deixado tempo necessário à formação livre e esclarecida da vontade. O interesse do
consumidor em receber informações somente se justifica se ele dispõe de tempo suficiente para assimila-las
ou apreciar o seu alcance” (AMARAL JÚNIOR, Alberto. Proteção do Consumidor no Contrato de Compra
e Venda. São Paulo: RT, 1993, p. 159).
4
O Prof. Antônio Junqueira de Azevedo ao prefaciar o livro de Marcelo Guerra Martins assim se posiciona
sobre o tema: “Portanto, procurando sintetizar, entre os princípios contratuais, além dos três antigos,
ligados à autonomia da vontade – o princípio de liberdade contratual, o de obrigatoriedade dos efeitos, ou
do pacta sunt servanda, e o da relatividade dos efeitos -, há, hoje, outros dois: o da boa-fé e o do equilíbrio
contratual conjugado à proteção da parte mais fraca. Os três primeiros, antes, eram absolutos e, hoje, estão
ora reforçados ora controlados pelos outros dois. A boa-fé funciona, em matéria contratual para interpretar,
suprir ou corrigir o contrato (além de atuar nas fases pré e pós contratual), e o princípio do equilíbrio,
limitado aos contratos sinalagmáticos, atua, através de figuras causais, das quais as mais importantes são a
lesão, na fase de formação, e a revisão por alteração de circunstância, na fase de execução. A autonomia
corresponde à idéia de que dar regras para si mesmo faz parte do desenvolvimento da dignidade humana
e da livre iniciativa (princípios constitucionais) mas essa liberdade tomada com exclusividade nem sempre
levará à solução justa, daí os outros dois princípios, que supõem o contrato como valor social – também
princípio constitucional” (MARTINS, Marcelo Guerra. Lesão Contratual no Direito Brasileiro. Rio de
Janeiro: Renovar, 2001).
5
José de Oliveira Ascensão ao tratar sobre a cláusula “rebus sic stantibus” assim trata da questão: “O contrato vinculava e isso era justo; mas se as circunstâncias se alterassem profundamente, o contrato poderia
deixar de vincular, desde que essa alteração ferisse a justiça contratual. Essa maneira de ver estava ligada
a uma preocupação substancialista, que levava o direito a preocupar-se com a substância dos contratos.
Os contratos não só pelo consentimento, mas porque fundavam uma relação justa” (ASCENSAO, José
de Oliveria. Direito Civil Teoria Geral. Acções e Factos Jurídicos. Vol. II. Coimbra: Coimbra Editora,
1999, p. 409).
6
Art.. 4 – “A Política Nacional das Relações de Consumo tem por objetivo o atendimento das necessidades
dos consumidores, o respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos,
a melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das relações de consumo,
atendidos os seguintes princípios: (...) III - harmonização dos interesses dos participantes das relações
de consumo e compatibilização da proteção do consumidor com a necessidade de desenvolvimento
econômico e tecnológico, de modo a viabilizar os princípios nos quais se funda a ordem econômica (Art.
170, da Constituição Federal), sempre com base na boa-fé e equilíbrio nas relações entre consumidores e
fornecedores”.
7
Luís Renato Ferreira da Silva é claro a este respeito: “Com a objetividade do princípio busca-se afirmar
os valores éticos, sociais, econômicos que vão preencher o conteúdo da cláusula geral da boa-fé que são
apanhados pelo aplicador/intérprete no que pode ser constado na sociedade. Seu conteúdo é retirado dos
costumes do tráfico jurídico, ou no critério do homem médio (diligens pater familias), ou nas expectativas
razoáveis dentro de uma dada sociedade. Ao falar-se em boa-fé objetiva pensa-se nela como um standart
jurídico apreensível no contexto em que a conduta examinada se dá” (apud MARTINS, Marcelo Guerra.
Lesão Contratual no Direito Brasileiro. Rio de Janeiro: Renovar, 2001).
8
Eros Roberto Grau destaca que “os princípios obrigam seus destinatários igualmente, sem exceção, a cumprir
as expectativas generalizadas de comportamento (...) A prestação jurisdicional orientada por princípios (=
normas) – anota Habermas – deve decidir qual pretensão e qual conduta são corretas em um dado conflito,
e não como equilibrar bens ou relacionar valores. A validade jurídica do juízo tem o sentido deontológico de
um comando e não o sentido teleológico do que podemos alcançar sob dadas circunstâncias no horizonte
dos nossos desejos; o que é melhor para nós em um determinado ponto não coincide eo ipso com o que é
94
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
igualmente bom para todos” (GRAU, Eros Roberto. O Direito Posto e o Direito Pressuposto. São Paulo:
Malheiros, 1996, p.79).
FERREIRA DA SILVA, Jorge Cesa. A Boa-fé a Violação Positiva do Contrato. Rio de Janeiro: Renovar,
2002, p. 19.
10
Para uma melhor compreensão das características do pós-modernismo, especialmente em relação aos
aspectos jurídicos, vide artigo do professor Antônio Junqueira de Azevedo intitulado “O Direito Pós-Moderno e a Codificação” (in Revista de Direito do Consumidor, n. 33. São Paulo: RT, jan-mar/2000,
p. 123).
11
MACEDO JÚNIOR, Ronaldo Porto. Direito à Informação nos Contratos Relacionais de Consumo. In Revista
de Direito do Consumidor, n. 35. São Paulo: RT, julho-set/2000, p. 113.
12
A informação possibilita a contratação livre, não opressora, e, portanto, digna. Nesta medida é correto
afirmar que o dever do fornecedor corresponde ao direito do consumidor de ser informado. Tal direito a
informação não se limita a um direito de fundamento meramente legal, mas sim constitucional na medida
em que valoriza a dignidade humana (artigos 1º, III, e 5º, XIV, CF). E neste aspecto, o consumo é parte
de um espectro maior, a cidadania.
13
TOMASETTI JUNIOR, Alcides. O Objetivo de Transparência e o Regime Jurídico dos Deveres e Riscos de
Informação nas Relações Negociais para Consumo. In Revista de Direito do Consumidor, n. 4. São Paulo:
RT, 1992, p. 52.
14
o
Neste sentido, vale destacar a prescrição do art. 10, §1 ., CDC: “O fornecedor de produtos e serviços
que, posteriormente à sua introdução no mercado de consumo, tiver conhecimento da periculosidade que
apresentem, deverá comunicar o fato imediatamente às autoridades competentes e aos consumidores,
mediante anúncios publicitários”.
15
Alcides Tomasetti Junior. op. cit. , p. 58.
16
No consumo vale o princípio do caveat praebitor, (o vendedor que se acautele), e não o caveat emptor.
Neste sentido, confira-se Alcides Tomazetti Junior, op. cit., p. 61.
17
RAMSAY, Iain. O Controle da Publicidade em um Mundo Pós-Moderno. Trad. Míriam de Almeida
Souza. In Revista de Direito do Consumidor, n. 4. São Paulo: RT, 1992, p. 26.
18
Alcides Tomazetti Junior, op. cit., p. 58.
19
Embora não tratem especificamente de direito do consumidor, mas de direito civil, as lições de José Oliveira
Ascensão são neste sentido: “Particularmente há de se conjugar estes deveres com o dolus bonus: é difícil
fazer admitir que o comerciante deva informar o potencial cliente dos locais onde se vende produto mais
barato que o seu. Pode-se assim concluir com Almeida Costa que a esfera de acção do art. 227/1 começa
onde termina a do art. 253/2 – portanto, no limite do dolo tolerado” (op. cit., p. 371).
9
—— • ——
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
95
Partidos e Coligações:
a Sucessão dos Suplentes
Rodrigo Cordeiro de Souza Rodrigues
Juiz de Direito
C
oligação partidária, como nos ensinou o Professor Edisio Souto – em aulas
ministradas na Escola Superior da Magistratura da Paraíba, é ‘um grande
partido’.
Essa definição, ainda que simplista, traduz
o ensinamento transmitido por outros
1
renomados doutrinadores, como Joel Candido
.
2
Djalma Pinto, por sua vez, pontifica :
“A Coligação é a reunião de partidos, em determinado pleito, para
buscarem juntos a conquista do poder público. Podem as agremiações celebrar coligação para a eleição majoritária, proporcional ou
para ambas”.
3
Portanto, a coligação, ‘pessoa jurídica pro tempore’ , é um instituto finalístico
e viabilizador da representatividade dos pequenos partidos, os quais abdicam de
parcela considerável e momentânea de sua autonomia em favor da efetiva participação política.
Mais uma vez, o mestre Djalma Pinto, ao tratar da representatividade da coligação, estipula com clareza peculiar:
“A coligação é representada em juízo pela pessoa designada pelos
partidos que a integram. Esse representante tem atribuições equivalentes às de um presidente de partido político no gerenciamento dos
interesses e defesa da coligação durante o processo eleitoral (art.5,
I, da Res. 21.608/2004). Podem igualmente representar a coligação
perante a Justiça Eleitoral: três delegados perante o Juiz Eleitoral;
quatro delegados perante o Tribunal Regional Eleitoral e cinco delegados perante o TSE (art.6, IV, da Lei nº9.504/97)”
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
97
Nesse ínterim, é preciso esclarecer que o processo eleitoral brasileiro adota dois
sistemas de cômputo dos votos, quais sejam: o sistema proporcional e majoritário.
Em linhas gerais, o sistema majoritário é aplicável às eleições de prefeitos, governadores, senadores e presidente da república.
O sistema proporcional, por sua vez, aplica-se às eleições para vereadores, deputados estaduais e federais, em regra. Aqui, caso nenhum dos candidatos alcance o
chamado coeficiente eleitoral, a eleição adotará o regime majoritário (art.111, Código
4
Eleitoral ), embora não haja relatos da aplicação desse critério em nosso país.
Pois bem!
Viabilizando a elegibilidade majoritária e proporcional, a legislação eleitoral
permite a propositura de candidaturas por partidos políticos e/ou coligações.
Esse grande partido político que é a coligação funcionará unitariamente no
relacionamento interno (interpartidário) e externo (perante o Poder Judiciário).
Embora essa sociedade eleitoral finalística destine-se a servir para o microprocesso
eleitoral (que vai das convenções até a diplomação dos eleitos), não se pode rejeitar
os efeitos decorrentes, sobretudo porque, para o ato final da diplomação, a coligação
ainda existe.
5
Sobre o tema, o art.4º, caput, da Lei n.º7.454/1985 , devidamente integrado
6
pelo art.112 do Código Eleitoral , confirma a tese já exposta, à medida que a sociedade
finalística chamada de coligação perderia sua razão de existir, caso fosse desconsiderada justamente para a sua finalidade maior, qual seja, a homologação do resultado das
eleições e a consequente diplomação dos eleitos.
7
Confirmando esse entendimento, o art.49 da Resolução TSE n.º23.217 , ao
estatuir a prestação de contas para as eleições 2010, legitimou a coligação para, mesmo
após a diplomação, intentar Investigação Judicial Eleitoral sobre a arrecadação e gastos
públicos.
8
Ora, se a corporação sui generis subsiste além da diplomação para diversos
fins, como aquele exemplificado, não há razão plausível para extingui-la quanto ao seu
principal efeito.
Noutro naipe, tem-se que, historicamente, os partidos políticos e as coligações
foram utilizados como instrumento de elegibilidade dos candidatos, numa verdadeira
‘dança de cadeiras’ que sempre punha em xeque a representatividade popular.
Atento a essa realidade fática, o Supremo Tribunal Federal decidiu, em julgamento plenário que
“(...) os partidos políticos e as coligações partidárias têm o direito
de preservar a vaga obtida pelo sistema eleitoral proporcional, se,
não ocorrendo razão legítima que o justifique, registrar-se ou o cancelamento de filiação partidária ou a transferência para legenda diversa, do candidato eleito por outro partido (...)” (STF – Plenário,
MS 26602/DF, rel. Min. Eros Grau, 3 e 4.10.2007. (MS-26602), MS
26603/DF, rel. Min. Celso de Mello, 3 e 4.10.2007. (MS-26603), MS
26604/DF, rel. Min. Cármen Lúcia, 3 e 4.10.2007. (MS-26604), informativo n.º482, outubro de 2007).
98
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
Esse entendimento, no entanto, cerceou-se aos limites impostos pela data da
9
Consulta do Tribunal Superior Eleitoral n.º1.398/DF, ou seja, 27.03.2007 .
A consulta levada à Corte Eleitoral estabeleceu em sua primeira parte: “Os
partidos e coligações têm o direito de preservar a vaga obtida pelo sistema eleitoral proporcional quando houver pedido de cancelamento de filiação ou de transferência do
candidato eleito por um partido para outra legenda?”
A resposta foi afirmativa, desde que não houvesse causa justa para desfiliação,
o que foi especificado na Resolução TSE n.º22.610/2007.
O julgamento proferido pela Corte Constitucional, ainda dispôs, obter dictum:
“(...) afirmando que o caráter partidário das vagas é extraído, diretamente, da norma constitucional que prevê o sistema proporcional
(CF, art. 45, caput: “A Câmara dos Deputados compõe-se de representantes do povo, eleitos, pelo sistema proporcional, em cada Estado, em cada Território e no Distrito Federal.”), e que, nesse sistema,
a vinculação entre candidato e partido político prolonga-se depois
da eleição, considerou-se que o ato de infidelidade, seja ao partido
político, seja ao próprio cidadão-eleitor, mais do que um desvio ético-político, representa, quando não precedido de uma justa razão, uma
inadmissível ofensa ao princípio democrático e ao exercício legítimo
do poder, na medida em que migrações inesperadas não apenas causam surpresa ao próprio corpo eleitoral e as agremiações partidárias
de origem, privando-as da representatividade por elas conquistada
nas urnas, mas acabam por acarretar um arbitrário desequilíbrio de
forças no Parlamento, vindo, em fraude à vontade popular e afronta
ao próprio sistema eleitoral proporcional, a tolher, em razão da súbita
redução numérica, o exercício pleno da oposição política.”
Essa inovação jurisprudencial, nos estritos termos da função tipicamente judiciária, tornou-se fundamento para recente julgamento cautelar proferido pelo Plenário
do Supremo Tribunal Federal - MS 29988 MC/DF, rel. Min. Gilmar Mendes, 9.12.2010,
Informativo n.º612/2010.
Neste julgamento, o STF deferiu medida liminar para assegurar ao partido integrante duma coligação o direito de suceder o membro do seu partido que haja renunciado
ou se afastado para o exercício do cargo para o qual fora eleito.
Segue trecho fundamentador do julgado em epígrafe:
“Citou-se a jurisprudência tanto do TSE quanto do STF no sentido de o mandato parlamentar conquistado no sistema eleitoral proporcional pertencer ao partido político. Aludiu-se à Resolução TSE
22.580/2007, segundo a qual o mandato pertence ao partido e estará
sujeito a sua perda o parlamentar que mudar de agremiação partidária, ainda que para legenda integrante da mesma coligação pela
qual eleito. Asseverou-se que esse posicionamento teria levado em
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
99
conta o fato de as coligações partidárias constituírem pessoas jurídicas pro tempore, cuja formação e existência ocorreriam apenas em
virtude de determinada eleição, desfazendo-se logo que encerrado o
pleito. Assim sendo, a pessoa jurídica da coligação partidária não se
confundiria com as pessoas jurídicas dos partidos que a comporiam.
Afirmou-se que essa orientação constituiria aplicação da tese jurisprudencial firmada pelo STF no julgamento conjunto dos mandados
de segurança 26602/DF, 26603/DF e 26604/DF (DJe de 17.10.2008).
Reportou-se, também, ao que consignado pela Corte no julgamento
do MS 27938/DF (DJe de 30.4.2010), no sentido de que o reconhecimento da justa causa para a desfiliação partidária teria o condão
apenas de afastar a pecha de infidelidade partidária e permitir a continuidade do exercício do mandato, mas não de transferir ao novo
partido o direito à manutenção da vaga. (...) Concluiu-se que o posicionamento mais consentâneo com essa jurisprudência seria o de dar
posse ao suplente do próprio partido político detentor do mandato
eletivo antes exercido pelo parlamentar que renunciara (Supremo
Tribunal Federal - MS 29988 MC/DF, rel. Min. Gilmar Mendes,
9.12.2010, Informativo n.º612/2010).
Ao que parece, o fundamento teórico daquele julgado anterior foi revisto para,
por vias transversas, ceifar a representação popular.
Senão, vejamos um exemplo elucidador.
Numa situação hipotética, um parido A coligou-se com um partido B para eleição
proporcional em um Município onde existam 20 (vinte) cargos de vereadores disponíveis.
O partido A possuiu 100.000,00 (cem mil) votos, enquanto que o partido B englobou 10.000,00 (dez mil) votos. Logo, a Coligação AB possuiu um total de 110.000,00
(cento e dez mil votos).
Nessa disputa municipal, o coeficiente eleitoral ficou estabelecido em 10.000,00
(dez mil) votos.
Com base nisso, a coligação AB conseguiu ocupar onze cargos disponíveis. Para
tanto, será desconsiderado as sobras partidárias, posto que essa temática, além de dificultar o entendimento do que se objetiva, em nada influirá na conclusão.
Acontece que, no partido A, os candidatos mais votados foram: Candidato1
(19.000,00); Candidato2 (8.000,00); Candidato3 (8.000,00); Candidato4 (8.000,00)
Candidato5 (8.000,00) Candidato6 (8.000,00) Candidato7 (8.000,00) Candidato8
(8.000,00) Candidato9 (8.000,00) Candidato10 (8.000,00); Candidato11 (8.000,00),
Candidato12, Candidato13, Candidato14 e Candidato15 (1.000,00 – juntos).
Noutro giro, o partido B teve a seguinte votação: CandidatoX (7.000,00), CandidatoY (2.000,00), Candidatos Z,K,Q (1.000,00 – juntos).
Nessa situação, os onze candidatos eleitos pela coligação AB seriam os candidatos
em negrito (todos do partido A), posto que dentro da coligação prevalece o sistema
majoritário.
Até então, tudo bem.
100
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
O problema surge, pois, tradicionalmente, o sistema majoritário interno fixava
a classificação de todos os candidatos dos partidos formadores da coligação. Logo, o
primeiro suplente da coligação seria o CandidatoX, integrante do partido B.
O referido julgamento do STF, caso prevaleça, fará com que o primeiro suplente
da coligação hipotética seja o Candidato 12, o qual teve menos que 1.000,00 (mil) votos.
O CandidatoX e o CandidatoY, por sua vez, ainda que possuíssem votação superior,
jamais assumiriam qualquer mandato vago da coligação.
E pior, no exemplo citado, o partido B, se concorresse isolado, teria coeficiente
para eleger um candidato próprio.
Embora a formação de coligações possa provocar distorções na vontade popular,
e não é isso que se questiona aqui, o entendimento do STF, ao que parece, desviou-se
do fim primordial das coligações, que é justamente propiciar a junção de partidos hi10
possuficientes , os quais, isolados, jamais conseguiriam participar do poder legislativo.
Todavia, repise-se, o entendimento adotado pela Corte de Justiça Pátria, ao
partir de uma premissa imposta em outro julgamento anterior, esqueceu-se de que as
coligações são verdadeiros partidos, cuja unidade precisa ser considerada durante toda
legislatura. Do contrário, supultar-se-ão as coligações dos grandes partidos com aqueles partidos nanicos, os quais, ainda que unidos, dificilmente, conseguirão coeficiente
necessário para a devida representatividade.
Ademais, seguindo os ensinamentos doutrinários dispostos por Gilmar Ferreira
11
Mendes , cumpre considerar a situação disposta sob a óptica do ‘distinguishing’, ou
seja, deixando de aplicar o precedente anterior, à medida que entre este julgado e o
novo caso existe circunstância fundamental que os distingam.
Do contrário, conclui-se que a cláusula de barreira, veementemente, rejeitada
12
em recente reforma eleitoral – pelo próprio STF, nas ADI 1351-3 e 13540-8 , ressurgirá,
jurisprudencialmente, cerceando o direito das minorias e convalidando representações
cada vez mais ilegítimas.
Aqui, os maiores prejudicados não são os candidatos dos pequenos partidos,
mas o povo que votou em candidatos de uma coligação (que deveria possuir ideologias
simétricas) e não terá o direito de ver os representantes preferidos dessa coligação
(conforme votação distribuída internamente) exercerem as suas atribuições, o que
violaria, no dizer de Caio Mario de Silva Velloso e Walber de Moura Agra, a legiti13
mação democrática .
O julgado paradigma acima, no entanto, dificilmente, alcançará um julgamento
meritório, pois a legislatura à qual se refere findou-se no último dia 1º de fevereiro de
2011. Caberá, pois, aguardar a conclusão de recentíssimo feito, relatado pela Ministra
14
Carmen Lúcia , na esperança de que os argumentos dos Ministros Dias Toffoli, Ricardo Lewandowski e Ayres Britto (vencidos no julgamento cautelar anterior) venham a
prevalecer, confirmando as breves linhas acima expostas.
Diversamente, caso prevaleça o julgamento cautelar no STF, espera-se, ao menos,
a adoção de uma típica decisão transitiva, sob a modalidade de uma decisão de aviso –
15
adotando a classificação proposta pelo constitucionalista José Adércio Leite Sampaio .
Efetivamente, tal modalidade de decidir esclarece que o prenúncio de uma
mudança na orientação doutrinária e jurisprudencial não deve se aplicar no caso ou
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
101
no curso da ação (no caso, no curso da legislatura), na qual foi proferida pela primeira
vez, de modo meritório e definitivo.
Com isso, a representatividade, ainda que diminuída, ao menos seria sem a
cláusula da surpresa.
Notas
1
CANDIDO, J. Joel. Direito Eleitoral Brasileiro, 13ª edição, Bauru: São Paulo: Edipro, 2008.
PINTO, Djalma, Direito Eleitoral: improbidade administrativa e responsabilidade fiscal- noções gerais, 4ª
edição, São Paulo: Atlas, 2008, p.125.
3
TSE, Ac. nº 24.531, de 25.11.2004, rel. Min. Luiz Carlos Madeira.
4
Art. 111 - Se nenhum Partido ou coligação alcançar o quociente eleitoral, considerar-se-ão eleitos, até
serem preenchidos todos os lugares, os candidatos mais votados. (Redação dada pela Lei nº 7.454, de
30.12.1985)
5
Art 4º - A Coligação terá denominação própria, a ela assegurados os direitos que a lei confere aos Partidos
Políticos no que se refere ao processo eleitoral, aplicando-lhe, também, a regra do art. 112 da Lei nº 4.737,
de 15 de julho de 1965, quanto à convocação de Suplentes. Citado por 8
6 Parágrafo único - Cada Partido poderá usar sua própria legenda sob a denominação da Coligação
Art.112. Considerar-se-ão suplentes da representação partidária: (Vide Lei nº 7.454, de 30.12.1985)
I - os mais votados sob a mesma legenda e não eleitos efetivos das listas dos respectivos partidos;
7 II - em caso de empate na votação, na ordem decrescente da idade.
Art. 49. Qualquer partido político ou coligação poderá representar à Justiça Eleitoral, no prazo de 15 dias
da diplomação, relatando fatos e indicando provas, e pedir a abertura de investigação judicial para apurar
condutas em desacordo com as normas da Lei nº 9.504/97 e desta resolução relativas à arrecadação e
gastos de recursos (Lei nº 9.504/97, art. 30-A, caput).
8
TARTUCE, Flavio, Direito Civil, volume I, 6ª edição, São Paulo: Método, 2010, p.247/248.
9
Para os cargos do executivo, o marco inicial será 16.10.2007 – conforme data da consulta do TSE n.º
1407, acessado em http://agencia.tse.gov.br/sadAdmAgencia/noticiaSearch.do?acao=get&id=947241,
1º.02.2011, às 21:49h.
10
Caso pequenos partidos se coliguem e alcancem, conjuntamente, apenas 10.000 (dez mil) votos, tão
somente o partido do candidato mais votado será beneficiado, enquanto que todos os outros pequenos
partidos, ainda que possuam candidatos bem votados, ficarão à margem da sucessão de poder.
11
MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de
Direito Constitucional. 2ª edição, revista e atualizada, São Paulo: Saraiva: 2008, p.530.
12
Lei n.º9.096/1995 - Art. 13. Tem direito a funcionamento parlamentar, em todas as Casas Legislativas
para as quais tenha elegido representante, o partido que, em cada eleição para a Câmara dos Deputados
obtenha o apoio de, no mínimo, cinco por cento dos votos apurados, não computados os brancos e os
nulos, distribuídos em, pelo menos, um terço dos Estados, com um mínimo de dois por cento do total de
cada um deles. (Vide Adins nºs 1.351-3 e 1.354-8)
13
VELLOSO, Caio Mario da Silva, AGRA, Walber de Moura, Elementos de Direito Eleitoral, São Paulio:
Saraiva, 2009, p.4/6.
14
http://stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=171158, acessado em 07.02.2011, às
20:50h – MS 30.272.
15
SAMPAIO, José Adércio Leite. Hermenêutica e Jurisdição Constitucional. Belo Horizonte: Del Rey,
2001, p.172-176.
2
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102
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
Sentença Cível em Interdito
Proibitório e Manutenção de
Posse
Ana Maria Ferreira da Silva
Juíza de Direito
Relatório Processo n.º 3.369-6/06 - Manutenção de Posse
AMORVILLE - ASSOCIAÇÃO DOS MORADORES DO CONDOMÍNIO
VILLE DE MONTAGNE ajuizou, em 19/05/2006, em desfavor de CONDOMÍNIO
SOLAR DE BRASILIA, a presente Ação de MANUTENÇÃO DE POSSE, pela qual
pleiteia a manutenção de posse sobre a servidão de passagem da área denominada
“Entrada n.º 2 do Ville”, composta do imóvel tido por QD-03, CONJ-23, LOTE-03,
CONDOMINIO SOLAR DE BRASÍLIA, e da área externa, contígua a ele. Alega a
Requerente que antes da implantação do Condomínio Solar de Brasília, há pelo menos
dez anos, estabeleceu-se e consolidou-se informalmente uma passagem alternativa
dando acesso à parte Sul do Condomínio Ville de Montagne, grande em extensão, com
mais de mil casas e pelo menos três mil pessoas. Que tal acesso configurou-se como
servidão de trânsito não titulada. Esclarece que depois de todo esse tempo, implantou-se o Condomínio Solar de Brasília, o qual abrangeu a referida faixa de terras utilizada
como passagem pelos moradores, trabalhadores e transeuntes do Ville de Montagne.
Esclarece que a referida passagem, apesar de haver sido integrada à área do Condomínio
Solar de Brasília, seria, em verdade, parte, em terra pública. Assevera, ainda, que, com
a implantação do condomínio Solar de Brasília, parte da área em questão foi transformada em lote, o qual foi adquirido por ela, AMORVILLE, diante do receio de perder a
passagem. Prossegue, asseverando que ali edificou uma guarita para controle da entrada
de pedestres. Narra que, visando melhorar as instalações da entrada em tela, iniciou a
construção de um muro, no qual instalou um portão de ferro, e de uma portaria, dentro do seu lote, respeitando as normas de edificação. Informa que em decorrência das
obras foi notificada pelo Condomínio Solar de Brasília para adequar a obra à finalidade
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
103
do imóvel, sob pena de multa e outras medidas. Aduz que, a par disso, o Condomínio
Solar de Brasília começou a edificar, há cerca de dois meses, uma nova cerca ao lado
da DF-001, em área que não integra o seu perímetro, fechando o acesso entre a rodovia
e a “Entrada n.º 2 do Ville”, a qual foi definitivamente fechada após a construção de
um muro pelo Requerido. Declara que vem, sem êxito, tentando resolver a questão
amigavelmente e que o Requerido reconhece a servidão de trânsito em questão. Ao
final, além do de praxe, requer, liminarmente, a manutenção da posse sobre a servidão
de trânsito a ser dimensionada por perícia, sob pena de cominação de multa, e ulterior
procedência do pedido, com confirmação da medida liminar.
Relatório Processo nº 4.161.-8/06 - Insterdito Proibitório
CONDOMÍNIO SOLAR DE BRASÍLIA ajuizou, em 19/06/2006, em face de
MARCO ANTONIO ELEUTÉRIO DE BARROS LIMA e ASSOCIAÇÃO DOS
MORADORES DO CONDOMÍNIO VILLE DE MONTAGNE - AMORVILLE, a
presente Ação de Interdito Proibitório, pela qual, em síntese, o Requerente declara
constituir-se condomínio com projeto Urbanístico do parcelamento do solo aprovado
pela Lei Complementar n.º 585/2002. Informa, igualmente, a existência de decisão
judicial garantido sua posse sobre o imóvel onde está implantado o Condomínio Solar
de Brasília, obtida no AGI-24-4/98 e de decisão proferida na Ação de Manutenção de
Posse n.º 61.099/97, ajuizada perante a 4.ª Vara da Fazenda Pública do DF e proposta
pelo Requerido em face da CIA. IMOBILIÁRIA DE BRASILIA - TERRACAP.e
do DISTRITO FEDERAL. Assevera que desde janeiro de 1998 a sua área está
protegida por cercas, as quais vêm sendo substituídas por muro e alambrado, sendo
sua posse respeitada pelos Agentes Públicos e por particulares, em especial, pelos
seus vizinhos. Declara que a segunda Requerida é sua condômina desde 04/04/2006
e que, em março de 2006, tentou abrir uma via de circulação e edificar portaria na
sua unidade condominial, destinada para residência unifamiliar, afrontando o Projeto
Urbanístico do Requerido, a sua Convenção e a Lei Complementar n.º 585/2002.
Aduz que, mesmo advertida para suspender as obras, a segunda Requerida prosseguiu
com as edificações e afixou uma faixa incitando terceiros a utilizarem a fração como
passagem. Informa que MARCO ANTÔNIO ELEUTÉRIO DE BARROS LIMA, em
15/05/2006, associado da segunda Requerida, motivado pela faixa, cortou a cerca do
alambrado do Requerente e iniciou a destruição do muro e do mesmo alambrado,
que cercam a área do Requerente - fatos que deram ensejo a registro de Boletim
Policial. Aduz que, apesar da turbação sofrida, permanece na posse da área. Ressalta
que, na qualidade de condômina, cumpre à segunda Requerida observar as normas
condominiais vigentes, especialmente, quanto à destinação da sua fração. Destaca
recear que novos atos atentatórios sejam perpetrados contra a sua posse. Ao final,
pleiteia a concessão de liminar para determinar que os Requeridos se abstenham de
praticar atos tendentes a molesta a posse do Requerente e que segunda Requerida
retire a faixa afixada no local, sob pena de multa. Como pedido principal requer que
os Requeridos sejam condenados a se absterem de praticar atos atentatórios à posse
104
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
do Requerente, bem como a condenação da segunda Requerida a dar destinação
residencial ao imóvel de sua titularidade (QD-03, CONJ-32, LOTE-03, Condomínio
Solar de Brasília), além da condenação pelos prejuízos causados.
Eis os relatórios.
DECIDO.
Cuida-se de Ações de Manutenção de Posse e de Interdito Proibitório, com polos
invertidos, conexas, em que as partes disputam a posse da área tida por QD-03, CONJ32, LOTE-03, Condomínio Solar de Brasília, bem como a da área externa contígua
àquela. A AMORVILLE - ASSOCIAÇÃO DOS MORADORES DO CONDOMÍNIO
VILLE DE MONTAGNE pleiteia a livre utilização do imóvel, utilizado, segundo
ela, há muito tempo, como segunda entrada para o interior do Condomínio Ville de
Montagne, situação que configura servidão de passagem aparente e não titulada. Por
outro lado, o CONDOMÍNIO SOLAR DE BRASÍLIA, do qual faz parte o lote em
questão, afirma que a AMORVILLE, titular do imóvel, ao tentar edificar uma portaria
no local, desvirtua a sua destinação, a qual, explica, é residencial, ameaçando a posse.
Ambos requerem a tutela possessória.
Ressalto que foi deferida liminar em favor do Condomínio Solar de Brasília,
proibindo a AMORVILLE de praticar qualquer ato que representasse molestação à
posse do Condomínio Solar de Brasília e determinada a retirada da faixa afixada no
muro do referido lote.
Os autos se encontram aptos a serem sentenciados, eis que as provas carreadas,
a nosso sentir, são suficientes para o acerto do litígio. Destaque-se que a decisão
proferida em ambos os feitos, indeferindo a produção da prova oral, restou acobertada
pela preclusão.
Inicialmente, verifica-se penderem questões de ordem formal a exigir
enfrentamento. Na Contestação oferecida pelo Condomínio Solar de Brasília, nos
autos da Manutenção de Posse, foi suscitada preliminar de carência de ação sob o
argumento de que as terras sobre as quais está assentado o Condomínio Ville de
Montagne são públicas. Já na réplica apresentada nos autos do Interdito Proibitório,
esse mesmo litigante reclama a revelia tanto da AMORVILLE - ASSOCIAÇÃO DOS
MORADORES DO CONDOMÍNIO VILLE DE MONTANGE, quanto do Requerido
Marco Antônio Eleutério de Barros Lima. Daquela porque apresentou a defesa fora do
prazo e deste por não ter apresentado defesa.
Em relação às matérias de ordem formal aventadas pelo Condomínio Solar, urge
esclarecer que, em referência à decretação da revelia do Requerido Marco Antônio
Eleutério de Barros Lima, tal pleito resta prejudicado em face dos termos da Transação
Penal entabulado entre as partes, quando da Audiência de Instrução e Julgamento
relativa ao TC-Queixa-Crime n.º 6477-3, figurando como Querelante CONDOMÍNIO
SOLAR DE BRASÍLIA e como Querelado MARCO ANTONIO ELEUTÉRIO DE
BARROS LIMA. Pelo termo houve a composição civil dos danos, obrigando-se o
Querelado a indenizar o Querelante pelos prejuízos causados. Por sua vez, naquela
assentada, o Condomínio Solar de Brasília obrigou-se a desistir do Interdito em relação
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
105
ao Requerido Marco Antonio Eleutério de Barros Lima - tudo conforme Ofício do 1º
Juizado Especial de Competência Geral do Paranoá-DF (fl. 492/496). Com efeito, diante
da desistência apresentada, ainda que, inicialmente, formulada em outro feito, a sua
homologação é medida que se impõe.
No tocante à preliminar de carência de ação no feito da Manutenção de Posse
ao argumento de que o CONDOMÍNIO VILLE DE MONTAGNE estaria em terras
públicas, tal preliminar não merece albergue porque, de acordo com entendimento
já cristalizado pelo egrégio Tribunal de Justiça, a tutela possessória, mesmo sendo o
imóvel litigioso público, pode ser deferida quando disputada entre particulares. Nesse
sentido, mencionam-se alguns julgados: a)20090020083352AGI, Relator NÍDIA
CORRÊA LIMA, 3ª Turma Cível, julgado em 10/09/2009, DJ 20/10/2009 p. 66;
b)20020210037775APC, Relator ANGELO PASSARELI, 2ª Turma Cível, julgado em
26/08/2009, DJ 14/09/2009 p. 152; c)20050710024239APC, Relator JOSÉ DIVINO
DE OLIVEIRA, 6ª Turma Cível, julgado em 05/08/2009, DJ 19/08/2009 p. 84;
d)20080310152175ACJ, Relator SANDOVAL OLIVEIRA, Primeira Turma Recursal
dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais do D.F., julgado em 25/11/2008, DJ 15/01/2009
p. 83; e)20030110266038APC, Relator MARIA BEATRIZ PARRILHA, 4ª Turma
Cível, julgado em 28/04/2008, DJ 09/06/2008 p. 227.
Outrossim, o pedido de decretação da revelia da AMORVILLE - ASSOCIAÇÃO
DOS MORADORES DO CONDOMÍNIO VILLE DE MONTAGNE, nos autos do
Interdito Proibitório, não pode ser acolhido. Senão, confira-se: a publicação da decisão
que apreciou o pedido liminar se deu no DJ de 27/07/2206 (fl. 417), uma quinta-feira.
Contando-se o prazo segundo a sistemática do Código de Processo Civil, tem-se como
termo a quo o dia 11/08/2006, uma sexta-feira. Como o dia 11/08/2006, a exemplo de
todos os anos, foi feriado - dia da instalação dos cursos jurídicos no Brasil - o prazo para
apresentação da defesa adiou-se para o dia 14/08/2006, segunda-feira, data do protocolo
da contestação (f. 418), que foi entregue no serviço de Drive-Thru. Com efeito, não se
pode falar em intempestividade da peça.
À luz desses argumentos, rejeitam-se as preliminares arguidas.
Resolvidos os aspectos formais, avançamos ao mérito da causa.
A pretensão possessória deduzida pela AMORVILLE - ASSOCIAÇÃO DOS
MORADORES DO CONDOMÍNIO VILLE DE MONTAGNE se esteia na posse da
servidão de passagem alegada sobre a área hoje localizada nos limites do CONDOMÍNIO
SOLAR DE BRASÍLIA. Segundo aquela Associação, tal fato ocorreu antes mesmo
do surgimento do Condomínio Solar de Brasília, ou seja, aproximadamente, em 1998.
É oportuno estabelecer que precede ao julgamento de um demanda a apuração
dos fatos ocorridos pela análise e aquilatamento das provas apresentadas. Uma vez
delineados os fatos e identificadas as normas, realizar-se-á a subsunção daqueles a
estas. Em outras palavras, habilitado estará o Juiz a aplicar o direito ao caso concreto,
verificando a exata relação de pertinência legal com o fito de realizar a Justiça.
Com efeito, orientados pela natureza das pretensões deduzidas, mister,
primeiramente, apurar os fatos relevantes a serem considerados no julgamento.
No caso vertente, analisando-se o acervo probatório no intuito de se esquadrinhar
o quadro fático, apurou-se: a) Em que pese que a implantação do Condomínio Ville de
106
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
Montagne tenha se dado anteriormente à do Condomínio Solar de Brasília, este teve posse
reconhecida judicialmente sobre a área que ocupa em 1998. Registre-se que a posse do
Condomínio Solar de Brasília sobre as terras onde se instalou foi reconhecida em 16/01/98,
data da decisão no AGI n.º 1998.00.2.000024-4, proposto pelo Condômino Solar de Brasília
nos autos da Manutenção de Posse n.º 61.099/97, onde figura como Requerente e, como
Requerida, a TERRACAP. Anote-se, por oportuno, que a sentença julgou procedente o
pedido de manutenção de posse do Condomínio Solar de Brasília, tendo sido confirmada
em 2.ª Instância (fls. 131/195); b) o Condomínio Solar de Brasília se posicionou entre o
Ville de Montagne, em sua parte Sul, e a DF-001 (fls. 14, 222 224, 226; c) o Condomínio
Ville de Montagne não é imóvel encravado, dispondo de acesso à via pública, para a qual
tem sua portaria principal voltada (fl.09); d) o Condomínio Ville de Montagne adquiriu a
unidade sita na QD-03, CONJ-32, LOTE-03, Condomínio Solar de Brasília, passando a
dele fazer parte, na qualidade de condômina, em 18/02/2004 (fls.16/18); e) o Condomínio
Ville de Montagne iniciou, um pouco antes do aforamento do feito, a construção de uma
guarita no referido lote, intentado instalar uma portaria, e afixando no local uma faixa com os
seguintes dizeres: “Atenção interessados:qualquer pessoa identificada poderá passar por aqui.
Se alguém impedi-lo, chame a polícia. Se alguém tocar em você, processe. AMORVILLE.”; f)
O imóvel indicado tem destinação residencial; e g) Não existiam obras anteriores, realizadas
pela AMORVILLE, na alegada Servidão de Passagem.
Desenhados os contornos fáticos, firmemos os marcos legais relacionados às
temáticas tocadas pelo litígio.
Com esse desiderato, confira-se o que prevê o artigo 1.378 do Código Civil, litteris:
“Art. 1.378. A servidão proporciona utilidade para o prédio dominante, e grava o prédio serviente, que pertence a diverso dono, e
constitui-se mediante declaração expressa dos proprietários, ou por
testamento, e subsequente registro no Cartório de Registro de Imóveis.”
Já o artigo seguinte do mesmo Diploma preceitua:
“Art. 1379. O exercício incontestado e contínuo de uma servidão
aparente, por 10(dez) anos, nos termos do art. 1.242, autoriza o interessado a registrá-la em seu nome no Registro de Imóveis, valendo-lhe como título a sentença que julgar consumada a usucapião.”
Parágrafo único. Se o possuidor não tiver título, o prazo da usucapião será de
20 (vinte) anos.
Por sua vez, o art. 1.213 do Código Civil, integrante do Capítulo que cuida dos
efeitos da posse, enuncia:
“Art. 1.213. O disposto nos artigos antecedentes não se aplica às servidões não aparentes, salvo quando os respectivos títulos provierem
do possuidor do prédio serviente, ou daqueles de quem este o houve.”
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
107
Ainda, na fixação dos marcos legais, pela pertinência ao caso concreto, é valioso
rememorar o que consigna o art. 1.208 do Código Civil, verbis:
“Art. 1.208. Não induzem posse os atos de mera permissão ou tolerância assim como não autorizam a sua aquisição os atos violentos,
ou clandestinos, senão depois de cessar a violência ou a clandestinidade.”
Eis os principais marcos legais, a nosso aviso, relevantes e aplicáveis à espécie.
Identificados os fatos ocorridos, as teses esposadas e as normas regentes, impende
laborar a subsunção dos primeiros às últimas. Assim, vejamos.
Conforme se extrai do texto legal, a Servidão de Passagem pressupõe a existência
de dois prédios, com diversidade de donos, constituindo-se por ato de vontade ou,
excepcionalmente, por usucapião. É direito real e, por conseguinte, originado com o
respectivo registro no Registro de Imóveis.
Observe-se que dentre os requisitos para aquisição de uma Servidão de Passagem
por usucapião destaca-se o exercício (entenda-se posse) incontestado e contínuo desta
servidão, que deve ser, frise-se, aparente, por determinado período de tempo.
Na hipótese, a servidão de passagem alegada, consoante o declarado pela
AMORVILLE, seria aparente e não titulada, isso porque não decorreu de ato de vontade
inter vivos, tampouco de testamento e, sequer, de declaração judicial de usucapião.
Constata-se não haver o direito real, na medida em que não há registro.
Não obstante a ausência de registro, a posse de uma suposta servidão poderia ser
defendida por meio de interditos possessórios, nos termos do permissivo contido no art.
1.213 do Código Civil - retro transcrito. Por uma exegese contrario senso deste artigo,
conclui-se que as servidões de passagem, quando aparentes, são passíveis de tutela via
interditos possessórios.
A nosso entender, o legislador, ao permitir a proteção possessória às servidões
aparentes, não discrimando se tituladas ou não, fitava, certamente, proteger o fato
posse. Ou melhor, nos casos daquelas situações consolidadas pelo tempo, em que, por
exemplo, uma estrada em terras de um prédio serviente fosse possuída pelo proprietário
do prédio dominante, independentemente do registro ou não, tal situação poderia
ser defendida pela via interdital. Todavia, a servidão necessária deve ostentar sinais
exteriores, de constatação icto oculi.
Ora, o que o legislador quis proteger, como o fez em todo o Livro III, Título
I - Da Posse, do Código Civil, é tutelar a posse. Então, para se fazer jus a essa proteção
exige-se do pleiteante que demonstre a posse sobre a servidão, a qual, frise-se, será,
necessariamente, aparente.
Volvendo ao caso em exame, a posse do Condomínio Ville de Montagne sobre a
faixa de terras integrantes do Condômino Solar de Brasília, que classifica como servidão
de passagem, não foi demonstrada. Senão, observe-se.
Posse, de acordo com definição repetida à exaustão, é a visibilidade do domínio. O
poder físico sobre a coisa, donde se deduz que o poder é demonstrado pela subordinação
da coisa ao seu possuidor. Melhor aclarando: enquanto na posse o possuidor tem “poder”
108
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
sobre a coisa, o mesmo não ocorre quando se fala de detenção, por exemplo. Posse,
fixemos, é a exteriorização do domínio. Para que ela se apresente é necessário que o
possuidor se encontre imbuído da legitimidade do seu direito, subordinando a coisa a si.
É cediço que atos de tolerância não geram posse porque àquele que utiliza da
coisa por tolerância do seu real titular não detém sobre ela qualquer poder, qualquer
ingerência. No caso concreto, adiantamos, não se constata posse da AMORVILLE
em relação à servidão da passagem, porquanto a não resistência do Solar de Brasília
anteriormente faz crer mera tolerância, não induzido posse aos usuários, além de outras
circunstâncias que serão abordadas adiante.
É oportuno pôr em relevo que, não decorrendo de ato de vontade nem de
declaração judicial, a alegada servidão não poderia ser registrada, como de fato, não o
foi. Não sendo registrada no Registro de Imóveis não ascendeu à categoria de Direito
Real, oponível erga omnes. Com efeito, não se cuida de Direito Real.
Acresça-se que a posse do Condomínio Solar de Brasília sobre a área na qual
se instalou foi reconhecida e garantida desde a decisão judicial proferida em janeiro de
1998. Ou seja, há mais de oito anos do ajuizamento das presentes Ações.
O Condomínio Solar de Brasília, como o próprio nome indica, representa, ainda
que não regularizado, um domínio compartilhado por vários titulares, com áreas comuns,
unidades autônomas, convenção, etc. Um condomínio, diga-se, com fins residenciais e
com a destinação das suas unidades integrantes previstas nas normas internas.
Não é crível que um condomínio do tamanho do Solar de Brasília tenha assentido
à posse de faixa de suas terras ao seu vizinho, o qual pretendia a área para fazer uma
segunda portaria para si, por mera comodidade, haja vista não ser imóvel encravado,
principalmente quando é notória a preocupação dos condomínios com segurança. A
abertura de uma portaria em área do Condomínio Solar de Brasília sem sua expressa
anuência para servir ao Condomínio vizinho, postado ao seu lado, indubitavelmente,
fragiliza a sua segurança e expõe os condôminos próximos a ela a uma gama de dissabores
facilmente presumíveis.
Destarte, se os empregados do Condomínio Ville de Montagne e alguns
condôminos utilizaram a passagem por algum período, tal fato deve ser creditado a
mera tolerância por parte do Condomínio Solar de Brasília. Atos de mera tolerância,
nos exatos termos do art. 1.208 do Codex Civil, não induzem posse.
Reforça a convicção de que o Condomínio Solar de Brasília não reconhecia o
local como passagem e apenas tolerava o trânsito de estranhos ali o fato de haver dado
destinação residencial e classificado como fração ideal a faixa denominada de QD03, CONJ-32, LOTE-03. Caso contrário, não teria criado uma unidade residencial
autônoma no local. Acresça-se, por oportuno, que a aquisição pela AMORVILLE do
lote em referência corrobora essa conclusão, na medida em que, reconhecida fosse a
servidão pelo Condomínio Solar de Brasília, não necessitaria adquirir onerosamente o
que já lhe era reconhecido. À frente dos argumentos tecidos é legítimo concluir que
o uso da passagem se deu por mera tolerância do Condomínio Solar de Brasília, não
gerando posse em favor da AMORVILLE sobre a área.
Ainda, a abonar esse entendimento, colaciono julgado da relatoria do eminente
Desembargador Arnoldo Camanho de Assis, quando do julgamento da APC n.º
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
109
20040810056829, cujo teor da ementa é transcrito adiante. Destaque-se que o caso
objeto do aresto guarda estreita similitude com o ora apreciado, de acordo com o que
se depreende da passagem do voto, também adiante transcrito. Confira-se.
“DIREITO CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO POSSESSÓRIA. PEDIDO E CAUSA DE PEDIR. ALTERAÇÃO. IMÓVEL
RURAL NÃO ENCRAVADO. TURBAÇÃO. SERVIDÃO DE
PASSAGEM. EMBARAÇO AO LIVRE CURSO DAS ÁGUAS.
CONSTRUÇÃO DE CERCA. INDENIZAÇÃO. 1 - O art. 264, do
CPC, permite que o autor altere o pedido inicial até a citação, sem o
consentimento do réu. 2 - A tolerância do possuidor quanto à utilização de estrada por vizinho, mesmo durante anos, não lhe confere
qualquer direito sobre o seu uso. 3 - Compete aos titulares de imóveis marginais aos cursos d’água conservá-los livres de embaraços que
provoquem prejuízos a terceiro. 4 - É lícito ao autor cumular, na ação
de manutenção de posse, o pedido possessório com o de recebimento
de indenização por perdas e danos e a imposição de pena em caso
de reincidência (art. 921, do CPC). 5 - Apelo improvido. Sentença
mantida.(20040810056829APC, Relator ARNOLDO CAMANHO
DE ASSIS, 3ª Turma Cível, julgado em 29/10/2008, DJ 17/11/2008
p. 94).
A certa altura do seu voto, o eminente Desembargado Arnoldo Camanho de
Assis se pontifica:
“... A conclusão a que se chega, inclusive levando em conta o laudo
pericial de fls. 210/252, é a de que a utilização da referida estrada pelo
apelante dá-se por mera tolerância das apeladas, já que a fazenda do
mesmo não é encravada e possui cerca de quatrocentos metros de
divisa com a via pública.
Ora, a inércia das apeladas durante certo período não induz posse e
o fato de o apelante utilizar a estrada há muitos anos, e antes mesmo
de as requerentes adquirirem os direitos de posse sobre o imóvel, não
lhe confere nenhum direito...”
Na mesma linha de entendimento julgou a festejada Desembargadora Ana Maria
Duarte Amarante Brito, no acórdão cuja ementa se colaciona a seguir:
“CIVIL. PROCESSO CIVIL. INTERDITO PROIBITÓRIO. PASSAGEM DE VEÍCULOS NO IMÓVEL. ATO DE MERA TOLERÂNCIA. Nos termos do artigo 932 do Código de Processo Civil, “o
possuidor direto ou indireto, que tenha justo receio de ser molestado
na posse, poderá impetrar ao juiz que o segure da turbação ou esbulho iminente, mediante mandado proibitório, em que se comine ao
110
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
réu determinada pena pecuniária, caso transgrida o preceito. Defere-se a proteção possessória em favor do legítimo possuidor do imóvel,
quando, a despeito deste permitir a travessia de veículos vizinhos no
interior de sua propriedade, ocorre abuso por parte dos transeuntes,
os quais, não se limitando a atravessar o imóvel com seus automóveis, passam a erigir no local construções irregulares. A tolerância
de um proprietário de imóvel na travessia de veículos alheios sobre
suas terras está no rol de atos meramente “precários e transitórios,
consistindo em anuência tácita do proprietário as condutas praticadas por terceiros em seus imóveis” (ROSENVALD, Nelson. Direitos
Reais. 3ª edição. Rio de Janeiro: Editora Impetus, 2004. pág. 315);
não constitui, portanto, servidão de passagem. Apelo conhecido e
provido. (20070610048978APC, Relator ANA MARIA DUARTE
AMARANTE BRITO, 6ª Turma Cível, julgado em 15/04/2009, DJ
29/04/2009 p. 106).
É oportuno, nesse ponto da análise, recuperar importante aspecto do instituto
da Servidão de Passagem que é o aumento da comodidade do prédio dominante em
detrimento do prédio serviente. Esclarecendo, enquanto um prédio se beneficia,
aumentando a sua comodidade, o outro sofre uma restrição, um ônus, consistente
na transferência, para o dominante, de algumas das prerrogativas do proprietário.
A servidão, em última análise, é ônus imposto ao senhor de um prédio em prol de
outro. Por envolver uma obrigação negativa ao dono do prédio serviente, redunda
em restrição de direito, conforme já anotado. Aí a justificativa para a Servidão
decorrer de um ato de vontade ou, excepcionalmente, por declaração judicial.
Devem, pois, as servidões serem interpretadas restritivamente, de acordo com os
limites do seu título.
No caso em julgamento, ainda que existente de fato a servidão, ela acarretaria
desproporcionais, injustificáveis e iníquos ônus ao prédio serviente, no caso, o
Condomínio Solar de Brasília.
Há que se observar, igualmente, a situação de ambas as partes: tanto o Condomínio
Ville de Montagne quanto o Condomínio Solar de Brasília são “condomínios” ditos
“irregulares”, mas em processo de regularização o qual exige o preenchimento de certas
exigências, dentre as quais, a apresentação por parte deles de um projeto urbanístico
composto pela planta do condomínio. Nota-se que o mapa relativo ao projeto
urbanístico apresentado do Condomínio Ville de Montagne, que deu azo ao Projeto de
Lei Complementar n.º 1.235/01 (fl. 2870, não indica existência de passagem no local
onde reclama a servidão de passagem. A omissão desta segunda portaria demonstra
que, de fato, nunca foi reconhecida como tal, tanto pelo Condomínio Solar de Brasília
quanto pelo próprio Condomínio Ville de Montagne.
Apesar de a lei não o prever, a jurisprudência vem exigindo o encravamento como
requisito para a declaração judicial de servidão de passagem, preocupada, certamente,
com o grave ônus que possa recair sobre o imóvel serviente. Assim, com o intuito de
reconhecer a servidão de passagem somente em casos de necessidade, os Tribunais vem
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
111
ampliando os seus requisitos, compelindo o interessado a demonstrar a sua verdadeira
necessidade de se utilizar de imóvel alheio. Aqui, apenas para ilustrar, eis que, como já
constatado, o Condomínio Ville de Montagne não está em situação de imóvel encravado.
Eis algumas ementas de julgados nesse sentido:
“CIVIL E PROCESSUAL CIVIL - AÇÃO DE MANUTENÇÃO
DE POSSE - REQUISITOS AUTORIZATIVOS DA PROTEÇÃO
POSSESSÓRIA - SERVIDÃO DE PASSA-GEM - HONORÁRIOS
DE ADVOGADO. NÃO SE COMPROVANDO OS REQUISITOS AUTORIZATIVOS DA PROTE-ÇÃO POSSESSÓRIA,
OU SEJA, A PROVA DA POSSE E A CARACTERI-ZAÇÃO DE
ESBULHO E TURBAÇÃO, NÃO HÁ COMO SE ACOLHER O
PEDIDO DE MANUTENÇÃO DA POSSE. NÃO SE CONSTITUI SERVIDÃO DE PASSAGEM A ESTRADA SE, NA GLEBA, HÁ OUTROS ACESSOS À VIA PÚBLICA. MOSTRAM-SE
BEM FIXADOS HONORÁRIOS DE ADVOGADOS SOBRE O
VALOR DA CAUSA, SE O PEDIDO FOI JULGADO IMPROCEDENTE, SEM CONDENAÇÃO. RECURSO DESPROVIDO.
(APC4859998, Relator WELLINGTON MEDEIROS, 3ª Turma Cível, julgado em 21/09/1998, DJ 14/10/1998 p. 54)”.
“AÇÃO DE REINTEGRAÇÃO DE POSSE - SERVIDÃO DE
PASSAGEM - ABERTURA DE VIA PÚBLICA ACESSÍVEL AO
PRÉDIO DOMINANTE - EXTINÇÃO (CC, ART. 709, II). 01 - A
servidão de passagem extingue-se pela abertura de estrada pública,
acessível ao prédio dominante. 02 - O mau estado de conservação
da via pública não tem o poder de restabelecer servidão extinta. 03
- Apelação conhecida e improvida. Unânime. (APC3510095, Relator JOSE DILERMANDO MEIRELES, 5ª Turma Cível, julgado em
05/06/1995, DJ 28/06/1995 p. 9.043)”.
“SERVIDÃO DE PASSAGEM. IMÓVEL ENCRAVADO. ESTRADA ENTRE DUAS GLEBAS. INEXISTÊNCIA DE SERVIDÃO. IMPRESCINDÍVEL À CONFIGURAÇÃO DA SERVIDÃO
DE PASSAGEM SEJA O IMÓVEL ENCRAVADO, DE MODO
A IMPOSSIBILITAR O ACESSO A LUGARES PÚBLICOS.
(APC3263494, Relator NÍVIO GERALDO GONÇALVES, 3ª Turma Cível, julgado em 01/08/1994, DJ 17/08/1994 p. 9.481)”.
De outro lado, causa perplexidade a atitude da AMORVILLE que, mesmo sendo
um condomínio, cabendo-lhe zelar pela observância dos seus regimentos por parte dos
seus condôminos, recorrendo em muitos casos ao Judiciário para fazê-los cumprir, quando
na situação de condômina e, portanto, sujeita às normas da mesma natureza daquelas
que defende o cumprimento, age diametralmente em sentido oposto. O desvirtuamento
pela AMORVILLE da destinação do imóvel do qual é titular no Condomínio Solar de
112
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
Brasília, transformando em portaria um lote residencial, configura abominável paradoxo,
com o qual não se compraz o Direito.
No caso em exame, a AMORVILLE não demonstrou exercer posse sobre a faixa
de terras que chamou de servidão. Não demonstrada a posse, o indeferimento do pleito
possessório é medida que se impõe.
Por seu turno, o Condomínio Solar de Brasília demonstrou sobejamente a sua
posse sobre a área litigiosa.
No tocante às ameaças de turbação promovidas pela AMORVILLE estão
suficientemente comprovas pelos documentos carreados e pela própria conduta da
Associação, declarada nas peças processuais por ela apresentadas.
Dentre os fatos que confirmam as ameaças à posse, sobressai a faixa afixada
no lote em que a AMORVILLE pretendia instalar a portaria, insuflando terceiros a
turbarem a posse do Condomínio Solar de Brasília.
No mesmo sentido, convence o Boletim de Ocorrência que culminou com o
TC-Queixa-Crime n.º 6477-3, figurando como Querelante CONDOMÍNIO SOLAR
DE BRASÍLIA e como Querelado MARCO ANTONIO ELEUTÉRIO DE BARROS
LIMA. Naquele expediente, segundo declarações colhidas perante a Autoridade
Policial, o Requerido Marco Antônio Eleutério de Barros Lima atentou contra a posse
do Condomínio Solar de Brasília, serrando a grade externo do condomínio (fl. 151/152).
No tocante ao pedido de indenização, as partes se limitaram a deduzir o
ressarcimento, sem demonstrar sua ocorrência, tampouco detalhar os alegados danos
sofridos, razão pela qual não merece acolhimento.
Quanto ao pedido de indenização formulado pelo Condomínio solar de Brasília,
nos autos do Interdito, anote-se que nos autos do TC n.º TC-Queixa-Crime n.º 6477-3
houve a composição dos danos por parte do Requerido Marco Antônio Eleutério de
Barros Lima, em relação ao qual a desistência do feito é ora homologada.
Isso posto, firme nas razões expendidas: a) HOMOLOGO a desistência noticiada nos
autos de Interdito Proibitório em relação ao Requerido MARCO ANTÕNIO ELEUTÉRIO
DE BARROS LIMA; b) JULGO IMPROCENDENTE o pedido de manutenção
de posse formulado pela AMORVILLE - ASSOCIAÇÃO DOS MORADORES DO
CONDOMÍNIO VILLE DE MONTANGE; e c) JULGO PROCEDENTES os pedidos
deduzidos pelo CONDOMÍNIO SOLAR DE BRASÍLIA nos autos da Manutenção de
Posse e do Interdito Proibitório, CONDENANDO a AMORVILLE - ASSOCIAÇÃO DOS
MORADORES DO CONDOMÍNIO VILLE DE MONTANGE a se abster de praticar
qualquer ato que desvirtue a destinação do imóvel tido por QD-03, CONJ-32, LOTE-03,
CONDOMÍNIO SOLAR DE BRASÍLIA-DF, sob pena do pagamento de multa no valor
de R$ 10.000,00 (dez mil reais), sem prejuízo de outras medidas judiciais cabíveis.
Destarte, resolvo o mérito das demandas, consoante o disposto no art. 269, inciso
I, do Código de Processo Civil.
Em face da sucumbência, condeno a AMORVILLE - ASSOCIAÇÃO DOS
MORADORES DO CONDOMÍNIO VILLE DE MONTANGE, em ambos os feitos,
ao pagamento das despesas processuais e dos honorários advocatícios, estes fixados
em R$ 2.000,00 (dois mil reais), em cada um deles, com esteio no artigo 20, §4.º, do
Código de Processo Civil.
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
113
A AMORVILLE - ASSOCIAÇÃO DOS MORADORES DO CONDOMÍNIO
VILLE DE MONTANGE fica intimada, desde já, que deverá cumprir o presente julgado
no prazo de 15 (quinze), contados a partir do trânsito em julgado, sob pena de incidência
da multa de 10% (dez por cento), prevista no art. 475-J do Código de Processo Civil.
Transitado em julgado o presente decisum e passado o prazo de cumprimento
espontâneo da obrigação, intime-se o CONDOMÍNIO SOLAR DE BRASLIA a
requerer o que de direito, apresentando, se o caso, a planilha atualizada dos cálculos.
Publique-se. Registre-se. Intimem-se.
Paranoá-DF, 09 de dezembro de 2009.
—— • ——
114
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
Drawback
segundo a Jurisprudência do STJ
José Roberto da Silva
Ex aluno da ESMA/DF
1. INTRODUÇÃO
O objetivo do presente trabalho é um estudo a respeito do regime especial de
drawback, concentrando na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça.
O Regime Aduaneiro Especial de Drawback é um incentivo à exportação e
compreende a restituição, suspensão ou isenção de tributos incidentes na importação
de mercadoria utilizada na industrialização de produto exportado ou a exportar. O
drawback de restituição praticamente não é mais utilizado, então o regime em exame
compreende, basicamente, as modalidades de isenção e suspensão.
O instrumento de incentivo à exportação compreende a suspensão ou isenção
do Imposto de Importação (II), Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) e Imposto
sobre Operações relativas à circulação de Mercadorias e sobre Prestação de Serviços de
Transporte Interestadual e Intermunicipal e de Comunicação (ICMS).
Não se pretende, de forma alguma, exaurir o tema, mesmo porque a delimitação
de espaço faz com que o assunto seja tratado com menos profundidade.
2. CONCEITO
O regime aduaneiro especial de Drawback, como bem ensina Leone Soares de
Resende, “é palavra inglesa de uso internacional e seu significado genérico é reembolso de
direito alfandegários, representando em consequência, benefício fiscal”. Outra conceito
foi muito bem apresentado pelo Ministro do Superior Tribunal de Justiça Humberto
Gomes de Barros, no REsp 196.161/RS, que consignou no seu voto o seguinte:
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
115
“(...) drawback (‘arrastar de volta’, em tradução literal) é a operação
pela qual o contribuinte se compromete a importar mercadoria, assumindo o compromisso de a exportar após beneficiamento. O Estado,
de sua vez, interessado em agregar valor à mercadoria, aceita o compromisso, concedendo benefícios fiscais ao importador. Isto significa,
a operação resulta de um negócio sinalagmático, em que o importador assume a obrigação de beneficiar e reexportar e o Estado, de sua
parte, outorga o benefício”.
O Drawback consiste, basicamente, na suspensão ou eliminação de tributos
incidentes sobre insumos importados para utilização em produto exportado. O objetivo
é incentivar as exportações, pois, ao desonerar as importações e aquisições no mercado
interno, o produto nacional se torna mais competitivo no mercado internacional.
As vantagens para o produtor ou industrial que se utiliza do regime de drawback são as seguintes, segundo Leone Soares de Resende, em seu livro Exportação e
“Drawback”:
- poderá melhorar a margem de resultado dos produtos exportados,
considerando que os insumos importados passarão a ser obtidos a
preços sensivelmente reduzidos; ou
- poderá reduzir o preço de venda de seus produtos na exportação,
permitindo com isso penetrar em mercados até então inacessíveis,
em virtude da economia havida no custo dos insumos importados
sob ‘drawback’.
O Ministro José Delegado no REsp 209.998/RJ citando Helson C. Braga (in “O
Processo de Liberalização e Generalização do Drawback”, artigo publicado na Revista
de Finanças Públicas, nº 359, julho/set. de 1984, pgs. 71 e segs.) muito bem conceituou
o instituto do drawback, explicando o seguinte:
“O “drawback” é um incentivo concedido às empresas fabricantes-exportadoras, que permite importar, livres do pagamento de tributos
e taxa, itens destinados a integrar um produto final, com a condição
básica de este ser exportado. O objetivo central do incentivo é, portanto, aumentar a competitividade no mercado externo, ao retirar
dos custos – e, consequentemente, dos preços de venda – os encargos
fiscais que incidem sobre os componentes importados.
Introduzido na legislação brasileira em 1966 (Decreto-lei nº 37, de
18/11/66), o “drawback” só entrou em operação três anos depois.
Até 1979, o sistema “drawback” foi administrado conjuntamente
pela CACEX, pela Comissão de Política Aduaneira (CPA) e pela
Secretaria de Receita Federal (SRF). Em janeiro daquele ano, todas
as funções administrativas do sistema foram concentradas na CACEX, à exceção dos procedimentos relacionados com a restituição de
116
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
impostos, que permaneceu com a SRF. A centralização operacional
na CACEX não resultou, porém, em simplificação do mecanismo,
em função de várias medidas restritivas introduzidas a partir de 1980,
entre as quais:
a) o estabelecimento dos programas de importação, em dezembro de
1980, negociado pelas empresas juto à CACEX, e no qual as importações sobre o “drawback” foram incluídas;
b) a criação, em março de 1982, de uma lista de produtos cuja importação foi temporariamente suspensa. A lista alcançou praticamente todos os produtos produzidos internamente, deixando de fora
apenas aqueles produtos não fabricados domesticamente sob condições de preço e qualidade comparáveis com o similar de origem externa. Somente esses últimos produtos poderiam se importados sob
“drawback”; e
c) a exigência, a partir de fevereiro de 1983, de um financiamento
externo mínimo. As importações sob “drawback”, passaram, assim, a
depender do suprimento de crédito dos fornecedores e/ou da exportação à vista.
O ano de 1983 marcou, também, o início da reversão da tendência
restritiva da administração do “drawback”, no sentido da maior liberalização (automatismo na concessão de guias de importação) generalização (extensão do mecanismo aos vários estágios do processo de
produção) do sistema. O primeiro movimento, ocorrido em março,
consistiu na introdução do “drawback” verde-amarelo (Portaria nº
68, de 28/3/83, do Ministro da fazenda), com o que se procurou ampliar o regime aos estágios anteriores à exportação do produto final,
envolvendo insumos domésticos (ver Seção 2).
O passo mais importante, entretanto, foi dado com o Comunicado
CACEX nº 52 de 27/6/83, que desvinculou as importações sob “drawback” dos programas de importação e da lista de mercadorias com
emissão de guia suspensa, além de liberá-las do exame de similaridade nacional (ver Seção 3).
No mesmo precedente acima citado, também, é mencionado trecho do artigo
“Análise Jurídica do Drawback – Suspensão”, publicado na Revista de Direito Administrativo, nº 176, pgs. 161/166, abril/jun. 1989, conforme passo a registrar (fls. 161/165)
de Maria Teresa Borja que assim define drawback:
“Nos termos do parágrafo único do art. 314 do Regulamento Aduaneiro (RA), o “drawback” é um regime aduaneiro especial; visa a
incentivar a exportação, pela eliminação, no custo final dos produtos
nacionais exportáveis, do ônus tributário relativo a mercadorias estrangeiras utilizadas naqueles.
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
117
O inc. I do mencionado art. 314 prevê a possibilidade de “suspensão
do pagamento exigíveis na importação de mercadoria a ser exportada
após o beneficiamento ou destinada à fabricação, complementação
ou ao acondicionamento de outra a ser exportada.”
Nesta modalidade de “drawback”, quando da importação, ocorrem
os fatos geradores das obrigações fiscais que ficam registrados e confessados em termo de reponsabilidade firmado pelo beneficiário (art.
249 do RA).
A cobrança é adiada pelo prazo máximo de, em regra, dois anos, podendo chegar a cinco anos, quando se trate da importação de mercadoria destinada à produção de bens de capital. Dentro deste prazo,
devem se realizar as exportações (art. 4º do Decreto-lei 1.722/79 e
arts. 250 e 318 do RA).
Ocorrendo a exportação dentro do prazo, a suspensão do pagamento
transforma-se em isenção definitiva. Não sendo assim, o beneficiário deverá liquidar o débito correspondente em 30 dias. (art. 319 do
RA).
Como veremos a seguir, o “drawback”-suspensão é uma isenção suspensivamente condicionada.
José Souto Maior Borges, em seu Isenções Tributárias, esclarece a
diferença básica entre isenções sujeitas a condições suspensiva e resolutiva:
“Nas isenções suspensivamente condicionadas, antes da complementação do ciclo formativo do fato gerador da isenção, existe a obrigação tributária, precisamente porque ainda não incidiu a regra jurídica
de isenção, de vez que a sua hipótese de incidência não chegou a
realizar-se, posto que não se verificaram concretamente todos os elementos necessários à composição do suporte fático da regra isentiva.
A isenção sob condição suspensiva não se objetiva antes do cumprimento da condição e, portanto, existe obrigação tributária até que se
realize a condição exigida para o gozo da isenção. Contrariamente, a
isenção concedida sob a condição resolutiva existe até o implemento
da condição e, pois, inexiste obrigação tributária antes da realização
da condição.”
Conforme observação de Ruy Jorge R. Pereira Filho, nas isenções suspensivamente condicionadas, o incentivo não é a suspensão da exigibilidade dos tributos, pois o fato gerador terá ocorrido e a obrigação
tributária existitá, ficando apenas pendente. Na verdade, a suspensão
é tão-somente uma etapa entre a ocorrência dos fatos geradores dos
tributos e a sua exoneração após cumprida a condição que, no caso
do “drawback” – suspensão, é a exportação.
Evidentemente, a simples suspensão gera uma vantagem financeira
em favor do contribuinte que deixa de efetuar desembolso significativo. Entrementes, esta vantagem é provisória e precária, pois a
118
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
isenção definitiva depende do implemento da condição de exportação, sem a qual o contribuinte estará obrigado a liquidar o débito em
30 dias a contar da data do vencimento do prazo para exportação,
constante do respectivo ato concessório de “drawback”.
2.1. Modalidades
Existem três modalidades de Drawback:
a) Suspensão: de competência da Secretaria de Comércio Exterior
(Secex), do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio
Exterior (MDIC), consiste na suspensão do pagamento dos tributos
exigíveis na importação de mercadoria a ser exportada após o beneficiamento ou destinada à fabricação, complementação ou acondicionamento de outra a ser exportada;
b) Isenção: concessão e administração de alçada do Banco do Brasil,
por delegação da Secex, consiste na isenção dos tributos exigíveis na
importação de mercadoria, em quantidade e qualidade equivalente à
utilizada no beneficiamento, fabricação, complementação ou acondicionamento de produto exportado.
c) Restituição: de competência da Secretaria da Receita Federal
(SRF), consiste na restituição dos tributos pagos na importação de
mercadoria posteriormente exportada. Esta modalidade praticamente não é mais utilizada.
2.2. Abrangência do Regime
O regime aduaneiro especial originou-se no inciso II, do art. 78 do Decreto-Lei
nº 37, de 18 de novembro de 1966, o qual assevera que poderá ser concedida “suspensão do pagamento dos tributos sobre a importação de mercadoria a ser exportada após
beneficiamento, ou destinada à fabricação, complementação ou acondicionamento de
outra a ser exportada”. As condições impostas por esta norma foram estabelecidas pelo
art. 5º da Lei nº 8.032/90 que asseverou o seguinte:
O regime aduaneiro especial de que trata o inciso II do art. 78 do
o
Decreto-Lei n 37, de 18 de novembro de 1966, poderá ser aplicado
à importação de matérias-primas, produtos intermediários e componentes destinados à fabricação, no País, de máquinas e equipamentos
a serem fornecidos no mercado interno, em decorrência de licitação
internacional, contra pagamento em moeda conversível proveniente
de financiamento concedido por instituição financeira internacional,
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
119
da qual o Brasil participe, ou por entidade governamental estrangeira
ou, ainda, pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e
Social - BNDES, com recursos captados no exterior.
A Lei nº 11.732/2008 explicou, ainda, em seu art. 3º que “licitação internacional
é aquela promovida tanto por pessoas jurídicas de direito público como por pessoas
jurídicas de direito privado do setor público e do setor privado”.
A Portaria SECEX nº 10, de 24 de maio de 2010, discriminou a abrangência do
regime nos seguintes termos:
Art. 62. O regime de drawback poderá ser concedido a operação que
se caracterize como:
I - transformação – a que, exercida sobre matéria -prima ou produto
intermediário, importe na obtenção de espécie nova;
II - beneficiamento – a que importe em modificar, aperfeiçoar ou, de
qualquer forma, alterar o funcionamento, a utilização, o acabamento
ou a aparência do produto;
III - montagem – a que consista na reunião de produto, peças ou partes e de que resulte um novo produto ou unidade autônoma, ainda
que sob a mesma classificação fiscal;
IV - renovação ou recondicionamento – a que, exercida sobre produto usado ou parte remanescente de produto deteriorado ou inutilizado, renove ou restaure o produto para utilização;
V - acondicionamento ou reacondicionamento – a que importe em
alterar a apresentação do produto, pela colocação de embalagem,
ainda que em substituição da original, salvo quando a embalagem
colocada se destine apenas ao transporte de produto;
a) entende-se como “embalagem para transporte”, a que se destinar
exclusivamente a tal fim e for feito em caixas, caixotes, engradados,
sacaria, bar ricas, latas, tambores, embrulhos e semelhantes, sem acabamento ou rotulagem de função promocional e que não objetive valorizar o produto em razão da qualidade do material nele empregado,
da perfeição do seu acabamento ou da sua utilidade adicional.
Art. 63. O regime de drawback poderá ser, ainda, concedido a:
I - mercadoria para beneficiamento no País e posterior exportação;
II - matéria-prima, produto semielaborado ou acabado, utilizados na
fabricação de mercadoria exportada, ou a exportar;
III - peça, parte, aparelho e máquina complementar de aparelho, de
máquina, de veículo ou de equipamento exportado ou a exportar;
IV - mercadoria destinada à embalagem, acondicionamento ou apresentação de produto exportado ou a exportar, desde que propicie,
compro vadamente, uma agregação de valor ao produto final;
V - animais destinados ao abate e posterior exportação;
120
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
VI - matéria-prima e outros produtos que, embora não integrando o
produto a exportar ou exportado, sejam utilizados em sua industrialização, em condições que justifiquem a concessão; e
VII - (alterado pela Portaria SECEX n° 12, de 28 de junho de 2010)
(revogado pela Portaria SECEX n° 15, de 13 de agosto de 2010)
Art. 64. Não poderá ser concedido o regime de drawback para:
I - importação de mercadoria utilizada na industrialização de produto
destinado ao consumo na Zona Franca de Manaus e em áreas de livre
comércio localizadas em território nacional;
II - exportação ou importação de mercadoria suspensa ou proibida;
III - exportações conduzidas em moedas não conversíveis (exceto
em reais), inclusive moedaconvênio, contra importações cursadas em
moeda de livre conversibilidade; e IV - importação de petróleo e seus
derivados, exceto coque calcinado de petróleo e nafta petroquímica;
e (alterado pela Portaria SECEX n° 12, de 28 de junho de 2010)
V – as hipóteses previstas nos incisos IV a IX do art. 3º da Lei nº
10.637, de 30 de dezembro de 2002, nos incisos III a IX do art. 3º da
Lei nº 10.833, de 29 de dezembro de 2003, e nos incisos III a V do art.
15 da Lei nº 10.865, de 30 de abril de 2004. (incluído pela Portaria
SECEX n° 12, de 28 de junho de 2010).
3. O DRAWBACK E O DUMPING
É necessário ressaltar que as normas que disciplinam as medidas antidumping
aplicam-se às modalidades de drawback.
As normas que disciplinam a aplicação de procedimentos administrativos relativos às medidas antidumping são as previstas no Decreto 1.602, de 23 de agosto de 1995.
A conceituação de dumping encontra-se no art. 4º do referido Decreto, o qual assevera:
“Art. 4º Para os efeitos deste Decreto, considera-se prática de dumping a introdução de um bem no mercado doméstico, inclusive sob
as modalidades de drawback , a preço de exportação inferior ao valor
normal”.
A verificação do que seja “valor nominal” é feita com base em critérios estabelecidos pelo próprio decreto, nos seguintes termos:
Art. 5º Considera-se valor normal o preço efetivamente praticado
para o produto similar nas operações mercantis normais, que o destinem a consumo interno no país exportador.
§ 1º O termo “produto similar” será entendido como produto idêntico, igual sob todos os aspectos ao produto que se está examinando,
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
121
ou, na ausência de tal produto, outro produto que, embora não exatamente igual sob todos os aspectos, apresente característica muito
próximas às do produto que se está considerado.
§ 2º O temo “país exportador” será entendido como país de origem e
de exportação, exceto na hipótese prevista no art. 10.
§ 3º Serão normalmente consideradas como em quantidade suficiente para a determinação do valor normal as vendas do produto
similar destinadas ao consumo do mercado interno do país exportador, que constituam cinco por cento ou mais das vendas do produto
em questão ao Brasil, admitindo-se percentual menor quando for
demostrado que vendas internas nesse percentual inferior ocorrem,
ainda assim, em quantidade suficiente que permita comparação
adequada.
Art. 6º Caso inexistam vendas do produto similar nas operações mercantis normais no mercado interno ou quando, em razão das condições especiais de mercado ou do baixo volume de vendas, não for
possível comparação adequada, o valor normal será baseado:
I - no preço do produto similar praticado nas operações de exportação para um terceiro país, desde que esse preço seja representativo;
ou
II - no valor construído no país de origem, como tal considerado o
custo de produção no país de origem acrescido de razoável montante a Título de custos administrativos e de comercialização, além da
margem de lucro.
§ 1º Poderão ser consideradas, por motivo de preço, como operações
mercantis anormais e desprezadas na determinação do valor normal,
as vendas do produto similar no mercado interno do país exportador
ou as vendas a terceiro país, a preços inferiores aos custos unitários
do produto similar, neles computados os custos de produção, fixos e
variáveis, mais os administrativos e de comercialização.
§ 2º O disposto no parágrafo anterior aplica-se-á somente quando se
apurar que as vendas são realizadas:
a) ao longo de um período dilatado, normalmente de um ano, mais
nunca inferior a seis meses;
b) em quantidades substanciais, como tal consideradas as transações
levadas em conta para a determinação do valor normal, realizadas a
preço médio ponderado de vendas inferior ao custo unitário médio
ponderado, ou um volume de vendas abaixo do custo unitário correspondente a vinte por cento ou mais do volume vendido nas transações consideradas para a determinação do valor normal; e
c) a preços que não permitam cobrir todos os custos dentro de período razoável.
§ 3º O disposto na alínea c do parágrafo anterior não se aplica quando se apurar que os preços abaixo do custo unitário, no momento da
122
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
venda, superam o custo unitário médio ponderado obtido no período
de investigação.
§ 4º Poderão ser consideradas como operações mercantis anormais
e desprezadas na determinação do valor normal as transações entre partes consideradas associadas ou que tenham celebrado entre si
acordo compensatório, salvo se comprovado que os preços e custos,
a elas relacionados, sejam comparáveis aos das operações efetuadas
entre partes que não tenham tais vínculos.
§ 5º Os custos, de que trata o inciso II deste artigo, serão calculados
com base em registros mantidos pelo exportador ou pelo produtor
objeto de investigação, desde que tais registros estejam de acordo
com os princípios contábeis aceitos no país exportador e reflitam
os custos relacionados com a produção e a venda do produto em
causa.
§ 6º Serão levados em consideração os elementos de prova disponíveis sobre a correta distribuição de custos, inclusive aqueles fornecidos pelo exportador ou produtor durante os procedimentos da
investigação, desde que tal distribuição tenha sido tradicionalmente
utilizada pelo exportador ou produtor, particularmente na determinação dos períodos adequados de amortização e depreciação e das
deduções decorrentes de despesas de capital e outros custos de desenvolvimento.
§ 7º Será efetuado ajuste adequado em função daqueles itens de custos não-recorrentes que beneficiem a produção futura, atual, ou ambas, ou de circunstâncias nas quais os custos, observados durante o
período de investigação, sejam afetados por operações de entrada em
funcionamento, a menos que já se tenham refletido na distribuição
contemplada no parágrafo anterior.
§ 8º Os ajustes efetuados em razão da entrada em funcionamento
devem refletir os custos verificados ao final do período de entrada
ou, caso tal período se estenda além daquele coberto pelas investigações, os custos mais recentes que se possam levar em conta durante
a investigação.
§ 9º O cálculo do montante, referido no inciso II deste artigo, será
baseado em dados efetivos de produção e de venda do produto similar, efetuadas pelo produtor ou pelo exportador sob investigação, no
curso de operações mercantis normais.
§ 10. Quando o cálculo do montante não puder ser feito com base
nos dados previstos no parágrafo anterior, será feito por meio de:
a) quantias efetivamente despendidas e auferidas pelo exportador ou
produtor em questão, relativas à produção e à venda de produtos da
mesma categoria, no mercado interno no país exportador;
b) média ponderada das quantias efetivamente despendidas e auferidas por outros exportadores ou produtores sob investigação, em reRevista da Escola da Magistratura - nº 13
123
lação à produção e à comercialização do produto similar no mercado
interno do país exportador; ou
c) qualquer outro método razoável, desde que o montante estipulado
para o lucro não exceda o lucro normalmente realizado por outros
exportadores ou produtores com as vendas de produtos da mesma
categoria geral, no mercado interno do país exportador.
Art. 7º Encontrando-se dificuldades na determinação do preço comparável no caso de importações originárias de país que não seja predominantemente de economia de mercado, onde os preços domésticos sejam em sua maioria fixados pelo Estado, o valor normal poderá
ser determinado com base no preço praticado ou no valor construído
do produto similar, em um terceiro país de economia de mercado, ou
no preço praticado por este país na exportação para outros países,
exclusive o Brasil, ou, sempre que isto não seja possível, com base
em qualquer outro preço razoável, inclusive o preço pago ou a pagar
pelo produto similar no mercado brasileiro, devidamente ajustado, se
necessário, a fim de incluir margem de lucro razoável.
§ 1º A escolha do terceiro país de economia de mercado adequado
levará em conta quaisquer informações fiáveis apresentadas no momento da seleção.
§ 2º Serão levados em conta os prazos da investigação e, sempre que
adequado, recorrer-se-á a um terceiro país de economia de mercado
que seja objeto da mesma investigação.
§ 3º As partes interessadas serão informadas, imediatamente após a
abertura da investigação, do terceiro país de economia de mercado
que se pretende utilizar, e poderão se manifestar no prazo fixado para
a restituição dos respectivos questionários, de que trata o caput do
art. 27.
Percebemos, assim, que as medidas protetivas do Dumping também se aplicam
ao drawback, ou seja, a mercadoria não pode ser importada com preço inferior ao
praticado pelo país de onde se originou a exportação, contendo assim a prática desleal
no comércio internacional.
4. CERTIDÃO NEGATIVA DE DÉBITO
A Lei 8.212/91, que dispõe sobre a organização da Seguridade Social, institui
Plano de Custeio, e dá outras providências, em seu art. 47, I, a, assevera que “é exigida
Certidão Negativa de Débito – CND, fornecida pelo órgão competente da empresa na
contratação com o Poder Público e no recebimento de benefícios ou incentivo fiscal
ou creditício concedido por ele”. Já o art. 60 da Lei 9.069/95 dispõe que “a concessão
ou reconhecimento de qualquer incentivo ou benefício fiscal, relativos a tributos e
contribuições administrados pela Secretaria da Receita Federal fica condicionada à
124
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
comprovação pelo contribuinte, pessoa física ou jurídica, da quitação de tributos e
contribuições federais”. Resta saber qual o momento a CND pode ser exigida do contribuinte, ou na concessão do benefício, ou no seu reconhecimento, ou ainda, exigir
a certidão nos dois momentos. A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça é no
sentido de se exigir a CND no momento da concessão, não podendo ser exigida novamente a certidão no desembaraço. O Ministro do Humberto Gomes de Barros, no
REsp 196.161/RS, define com precisão o momento da exigência da CND no regime de
drawback, nos seguintes termos:
Com efeito, drawback (‘arrastar de volta’, em tradução literal) é a
operação pela qual o contribuinte se compromete a importar mercadoria, assumindo o compromisso de a exportar após beneficiamento.
O Estado, de sua vez, interessado em agregar valor à mercadoria,
aceita o compromisso, concedendo benefícios fiscais ao importador.
Isto significa, a operação resulta de um negócio sinalagmático, em
que o importador assume a obrigação de beneficiar e reexportar e o
Estado, de sua parte, outorga o benefício fiscal. Como se percebe, a
operação é uma só – embora se prolongue no tempo e se reparta em
várias operações. Vale dizer: ela se aperfeiçoa em um ato complexo.
A teor do Art. 47, I, a, da Lei 8.212/91, exige-se certidão negativa
na contratação de benefício do incentivo fiscal. A União assevera
que, por força do Art. 60 da Lei 9.069/95, a exigência de certidão
incide, tanto na concessão quanto no reconhecimento do incentivo.
Não é bem assim: o Art. 60 exige a certidão, na concessão, ou no
reconhecimento: em um ou no outro momento. Na hipótese, houve
a concessão do benefício, antecedida pela exibição do documento
negativo. Não há, pois, como exigir nova certidão, para que o importador cumpra seu compromisso de drawback (arrastar de volta a
mercadoria beneficiada).Sustentar o contrário seria atentar contra o
bom senso. De fato, vedar a importação, após concedido o benefício,
seria impedir o aperfeiçoamento da operação drawback, em prejuízo
da própria União.
O Ministro do STJ Luiz Fux ao julgar o REsp 839.116/BA, também, esclareceu
sobre o tema, asseverando o seguinte:
Drawback é a operação pela qual a matéria-prima ingressa em território nacional com isenção ou suspensão de impostos, para ser reexportada após sofrer beneficiamento.
O artigo 60, da Lei nº 9.069/95, dispõe que:
“A concessão ou reconhecimento de qualquer incentivo ou benefício fiscal,
relativos a tributos e contribuições administrados pela Secretaria da Receita Federal fica condicionada à comprovação pelo contribuinte, pessoa
física ou jurídica, da quitação de tributos e contribuições federais.”
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
125
A indagação que se faz é se o drawback é uma operação única, com
três momentos distintos, ou uma operação bipartida, em que o Fisco
pode exigir do contribuinte nova documentação quando da reexportação.
Adotando o posicionamento desta Corte, caracteriza-se o drawback
- “arrastar para trás” ou “arrastar de volta” - como negócio jurídico
único, de efeito diferido, que se aperfeiçoa em um ato complexo.
Desta sorte, o artigo 60 da Lei nº 9.069/95, ao contrário do sustentado pela Fazenda Nacional, exige a certidão na concessão ou no
reconhecimento do incentivo, vale dizer: em um momento ou em
outro e não sob a forma cumulativa.
Com efeito, consoante jurisprudência reiterada deste Superior de
Justiça, concedido o drawback não se admite que a CND seja exigida
no momento do desembaraço aduaneiro, quando há comprovação da
regularidade fiscal antes do deferimento do benefício.
Nesse mesmo sentido foi o julgamento do REsp 652.276/RS, relator Ministro
Teori Albino Zavascki, que decidiu da seguinte forma:
Tanto o acórdão recorrido como o recurso especial afirmam que, no
momento da concessão do benefício tributário, foi apresentada a certidão negativa de débito, tendo sido novamente exigida a comprovação da regularidade fiscal da empresa no momento do desembaraço
aduaneiro das mercadorias importadas. Nesse contexto, observa-se
que o entendimento exposto pelo Tribunal de origem está em consonância com a jurisprudência pacífica do STJ, haja vista que “não é
licita a exigência de nova certidão negativa de débito no desembaraço aduaneiro da respectiva importação, se já ocorreu a apresentação
do certificado negativo antes da concessão do benefício por operação
no regime de drawback “ (REsp 434.621/RS, Rel. Min. José Delgado,
DJ de 23.09.2002).
Corroborando, ainda, este entendimento cito o REsp 413.934/RS, relator Ministro Castro Meira, que no voto condutor do acórdão assim afirma:
Preliminarmente, cumpre ressaltar, que o conceito de drawback (“arrastar de volta” ou “arrastar para trás”, em tradução literal), segundo
o entendimento deste Tribunal, consiste na operação que o contribuinte se compromete à importação de mercadoria, vindo a assumir
o compromisso de a exportar, após seu beneficiamento.
Assim, merece reparos o acórdão regional, visto que esta Corte tem-se orientado em considerar exigível a apresentação da Certidão Negativa de Débito apenas em um dos momentos da operação drawback
:ou na concessão do benefício ou no reconhecimento de que o con126
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
tribuinte faz jus a ele. Por consequência, não é necessária a apresentação da CND no momento do desembaraço aduaneiro, na hipótese
em que já houve a comprovação de regularidade fiscal anterior ao
deferimento do benefício.
Tal deferimento, assim, tem como pressuposto o atendimento à exigência legal, quanto à quitação dos tributos e contribuições federais,
como se depreende do disposto no artigo 60 da Lei nº 9.069/95:
“Art. 60. A concessão ou reconhecimento de qualquer incentivo ou
benefício fiscal, relativos a tributos e contribuições administrados
pela Secretaria da Receita Federal fica condicionada à comprovação
pelo contribuinte, pessoa física ou jurídica, da quitação de tributos e
contribuições federais”.
O Ministro José Delgado, no REsp 434.621/RS, acrescenta a esses entendimentos
que o Fisco não pode fazer uma exigência que não está na lei e que fazendo isso estaria
causando dano tanto ao contribuinte, quanto a ele mesmo, pois estaria burocratizando
o regime cada vez mais.
Já a Ministra Eliana Calmon, no REsp 240.322/RS, explica com precisão o fato
do drawback ser uma operação única com três momentos distintos, aduzindo o seguinte:
Entende-se como DRAWBACK a operação pela qual há isenção ou
suspensão no pagamento de matéria prima importada, que será reexportada após sofrer beneficiamento.
A operação é do interesse do Estado que, na condução da política
fiscal, estabelece o regime de drawback, com a outorga de beneficio
fiscal.
Dentro da sistemática existem três momentos distintos:
a)quando a mercadoria ingressa no território nacional;
b)quando a mercadoria, no País, sofre o beneficiamento; e
c)quando a mercadoria beneficiada vai ser reexportada.
Na hipótese dos autos, a empresa importou mercadorias estrangeiras, apresentou a documentação pertinente, beneficiou-as e, quando
da exportação, não apresentando certidão negativa, teve obstada a
operação no momento do despacho aduaneiro, porque vigente a MP
569/94, convertida na Lei 9.069/95, que dispõe no seu art. 60:
A concessão ou reconhecimento de qualquer incentivo ou beneficio
fiscal, relativos a tributos e contribuições administrados pela Secretaria da Receita Federal, fica condicionada à comprovação pelo contribuinte, pessoa física ou jurídica, da quitação de tributos e contribuições federais.
E como exige o regulamento aduaneiro a comprovação do cumprimento de todas as obrigações fiscais, por ocasião do desembaraço
aduaneiro (art. 444, Decreto 91.010, de 05/03/85), a sentença e o
acórdão denegaram a segurança.
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
127
A questão que se coloca é saber se o drawback é operação única, com
três momentos distintos, ou operação bipartida, em que o Fisco pode
exigir do contribuinte nova documentação quando da reexportação.
Entendo, pela sistemática do drawback (o que significa “arrastar para
trás” ou “arrastar de volta”), que temos um negócio único, um ato
jurídico singular, de efeito diferido, porque pendente uma condição
resolutória que poderá frustrar o negócio.
Deste modo, não se há de exigir nova documentação, ou novos encargos, senão aqueles existentes quando do fato gerador da operação.
O Superior Tribunal de Justiça fixou o entendimento, portanto, que a Certidão
Negativa de Débito deve ser exigida no momento da concessão do drawback, não sendo
admitida a sua exigência no momento do desembaraço aduaneiro. Isso porque o regime
aduaneiro especial de drawback é operação única que possui três momentos distintos:
quando a mercadoria ingressa no território nacional, quando sofre o beneficiamento e
quando é exportada. Assim, não se pode exigir nova documentação em cada momento,
pois o fato gerador é único.
5. A TAXA DE CLASSIFICAÇÃO DE PRODUTOS VEGETAIS
O assunto a ser tratado neste tópico refere-se à incidência da taxa de classificação
de produtos vegetais quando os referidos produtos destinarem-se a exportação sob o
regime de drawback. Será analisado a evolução deste tema baseado na jurisprudência
do Superior Tribunal de Justiça e na Lei 9.9972/2000 que revogou a Lei 6.305/75.
Os artigos 1º e 7º da Lei 6.305/75 previam a incidência da taxa nos seguintes
termos:
Art. 1º - Fica instituída, em todo o território nacional, a classificação
dos produtos vegetais, dos subprodutos e resíduos de valor econômico, destinados à comercialização interna.
Art. 7º - Ficam sujeitos também ao regime estabelecido nesta Lei,
os estabelecimentos que beneficiam, descascam e enfardam produtos
vegetais, subprodutos e resíduos de valor econômico, incluídos na
pauta a que alude o art. 5º.
O art. 5º a que se refere o art. 7º da Lei 6.305 assim dispõe: “Art. 5º - Os produtos,
subprodutos e resíduos de valor econômico sujeitos à classificação, na forma desta Lei,
serão inscritos em pauta de prioridade estabelecida pelo Ministério da Agricultura”.
O Ministro João Otávio de Noronha no REsp 357.107/SC assim explanou sobre
o tema:
No que tange à questão central da controvérsia – incidência da taxa
de classificação dos produtos vegetais quando destinados à impor128
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
tação sob o regime de drawback –, matéria devidamente apreciada
pela Corte de origem, é conveniente transcrever o art. 1º da Lei n.
6.305/75, in verbis :
‘Art. 1º Fica instituída, em todo o território nacional, a classificação
dos produtos vegetais, dos subprodutos e resíduos de valor econômico, destinados à comercialização interna’.
Tem-se, pois, que a dicção do citado preceito não deixa margem de
dúvidas de que a classificação dos produtos vegetais, subprodutos e
resíduos de valor econômico é aplicável tão-somente aos produtos
destinados à comercialização interna, tornando, portanto, inexigível
nas situações de que ora se cogita, isto é, empresa submetida ao regime de drawback , porquanto os produtos vegetais por ela importados
destinam-se ao exterior.
Instituindo a Lei n. 6.305/75 a exigibilidade da taxa de classificação
dos produtos vegetais, subprodutos e resíduos de valor econômico,
quando destinados à comercialização interna, é de se entender, diversamente, que os produtos vinculados ao regime de drawback não
se sujeitam à imposição fiscal da referida norma legal.
Ora, prevendo o regime de drawback que impõe-se à matéria-prima
que ingressa no território nacional a submissão de futura exportação, posta-se incólume de reparos o entendimento exarado no voto
divergente, fls. 187/190, ao afastar qualquer inferência de que ‘pode
haver fraude, e, em vez de ser reexportado, o produto fica no país’,
pois ‘presume-se que um produto importado sob o regime drawback
vai ser reexportado’.
Utilizando o princípio da legalidade tributária como fundamento de decidir, o
Ministro Castro Meira, no REsp 365.684/SC, afirma que submeter à classificação os
produtos importados em regime de drawback seria violar o citado princípio. Transcrevo
trecho do voto condutor do citado recurso especial:
A Lei nº 6.305/75 instituiu o procedimento de classificação de produtos vegetais, subprodutos e resíduos de valor econômico, quando
assim estabeleceu:
‘Art. 1º. Fica instituída, em todo o território nacional, a classificação
dos produtos vegetais, dos subprodutos e resíduos de valor econômico, destinados à comercialização interno’.
O artigo 7º do mesmo diploma legal assim dispõe:
‘Art. 7º. Ficam sujeitos, também ao regime estabelecido neste Lei,
os estabelecimentos que beneficiam, descascam e enfardam produtos
vegetais, subprodutos e resíduos de valor econômico, incluídos na
pauta a que alude o art. 5º’.
Conclui-se que, despicienda a ocorrência ou não do processo de beneficiamento dos produtos, subprodutos ou resíduos, o que importa,
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
129
é o fato de serem ou não destinados à comercialização interna a fim
de que se submetam ao regime de classificação e, por via de consequência, à exigência da taxa.
Entretanto, caso os produtos sejam destinados à reexportação, sob
o regime de drawback , porque não direcionados à comercialização
interna, não se sujeitam à cobrança da Taxa de Classificação de
Produtos Vegetais, ainda que beneficiados, descascados ou enfardados.
O tributo torna-se exigível se a lei assim expressamente o declare,
indicando os elementos do fato gerador, da sua base imponível, da
alíquota e revelando quais são os sujeitos ativos e passivos.
Se a Lei nº 6.305/75 determinou que a Taxa de Classificação de
Produtos Vegetais somente se aplicaria quando destinados à comercialização interna, submeter à classificação aqueles que não tenham
tal destinação, caracterizar-se-ia afronta ao princípio da legalidade
tributária.
A natureza da importação, produto importado em regime de drawback suspensão - destina-se a exportação futura e não à comercialização
no mercado interno.
No REsp 417.821/RS, o Min. Luiz Fux muito bem explana sobre o conceito de
drawback e a incidência da taxa de classificação de produtos vegetais fazendo o cotejo
entre as razões do contribuinte e do Fisco. O voto condutor do acórdão foi proferido
nos seguintes termos:
Destaque-se que o Decreto-Lei n.º 37/68, que dispõe sobre o Imposto
de Importação, instituiu o regime aduaneiro denominado drawback o
qual pode ser concedido sob três modalidades: restituição, suspensão,
e isenção do tributo, as quais estão disciplinadas em seu art. 78:
Decreto-Lei n.º 37, de 18 de novembro de 1966.
“Art. 78. Poderá ser concedida, nos termos e condições estabelecidas
no regulamento:
(...)
II – Suspensão do pagamento dos tributos incidentes sobre a importação de mercadoria a ser exportada após beneficiamento, ou destinada à fabricação, complementação ou acondicionamento de outra
a ser exportada ;
(...)”
O Decreto n.º 68904/71, que regulamenta o art. 78, do Decreto-Lei
n.º 37/68, traz, em seus arts. 4º a 6º a disciplina do draw-back, concedido sob a modalidade de suspensão, destacando que, nos casos em
que a exportação do produto importado não for efetivada no prazo
constante do expediente autorizativo da suspensão (art. 4º, alínea
“d” c/c art. 6º), o exportador deverá quitar o débito tributário no
130
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
prazo de 30 (trinta) dias, dando conhecimento ao órgão responsável
pela concessão do drawback.
Verifica-se, assim, que os produtos importados no regime de draw-back a que está submetido a empresa recorrida que não forem exportados no prazo estabelecido quando da sua concessão ficam com a
exigibilidade do imposto de importação suspensa, até o implemento
da exportação (condição suspensiva) a qual, se efetivada dentro daquele lapso temporal, isenta o contribuinte de tal exação.
Forçoso concluir, então, que os produtos importados no regime de drawback , na modalidade de suspensão, são destinados ao mercado externo.
Por sua vez, da dicção do o art. 1º, da Lei n.º 6.305/75, que instituiu
a classificação dos produtos vegetais, subprodutos e resíduos de valor
econômico, depreende-se que tal classificação aplica-se, somente, aos
produtos destinados à comercialização interna, tornando, portanto,
inexigível da empresa recorrente, a cobrança da taxa de classificação:
Lei n.º 6.305, de 15 de dezembro de 1975.
“Art. 1º Fica instituída, em todo o território nacional, a classificação
dos produtos vegetais, dos subprodutos e resíduos de valor econômico, destinados à comercialização interna.
(...)”
Argumenta a recorrente que o citado preceito normativo foi revogado pelo Decreto-Lei n.º 1.899/91, no qual não consta a limitação
da classificação aos produtos destinados à comercialização interna:
Decreto-Lei n.º 1.899, de 21 de dezembro de 1981
“Art. 1º. Ficam instituídas as taxas de classificação, inspeção e fiscalização, de competência do Ministério da Agricultura, relativas a
produtos animais e vegetais ou de consumo nas atividades agropecuárias.
Art. 2º. O valor das taxas será determinado em função de múltiplos
ou frações do valor nominal de uma Obrigação Reajustável do Tesouro Nacional (ORTN), fixado para os meses de janeiro e julho de
cada ano, na forma seguinte:
(...)
III – pela classificação de produtos vegetais
(...)
Art. 3º. O fato gerador das taxas é a prestação dos serviços referidos
no artigo precedente, pelo Ministério da Agricultura, no uso de sua
competência, bem como o regular exercício de seu poder de polícia.”
Aduz, ainda, a recorrente que a Lei n.º 8.171/91 ampliou os limites
do poder de polícia de classificação atribuído ao Ministério da Agricultura pela Lei n.º 9.649/98 (art. 14, III), verbis:
LEI N° 8.171, DE 17 DE JANEIRO DE 1991
“Art. 37. É mantida, no território nacional, a exigência de padronização, fiscalização e classificação de produtos vegetais e animais,
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
131
subprodutos e derivados e seus resíduos de valores econômico, bem
como dos produtos agrícolas destinados ao consumo e à industrialização para o mercado interno e externo.”
LEI Nº 9.649, DE 27 DE MAIO DE 1998
“Art 14. Os assuntos que constituem área de competência de cada
Ministério são os seguintes:
(...)
III - Ministério da Agricultura e do Abastecimento:
(...)
g) classificação e inspeção de produtos e derivados animais e vegetais;
(...)’
Por sua vez, sustenta a empresa recorrida, nesta parte:
“(...)
Trata-se de legítima e documentada importação de produtos vegetais
(soja em grão) sob o regime de ‘drawback’, por isso que destinados
à reexportação, e não à comercialização interna, e por isso mesmo
alheios ao regime de classificação instituído pela Lei n.º 6.305/75,
cujo artigo 1º é expresso por demais claro no sentido de que somente
seriam objeto de classificação (sob o regime da referida lei), os produtos vegetais, os subprodutos e resíduos de valor econômico, ‘destinados à comercialização interna’, o que, por óbvio, não pode atingir
aqueles vegetais legal e contratualmente destinados à reexportação,
sob o regime de ‘drawback’.
Foi exclusivamente sob o regime dessa mesma lei, aliás, conforme
facultado no respectivo artigo 3º, que o Ministério da Agricultura
atribuiu a empresas privadas, como no caso ora ‘sub judice’, para o
exercício da atividade de classificar os produtos vegetais, não em todas e quaisquer situações, mas exclusivamente, conforme dito no artigo 1º da Lei n.º 6.305/75, para efetuar ‘a classificação dos produtos
vegetais, dos subprodutos e resíduos de valor econômico, destinados
à comercialização interna (sublinhou-se). Diverso é o regime de classificação instituído através da Lei n.º 5.025/96, relativo ao comércio
exterior que atribui ao CONCEX, ou entidades ou a órgãos por ele
credenciados, a classificação dos produtos agrícolas, pecuários, etc.,
destinados à exportação. Um e outro regime, atribuído a autoridades
e órgãos distintos, complementam-se, mas não se misturam e não se
sobrepõem.
Esses dois regimes convivem paralelamente, sem que as autoridades
que zelam por um se imiscuem no outro, e isto até mesmo para a
segurança jurídica das empresas, submetidas, conforme o caso, a um
e outro regime.
Nem mesmo a Lei n.º 8.171/91, que dispõe sobre a política agrícola
em nosso País, contradita esse dúplice regime de classificação, an132
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
tes o reafirma, no artigo 37, ao dizer que ‘É mantida, no território
nacional, a exigência de padronização, fiscalização e classificação
de produtos vegetais e animais, subprodutos e derivados e seus resíduos de valor econômico, bem como dos produtos agrícolas destinados ao consumo e à industrialização para o mercado interno e
externo’.
E nem poderia ser diferente, pois essa Lei n.º 8.171/91, é expressa em
manter a exigência, entre outras, da classificação, porque já vinha
sendo imposta, indiscutidamente, através de regimes legais diferentes.
Trata-se, pois, ao contrário do que pretende a ASCAR, de mais uma
razão, e de reforço, a que, sob o regime de classificação instituído
através da Lei n.º 6.305/75, o Ministério da Agricultura e a ASCAR
se mantenham a classificar produtos vegetais exclusivamente quando
destinados ao comércio interno, não se avançando nos destinados à
exportação, como ocorre no caso presente.
(...)”
Do cotejo entre as razões das partes verifica-se que desassiste razão
à ASCAR.
Os produtos vegetais destinados ao comércio exterior serão classificados por órgão diverso daqueles destinados ao mercado interno, os
primeiros pelo Conselho Nacional de Comércio Exterior – CONCEX
(art. 3º, III, da Lei n.º 5.025/66) e estes pelo Ministério da Agricultura (art. 14, III, “g”, da Lei nº 9.649/98 c/c art. 1º, da Lei n.º 6.305/75).
Em assim sendo a classificação de produtos destinados ao mercado
interno e os que serão exportados, têm órgãos fiscalizadores e diplomas legais distintos.
Nesse sentido são os preceitos da Lei n.º 5.025/66, que trata da classificação dos produtos vegetais destinados à exportação:
Lei n.º 5.025, de 10 de junho de 1966
“Art. 3º. Compete privativamente, ao Conselho Nacional de Comércio Exterior:
(...)
III – Decidir sobre normas, critérios e sistemas de classificação comercial dos produtos objeto do comércio exterior;
(...)
Art. 19. Os produtos agrícolas, pecuários, matérias-primas minerais
e pedras preciosas destinadas à exportação deverão ser classificados,
padronizados ou avaliados, previamente, quando assim o exigir o interesse nacional, observado o disposto no artigo 20.
Art. 20. O Conselho Nacional do Comércio Exterior baixará os atos
necessários à máxima simplificação e redução de exigências de papéis
e trâmites no processamento das operações de exportação e deverá,
também, de imediato, promover, definir e regular:
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
133
a) a determinação dos produtos a que se refere o art. 19, destinados
à exportação que devam ser previamente classificados, padronizados
ou avaliados, vem como as normas e critérios a serem adotados e o
sistema de fiscalização e certificação;
(...)”
Ademais, forçoso é convir que a taxa de classificação somente é devida pelos estabelecimentos cujos produtos vegetais sejam destinados à
comercialização interna, e não pelas empresas submetidas ao regime
de draw-back , porquanto- os produtos vegetais por ela importados
são destinados à reexportação. E, nessa última hipótese não há o ato
a que se refere ao art. 20 supratranscrito.
Consequentemente, não há lei determinando o pagamento de taxa
de classificação de produtos vegetais a serem exportados. Sob esse
ângulo, como é cediço, é defeso criar obrigação tributária não prevista em lei, em razão do Princípio da Legalidade a que está submetida
a Administração Pública.
Ocorre que a Lei 9.972, de 25 de maior de 2000, em seu art. 13 revoga expressamente a Lei 6.305/75. A questão a ser analisada é saber se o entendimento consolidado
do Superior Tribunal de Justiça ainda persiste em face da aludida revogação.
Primeiramente, cumpre ressaltar que a obrigatoriedade da classificação de produtos vegetais continua, pois a Lei 9.972/2000 estabelece a mesma exigência quanto
a classificação. Verifica-se, entretanto, que a Lei 9.972/2000 não mais estabelece que
a classificação dos produtos vegetais, dos subprodutos e resíduos de valor econômico
sejam destinados à comercialização interna, que era a pedra de toque que conduzia todos
os precedentes acima citados. Observa-se, portanto, que a classificação dos produtos
vegetais também é perfeitamente possível quando a comercialização encontra-se sob
o regime de drawback.
Outra inovação introduzida pela nova lei de classificação de produtos vegetais é o fato de não ser possível à aplicação da palavra “taxa” para se denominar
o valor pago pela referida classificação, pois os dois artigos que se referiam aquela
palavra foram vetados. As razões que levaram o Presidente da República a vetar os
referidos artigos reside basicamente no fato de que não só o Estado-Membro e o
Distrito Federal poderão exercer a fiscalização, podendo, também, ficar autorizadas
a fiscalizar órgãos ou empresas especializada, as cooperativas agrícolas, as empresas
ou entidades especializadas na atividade; as bolsas de mercadorias, as universidades
e os institutos de pesquisa, conforme determina o art. 4º da referida lei. E o art. 5º do
Código Tributário Nacional estabelece que taxa é um tributo, e o art. 77 da mesma lei
assevera que a taxa “tem como fato gerador o exercício regular do poder de polícia,
ou a utilização efetiva ou potencial, de serviço público específico e divisível, prestado ao contribuinte ou posto à sua disposição”, não sendo possível, por conseguinte
denominar o valor pago pela classificação de “taxa”, tendo em vista a prestação desse
serviço pelo setor privado.
134
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
6. Princípio da vinculação física versus Princípio da fungibilidade
A modalidade de suspensão no regime especial de Drawback tem como princípio
a vinculação física entre o insumo importado e o produto objeto da exportação conforme se depreende do art. 389 do novo regulamento Aduaneiro, aprovado pelo Decreto
6.759/09, o qual assevera que as mercadorias admitidas no regime, na modalidade de
suspensão, deverão ser integralmente utilizadas no processo produtivo ou na embalagem,
acondicionamento ou apresentação das mercadorias a serem exportadas.
O princípio da vinculação física se coaduna com o princípio da fungibilidade,
pois a legislação aduaneira não proíbe a utilização de bens fungíveis com o fim de se
comprovar a adequação ao regime, desde que a operação seja realizada dentro do prazo
de validade do Ato Concessório de Drawback.
A vinculação física do Drawback na modalidade suspensão traz riscos às
empresas que realizam operações de comércio exterior. Ressaltando as que utilizam
os materiais importados tanto para a produção para o mercado interno, quanto para
o externo.
Há de ser feito o cotejo do “princípio da vinculação física” com o “princípio da
fungibilidade”, com o objetivo de não se inviabilizar o regime aplicando-se somente a
vinculação sem temperamentos, quanto desfigurá-lo aplicando-se indiscriminadamente
o princípio da fungibilidade.
O Superior Tribunal de Justiça já sinaliza para essa nova visão como se demonstrará da análise de julgados que trataram do tema.
No REsp 341.285/RS a Segunda Turma do STJ, rel. Min. Herman Benjamim,
deixou consignado que “em se tratando de insumo fungível, não é necessária a identidade física para fins de drawback, bastando a equivalência entre o produto importado
e aquele destinado à exportação”.
O Decreto nº 7.213/2010 ao incluir o art. 384-A ao Decreto nº 6.759/2009
deixou bem claro o tema ao disciplinar o seguinte:
Art. 384-A. Poderá ser concedido o regime de drawback, na modalidade de suspensão, para mercadoria importada, de forma combinada
ou não, com mercadoria adquirida no mercado interno, para:
I - emprego ou consumo na industrialização de produto a ser exportado.
No caso do recurso especial citado o contribuinte adquiria soda cáustica tanto
no mercado externo, quanto no externo, para a fabricação de celulose. Sendo que a 2ª
Turma não considerou nem mesmo razoável que a fábrica tivesse dois estoques de soda
cáustica, um com o produto importado e outro com o adquirido no mercado nacional,
mesmo sendo idênticos os produtos.
Já no REsp 413.564/RS, Primeira Turma, relator para o acórdão Ministro José
Delgado, também, foi mitigada a exigência prevista no art. 389 do Decreto 6.759/2009,
que estabelece a vinculação física entre as mercadorias importadas e as que vierem a ser
exportadas. É salutar que analisemos o andamento deste julgamento para entendermos
a evolução do tema da vinculação física no Superior Tribunal de Justiça.
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
135
A Ministra Denise Arruda relatora original do recurso especial iniciou o julgamento votando pela necessidade da observância da vinculação física no regime de
drawback, citando a legislação pertinente à época, nos seguintes termos:
O Decreto-Lei 37, de 18 de novembro de 1966, que dispõe sobre o
Imposto de Importação, reorganiza os serviços aduaneiros e dá outras
providências – ao disciplinar, no Título III, os regimes aduaneiros
especiais, especificamente no capítulo III desse título, que trata das
Importações vinculadas à Exportação - prevê o regime de drawback ,
nas seguintes modalidades:
“Art.78 - Poderá ser concedida, nos termos e condições estabelecidas no
regulamento:
I - restituição, total ou parcial, dos tributos que hajam incidido sobre a
importação de mercadoria exportada após beneficiamento, ou utilizada na
fabricação, complementação ou acondicionamento de outra exportada;
II - suspensão do pagamento dos tributos sobre a importação de mercadoria a ser exportada após beneficiamento, ou destinada à fabricação, complementação ou acondicionamento de outra a ser exportada;
III - isenção dos tributos que incidirem sobre importação de mercadoria,
em quantidade e qualidade equivalentes à utilizada no beneficiamento, fabricação, complementação ou acondicionamento de produto exportado.”
Por sua vez, o anterior Regulamento Aduaneiro, aprovado pelo Decreto 91.030, de 5 de março de 1985, trazia as seguintes normas gerais sobre o drawback :
“Art. 314 - Poderá ser concedido pela Comissão de Política Aduaneira,
nos termos e condições estabelecidas no presente capítulo, o benefício do
drawback nas seguintes modalidades:
I - suspensão do pagamento dos tributos exigíveis na importação de mercadoria a ser exportada após beneficiamento ou destinada à fabricação,
complementação ou acondicionamento de outra a ser exportada;
II - isenção dos tributos exigíveis na importação de mercadoria, em quantidade e qualidade equivalente à utilização no beneficiamento, fabricação,
complementação ou acondicionamento de produto exportado;
III - restituição, total ou parcial, dos tributos que hajam sido pagos na
importação de mercadoria exportada após beneficiamento, ou utilizada
na fabricação, complementação ou acondicionamento de outra exportada.
Parágrafo único - O benefício de que trata este artigo é considerado incentivo à exportação.
Art. 315 - O benefício do drawback poderá ser concedido:
I - à mercadoria importada para beneficiamento no País e posterior exportação;
II - à mercadoria - matéria-prima, produto semielaborado ou acabado utilizada na fabricação de outra exportada, ou a exportar;
136
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
III - à peça, parte, aparelho e máquina complementar de aparelho, máquina, veículo ou equipamento exportado ou a exportar;
IV - à mercadoria destinada a embalagem, acondicionamento ou apresentação de produto exportado ou a exportar, desde que propicie comprovadamente uma agregação de valor ao produto final;
V - aos animais destinados ao abate e posterior exportação.
§ 1º - O benefício também poderá ser concedido para matéria-prima e
outros produtos que, embora não integrando o produto exportado, sejam
utilizados na sua fabricação em condições que justifiquem a concessão.
§ 2º - O benefício poderá ainda ser concedido, em caráter especial, na
modalidade do inciso II do artigo anterior, a setores definidos pela Comissão de Política Aduaneira, a fim de ser reposta a matéria-prima nacional
utilizada na exportação, de sorte a beneficiar a indústria exportadora ou o
fornecedor nacional e para atender peculiaridades de mercado.”
Como visto, o regime aduaneiro especial de drawback, instituído pelo
Decreto-Lei 37/66, é um incentivo à exportação. Segundo Roosevelt
Baldomir Sosa, esse regime tem por finalidade:
“propiciar ao exportador nacional condições competitivas em termos de
preços internacionais desonerando-o dos encargos financeiros devidos
numa importação comum, sob condição de que os produtos importados
sejam empregados, direta ou indiretamente na industrialização dos produtos nacionais a serem exportados”’ (Comentários à Lei Aduaneira:
Decreto 91.030/85, São Paulo: Aduaneiras, 1995, p. 269).
No regime de drawback, modalidade suspensão, os fatos geradores
das obrigações tributárias ocorrem por ocasião do desembaraço aduaneiro. Como se trata de importação de mercadoria a ser exportada
após beneficiamento, ou destinada à fabricação, complementação
ou acondicionamento de outra a ser exportada, há a suspensão do
pagamento dos tributos exigíveis. Dessarte, havendo a exportação
no prazo e condições legais, a suspensão do pagamento transforma-se em isenção definitiva, ensejando a exclusão do crédito tributário.
Todavia, não-atendidas as condições legais, tornam-se exigíveis os
tributos suspensos, independentemente de constituição formal do
crédito tributário. Conforme Roosevelt Baldomir Sosa (ob. cit., p.
271):
“A condição resolutiva do regime é, obviamente, a exportação. Realizada
esta, a suspensão tributária se transmuta numa isenção de fato. Esgotado
o prazo de exportação sem que esta se efetive in concreto ressurge integralmente a exigência do crédito fiscal.”
Conforme se depreende da leitura do § 2º do art. 315 do citado Regulamento, no drawback suspensão, ao contrário do que ocorre na
modalidade isenção, tem-se que é imprescindível a vinculação física
entre os insumos importados e os produtos exportados, ou seja, os
insumos importados devem ser efetivamente empregados na indusRevista da Escola da Magistratura - nº 13
137
trialização dos produtos a serem exportados. Segundo José Lopes Vazquez (Comércio Exterior Brasileiro, 3ª edição, São Paulo: Atlas,
1998, p. 80), havendo o inadimplemento do compromisso de exportar, em razão da não-utilização ou utilização parcial das mercadorias
importadas, incidirão os tributos suspensos, haja vista que, de acordo
com a legislação, o beneficiário do incentivo fiscal deverá:
“a. providenciar a devolução ao exterior ou a reexportação das mercadorias não utilizadas;
b. requerer a destruição das mercadorias imprestáveis ou das sobras;
c. destinar as mercadorias remanescentes para consumo interno,
quando os tributos suspensos deverão ser pagos com os acréscimos
legais.”
Entender dispensada a identidade física entre a mercadoria importada e a posteriormente exportada implica descaracterizar o incentivo
instituído pelo drawback, modalidade suspensão.
O disposto no art. 341 do atual Regulamento Aduaneiro, aprovado
pelo Decreto 4.543/2002, coaduna-se com o entendimento acima
exposto:
“Art. 341. As mercadorias admitidas no regime, na modalidade de suspensão, deverão ser integralmente utilizadas no processo produtivo ou na
embalagem, acondicionamento ou apresentação das mercadorias a serem
exportadas.
Parágrafo único. O excedente de mercadorias produzidas ao amparo do
regime, em relação ao compromisso de exportação estabelecido no respectivo ato concessório, poderá ser consumido no mercado interno somente
após o pagamento dos impostos suspensos dos correspondentes insumos ou
produtos importados, com os acréscimos legais devidos.’
Tal orientação também harmoniza-se com o comando do art. 111 do
Código Tributário Nacional:
‘Art. 111. Interpreta-se literalmente a legislação tributária que disponha
sobre:
I - suspensão ou exclusão do crédito tributário;
II - outorga de isenção;
III - dispensa do cumprimento de obrigações tributárias acessórias.’
No sentido da necessária observância da vinculação física no regime
de drawback , já decidiu tanto o extinto Tribunal Federal de Recursos
quanto este Superior Tribunal de Justiça, conforme consta dos julgados cujas ementas são transcritas a seguir:
“TRIBUTÁRIO. IMPORTAÇÃO. REGIMES BEFIEX E ‘DRAW-BACK’. AFRMM.
I- Não se confundem os regimes Befies e ‘Drawback’, haja vista que, enquanto aquele está visceralmente ligado a um programa especial de exportação em determinado espaço de tempo, condicionado a divisas positivas
no saldo comercial, irrelevante o bem exportado (produto de manufatura138
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
ção programada), este último, o ‘drawback’, consiste em que o importador,
para o gozo dos benefícios instituídos, obrigue-se a manter o vínculo de reexportação da mercadoria adentrada ao território nacional, com a adição
de qualquer implemento industrial (melhoramento, utilização em fabrico
de outro produto, etc.).
II- Dá-se a isenção tão somente pelo fundamento da reexportação em face
do vínculo físico da mercadoria (drawback). O vínculo econômico ou financeiro (Befiex) não autoriza a isenção do AFRMM.
III- Legítima a exigência do AFRMM, dada a sua previsão legal e ausência de norma legal que isente o programa Befiex de seu recolhimento.
IV- Segurança cassada. Provimento da remessa oficial e do recurso voluntário da União Federal.” (AMS 116.571/SP, 5ª Turma, Rel. Min.
Pedro Acioli, DJ de 11.10.1988; RTFR, vol. 164, p. 397)
“CONSTITUCIONAL. TRIBUTÁRIO. ISENÇÃO DO ADICIONAL
DE FRETE PARA A MARINHA MERCANTE - AFRMM. EQUIVALÊNCIA COM O SISTEMA DRAWBACK. IMPOSSIBILIDADE.
A isenção, no sistema jurídico-tributário vigorante, só é de ser reconhecida
pelo Judiciário em benefício do contribuinte, quando concedida, de forma
expressa e clara pela lei, devendo a esta se emprestar compreensão estrita,
vedada a interpretação ampliativa.
Para efeito da isenção do AFRMM, o regime Befiex não se equipara, juridicamente, ao sistema denominado DRAWBACK. Enquanto, naquele
(Befiex), o beneficiário do incentivo obriga-se a efetivar, em determinado
prazo, um programa especial de exportação de produtos manufaturados,
devendo, na dilação, apresentar saldo positivo de divisas (seja qual for o
bem exportado), no regime aduaneiro do DRAWBACK, o que se verifica é o vínculo físico (e não financeiro) entre a mercadoria importada e
exportada; aquela deverá ser usada na fabricação (complementação ou
acondicionamento) do produto exportado.
A lei instituidora do sistema Befiex (Decreto-lei n. 1.219/72) veda, de forma expressa, a cumulação do referido benefício fiscal com outros previstos
na legislação tributária. O Befiex, segundo a jurisprudência predominante,
é coberto, apenas, pelos benefícios fiscais consignados no Decreto-lei n.
1.219/72, que o instituiu, gozando, tão só, da isenção do IPI e do imposto
de exportação.
Recurso provido. Decisão unânime.” (REsp 36.551/SP, 1ª Turma,
Rel. Min. Demócrito Reinaldo, DJ de 4.10.1993; RSTJ, vol. 59,
p. 324)”
Logo após este voto, o Ministro José Delgado abriu a divergência, no que foi
acompanhado pelos demais ministros, proferindo o voto vencedor nos seguintes termos:
“O acórdão considerou que a empresa está beneficiada pelo regime
“drawback”, com base nos seguintes fundamentos:
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139
“TRIBUTÁRIO. DRAWBACK. SUSPENSÃO. SODA CAÚSTICA. DESVIO DE FINALIDADE. EMPREGO DE MATÉRIA-PRIMA IDÊNTICA NA FABRICAÇÃO DO PRODUTO EXPORTADO. IMPOSTO. NÃO INCIDÊNCIA.
1. O fato da soda cáustica empregada na industrialização da celulose não
ter sido aquela objeto da importação não descaracteriza o drawback,
quando utilizado similar nacional e realizada a exportação da mercadoria,
sendo a finalidade deste regime de tributação especial incentivar a indústria exportadora.
2. Se a contribuinte deu outra destinação às matérias-primas importadas,
não as utilizando nos produtos a serem exportados, mas empregando em
sua fabricação insumos nacionais em quantidade e qualidade equivalentes,
não há razão para desconstituir o benefício da suspensão do tributo, eis que
inexistente prejuízo à Fazenda Pública.”
Ora, o benefício tributário foi reconhecido por:
a) a empresa não ter empregado a soda cáustica importada na industrialização da celulose, porém, em similar nacional que foi exportado;
b) o fato da empresa ter dado outra destinação às matérias-primas
importadas não ser suficiente para desconstituir o benefício fiscal em
questão.
Reconheceu-se que a empresa, pelo fato de ter aplicado produto nacional – similar à soda caústica importada – na fabricação da celulose, que foi regularmente exportada, não constitui causa suficiente
para afastar o benefício fiscal.
A jurisprudência desta Casa encontra-se firme no entendimento de
que é desnecessária a identidade física entre a mercadoria importada
e a posteriormente exportada no produto final, para fins de fruição
do benefício de drawback, não havendo nenhum óbice a que o contribuinte dê outra destinação às matérias-primas importadas quando
utilizado similar nacional para a exportação.
Merece, portanto, ser mantido o aresto de segundo grau pelos seus
próprios e jurídicos fundamentos”.
Já no REsp 591.624-AgRg/RS, rel. Min. Humberto Martins, Segunda Turma
do STJ, a hipótese dos autos foi a importação de óleo de soja bruto, e a exportação do
mesmo produto após processo de industrialização, sob o regime do drawback, no voto
condutor do acórdão o relator asseverou a desnecessidade da vinculação física nos
seguintes termos:
“Conforme consta no acórdão recorrido, não é necessário que exista uma identidade absoluta do produto que foi importado e o exportado, pois tratando-se de bem fungível, pode ser utilizado outro
de igual espécie, qualidade e quantidade para que faça valer o benefício fiscal.
140
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
No caso em testilha, trata-se de importação de óleo de soja bruto e a
exportação de igual produto, após processo de industrialização, razão
que enseja a aplicação do benefício fiscal conhecido como ‘drawback’.
Nesse sentido, destaco o voto proferido no acórdão recorrido:
‘Toda essa absurda e indefensável exigência do fisco estadual ,de que o
óleo bruto que entra na importação , deve ser exata e rigorosamente o mesmo que, refinado, sai exportado, não podendo ser substituído por outro,
já pronto, me faze lembrar a estória daquela ‘velhinha’ que, depositando
diariamente, em caderneta de poupança, as sua modesta economias, semanalmente comparecia ao banco e exigia do gerente que a levasse ao cofre e
lhe mostrasse que todo o seu dinheirinho, nota por nota, ali estava, intacto,
reservado e disponível, isto é, para a velhinha, o dinheiro tinha que ser,
absurdamente, o mesmo que ela havia depositado no banco!’”
A edição da Medida Provisória 497/2010 tende a regulamentar a matéria aqui
debatida, no sentido de se admitir a substituição dos produtos. A citada medida provisória
em seu art. 8º deu nova redação ao art. 17 da Lei 11.774/08, que ficou assim redigido:
“Art. 17. Para efeitos de adimplemento do compromisso de exportação nos regimes aduaneiros suspensivos, destinados à industrialização para exportação, os produtos importados ou adquiridos no mercado interno com suspensão do pagamento dos tributos incidentes
podem ser substituídos por outros produtos, nacionais ou importados,
da mesma espécie, qualidade e quantidade, importados ou adquiridos no mercado interno sem suspensão do pagamento dos tributos
incidentes, nos termos, limites e condições estabelecidos pelo Poder
Executivo.
§ 1o O disposto no caput aplica-se também ao regime aduaneiro de
isenção e alíquota zero, nos termos, limites e condições estabelecidos
pelo Poder Executivo.
§ 2o A Secretaria da Receita Federal do Brasil e a Secretaria de Comércio Exterior disciplinarão em ato conjunto o disposto neste artigo” (NR)
7. Decadência
As matérias-primas ao serem importadas em regime especial de drawback na
modalidade suspensão e não sendo cumprido o prazo para exportação dos produtos
com ela fabricados são exigíveis os tributos referentes à citada importação. Resta,
portanto, saber o prazo de decadência para que o Fisco possa cobrar os referidos tributos. O Superior Tribunal de Justiça no julgamento do REsp 658.404/RJ, rel. Min.
Denise Arruda, expõe de forma didática a jurisprudência da Corte sobre este tema
nos seguintes termos:
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
141
A Primeira Seção desta Corte Superior, por ocasião do julgamento
dos Embargos de Divergência no Recurso Especial 572.603/PR, sob a
relatoria do eminente Ministro Castro Meira, DJ de 5.9.2005, p. 199,
afastou o entendimento de que a Fazenda Pública estaria impedida
de efetivar o lançamento do crédito tributário, cuja exigibilidade esteja suspensa em decorrência de ordem judicial, sob a justificativa
de que tal orientação implicaria a interrupção do prazo decadencial,
fenômeno que não se coaduna com a natureza do instituto da decadência.
Eis, a propósito, a ementa do referido julgado:
“TRIBUTÁRIO. EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA. LANÇAMENTO POR HOMOLOGAÇÃO. DECADÊNCIA. PRAZO
QÜINQÜENAL. MANDADO DE SEGURANÇA. MEDIDA LIMINAR. SUSPENSÃO DO PRAZO. IMPOSSIBILIDADE.
1. Nas exações cujo lançamento se faz por homologação, havendo
pagamento antecipado, conta-se o prazo decadencial a partir da
ocorrência do fato gerador (art. 150, § 4º, do CTN), que é de cinco
anos.
2. Somente quando não há pagamento antecipado, ou há prova de
fraude, dolo ou simulação é que se aplica o disposto no art. 173, I,
do CTN.
3. A suspensão da exigibilidade do crédito tributário na via judicial impede o Fisco de praticar qualquer ato contra o contribuinte
visando à cobrança de seu crédito, tais como inscrição em dívida,
execução e penhora, mas não impossibilita a Fazenda de proceder à
regular constituição do crédito tributário para prevenir a decadência
do direito de lançar .
4. Embargos de divergência providos.”
Ocorre que, na hipótese dos autos, tendo sido importadas matérias-primas do exterior sob o regime de drawback , modalidade suspensão, a recorrente acabou por descumprir o prazo que lhe fora concedido para exportar os produtos com elas fabricados, recebendo,
por isso, intimação para recolher os tributos incidentes sobre tais
importações.
A respeito das disposições gerais aplicáveis aos regimes aduaneiros
especiais, assim estabelecia o Decreto-Lei 37/66:
“Art 71. Ressalvado o disposto no Capítulo V deste Título, as obrigações fiscais e cambiais relativas a mercadoria transportada sob controle aduaneiro, ou quando sujeita a regimes aduaneiros especiais , se
constituirão mediante termo de responsabilidade e serão cumpridas
nos prazos fixados no regulamento, não superiores a 1 (um) ano, salvo prorrogação em caráter excepcional, a qual, a juízo da autoridade aduaneira não ultrapassará, igualmente, o prazo originariamente
concedido.
142
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
§ 1º Aplica-se a disposição deste artigo ao termo de responsabilidade
para cumprimento de formalidades ou apresentação de documento.
§ 2º No caso deste artigo, a autoridade aduaneira poderá exigir garantia pessoal ou real.
Art 72. O Departamento de Rendas Aduaneiras poderá estabelecer a
forma e momento de apresentação do documento comprobatório da
chegada da mercadoria a seu destino.”
Sobreveio o Decreto-Lei 2.472/88, conferindo a seguinte redação aos
mencionados artigos do Decreto-Lei 37/66:
“Art.71 - Poderá ser concedida suspensão do imposto incidente na
importação de mercadoria despachada sob regime aduaneiro especial, na forma e nas condições previstas em regulamento, por prazo
não superior a 1 (um) ano, ressalvado o disposto no § 3º, deste artigo.
§ 1º - O prazo estabelecido neste artigo poderá ser prorrogado, a juízo da autoridade aduaneira, por período não superior, no total, a 5
(cinco) anos.
§ 2º - A título excepcional, em casos devidamente justificados, a critério do Ministro da Fazenda, o prazo de que trata este artigo poderá
ser prorrogado por período superior a 5 (cinco) anos.
§ 3º - Quando o regime aduaneiro especial for aplicado à mercadoria
vinculada a contrato de prestação de serviços por prazo certo, de
relevante interesse nacional, nos termos e condições previstos em
regulamento, o prazo de que trata este artigo será o previsto no contrato, prorrogável na mesma medida deste.
§ 4º - A autoridade aduaneira, na forma e nas condições prescritas
em regulamento, poderá delimitar áreas destinadas a atividades econômicas vinculadas a regime aduaneiro especial, em que se suspendam os efeitos fiscais destas decorrentes, pendentes sobre as mercadorias de que forem objeto.
§ 5º - O despacho aduaneiro de mercadoria sob regime aduaneiro especial obedecerá, no que couber, às disposições contidas nos artigos
44 a 53 deste Decreto-Lei.
§ 6º - Não será desembaraçada para reexportação a mercadoria sujeita à multa, enquanto não for efetuado o pagamento desta.
Art.72 - Ressalvado o disposto no Capítulo V deste Título, as obrigações fiscais relativas à mercadoria sujeita a regime aduaneiro especial
serão constituídas em termo de responsabilidade .
§ 1º - No caso deste artigo, a autoridade aduaneira poderá exigir
garantia real ou pessoal.
§ 2º - O termo de responsabilidade é título representativo de direito
líquido e certo da Fazenda Nacional com relação às obrigações fiscais
nele constituídas .
§ 3º - O termo de responsabilidade não formalizado por quantia certa
será liquidado à vista dos elementos constantes do despacho aduaneiro a que estiver vinculado.
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
143
§ 4º - Aplicam-se as disposições deste artigo e seus parágrafos, no que
couber, ao termo de responsabilidade para cumprimento de formalidade ou apresentação de documento.” (original sem grifo)
Por sua vez, o Regulamento Aduaneiro anterior, aprovado pelo Decreto 91.030/85, vigente à época da impetração, assim dispunha:
“Art. 249 - As obrigações fiscais suspensas pela aplicação dos regimes
aduaneiros especiais serão constituídas em termo de responsabilidade
firmado pelo beneficiário (Decreto-Lei nº 37/66, artigo 71, alterado
pelo Decreto-Lei nº 1.223/72).
§ 1º - A autoridade aduaneira poderá exigir garantia real ou pessoal
para o termo de responsabilidade no valor das obrigações suspensas (Decreto-Lei nº 37/66, artigo 71 - alterado pelo Decreto-Lei nº
1.223/72 - § 2º).
§ 2º - Não estará sujeito a assinatura de termo de responsabilidade o beneficiário do regime de entreposto industrial (Decreto-Lei nº
37/66, artigo 71, alterado pelo Decreto-Lei nº 1.223/72).
............................................................................................
Art. 547 - O termo de responsabilidade é o documento mediante o qual se constituem obrigações fiscais cujo adimplemento fica
suspenso pela aplicação dos regimes aduaneiros especiais ou pela
postergação de cumprimento de formalidades ou de apresentação de documentos, ou, ainda, por outros motivos previstos neste
Regulamento ou em atos normativos destinados a complementá-lo (Decreto-Lei nº 37/66, artigo 71, alterado pelo Decreto-Lei nº
1.223/72).
Parágrafo único - O termo não formalizado por quantia certa será
liquidado à vista dos elementos constantes do despacho aduaneiro a
que se vincula.
Art. 548 - O termo de responsabilidade constitui título representativo de direito líquido e certo da Fazenda Nacional com relação à
obrigação tributária nele garantida.
§ 1º - Não cumprida a obrigação, principal ou acessória, cuja suspensão lhe deu causa o termo será objeto de execução administrativa na
forma de ato normativo do Secretário da Receita Federal.
§ 2º - Não efetuado o pagamento do crédito tributário exigido, o
termo será encaminhado à cobrança judicial.” (original sem grifo)
Anelise Daudt Prieto, Membro da Terceira Câmara do Terceiro
Conselho de Contribuintes do Ministério da Fazenda, em artigo intitulado “O limite temporal para a exigência do imposto de importação
no regime aduaneiro especial de drawback suspensão”, elabora um
minucioso estudo a respeito do termo final do prazo para a Fazenda Nacional exigir o imposto de importação no drawback suspensão, transcrevendo, dentre várias referências bibliográficas, trechos
do livro “Regimes Aduaneiros Especiais”, de autoria do professor e
144
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
tributarista Osíris de Azevedo Lopes Filho. Confiram-se, por serem
bastante oportunos, os seguintes excertos do mencionado estudo:
“2.3. Fato Gerador e Lançamento
No que concerne ao fato gerador nos regimes aduaneiros especiais trago, novamente, trecho da obra de Lopes Filho, que discorreu muito
bem sobre o tema. Ressalto, entretanto, que o disposto à época em
que o texto foi redigido, no artigo 71 do Decreto-Lei nº 37/66, consta,
após o advento do Decreto-Lei nº 2.472/88, do artigo 72 do mesmo
diploma, com alterações que não são significativas para comprometer
o raciocínio elaborado:
‘...........................................................................................
(...) Dispõe o Decreto-lei 37/66, em seu art. 71, introdutório dos regimes
aduaneiros especiais, que as obrigações cambiais e fiscais, relativas à mercadoria sujeita a regimes aduaneiros especiais, se constituirão mediante
termo de responsabilidade devendo ser cumpridas dentro dos prazos
fixados para cada regime, aí incluída a sua prorrogação. O art. 44, do
aludido ato legal, fixa o princípio de que o despacho aduaneiro de mercadoria importada, qualquer que seja o regime (a ênfase explicitada é do
próprio dispositivo legal), será processado com base em declaração a ser
apresentada na repartição aduaneira. Comprova-se, assim, que a legislação de imposto, de forma sistemática, considera que as importações submetidas aos regimes aduaneiros estão na área de incidência do tributo, já
que, pela sua entrada no país, materializou-se o fato imponível via adequação do acontecimento à hipótese tributária. O elemento temporal
dos regimes aduaneiros especiais, de natureza suspensiva, materializa-se
na data em que o importador firma o termo de responsabilidade correspondente ao regime. Tal conclusão deriva do mandamento contido no
art. 71 do Decreto-lei 37/66, que determina que as obrigações fiscais se
constituirão mediante termo de responsabilidade.
Dentre essas obrigações, obviamente, há de estar a principal, que tem
por objeto o pagamento do tributo. A redação do referido dispositivo
não é clara e padece de imperfeições. Não teria, todavia, consistência um termo de responsabilidade que não previsse o montante do
tributo, caso não fosse observada a destinação estabelecida no disciplinamento do regime. Por outro lado, seria inócuo um termo de
responsabilidade que dispusesse apenas sobre medidas de controle
fiscal, fixando um compromisso da parte do contribuinte.’
............................................................................................
Elucidativo, também, do raciocínio do autor, o texto que transcrevo
a seguir:
‘Veja-se que o fato gerador do Imposto de Importação é a entrada da mercadoria estrangeira no território nacional. Entretanto, a
lei elege, por ficção, um momento adiante para caracterizar o seu
elemento temporal – o despacho para consumo. No caso dos regiRevista da Escola da Magistratura - nº 13
145
mes suspensivos, será o da assinatura do termo de responsabilidade,
quando exigido, ou da declaração para o regime. Todavia, as mercadorias podem ser, ao invés de reexportadas, despachadas para
consumo. Neste último caso, o elemento temporal, apresentação
do despacho para consumo, sobrepõe-se ao anterior e dá ensejo a
novo lançamento – importantíssimo se tiver ocorrido mudanças
nos elementos da relação jurídica, como a base de cálculo, alíquota
ou sujeito passivo – que tem a propriedade de fazer desaparecer o
elemento temporal anterior, tendo em vista que a ficção instituída
tem esse efeito.
Não se trata de dois elementos temporais existentes e aplicáveis ao
mesmo tempo, em relação a um fato imponível. O que ocorre é que a
própria lei estabelece coordenadas temporais de formação sucessiva
e excludente que, uma vez verificadas, tornam o aspecto temporal
anterior irrelevante, exatamente por ser característico dessa ficção,
ao prever o novo elemento, fazer desaparecer o anterior, como se não
houvesse existido, alterando, portanto, por consequência, os outros
elementos da obrigação tributária, caso, na época de sua integralização, já tenha havido modificação desses aspectos.
Resta examinar a ocorrência da finalidade jurídica básica do regime:
a reexportação da mercadoria, que entrou em um regime aduaneiro,
de índole suspensiva.
Recordando-se: o lançamento já se verificou por ocasião da lavratura
do termo de responsabilidade ou da apresentação da declaração do
regime , por ocorrência do elemento temporal da hipótese de incidência do tributo, que deu ensejo à instauração da obrigação tributária.
A consequência é a suspensão da exigibilidade do crédito tributário.
Mas o que acontece com esse crédito tributário, quando se verificar
a reexportação? Haveria ocorrência de uma condição resolutiva, que
extinguiria a relação jurídica ou se considera inexistente a relação
jurídica, pela ausência de elemento temporal, posto que não se verificou despacho para consumo, falta (fato gerador presumido), nem
descumpriu-se o prazo do regime que tornaria exigíveis os tributos
suspensos?
Não é de se admitir nenhuma das duas soluções aventadas. A própria sistemática do regime vinculado à exportação, exceto o caso do
trânsito interno, possibilita o entendimento de que a reexportação
da mercadoria, entrada no regime suspensivo, é causa de extinção
do crédito tributário, anteriormente materializado, e que teve, posteriormente, suspensa a sua exigibilidade.
Será, assim, a reexportação mais uma hipótese prevista de extinção do crédito tributário, além das estabelecidas no art. 156 da Lei
5.172/66, que na época em que foi editada não tinha força de lei
146
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
complementar, conforme reserva estatuída pelo art. 18, I, da Emenda
Constitucional 1, de 1969. Em verdade, o Decreto-lei 37/66 acrescentou mais uma modalidade de extinção do crédito tributário ao rol
do prefalado art. 156.
Entende-se, pois, que, nos regimes aduaneiros especiais, de índole suspensiva, o elemento temporal pode materializar-se de forma sucessiva
e excludente dos anteriores, e que o lançamento realizado por ocasião
da instauração do regime não é necessariamente definitivo, sendo suscetível de alteração, por surgimento de novo aspecto temporal.
Por outro lado, se a mercadoria sujeita ao regime é reexportada –
cumprimento da sua finalidade – o crédito tributário suspenso se
extingue, por ocorrência de modalidades extintivas estabelecidas no
Decreto-lei 37/66.
Tem-se que o lançamento anteriormente realizado é definitivo, no
caso de falta ou não reexportação da mercadoria submetida ao regime suspensivo.’ [sem destaque no original]
Ao final do supracitado artigo, a autora assim se posiciona sobre a
questão, e conclui:
“Portanto, por ocasião da importação do produto ocorre o fato gerador, surge a obrigação tributária, há o lançamento e fica constituído o
crédito tributário, que tem sua exigibilidade suspensa durante o prazo
da concessão do regime aduaneiro especial, ou seja, até a data em que
a mercadoria deve ser exportada. Isto porque conforme o art. 75 c/c
art. 78, parágrafo 3º do DL nº 37/66, no regime de que se cuida há
suspensão dos tributos que incidem sobre a importação. Além disso, e
de forma mais específica, o inciso II do artigo 78 prevê, para o regime,
a ‘suspensão do pagamento dos tributos que hajam incidido sobre
a importação de mercadoria a ser exportada...’ Em outras palavras,
ocorre a suspensão da exigibilidade do tributo. Está-se, então, diante
da suspensão da prescrição, prevista de forma não exaustiva no CTN,
em seu artigo 151.
............................................................................................
Em suma, depara-se com uma hipótese de suspensão da exigibilidade de crédito tributário. Vencido o prazo para a exportação das
mercadorias sem que esta tenha se efetivado, o crédito será exigível, correndo o prazo para a cobrança do imposto e não para o seu
lançamento. Não há por que se falar em decadência, o caso será de
prescrição. A Fazenda Pública terá, então, cinco anos para exigir o
tributo, o que deverá ser realizado com as garantias do contraditório
e da ampla defesa.
............................................................................................
Do exposto, posso elencar as seguintes conclusões:
1. Os regimes especiais de importação seguem regras e princípios que
disciplinam relações que se particularizam, abrindo exceções ao regiRevista da Escola da Magistratura - nº 13
147
me comum. Surgiram sob a influência da extrafiscalidade e têm como
objetivo básico evitar o pagamento do tributo, permitindo, entretanto, a entrada da mercadoria estrangeira no País, desde que atendida
uma destinação específica, estabelecida em lei.
2. O regime aduaneiro especial de drawback suspensão, também conhecido por beneficiamento ativo, prevê a suspensão do pagamento
dos tributos exigíveis na importação de mercadoria a ser exportada
após beneficiamento ou destinada à fabricação, complementação ou
acondicionamento de outra a ser exportada.
3. O objetivo da decadência é a obrigação tributária. O marco a partir do qual desaparece a possibilidade de ocorrer decadência, restando a possibilidade de se verificar a prescrição, é o lançamento. Este
último instituto é passível de suspensão e interrupção também em
Direito Tributário.
4. No drawback suspensão, em que a lei não estabelece o dever de
o sujeito passivo antecipar o pagamento, o lançamento é por declaração e ocorre com a apresentação da declaração e a assinatura do
termo de responsabilidade, por meio do qual ficam constituídas as
obrigações fiscais.
5. A partir de então, começa a correr o prazo de prescrição da ação
para a cobrança do crédito tributário. Entretanto, a exigibilidade do
crédito tributário fica imediatamente suspensa, tendo em vista o disposto no artigo 78, parágrafo 3º c/c artigo 75, ambos do Decreto-Lei
nº 37/66, até a data para exportação da mercadoria estabelecida no
ato concessório.
6. Em decorrência, se houver inadimplemento total ou parcial da
obrigação de exportar a mercadoria, a Fazenda Pública terá cinco
anos a partir da data em que a mercadoria deveria ter sido exportada
para exercer o seu direito de exigir aquele crédito cuja exigibilidade
havia sido suspensa.
7. Em atendimento ao disposto no artigo 5º, inciso LV, da atual Carta
Magna, deverá ser possibilitado ao contribuinte que exerça o contraditório e a ampla defesa, tanto administrativa quanto judicialmente.”
(PRIETO, Anelise Daudt. Direito Tributário e Processo Administrativo Aplicados . Coordenadores: Heleno Taveira Tôrres/Mary Elbe
Queiroz/Raymundo Juliano Feitosa. São Paulo: Quartier Latin, 2005,
pp. 493-523).
Para que se possa entender melhor este julgado, vamos primeiramente analisar
o instituto da decadência incidente sobre o imposto de importação, lembrando que
outros tributos, também, incidem sobre a entrada de produtos no território nacional.
O II será examinado a título exemplificativo, podendo as considerações seguintes ser
aplicadas também aos outros tributos, devendo-se apenas atentar para as singularidades
do fato gerador de cada um.
148
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
Preliminarmente, observa-se que o prazo de decadência para o Fisco efetuar
o lançamento encontra-se disciplinado nos artigos 150 e 173 do Código Tributário
Nacional que assim dispõem:
Art. 150. O lançamento por homologação, que ocorre quanto aos
tributos cuja legislação atribua ao sujeito passivo o dever de antecipar
o pagamento sem prévio exame da autoridade administrativa, opera-se pelo ato em que a referida autoridade, tomando conhecimento da
atividade assim exercida pelo obrigado, expressamente a homologa.
§ 1º O pagamento antecipado pelo obrigado nos termos deste artigo
extingue o crédito, sob condição resolutória da ulterior homologação
ao lançamento.
§ 2º Não influem sobre a obrigação tributária quaisquer atos anteriores à homologação, praticados pelo sujeito passivo ou por terceiro,
visando à extinção total ou parcial do crédito.
§ 3º Os atos a que se refere o parágrafo anterior serão, porém, considerados na apuração do saldo porventura devido e, sendo o caso, na
imposição de penalidade, ou sua graduação.
§ 4º Se a lei não fixar prazo a homologação, será ele de cinco anos, a
contar da ocorrência do fato gerador; expirado esse prazo sem que a
Fazenda Pública se tenha pronunciado, considera-se homologado o
lançamento e definitivamente extinto o crédito, salvo se comprovada
a ocorrência de dolo, fraude ou simulação.
Art. 173. O direito de a Fazenda Pública constituir o crédito tributário extingue-se após 5 (cinco) anos, contados:
I - do primeiro dia do exercício seguinte àquele em que o lançamento
poderia ter sido efetuado;
II - da data em que se tornar definitiva a decisão que houver anulado,
por vício formal, o lançamento anteriormente efetuado.
Surge, então, a questão de saber qual dos dois artigos é aplicado ao imposto de
importação, pois se o imposto é pago apenas após o lançamento pelo Fisco aplica-se o
artigo 173 do CTN, mas, se ao contrário, o imposto for pago pelo contribuinte e só após
homologado pela autoridade competente aplicar-se-ia o artigo 150 do CTN. Alberto
1
Xavier levanta a questão asseverando o seguinte:
A aplicabilidade de um ou de outro artigo depende apenas da questão
de saber se, de harmonia com o regime jurídico de um determinado
imposto, o pagamento deva ser efetuado pelo sujeito passivo apenas
após a prática pela autoridade administrativa de um ato administrativo de lançamento ou se, ao invés, o sujeito passivo pode proceder
ao pagamento do tributo independentemente da prévia intervenção
da autoridade administrativa, limitando-se esta última ao controle a
posteriori da regularidade do pagamento previamente realizado.
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
149
Verificamos, por conseguinte, que o imposto de importação amolda-se ao contido
no art. 150 do CTN tendo em vista que o sujeito passivo tem o dever de antecipar o
pagamento sem prévio exame da autoridade administrativa, sendo que o pagamento
antecipado pelo obrigado extingue o crédito sob condição resolutória da ulterior homologação do lançamento. Consequentemente, a sujeição do imposto de importação ao
contido no art. 150 do CTN, implica que se a lei não fixar prazo à homologação, será
ele de cinco anos a contar da ocorrência do fato gerador. Se fosse aplicado o art. 173
do CTN o crédito tributário extinguir-se-ia após cinco anos contados do primeiro dia
do exercício seguinte àquele em que o lançamento poderia ter sido efetuado.
O Código Tributário Nacional traz em seu artigo 142 a definição de lançamento
que é “o procedimento administrativo tendente a verificar a ocorrência do fato gerador
da obrigação correspondente, determinar a matéria tributável, calcular o montante do
tributo devido, identificar o sujeito passivo e, sendo o caso, propor a aplicação da penalidade cabível”. Portanto, não há quanto ao imposto de importação qualquer lançamento,
o que corrobora o entendimento que ao citado imposto incide o art. 150 do CTN.
Analisemos a seguir o trâmite da importação de mercadoria para podermos
compreender melhor como se dá a incidência do imposto de importação. Com o despacho de importação inicia-se o procedimento administrativo de entrada em território
nacional de mercadoria proveniente do exterior, o citado despacho é “o procedimento
mediante o qual é verificada a exatidão dos dados declarados pelo importador em relação à mercadoria importada, aos documentos apresentados e à legislação específica”
(art. 542 do Decreto 6.759/2009), este procedimento inicia-se com a declaração de
importação que é o documento base do despacho de importação. A declaração deverá
conter a identificação do importador; e a identificação, a classificação, o valor aduaneiro
e a origem da mercadoria (art. 551, § 1º, do Decreto 6.759/2009). Constata-se que até
aqui não houve o ato de lançamento, pois a declaração é um ato particular, sendo o
lançamento um ato do poder público.
O pagamento dos tributos e contribuições federais devidos na importação de
mercadorias será efetuado no ato do registo da respectiva declaração de importação
(art. 11 da Instrução Normativa SRF 680/2006), ou seja, antes do ato de lançamento,
ratificando definitivamente a incidência, no caso, do art. 150 do CTN.
Após, o citado registro a declaração de importação passa por procedimentos
tendentes ao desembaraço aduaneiro, este desembaraço pode ser automático ou passar
por uma conferência aduaneira, sendo examinados os documentos e a mercadorias,
conforme dispõe o art. 21 da Instrução Normativa SRF 680/2006 nos seguintes termos:
Art. 21. Após o registro, a DI será submetida a análise fiscal e selecionada para um dos seguintes canais de conferência aduaneira:
I - verde, pelo qual o sistema registrará o desembaraço automático
da mercadoria, dispensados o exame documental e a verificação da
mercadoria;
II - amarelo, pelo qual será realizado o exame documental, e, não
sendo constatada irregularidade, efetuado o desembaraço aduaneiro,
dispensada a verificação da mercadoria;
150
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
III - vermelho, pelo qual a mercadoria somente será desembaraçada
após a realização do exame documental e da verificação da mercadoria; e
IV - cinza, pelo qual será realizado o exame documental, a verificação da mercadoria e a aplicação de procedimento especial de controle aduaneiro, para verificar elementos indiciários de fraude, inclusive
no que se refere ao preço declarado da mercadoria, conforme estabelecido em norma específica.
§ 1o A seleção de que trata este artigo será efetuada por intermédio
do Siscomex, com base em análise fiscal que levará em consideração,
entre outros, os seguintes elementos:
I - regularidade fiscal do importador;
II - habitualidade do importador;
III - natureza, volume ou valor da importação;
IV - valor dos impostos incidentes ou que incidiriam na importação;
V - origem, procedência e destinação da mercadoria;
VI - tratamento tributário;
VII - características da mercadoria;
VIII - capacidade operacional e econômico-financeira do importador; e
IX - ocorrências verificadas em outras operações realizadas pelo importador.
§ 2º A DI selecionada para canal verde, no Siscomex, poderá ser objeto de conferência física ou documental, quando forem identificados
elementos indiciários de irregularidade na importação, pelo AFRFB
responsável por essa atividade. (Redação dada pela Instrução Normativa RFB nº 957, de 15 de julho de 2009)
Art. 22. As declarações de importação selecionadas para conferência aduaneira serão distribuídas para os Auditores-Fiscais da Receita Federal (AFRF) responsáveis, por meio de função própria do
Siscomex.
Art. 23. Na hipótese de constatação de indícios de fraude na importação, independentemente do início ou término do despacho aduaneiro ou, ainda, do canal de conferência atribuído à DI, o servidor
deverá encaminhar os elementos verificados ao setor competente,
para avaliação da pertinência de aplicação de procedimento especial
de controle.
2
Alberto Xavier esclareceu muito bem este ponto, afirmando o seguinte:
“Caso o desembaraço aduaneiro se realize automaticamente, nenhum ato administrativo com as características de lançamento terá
sido até então praticado.
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
151
Ao invés, nas hipóteses em que a conferência aduaneira é obrigatória
ela traduz-se num ato administrativo que pode ter um de dois sentidos; ou confirma a regularidade do pagamento entretanto efetuado,
revestindo, assim, a natureza da “homologação” a que se refere o art.
150 do CTN; ou, caso constate que foi realizado um pagamento a
menor, pratica, de ofício, um ato administrativa de lançamento, que
é o título jurídico da exigência da quantia declarada em dívida.
A questão da decadência do direito de lançamento coloca-se em termos diversos consoante o desembaraço aduaneiro tenha sido realizado mediante lançamento (conferência aduaneira) ou independentemente do lançamento.
No caso de o desembaraço se ter realizado com lançamento, a decadência respeita aos poderes para revisão do mesmo, ou seja, aos
poderes para prática de um ato tributário de segundo grau tendo por
objeto a revisão de ofício de um ato tributário de primeiro grau entretanto praticado, a conferência aduaneira.
Ao invés, nos casos em que não foi feito um lançamento prévio, por
não ter sido realizada conferência aduaneira, a decadência respeita
aos poderes para realizar o ato tributário primário em que consiste o
lançamento de ofício praticado no exercício dos poderes de fiscalização e controle a posteriori das autoridades ficais.”
Como bem ressaltou o citado autor, a decadência vai operar-se de maneira
distinta a depender se o desembaraço aduaneiro deu-se por lançamento (com conferência aduaneira) ou sem lançamento (automático). Quanto ao primeiro a decadência
tem que respeitar a revisão de ofício (ato tributário de segundo grau). Já em relação
ao segundo a decadência tem que levar em consideração o lançamento de ofício (ato
tributário primário).
A revisão aduaneira é o ato pelo qual é apurada, após o desembaraço aduaneiro,
a regularidade do pagamento dos impostos e dos demais gravames devidos à Fazenda
Nacional, da aplicação de benefício fiscal e da exatidão das informações prestadas pelo
importador na declaração de importação, ou pelo exportador na declaração de exportação (art. 638, do Decreto 6.759/2009). A revisão aduaneira conforme dispõe o § 2º,
do mesmo decreto, deverá estar concluída no prazo de cinco anos, contados da data
do registro da declaração de importação correspondente e do registro de exportação,
tendo em vista o princípio da segurança jurídica, não podendo, por conseguinte, a
Administração Pública rever seus atos a qualquer momento, sem nenhuma limitação
3
temporal. Alberto Xavier assim se posicionou sobre a questão em tela:
“O tema da revisão do lançamento por inciativa de ofício da autoridade administrativa envolve a ponderação de um conflito latente
entre o princípio da legalidade – favorável à eliminação da ilegalidade que tenha afetado o ato primário de lançamento – e o princípio da segurança jurídica – favorável à estabilidade das situações
152
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
jurídicas subjetivas declaradas por atos da autoridade pública. Ora,
se é certo que a restauração da legalidade violada, pela revisão do
ato ilegal, reclama o afastamento de limites que a impeçam ou dificultem, também é verdade que a inexistência desses limites geraria
para os particulares intoleráveis situações de incerteza, submetendo-os, porventura de surpresa, a uma pluralidade de novas definições da mesma situação jurídica, por ato da mesma autoridade ou
de autoridade distinta, num reexercício ilimitado do seu poder de
lançar.
Sistemas baseados numa ilimitada revisibilidade dos atos tributários
por inciativa da Administração só podem conceber-se em ordens jurídicas de inspiração totalitária, avessas à ideia de segurança jurídica,
com a do nacional-socialismo alemão que, no § 19º da steuereinfachungsverordnung, de 14 de setembro de 1944, autorizava a Administração fiscal a corrigir, sem quaisquer limites, os erros das suas
decisões.
O direito brasileiro estabeleceu para os poderes da revisão do lançamento limites temporais, respeitantes ao prazo dentro do qual a
revisão pode ser legitimamente efetuada.”
Finalmente, verificamos que o prazo de decadência do direito ao lançamento
e de sua revisão quando se tratar do regime especial de drawback suspensão será de
cinco anos, sendo que o termo inicial será o primeiro dia do exercício seguinte ao dia
imediatamente posterior ao trigésimo dia da data limite para exportação. Este prazo foi
acrescentado ao ordenamento jurídico com o Decreto 6.759/2009, mas precisamente
no inciso I, § 3º, do art. 752.
7.1. A decadência do IOF no Drawback
O imposto, de competência da União, sobre operações de crédito, câmbio e
seguro, e sobre operações relativas a títulos e valores mobiliários (IOF) tem como
fato gerador quanto às operações de câmbio, a sua efetivação pela entrega de moeda
nacional ou estrangeira, ou de documento que a represente, ou sua colocação à disposição do interessado em montante equivalente à moeda estrangeira ou nacional
entregue ou posta à disposição por este (art. 63, II, do Código Tributário Nacional).
A matéria aqui analisada é relativa à questão se a concessão do regime especial de
drawback-suspensão seria capaz de postergar o prazo para o Estado proceder ao lançamento do IOF. Já vimos neste capítulo que o prazo decadencial não se interrompe nem
se suspenda, portanto a resposta para a indagação acima seria negativa. A Ministra
Eliana Calmon teceu alguns comentários sobre o tema no REsp 1.006.535/PR, que em
seu voto condutor deixou clara a questão, começando com a transcrição do acórdão
recorrido, para logo em seguida rebater as teses nele mencionadas. Transcreveremos
a seguir trecho do citado voto:
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
153
(...) Merece transcrição o acórdão recorrido:
Pretende a União a satisfação de valores de IOF relativos a contrato
de câmbio firmado entre o banco, ora executado, e a empresa AUTOLATINA BRASIL S/A, não recolhidos à época da liquidação da
operação cambial, pois a última faria uso dos valores para a aquisição
de insumos com benefício do regime de drawback-suspensão .
O regime aduaneiro especial vinculado à exportação na modalidade
suspensão (drawback-suspensão) é incentivo fiscal de política comercial externa, pelo qual, em regra geral, o importador se compromete
a importar determinados insumos para a industrialização, exportando o produto final beneficiado em prazo certo. Em contra-partida,
ficam os tributos referentes à importação suspensos, sendo extinta a
obrigação tributária com a exportação do bem industrializado. Contudo, não cumprindo o contribuinte com o prazo estabelecido para
a exportação dos bens, cessa o período de suspensão dos tributos,
devendo ser recolhidos na medida das mercadorias não exportadas.
Em linhas gerais, o benefício de drawback, a requerimento do interessado, é deferido por Ato Concessório, que detalha os bens a serem
importados, seu beneficiamento e o prazo máximo para a exportação
da mercadoria. A empresa beneficiária, no ato de importação, firma
Termo de Compromisso, que conterá a relação dos tributos devidos
para a mercadoria importada, cuja a cobrança fica suspensa por força
do regime especial.
O e. STJ já se manifestou no sentido de haver a constituição do crédito tributário quando da assinatura do Termo de Compromisso, restando a cobrança suspensa na vigência do drawback . Findo o prazo
para a exportação e verificada a inadimplência do contribuinte em
exportar, passam os valores a serem plenamente exigíveis, afastado
a figura da decadência, pois os créditos estão constituídos desde a
assinatura do referido termo.
Colaciono decisão do e. STJ nesse sentido:
RECURSO ESPECIAL NO AGRAVO DE INSTRUMENTO. DENEGAÇÃO DO PEDIDO DE DESENTRANHAMENTO, DEPOIS DE TRANSITADA EM JULGADO A DECISÃO FINAL
NO MANDADO DE SEGURANÇA, DA CARTA DE FIANÇA
BANCÁRIA OFERECIDA PARA OBTENÇÃO DA LIMINAR
E SUSPENSÃO DA EXIGIBILIDADE DO CRÉDITO TRIBUTÁRIO. INADIMPLEMENTO DO REGIME DE DRAWBACK,
MODALIDADE SUSPENSÃO. DESNECESSIDADE DE LANÇAMENTO. DECADÊNCIA. NÃO-OCORRÊNCIA. DESPROVIMENTO DO RECURSO.
1. Ao serem importadas matérias-primas do exterior sob o regime
de drawback, modalidade suspensão, e ocorrendo, posteriormente, o
descumprimento do prazo concedido para a exportação dos produtos
154
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
com elas fabricados, desde então passam a ser exigíveis os tributos
incidentes sobre tais importações, cujas obrigações fiscais, de acordo
com o art. 72 do Decreto-Lei 37/66, constituem-se mediante termo
de responsabilidade assinado pelo beneficiário desse regime aduaneiro especial.
2. Nesse contexto, já constituído o crédito tributário, não se verifica
a decadência do direito de a Fazenda Nacional constituí-lo no prazo
a que se refere o art. 173, I, do Código Tributário Nacional.
3. Recurso especial desprovido.
(REsp 658404/RJ, Rel. Ministra DENISE ARRUDA, PRIMEIRA
TURMA, julgado em 06.12.2005, DJ 01.02.2006 p. 442)
Contudo, tenho que esse não é o caso dos autos.
Trata-se de executivo fiscal que pretende a satisfação de débitos de
IOF relativos a operação de câmbio, cuja responsabilidade de recolhimento cabe à instituição financeira. Dessa forma, não poderiam
os valores devidos constar do Termo de Compromisso firmado pelo
importador, pois não lhe cabe seu recolhimento, bem como a referida
exação não está diretamente ligada à mercadoria importada, mas a
uma operação financeira acessória.
Portanto, não tendo ocorrido a constituição do crédito de IOF pela
assinatura do Termo de Compromisso, ao contrário do ocorrido com
os demais tributos devidos pelo importador (II, IPI, ICMS, AFRMM),
bem como não havendo nos autos notícia de qualquer outra forma
de constituição, caberia ao fisco proceder o lançamento de ofício do
valor dentro do prazo decadencial previsto pelo art.173 do CTN, que
assim dispõe:
Art. 173. O direito de a Fazenda Pública constituir o crédito tributário extingue-se após 5 (cinco) anos, contados:
I - do primeiro dia do exercício seguinte àquele em que o lançamento
poderia ter sido efetuado;
II - da data em que se tornar definitiva a decisão que houver anulado,
por vício formal, o lançamento anteriormente efetuado.
Parágrafo único. O direito a que se refere este artigo extingue-se definitivamente com o decurso do prazo nele previsto, contado da data
em que tenha sido iniciada a constituição do crédito tributário pela
notificação, ao sujeito passivo, de qualquer medida preparatória indispensável ao lançamento.
No caso, o fato gerador do IOF teve lugar em outubro de 1987,
quando ocorreu a liquidação financeira do contrato de câmbio (fl.
91). No entanto, o lançamento do tributo não podia ser efetuado
pela autoridade administrativa, por força do benefício de drawback.
Assim, aplica-se a inteligência do inciso I do art. 173 do CTN, que
define como marco inicial da decadência tributária o “primeiro dia
do exercício seguinte àquele em que o lançamento poderia ter sido
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
155
efetuado “. Portanto, na vigência do acordo de drawback , não houve
o transcurso do prazo decadencial, pois inviável o lançamento do
tributo.
Conforme consta do relatório fiscal juntado à fl. 85, o regime de
drawback teve fim em 08/02/90, quando, não tendo sido cumprido
o compromisso de exportar, poderia a autoridade fazendária proceder com o lançamento dos tributos devidos. Assim, o prazo decadencial teve início no primeiro dia do exercício seguinte, ou seja,
em 01/01/1991, esgotando-se cinco anos após, em 01/01/1996. No
entanto, o banco executado foi regularmente notificado do lançamento efetuado por auto de infração em 10/08/1995 (fl. 84), dentro
do prazo legal para a constituição do débito, não havendo falar em
decadência.
Dessa forma, cabe reformar a sentença para afastar a ocorrência da
decadência, determinado o retorno dos autos à origem para o regular
prosseguimento do feito.
Ante o exposto, voto por dar provimento ao apelo e à remessa oficial.
A premissa utilizada no acórdão - não houve a constituição do IOF
pelo Termo de Compromisso - não se compatibiliza com a noção de
que o Fisco somente poderia lançar o crédito do imposto no descumprimento das normas relativas ao regime aduaneiro, como se o direito
de lançar ficasse impedido por ato de terceiro. Os direitos potestativos só dependem de seu titular para o exercício, o que os diferem dos
direitos à pretensão, que sofrem a influência de terceiros.
Por isso que se afirma que o Fisco não está impedindo de promover
o lançamento enquanto subsista medida liminar ou qualquer outra
causa impeditiva da exigibilidade do crédito .
Portanto, o regime aduaneiro em tela somente causa a suspensão do
exercício da pretensão tributária durante o prazo fixado no acordo e
mantidas as condições do benefício.
Se não havia sido lançado o IOF porque não compõe o Termo de
Compromisso, já que é tributo estranho à operação de importação
e exportação - finalidade do drawback - caberia ao Fisco lançá-lo,
considerando a data da ocorrência do fato gerador - outubro de 1987
-, nos termos do art. 63, II, do CTN:
Art. 63. O imposto, de competência da União, sobre operações de
crédito, câmbio e seguro, e sobre operações relativas a títulos e valores mobiliários tem como fato gerador:
II - quanto às operações de câmbio, a sua efetivação pela entrega de
moeda nacional ou estrangeira, ou de documento que a represente, ou
sua colocação à disposição do interessado em montante equivalente à
moeda estrangeira ou nacional entregue ou posta à disposição por este;
Por isso com acerto a sentença. Configurada a decadência porque o
IOF não foi objeto do Termo de Compromisso e, portanto, não foi
156
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
constituído no ato da importação. Não há alegação ou prova de que o
tributo foi declarado por qualquer dos sujeitos passivo. A decadência
não se interrompe ou suspende e conta-se da data do fato gerador,
ocorrência da obrigação tributária.
Verificamos que o IOF não é um tributo que faz parte da atividade de importação ou exportação e não integra, em regra, o Termo de Compromisso, que é a
forma de constituição do crédito tributário. Observamos, também, que o fato gerador
do IOF ocorre a sua efetivação pela entrega de moeda nacional ou estrangeira, ou
de documento que a represente, ou sua colocação à disposição do interessado em
montante equivalente à moeda estrangeira ou nacional entregue ou posta à disposição por este. Portanto, o drawback não interfere na fixação do termo inicial para a
constituição do IOF, sendo irrelevante o fato gerador ocorrer no regime especial de
drawback ou fora dele.
8. O ICMS no Drawback
A incidência do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS)
nas operações realizadas sob o regime especial de Drawback esta disciplinada na cláusula primeira do Convênio ICMS 27/90, o qual dispõe que “ficam isentas do ICMS o
recebimento pelo importador ou, quando prevista na legislação estadual, a entrada
no estabelecimento de mercadoria importada sob o regime de ‘drawback’”. O referido
dispositivo assevera ainda, em seu parágrafo único que o benefício somente se aplica às
mercadorias beneficiadas com suspensão dos impostos federais sobre importação e sobre
produtos industrializado. O STJ interpretando a citada norma afirma que ela está em
perfeita consonância com o contido no art. 111, II, do Código Tributário Nacional, o
qual dispõe que “interpreta-se literalmente a legislação tributária que disponha sobre
outorga de isenção”. O precedente que nos remete a este conceito é o REsp 39.607/SP,
rel. Min. Demócrito Reinaldo, que em seu voto conduto expõe o seguinte:
“A controvérsia reside na busca da correta interpretação do item
1, do parágrafo único, da cláusula primeira do Convênio ICMS nº
36/89, expressamente prorrogada pela cláusula primeira do Convênio 09/90, cuja redação é a seguinte:
“Cláusula primeira – Ficam os Estados e o Distrito Federal autorizados a conceder, segundo o disposto na sua legislação até 31 de julho
de 1989, isenção do ICMS no recebimento ou na entrada no estabelecimento do importador, conforme o caso, de mercadoria importada
sob o regime “drawback”.
Parágrafo único – A outorga do benefício previsto nesta cláusula fica
condicionada:
1 – à concessão de suspensão do pagamento dos impostos federais de
importação e sobre produtos industrializados;
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157
2 – à entrega, pelo importador, até 10 dias após a liberação da mercadoria pela repartição federal competente, de uma cópia da correspondente Declaração de Importação – DI”.
O art. 55 e seu § 1º, das Disposições Transitórias do Regulamento
do ICMS, na redação do Decreto 30.092/89, ambos do Estado de
São Paulo, reproduzem o texto acima transcrito, incorporando-o ao
ordenamento jurídico daquela Unidade Federada.
Neste passo, peço vênia para reportar-me às judiciosas ponderações
contidas no voto-condutor dos Embargos Infringentes, da lavra do
ilustre Des. Salles Penteado, que de forma clara e minuciosa deu a
correta solução à pendenga, “verbis”:
“O “drawback” vem classificado como um regime aduaneiro especial
pelo artigo 78 do Decreto-lei nº 37, de 18 de novembro de 1966.
Cada inciso daquele texto legal institui uma espécie daquele benefício: restituição total ou parcial de impostos que houvessem incidido
na importação de mercadoria, que viesse a ser exportada, após seu
emprego no beneficiamento, complementação ou acondicionamento
de outra, também exportada (inciso I); suspensão dos tributos incidentes sobre a importação, se a mercadoria deve ser exportada,
após seu emprego no beneficiamento, fabricação, complementação
ou acondicionamento de outra, destinada à exportação (inciso II) e
isenção dos tributos incidentes sobre importação de mercadoria, se
outra, de qualidade e quantidade equivalentes, tivesse sido utilizada
no beneficiamento, fabricação, complementação ou acondicionamento de produto exportado (inciso III).
A suspensão é, portanto, uma isenção sob condição suspensiva; condição cujo implemento ocorre com a exportação da mercadoria, na
qual se empregou o produto importado, por uma das formas mencionadas na lei.
Já, no “drawback” pela modalidade da isenção, esta última beneficia produto importado, porque anteriormente outro fora exportado
e nele se empregara, para beneficiamento, fabricação, complementação ou acondicionamento, mercadoria de qualidade e em quantidade
equivalentes à importada.
Ora, como se vê no item 1 do parágrafo único da cláusula primeira
do Convênio ICMS nº 36, de 1989 e do artigo 55, § 1º, item 1, das
Disposições Transitórias do anterior Regulamento do ICM, a isenção
aqui em causa depende, não de isenção dos impostos federais sobre
importação ou sobre produtos industrializados, mas sim, da suspensão deles.
A divergência, no julgamento dos recursos anteriores a este, manifestou-se na interpretação declarativa (nem ampliativa, nem restritiva),
que aos textos por último referidos deu a maioria e na exegese extensiva do ilustrado voto vencido.
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Revista da Escola da Magistratura - nº 13
Lê-se neste último:
“Se a isenção do ICMS incide sobre produtos beneficiados pela isenção condicionada de tributos federais, não se vislumbra razão lógica
para que não ocorra também em caso de isenção simples” (fls. 223).
A argumentação prossegue, com a invocação de razão, em virtude da
qual se concede a isenção, que reside na política nacional de barateamento do custo de produtos exportáveis, para concluir:
“Deflui-se disto que não se deve distinguir se a operação foi privilegiada “a priori”, através da suspensão, ou “a posteriori”, através da
isenção simples. A distinção seria absolutamente irrelevante, sem
efeitos jurídicos, dado que afinal, se cuidaria de um só fenômeno, o
da isenção” (fls. 223/224).
Mas, são de diversa natureza uma e outra das formas de isenção, aqui
em causa.
A pura e simples beneficia produto que se importa.
Mas, foi noutro; no que já se exportou, que se empregou, para beneficiamento, fabricação, complementação ou acondicionamento,
mercadoria em quantidade e de qualidade equivalente à importada.
Esta é objeto do benefício fiscal; aquela, da exportação.
A isenção condicionada beneficia o próprio produto exportado, porque nele se empregou o anteriormente importado, tornando definitivo o benefício antecipado na importação. É claro que a isenção teve
por objeto o importo de importação mas o produto importado ou
tornou-se parte integrante, ou acessório do exportado, motivo pelo
qual a exportação torna definitiva a isenção.
O Convênio ICMS nº 36, de 1989, faz a distinção criticada pelo
ilustrado voto vencido, para restringir a isenção do ICMS somente
à hipótese de suspensão do pagamento dos impostos federais sobre
importação e sobre produtos industrializados.
Feita a distinção, não há como deixar de submeter a ela a operação,
ainda que ao julgador ela pareça ilógica.
Isto, tanto mais, ao se considerar que deve ser literal a interpretação
de lei que conceda isenção de tributos (artigo 111, inciso II, do Código Tributário Nacional).
Mas, a distinção não é ilógica, dadas as diferenças marcantes, seja
quanto à forma de concessão, seja quanto ao produto beneficiado
por uma e por outra espécie de isenção: a simples e a condicionada.
O respeitável voto minoritário utiliza-se de outro argumento, este de
ordem constitucional, para estender a isenção do ICMS à hipótese de
isenção pura e simples do imposto federal sobre importação.
A Constituição Federal, argumenta-se, ao dispor sobre o ICMS, diz
que ele não incidirá “sobre operações que destinem ao exterior produtos industrializados, excluídos os semielaborados definidos em lei
complementar” (artigo 155, § 2º, X, “a”).
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
159
A disposição não faz distinções, prossegue o argumento, nem se refere
a nenhuma situação que, no procedimento fiscal, pudesse excluir o
benefício.
E conclui-se:
“Daí que a menção, nas normas estaduais (convênios e regulamento)
à suspensão, como fator determinante de não incidência do ICMS,
deve ser interpretada como abrangentes também da isenção simples.
Interpretação restrita implicaria em afronta à norma constitucional
e à outras normas legais hierarquicamente superiores” (folha 224).
O argumento, “data vênia”, não colhe, porque o texto constitucional se refere à não incidência do tributo e o convênio, assim como
o regulamento estadual, à isenção; aquele tem por objeto produtos
industrializados e estes, produtos que se empregarão na industrialização; a Constituição, menciona bens que saem do país; os outros
diplomas, bens que ingressam no território brasileiro.
Nada impedirá, se for o caso, que a operação que destine ao exterior
o produto industrializado, com o emprego do importado, isento do
Imposto Federal e onerado com o ICMS, se faça sem a incidência
deste último tributo” (fls. 262/266).
Como afiancei há pouco, são corretas e robustas as premissas em que
se baseou o eloquente voto-condutor, tornando, a meu ver, irrespondíveis suas conclusões.
Quanto à alegada divergência jurisprudencial, não a vejo configurada, por isso que o aresto paradigma aborda questão afeta ao instante
em que se reputa ocorrido o fato gerador do ICMS, em relação a
mercadorias importadas do exterior. Nada tem a ver com o caso “in
comento”, atinente à existência, ou não, de isenção de ICMS quando
a operação de “drawback” ocorra sob a modalidade de isenção de IPI
e Imposto de Importação.”
Corroborando este entendimento cito, ainda, o REsp 128.200/SP, rel. Min.
Humberto Gomes de Barros, cuja ementa transcrevo: “Na importação sob regime de
drawback, só há isenção do ICMS, quando ocorre a suspensão do Imposto de Importação
e do IPI. Em havendo isenção dos tributos federais”.
Conforme se verifica dos precedentes citados os insumos ingressam no país sob o
regime especial de drawback com isenção do ICMS, se os produtos oriundos dos referidos
insumos não forem exportados, fica frustrada a condição que levou a isenção, tendo
o contribuinte que pagar os impostos devidos da importação, incluindo aí o ICMS. O
REsp 223.708/SP, rel. Min. Eliana Calmon, muito bem explanou sobre o tema, inclusive
abordando tema da incidência da legislação em vigor à época da nacionalização da
mercadoria. O voto condutor do citado recurso especial foi assim redigido:
“No mérito, temos situação fática que se estriba em importação de
insumos, pelo regime do drawback, os quais seriam empregados em
produtos que seriam exportados com isenção de tributos.
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Revista da Escola da Magistratura - nº 13
Como parte dos insumos deixou de se aplicada nos produtos destinados à exportação, foi procedida a sua nacionalização, tendo a empresa pago os impostos federais de importação e IPI.
Ressalte-se que as importações, ocorreram de novembro de 1989 a
agosto de 1991, mas a nacionalização dos mesmos deu-se em 1991.
À época das importações vigia a isenção do ICMS nas operações de
drawback, entendendo a empresa que a isenção também se estendia
à nacionalização dos insumos.
A tese defendida pela empresa foi acolhida na sentença que concedeu a segurança, sob o entendimento de que, embora vigesse à época
da nacionalização dispositivo que previa a incidência do ICMS (art.
55 das Disposições Transitórias do Regulamento do ICMS - Convênio 27 de 13/09/90), quando da ocorrência do fato gerador estava em
vigor legislação que outorgava isenção.
O Tribunal de Justiça, diferentemente da sentença, entendeu que o
regime do drawback, existe o fenômeno do fato gerador pendente (art.
105, combinado com os artigos 116, II e 117, I, do CTN) e, como tal,
deve prevalecer a legislação vigente à época da nacionalização.
Daí a interposição do recurso especial da empresa.
O regime do drawback pode ser concedido sob três modalidades:
a) isenção dos impostos de importação e IPI;
b) suspensão dos impostos na importação para cobrança quando da
importação; e
c) pagamento dos impostos na importação, para ser abatido por ocasião da exportação dos produtos.
A depender da situação é que se pode estabelecer diretiva quanto à
incidência dos tributos em caso de nacionalização dos insumos não
aproveitados na fabricação dos produtos.
A jurisprudência desta Corte consolidou entendimento no sentido de
que, sob a modalidade de suspensão do imposto de importação e do
IPI, se o drawback não se consuma, não há incidência de outros impostos, porque perfeito e acabado o fato gerador. Contudo, o mesmo
ocorre caso haja apenas isenção dos tributos federais. E isto porque esta
isenção está condicionada a uma finalidade, ou seja, à reexportação do
produto que, se não ocorrer, faz desaparecer o favor fiscal.
........................................................................................................
Na hipótese dos autos, temos argumento novo, embasado na vigência da lei, para saber ser lei posterior é capaz de reger fato gerador
antecedente.
Vejamos.
Na importação dos insumos procedidos pela empresa recorrente o
drawback ocorreu sob a modalidade de suspensão, ou seja, houve o
fato gerador, houve a incidência, mas deixou-se para uma fase posterior o pagamento do imposto.
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
161
A suspensividade era temporal ou condicional? Era condicional, ou
seja, estava atrelada à exportação de produtos nos quais foram usados
os insumos.
No momento em que não se realizou a condição, consolidou-se a
incidência, retroagindo-se à data do fato gerador, de tal modo que
tudo votou à época da importação, incidindo o imposto devido ao
seu tempo.
À época não era devido o ICMS porque havia isenção deste imposto
para as mercadorias que se destinassem à fabricação ou beneficiamento de produtos para a exportação.
Verifica-se então que o ICMS não era devido porque se destinava
a um fim próprio, o que leva ao raciocínio de que devido seria se a
operação não fosse de drawback.
Como não se realizou a incorporação dos insumos e houve a nacionalização, naturalmente que caiu a razão de ser da isenção e passou
a incidir o ICMS na legislação vigente à época do fato gerador, já
agora sem a finalidade que a beneficiava com o não-pagamento da
exação estadual.
Dentro deste raciocínio, não há como acolher-se a tese de negativa
de vigência aos artigos 105 e 106 do CTN. Ao contrário, aplicou o
Fisco a legislação vigente à época do fato gerador que data de novembro de 1989 a agosto de 1991, quando era devido o ICMS nas
importações, embora isento para os insumos a serem usados em produtos para exportação.
Não há violação, na espécie, ao artigo 116, II, porque, em verdade,
o fato gerador já era ocorrido e houve a incidência quando do ingresso dos insumos no território nacional. O que ficou dispensado
foi o pagamento, por uma questão de política fiscal, finalidade que
desapareceu quando foram nacionalizados os insumos.
Com efeito, visto o artigo 117 do CTN, temos que o não-pagamento
estava subordinado a uma condição suspensiva, cujo implemento
não ocorreu.
Frustrando-se a condição voltou-se ao status quo ante, ou seja, a data
do fato gerador.”
Só há a isenção do ICMS na importação sob o regime de drawback quando ocorre
a suspensão do Imposto de Importação e do Imposto sobre Produto Industrializado.
9. CONCLUSÃO
Conseguimos neste trabalho através do cotejo dos precedentes do Superior Tribunal de Justiça conhecer como o regime aduaneiro especial de drawback é entendido
e aplicado pela Justiça brasileira. O drawback é o benefício concedido pelo Estado para
162
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
o contribuinte com o objetivo de fomentar a exportação, fazendo com que a mercadoria
que é importada com a finalidade de ser exportada após passar por beneficiamento, fique
isenta dos tributos incidentes sobre a importação.
As medidas protetivas do Dumping também se aplicam ao drawback, ou seja, a
mercadoria não pode ser importada com preço inferior ao praticado pelo país de onde
se originou a exportação, contendo assim a prática desleal no comércio internacional.
Outro ponto que foi explanado foi o momento em que a certidão de quitação de
tributos e contribuições federais (CND) pode ser exigida para que o contribuinte possa
fazer jus ao benefício fiscal, se na concessão do benefício, ou no seu reconhecimento,
ou ainda, exigir a certidão nos dois momentos. O Superior Tribunal de Justiça fixou o
entendimento que a Certidão Negativa de Débito deve ser exigida no momento da concessão do drawback, não sendo admitida a sua exigência no momento do desembaraço
aduaneiro. Isso porque o regime aduaneiro especial de drawback é operação única que
possui três momentos distintos: quando a mercadoria ingressa no território nacional,
quando sofre o beneficiamento e quando é exportada. Assim, não se pode exigir nova
documentação em cada momento, pois o fato gerador é único.
A questão da incidência da taxa de classificação de produtos vegetais quando
os referidos produtos destinarem-se a exportação foi bastante debatida pelo STJ. Sendo
analisada a evolução do tema no decorrer dos anos. O STJ entende que a citada taxa
não incide nas operações de drawback, pois o art. 1º da Lei 6.305/75 dispunha que a
classificação dos produtos vegetais, dos subprodutos e resíduos de valor econômico seria
efetuada àqueles produtos que fossem destinados a comercialização interna, o que não
era o caso do drawback. Pelo princípio da legalidade a referida taxa não poderia incidir
sobre o regime aduaneiro especial de drawback. Ocorre que a Lei 9.972/2000 revogou a
Lei 6.305/75 que era a pedra de toque para as decisões do STJ, não sendo mais exigida,
para a cobrança da classificação de produtos vegetais, que o produto seja destinado a
comercialização interna. Sendo, portanto, perfeitamente cabível a classificação dos
produtos vegetais no regime de drawback.
Outro ponto angular decidido pelo Superior Tribunal de Justiça foi a dicotomia existente entre o princípio da vinculação física e o da fungibilidade no regime de
drawback. O STJ já sinaliza no sentido de ser mitigado o princípio da vinculação física
em face do princípio da fungibilidade, pois entende que não é necessária a identidade
física do produto que é importado com o que é exportado sob o regime de drawback,
bastando a equivalência de produtos. Sendo um absurdo o Fisco exigir que um insumo
importado sob o drawback seja o mesmo a sair beneficiado. Ficando isso mais claro
quando o contribuinte compra os mesmos insumos tanto no mercado externo, quanto
no interno com o objetivo de beneficiados serem exportados, pois seria indefensável
que o contribuinte tivesse dois estoques de um mesmo produto, um nacional e o outro importado, um para ser usado na exportação sob o regime de drawback e o outro
para ser usado no beneficiamento de produto destinado ao mercado nacional. O STJ
entendeu que neste caso se os insumos fossem empregados no beneficiamento dos
produtos a serem exportados sob o regime de drawback em quantidade e qualidade
equivalentes não haveria razão para desconstituir o benefício da suspensão do tributo. Com a edição da Medida Provisória 497/2010 esse debate tende a ser pacificado,
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
163
pois a citada medida provisória aceita a substituição dos produtos, pois assevera que
para efeitos de adimplemento do compromisso de exportação nos regimes aduaneiros
suspensivos, destinados à industrialização para exportação, os produtos importados ou
adquiridos no mercado interno com suspensão do pagamento dos tributos incidentes
podem ser substituídos por outros produtos, nacionais ou importados, da mesma espécie,
qualidade e quantidade, importados ou adquiridos no mercado interno sem suspensão
do pagamento dos tributos incidentes. Claro que para se ter efetividade da substituição
referida é necessário a regulamentação dos órgão competentes e a conversão da citada
medida provisória em lei.
Quando o prazo para exportação do produto adquirido sob o regime de drawback
não é cumprido surge para o Fisco o direito de cobrar os tributos que foram suspensos
com a aplicação do regime especial. O STJ entende que a Fazenda Pública terá cinco
anos para cobrar o tributo devido a partir da data em que a mercadoria deveria ter sido
exportada. O inciso I, § 3º, do art. 752, Decreto 6.759/2009 pôs fim a controvérsia
estabelecendo que o prazo de decadência do direito ao lançamento e de sua revisão
quando se tratar do regime especial de drawback suspensão será de cinco anos, sendo
que o termo inicial será o primeiro dia do exercício seguinte ao dia imediatamente
posterior ao trigésimo dia da data limite para exportação.
No que se refere a incidência do ICMS na importação sob o regime de drawback
só há a isenção quando ocorre a suspensão do Imposto de Importação e do Imposto
sobre Produto Industrializado.
Podemos verificar que o IOF não é um tributo que faz parte da atividade de
importação ou exportação e não integra, em regra, o Termo de Compromisso, que é a
forma de constituição do crédito tributário. Observamos, também, que o fato gerador
do IOF ocorre a sua efetivação pela entrega de moeda nacional ou estrangeira, ou
de documento que a represente, ou sua colocação à disposição do interessado em
montante equivalente à moeda estrangeira ou nacional entregue ou posta à disposição por este. Portanto, o drawback não interfere na fixação do termo inicial para a
constituição do IOF, sendo irrelevante o fato gerador ocorrer no regime especial de
drawback ou fora dele.
Finalmente, verificamos que a postura do Superior Tribunal de Justiça na abordagem do Drawback deu-se de forma coerente e sistemática contribuindo de forma
decisiva na consolidação do instituto no ordenamento jurídico brasileiro.
10. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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1975.
Notas
1
XAVIER, Alberto. Do Prazo de Decadência em Matéria de “draw-back” – Suspensão. In: SCHOUERI,
Luís Eduardo (coord.). Direito tributário: homenagem a Alcides Jorge Costa. São Paulo: Quartier Latin,
2003.
2
XAVIER, Alberto. Do Prazo de Decadência em Matéria de “draw-back” – Suspensão. In: SCHOUERI,
Luís Eduardo (coord.). Direito tributário: homenagem a Alcides Jorge Costa. São Paulo: Quartier Latin,
2003.
3
XAVIER, Alberto. Do Prazo de Decadência em Matéria de “draw-back” – Suspensão. In: SCHOUERI,
Luís Eduardo (coord.). Direito tributário: homenagem a Alcides Jorge Costa. São Paulo: Quartier Latin,
2003.
—— • ——
166
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
Colisão de Direitos Fundamentais
Alessandra Lopes da Silva
Ex-aluna da Escola da Magistratura do Distrito Federal
Introdução
Os direitos fundamentais, tal qual a teoria mais contemporânea preleciona,
constituem-se como pilar do sistema constitucional. Formalizam-se, assim, como
verdadeiros vetores a todo o ordenamento jurídico que vinculam não só o Poder
Público como os próprios particulares em suas relações individuais. No entanto, dado o
caráter principiológico a eles inerente e a consequente impossibilidade de consagrações
absolutas de proteção, não rara é a ocorrência de colisão entre seus âmbitos normativos
em situações concretas.
Com efeito, a adoção da liberdade como pilar garantístico instituído pelo
ordenamento jurídico está intimamente relacionada com a imposição de limitações
aos direitos fundamentais.
Nessa toada, o plexo de direitos fundamentais salvaguardados pela Constituição
Federal faz parte de um sistema em que o objetivo central é fornecer estruturas que
viabilizem a coexistência dos interesses de vários indivíduos, os quais, se postulados sob
a égide da liberdade suprema e inatingível, reconduziriam-nos ao caos insustentável
do confronto direto e insolúvel entre os agentes sociais. Destarte, para que um direito
fundamental possa ser consagrado de maneira a viabilizar sua convivência com os direitos
de outros indivíduos é necessário verificar a gama de interesses a ele relacionados, de
maneira a adequá-los dentro do sistema jurídico constitucional.
Desse postulado podemos inferir que, de um modo geral, todo o leque de direitos
1
fundamentais é passível de limitações , as quais têm, por seu turno, o fito de proteger
2
outros bens consagrados pela Lei Fundamental . Portanto, para que o exercício de
todas as liberdades seja viável e, na medida do possível, harmônico, reflete-se no
ordenamento jurídico um cenário de liberdades limitadas. A tutela da liberdade,
nestes termos, encontra-se intimamente vinculada ao princípio da igualdade, ao
passo que confere, dentro de um quadro democrático, tratamento igual aos iguais e
3
desigual aos desiguais .
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
167
O que verificamos, assim, é que há uma íntima relação entre o Direito e a
consagração de liberdades, ao passo que o objetivo finalístico de ambos é a materialização
de um sistema constitucional coerente que possibilite a coexistência entre os indivíduos
4
pautada especialmente nos pilares da igualdade . É evidente que as trilhas ideológicas
extremas nesta matéria não nos conduzem a caminhos seguros, aliás, nem mesmo
a caminhos possíveis, dentro de uma realidade social heterogênea tal qual a que
vivenciamos hodiernamente. Sendo assim, o Direito, por si só, já poderia ser considerado como um instrumento
que, por intermédio de normas, traça um conjunto de limitações ao exercício da liberdade
para que a convivência social seja sustentável. A ideológica liberdade absoluta pregada
pelos defensores de um liberalismo exacerbado, portanto, não se sustenta dentro de
5
uma sociedade organizada e plural .
As limitações aos direitos fundamentais, nesse diapasão, constroem-se sob as
mais diversas formas, instrumentalizando-se, por vezes, no âmago do próprio texto
constitucional, por outras, por atividade legislativa e, comumente, pelo Poder Judiciário
quando da apreciação de casos concretos.
Nesse passo, os conflitos entre os âmbitos de proteção consagrados pelas cartas
constitucionais, em virtude da particular diversidade de interesses intrínsecos ao quadro
democrático e do viés principiológico que os singulariza, demonstram-se viáveis e comuns
na sociedade atual, de modo que o trabalho que ora se inicia tem como objetivo avaliar
o arcabouço teórico e jurisprudencial que envolve a colisão de direitos fundamentais,
de modo a assentar as bases dogmáticas concernentes ao tema. Tal exercício demandará
necessária passagem pelos motes principais do constitucionalismo moderno e apreciação
das teorias que visam a conferir respostas a este problema tão frequentemente vivenciado
nos sistemas constitucionais democráticos contemporâneos.
Adotaremos, destarte, como norte teórico para o tracejamento das linhas
tangentes à colisão de direitos fundamentais as lições de Robert Alexy, em sua obra
“Teoría de los derechos fundamentales”, assim como, dentre outras, as precisas lições
doutrinárias de José Joaquim Gomes Canotilho, José Carlos Vieira de Andrade e Ingo
Wolfgang Sarlet.
Objetiva-se, desta feita, dar abertura a um texto contundente, não obstante,
pontual e objetivo, acerca de um tema amplamente discutido no moderno cenário
constitucional, com a exploração pontual da jurisprudência e da doutrina nacional e
estrangeira acerca da matéria.
1. Salvaguarda dos direitos fundamentais
Os Direitos Fundamentais, conforme veremos ao analisar o fundamento
histórico de sua aparição, nascem intrinsecamente relacionados ao Estado de Direito,
o que pressupõe que o estabelecimento da ordem será ditado pelo Direito e que sua
vinculação alcançará todos os segmentos sociais e políticos. É neste sentido que os
Direitos Fundamentais, como gama inalienável de garantias constitucionais do homem,
desenvolvem papel central e indispensável no constitucionalismo moderno, ao passo
168
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
que laboram como certificação de que o funcionamento do Estado será pautado no
princípio da dignidade da pessoa humana.
1.1. Fundamento histórico dos Direitos Fundamentais
O aparecimento da expressão “Direitos Fundamentais” remonta ao ano 1770, na
França, em face do movimento que impulsionou a Declaração dos Direitos do Homem
e do Cidadão. Entretanto, se o termo possui história recente, o mesmo não se aplica
6
às suas raízes filosóficas .
A história do reconhecimento dos direitos fundamentais pode mesmo ser
considerada como marco de orientação e limitação ao exercício do poder, ao passo
que confere, através de previsão constitucional, um rol de direitos básicos inerentes ao
7
homem – especialmente pautados no princípio da dignidade humana . Neste sentido,
Ingo Wolfgang Sarlet, orientado pelos ensinamentos de Klaus Stern, sintetiza a história
dos direitos fundamentais em três etapas:
“a) uma pré-história, que se estende até o século XVI; b) uma fase intermediária, que corresponde ao período de elaboração da doutrina jusnaturalista e da afirmação dos direitos naturais do homem; c) a fase da
constitucionalização, iniciada em 1776, com as sucessivas declarações de
8
direitos dos novos Estados americanos” .
De acordo com as notas do Professor José Joaquim Gomes Canotilho, é
difícil afirmar que os direitos fundamentais já estavam presentes na Antiguidade,
notadamente por assertivas como as de Platão e de Aristóteles que reconheciam
determinados seres humanos como escravos “natos”. Entretanto, é possível observar
indícios da idéia de igualdade entre os seres humanos já com os sofistas, axioma
posteriormente lapidado pelo pensamento estoico. Contudo, os ideais de igualdade
nessa época não ultrapassaram o viés filosófico, estando mesmo longe de um
9
reconhecimento jurídico .
Já no período medieval, a Magna Charta Libertatum, de 1215, é lembrada
pelo Professor José Joaquim Gomes Canotilho como instrumento de “abertura para a
transformação dos direitos corporativos em direitos do homem”, ou seja, apesar de nesta
10
época os chamados direitos corporativos só se aplicarem a um segmento da sociedade
– primordialmente a nobreza inglesa - o mencionado instrumento viabilizou, mais tarde,
11
o reconhecimento dos mesmos a todos os cidadãos . Ademais, o advento da tolerância
religiosa é considerado por alguns, nomeadamente George Jellinek, como marco inicial
dos diretos fundamentais, ao passo que o Estado conferia aos seus cidadãos a liberdade
12
de escolher sua religião .
Seguindo o tracejo histórico, observa-se em Locke uma imensa valorização de
13
bens como a vida, a liberdade e a propriedade , porém, vistas como “liberdade no Estadosociedade, como corpos políticos indiferenciados, ao contrário das doutrinas fisiocráticas da
14
ordem natural, conducentes à concepção exclusiva de uma liberdade perante o Estado” .
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
169
Posteriormente observam-se as influências e contribuições de Rousseau, com a ideia
de que a união dos cidadãos em condição de igualdade legitima a instituição de uma
lei que garanta e balize a liberdade, e de Kant, com o reforço à imprescindibilidade do
15
direito à liberdade .
Apesar da relevante importância das declarações inglesas do século XVII,
designadamente a Pettion of Rights (1628), o Habeas Corpus Act (1679) e o Bill of
Rights (1689), as quais tiveram como papel primordial dissipar os ideais de liberdade
à generalidade dos cidadãos ingleses, estas não podem ser consideradas como marco
de positivação dos direitos fundamentais. Isto porque os direitos e liberdades ali
previstos, apesar de limitarem o poder do Rei, “não vinculavam o Parlamento, carecendo,
portanto, da necessária supremacia e estabilidade, de tal sorte que, na Inglaterra, tivemos a
fundamentalização, mas não uma constitucionalização dos direitos e liberdades individuais
16
fundamentais” .
A doutrina se divide na determinação do primeiro diploma que “constitucionalizou”
os direitos fundamentais. A disputa encontra-se entre a Declaração de Direitos do
Povo de Virgínia (1776) e a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789).
Todavia, a discussão acerca das influências que cada uma das Declarações teve sobre a
outra não é de grande importância para o estudo que ora propomos, importando mesmo
ressaltar que ambas perfilhavam os direitos fundamentais à liberdade, à propriedade, à
segurança e à resistência à opressão, como direitos de todos os homens, atribuindo-lhes
17
as características de inalienabilidade, inviolabilidade e imprescritibilidade .
A Constituição Política do Império de 25 de março de 1824, com evidentes
influências provenientes da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789,
por seu turno, inaugurou no Brasil a adoção da tutela dos chamados direitos individuais,
sendo posteriormente seguida pela Declaração de Direitos da Constituição Republicana
de 1891, a qual possuía como principais ideais “a liberdade, a segurança individual, a
propriedade, a igualdade perante a lei, a liberdade de pensamento, a liberdade de imprensa, a
18
plenitude do direito de propriedade, (e) a anterioridade da lei” .
1.2. Delimitação conceitual dos Direitos Fundamentais
Na esteira dos ensinamentos do Professor José Joaquim Gomes Canotilho, os
19
direitos fundamentais, constitucionalmente positivados , são aqueles naturais aos
20
indivíduos e dotados do caráter de inalienabilidade . Já o Professor Jorge Miranda os
define como “os direitos ou posições jurídicas activas das pessoas enquanto tais, individual ou
institucionalmente consideradas, assentes na Constituição, seja na Constituição formal, seja
21
na Constituição material” . O Professor José Carlos Vieira de Andrade, por seu turno,
entende os direitos fundamentais como “o conjunto dos preceitos normativos que definem,
22
a partir do seu lado positivo, o estatuto fundamental das pessoas na sociedade política” .
Das definições apresentadas é possível extrair um núcleo comum que, em regra,
se aplica à caracterização dos direitos fundamentais: i) são direitos inerentes ao homem;
e ii) são assegurados no texto constitucional.
Os Direitos Fundamentais são instrumento de limitação ao exercício do
poder político, dado que impossibilitam espaços ao totalitarismo, e ao mesmo tempo
170
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
são também garantias aos cidadãos de que há uma esfera de proteção que implica a
vinculação tanto das entidades públicas como das privadas. Por consequência, verificase que a instituição de Direitos Fundamentais está intimamente relacionada ao Estado
de Direito, pois pressupõe que as regras da convivência em sociedade são ditadas pela
lei, que há igualdade entre os iguais e que o regente de todo esse sistema é o Estado, o
23
qual, sublinhe-se, também está absolutamente vinculado à legalidade .
Assim, retomando as notas caracterizadoras dos Direitos Fundamentais,
observamos que estes são reconhecidos como tais quando asseguram garantias
pertinentes à natureza humana. A presença dos Direitos Fundamentais no ordenamento
jurídico possui, portanto, o fito de assegurar a dignidade da pessoa humana, sendo esta
entendida como núcleo caracterizador do homem como sujeito racional, impassível
de instrumentalização. Este é o âmago dos Direitos Fundamentais e o elemento
24
caracterizador da unidade valorativa do sistema constitucional : a proteção, a promoção
25
e o respeito das notas que caracterizam o homem .
A pessoa é, portanto, fim e não meio ou instrumento para a concessão de algo.
Não lhe é conferido preço, ela está acima de qualquer bem material. A dignidade da
pessoa, assim, não admite discriminações, é conferida a todos, homens e mulheres,
nacionais e estrangeiros e, desse modo, exige o respeito recíproco de todos em relação
26
a todos . É este o sentido da letra do art. 1° da Declaração Universal dos Direitos do
Homem: “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. Dotados
de razão e de consciência devem agir uns para os outros em espírito de fraternidade”.
A dignidade da pessoa humana ocupa, desta forma, papel central no sistema de
proteção dos direitos fundamentais e é, em verdade, consoante veremos a seguir, seu
27
fundamento . A Constituição Brasileira prevê a dignidade da pessoa humana como
princípio fundamental, ao passo que estabelece: “Art. 1º A República Federativa do Brasil,
formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se
em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: (...) III - a dignidade da pessoa
humana”.
Apesar da ressalva de possíveis divergências doutrinárias - especialmente
pela menção aos direitos fundamentais equiparados e aos sistemas que não adotam
constituições escritas - o segundo ponto caracterizador dos Direitos Fundamentais é o
fato de serem previstos nas cartas constitucionais. A análise desta questão impulsiona
a inevitável citação do postulado constante na Declaração dos Direitos do Homem e
dos Cidadãos, de 26 de agosto de 1789, onde se reconhecia que “toda sociedade na qual
a garantia dos direitos não está assegurada, nem a separação dos poderes estabelecida, carece
de Constituição”.
Daqui se infere que os direitos fundamentais devem ser assegurados pela
Constituição, e não só isso, que a presença deles na carta constitucional é fundamental
para o estabelecimento da ordem social. Com isto em foco, afirma o Professor Gomes
Canotilho: “Sem esta positivação jurídica, os <<direitos do homem são esperanças, aspirações,
ideias, impulsos, ou, até, por vezes, mera retórica política>>, mas não direitos protegidos sob
28
a forma de normas (regras e princípios) de direito constitucional” . A constitucionalização
funciona, pois, como mecanismo de vinculação a todas as estruturas públicas e privadas,
29
aqui incluindo especialmente a possibilidade de controle de constitucionalidade das leis .
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
171
Insta salientar ainda a existência consagrada em muitos textos constitucionais
dos chamados direitos fundamentais equiparados, também conhecidos na doutrina
30
por princípio da cláusula aberta, princípio da não identificação ou da não tipicidade
31
ou “norma com fattispecie aberta” . Em resumo, esse princípio expressa o juízo de que
podem existir direitos fundamentais que não estejam consagrados no texto constitucional. Ou seja, o rol constante na Lei Fundamental não é exaustivo e, portanto, podem
existir direitos fundamentais expressos em leis, normas internacionais ou até mesmo
localizados em outro espaço na Constituição que não o destinado especificamente aos
32
Direitos Fundamentais .
Desse modo, expressa a carta constitucional brasileira, nos termos do § 2° do
artigo 5°: “Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes
do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República
Federativa do Brasil seja parte”.
O que os textos constitucionais consagram ao prever o princípio da cláusula
aberta é a possibilidade de existirem direitos fundamentais em sentido material que não
o são em sentido formal, dado que não constam na letra da Carta Magna. Tal previsão
reforça o traço de flexibilidade dos textos constitucionais, abrindo portas para adaptações
no tempo, sem uma necessária alteração da norma constitucional, assim como reforça
a importância do consenso internacional sobre determinadas matérias.
A adoção desse princípio, no entanto, não representa uma contradição com
os traços conceituais relativos aos direitos fundamentais apontados acima. Apesar de
não estarem no texto da Constituição, os chamados direitos fundamentais equiparados
possuem o mesmo status daqueles que o estão, pois que contêm o mesmo cerne que
os direitos formalmente fundamentais, qual seja, a dignidade da pessoa humana. É
imperioso ressaltar que a previsão dos direitos fundamentais equiparados também
não foge à ideia da unidade da Constituição, mas, bem o contrário, parece-nos que
reforça a noção de que a dignidade da pessoa humana deve prevalecer sobre determinismos formais.
Seguindo a linha de investigação das notas que caracterizam os direitos fundamentais, vimos que estes são caracterizados por serem relativos à própria natureza do
homem. Nesta esteira, portanto, é factível afirmar que os direitos fundamentais são
considerados sinônimos dos direitos humanos, ao passo que ambos dizem respeito a
direitos característicos à natureza humana?
Efetivamente, tanto os direitos fundamentais quanto os direitos humanos
possuem a mesma nota: são referentes ao homem, tido como tal. Contudo, o grande
33
elemento diferenciador entre as duas espécies citadas é a dimensão que possuem :
34
nacional e constitucionalizada para os primeiros e internacional para os segundos .
Em relação a este aspecto pontua Ingo Wolfgang Sarlet:
“Em que pese sejam ambos os termos (“direitos humanos” e “direitos fundamentais”) comumente utilizados como sinônimos, a explicação corriqueira e, diga-se de passagem, procedente para a distinção é de que o termo “direitos fundamentais” se aplica para aqueles direitos do ser humano
reconhecidos e positivados na esfera do direito constitucional positivo de
172
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
determinado Estado, ao passo que a expressão “direitos humanos”, guardaria relação com os documentos de direito internacional, por referir-se
àquelas posições jurídicas que se reconhecem ao ser humano como tal,
independentemente de sua vinculação com determinada ordem constitucional, e que, portanto, aspiram à validade universal, para todos os povos
e tempos, de tal sorte que revelam um inequívoco caráter supranacional
35
(internacional).”
É evidente que os direitos humanos podem e, em regra, constam dos diplomas
constitucionais dos mais diversos Estados, mas é preciso registrar que não há uma relação
necessária desta previsão. Em verdade, não há uma vinculação direta dos ordenamentos
jurídicos nacionais aos direitos considerados, em plano internacional, como direitos
humanos, o que garante aos Estados, dentro dos limites de suas soberanias, liberdade
36
para dispor acerca dos direitos fundamentais .
É importante frisar, ainda, que o fato dos Direitos Fundamentais constarem na Lei
Fundamental pressupõe a ideia de que os mesmos contêm embasamento histórico. Em
outras palavras, isto significa dizer que neles estão imbuídos valores sociais adequados
ao seu tempo, e mais, que acompanham o desenvolvimento cultural, social e político da
37
comunidade em que se aplicam . Isto, evidentemente, não implica que as perspectivas
naturais e internacionais daqueles direitos considerados inerentes ao homem não sejam
importantes e até mesmo aplicáveis à ordem interna. As influências desses sobre os
38
ordenamentos jurídicos internos é cediça e indiscutível . O que se ressalta com esta
afirmação, por conseguinte, é que a noção de Direitos Fundamentais aqui considerada
será adstrita à perspectiva interna, constitucional.
Por derradeiro, ainda na esteira da lúcida explicitação de Ingo Wolfgang Sarlet,
é importante esclarecer uma outra possível classificação que, por vezes, encontra-se no
limbo da confusão conceitual acerca dos direitos fundamentais, qual seja, os direitos do
homem. Estes, de caráter eminentemente jusnaturalista, apesar de também referirem-se
a direitos inerentes à natureza humana, não estão positivados, quer no plano nacional,
39
quer no plano internacional .
1.3. Dimensões dos Direitos Fundamentais
Ultrapassada a questão conceitual, é importante mencionar, em linhas gerais, as
chamadas “gerações” ou “dimensões” dos direitos fundamentais, as quais foram sendo
reconhecidas paulatinamente ao longo da história. Frise-se, em primeira linha, que
esta segmentação não quer dizer, em nenhuma hipótese, que os direitos fundamentais
são substituíveis com o correr dos anos, muito pelo contrário, a sequência dos quadros
jurídicos nacionais tem demonstrado que os mesmos se acumulam e se fortalecem com
40
o passar dos tempos .
A doutrina clássica costuma atribuir três dimensões aos direitos fundamentais,
havendo, atualmente, quem acredite na existência de uma quarta. A primeira dimensão
é constituída por um conjunto de direitos “negativos”, ou direitos de defesa, uma vez
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
173
que, absolutamente influenciados pelos ideais liberalistas da Revolução Francesa, são
caracterizados pela não intervenção do Estado frente aos cidadãos. Portanto, aqui
estão enquadrados os direitos subjetivos das pessoas de exercerem suas liberdades sem
41
sofrerem qualquer intervenção estatal . Neste rol estão incluídos, especificamente, os
42
direitos à vida, à liberdade, à propriedade e à igualdade .
A segunda dimensão, por seu turno, é constituída pelos chamados “direitos
sociais, econômicos e culturais”. Esta “categoria” de direitos fundamentais decorrentes,
primordialmente, do desenvolvimento econômico, surgiu como forma complementar ao
ideal liberalista, para garantir efetivamente os direitos da chamada primeira dimensão.
Diferentemente, todavia, do que se viu na primeira dimensão, esta possui um caráter
positivo, ou seja, pressupõe intervenção do Estado nas relações privadas, para garantir
o equilíbrio, nomeadamente no que diz respeito àquelas constituídas com agentes
econômicos, e fornecer vias para que determinados bens jurídicos possam ser desfrutados
43
pelos cidadãos . Neste arcabouço estão incluídos o dever de agir do Estado tanto em
face de possíveis lesões por parte de terceiros como para a efetivação de meios materiais
44
que produzam o efetivo desfrute do direito .
Nos dizeres de Ingo Wolfgang Sarlet “não se cuida mais, portanto, de liberdade
45
do e perante o Estado, e sim de liberdade por intermédio do Estado” . Assim, os direitos
de segunda dimensão são individuais, entretanto, presumem uma atuação positiva,
prestativa, do Estado para garantir, por exemplo, a saúde, a educação, o trabalho, a
46
segurança, a previdência social, dentre outros .
A terceira dimensão, por outro viés, diz respeito aos direitos de participação,
que pressupõem a garantia da participação social na formação do quadro político
47
nacional . Em outras palavras, os direitos de participação conferem ao povo, detentor
primário do poder político, o direito de escolher seus representantes dentro da esfera
48
política .
Em que pese a doutrina clássica considerar apenas três dimensões de direitos
fundamentais, já existem alguns autores, nomeadamente na doutrina brasileira o
Professor Paulo Bonavides, que defendem a presença de uma quarta dimensão.
Esta, segundo o ilustre autor, seria integrada por direitos decorrentes do processo da
“globalização dos direitos fundamentais”, onde se passa a reconhecer o direito à democracia,
49
à informação e ao pluralismo .
No entanto, na visão do Professor Vieira de Andrade, a quarta dimensão dos
direitos fundamentais é caracterizada por não dispor acerca de direitos individuais,
50
mas de uma coletividade . Essa nova dimensão dos direitos fundamentais presume,
na perspectiva do referido autor, uma participação dos Estados de maneira conjunta,
51
para que um fim seja atendido . Observemos as claras palavras do Professor Vieira de
Andrade sobre o assunto:
Desde logo, desenvolve-se um novo tipo de direitos, os direitos de solidariedade, que não podem ser pensados exclusivamente na relação entre o indivíduo
e o Estado e que incluem uma dimensão essencial de deverosidade – como,
por exemplo, os direitos-deveres de protecção da natureza e de defesa do
sistema ecológico e do patrimônio cultural, e em alguns aspectos, os direitos
174
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
dos consumidores. São, na perspectiva histórica, direitos de uma quarta
categoria, visto que não são basicamente direitos de defesa, nem direitos de participação, principalmente dirigidos ao Estado, mas forma um
complexo de todos eles. São <<direitos circulares>>, com uma horizontalidade característica e uma dimensão objetiva fortíssima, que protegem
bens que, embora possam ser individualmente atribuídos e gozados, são, ao
mesmo tempo, bens comunitários que respeitam a todos – e aliás, não só a
todos os vivos, mas ainda aos elementos das gerações futuras, na medida em
52
que esteja em causa a sobrevivência da sociedade.”
Nesta nova dimensão dos direitos fundamentais, também mencionada nas lições
de Gomes Canotilho como relativa aos direitos dos povos, encontra-se o direito a um meio
ambiente saudável, à paz, ao desenvolvimento, ao patrimônio comum da humanidade,
53
à autodeterminação dos povos, à qualidade de vida etc.
A Constituição brasileira apresenta, no título relativo aos direitos fundamentais,
cinco capítulos referentes, respectivamente, a direitos e garantias fundamentais, direitos
sociais, nacionalidade, direitos políticos e partidos políticos.
1.4. Eficácia dos Direitos Fundamentais
A questão da eficácia dos direitos fundamentais parece não levantar grandes
discussões no que diz respeito à vinculação dos poderes públicos. O que sim gera
grandes discussões na doutrina é a extensão do vínculo que produz a consagração dos
direitos fundamentais nas relações entre privados. Apesar da profundidade dogmática
característica ao tema, apontaremos as linhas principais da discussão e suas consequentes
respostas para que sirvam, mais adiante neste texto, como fundamento teórico do
problema central da investigação.
1.4.1. Vinculação das entidades públicas
Partindo do pressuposto apontado acima, fica claro, como classicamente
reconhecido, que as entidades públicas estão vinculadas aos ditames constantes nos
direitos fundamentais, ao passo que estes produzem efeitos verticais nas relações
54
entre Estado-indivíduo . Ao Estado cabe, portanto, não só a salvaguarda dos
Direitos Fundamentais, mas também o dever de um comportamento positivo e um
comportamento negativo, de acordo com o bem jurídico e a situação tutelada. Em outras
palavras, ao poder público é designado o dever de respeitar as liberdades individuais,
mas também de intervir para assegurar a efetividade dos postulados constitucionais que
55
garantem uma outra série de direitos .
Por fim, insta lembrar que a referida vinculação realiza-se de maneira imediata,
direta. Em outras palavras, isso representa que as determinações relativas às entidades
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
175
públicas, nada mais fixarem-se nos textos constitucionais, já passam a produzir seus
56
efeitos, sem a necessidade de qualquer lei regulamentadora .
1.4.2. A questão da aplicabilidade dos preceitos fundamentais e a vinculação aos
particulares
No que diz respeito à aplicação dos direitos fundamentais à esfera privada,
reconhece-se, mais recentemente, sua eficácia externa - também conhecida como
horizontal - como forma de impor o cumprimento e o respeito aos ditames fundamentais
57
também nas relações entre iguais . A questão problema, entretanto, é saber se a
vinculação se dá de forma direta e imediata a partir da sua previsão constitucional
(teoria da eficácia direta), tal qual ocorre com relação ao Estado, ou de maneira indireta
e mediata, o que requer uma intervenção legislativa regulamentadora antes da efetiva
58
eficácia da norma constitucional .
Sob a ótica da aplicação direta e imediata, a vinculação dos direitos fundamentais
59
se estende aos particulares , que ficam obrigados a respeitar as determinações
constitucionais que protegem os direitos de outrem e de postular a satisfação e o respeito
de seus próprios direitos, seja em face do Estado, como tradicionalmente já admitido,
60
seja em face de seus pares . Já nos contornos da teoria da vinculação indireta e mediata
a aplicação dos direitos fundamentais estaria inevitavelmente atrelada a normas gerais
61
do direito privado .
Portanto, se admitirmos a teoria de que os direitos fundamentais possuem uma
aplicação direta nas relações privadas, estamos então pressupondo a existência de um
62
direito subjetivo fundamental do particular , o qual poderia ser invocado no caso
da ocorrência de conflitos com seus pares. Caso contrário, se nos aliarmos à teoria
da vinculação indireta ou mediata, estamos acolhendo que os direitos fundamentais
necessitam sempre do respaldo infraconstitucional para produzir qualquer efeito nas
relações individuais e que, portanto, por si só, não criam direitos e obrigações nas
relações privadas. Como veremos adiante, essa questão será de suma importância para
o entendimento dos conflitos entre direitos fundamentais. Constatando o complexo
contorno dogmático que envolve a questão, nos limitamos a apontar algumas das
múltiplas posições doutrinárias acerca do tema.
Em consonância com o entendimento do Professor Vieira de Andrade, os
particulares não são sujeitos passivos de direitos fundamentais subjetivos, a menos que
estejam perante uma relação de poder com outro particular (em regra pessoa jurídica
e, excepcionalmente, pessoa física). O que não quer dizer que os particulares estejam
desamparados da proteção constitucional que lhes é atribuída, isto porque ao Estado, ao
menos na medida do amparo à dignidade da pessoa humana, cabe o dever de proteção
perante terceiros. Vejamos suas palavras, in verbis:
“Quanto a nós, para além dos casos já referenciados em que a Constituição expressamente concebe os direitos perante privados, só deverá aceitar-se esta transposição directa dos direitos fundamentais, enquanto direitos
176
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
subjetivos, para as relações entre particulares quando se trate de situações
em que pessoas colectivas (ou excepcionalmente, indivíduos) disponham de
63
poder especial de carácter privado sobre (outros) indivíduos” .
Em contraponto, observa-se a presença de outras posições jurídicas que reconhecem a vinculação dos direitos fundamentais nas relações privadas ao menos no que
diz respeito à esfera de proteção da dignidade da pessoa humana, considerada como
64
núcleo essencial de todos os direitos fundamentais .
Por outro lado, segundo o entendimento do Professor Gomes Canotilho, a tendência atual no que tange à eficácia dos direitos fundamentais nas relações privadas é
o reconhecimento de um caminho intermediário para a equalização da problemática,
o qual permeia “soluções diferenciadas”. Em outras palavras, reconhece o ilustre autor
65
a eficácia imediata dos direitos fundamentais nas relações privadas , admitindo a pluralidade de funções que lhes são características. Em face disso, aponta a necessidade
de respostas distintas aos problemas apresentados, de acordo com as especificações
do caso concreto, levando-se em conta também, como não poderia deixar de ser, os
66
alicerces do direito privado .
Sublinhe-se, ademais, que a extensão da vinculação dos direitos fundamentais
às relações privadas encerra um ciclo jurídico-constitucional clássico onde tal eficácia era vista e aplicada somente em relação às estruturas de poder, onde os direitos
fundamentais eram vistos como instrumento de proteção do indivíduo face às forças
estatais e coibição ao exercício arbitrário do poder. Neste novo ciclo, além da clássica
função atribuída aos direitos fundamentais, estes passam a produzir efeitos também
67
sobre os particulares .
Quanto ao texto da Constituição brasileira, o § 1° do artigo 5° limita-se a expressar a aplicação imediata da integridade das normas que dizem respeito aos direitos
68
e garantias individuais . Como se vê, a Lei Fundamental brasileira restringe a aplicação
69
imediata aos direitos e garantias , no entanto, não faz qualquer menção aos sujeitos que
se encontram imediatamente vinculados às determinações constitucionais.
Não obstante, a doutrina e a jurisprudência brasileiras parecem inclinar-se à
aceitação da teoria da vinculação direta e imediata dos preceitos fundamentais às
70
relações privadas . Vejamos, outrossim, um emblemático trecho de ementa de recente
acórdão do Supremo Tribunal Federal no Recurso Extraordinário 201819/RJ, o qual,
ainda que concretamente referido a relação privada de poder, denota o entendimento
da excelsa Corte:
“EFICÁCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES PRIVADAS. As violações a direitos fundamentais não ocorrem
somente no âmbito das relações entre o cidadão e o Estado, mas igualmente nas relações travadas entre pessoas físicas e jurídicas de direito privado. Assim, os direitos fundamentais assegurados pela Constituição
vinculam diretamente não apenas os poderes públicos, estando direcionados também à proteção dos particulares em face dos poderes
privados. (...) O caráter público da atividade exercida pela sociedade e
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
177
a dependência do vínculo associativo para o exercício profissional de seus
sócios legitimam, no caso concreto, a aplicação direta dos direitos fundamentais concernentes ao devido processo legal, ao contraditório e à ampla
71
defesa (art. 5º, LIV e LV, CF/88).” . (grifos nossos)
Tais afirmações transparecem a tendência ao reconhecimento interno da
teoria que aponta à vinculação direta dos particulares aos direitos fundamentais,
nomeadamente na tutela do cunho axiológico da dignidade da pessoa humana que os
marca.
1.5. A interface entre os direitos fundamentais e o direito privado
De acordo com aquilo que foi visto no tópico anterior, é possível inferir quão
significativa é a relevância do reconhecimento dos direitos fundamentais nas sociedades
modernas. Eles estão aqui não só como instrumento de ordenação do Estado, ao passo
que limitam o exercício do poder, impedindo arbitrariedades, mas também como garantia
aos próprios cidadãos de que existe uma gama de proteção que nem mesmo seus iguais
podem lesar. Além disso, o fato de constarem nas Cartas Constitucionais eleva os direitos
fundamentais a um status de superproteção jurídica que, dada a tradicional estrutura
hierárquica característica ao ordenamento jurídico em que a Constituição se encontra
no ápice da pirâmide normativa, acarreta a inevitável subordinação de todas as esferas
sociais aos seus ditames.
Entretanto, o desenvolvimento social, econômico e jurídico trouxe consigo
maior complexidade às relações entre os indivíduos e seus pares, assim como entre eles
e as entidades públicas. Neste cenário, o Estado, para assegurar sua própria estrutura
e garantir o bem estar social, acaba por ser compelido a expandir o leque de proteção
até então característico aos direitos fundamentais.
É assim que alguns princípios, tradicionalmente ligados à esfera privada do
Direito, tendo em vista seus elevados graus de relevância, são inseridos nas Constituições
72
na qualidade de direitos fundamentais . Essa qualificação constitucional de preceitos
genuinamente privados pode levar à derrogação de leis inconstitucionais, pode criar
obrigações de legislar, assim como pode apenas salvaguardar preceitos já contidos no
73
direito privado . Foi neste sentido que a promulgação da Constituição da República
Portuguesa de 1976, a guisa de exemplo, acarretou significativa alteração no direito
privado português, primordialmente no que diz respeito ao Direito do Trabalho e ao
74
Direito de Família .
1.6. A Dignidade da pessoa humana como fundamento dos Direitos Fundamentais
A dignidade da pessoa humana pressupõe o reconhecimento do homem
como um ser livre, autônomo, impassível de qualquer ato que intencione ou tenha
75
como consequência sua instrumentalização . Destarte, o perfilhamento do princípio
da dignidade da pessoa humana por determinado ordenamento jurídico requer,
178
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
inevitavelmente, a salvaguarda de direitos fundamentais do indivíduo. Estes são os
termos que seguem as palavras do Professor Ingo Wolfgang Sarlet:
“onde não houver respeito pela vida e pela integridade física e moral do ser
humano, onde as condições mínimas para uma existência digna não forem
asseguradas, onde não houver limitação ao poder, enfim, onde a liberdade,
a autonomia, a igualdade (em direitos e dignidade) e os direitos fundamentais não forem reconhecidos e minimamente assegurados, não haverá
espaço para a dignidade da pessoa humana e esta (a pessoa), por sua vez,
76
poderá não passar de mero objeto de arbítrio e injustiças.”
Fica claro, por conseguinte, que a dignidade da pessoa humana caracteriza-se
como fonte elementar dos direitos fundamentais, ao passo que confere a estes a ideia
dos pilares de proteção da pessoa como ser racional, capaz de decidir por si mesmo
77
e usufruir de sua liberdade . Estes são, assim, os termos que fazem do princípio da
78
dignidade da pessoa humana coluna comum de todos os direitos fundamentais , ao
passo que reflete-se em todas as dimensões da vida do ser humano, seja nas relações
79
de trabalho, na vida privada ou na qualidade de cidadão .
Tanto assim o é que mesmo nas ordens constitucionais onde não há previsão
expressa relativa à dignidade da pessoa humana, mas consagra-se um rol de direitos
fundamentais, pode-se dizer que ela funciona como alicerce, na “condição de valor
80
informador de toda a ordem jurídica” . Isto porque, a dignidade da pessoa humana
manifesta-se, mesmo que em distintos graus, em todos os direitos fundamentais como
uma admissão normativa da liberdade e autonomia do homem, como valor intrínseco
à vida humana. Por consequência, a consagração destes implica a adoção da dignidade
da pessoa como fundamento do sistema constitucional.
Outrossim, observamos que a Constituição, utilizando como elemento
principiológico a dignidade da pessoa humana, deve refletir um conceito plural daquilo
que é ser e dever ser na sociedade. Nestes termos, este conceito expresso nos direitos
fundamentais e, por conseguinte, dotado de força normativa, far-se-á presente em todas
81
as esferas da vida dos indivíduos .
Insta anotar, no entanto, que os graus de concretização específicos da dignidade
da pessoa proclamados nos direitos fundamentais podem diferenciar-se e, de fato,
assim se manifestam no texto constitucional. Alguns direitos são amostras diretas
do princípio em referência, como é o caso do direito à vida, à integridade pessoal,
à liberdade e à segurança. Outros, como ocorre com o direito à segurança social e
à habitação, os quais estão sujeitos a prioridades políticas e limitados à reserva do
82
possível , possuem em seu contexto manifestações mediatas, indiretas da dignidade
da pessoa humana. Todavia, em nenhuma hipótese, nem mesmo quando expressa em
um segundo grau de intensidade, a dignidade da pessoa humana deixa de ser alicerce
83
dos direitos fundamentais .
No que diz respeito à ordem jurídico-constitucional brasileira, insta ressaltar que
o fato do legislador constituinte ter localizado topograficamente uma série de princípios
fundamentais imediatamente antes do capítulo sobre direitos fundamentais, não parece,
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
179
de maneira alguma, mera casualidade. Fica, assim, evidente a “intenção de outorgar aos
princípios fundamentais a qualidade de normas embasadoras e informativas de toda a ordem
84
constitucional” . O princípio da dignidade da pessoa humana figura, por conseguinte,
como pilar fundamental do Estado Democrático de Direito Brasileiro e reflete-se em
todos e em cada um dos direitos fundamentais.
2. Os fundamentos dogmáticos da colisão dos direitos fundamentais sob a égide do
constitucionalismo moderno
2.1. Uma visão preliminar acerca das limitações aos direitos fundamentais
A limitação aos direitos fundamentais demonstra-se como fato inerente ao
próprio sistema constitucional e mais eminente ainda quando vivenciamos uma realidade
onde a comunicação social e o desenvolvimento econômico, tecnológico e científico são
cada vez mais efêmeros e sofisticados. Se assim o é, as relações pessoais tendem a uma
maior complexidade o que, inevitavelmente, acarreta um maior número de conflitos
e, portanto, demanda um maior preparo por parte do Direito e de seus operadores no
sentido de dar acesso a soluções justas.
Desde há muito, portanto, se reconhece que a tutela do direito de um pode
acarretar lesão a direitos de terceiros. As circunstâncias fáticas que apresentam
problemas como este, por seu turno, são incontáveis e percorrem caminhos muitos
distintos, de maneira que suas resoluções também exigem respostas diferenciadas.
Ademais, as limitações aos direitos fundamentais não se reduzem a situações clássicas de
85
conflitos, percorrendo também outras esferas como é o caso dos limites imanentes , das
86
autolimitações e das restrições constitucionais imediatas e expressamente autorizadas
87
pela Constituição .
Dada a vastidão dogmática inerente à natureza do tema e observadas as limitações
próprias ao caráter do presente trabalho, destinaremos as próximas linhas ao exame dos
fundamentos dogmáticos que particularizam a teoria da colisão de direitos fundamentais
sob a égide do constitucionalismo moderno com a finalidade de identificar possíveis
vias de solução dos mesmos.
2.2. Conflitos entre Direitos Fundamentais
2.2.1. Noção conceitual introdutória
Partindo do pressuposto do reconhecimento do efeito horizontal ou
eficácia imediata dos direitos fundamentais nas relações entre privados, já avaliada
anteriormente, vislumbra-se facilmente dentro do contexto social a possibilidade de
conflitos reais entre bens jurídicos tutelados pela Lei Fundamental. De maneira que, não
raro hodiernamente, se apresentam casos em que dois titulares de direitos fundamentais
180
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
exigem a satisfação de seus respectivos direitos fundamentais, os quais se encontram
em absoluta contradição.
Entretanto, o que significa um conflito entre direitos fundamentais?
Vimos que os direitos fundamentais, assim que consagrados, produzem seus efeitos
nas relações entre os privados. Ou seja, podem ser exigidos de maneira imediata, sem
a necessidade de qualquer intervenção legislativa regulamentativa. Entretanto, não
obstante o princípio da unidade da Constituição, nem sempre a harmonia absoluta entre
todos os preceitos é factível na realidade social, o que acarreta um inevitável mundo
de conflitos entre os mesmos.
Assim é que o magistério do Professor Vieira de Andrade expressa: “haverá colisão
ou conflito sempre que se deva entender que a Constituição protege simultaneamente dois
88
valores ou bens em contradição numa determinada situação concreta (real ou hipotética)” .
Por seu turno, as lições de Gomes Canotilho, aparentemente admitindo a similitude
entre o que se entende por colisão e conflito, proclamam: “considera-se existir uma colisão
autêntica de direitos fundamentais quando o exercício de um direito fundamental por parte do
89
seu titular colide com o exercício do direito fundamental por parte de outro titular” .
Em outras palavras, detecta-se a presença de conflito quando dois titulares de
direitos igualmente consagrados pela Lei Maior, porém em choque entre si, invocam
a satisfação destes em uma situação concreta. Este é, portanto, o chamado conflito
“autêntico” entre direitos fundamentais que, na esteira das lições de Gomes Canotilho,
ocorre quando do choque direto entre direitos fundamentais, o que não obsta a
possibilidade de um conflito “em sentido impróprio”, marcado pela colisão entre um
90
direito fundamental e um bem constitucionalmente protegido .
Vale lembrar, por fim, que as referidas marcas caracterizadoras diferenciam as
circunstâncias de conflito - onde colidem direitos consagrados de dois ou mais titulares
- das situações de concorrência de direitos - onde se vislumbra a presença de vários
91
direitos referentes ao mesmo titular em uma mesma situação fática .
2.2.2. O caráter principiológico dos direitos fundamentais na base da teoria dos
conflitos
De acordo com os ensinamentos do Professor Gomes Canotilho, um modelo de
“constitucionalismo adequado” exige uma concepção da constituição como um “sistema
92
aberto de regras e princípios” . A análise da diferença entre regras e princípios, ambos
93
compreendidos como espécies do gênero norma , é de fundamental importância para
a compreensão dos direitos fundamentais e da problemática questão dos conflitos a
eles inerentes.
Assim que, partindo pela delimitação conceitual, verificamos que os princípios
representam uma norma jurídica passível de concretização que se manifesta no
ordenamento por linhas largas e carregadas de certa abstração, consequentemente,
possibilitam leituras particulares adequadas aos quadros fáticos e jurídicos apresentados
9495
nos casos concretos . As regras, por seu turno, são normas que “prescrevem
imperativamente exigência”, ou seja, determinam de maneira concreta um direito ou um
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
181
96
dever . Tal diferenciação demonstra-se fulcral quando da análise posterior que faremos
sobre os conflitos entre direitos fundamentais, pois em consonância com o que aponta
o Professor Gomes Canotilho:
“os princípios, ao constituirem exigências de optimização, permitem o balanceamento de valores e interesses (não obedecem, como as regras, à <<lógica do tudo ou nada>>) consoante o seu peso e a ponderação de outros
princípios eventualmente conflituantes; as regras não deixam espaço para
qualquer outra solução, pois se uma regra vale (tem validade) deve cumprir97
-se na exacta medida das suas prescrições, nem mais, nem menos.”
Das observações realizadas podemos inferir quão importante é o estabelecimento
de um sistema jurídico constitucional misto, entre regras e princípios. Limitá-lo
exclusivamente às regras seria o mesmo que engessá-lo, impondo uma previsão sempre
exaustiva que impediria seu desenvolvimento, para a realização de adaptações históricoculturais. Em contraponto, prever apenas princípios rechearia o sistema normativo de
inseguranças jurídicas.
Assim que princípios como a dignidade da pessoa humana, dentro do chamado
sistema normativo de regras e princípios, têm o condão de conferir certa abertura à
Constituição, de maneira a possibilitar seu desenvolvimento e facilitar a resolução de
conflitos por meio de ponderações. E mais, através de seus traços largos, fundamentar
também os postulados das regras jurídicas, conferindo unidade de sentido ao sistema
98
constitucional .
Outrossim, é importante frisar que os princípios consagram em seu âmago valores
jurídicos, como é o caso da dignidade da pessoa humana. De acordo com Alexy, valor e
princípio apenas se diferenciam pelo caráter axiológico do primeiro e deontológico do
segundo. Em outras palavras, segundo o autor, valor representa aquilo que é melhor e
99
princípio aquilo que é devido . É dizer, por conseguinte, que os princípios, ainda que
por vias largas que possibilitam diferentes graus de concretização, expressam de maneira
evidente o dever ser. No entanto, nada obsta que um princípio seja fundado em um
100
valor jurídico, aliás, a ligação entre eles se mostra reiteradamente presente . O fato
de um valor constar de um princípio fortifica seus preceitos, de maneira a conceder-lhe
101
maior vinculação jurídica .
Assim sendo, à guisa de exemplo, é possível asseverar que a dignidade da pessoa
102103
humana aparece nos sistemas constitucionais como um “princípio de valor”
responsável pela concessão de uma unidade de sentido que exalta a primeiro plano
104
a autonomia e liberdade da pessoa . É assim que, ademais, se pode afirmar que a
105
dignidade da pessoa humana funciona como alicerce de todos os direitos fundamentais ,
106
ainda que em distintos graus .
Seguindo tais pressupostos, em consonância com os já explicitados ensinamentos
de Alexy, observamos que a admissão de um conflito material entre regras é mesmo
inviável. Os conflitos entre regras somente se demonstram factíveis quanto à validade
107
das mesmas, a menos que esteja presente uma cláusula de exceção . A colisão entre
182
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
princípios, porém, funda-se no choque entre seus conteúdos, diz respeito a um problema
108
de preferência .
Portanto, podemos concluir que as soluções para o conflito entre regras e as
soluções para o conflito entre princípios serão, necessariamente, diferenciadas. Se uma
regra está em conflito com outra e se parte-se do pressuposto que o mesmo decorre da
dimensão de validade delas, então a decisão fática acerca do conflito deverá repousar
única e exclusivamente sobre esse ponto.
Neste arcabouço, a resolução de conflitos entre regras na esfera da validade
resolver-se-á de acordo com os critérios cronológico (lex posterior derogat priori),
hierárquico (lex superior derogat lex inferior) e da especialidade (lex specialis derogat
generali). Outra solução apontada por Alexy que, entretanto, parece implicar em uma
indispensável atividade legislativa, é a introdução de uma cláusula de exceção na norma,
a qual teria como função extirpar, através de uma exceção expressa, a contradição
109
vislumbrada entre as regras .
Já na esfera da colisão entre princípios, dada toda a abertura particular ao seu
próprio conceito, vislumbra-se a possibilidade, aliás, bastante comum, da ocorrência
110
de conflitos de conteúdo . Neste caso, como veremos, observadas as circunstâncias
específicas do caso concreto, realizar-se-á uma harmonização ou ponderação para a
111
concessão da decisão mais justa .
A conclusão que expressamos não quer dizer que os direitos fundamentais,
como rotineiramente encontram-se em conflito na realidade social, não possam ser
expressos por regras. Muito pelo contrário: como vimos, o sistema constitucional é
constituído por regras e princípios. No entanto, não podemos olvidar-nos que, mesmo
sendo caracterizado como um sistema misto de regras e princípios, ainda que expressos
112
por regras, os direitos fundamentais invariavelmente reconduzem-se a princípios .
Partindo desta premissa principialista acerca do sistema constitucional admite-se, por
113
conseguinte, que os direitos fundamentais consagram direitos prima facie , os quais
poderão, deste modo, sofrer limitações fundadas na harmonização ou na ponderação.
Por outro lado, se os titulares desses bens jurídicos podem pleitear sua satisfação
perante o Poder Judiciário, estamos admitindo também que estes são detentores de
direitos subjetivos, que, de acordo com as lições de Gomes Canotilho, são consagrados
“quando o titular de um direito tem, face ao seu destinatário, o <<direito>> a um determinado
114
acto, e este último tem o dever de, perante o primeiro, praticar esse acto (...)” .
Com efeito, face à presença de um direito subjetivo, cria-se uma relação jurídica
onde há, por um lado, um direito e, por outro, um dever. Assim, levando em consideração
a aplicabilidade imediata dos direitos fundamentais, o titular de um direito subjetivo
fundamental pode, por exemplo, utilizando-se da via judicial, requerer a satisfação de seu
direito em face daquele que tem o dever de respeitá-lo. Ressalte-se que, com isso, não
estamos negando que os direitos fundamentais possuam também uma fundamentação
115
objetiva , mas tão somente que os mesmos devem ser considerados “em primeira linha”
116
como direitos subjetivos .
Assim, se os direitos subjetivos são aqueles sobre os quais o seu titular tem o
direito de exigir dos demais o seu zelo e cumprimento e dado que os conflitos de direitos
fundamentais vislumbram-se quando dois de seus titulares requerem a satisfação de
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
183
seus respectivos direitos, é clara a conclusão de que se tratam estes, prima facie, de
direitos subjetivos e de que, logo, sua satisfação encontra-se sob a disponibilidade de
117
seus titulares .
2.2.3. Conflito entre direitos fundamentais e suas respectivas propostas metodológicas de solução
Para dar início à complexa análise acerca dos conflitos entre direitos
fundamentais, é indispensável recordar que toda a referida gama de possíveis conflitos
decorre dos preceitos plurais que caracterizam o Estado Democrático de Direito, os quais
apresentam-se sempre por vias principiológicas largas, para adaptarem-se às mais diversas
realidades sociais ao longo do tempo. Neste diapasão, é pacífico o entendimento na
118
doutrina de que os direitos fundamentais não são ilimitados e, tampouco, absolutos.
O que se discute é a forma com que estes limites se concretizam.
Segundo os ensinamentos de Gomes Canotilho, os conflitos podem ser
119
classificados em dois grupos muito característicos : o primeiro deles é marcado pela
presença de uma colisão direta entre direitos fundamentais, na qual se inclui, por
exemplo, o confronto entre o direito à liberdade de expressão e de comunicação face
120
o direito à honra e à imagem ; e o segundo é caracterizado pela colisão entre direitos
121
fundamentais e bens jurídicos da comunidade , como a saúde pública ou a defesa
122
nacional .
O centro da preocupação doutrinária quando se fala em conflitos entre os
direitos fundamentais gira em torno da forma com que se encontra a solução para o
choque entre os direitos. É preciso conciliar os princípios da unidade da Constituição,
da igualdade valorativa dos bens jurídico-constitucionais e da concordância prática
(sempre que possível) com os reais e constantes casos em que se vislumbra uma tensão
entre os direitos e isso, terminantemente, não é tarefa simples.
Sendo assim, para a melhor compreensão acerca dos conflitos entre os direitos
fundamentais, importante se nos faz retomar algumas questões teóricas que reconduzem
à unidade do sistema constitucional, ao princípio da harmonia ou concordância prática,
assim como ao tema da igualdade axiológica dos bens constitucionalmente tutelados e
ao sistema misto entre regras e princípios.
É assente na doutrina que as normas de Direito Constitucional, apesar das
diversidades dogmáticas que lhes são peculiares, devem ser observadas pelo intérprete
sob uma perspectiva de unidade, para conferir harmonia aos valores ali constantes. As
regras e princípios integrantes de seu âmago não podem ser observados solitariamente,
123
senão de maneira global, como parte de um todo . Observemos, assim, a lúcida e precisa
explanação apresentada na doutrina brasileira por Sérgio Cavalieri Filho:
“Essa mesma Constituição, todavia, logo no inciso X do seu art. 5º, dispõe
que ‘’são invioláveis a intimidade’’, a vida privada, a ‘’honra’’ e a imagem
das pessoas, assegurado o direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação’’. Isso evidencia que, na temática atinente
184
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
aos direitos e garantias fundamentais, esses dois princípios constitucionais se
confrontam e devem ser conciliados. É tarefa do intérprete encontrar o
ponto de equilíbrio entre princípios constitucionais em aparente conflito, porquanto, em face do ‘’princípio da unidade constitucional’’, a
Constituição não pode estar em conflito consigo mesma, não obstante
124
a diversidade de normas e princípios que contém.” (grifos nossos)
O princípio da unidade da Constituição está intimamente entrelaçado com o
princípio da harmonia das normas ali constantes. Segundo a teoria da concordância
prática, a visão do intérprete acerca das normas constitucionais deve ser de que elas
constituem uma unidade harmônica, com o fito de coordenar as situações de conflito.
Importante se faz ressalvar, todavia, que nem sempre a harmonização é vista pela
doutrina como critério razoável para a resolução de todos os casos de conflitos. Não
obstante, quando esta se demonstra factível, caberá ao intérprete a imposição de “limites
e condicionamentos recíprocos de forma a conseguir uma harmonização ou concordância
125
prática entre estes bens” . Ademais, se o que se busca é uma “concordância prática”
entre os direitos, está implícita a conclusão de que a harmonização somente se evidencia
possível com a análise do caso concreto, ao passo que requer a consideração detalhada
126
dos bens que se encontram em jogo .
Também associado aos princípios apresentados está o princípio da igualdade
valorativa dos bens jurídicos consagrados pelo texto constitucional. As normas de
Direito Constitucional, na qualidade de sistema de regras e princípios, em consonância
com o já repisado, não caracterizam um sistema fechado, ao contrário, se manifestam
por linhas largas que possibilitam que a atividade interpretativa as adequem ao tempo
127
em que se concretizam na realidade . Além disso, vislumbram-se como espaço de
conglomeração de ideias e ideais dos mais diversos segmentos sociais, políticos e
econômicos. As Constituições, desta maneira, distinguem-se pela pluralidade dogmática
– decorrente especialmente dos pilares do Estado Democrático de Direito – o que
128
acarreta a possibilidade de conflitos dos direitos ali previstos .
É assim que observamos que, apesar de compartilhar vários interesses e
justamente pelo fato de configurar-se como um sistema aberto, é que o texto
constitucional deve ser interpretado sem qualquer prevalência pré-determinada entre
os direitos ali resguardados. Isto porque “todas as normas contidas numa constituição
formal têm igual dignidade (não há normas só formais, nem hierarquia de supra-infra129
ordenação dentro da lei constitucional)” . Desse modo, não é possível alegar que
algumas regras ou princípios possuem maior importância que outros, posto que inexiste
qualquer relação de hierarquia entre eles. Observemos as precisas palavras de Gomes
Canotilho quanto ao tema:
“embora a Constituição possa ser uma <<unidade dividida>> (P. Badura) dada a diferente configuração e significado material das suas normas, isso em nada altera a igualdade hierárquica de todas as suas
regras e princípios quanto à sua validade, prevalência normativa e
130
rigidez.” (grifos nossos)
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
185
No Direito Civil, ao contrário do que verificaremos na ordem constitucional,
quando dois direitos pertencem à mesma espécie e entram em conflito seus titulares
podem ceder reciprocamente, ao ponto de chegarem a um denominador comum que
satisfaça ambas as partes. Quando os direitos pertencem a categorias distintas, a solução
é ainda mais fácil, ao passo que prevalece sempre o de maior grau hierárquico.
Entretanto, no âmbito constitucional, como vimos, não há que se falar em
hierarquia abstrata entre as normas tuteladas, de modo que a solução para o conflito entre
elas somente se vislumbra factível quando da análise das circunstâncias específicas do
131
caso concreto . A hipótese da hierarquização é absolutamente inaceitável, entretanto,
tampouco se pode falar na esfera constitucional de cessões recíprocas de parcelas dos
132
direitos que sejam aceitáveis sem quaisquer reservas como solução para os conflitos .
Ambos os direitos em conflito são garantidos pela Constituição e a ambos, abstratamente,
é conferido o direito de exercê-lo em sua integralidade.
O fato dos titulares dos direitos em jogo manifestarem a vontade de cedê-los não
significa que chegarão a uma harmonização legítima. A consecução de um denominador
comum no caso concreto de conflito, decorrente de limitações recíprocas provenientes da
manifestação da vontade de seus titulares, não quer dizer que o mesmo não lesione, por
133
exemplo, o núcleo essencial dos direitos envolvidos, o que se evidencia inadmissível .
A transação entre os direitos nos recorda o já mencionado princípio da
concordância prática ou da harmonização entre os direitos fundamentais. Observemos,
portanto, seus contornos e os critérios necessários para a sua utilização na resolução de
casos práticos de conflitos de direitos fundamentais.
A concordância prática, nos termos vistos, é um critério de solução de conflitos que
pretende a harmonização dos direitos envolvidos. Não obstante, esta não pode, a priori,
ser tomada com um “regulador automático” na solução entre todo e qualquer conflito de
134
direitos fundamentais . Faz-se indispensável, quando da utilização do referido critério,
a consideração da Constituição como uma unidade de valores não hierárquicos para que,
de acordo com as peculiaridades fáticas, se possa avaliar os direitos conflitantes e então
chegar a uma solução, sobretudo, equilibrada que salvaguarde os núcleos essenciais dos
direitos. Nem sempre, todavia, será possível encontrar esse desejado caminho harmônico
entre os direitos colidentes, o que demandará a prevalência de um deles.
Está claro dentro do que vimos até agora que não há qualquer predisposição
a uma ordem hierárquica abstrata dos direitos fundamentais, o que importa dizer que
os conflitos inevitavelmente presentes nas relações sociais serão resolvidos a partir da
análise do caso concreto. Parece evidente também que, para garantir o exercício de um
direito fundamental, por vezes, é necessário limitar outro ou outros bens de igual valor.
Não obstante, para que o resultado da análise do conflito atenda aos critérios de justiça,
será necessária a consideração das especificidades do caso concreto.
É neste contexto que a ponderação dos bens surge como a principal e mais
aceita proposta de resolução das tensões entre direitos consagrados pela Lei Maior. A
ponderação é considerada como “um modelo de verificação e tipicização da ordenação de
135
bens em concreto” ou mesmo um critério que leva o operador do direito ou o legislador
a “sopesar a fim de se decidir qual dos princípios, num caso concreto, tem maior peso ou valor”
136
. Observemos, nestes termos, as precisas lições de Robert Alexy:
186
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
“(..) esto significa que cada uno de ellos (princípios em conflito) limita la
posibilidad jurídica de cumplimiento del otro. Esta situación no es solucionada declarando que uno de ambos principios no es válido y eliminándolo
del sistema jurídico. Tampoco se la soluciona introduciendo uma excepción en uno de los principio de forma tal que en todos los casos futuros este
principio tenga que ser considerado como una regla satisfecha o no. La
solución de la colisión consiste más bien en que, teniendo en cuenta
las circunstancias del caso, se establece entre los principios una relación de precedencia condicionada. La determinación de la relación
de precedencia condicionada consiste en que, tomando en cuenta el
caso, se indican las condiciones bajo las cuales un principio precede
el outro. Bajo otras condiciones, la cuestión de la precedencia puede ser
137
solucionada inversamente.” (grifos nossos)
Esta noção recobra-nos a ideia de “hierarquia axiológica móvel”, posto que
estabelece, face cada caso, a prevalência de um direito sobre o outro e, portanto, uma
138
hierarquia específica à realidade fática apresentada . Observemos, neste diapasão, o
que expressam os ensinamentos de Vieira de Andrade:
“A questão do conflito de direitos ou de valores depende, pois, de um procedimento e de um juízo de ponderação, não dos valores em si, mas das
formas ou modos de exercício específicos (especiais) dos direitos, nas circunstâncias do caso concreto, tentando encontrar e justificar a solução
mais conforme ao conjunto dos valores constitucionais (à ordem consti139
tucional).”
Ademais, o processo de ponderação dos bens envolvidos nos conflitos, em
decorrência do caráter principiológico peculiar aos direitos fundamentais, não pode
140
afastar-se do princípio da proporcionalidade . Esclarecedoras, neste tocante, são as
colocações do Ministro Gilmar Mendes em excerto de voto proferido no Habeas Corpus
82424-2/RS, senão vejamos:
“a aplicação do princípio da proporcionalidade se dá quando verificada
restrição a determinado direito fundamental ou um conflito entre distintos
princípios constitucionais de modo a exigir que se estabeleça o peso relativo
de cada um dos direitos por meio da aplicação das máximas que integram
o mencionado princípio da proporcionalidade. São três as máximas parciais do princípio da proporcionalidade: a adequação, a necessidade e a
proporcionalidade em sentido estrito. (...) há de perquirir-se, na aplicação
do princípio da proporcionalidade, se em face do conflito entre dois bens
constitucionais contrapostos, o ato impugnado afigura-se adequado (isto
é, apto para produzir o resultado desejado), necessário (isto é, insubstituível por outro meio menos gravoso e igualmente eficaz) e proporcional
em sentido estrito (ou seja, se estabelece uma relação ponderada entre
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
187
o grau de restrição de um princípio e o grau de realização do princípio
141
contraposto).”
A teoria da fixação de pesos aos direitos fundamentais em conflito nas situações
concretas, ademais, obedece a rigorosos passos a serem observados pelo intérprete. Nessa
esteira, fundada nos ensinamentos de Alexy, pontua a doutrina brasileira:
“Alexy fala, aqui, na primeira lei da ponderação, segundo a qual quanto
maior o grau de não satisfação de um direito ou princípio, maior deve ser
a importância de satisfazer o princípio conflitante. Essa avaliação desenvolve-se em três estádios. No primeiro, busca-se estabelecer o grau de não
satisfação ou de detrimento ao princípio que tende a ser relegado no caso
concreto. No momento seguinte, afere-se a importância de satisfazer o
princípio que tende a prevalecer. No terceiro instante, apura-se se a importância de satisfazer um dos princípios justifica o prejuízo a ser carreado
142
ao outro princípio colidente.”
A realização da ponderação de bens jurídico-fundamentais deve reconduzir-se,
143
além disso, aos princípios da igualdade, da justiça e da segurança jurídica . Isto porque,
conforme ensina José Joaquim Gomes Canotilho: “a ponderação visa elaborar critérios
de ordenação para em face dos dados normativos e factuais, obter a solução mais justa para
144
o conflito de bens” .
Diante dessas explicações fica claro que, para além da ideal harmonia dos
preceitos constitucionais, muitas vezes a realidade jurídico-social pode trazer consigo
145
uma gama sem fim de conflitos que implicam a prevalência de um direito sobre o outro .
No entanto, é de se ressaltar que essa prevalência, não pode atingir o núcleo essencial
do direito preterido, de forma que no exercício de ponderação “devem-se comprimir no
146
menor grau possível os direitos em causa, preservando-se sua essência” .
A limitação do direito fundamental, decorrente do exercício inevitável da
ponderação entre os valores colidentes, trata-se, em verdade, de medida excepcional,
a ser utilizada tão somente quando da verificação de intransponível incompatibilidade,
o que não exclui a necessária atenção à proporcionalidade e à salvaguarda do núcleo
147
essencial .
Sob este prisma, fica evidente que somente as circunstâncias específicas do caso
concreto é que possibilitarão os dados fáticos necessários para a ponderação adequada
148
entre os preceitos fundamentais em conflito . Com efeito, o resultado decorrente
do exercício de ponderação entre dois direitos fundamentais conflitantes em situação
concreta não implica similares consequências em circunstância diversa, ainda que os
direitos em conflito sejam os mesmos. Portanto, o fato do direito à honra, por exemplo,
ver-se preterido face o direito à liberdade de opinião não resulta que sempre o será
149
quando em contraponto com este último .
Poder-se-á argumentar, sem embargo, que a ponderação contradiz-se com
o princípio da igualdade valorativa dos bens constitucionais, assim como com os a
ele atrelados princípios da concordância prática e até mesmo o princípio da unidade
188
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
valorativa da Constituição. Entretanto, é imperioso recordar que as circunstâncias
fáticas demonstram que a coexistência dos direitos fundamentais, por vezes, em
150
muito se distancia da harmonia . Os casos de conflitos de direitos fundamentais são
absolutamente recorrentes no ambiente social. O Direito não pode ficar alheio a este
151
fato, prendendo-se a ideologias teóricas imóveis e afastando-se das demandas sociais .
Além disso, é preciso ressaltar, para que não restem dúvidas, que ponderar não
é o mesmo que harmonizar. Seguindo as linhas do magistério de Gomes Canotilho, na
ponderação estabelecem-se “pesos” ou “valores” aos direitos em conflito, para determinar
então a prevalência de um deles. Já na harmonização, o que se impõe é a coexistência
dos direitos que se encontram em situação de colisão, o que, portanto, pressupõe uma
152
transação entre os mesmos .
Apesar da ressalva relativa aos cuidados quando da operacionalização daquilo que
se entende por harmonização dos direitos em conflito, assim como da impossibilidade
de constituição de uma ordem hierárquica abstrata entre os valores constitucionais
e o respeito à salvaguarda do núcleo essencial dos bens jurídicos protegidos, ela - a
harmonização - poderá ser utilizada como método de solução de conflitos.
Nestes termos, a despeito de não ser possível impor critérios de solução de
conflitos fixos, é preciso estabelecer um método jurídico que possibilite a concessão
de respostas a estes. O caminho apresentado pela harmonização e pela ponderação
de direitos parece conduzir-nos a uma saída justa e equilibrada. Ambos são critérios
móveis, que têm como pressuposto principal a análise do caso concreto e a busca da
melhor solução possível para o conflito.
Como vimos, a harmonização, observada por uma ótica flexível que se
enquadre às características do caso concreto e, portanto, sem transpor-nos à ideia de
hierarquização axiológica fixa e/ou abstrata, induz-nos a um processo de acordo entre
os direitos conflitantes, de maneira a possibilitar a coexistência entre eles e garantir a
unidade da Constituição.
Por outro lado, como a ponderação impõe a prevalência de um direito sobre
o outro, e, portanto, o estabelecimento de pesos que acarretam a aludida hierarquia
axiológica móvel, deve também ser entendida como método apropriado quando
imprescindível para a solução justa do problema. Contudo, somente as circunstâncias
fáticas é que nos permitirão detectar qual dos critérios se adequa melhor para a
153
consecução de uma resposta possível e justa .
Nesta esteira é que se vislumbra a ideia de utilização da ponderação de maneira
154
subsidiária à harmonização, como critério de solução de conflitos . Existem casos em
que a coexistência dos direitos demonstra-se impossível e a prevalência de um deles face
155
ao outro configura-se como saída inevitável . Logo, o que buscamos é uma alternativa
que, sobretudo, seja maleável frente às necessidades fáticas, as quais, invariavelmente,
dadas suas particularidades, demandam respostas diferenciadas. Verifiquemos, outrossim,
os ensinamentos de Gomes Canotilho acerca do tema:
“Como se deduz das considerações do texto, as normas dos direitos fundamentais são entendidas como exigências ou imperativos de optimização que
devem ser realizadas, na melhor medida possível de acordo com o contexto
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
189
jurídico e respectiva situação fáctica. Não existe, porém, um padrão ou
critério de soluções de conflitos de direitos válido em termos gerais e abstractos. A <<ponderação>> e/ou harmonização no caso concreto é,
apesar da perigosa vizinhança de posições decisionistas (F. Muller),
uma necessidade ineliminável. Isto não invalida a utilidade de critérios
metódicos abstractos que orientem, precisamente, a tarefa de ponderação
e/ou harmonização concretas: <<princípio da concordância prática>>
(Hesse); <<ideia do melhor equilíbrio possível entre os direitos coliden156
tes>> (Lerche)” (grifos nossos)
Deste modo, podemos afirmar que a análise de um caso de conflito entre direitos
fundamentais deve levar em conta as peculiaridades referentes ao caso concreto, em
que se incluem especialmente as condições e os termos que cada um dos titulares deseja
157
exercer seus respectivos direitos .
Diante desses dados fáticos, caberá ao juiz, ou mesmo ao legislador - prevendo
158
a ocorrência de casos típicos de conflito - verificar se é possível harmonizar os
bens jurídicos conflitantes com a imposição de cessões recíprocas, mesmo que não
matemáticas, ou, não sendo plausível este caminho, estabelecer pesos aos direitos e,
portanto, conferir prevalência a um deles.
Sendo assim, sempre que estivermos frente a uma colisão de bens jurídicos
constitucionalmente tutelados será necessário um trabalho fático cuidadoso por parte
daquele a quem compete solucioná-la. Ademais, recorde-se, a solução para o conflito
de direitos fundamentais pode ser resolvida, concretamente, pelo Poder Judiciário ou
mesmo pelo Poder Legislativo, ao prever abstratamente casos comuns de conflito de
159
direitos fundamentais e suas respectivas soluções .
Não obstante a resolução dos conflitos na grande maioria dos casos, dado suas
especificidades e o elevado leque de possibilidades que pode atingir, ser submetida à
análise e decisão do Poder Judiciário, a mesma também pode ocorrer abstratamente,
através de intervenção legislativa. Deste modo, situações conflituosas similares e
reiteradamente vislumbradas no convívio social podem ensejar uma intervenção
legislativa abstrata e geral que põe fim à controvérsia entre determinados direitos
160
fundamentais .
Destarte, as leis que trazem em seu bojo a resolução de um conflito devem
oferecer certa abertura, para que possam adequar-se às circunstâncias apresentadas
no caso concreto, de maneira a balizar “critérios de ponderação relevantes por intermédio
161
de cláusulas gerais ou conceitos indeterminados, a preencher pelo juiz” . Portanto, a
existência de lei que tenha como objeto a resolução de um conflito não impede que
o caso seja também submetido ao crivo do Poder Judiciário, ao qual caberá sopesar as
circunstâncias fáticas para aplicar a solução abstratamente prevista às especificidades
do caso concreto.
Desta feita, retomando as ideias de que os direitos fundamentais não são
absolutos e tampouco ilimitados, assim como que a resolução dos conflitos entre
eles requer a análise das características de cada caso concreto, ressaltamos, mais
uma vez, que não há como estabelecer um critério rígido e fixo para a solução de
190
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
conflitos. Apesar disso, a harmonização e a ponderação parecem levar-nos a um
caminho sustentável, ao passo que possuem como pressuposto a flexibilização diante
das características fáticas do caso.
Considerações finais
O Direito só existe pelo homem e para o homem - hominum causa omne ius
constitutum est. A expressão em latim, apesar dos rasgos históricos remotos que carrega,
deve ser, a cada dia, considerada como contemporânea. Isto porque traz consigo o
postulado basilar da proteção da dignidade da pessoa humana, em que o homem se
caracteriza fim e não meio ou instrumento para a consecução de algo. Não obstante
a concessão de liberdades ilimitadas não se demonstre factível em uma sociedade
complexa e plural, tal qual a que vivenciamos na atualidade, o Direito deve servir como
instrumento, pautado notadamente na igualdade e na proporcionalidade, que possibilite
a construção de alicerces jurídico-sociais equilibrados e justos.
Nesta esteira, o texto constitucional e, nomeadamente, os direitos fundamentais,
exercem papel protagonista no quadro jurídico-social, ao passo que não só asseguram
ao indivíduo a certeza de que possui um rol de liberdades e garantias mínimas a serem
respeitadas por todos - aí incluindo tanto seus pares como a figura do próprio Estado
- como determinam limitações ao exercício desses direitos tornando, assim, crível a
coexistência social.
O texto constitucional pátrio, a refletir a pluralidade inerente ao ideal
democrático, consagra diversidade de valores e interesses que, por inúmeras vezes no
mundo fático, apresentam-se em polos contrapostos. Nesse sentido é que se faz possível e
necessário asseverar que nosso sistema constitucional não acolhe consagrações absolutas
a serem salvaguardadas em qualquer hipótese, razão pela qual defende-se a conhecida
ordem axiológica móvel da constituição, de maneira a compatibilizar os interesses
tutelados às situações apresentadas nos casos concretos.
Tal quadro impõe, portanto, necessária adequação das atividades legiferante e
jurisdicional, quando da apreciação das circunstâncias fáticas de conflito, aos ditames
da razão e da justiça, que, arrazoados pela proporcionalidade e pela tutela do núcleo
essencial, deverão garantir a concretização de direitos amparados pelo constituinte,
a transpor, assim, o por vezes questionado viés simbólico de nossa carta política.
Os conflitos entre direitos fundamentais ou entre estes e bens jurídicos
comunitários são inevitáveis e cotidianos, logo, as consequentes limitações a eles
atreladas tornam-se presentes e necessárias. No entanto, esse dado não pode ser tomado
apenas e tão somente sob a égide negativa, através da qual constatamos a limitação do
âmbito de proteção de um direito fundamental. Desta feita, para que sejam consideradas
legítimas, as limitações devem forçosamente pautar-se na proteção de outro valor
constitucional, atender às imprescindíveis balizas da tutela do núcleo essencial e da
proporcionalidade, de modo que, distanciando-nos de uma mirada de cunho meramente
negativista, poderemos vislumbrá-las sempre por uma incontestável perspectiva positiva
de tutela do valor prevalente, decorrente da ponderação.
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
191
Pautados pelos nortes acima pontilhados será possível falar-se em efetiva
tutela jurisdicional e em verdadeira concretização dos direitos fundamentais,
a compor e materializar os ideais democráticos consagrados em nossa carta
constitucional.
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Notas
* Monografia apresentada como requisito para conclusão da Pós-graduação em Direito e Jurisdição da Escola
da Magistratura do Distrito Federal - Aluna: Alessandra Lopes da Silva
1
Deste modo menciona Alexy: “Restringibles son bienes iusfundamentalmente protegidos (libertades/situaciones/
posiciones de derecho ordinario) y posiciones prima facie concedidas por principios iusfundamentales”. ALEXY,
Robert. Teoria de los derechos fundamentales. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1997, p.
272.
2
Assim expressa Dworkin: “Claro que casi todos aceptan que el derecho a la libertad no es el único derecho político,
y que por conseguiente las exigencias de libertad deben verse limitadas, por ejemplo, por las restricciones
que protegen la seguridad o la propriedad de otros.” (grifos nossos). DWORKIN, Ronald. Los derechos
en serio. 2ª ed. Editorial Ariel: Barcelona, 1989, p. 380.
3
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7ª ed. Coimbra:
Almedina, 2003, pp. 426-428.
4
CATOIRA, Ana Aba. La Limitación de los Derechos en la Jurisprudencia del Tribunal Constitucional
Español. Valencia: Tirant lo blanch, 1999, pp. 71-75.
5
Assim expressam as lições do Professor Castanheira Neves: “Ao estabelecer uma ordem e ao impor um ordenamento à vida comunitária, estabelece o direito as condições objectivas mediante as quais se assegura a cada um
de nós a possibilidade de realizar a sua vida sem correr o risco de ser sacrificado ao arbítrio ou à prepotência de
outrem. É certo que se consegue este resultado limitando a acção dos outros nos mesmos termos em que limita a
ação de cada um de nós – que, portanto, o direito, ao estabelecer uma ordem eficaz, se traduz numa limitação
universal da liberdade de todos.” (grifos nossos). CASTANHEIRA NEVES, A. Curso de Introdução ao
Estudo do Direito. Coimbra, 1971-1972, p. 253.
6
LUÑO, Antonio Enrique Perez. Los Derechos Fundamentales. 8ª ed. Madrid: Tecnos, 2005, pp. 29-43.
7
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos Direitos Fundamentais. 5ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005, p. 42.
8
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos Direitos Fundamentais. Ob. cit., p. 43.
9
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7ª ed. Coimbra:
Almedina, 2003, pp. 380-381.
10
Designadamente o direito de ir e vir, o habeas corpus, o devido processo legal e a propriedade. Para mais
detalhes, conferir ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os direitos fundamentais na Constituição portuguesa de 1976. 3ªed. Coimbra: Almedina, 2004, pp. 20-25.
11
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Ob. cit., pp.
380-381.
12
SARLET,
Ingo Wolfgang. A eficácia dos Direitos Fundamentais. Ob. cit., p. 49.
13
Vejamos os comentários de Ingo Wolfgang Sarlet quanto ao assunto: “Cumpre salientar, neste contexto,
que Locke, assim como já o havia feito Hobbes, desenvolveu ainda mais a concepção contratualista de que os
homens têm o poder de organizar o Estado e a sociedade de acordo com sua razão e vontade, demonstrando que a
relação autoridade-liberdade se funda na autovinculação dos governados, lançando, assim, as bases do pensamento
individualista e do jusnaturalismo iluminista do século XVIII, que, por sua vez, desaguou no constitucionalismo e
no reconhecimento de direitos de liberdade dos indivíduos considerados como limites ao poder estatal.” SARLET,
Ingo Wolfgang. A eficácia dos Direitos Fundamentais. Ob. cit., p. 47. LUÑO, Antonio E. Perez. Los
Derechos Fundamentales. Ob. cit., p. 31.
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
195
14
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Ob. cit., p. 384.
LUÑO, Antonio E. Perez. Los Derechos Fundamentales. Ob. cit., pp. 31-32.
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos Direitos Fundamentais. Ob. cit., p. 50.
17
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos Direitos Fundamentais. Ob. cit., p. 51.
18
HORTA, Raul Machado. Direito Constitucional. 3ª ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2002, p. 216.
19
No entender de Canotilho, os direitos fundamentais só são tidos como tais se reconhecidos na Constituição.
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Ob. cit., p. 377.
20
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Ob. cit., p. 377.
21
MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. Tomo IV: Direitos Fundamentais. 3ª ed. Coimbra:
Coimbra, 2000, p. 7.
22
ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os direitos fundamentais na Constituição portuguesa de 1976. Ob.
cit., p. 74.
23
MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. Ob. cit., p. 8.
24
É assim que ao escrever sobre a unidade do sistema de direitos fundamentais baseada na dignidade da
pessoa humana, afirma o professor Jorge Miranda “O <<homem situado>> do mundo plural, conflitual e
em acelerada mutação do nosso tempo encontra-se muitas vezes dividido por interesses, solidariedades e desafios
discrepantes; só na consciência da sua dignidade pessoal retoma unidade de vida e de destino” MIRANDA, Jorge.
Manual de Direito Constitucional. Ob. cit., p. 182.
25
Neste sentido expressam os ensinamentos do Professor Vieira de Andrade que a dignidade da pessoa
humana é “princípio de valor que está na base do estatuto jurídico dos indivíduos e confere unidade de sentido
ao conjunto de preceitos relativos aos direitos fundamentais. Estes preceitos não se justificam isoladamente pela
protecção de bens jurídicos avulsos, só ganham sentido enquanto ordem que manifesta o respeito pela unidade
existencial de sentido que cada homem é para além dos seus actos e atributos.” ANDRADE, José Carlos Vieira
de. Os direitos fundamentais na Constituição portuguesa de 1976. Ob. cit., p. 101. No mesmo sentido
conferir: CARDOSO DA COSTA, José Manuel M. O princípio da Dignidade da Pessoa Humana na
Constituição e na Jurisprudência Constitucional Portuguesas. In: Estudos em Homenagem a Manuel
Gonçalves Ferreira Filho. São Paulo: Dialética, 1999, pp. 192-193.
26
MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. Ob. cit., pp. 180-195.
27
Segundo o Professor Gomes Canotilho “a dignidade da pessoa humana como base da República significa,
sem transcendências ou metafísicas, o reconhecimento do homo noumenon, ou seja, do indivíduo como limite e
fundamento do domínio político da República. Neste sentido, a República é uma organização política que serve o
homem, não é o homem que serve os aparelhos político-organizatórios.” CANOTILHO, José Joaquim Gomes.
Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Ob. cit., p. 225.
28
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Ob. cit., p. 377.
29
ALEXY, Robert. La institucionalización de los derechos humanos en el estado constitucional democrático.
In Derechos y Libertades, Año V, Enero-Junio, número 8. Madrid: Universidade Carlos III de Madrid,
2000, pp. 39-41. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição.
Ob. cit., pp. 377-378. CARDOSO DA COSTA, José Manuel M. A hierarquia das normas constitucionais e a sua função na protecção dos direitos fundamentais. In: Separata do Boletim do Ministério da
Justiça, n° 396. Lisboa, 1990, pp. 10-16. CORREIA, Fernando Alves. Os Direitos Fundamentais e a sua
protecção jurisdicional efectiva. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Vol.
LXXIX. Coimbra: 2003, pp. 65-75. MOREIRA, Vital. A “Fiscalização Concreta” no quadro do sistema
misto de justiça constitucional. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Volume Comemorativo. Coimbra, 2003, pp. 815 e ss. ANDRADE, José Carlos Vieira de. O Judiciário e os
Direitos Fundamentais Sociais. In: Palestras no centro de estudos do Tribunal de Justiça do Rio Grande
do Sul, n° 2. Porto Alegre: Centro de estudos, 2002, pp. 9-34. MENDES, Gilmar Ferreira. Jurisdição
Constitucional. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 2005.
30
ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os direitos fundamentais na Constituição portuguesa de 1976. Ob.
cit., pp. 75-79.
31
CANOTILHO,
José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Ob. cit., p. 379.
32
Ao se referir ao Direito Fundamental em sentido material pontua o Professor Jorge Miranda que se a Constituição o prevê é “porque adere a uma ordem de valores (ou ela própria encarna certos valores) que ultrapassam as
disposições dependentes da capacidade ou da vontade do legislador constituinte; é porque a enumeração constitucional,
em vez de restringir, abre para outros direitos – já existentes ou não – que não ficam à mercê do poder político, é
porque, a par dos direitos fundamentais em sentido formal, se encontram, em relação constante, direitos fundamentais
apenas em sentido material.” MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. Ob. cit., p. 12.
33
É importante mencionar, quanto à vinculação territorial que, em regra, os direitos fundamentais,
por estarem positivados nas Constituições e, portanto, por possuírem força coercitiva dentro do
15
16
196
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
território nacional, instrumentos e vias que os concretizem (como o Poder Judiciário), possuem
mais efetividade que os direitos humanos. SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos Direitos
Fundamentais. Ob. cit., p. 39.
34
Em que pese esta importante nota diferenciadora, Robert Alexy, admitindo a recepção dos direitos humanos
a nível internacional e nacional, portanto, não anotando diferenças substanciais entre direitos humanos de
fundamentais, atribui cinco características aos primeiros: universalidade, validez moral, fundamentalidade,
prioridade e abstração. Para maior aprofundamento conferir: ALEXY, Robert. La institucionalización de
los derechos humanos en el estado constitucional democrático. Ob. cit., pp. 24-31.
35
SARLET,
Ingo Wolfgang. A eficácia dos Direitos Fundamentais. Ob. cit., pp. 35-36.
36
É importante mencionar, todavia, a ponderação de Robert Alexy, ao afirmar que o ordenamento que
não segue as diretrizes de “prioridade” dos direitos humanos, está cometendo uma incorreção, seja ela
de caráter moral ou jurídico. ALEXY, Robert. La institucionalización de los derechos humanos en el
estado constitucional democrático. Ob. cit., pp. 29-30. Em relação aos direitos humanos e seus reflexos
nos ordenamentos pátrios: FREEMAN, Michael. Human Rights: An interdisciplinary approach. Cambrige:
Polity
Press, 2003, pp.131-147.
37
Esse também é o entendimento do Professor Jorge Miranda, vejamos: “precisamente por os direitos fundamentais poderem ser entendidos prima facie como direitos inerentes à própria noção de pessoa, como direitos básicos da
pessoa, como os direitos que constituem a base jurídica da vida humana no seu nível actual de dignidade, como as
bases principais da situação jurídica de cada pessoa, eles dependem das filosofias políticas, sociais e econômicas e
das circunstâncias de cada época e lugar”. MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. Ob. cit.,
p. 10.
38
Para maiores explicações acerca das perspectivas sobre as quais podem ser vistos os Direitos fundamentais,
conferir: ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os direitos fundamentais na Constituição portuguesa de
1976. Ob. cit., pp. 15-50.
39
SARLET,
Ingo Wolfgang. A eficácia dos Direitos Fundamentais. Ob. cit., pp. 36-37.
40
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos Direitos Fundamentais. Ob. cit., p. 53.
41
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Ob. cit., p. 408.
42
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos Direitos Fundamentais. Ob. cit., pp. 54-55.
43
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Ob. cit., p. 408.
44
ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os direitos fundamentais na Constituição portuguesa de 1976.
Ob. cit., p. 179.
45
Os direitos sociais, econômicos e culturais estão previstos nos artigos 58° e 79° da Constituição da República
Portuguesa.
46
Neste aspecto menciona lucidamente José Joaquim Gomes Canotilho: “Nesta perspectiva, o ‘rendimento
mínimo garantido’, as ‘prestações de assistência social básica’, o ‘subsídio de desemprego’ são verdadeiros direitos
sociais originariamente derivados da constituição sempre que eles constituam o standard mínimo de existência
indispensável à fruição de qualquer direito” CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e
Teoria da Constituição. Ob. cit., p. 518.
47
Tal preceito é representado expressamente pelo texto da Constituição Portuguesa, dentre outros, pelos
artigos 1°, 2° e 3°. O mesmo princípio reflete-se no parágrafo único do artigo 1° da Constituição brasileira.
48
ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os direitos fundamentais na Constituição portuguesa de 1976.
Ob. cit., p. 179.
49
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 13ª ed. São Paulo: Malheiros, 2003, pp. 570-572.
50
Ingo Wolfgang Sarlet salienta, todavia, que estes direitos fundamentais, em grande parte, não se encontram positivados nas Constituições, constando mais incisivamente na esfera internacional. SARLET, Ingo
Wolfgang. A eficácia dos Direitos Fundamentais. Ob. cit., pp. 57-58.
51
Esses direitos fundamentais, que tem como pilar principal a fraternidade ou a solidariedade, são identificados por Paulo Bonavides como relativos à terceira geração. Vislumbra-se, portanto, apenas uma mera
divergência quanto às nomenclaturas utilizadas pelos referidos autores para classificar determinados direitos
fundamentais, mostrando ambas as teorias resultados pragmáticos idênticos. BONAVIDES, Paulo. Curso
de Direito Constitucional. Ob. cit., pp. 569-570.
52
ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os direitos fundamentais na Constituição portuguesa de 1976.
Ob. cit., pp. 64-65.
53
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Ob. cit., pp. 386-387.
Conferir também: SARLET, Ingo Wolgang. A eficácia dos direitos fundamentais. Ob. cit., pp. 41 e ss.
54
ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os direitos fundamentais na Constituição portuguesa de 1976.
Ob. cit., pp. 145-149.
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
197
55
Aqui está incluído, especificamente, o dever de proteção perante terceiros, o qual, segundo ensina o
Professor Vieira de Andrade, “implicaria o dever de promoção e de protecção dos direitos perante quaisquer
ameaças, afim de assegurar a sua efectividade” ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os direitos fundamentais
na Constituição portuguesa de 1976. Ob. cit., p. 147. E ainda neste aspecto define o ilustre Professor
Robert Alexy: “Los derechos a protección son, pues, derechos constitucionales a que el Estado organice y maneje
el orden jurídico de una determinada manera por lo que respecta a la relación recíproca de sujetos jurídicos iguales”
ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales,
1997, p. 436.
56
Registre-se que, na esteira das explicações de José Afonso da Silva, as normas constitucionais que produzem eficácia “plena” podem ser conceituadas como “aquelas que, desde a entrada em vigor da constituição,
produzem, ou têm possibilidade de produzir, todos os efeitos essenciais, relativamente aos interesses, comportamentos e situações, que o legislador constituinte, direta e normativamente, quis regular”. SILVA, José Afonso
da. Aplicabilidade das normas constitucionais. 6ª ed. 2ª tiragem. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 101.
Quanto à questão específica da vinculação das entidades públicas aos direitos fundamentais, conferir:
ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os direitos fundamentais na Constituição portuguesa de 1976.
Ob. cit., pp. 219-244.
57
Na doutrina brasileira, conferir importantes contribuições sobre o tema em: SARMENTO, Daniel. Direitos
Fundamentais e Relações Privadas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004. SAMPAIO, Marília de Ávila e
Silva. Aplicação dos Direitos Fundamentais nas Relações entre Particulares e a Boa-fé Objetiva. Rio
de Janeiro: Lumen Juris, 2006, pp. 97-137.
58
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Ob. cit., pp.
1286-1289.
59
Frise-se que tal vinculação refere-se aos particulares de um modo geral, abrangendo, assim, tanto pessoas
físicas como jurídicas (individuais ou coletivas).
60
ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os direitos fundamentais na Constituição portuguesa de 1976.
Ob. cit., p. 146. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. MOREIRA, Vital. Constituição da República
Portuguesa Anotada. 3ª ed. Coimbra: Coimbra, 1993, pp. 147-148.
61
ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales. Ob. cit., pp. 511-515. Conferir síntese das teorias
expostas em: LUÑO, Antonio Enrique Perez. Derechos humanos, Estado de Derecho y Constitución.
9ª ed. Madrid: Tecnos, 2005, pp. 318-320.
62
Importante é mencionar a ressalva que realiza o Professor Gomes Canotilho quanto à utilização dessa
expressão: “a aplicabilidade directa não significa que as normas garantidoras de direitos, liberdades e garantias
configuram direitos subjectivos, no sentido clássico de direitos absolutos, mas, de qualquer modo, eles conferem ao
particular o direito de invocarem estas normas consagradoras de direitos e, neste sentido, se afirma que os direitos
fundamentais transportam em regra direitos subjectivos”. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Métodos de
protecção de direitos, liberdades e garantias. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de
Coimbra. Volume Comemorativo do 75° Tomo. Coimbra, 2003, p. 802.
63
ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os direitos fundamentais na Constituição portuguesa de 1976.
Ob. cit., p. 263.
64
Veja-se, neste aspecto, a alusão realizada pelo Professor Vieira de Andrade em sua obra sobre direitos
fundamentais: ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os direitos fundamentais na Constituição portuguesa
de 1976. Ob. cit., p. 266.
65
É assim que se manifesta expressamente ao afirmar que “as normas garantidoras de direitos, liberdades e
garantias são directamente aplicáveis desde que possuam suficiente determinabilidade” CANOTILHO, José
Joaquim Gomes. Métodos de protecção de direitos, liberdades e garantias. Ob. cit., p. 803. Veja-se,
também em defesa da aplicação direta dos preceitos fundamentais às relações privadas: LUÑO, Antonio
Enrique Perez. Derechos humanos, Estado de Derecho y Constitución. Ob. cit., pp. 318-320.
66
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Ob. cit., pp.
1289 e 1290. Na doutrina brasileira, seguindo a mesma orientação: SAMPAIO, Marília de Ávila e Silva.
Aplicação dos Direitos Fundamentais nas Relações entre Particulares e a Boa-fé Objetiva. Ob. cit.,
pp. 135-137.
67
Segundo explica o Professor Canotilho, a vinculação dos direitos fundamentais na esfera privada, apesar
de embrionariamente presente na Declaração dos Direitos do Homem de 1979, foi efetivamente concretizada e alicerçada no mundo jurídico com o advento da teoria liberal individualista, especialmente nas
décadas de 50 e 60 do século XX. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria
da Constituição. Ob. cit., pp. 1289 e 1290.
68
Reza o § 1° do artigo 5° da Constituição brasileira: “As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais
têm aplicação imediata”.
198
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
69
Assim expressa a doutrina: “O significado essencial dessa cláusula é ressaltar que as normas que definem direitos
fundamentais são normas de caráter preceptivo, e não meramente programático. Explicita-se, além disso, que os
dreitos fundamentais se fundam na Constituição, e não na lei – com o que se deixa claro que é a lei que deve mover-se no âmbito dos direitos fundamentais, não o contrário. Os direitos fundamentais não são meramente normas
matrizes de outras normas, mas são também, e sobretudo, normas diretamente reguladoras de relações jurídicas.
(...) Há normas constitucionais, relativas a direitos fundamentais, que, evidentemente, não são auto-aplicáveis.
Carecem da interposição do legislador para que produzam todos os seus efeitos. As normas que dispõem sobre
direitos fundamentais de índole social, usualmente, têm a sua plena eficácia condicionada a uma complementação
pelo legislador. É o que acontece, por exemplo, com o direito à educação, como disposto no art. 205 da Lei Maior,
ou com o direito ao lazer, de que cuida o art. 6º do Diploma. (...) Essas circunstâncias levam a doutrina a entrever
no art. 5º, §1°, da Constituição Federal uma norma-princípio, estabelecendo uma ordem de otimização, uma
determinação para que se confira a maior eficácia possível aos direitos fundamentais. O princípio em tela valeria
como indicador de aplicabilidade imediata da norma constitucional, devendo-se presumir a sua perfeição, quando
possível.” MENDES, Gilmar Ferreira. COELHO, Inocêncio Mártires. BRANCO, Paulo Gustavo Gonet.
Curso de Direito Constitucional. 2ª ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2008, pp. 251-253.
70
Observe-se o excerto da decisão no Recurso Especial 811608/RS, julgado pela Primeira Turma do Superior
Tribunal de Justiça em 15 de maio de 2007 e publicado no Diário de Justiça de 04 de junho de 2007. Fonte:
www.stj.gov.br: “Os direitos fundamentais, consoante a moderna diretriz da interpretação constitucional,
são dotados de eficácia imediata. A Lei Maior, no que diz com os direitos fundamentais, deixa de ser mero
repositório de promessas, carta de intenções ou recomendações; houve a conferência de direitos subjetivos ao cidadão e à coletividade, que se vêem amparados juridicamente a obter a sua efetividade, a realização em concreto
da prescrição constitucional. O princípio da aplicabilidade imediata e da plena eficácia dos direitos fundamentais
está encartado no § 1º, do art. 5º, da CF/88: As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm
aplicação imediata.” (grifos nossos). Neste sentido, ver também: SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade
da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição de 1988. 4ª ed. Porto Alegre: Livraria
do Advogado, 2006, pp. 111-112. SARMENTO, Daniel. Direitos Fundamentais e Relações Privadas.
Ob. cit., pp. 289-297. Esta parece ser também a tendência da doutrina espanhola, ao passo que afirma
Segado que “es evidente que los derechos fundamentales vinculam también a los particulares, y no sólo a los
poderes públicos” SEGADO, Francisco Fernández. La dignidad de la persona como valor supremo del
ordenamiento juridico. In: Estado & Direito: Revista semestral luso-espanhola de direito público. N°
17-18: 1996, p. 129.
71
Trecho da ementa do acórdão do Recurso Extraordinário n° 201819/RJ, de Relatoria da Ministra Ellen
Gracie, julgado pela 2° turma do Supremo Tribunal Federal, no dia 11 de outubro de 2005 e publicado
no Diário de Justiça de 27 de outubro de 2006. Fonte: www.stf.gov.br.
72 RIBEIRO, Joaquim de Sousa. Constitucionalização do direito civil. In: Boletim da Faculdade de Direito
da Universidade de Coimbra. Vol. LXXIV. Coimbra, 1998, pp. 729-730. Conferir, na doutrina brasileira,
as precisas colocações de Marília Sampaio sobre o tema: SAMPAIO, Marília de Ávila e Silva. Aplicação
dos Direitos Fundamentais nas Relações entre Particulares e a Boa-fé Objetiva. Ob. cit., pp. 83-96.
73
RIBEIRO, Joaquim de Sousa. Constitucionalização do direito civil. Ob. cit., pp. 733-741.
74
A Constituição Portuguesa de 1976 ensejou, por exemplo, ampla reforma do Código Civil em 1977. Neste
sentido, vejamos as asseverações de José Carlos Vieira de Andrade, ao dispor acerca dos direitos fundamentais dos consumidores: “A inclusão dos direitos dos consumidores no catálogo dos direitos fundamentais insere-se
num fenómemo de constitucionalização do direito privado e visa assegurar – através do direito constitucional,
em geral, e do prestígio ou da força jurídica dos direitos75fundamentais, em particular -, um grau mais elevado de
realização legislativa na protecção dos consumidores” (grifos do original) ANDRADE, José Carlos Vieira.
Os Direitos dos Consumidores como Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976.
In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Vol. LXXVIII. Coimbra, 2002, p. 62.
76
Nas palavras do Professor Cardoso da Costa, “afirmar a “dignidade da pessoa humana” é reconhecer a autonomia ética do homem, de cada homem singular e concreto, portador de uma vocação e de um destino, únicos
e irrepetíveis, de realização livre e responsável, a qual há de cumprir-se numa relação social (e de solidariedade
comunitária) assente na igualdade radical entre todos os homens – tal que nenhum deles há de ser reduzido a mero
instrumento ou servo do “outro” (seja outro homem, seja Estado)” CARDOSO DA COSTA, José Manuel M.
O princípio da Dignidade da Pessoa Humana na Constituição e na Jurisprudência Constitucional
Portuguesas. Ob. cit., p. 191-192.
77
SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição de
1988. Ob. cit., p. 59.
78
Nas palavras do Professor Jorge Miranda, “Pelo menos, de modo directo e evidente, os direitos, liberdades e
garantias pessoais e os direitos econômicos sociais e culturais têm a sua fonte ética na dignidade da pessoa, de todas
as pessoas” MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. Ob. cit., p. 181. No mesmo sentido:
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
199
SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição de
1988. Ob. cit., p. 77 e SEGADO, Francisco Fernández. La dignidad de la persona como valor supremo
del ordenamiento juridico. Ob. cit., pp. 117-118. ROSENVALD, Nelson. Dignidade humana e boa-fé
no código civil. São Paulo: Saraiva, 2005, pp. 49-52.
79
Segundo Segado “Los derechos fundamentales son inherentes a la dignidade del ser humano y, por lo mismo,
se fundan en ella y, a la par, operan como el fundamento último de toda comunidad humana, pues sin su reconocimiento querdaría conculcado esse valor supremo de la dignidad de la persona en el que ha de encontrar su
sustento toda comunidad humana civilizada” SEGADO, Francisco Fernández. La dignidad de la persona
como valor supremo del ordenamiento juridico. Ob. cit., p. 101.
80
ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os direitos fundamentais na Constituição portuguesa de 1976. Ob.
cit., p. 102. Tanto assim o é que o Supremo Tribunal Federal brasileiro reconhece, dentre muitos outros,
o direito ao nome e à ampla defesa como expressão materializada do princípio da dignidade da pessoa
humana. Vejam-se, respectivamente, as seguintes decisões: Recurso Extraordinário n° 248869/SP, julgado
pela Segunda Turma em 07 de agosto de 2003 e publicado no Diário de Justiça de 12 de março de 2003 e
Habeas Corpus 89176/PR, julgado pela Segunda Turma em 22 de agosto de 2006 e publicado no Diário de
Justiça de 22 de setembro de 2006. Fonte: www.stf.gov.br. Na jurisdição portuguesa também é corrente a
presença de casos em que se utiliza o princípio valor da dignidade da pessoa humana relacionado com um
direito específico para a tomada de uma decisão. Neste sentido encontram-se os Acórdãos n° 6/84, 16/84,
474/95, 426/91, 83/85, 40/84, 394/89, 748/93, 442/94, 443/95 e 349/91, citados pelo Professor Cardoso
da Costa. CARDOSO DA COSTA, José Manuel M. O princípio da Dignidade da Pessoa Humana na
Constituição e na Jurisprudência Constitucional Portuguesas. Ob. cit., pp. 198-199. Para uma análise
mais profunda acerca da influência do princípio da Dignidade da Pessoa Humana sobre a Jurisprudência dos
Tribunais Portugueses, conferir: PEREIRA, Marcos Keel. O lugar do Princípio da Dignidade da Pessoa
Humana na Jurisprudência dos Tribunais Portugueses: uma perspectiva metodológica. Working Paper
n° 4/2002. Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa: Lisboa, 2002.
81
SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição de
1988. Ob. cit., p. 84.
82
ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os direitos fundamentais na Constituição portuguesa de 1976. Ob.
cit., p. 106.
83
O fato de estarem limitados à reserva do possível não exime o Estado de realizar prestações mínimas, das
quais depende o indivíduo para ter uma vida digna. Observemos posicionamento que expressa o Supremo
Tribunal Federal a respeito: “Cumpre advertir, desse modo, que a cláusula da “reserva do possível” - ressalvada
a ocorrência de justo motivo objetivamente aferível - não pode ser invocada, pelo Estado, com a finalidade de
exonerar-se do cumprimento de suas obrigações constitucionais, notadamente quando, dessa conduta governamental negativa, puder resultar nulificação ou, até mesmo, aniquilação de direitos constitucionais impregnados
de um sentido de essencial fundamentalidade”. Ver neste sentido, Arguição de Descumprimento de Preceito
Fundamental n° 45/DF, Ministro Relator Celso de Mello, julgada em 29 de abril de 2004 e publicada no
Diário de Justiça de 04 de maio de 2004. Fonte: www.stf.gov.br. No mesmo sentido conferir também o
Recurso Especial 811608/RS, julgado pela Primeira Turma do Superior Tribunal de Justiça em 15 de maio
de 2007 e publicado no Diário de Justiça de 04 de junho de 2007. Fonte: www.stj.gov.br .
84
ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os direitos fundamentais na Constituição portuguesa de 1976. Ob.
cit., pp. 102-103.
85
SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição de
1988. Ob. cit., p. 61. Observe-se, ademais, que a dignidade da pessoa humana, na qualidade de princípio
fundamental da República Federativa do Brasil, aparece no texto constitucional não só como alicerce dos
direitos fundamentais, posto que prevista expressamente também nos artigos 170 (A ordem econômica,
fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna,
conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:); 226, § 7° (A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado. (...) § 7º - Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da
paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos
educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições
oficiais ou privadas.); 227 (É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com
absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura,
à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda
forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.) e 230 (A família, a sociedade e
o Estado têm o dever de amparar as pessoas idosas, assegurando sua participação na comunidade, defendendo sua
dignidade e bem-estar e garantindo-lhes o direito à vida.). Conferir, nesse sentido, as ponderações de Nelson
Rosenvald: ROSENVALD, Nelson. Dignidade humana e boa-fé no código civil. Ob. cit., pp. 34-42.
86
Para maiores detalhes sobre o tema, conferir: ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales.
Ob. cit., pp. 292-321. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. MOREIRA, Vital. Constituição da República
200
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
Portuguesa Anotada. Ob. cit., pp. 149-150. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Dogmática de Direitos
Fundamentais e Direito Privado. In: Estudos sobre Direitos Fundamentais. Coimbra: Coimbra, 2004, pp.
201-214.
87
Conferir: ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os direitos fundamentais na Constituição portuguesa de
1976. Ob. cit., pp. 330-336. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da
Constituição. Ob. cit., p. 464. NOVAIS, Jorge Reis. Renúncia a direitos fundamentais. In: Perspectivas
Constitucionais nos 20 anos da Constituição de 1976. V. 1. Organizador: MIRANDA, Jorge. Coimbra:
Coimbra, 1996.
88
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Ob. cit., pp.
450-451, 1276-1278.
89
ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os direitos fundamentais na Constituição portuguesa de 1976. Ob.
cit., p. 321.
90
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Ob. cit., p. 1270.
No mesmo sentido, conferir: LOUREIRO, João Carlos Simões Gonçalves. MACHADO, Jónatas Eduardo
Mendes. URBANO, Maria Benedita Malaquias Pires. Direito Constitucional: casos práticos resolvidos.
Coimbra: Coimbra, 1995, p. 110. MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos Fundamentais e Controle de
Constitucionalidade: estudos de direito constitucional. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 2004, pp. 77-78.
91
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Ob. cit., p. 1270.
92
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional de Conflitos e Protecção de Direitos
Fundamentais. In: Revista de Legislação e de Jurisprudência. Ano 1992-1993, n° 3814-3825. Coimbra:
Coimbra, 1993, p. 293.
93
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Ob. cit., p. 1162.
94
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Ob. cit., p. 1160.
95
Assim que o Professor Gomes Canotilho define princípios como “normas que exigem a realização de algo, da
melhor forma possível, de acordo com as possibilidades fácticas e jurídicas. Os princípios não proíbem, permitem
ou exigem algo em termos de <<tudo ou nada>>; impõem a optimização de um direito ou de um bem jurídico,
tendo em conta a <<reserva do possível>>, fáctica ou jurídica”. CANOTILHO, José Joaquim Gomes.
Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Ob. cit., p. 1255. Conferir também, em consonância
com os ensinamentos expressos por Alexy: BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. Ob.
cit., pp. 277-281. GRAU, Eros Roberto. Ensaio e Discurso sobre a interpretação/aplicação do direito.
3ª ed. São Paulo: Malheiros, 2005, pp. 180-183.
96
Nas palavras de Alexy “El hecho de que un principio se refiera a este tipo de bienes colectivos significa que ordena
la creación o mantenimiento de situaciones que satisfacen, en una medida lo más alta posible, de acuerdo
con las posibilidades jurídicas y fácticas, critérios que van más allá de la validez o satisfación de derechos
individuales” (grifos nossos). ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales. Ob. cit., p. 110.
Este também é o posicionamento de Canotilho, conferir: CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito
Constitucional e Teoria da Constituição. Ob. cit., p. 1161.
97
Vejamos, assim, os traços distintivos entre princípios e regras, apontados por Alexy: “El punto decisivo
para la distinción entre reglas y princípios es que los princípios son normas que ordenan que algo sea realizado
en la mayor medida posible, dentro de las posibilidades jurídicas y reales existentes. Por lo tanto, los princípios
son mandatos de optimización, que están caracterizados por el hecho de que pueden ser cumplidos en diferente
grado y que la medida debida de su cumplimiento no sólo depende de las posibilidades reales sino también de las
jurídicas. El ámbito de las posibilidades jurídicas es determinado por los principios y reglas opuestos. En cambio,
las reglas son normas que sólo pueden ser cumplidas o no. Si una regla es válida, entonces de hacerse exactamente
lo que ella exige, ni más ni menos. Por lo tanto, las reglas contienen determinaciones en el ámbito de lo fáctica y
jurídicamente posible. Esto significa que la diferencia entre reglas y princípios es cualitativa y no de grado. Toda
norma es o bien una regla o un principio.” ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales. Ob. cit.,
pp. 86-87. No mesmo sentido conferir: GRAU, Eros Roberto. Ensaio e Discurso sobre a interpretação/
aplicação do direito. Ob. cit., p. 183.
98
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Ob. cit., p. 1161.
99
Isto significa que o fato da dignidade da pessoa humana figurar como princípio não exclui a possibilidade
de que se reflita em regras jurídicas. ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales. Ob. cit., p.
129-135. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Ob.
cit., pp. 1162-1164.
100
Assim afirma Alexy: “La diferencia entre princípios y valores se reduce así a un punto. Lo que en el modelo
de los valores es prima facie lo mejor es, en el modelo de los princípios, prima facie debido; y lo que en el modelo
de los valores es definitivamente lo mejor es, en el modelo de los princípios, definitivamente debido. Así pues, los
princípios y los valores se diferencian sólo en virtud de su carácter deontológico y axiológico respectivamente”
ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales. Ob. cit., p. 147.
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
201
101
ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales. Ob. cit., pp. 138-139.
É assim que ao analisar a consagração da dignidade da pessoa humana como princípio da ordem jurídico
constitucional brasileira, afirma Ingo Wofgang Sarlet: “o reconhecimento da condição normativa da dignidade, assumindo feição de princípio (e até mesmo como regra) constitucional fundamental, não afasta o seu papel
como valor fundamental geral para toda a ordem jurídica (e não apenas para esta), mas pelo contrário, outorga
a este valor uma maior pretensão de eficácia e efetividade”. SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa
Humana e Direitos Fundamentais na Constituição de 1988. Ob. cit., p. 71.
103
ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os direitos fundamentais na Constituição portuguesa de 1976. Ob.
cit., p. 97.
104
De acordo com Ingo Wolfgang Sarlet, ao dispor sobre a ordem constitucional brasileira, “a qualificação da
dignidade da pessoa humana como princípio fundamental traduz a certeza de que o artigo 1°, inciso III, de nossa
Lei Fundamental não contém apenas (embora também e acima de tudo) uma declaração de conteúdo ético e moral,
mas que constitui norma jurídico-positiva dotada, em sua plenitude, de status constitucional formal e material e,
como tal, inequivocamente carregado de eficácia, alcançando, portanto – tal como sinalou Benda – condição de
valor jurídico fundamental da comunidade. Importa considerar, neste contexto, que, na sua qualidade de princípio
e valor fundamental, a dignidade da pessoa humana constitui – de acordo com a preciosa lição de Judith Martins-Costa, autêntico “valor fonte que anima e justifica a própria existência de um ordenamento jurídico”, razão pela
qual, para muito, se justifica plenamente sua caracterização como princípio constitucional de maior hierarquia
axiológico-valorativa.” SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais
na Constituição de 1988. Ob. cit., p. 70.
105
MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. Ob. cit., pp. 180-181.
106
Neste sentido afirma Segado: “es del todo oportuno afirmar que el derecho fundamental para el hombre, base y condición
de todos los demás, es el derecho a ser reconocido siempre como persona humana” SEGADO, Francisco Fernández.
La dignidad de la persona como valor supremo del ordenamiento juridico. Ob. cit., pp. 104-105.
107
ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os direitos fundamentais na Constituição portuguesa de 1976. Ob.
cit., pp. 102-103.
108
ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales. Ob. cit., pp. 86-87. Ver no mesmo sentido:
GRAU, Eros Roberto. Ensaio e Discurso sobre a interpretação/aplicação do direito. Ob. cit., pp. 180183. BARROS, Suzana de Toledo. O princípio da proporcionalidade e o controle de constitucionalidade de leis restritivas de direitos fundamentais. Brasília: Livraria e Editora Brasília Jurídica, 1996, p.
155. SHÄFER, Jairo Gilberto. Direitos Fundamentais: proteção e restrições. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2001, p. 78.
109
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional de Conflitos e Protecção de Direitos
Fundamentais. Ob. cit., p. 38.
110
Estes são os termos dos ensinamentos de Alexy, vejamos: “Si se constata la aplicabilidad de dos reglas con
consecuencias recíprocamente contradictorias en el caso concreto y esta contradicción no puede ser eliminada
mediante la introducción de uma cláusula de excepción, hay entonces que declarar inválida, por lo menos, a una
de las reglas”. ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales. Ob. cit., 1997, p. 88.
111
Vejam-se, neste arcabouço, os ensinamentos do Professor Gomes Canotilho: “em caso de conflito entre
princípios, estes podem ser objecto de ponderação e harmonização, pois eles contêm apenas <<exigências>>
ou <<standards>> que, em <<primeira linha>> (prima facie), devem ser realizados; as regras contêm
<<fixações normativas>> definitivas, sendo insustentável a validade simultânea de regras contraditórias.
Realça-se também que os princípios suscitam problemas de validade e peso (importância, ponderação, valia); as
regras colocam apenas questões de validade (se elas não são correctas dever ser alteradas)” CANOTILHO, José
Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Ob. cit., p. 1161-1162.
112
ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales. Ob. cit., pp. 89-90.
113
ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales. Ob. cit., pp. 135-138. Nas palavras do Professor
Gomes Canotilho “os princípios têm uma função nomogenética e uma função sistémica: são o fundamento
de regras jurídicas e têm uma idoneidade irradiante que lhes permite <<ligar>> ou cimentar objectivamente
todo o sistema constitucional” CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria
da Constituição. Ob. cit., p. 1162-1164. Em contraponto a esta teoria anotamos a posição do Professor
Vieira de Andrade, o qual entende que a teoria principialista dos direitos fundamentais acarreta uma
abertura demasiado larga ao método da ponderação e da harmonização, tendendo a englobar nos casos
de conflitos também os de limites imanentes e de restrições legislativas, assim que afirma: “há boas razões para proceder a uma delimitação substancial do âmbito normativo dos direitos ao nível constitucional, por
interpretação; é obrigatória a distinção entre as situações de restrição legislativa e as de solução abstracta ou
concreta, de colisões ou conflitos que envolvam direitos fundamentais, tal como se justifica a distinção categorial
das leis conformadoras” ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os direitos fundamentais na Constituição
portuguesa de 1976. Ob. cit., p. 287.
102
202
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
114
Os princípios tidos como prima facie são aqueles que “exigem que algo seja realizado ou cumprido tão optimamente quanto possível, tendo em conta as possibilidades fácticas ou jurídicas”. Por outro lado estão os direitos
definitivos, os quais possuem exigências, determinações imperativas. CANOTILHO, José Joaquim Gomes.
Direito Constitucional de Conflitos e Protecção de Direitos Fundamentais. Ob. cit., p. 38.
115
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Ob. cit., p. 1254.
Em consonância com tal definição também se encontram as lições de García de Enterría: GARCÍA DE
ENTERRÍA, Eduardo. Sobre los derechos públicos subjetivos. In: Revista Española de Derecho Administrativo. Número 6, 1975, p. 428. Ver, sobre a perspectiva subjetiva dos direitos fundamentais: ALEXY,
Robert. Teoria de los derechos fundamentales. Ob. cit., p. 173 e ss.
116
Conferir, sobre o tema, as ponderações de SARMENTO, Daniel. A dimensão objetiva dos direitos
fundamentais: fragmentos de uma teoria. In: Jurisdição constitucional e Direitos Fundamentais. Belo
Horizonte: Del Rey, 2003, pp. 251-309.
117
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Ob. cit., p. 1257.
118
Em defesa da teoria da subjetividade aponta Gomes Canotilho: “ao exigir que os direitos fundamentais sejam,
prima facie, garantidos como direitos subjectivos, tem a vantagem de apontar para o dever objectivo de o Estado
conformar a organização, procedimento e processo de efectivação dos direitos fundamentais, de modo a que o
indivíduo possa exigir algo de outrem e este tenha o dever jurídico de satisfazer esse algo.” CANOTILHO, José
Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Ob. cit., p. 1257.
119
Veja-se, neste sentido, paradigmática decisão do Supremo Tribunal Federal Brasileiro no Habeas Corpus
82424/RS, julgado pelo Tribunal Pleno em 17 de setembro de 2003 e publicado no Diário de Justiça de
19 de março de 2004. Fonte: www.stf.gov.br.
120
Tal segmentação também é adotada pela doutrina brasileira. Conferir, nesse sentido: MENDES, Gilmar
Ferreira. COELHO, Inocêncio Mártires. BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. Ob. cit., pp. 342-343.
121
Vejamos, assim, interessante colocação do Superior Tribunal de Justiça do Brasil em recente decisão: “A
responsabilidade civil decorrente de abusos perpetrados por meio da imprensa abrange a colisão de dois direitos
fundamentais: a liberdade de informação e a tutela dos direitos da personalidade (honra, imagem e vida privada).
A atividade jornalística deve ser livre para informar a sociedade acerca de fatos cotidianos de interesse público,
em observância ao princípio constitucional do Estado Democrático de Direito; contudo, o direito de informação
não é absoluto, vedando-se a divulgação de notícias falaciosas, que exponham indevidamente a intimidade ou
acarretem danos à honra e à imagem dos indivíduos, em ofensa ao princípio constitucional da dignidade da pessoa
humana. 3. No que pertine à honra, a responsabilidade pelo dano cometido através da imprensa tem lugar tão-somente ante a ocorrência deliberada de injúria, difamação e calúnia, perfazendo-se imperioso demonstrar que
o ofensor agiu com o intuito específico de agredir moralmente a vítima. Se a matéria jornalística se ateve a tecer
críticas prudentes (animus criticandi) ou a narrar fatos de interesse coletivo (animus narrandi), está sob o pálio
das “excludentes de ilicitude” (art. 27 da Lei nº 5.250/67), não se falando em responsabilização civil por ofensa à
honra, mas em exercício regular do direito de informação.” Recurso Especial n° 719592 / AL, julgado pela 4ª
Turma do Superior Tribunal de Justiça, em 12 de dezembro de 2005 e publicado no Diário de Justiça de 01
de fevereiro de 2006. No mesmo sentido conferir também o Recurso Especial n° 818764/ES, julgado pela
4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, em 15 de fevereiro de 2007 e publicado no Diário de Justiça
de 12 de março de 2007. Fonte: www.stj.gov.br.
122
Assim, apontam precisamente Gilmar Mendes, Inocêncio Coelho e Paulo Gonet Branco: “Assim, é comum
a colisão entre o direito de propriedade e interesses coletivos associados, v. g., à utilização da água ou à defesa de
um meio ambiente equilibrado. Da mesma forma, não raro surgem conflitos entre as liberdades individuais e a
segurança interna como valor constitucional.” MENDES, Gilmar Ferreira. COELHO, Inocêncio Mártires.
BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. Ob. cit., p. 343.
Para maior aprofundamento sobre os conflitos entre direitos fundamentais e bens comunitários, conferir:
NOVAIS, Jorge Reis. As Restrições de direito não expressamente autorizadas pela Constituição.
Coimbra: Coimbra, 2003. Ver também: CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional
de Conflitos e Protecção de Direitos Fundamentais. Ob. cit., pp. 294-295.
123
Apesar deste não ser espaço adequado para a discussão aprofundada acerca do tema, fica aqui registrado
que de acordo com Gomes Canotilho há uma evidente necessidade de que os bens jurídicos da comunidade
aludidos acima sejam expressos como tais no texto constitucional. Entretanto, ressalva-se a doutrina de
Jorge Reis Novais, a qual, em sentido contrário ao defendido por Gomes Canotilho, aponta que o fator
determinante para a detecção dos bens da comunidade é o seu conteúdo material e não sua inscrição
formal no texto constitucional. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria
da Constituição. Ob. cit., p. 1272. NOVAIS, Jorge Reis. As Restrições de direito não expressamente
autorizadas pela Constituição. Ob. cit., pp. 607-620.
124
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Ob. cit., pp.
1223-1224. Em relação à unidade de sentido dos direitos fundamentais, a qual lhe confere status de sistema,
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
203
alude Vieira de Andrade “podemos dizer que a ordem dos direitos fundamentais é pluralista e aberta. A unidade
é conseguida e construída dialecticamente, em referência ao princípio da dignidade da pessoa humana, que aqui
actua como <<princípio regulativo>> e não como princípio unicitário de uma ordem hierárquica e fechada”:
ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os direitos fundamentais na Constituição portuguesa de 1976.
Ob. cit., p. 108.
125
FILHO, Sérgio Cavalieri. Programa de Responsabilidade Civil. 6ª ed. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 129.
126
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Ob. cit., p. 1225.
127
Vejamos in verbis as explicações do Professor Vieira de Andrade acerca do assunto “Esta pluralidade de valores
reclama uma harmonização que não se consegue através da mera aplicação de uma escala de prioridades. (...) A
harmonização entre os valores não é, portanto, alcançável em abstrato, <<a priori>>, é um problema que tem
de ser resolvido em concreto e de modo a respeitar, no máximo possível, todos os valores em jogo” ANDRADE,
José Carlos Vieira de. Os direitos fundamentais na Constituição portuguesa de 1976. Ob. cit., p. 108.
128
Quanto à adequação da Constituição ao seu tempo, conferir: HESSE, Konrad. La fuerza normativa de la
constitución. In: Escritos de Derecho Constitucional. 2ª ed. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales,
1992, p. 71. No que tange à consideração da Constituição como ordem pluralista, aberta e, portanto,
não hierárquica, ver: ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os direitos fundamentais na Constituição
portuguesa de 1976. Ob. cit., pp. 106-108.
129
ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os direitos fundamentais na Constituição portuguesa de 1976.
Ob. cit., pp. 105-106.
130
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Ob. cit., p. 1183.
Ver também: CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional de Conflitos e Protecção de
Direitos Fundamentais. Ob. cit., p. 294.
131
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Ob. cit., p. 1184.
132
Assim expressam as palavras do Professor Vieira de Andrade: “a ordem dos valores constitucionais não é
hierárquica e não permite, por isso, soluções abstractas conforme as eventuais patentes a que se promovam os
diversos direitos fundamentais” ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os direitos fundamentais na Constituição portuguesa de 1976. Ob. cit., p. 324. Ver também, na doutrina brasileira, as colocações de Luis
Roberto Barroso: BARROSO, Luís Roberto. Conflitos entre direitos fundamentais. In: Lições de Direito
Constitucional em Homenagem ao Jurista Celso Bastos. Coordenadores: MARTINS, Ives Gandra da Silva,
MENDES, Gilmar Ferreira e TAVARES, André Ramos. São Paulo: Saraiva, 2005, pp. 329-333.
133
As “limitações voluntárias” de determinados direitos fundamentais, de acordo com as lições de Gomes Canotilho, são aceitáveis apenas sob certas condições, conferir neste sentido: CANOTILHO, José Joaquim
Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Ob. cit., p. 464.
134
Conferir, quanto à proteção da dignidade da pessoa humana, na qualidade de limite à imposição de restrições aos direitos fundamentais: SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos
Fundamentais na Constituição de 1988. Ob. cit., pp. 110-141.
135
ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os direitos fundamentais na Constituição portuguesa de 1976. Ob.
cit., p. 323-327.
136
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Ob. cit., p. 1239.
137
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Ob. cit., p. 1241.
138
ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales. Ob. cit., pp. 91-92.
139
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Ob. cit., p. 1241.
140
ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os direitos fundamentais na Constituição portuguesa de 1976. Ob.
cit., p. 326.
141
Conferir sobre a utilização do princípio da proporcionalidade na análise dos conflitos: ALEXY, Robert.
Teoria de los derechos fundamentales. Ob. cit., pp. 111-115. ALEXY, Robert. Colisão de direitos
fundamentais e realização de direito fundamentais no estado democrático de direito. In: Revista de
Direito Administrativo. Rio de Janeiro: vol. 217, junho/julho de 1999, pp. 77-78. BARROS, Suzana de
Toledo. O princípio da proporcionalidade e o controle de constitucionalidade de leis restritivas de
direitos fundamentais. Ob. cit., p. 155. CARDOSO DA COSTA, José Manuel M. A hierarquia das
normas constitucionais e a sua função na protecção dos direitos fundamentais. Ob. cit., p. 17-18.
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Ob. cit., p. 1258.
MENDES, Gilmar Ferreira. COELHO, Inocêncio Mártires. BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de
Direito Constitucional. Ob. cit., pp. 285-286 e 346. SARMENTO, Daniel. A Ponderação de Interesses
na Constituição Federal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002, p. 96. ROSENVALD, Nelson. Dignidade
humana e boa-fé no código civil. Ob. cit., pp. 52-54.
142
Trecho de voto vista do Ministro Gilmar Ferreira Mendes, proferido no julgamento do HC 82424-2/RS
pelo Supremo Tribunal Federal. Relator originário: Min. Moreira Alves. Relator do acórdão: Min. Maurício
Corrêa. Fonte: www.stf.gov.br.
204
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
143
MENDES, Gilmar Ferreira. COELHO, Inocêncio Mártires. BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de
Direito Constitucional. Ob. cit., pp. 285-286.
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Ob. cit., p. 1240.
145
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Ob. cit., p. 1237.
146
Observe-se,
neste aspecto, as lapidadas palavras de Wilson Antônio Steinmetz: “Abstratamente, esses
direitos mantêm entre si e com outros bens constitucionalmente protegidos uma relação de harmonia. Porque são
atribuídos por normas constitucionais, não há entre eles ordenação hierárquica e nem exclusão a priori. Contudo,
na vida social, seja nas relações individuais, seja nas relações entre indivíduo e poderes públicos da comunidade,
nem sempre se verifica a realização plena, harmônica e simultânea dos direitos fundamentais de diferentes titulares”.
STEINMETZ, Wilson Antônio. Colisão de Direitos Fundamentais e princípio da proporcionalidade.
Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p.20.
147
MENDES, Gilmar Ferreira. COELHO, Inocêncio Mártires. BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de
Direito Constitucional. Ob. cit., p. 285.
148
MENDES, Gilmar Ferreira. COELHO, Inocêncio Mártires. BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de
Direito Constitucional. Ob. cit., pp. 345-346.
149
Neste sentido alude o Professor Vieira de Andrade: “Ora, a realização óptima das prescrições constitucionais
depende da intensidade ou modo como os direitos são afectados no caso concreto, atentos o seu conteúdo e a sua
função específica. Isto é, a medida em que se vai comprimir cada um dos direitos (ou valores) é diferente, consoante
o modo como se apresentam e as alternativas possíveis de solução do conflito” ANDRADE, José Carlos Vieira
de. Os direitos fundamentais na Constituição portuguesa de 1976. Ob. cit., pp. 324 e 322-323.
150
Vejamos, desta feita, as pontuações específicas quanto à hipótese de Gilmar Mendes, Inocêncio Coelho
e Paulo Gonet Branco: “Uma matéria jornalística, por exemplo, sobre a vida de alguém pode pôr em linha de
atrito o direito de liberdade de expressão e a pretensão à privacidade do retratado. Considerados em abstrato,
ambos os direitos são acolhidos pelo constituinte como direitos fundamentais. A incidência de ambos no caso
cogitado, porém, leva a conclusões contraditórias entre si. Para solucionar o conflito, hão de se considerar as
circunstâncias do caso concreto, pesando-se os interesses em conflito, no intuito de estabelecer que princípio há
de prevalecer, naquelas condições específicas, segundo um critério de justiça prática. Assim, se um indivíduo
tem uma vida pública ativa, será mais provável que uma reportagem envolvendo aspectos da sua vida particular
venha a ser prestigiada, conferindo preponderância à liberdade de imprensa sobre o direito à privacidade. Isso
não se deverá a uma recusa do direito à privacidade à personalidade pública, mas atenderá à ponderação de
que, se o retratado vive do crédito público, da imagem que ostenta, a sociedade tem o direito de saber se a sua
vida pessoal corresponde ao que pretende fazer crer. Já a revelação de dados íntimos de pessoa que não depende
profissionalmente da imagem pública e que não está no centro de um acontecimento socialmente relevante, tende
a não justificar a interferência da imprensa sobre a sua privacidade.” MENDES, Gilmar Ferreira. COELHO,
Inocêncio Mártires. BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. Ob. cit., pp.
284-285.
151
Observe-se, assim, o que expressam as lições de Gomes Canotilho ao analisar os conflitos entre princípios:
“Considerar a constituição como uma ordem ou sistema de ordenação totalmente fechado e harmonizante significa
esquecer, desde logo, que ela é, muitas vezes, o resultado de um compromisso entre vários actores sociais, transportadores de ideias, aspirações e interesses substancialmente diferenciados e até antagónicos ou contraditórios”
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Ob. cit., p. 1282.
152
Anotamos, nestes termos, as observações do Professor Vieira de Andrade em relação à necessidade da
adoção do critério de ponderação para a resolução dos conflitos entre direitos fundamentais: “Uma das
limitações substanciais à protecção estadual de direitos fundamentais é justamente imposta pelos direitos dos
outros, em particular pelos seus direitos e liberdade fundamentais: assim, quando a protecção dos direitos de
uma pessoa possa pôr em causa a esfera jurídica de terceiros, exige-se que essa protecção seja medida
por uma ponderação dos bens ou valores em presença e que respeite o princípio da proporcionalidade,
nos termos gerais válidos para as situações de colisão ou de conflito. E limitações e imposições semelhantes
hão-de valer quando estejam em causa valores comunitários relevantes (incluindo também a liberdade geral) que
ao Estado cumpre assegurar” (grifos nossos) ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os direitos fundamentais
na Constituição portuguesa de 1976. Ob. cit., p. 149.
153
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Ob. cit., p. 1241.
154
Quanto a este aspecto, vejamos interessante ponderação de José Joaquim Gomes Canotilho, na análise de
um caso concreto alemão de conflito de direitos fundamentais: “Não é possível metodologicamente estabelecer, de forma abstracta, esquemas de supra/infra-ordenação entre os direitos conflitantes dizendo que o direito
à informação ‘pesa’ mais de que o direito à ressocialização, ou, vice-versa, afirmar que este último se sobrepõe ao
primeiro. É necessário um esquema de prevalência parcial estabelecido segundo a ponderação dos bens em conflito
e tendo em conta as circunstâncias do caso.”. Mais adiante continua o autor: “Excluem-se, por conseguinte,
relações de preferências prima facie, pois nenhum bem é, prima facie, quer excluído porque se afigura excessivamente
144
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
205
débil, quer privilegiado porque, prima facie, se afigura com valor ‘reforçado’ ou até absoluto.” CANOTILHO,
José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Ob. cit., pp. 1238 e 1240.
Este também parece ser o entendimento do Professor Gomes Canotilho, o qual demonstra-se no seguinte
excerto: “Os exemplos anteriores apontam para a necessidade de as regras do direito constitucional de conflitos
deverem construir-se com base na harmonização de direitos, e, no caso de isso ser necessário, na prevalência (ou
relação de prevalência) de um direito ou bem em relação a outro” CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito
Constitucional e Teoria da Constituição. Ob. cit., p. 1274.
156
Veja-se como exemplo o caso citado pelo Professor Gomes Canotilho em que em se vislumbrou a afronta do
direito/dever do Estado de prossecução da ação penal, com o respectivo julgamento em audiência pública
de um indivíduo, e o direito à vida deste último. Neste caso específico ficou comprovado por relatórios
médicos que o problema cardíaco do acusado poderia levá-lo à morte caso fosse submetido à sessão de
julgamento público o que impulsionou o adiamento da mesma. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Ob. cit., p. 1238. O referido caso também é mencionado
por Robert Alexy (BVerGE 51, 324): ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales. Ob. cit.,
pp. 90-95.
157
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Ob. cit., pp.
1274-1275.
158
Conferir: ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os direitos fundamentais na Constituição portuguesa de
1976. Ob. cit., pp. 329-330. MENDES, Gilmar Ferreira. COELHO, Inocêncio Mártires. BRANCO, Paulo
Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. Ob. cit., p. 346.
159
Sobre o controle judicial das leis que solucionam conflitos, conferir: CARDOSO DA COSTA, José Manuel
M. A hierarquia das normas constitucionais e a sua função na protecção dos direitos fundamentais.
Ob. cit., p. 16-18.
160
Wilson Antônio Steinmetz, pautado na doutrina espanhola, argumenta que não se encontra dentro das
competências do Poder Executivo estabelecer, através de seus atos normativos, regras de resolução de
conflitos de direitos fundamentais. STEINMETZ, Wilson Antônio. Colisão de Direitos Fundamentais
e princípio da proporcionalidade. Ob. cit., pp. 71-74.
161
O Professor Vieira de Andrade denomina as referidas leis como “leis harmonizadoras”, apontando que as
mesmas não se confundem com as leis restritivas, pois enquanto às primeiras cabe o papel de conferir
abstrata e genericamente respostas a conflitos de direitos fundamentais, as segundas têm o fito específico
de, através de autorização expressa concedida pela Lei Maior, estabelecer restrições aos direitos fundamentais. ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os direitos fundamentais na Constituição portuguesa de
1976. Ob. cit., pp. 231-232 e 321.
162
ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os direitos fundamentais na Constituição portuguesa de 1976.
Ob. cit., p. 329.
155
—— • ——
206
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
O Contrato e o Tempo:
um Suposto Embate
Principiológico
Rui Eduardo Silva de Oliveira Pamplona
Advogado e ex-aluno da ESMA-DF
RESUMO
O presente artigo busca apontar que a composição principiológica da relação
contratual privada contemporânea se dá fundada em um bloco único de princípios,
a retratar uma integração entre os postulados decorrentes do paradigma da liberdade
privada de contratar – os denominados princípios contratuais liberais clássicos da
autonomia da vontade, da força obrigatória dos contratos (pacta sunt servanda) e
da relatividade dos seus efeitos – e os princípios estruturantes da justiça contratual
material – os postulados da boa-fé objetiva, da função social do contrato e do equilíbrio
econômico. Pretende-se, assim, demonstrar que se há um conflito de princípios este é
apenas aparente, cujo melhor desate deve refletir a tese difundida por Ronald Dworkin
da integridade do sistema do Direito, segundo a qual a solução do caso concreto dar-se-á
no plano de eficácia das normas, mediante a aplicação do princípio jurídico adequado
às peculiaridades do caso, sem que os demais percam validade.
1. INTRODUÇÃO
Em vista das suas categorias abstratas, generalizantes e dogmáticas, muitas vezes
somos levados a crer, equivocadamente, numa suposta neutralidade do Direito diante
das conjunturas históricas, fazendo-nos desprezar as consequências naturais da passagem
do tempo. Ora, como diria Orlando Carvalho: “‘Mudam-se os tempos, mudam-se as
1
vontades’ como supor que também o Direito não mudasse?” .
Trazendo tal constatação para o direito civil, especificamente para o instituto
do Contrato, observa-se que as relações contratuais privadas assumiram fundamentos
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
207
2
diversos daqueles que se conciliavam com as perspectivas iluministas do século XVIII,
em relação às quais o direito civil teria como escopo a disciplina do indivíduo como
ser abstrato, participante de relações jurídicas fundadas em uma igualdade puramente
formal.
Com o passar do tempo, aquela lógica liberal individualista forjada na liberdade
privada de contratar (primazia da vontade) teve que se defrontar com uma nova realidade
social, cuja complexidade, assomada às profundas desigualdades sociais verificadas em
seu bojo, trouxe ao conteúdo das relações contratuais uma nova perspectiva: a noção
de justiça contratual material (primazia da justiça social).
Movido pelo propósito de se imiscuir no debate que tal constatação provoca,
especialmente quanto à principiologia que norteia essas duas perspectivas, o presente
escrito propõe abordar o contrato privado delimitando sua análise ao delicado problema
da coexistência ou não dos princípios embasadores da relação contratual decorrente
do paradigma da liberdade privada de contratar, os denominados postulados contratuais
clássicos – da autonomia da vontade, da força obrigatória dos contratos (pacta sunt
servanda) e da relatividade dos seus efeitos (efeitos interpartes) – com os princípios
contemporâneos, nominados de novos princípios ou princípios de vanguarda, estru3
turantes da justiça contratual material – da boa-fé objetiva, do equilíbrio econômico e
da função social do contrato. Aqueles, pilares da tutela patrimonial e voluntarista das
relações negociais, originários do Estado liberal; estes, vocacionados à tutela privilegiada
da pessoa humana, traço do Estado Democrático de Direito.
Nesta linha, conduziremos esta reflexão a partir da seguinte problemática: considerando um hipotético antagonismo de princípios, poderíamos, então, afirmar que
os princípios contemporâneos jogaram por terra aqueles postulados clássicos, fazendo-os desaparecer? Ou ainda, que tais princípios coexistem, ora indicando o reinado da
4
autonomia da vontade, ora sinalizando para a prevalência da liberdade situada , numa
operação regulada pela complementaridade, quando não houvesse conflito entre eles,
5
ou pelo mecanismo da ponderação de valores , no caso de choque?
Ao invés de tomarmos partido por uma ou outra concepção, acolhendo as
reflexões filosóficas de Ronald Dworkin, optamos por considerar que os princípios
clássicos da autonomia da vontade, da relatividade dos efeitos e da obrigatoriedade
dos pactos, não só coexistem, mas, principalmente, devem interagir com os novos
postulados da função social do contrato, da boa-fé objetiva e do equilíbrio econômico,
formando um só grupo de princípios, a denotar a integridade do sistema do Direito,
do qual será extraído um único e adequado postulado para o desfecho e solução do
caso concreto.
Decorre daí que a solução deste suposto embate se dá por meio da técnica do
princípio adequado e não pelo mecanismo da ponderação de valores, o que habilita a
sociedade a compreender e aplicar o direito em conformidade com os conflitos e desafios
vivenciados na experiência concreta dos seus sujeitos.
Com tal escolha, partimos da premissa de que há nesta questão a ocorrência de um
processo dialético de superação, e não anulação, daquele bloco de princípios tradicionais
pelo o de vanguarda, se assim podemos dizer, sugerindo que as relações contratuais de
agora sejam fundamentadas por um bloco único de princípios, a se constituir em uma
208
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
solução que agasalha todos aqueles paradigmas anteriores, reconhecendo seus valores,
preservando seus méritos e evitando suas limitações.
Nada obstante isso, ainda que falemos em tal coexistência, esta não preserva
incólume o bloco dos princípios tradicionais, especialmente o dogma da autonomia da
vontade como um princípio absoluto, causando-lhe importantes fissuras, fruto de um
processo hermenêutico empírico-dialético, cujo “[...] andar para adiante traz consigo
compreensões preservadas, que transformadas, foram por isso mesmo superadas, posto
6
que enriquecidas” .
Defendemos, portanto, que a autonomia da vontade, bem assim os dogmas
clássicos dos efeitos interpartes e da força obrigatória dos contratos, doravante, devem
ser integrados por valores, por princípios constitucionais, à luz do caso concreto, a evidenciar que as relações privadas também estão submetidas ao influxo da Constituição. É
7
o que se denominou de processo de constitucionalização do direito infraconstitucional .
Em síntese: buscaremos demonstrar ao longo deste artigo que as relações contratuais hodiernas devem observar concomitantemente, e sempre, a vontade das partes
livre de vícios e defeitos, a boa-fé objetiva, a sua função social atrelada aos valores
existenciais dos sujeitos da relação contratual e a solidariedade social, não prejudicando
terceiros. O contrato firmado nestes termos e conduzido até o seu final a observar o
equilíbrio econômico é contrato coadunado com os valores constitucionais democráticos
e de direito do nosso tempo e sociedade, instrumento hábil a concretizar os interesses
legítimos pactuados pelos contraentes.
2. O CONTRATO E O TEMPO
2.1. Relação contratual privada no liberalismo clássico
Apesar de não fazer parte da delimitação traçada no subtítulo dessa seção,
dada a importância de contextualizar historicamente a relação jurídica sobre a qual
se pretende refletir, expomos preambularmente algumas considerações sobre a origem
remota do contrato.
No Direito Romano os contratos tinham caráter rigoroso e sacramental. As
formas deveriam ser obedecidas, independentemente da vontade das partes. O simples
acordo não bastava para criar uma obrigação juridicamente exigível. Necessário, pois,
uma solenidade formal para se dar vida aos contratos. Para cada contrato em particular
uma fórmula diferente. Assim, não se conhecia no Direito Romano a categoria geral do
contrato. O elemento subjetivo da vontade só vai conseguir sobrepujar o formalismo
na época de Justiniano com a stipulatio, mas, ainda assim, à parte prejudicada não bastava provar a existência do contrato, devia provar que cumprira uma prestação, assim
a vontade era colocada em segundo plano, a proteção dependia mais do interesse do
que da vontade.
Com a queda do Império Romano, o Direito Germânico retorna o contrato
à concepção de rito, um comportamento simbólico. Já na prática medieval há uma
retomada da stipulatio romana, em face da influência da Igreja e do renascimento dos
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
209
estudos romanistas, enfatizando o sentido obrigatório do contrato e evoluindo para a
forma escrita (traditio cartae). Com o direito canônico surge a ideia do juramento do
cumprimento do contrato, nascendo aí os contratos consensuais.
No entanto, a preponderância da vontade no negócio jurídico só veio a se concretizar com a Revolução Francesa de 1789, com suas conquistas políticas, ideológicas
e econômicas, marco do liberalismo clássico. Com o Código Napoleônico de 1804 o
contrato é colocado em sua roupagem moderna como meio de circulação de riquezas
mediante acordo de vontades.
Dito isto, voltando ao objetivo deste capítulo, é de se ressaltar, de acordo Luiz
Edson Fachin, que “o sistema de direito civil quando se ergue o faz criando categorias
jurídicas coerentes com o respectivo momento histórico, embora com o intento de
8
se colocar ad eterno” . Com esse breve introito passemos a discorrer sobre a relação
contratual privada dos primórdios do liberalismo clássico e seus postulados; para, na
seção seguinte, visualizarmos tal vínculo sob a ótica da contemporaneidade e seus
princípios correlatos.
O contrato que neste tópico nos referimos é aquele formulado com base no
individualismo filosófico e no liberalismo econômico do século XVIII, que se positivam
9
na codificação francesa napoleônica e se espalha pelo ocidente , inspirando o nosso
Código Civil de 1916.
Neste modelo liberal, o formalismo advindo do direito romano cede lugar ao
10
consensualismo , e a força obrigatória dos contratos passa a ser justificada pela ideia
11
do respeito à palavra dada , desde que voluntariamente e desprovida de qualquer vício
de vontade.
Assim, o contrato passou a pressupor apenas o consentimento mútuo, sem que
uma forma específica fosse, a princípio, essencial à sua validade. No dizer de Teresa
Negreiros: “A vontade passa a ser o cerne do contrato, e este, o cerne do direito objetivo
12
como um todo e do próprio Estado” .
O contrato do paradigma liberal pós-revolução francesa, portanto, fundamenta-se na vontade soberana do indivíduo – contrato é um acordo de vontade, um consenso,
duas declarações convergentes de vontade a respeito de um ponto em comum, com a
finalidade de produzir efeitos jurídicos. A vontade prevalece nas relações privadas. É a
13
primazia da autonomia da vontade segundo regras jurídicas.
Aliás, a autonomia da vontade dos particulares, no Estado liberal, de acordo
Clóvis de Couto e Silva, assume um extraordinário relevo, “sendo-lhes deferida quase
14
totalmente a formação da ordem privada” .
A partir do consentimento cada um dos contratantes se dispõe a ceder parte de
sua posição de interesse para o outro, na busca da satisfação dos interesses respectivos
legitimamente antagônicos. O consensualismo, pois, pressupõe paridade de força entre
os contratantes.
O contrato, ao mesmo tempo em que é fundamento da vida em sociedade é
limite de controle pelo Estado, no sentido de que a convenção, enquanto delineada pelo
direito objetivo, constitui um instrumento de autolimitação da liberdade individual.
Como aversão aos privilégios da classe dominante no antigo regime, no pós-absolutismo, o indivíduo podia ter plena autonomia para contratar e plena possibilidade
210
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
de ser proprietário. Desse modo, o contrato é colocado como meio principal de circulação
de riquezas – o que antes se concentrava na mão de uma classe privilegiada, agora (no
século XVIII), pelo menos em tese, está ao alcance de todo indivíduo, conforme garante
a “Lei Maior das relações privadas”, como era considerado o Código Civil.
Aponta-nos Caio Mário da Silva Pereira que sempre houve uma relação de proximidade entre a autonomia da vontade e as noções de sujeito de direito (indivíduo) e
propriedade (patrimônio), o que permitiu a passagem do regime feudal e mercantilista
15
para o capitalismo.
No tocante à relação entre a autonomia da vontade (liberdade) e a propriedade, pode-se dizer, repetindo Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald,
que, por conta dela, “concede-se ao sujeito de direito a possibilidade de manifestar
livremente sua vontade, em um contexto econômico propício à circulação do capital.
Nesta vertente, o contrato e a propriedade triunfam como os dois grandes pilares
16
do direito privado” . É o que podemos denominar de “reinado” do voluntarismo
e do patrimonialismo.
Em sendo assim, dissemina-se a ideia da existência de direitos inatos ao homem,
os quais devem ser garantidos pelo Estado. Dentre estes direitos, como o mais significativo, tem-se o direito à propriedade.
Ainda no dizer de Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald, “no modelo
econômico liberal do laissez faire, a função estatal primordial era a de defender a segurança do cidadão e da sua propriedade. Os demais problemas sociais seriam solucionados
17
pela mão invisível do mercado” .
18
Essa nova ordem liberal tem na liberdade de contratar , portanto, tanto o meio
para alcançar a justiça como a igualdade econômica, mediante o acesso de todos à
propriedade, anteriormente concentrada nas mãos da nobreza. Assim, o bem comum
19
seria alcançado pela satisfação dos interesses individuais.
No Brasil, como reflexo das experiências liberais do Código Francês de 1804, o
Código Civil de 1916 voltou-se também para a tutela patrimonial, tendo como protagonistas o proprietário, o contratante e o marido. Ou seja, com a adoção do absolutismo
20
da propriedade e da liberdade de contratar, permite, o Código de 1916 , o acúmulo
de riquezas e a estabilidade econômica, no contexto de uma família essencialmente
21
patrimonializada.
Conforme aduzem Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald, na mesma
trilha do Codex anterior, o nosso atual Código Civil, em seu artigo 1.228, reproduz a
mesma ideia de propriedade, sem, contudo, conceituá-la, se limitando a descrever os
22
seus poderes – poder de uso, fruição e gozo.
A par dessa concepção clássica do contrato, o princípio da autonomia da vontade
conseguia explicar a amplitude da liberdade contratual (as partes podiam contratar o
que quisessem e como quisessem, dentro dos limites da lei), a obrigatoriedade dos efeitos
do contrato (o pacta sunt servanda) e o fato de que o pacto somente vincula as partes,
23
não beneficiando nem prejudicando terceiros.
Isto posto, o instituto do contrato na sua definição estrita, inspirada nos fundamentos clássicos, de acordo Caio Mário da Silva Pereira, “é um negócio jurídico bilateral,
e de conseguinte exige o consentimento; pressupõe de outro lado, a conformidade com
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
211
a ordem legal sem o que não teria o condão de criar direitos para o agente; e, sendo ato
24
negocial, tem por escopo aqueles objetivos específicos” .
Em outros termos, numa conceituação mais ampla, ainda com Caio Mário:
25
“contrato é acordo de vontades com a finalidade de produzir efeitos jurídicos” – efeitos
estes de adquirir, resguardar, transferir, conservar, modificar ou extinguir direitos –, bem
assim qualquer outra espécie de ato jurídico em que ocorrer a participação de vontade
das partes, na conformidade da lei.
Desse acordo de vontades nasce a relação contratual, a qual, se inicialmente (no
Direito Romano), possuía natureza personalíssima, cujo vínculo se estabelecia entre as
próprias pessoas (corpos) dos contratantes, posteriormente, ainda que permanecesse
com seu caráter personalista, sua execução passou a se dar sobre os bens do devedor
26
contraente , evoluindo e se adequando às vicissitudes de cada época, até achegar-se
aos tempos de hoje.
Nesse diapasão, como mencionamos na Introdução, as relações contratuais
privadas forjadas sob a perspectiva iluminista do século XVIII se conciliavam com a
disciplina do indivíduo como ser abstrato, participante de relações jurídicas fundadas
em uma igualdade puramente formal.
Sob este prisma, o direito civil liberal clássico, sobretudo o direito do contrato,
caracteriza-se pela absolutização do indivíduo. Uma superação do antigo regime do
Estado absoluto pela libertação do homem.
Na perspectiva do liberalismo clássico, segundo Teresa Negreiros:“o indivíduo – em oposição ao trabalhador, ao comerciante, ao criminoso, ao contribuinte, ao
administrado, ao consumidor – define-se por sua irredutibilidade essencial. O ‘ser’ é a
27
única e suficiente qualidade” .
No contexto clássico do direito civil, o indivíduo é tratado como sujeito de direito in abstrato. O sujeito concreto – o homem comum do dia a dia – o qual a doutrina
28
civil-constitucional denomina de pessoa, não integra aquela concepção.
Em sendo assim, podemos finalizar este comento dizendo que a relação contratual privada forjada do individualismo filosófico e do liberalismo econômico dos
séculos XVIII/XIX tinha como fundamento as ideias do voluntarismo e patrimonialismo, refletidas nos denominados princípios clássicos do contrato – a autonomia da
vontade, a força obrigatória dos contratos e a relatividade dos seus efeitos, cujas bases
ainda permeiam aqui e ali as relações contratuais de agora, mesmo que sob uma nova
perspectiva. Esmiuçamos a seguir, ainda que brevemente, cada um desses princípios.
2.1.1 A autonomia da vontade
No ponto de vista jurídico, o Direito concede aos indivíduos a faculdade de
criar e estabelecer vínculos negociais efetivos garantindo-lhes a liberdade de contratar.
Por sua vez, essa liberdade de contratar se concretiza de quatro maneiras, conforme
29
elenca Caio Mário da Silva Pereira : a) exercendo a faculdade de contatar ou não
30
contratar ; b) escolhendo a pessoa com quem quer pactuar e o tipo de negócio que
31
se quer concretizar ; c) estabelecendo o poder de fixação do conteúdo do contrato,
212
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
redigindo suas cláusulas “ao sabor do livre jogo das conveniências dos contratantes”;
e, d) autorizando, uma vez concluído o contrato, que qualquer das partes mobilize o
32
Estado para fazer ser respeitado e executado o convencionado.
Nada obstante estar aí consignado, em termos amplos, o princípio da autonomia
da vontade, definimos para esta reflexão que o princípio da autonomia volitiva aqui
exposto será retratado e realçado como a possibilidade de as partes disporem livremente
33
sobre o conteúdo do contrato . E é com este enfoque que analisaremos este postulado.
Predomina o entendimento de que o princípio da autonomia da vontade, ou
qualquer outro, não é um princípio absoluto. Aliás, ainda nos tempos idos do liberalismo clássico, quando teve seu mais amplo alcance, estava submetido aos ditames da lei
(ordem pública) e aos bons costumes. Quando dentro desses dois campos se prescreve a
cessação ou redução da liberdade de contratar, a inobservância desses preceitos alcança
o ilícito e o ato negocial assim contratado é impregnado de ineficácia ou até mesmo
declarado nulo de pleno direito ou anulável.
A par disso, quer nos parecer que a distinção que se pode fazer da limitação da
autonomia da vontade de antes e de agora reside, nos restringindo à esfera legislativa,
ao que o legislador entende e considera como matérias e princípios de ordem pública.
Estreita-se ou alarga-se o campo de abrangência desta ordem de acordo com o contexto
histórico, político, cultural, social e econômico em que se encontra situado o legislador.
No contexto do Estado minimalista do liberalismo clássico, em vista do reduzido papel estatal de interferência na vida privada, a magnitude dessa ordem pública
extremamente diminuta fazia com que a autonomia da vontade fosse um dogma quase
que absoluto. Ao ponto de se proclamar, na dicção de Caio Mário da Silva Pereira:
[...] que cada um tem o direito de proceder livremente, contratando ou deixando de contratar; ajustando toda espécie de avenças;
pactuando qualquer cláusula; e que o juiz não pode interferir, ainda
quando do contrato resulte para uma das partes a ruína completa. O
contrato, como expressão da liberdade individual, seria incompatível
34
com as restrições que se oponham a esta liberdade.
Dentro desta filosofia, atos como os emanados pela Administração Pública,
limitando a liberdade da outra parte de dar cláusulas aos negócios jurídicos ao fixar
preços para certas utilidades, seriam completamente inadmissíveis, dada a separação
35
existente entre Estado e sociedade, entre o direito público e o privado.
Já no que concerne ao Estado como hoje conhecemos, possuidor de funções
de formador subsidiário do meio econômico e social, é normal vislumbramos atos
praticados por ele incidentes direta ou indiretamente nos negócios privados em curso,
ajustando-os ou até mesmo alterando-os.
A partir desse novo paradigma de Estado, a autonomia da vontade se sujeita a
um processo de mitigação bastante contundente. Além da atuação estatal direta sobre
a liberdade de fixação do conteúdo dos contratos, é de se registrar, pela sua importância
nas relações negociais de hoje, sobretudo nas de consumo, a restrição que Clóvis de
36
Couto e Silva denomina de “desnível de poder econômico” . Decorre desse desnivelaRevista da Escola da Magistratura - nº 13
213
mento econômico a fixação unilateral das regras gerais do contrato, como é o caso dos
37
contratos de adesão , pelos quais o particular se vê impossibilitado de acordar sobre o
seu conteúdo, restando-lhe aderir ou não às condições “oferecidas”.
Também nos apresenta Couto e Silva outra forma de negócio jurídico em que a
vontade de pelo menos um dos agentes se vê mitigada: é o que ocorre nos contratos de
massa, nos quais a oferta é dirigida aos integrantes de uma coletividade e não a pessoas
determinadas; bem assim quando se trata de utilização de serviços que denomina de
“existenciais ou de interesse geral”, em que, explicita, “a vontade não entra em maior
38
consideração, eis que o ato ou seus resultados são necessariamente desejados”.
Ademais, ainda no que se refere a esta nova realidade econômica do século XX
para cá, é de se registrar que o contrato contém muitas vezes uma desproporcionalidade de prestações ou de efeitos que fere a pretensa igualdade entre os contratantes
em vista do desnivelamento econômico e social verificado, sem muita raridade, entre
39
as partes .
Ocorre também que, por ocasião da execução do contrato, as condições pactuadas
quando da sua celebração podem não mais se apresentarem, por conta de acontecimentos
40
estranhos à vontade das partes e totalmente imprevistos.
Importante chamar atenção do leitor que já aqui, nestes dois últimos parágrafos,
começamos a perceber a inserção, ou interação, ao lado do postulado da autonomia
da vontade, de um dos princípios contemporâneos que abordaremos mais a frente – o
equilíbrio econômico do contrato.
Apesar dessas sérias mitigações sobre a autonomia da vontade, por certo que
a vontade não restou desprezada ou colocada em um plano secundário. É de se considerar que ela continua ocupando lugar de destaque na ordem jurídica privada dos
tempos de hoje, embora tenha que se compreender que ao seu lado encontra-se uma
dogmática moderna que admite a “jurisdicização” de interesses tais, em cujo centro
se manifesta uma vontade (pelo menos) mitigada por razões de interesse público ou
41
social.
Estamos a falar aqui do fenômeno da “publicizaçao do contrato”, conforme
42
batizado por Josserand . Vale dizer: não se proíbe o direito de contratar e não se retira
a liberdade do seu exercício. O que se tem é a proclamação de uma interpenetração dos
interesses coletivos e privados, da ordem pública e da ordem particular, proporcionada
pelo denominado processo de constitucionalização do direito civil, cuja acentuação de
um ou de outro interesse ou de uma ou de outra ordem deverá ser auferida no exame
do caso concreto.
E tal efeito, embora não o nulifique, produz transformações interpretativas
importantes no postulado da autonomia da vontade, e, por conseguinte, nos princípios
dele decorrentes, haja vista o novo contexto político e social em que estão inseridos e os
43
parâmetros constitucionais a que estão submetidos, conforme sugere Teresa Negreiros ,
como veremos mais adiante.
Aliás, a par disso, não há nenhum inconveniente em afirmar que hoje em dia, de
acordo Judith Martins-Costa, a clássica concepção de autonomia da vontade traduzida
na liberdade humana para criar vínculos jurídicos, ao se conectar com o reconhecimento da dignidade humana e com o livre desenvolvimento da personalidade, exercida
214
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
principalmente na vida comunitária, se transformou em uma autonomia solidária,
representada na expressão autonomia privada, resultado de um direito civil adequado
44
à ordem constitucional.
2.1.2 A força obrigatória dos contratos
Reportando-nos às origens de grande parte dos institutos jurídicos do nosso
sistema legal do Direito, encontramos que no mundo romano já se achava enunciada a
regra da obrigatoriedade dos pactos. É dizer: “O contrato obriga os contratantes. Lícito
não lhes é arrependerem-se; lícito não é revogá-lo senão por consentimento mútuo;
lícito não é ao juiz alterá-lo ainda que a pretexto de tornar as condições mais humanas
45
para os contratantes” .
Assim, o contrato é lei entre as partes – o pacta sunt servanda. Celebrado observando todos os pressupostos e requisitos necessários à sua validade, os participantes
da relação contratual não têm mais a liberdade de se eximirem, em regra, das suas
consequências.
46
Em sua acepção clássica, assevera Orlando Gomes que o contrato obriga os
contratantes não importando em que circunstâncias tenha que ser cumprido. Uma vez
estipulado seu conteúdo, as cláusulas que o compõe têm que ser observadas, possuindo
para os contratantes força obrigatória. Daí dizer que o contrato é intangível e irretratável,
ao menos que novo acordo de vontades venha a ocorrer. É que o contrato, de acordo
mencionado para trás, importa em uma limitação voluntária da própria liberdade que
motivou e gerou o próprio contrato. Vale o cumprimento da palavra dada, custe o que
custar.
Essa intangibilidade do conteúdo do contrato impossibilita, em tese, a revisão
pelo juiz do que foi livremente pactuado entre as partes. O magistrado poderia até
anulá-lo, jamais modificar seu conteúdo. Pois, tal intervenção fere o próprio princípio
da autonomia da vontade – do qual decorre o dogma do pacta sunt servanda – e, por
conseguinte, a liberdade de contratar, fundamentos caros às perspectivas individualista
e patrimonialista da relação contratual liberal clássica.
Coerentemente com o que vimos defendendo neste artigo, por certo, o postulado
da força obrigatória dos contratos no Direito atual também continua vigorando como
47
princípio da relação contratual, embora com atenuações importantes.
Hodiernamente, os acontecimentos do mundo real revelam que a aplicação
absoluta do princípio da força obrigatória dos contratos antes de fazer justiça gera o
seu oposto. Não há como negar que existem situações contratuais em que, por conta
das circunstâncias, se torna impossível manter as condições pactuadas em virtude de
gerarem onerosidade excessiva para uma das partes contratantes, por exemplo – é o
ressurgimento, segundo Orlando Gomes, da proposição do Direito Canônico da cláusula
48
49
rebus sic stantibus , da qual derivou a teoria da imprevisão .
Ora, derivando diretamente do postulado da autonomia da vontade, e, por via de
consequência, do paradigma da liberdade de contratar, a força obrigatória dos pactos,
por uma questão de lógica hermenêutica, qual aquele outro, encontra-se também conRevista da Escola da Magistratura - nº 13
215
dicionada a um novo contexto social e político e igualmente submetida à observância
de regras e princípios constitucionais, decorrência de um novo pensamento jurídico,
de uma nova concepção de contrato.
E esse novo pensamento jurídico considera que na tábua axiológica apresentada
pela Constituição, a exemplo da brasileira, se concebe o contrato como um instrumento a serviço da pessoa, da sua dignidade e de seu desenvolvimento, não se atendo
à questão patrimonial, pura e simples, assentada no conteúdo do negócio firmado. E,
por assim ser, a sua força obrigatória passa a estar também condicionada à observância
de valores existenciais.
2.1.3 A relatividade dos efeitos dos pactos
O terceiro princípio remanescente da concepção do contrato sob a ótica liberal
clássica, diz respeito à eficácia da relação contratual. Na sua versão original, significa
dizer que os efeitos (internos) do contrato se produzem exclusivamente entre as partes,
50
não aproveitando nem prejudicando terceiros.
Vale dizer: ninguém pode tornar-se parte credora ou devedora contra sua von51
tade, se dela depende o próprio nascimento de uma obrigação válida.
Todavia, como não poderia ser diferente, o postulado da relatividade dos efeitos
52
do contrato assim formulado também não é absoluto . Sua mitigação, no entanto,
depende do que se entende por terceiro.
Orlando Gomes distingue três categorias de terceiros: a) os que são estranhos
à relação contratual original, mas participante do interesse, cuja posição jurídica
é subordinada à da parte (a exemplo do sublocatário e os mandatários); b) os que
são interessados, mas têm posição independente e incompatível com os efeitos do
contrato; c) os que são normalmente indiferentes ao contrato, mas podem ser legitimados a reagir quando sofram particular prejuízo dos efeitos do mesmo contrato,
53
como os credores.
Inclui esse autor, nesta última alínea, como terceiro sujeito à proteção, aquele
estranho à relação contratual e obrigacional que está exposto aos riscos de danos pessoal
e patrimonial oriundos da execução da obrigação contratual. Por assim ser, caberia a
esse terceiro a percepção de uma indenização, não por ter sido violado algum direito
seu não previsto no contrato, cujo conteúdo deve estar restrito aos contratantes, mas
por ter sido ofendido físico-psíquica e economicamente em decorrência de relação
54
contratual que não é parte – teoria do terceiro ofendido.
Por oportuno, não se poderia deixar de mencionar, ainda que de maneira breve,
a teoria do terceiro ofensor ou terceiro cúmplice. Com esteio na concepção social do
contrato e na quebra do dogma da relatividade, o contrato se torna uma situação jurídica
merecedora de tutela oponível erga omnes. Em outros termos: “todos têm o dever de se
abster da prática de atos que saibam prejudiciais ou comprometedores da satisfação de
55
créditos alheios” (uma obrigação de não fazer àquele que conhece o conteúdo de um
56
contrato, embora dele não seja parte).
216
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
Nesse caminho, conforme assinalam Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald, o princípio em referência “deverá ser interpretado de forma a que, no conceito de
parte, incluam-se pessoas que não consentiram na formação do contrato, mas que estão
57
sujeitas a serem por ele afetadas, precisamente no que se refere à sua função social” .
Não só terceiros afetados pelo contrato, mas também aqueles que perturbam a relação
contratual da qual não fazem parte, como vimos.
De um jeito ou de outro, aqui, mais uma vez, percebemos a interpenetração
entre valores não individuais (a função social do contrato) e a relação privada, o que
igualmente enuncia um novo parâmetro interpretativo da relação contratual.
2.2 A ideia contratual contemporânea
Ao contrário do que sucedia à época do liberalismo clássico, a realidade social
e econômica ulterior passou a demandar uma ação transformadora do Poder Público
tendo em vista o atingimento de finalidades havidas como cobiçadas.
Nesta direção, afirma Celso Antonio Bandeira de Mello citando Forsthoff
que “os mecanismos concebidos pelo Estado burguês para a defesa e garantia das
liberdades individuais iriam se tornar insuficientes e inadaptados para enfrentar a
problemática gerada pela dilatação e aprofundamento das intervenções na vida social
58
e econômica” .
A par disso, detecta Celso Antonio que “O Poder Público assumiu a função
de promotor das mais variadas iniciativas no campo social e econômico, exigindo dos
particulares, demais disso, ajustamento de suas condutas aos desideratos absorvidos
59
como finalidades coletivas” – tornando-se, assim, o interesse social, um conceito de
enorme importância também para o direito privado.
Neste caminho, sentiu-se a necessidade de conciliar os interesses individuais
com os interesses sociais, de maneira a assegurar o equilíbrio das relações jurídicas e
justificar o reexame ou a releitura de certas situações.
Ou como pontua Arnoldo Wald: “No fundo, criou-se a necessidade de ponderação entre os diversos valores assegurados constitucionalmente, como a justiça social
e o desenvolvimento econômico do país de um lado, e, de outro, os direitos individuais
60
legalmente assegurados” .
Como é sabido, mas não renegando por completo as regras do Código Civil de
1916, o novo Código Civil brasileiro, projetado por Miguel Reale, no tocante às relações
negociais privadas, abstraindo-se dos dogmas clássicos – individualismo, patrimonialismo
61
e formalismo jurídico (sistema fechado, não axiológico) –, estruturou-se embasado em
três novos pilares, a saber: socialidade, eticidade e operabilidade.
A socialidade, ao revés do individualismo característico do Estado liberal clássico
reproduzido no Código Civil pátrio de 1916, consiste em assentar que cada partícipe
da relação obrigacional deve manter a cooperação entre si e para com a sociedade com
62
vistas à consecução do fim (bem) comum da relação jurídica: o adimplemento .
Por esse postulado cada participante da relação obrigacional é “subordinado” à
prestação a que tem direito o outro pela cooperação e pelo dever de lealdade, visando
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
217
o adimplemento da obrigação e a realização dos valores fundamentais constitucionais
da dignidade da pessoa humana e da solidariedade, dentre outros.
Uma comunhão entre a plenitude da pessoa e a coletividade: o interesse geral
e o bem comum como limites à realização dos interesses individuais subjetivos das
partes obrigadas diretamente no negócio jurídico. Afinal, ubi ius ibi societas, ubi societas
ibi jus (onde houver direito haverá sociedade e onde houver sociedade haverá direito).
o
Também neste rumo prescreve o artigo 5 . da Lei de Introdução ao Código Civil: “A lei
atenderá aos fins sociais e às exigências do bem comum”.
Aliás, em relação aos valores fundamentais, faz bem destacar que o paradigma da
socialidade, ao se espraiar por todo o sistema jurídico, impele, inclusive, o fortalecimento
63
da ideia de horizontalização dos direitos fundamentais (drittwirkung) , no sentido de
que tais direitos passam a ser extensivos à esfera das relações entre particulares, e não
mais apenas como parâmetros limitadores da interferência estatal nas relações privadas
(proteção do indivíduo face ao Estado), noção esta última consolidada a partir das
revoluções liberais, sobretudo da Revolução Francesa (1789).
Assim, os indivíduos, enquanto pessoas, são idênticos titulares de direitos
fundamentais, e, portanto, devem avistar reciprocamente no outro deveres de
proteção, cooperação e informação, a fim de preservar o princípio da solidariedade
o
– progenitor da boa-fé objetiva e da função social, esculpido no artigo 3 ., inciso I,
da Constituição Federal –, e, em última instância, assegurar o núcleo da dignidade
64
da pessoa humana .
A eticidade, em específico, revela a tendência que embasa todas as codificações
modernas, imprimindo o uso generalizado dos chamados conceitos jurídicos vagos e
indeterminados, outorgando ao juiz a possibilidade de adequação da norma ao caso
concreto buscando efetivar os valores constitucionais da boa-fé objetiva e da função
social (valores éticos de ordem pública que operam no sistema de direito privado a
65
partir das cláusulas gerais ou abertas ).
Mais precisamente, a eticidade significa “vencer a submissão ao formalismo
jurídico, provocando no legislador uma postura diversa, que o fez optar pelo emprego
de ‘normas genéricas’ ou ‘cláusulas gerais’, permitindo a exata adequação do Direito
66
ao caso concreto” .
O Direito deve ser imperativo não por razões formais, mas pela justiça de seu
conteúdo, antes ofuscada pela ênfase pura e simples à formação e à manifestação da
vontade de contratar. Não sendo o direito sinônimo de justiça, esta, necessariamente,
deve ser seu escopo.
Nesse passo, no esforço de ir ao encontro do valor justiça, pode-se dizer, portanto,
67
que o nosso Livro Civil de 2002 é um código aberto , ao contrário do Código Civil
Francês de 1804 (o Código Napoleônico) e do Codex Brasileiro de 1916, exemplos de
ordenamentos herméticos que, por assim ser, não admitiam a renovação do sistema
normativo, isolando os magistrados à utilização do método exegético da simples subsunção do fato à norma.
É de se anotar que os ordenamentos abertos – portais de entrada no Direito
Civil do princípio fonte da dignidade da pessoa humana – não afastam o intérprete
da norma. Ao contrário, ao se propiciar a entrada no sistema do Direito legislado de
218
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valores sociais elevados ao patamar constitucional, estar-se-á a “arejar” o ordenamento
jurídico, permitindo penetrar nele os ventos das transformações sociais.
Quanto à operabilidade ou paradigma da concretude, cuidou o atual Código
Civil de privilegiar a pessoa humana em detrimento do indivíduo abstrato do Código de 1916, elevando-a, e não mais o patrimônio, à condição de centro do sistema.
Almeja-se, com isso, substituir a aplicação da norma genericamente a quem quer
que seja o titular de determinada posição patrimonial – o abstrato sujeito de direitos
patrimoniais (o proprietário, por exemplo) – pela afirmação da especificidade e con68
cretude de cada pessoa .
Além disso, por meio do fundamento da operabilidade, buscou-se no novo
Codex a adoção de formas capazes de conferir efetividade ao direito civil, conferindo
solução rápida às pretensões, bem assim propugnando meios que evitem a eternização
dos conflitos e das incertezas, além de uma melhor sistematização de seus dispositivos
e normas a facilitar a tarefa dos operadores do direito.
Dessa maneira, em decorrência da alteração dos fundamentos ou diretrizes da
ordem jurídica privada liberal clássica, provocada pela inserção dos paradigmas da
socialidade, eticidade e operabilidade, decorrência da modificação do papel do Estado,
sobretudo, a partir da Primeira Guerra Mundial (1919), pela via da constitucionalização,
cruzam a fazer parte do cotidiano contratual os denominados princípios contratuais
contemporâneos – da boa-fé objetiva, da função social dos contratos e do equilíbrio
econômico dos pactos – condutores da concretização das almejadas e necessárias igualdade material e justiça social dos contratos. E é sobre esses princípios que passamos
agora abordar.
2.2.1 A boa-fé objetiva
Detecta Clóvis de Couto e Silva que os magistrados romanos já valorizavam
enormemente o comportamento ético das partes, “com base na equidade, ampliando
o arbítrio do juiz para que pudesse considerar na sentença a retidão e a lisura do pro69
cedimento dos litigantes na celebração do contrato” .
Diante da percepção de que esse comportamento se apresentava de duas formas distintas, doutrina moderna classificou-o de boa-fé subjetiva e objetiva. A boa-fé
subjetiva está relacionada com a “intenção manifestada na declaração de vontade ou
70
dela inferível”, de acordo aponta Orlando Gomes . Ou ainda, conforme Gustavo Tepedino e Anderson Shreiber, “[...] como sinônimo de um estado psicológico do sujeito
caracterizado pela ausência de malícia, pela sua crença ou suposição pessoal de estar
71
agindo em conformidade com o direito” .
Já a boa-fé objetiva, que aqui mais nos interessa, diz respeito ao interesse social
de segurança das relações jurídicas, de acordo ainda Orlando Gomes. O que se traduz
72
na mensagem de que “as partes devem agir com lealdade e confiança recíprocas” , de
modo a pelo menos não dificultar a ação legítima de uma e de outra – observância dos
73
deveres anexos .
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
219
Ainda com Clóvis de Couto e Silva, para quem a obrigação é um processo, no
sentido de que a obligatio é uma complexidade de atos rumo a um fim certo – o seu
adimplemento:
A boa-fé objetiva determina um aumento de deveres, além daqueles que a convenção explicitamente constitui. Endereça-se a todos os partícipes do vínculo e pode, inclusive, criar deveres para o
credor, o qual, tradicionalmente, era apenas considerado titular de
74
direitos.
75
O Código Civil de 1916 não consagrou este princípio expressamente , mas o
Codex de 2002 o traz nos artigos 113, 422 e 187. No Código de Defesa do Consumidor
também encontra-se expresso nos artigos 4º. inciso III e 51 inciso IV.
Conforme indicam Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald, há três
áreas de operação do princípio da boa-fé objetiva no Livro Civil atual: a) como paradigma interpretativo – artigo 113; b) como parâmetro de controle, impedindo o abuso
do direito subjetivo – artigo 187; e, c) desempenhando função integrativa, impondo
76
diversos deveres anexos e éticos, tais quais os de honestidade, probidade, respeito,
77
informação, cooperação, etc. – artigo 422.
Aduz Teresa Negreiros que a fundamentação constitucional do princípio da boa-fé objetiva está na cláusula geral de tutela da pessoa humana, na busca da construção
de uma sociedade solidária, na qual o respeito pelo outro se constitui em elemento
essencial de qualquer relação jurídica, traço determinante de uma valorização da pessoa
78
em substituição à autonomia do indivíduo .
2.2.2 A função social do contrato
O princípio da função social foi introduzido em nosso ordenamento jurídico pela
Constituição da República de 1946, por meio da função social da propriedade, sendo
agasalhado também pela Constituição Federal de 1988, e, infraconstitucionalmente pelo
Código Civil de 2002 em seu artigo 421. Antes disso, tanto aqui como nas codificações
oitocentistas do mundo ocidental, esse postulado não se configurava como princípio
de Direito, correspondendo a um “fundamento extrajurídico relacionado com a função
79
econômico-social do contrato”.
Como entendida hoje em dia, a função social do contrato é a superação da idéia
de que a relação obrigacional somente produz efeitos entre as partes. É a preocupação
com a valorização do interesse coletivo sobre os interesses particulares nas relações
obrigacionais. Atender ao interesse privado não pode implicar o sacrifício do interesse
coletivo. Essa é a idéia da função social.
Assim, a função social traz uma dupla eficácia à relação contratual: a um só
tempo possui eficácia interna e externa em relação ao contrato. A eficácia externa
significa que a relação obrigacional não pode prejudicar terceiro e tampouco o terceiro pode prejudicar obrigação alheia. Vale dizer: o contrato não deve prejudicar
220
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
terceiros alheios à relação contratual; o contrato não deve prejudicar a coletividade; o terceiro não deve prejudicar o contrato alheio. Surgem aí dois conceitos:
o do terceiro ofensor (lesante) e terceiro ofendido (lesado), sobre os quais já nos
referimos anteriormente e voltaremos a fazê-lo na próxima seção, ainda que de
forma breve e superficial.
A eficácia interna da função social do contrato, por sua vez, diz respeito ao fato
de que a relação obrigacional não pode implicar ou gerar a violação de interesses das
partes de ordem coletiva, isto porque determinados interesses coletivos são também
80
reconhecidos aos devedores.
De um jeito ou de outro, o que nos importa aqui, de acordo o enfoque teórico
que estamos a conferir ao instituto do contrato neste artigo, é como se dá a aplicação
desse princípio na relação contratual.
Gustavo Tepedino relata três posições divergentes acerca do conteúdo e alcance
81
da função social do contrato.
No primeiro entendimento, sustenta-se que a função social do contrato não é
dotada de eficácia jurídica autônoma, sendo uma espécie de orientação político-legislativa constitucional. Ou seja, a função social deve ser encontrada no próprio âmbito do
Código Civil, por meio de institutos institucionalizados para permitir a invalidação ou a
82
revisão do contrato e assim amenizar sua dureza conforme idealizado pelo liberalismo .
A segunda posição afirma que a função social do contrato expressa o valor social
das relações contratuais, elevando a importância dessas relações na ordem jurídica,
o que reforçaria a posição contratual dos contratantes e não à noção de proteção da
coletividade face ao contrato.
Já a terceira corrente entende que a função social importa em deveres extracontratuais impostos aos contratantes, deveres esses socialmente relevantes e protegidos
constitucionalmente pelos princípios da dignidade da pessoa humana, do valor social
83
da livre iniciativa, da igualdade substancial e da solidariedade social.
Desse modo, da combinação das eficácias interna e externa da função social do
contrato com a terceira posição, extraímos que a função social do contrato tem como
destinatário não só a coletividade como também as partes contratantes, impondo a
estas o dever de perseguir, juntamente com seus interesses individuais, os interesses
extracontratuais coletivamente relevantes que estão relacionados com o contrato ou
que podem ser por ele atingidos.
A par disso, é de se compreender que a função social do contrato resulta de uma
outra interpretação da força obrigatória do contrato que se deslocou da vontade para a
lei. E assim, porque fundamentada na lei, a força imperativa do contrato passa a estar
atrelada funcionalmente à realização de finalidades traçadas pela ordem jurídica, não
sendo mais interpretada como mero instrumento de satisfação dos interesses das partes
84
da relação contratual individualmente consideradas.
Sendo, agora, a própria lei que dita os parâmetros da força obrigatória dos pactos,
tal força encontra sua razão de existir nos fins visados pelo próprio Direito, emanados
de uma nova tábua axiológica de patamar constitucional: justiça social, segurança jurídica, bem comum, solidariedade, dignidade da pessoa humana, dentre outros valores
85
de igual quilate.
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
221
2.2.3 O equilíbrio econômico
Assim como os dois novos princípios examinados, da boa-fé objetiva e da função
social do contrato, o postulado do equilíbrio econômico dos pactos encontra fundamento
na Constituição no princípio da igualdade substancial (artigo 3º. inciso III), pressuposto
do paradigma da justiça social que orienta as relações contratuais contemporâneas.
Nessa linha, este princípio vem coibir que as prestações contratuais reflitam
um desequilíbrio injustificável entre as vantagens obtidas por um contratante em detrimento do outro. Veda-se que um equilíbrio tão somente formal do contrato gere o
enriquecimento de um dos integrantes da relação contratual.
86
De acordo Teresa Negreiros citando Antonio Junqueira Azevedo , o princípio
do equilíbrio econômico do contrato atua em duas vertentes: na formação e no curso
87
da relação contratual. A primeira atua no terreno da lesão , a segunda vertente
88
na seara da onerosidade excessiva .
Diferentemente do que ocorria no direito do contrato liberal clássico, onde predominava a fase de formação e manifestação da vontade de contratar, hoje, o princípio
do equilíbrio econômico do contrato vem servir como parâmetro de avaliação do próprio
conteúdo do pacto e de seu resultado, por meio de uma comparação das vantagens e
encargos distribuídos para cada um dos contratantes.
Em sendo assim, a justiça do contrato mediante o seu equilíbrio econômico dita
que o contrato deve resguardar um patamar mínimo de equilíbrio entre as posições
89
econômicas de ambos os contraentes.
Nesse passo, ainda que o contrato seja firmado sem qualquer vício de vontade,
pode configurar-se um contrato injusto, e, por assim ser, pode ser revisto, modificado
judicialmente ou mesmo integralmente rescindido. Conforme arremata Teresa Negreiros:
90
“de uma ênfase na liberdade se passa à ênfase na paridade” . Vale dizer, a concepção
de justiça fundada na autonomia e na liberdade de contratar altera-se para ressaltar o
valor social da paridade e do equilíbrio do contrato.
3. OS PRINCÍPIOS CONTRATUAIS LIBERAIS CLÁSSICOS E OS PRINCÍPIOS CONTEMPORÂNEOS: ANULAÇÃO, CONFLITO OU COEXISTÊNCIA?
3.1 Um suposto embate principiológico
Delineados e definidos na seção anterior os valores e princípios característicos
de cada contexto social e político da vida moderna – contextos liberal e social – já é
tempo de debruçarmos sobre o delicado problema da composição da relação contratual
privada de agora levando em conta aqueles postulados clássicos decorrentes do paradigma da liberdade privada de contratar (demonstrativo dos valores individuais e conquista
inalienável da sociedade) e os nominados novos princípios, elementos estruturantes da
justiça contratual material (padrão axiológico representativo do influxo constitucional no
direito privado, garantidor de uma vida social mais equilibrada e solidária, pelo menos
no ponto de vista do Direito).
222
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
Impõe-se, preliminarmente à reflexão que dá nome ao título e subtítulo deste
tópico, a necessidade de discorrermos sobre o que vem a ser um princípio. O que o
distingue de uma regra e de outras categorias utilizadas pelo intérprete para aplicação
do Direito. Faremos isso nos atendo às definições pretendidas por Ronald Dworkin e
Robert Alexy, de modo a não estender ainda mais esse já longo artigo.
Ronald Dworkin, ao definir o que seja um princípio, dedica-se, notadamente, à
sua aplicação, distinguindo-o, desse modo, de uma regra – ambos, espécies do gênero
norma jurídica.
Afirma esse autor que princípio, de maneira genérica:
[...] é todo o conjunto de padrões de comportamento que não são
regras; um padrão que deve ser observado, não porque vá promover
ou assegurar uma situação econômica, política ou social considerada
desejável, mas porque é uma exigência de justiça ou equidade ou
91
alguma outra dimensão da moralidade.
Ainda no desenvolvimento da conceituação de Dworkin, temos que, se de
um lado as regras são aplicadas ao modo do “tudo ou nada”, no sentido de que ou
uma regra é considerada válida, e a consequência normativa deve ser aceita, ou não
é considerada válida, e o seu efeito normativo não deve ser aceito; de outra banda,
os princípios somente contêm fundamentos, os quais devem ser conjugados com
outros fundamentos advindos de outros princípios aplicáveis ao caso concreto, sem
distinção de grau.
Para Ronald Dworkin, no tocante aos princípios, o que se deve levar em conta, na verdade, é uma diferenciação baseada em critérios classificatórios, ao invés de
comparativos, fazendo com que, em caso de conflito (que só pode existir de forma
aparente, segundo esse autor), um único princípio se sobreponha aos demais, sem que
92
estes venham perder validade.
Já Robert Alexy, partindo da distinção que faz Ronald Dworkin, difunde que as
regras consistem em normas cujas premissas são ou não são diretamente preenchidas
pelo caso concreto; enquanto que os princípios constituem uma categoria normativa
mediante a qual são estabelecidos deveres (mandatos) de “otimização” aplicáveis em
93
vários graus, de acordo com as possibilidades normativas e factuais .
Alexy, ao contrário de Dworkin, procura demonstrar que a relação de tensão existente no caso de colisão entre os princípios não se resolve com a determinação imediata
da prevalência de um princípio sobre o outro, mas sim por meio de um mecanismo de
ponderação entre estes valores colidentes, sendo que em determinadas circunstâncias
concretas um deles terá predominância.
Assim, aponta Robert Alexy que os princípios possuem tão somente uma dimensão de peso e não determinam as conseqüências normativas de forma direta, a oposto das
regras. Por isso, a aplicação de um princípio diante do caso concreto deve ser realizada
com reservas, ou seja, um princípio só pode ser aplicado em um caso concreto se outro
94
não apresentar peso maior.
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
223
Numa ou noutra concepção, se consolidou o entendimento de que normas ou
são princípios ou são regras. Que as regras não podem ser objeto de ponderação – por
serem preceitos “do tudo ou nada”.
Todavia, divergem entre si esses autores quanto a considerar que os princípios
precisam e devem ser ponderados, como quer Alexy, ou que precisam e devem ser classificados em adequados ou não adequados à solução do caso concreto, como defende
Dworkin.
Diferentemente das regras, que impõem deveres definitivos, independentes
das possibilidades fáticas e normativas, os princípios instituem deveres preliminares,
dependentes das possibilidades fáticas e normativas. Quando duas regras colidem, uma
das duas é inválida, ou deve se abrir uma exceção para superar o conflito. Quando dois
princípios colidem, os dois ultrapassam o conflito mantendo sua validade, devendo o
intérprete decidir qual deles possui maior peso em dada circunstância fática ou é o mais
adequado à solução da lide.
No tocante ao contrato e os princípios pertinentes, observa-se que é forte a
doutrina em afirmar que a Lei Maior brasileira de 1988 desejou que os denominados
“novos” e “velhos” postulados que embasam a relação contratual convivessem lado a
lado na ordem jurídica hodierna – liberdade individual como valor fundamental de
um lado e justiça social e solidariedade do outro –, nada obstante reconhecer que essa
convivência se mantém longe de ser harmônica, ensejando uma gama de conflitos entre
95
eles . Tanto é que, para a solução dessa relação conflituosa, Teresa Negreiros ensina que
“[...] é preciso decidir sob quais circunstâncias os princípios clássicos devem se sobrepor
96
aos princípios contemporâneos” e vice-versa, acrescentamos.
Para essa corrente doutrinária, alcançar o equilíbrio entre as duas vertentes
principiológicas que cercam a concepção do homem contemporâneo passa a ser o dilema
a se solucionar nos dias de hoje no campo contratual, visto, para os que assim creem,
ser esse o compromisso firmado pela ordem constitucional.
Na síntese dessa questão, é de conferirmos o que diz Maria Celina Bodin de
Moraes:
[...] a imposição de solidariedade, se excessiva, anula a liberdade;
a liberdade desmedida é incompatível com a solidariedade. Todavia, quando ponderados, seus conteúdos se tornam complementares:
regulamenta-se a liberdade em prol da solidariedade social, isto é,
da relação de cada um com o interesse geral, o que, reduzindo a desigualdade, possibilita o livre desenvolvimento da personalidade de
97
cada um dos membros da comunidade.
Em outras palavras, e neste ponto concordando com essa corrente, a pretexto
de se reagir aos excessos, resultado da primazia absoluta da força jurígena da autonomia
da vontade individual, não se poderia admitir o revesso da moeda, isto é, a simples e
absoluta negação dos aspectos clássicos do voluntarismo pelos chamados novos princípios que cercam atualmente o instituto contratual, como se estivéssemos diante de
uma espécie de tabula rasa.
224
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
Nesta linha, Teresa Negreiros defende a ponderação dos princípios à luz do caso
concreto, no sentido de que os juízos de prevalência de um bloco de princípios sobre o
98
outro deveriam ser pautados em critérios objetivos e razoáveis, e, por isso, equânimes .
Para tal corrente, a matriz que hoje deve nortear a hermenêutica contratual é
a que considera a complementaridade e, se for o caso de conflito, a ponderação dos
princípios aqui divididos em clássicos e contemporâneos. Afirmam seus representantes
que é assim que deseja a “vontade de constituição”, expressão cara à acepção da força
normativa da Constituição construída por Konrad Hesse. Todavia, tal percepção, pelo
menos em sua totalidade, não é a que transparece do espírito do neoconstitucionalismo.
É certo que a tal dicotomia direito público versus direito privado não poderia
ser resolvida pela simples anulação dos princípios clássicos da liberdade individual,
personificados, por exemplo, na autonomia da vontade e na relatividade dos efeitos dos
contratos (embora os princípios contemporâneos, sintetizados pela questão da ordem
e interesse públicos, limitem essa autonomia e mitiguem a noção de exclusividade da
produção inter partes dos efeitos dos contratos, atribuindo-lhes também uma repercussão
99
social merecedora de tutela jurídica) .
Entretanto, não há mais que se falar hoje em dia de dicotomia entre a ordem
pública e privada. O que atualmente verificamos é uma interpenetração do direito público e privado no sistema do Direito, patrocinado pela Constituição através do influxo
de suas normas no sistema jurídico infraconstitucional e da assimilação em seu corpo
de valores sociais e individuais em um só instituto.
A constatação enunciada nesse parágrafo fica evidente pela leitura do artigo
170 da própria Constituição Federal do Brasil, que combina no capítulo da ordem econômica o princípio liberal da livre iniciativa com o da justiça social e do valor social
do trabalho: “A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na
livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da
justiça social, observados os seguintes princípios [...]”.
A par disso, quer nos parecer, e este é o ponto de justificação do presente escrito,
que não há de se falar realmente em uma anulação absoluta dos princípios clássicos
pelos os que denominamos aqui de princípios de vanguarda, como que se jogasse pelos
ares, sem deixar vestígios, os elementos da concepção clássica do contrato. Todavia,
entendemos que, igualmente, não se há de falar em coexistência entre eles na forma
de dois blocos apartados, contrapondo-se um como limite do outro.
Há sim, desta feita, um só conjunto de princípios, em cujo bojo, por via de um
100
processo de síntese, amparando-nos na terminologia da teoria dialética de Hegel ,
ao mesmo tempo que aparentemente se “cancela”, “nega” ou se “anula” os princípios
clássicos, os preserva, submetendo-os a um outro parâmetro de interpretação, até que
novo processo dialético venha a superar os novos fundamentos e assim sucessivamente.
Ora, o que está por detrás dessa afirmativa é o simples fato de que o Direito, e,
sobretudo, o Direito Civil, não deve ficar recolhido em si mesmo, petrificado em seus
dogmas de ontem, imune à passagem do tempo, às demandas sociais e às transformações
econômicas e filosóficas, irritantemente neutro politicamente.
Sob esta perspectiva, é de se entender que não estamos diante da condenação
daqueles princípios liberais como errados e da absolvição dos postulados contemporâneos
como corretos, num raciocínio maniqueísta do bem contra o mal.
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
225
Definitivamente não estamos a enfrentar o anunciado conflito ou embate principiológico. O fato é que as relações contratuais de agora são fundamentadas por um bloco
único de princípios, a se constituir em uma solução que, além dos novos postulados,
agasalha todos aqueles paradigmas anteriores, reconhecendo seus valores, preservando
seus méritos e evitando suas limitações, o que faz do suposto embate entre eles mero
“conflito aparente” de princípios.
O que efetivamente se põe a nossa frente é um processo de mutação normativa
ou uma releitura de mesmos enunciados principiológicos, patrocinada por uma complexa e efetiva mudança no que tange a visão de mundo, do homem, de sociedade, e,
até mesmo de concepção do Estado.
E tal releitura desemboca, no caso da relação contratual, como assim profere Louis
Josserand, “[...] no reconhecimento do contrato não como fenômeno individual, em
que as próprias partes regulam soberanamente seus interesses patrimoniais disponíveis,
101
mas como um fenômeno social” .
Decorre daí, e por tudo, defendermos que a relação contratual contemporânea se
alicerça sobre os princípios da autonomia da vontade, da força obrigatória dos contratos
e da relatividade de seus efeitos – ainda que não mais atuem de forma absoluta – da
boa-fé objetiva, da função social do contrato e do equilíbrio econômico.
Assim considerada a composição principiológica do contrato hodierno, é de se
investigar a maneira de aplicação desses princípios na solução do caso concreto, haja
vista sugerirem uma oposição entre si. É o que faremos logo a seguir.
3.2. Uma solução pela integridade do Direito.
Conforme exposto até aqui, não divergirmos daqueles que acertadamente entendem que a relação contratual contemporânea se sustenta nos princípios clássicos
da autonomia da vontade, da força obrigatória dos contratos e da relatividade de seus
efeitos – embora sob um viés interpretativo que os tornam mitigados, como já mencionado – bem como nos princípios contemporâneos da boa-fé objetiva, da função social
do contrato e do equilíbrio econômico.
A divergência não está em admitir a coexistência dos denominados princípios
clássicos com os contemporâneos. A discórdia está em considerá-la não conflituosa
mas integrativa, como pensamos, e, bem assim, quanto à forma de aplicá-los no caso
concreto – optando pela técnica do princípio adequado e não pelo mecanismo da
ponderação de valores.
O mecanismo de ponderação de valores mencionado ligeiramente no item
3.1 antecedente diz respeito à teoria elaborada por Robert Alexy quanto à adoção do
princípio da proporcionalidade para a solução dos casos de conflito entre postulados
jurídicos divergentes, abrindo caminho para a aplicação simultânea e proporcional
de diferentes princípios jurídicos em um mesmo caso concreto através do método da
ponderação de valores.
Para esse autor a aplicação dos princípios deve contemplar simultaneamente
todos os possíveis princípios aplicáveis à hipótese concreta, graduando-os, propor226
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
cionalmente, conforme uma escala de importância. Nesse sentido, a decisão judicial
ideal seria aquela que conseguisse alcançar um grau máximo de satisfação de todos os
princípios aplicáveis ao caso.
Assim, o princípio jurídico não seria uma norma definitiva mas apenas otimizável, não possuindo, pois, conteúdo normativo cogente, não trazendo consigo um dever
mas apenas um valor moral que pode ser atendido de diversas formas em proporções
variáveis, a depender das condições fáticas e jurídicas ora existentes.
Para Robert Alexy, interessa descobrir quais são os valores preferíveis, importa
o que é melhor e não o que é devido (direitos). O direito, na verdade, só surge depois
dessa escolha, pois antes da ponderação não há direito, mas apenas comandos de otimização de cunho moral.
Em sua teoria dos princípios, na qual procura elencar elementos sobre os quais
possa chegar o intérprete a uma escala concreta de valores com grau de indeterminação
mínima possível, aquele autor acaba por favorecer em seu sistema de prioridades os
direitos individuais face aos direitos coletivos, de modo que só é possível assegurar os
direitos coletivos garantindo-se primeiramente os direitos individuais.
A expressão ponderação de valores ou de princípios diz respeito à dimensão de
peso ou importância que um postulado tem quando se cruza com outro em determinado
caso concreto; aquele princípio que dará solução ao caso em apreço será definido por
meio de um processo de ponderação no que tange a força relativa de cada um naquele
caso concreto, sem que o princípio considerado in casu como de menor peso perca sua
validade enquanto norma. Já no que diz respeito ao critério utilizado para as regras, diferentemente, se num mesmo sistema jurídico duas regras estão em conflito, uma suplanta
ou simplesmente revoga a outra, e, assim, só uma delas pode ser considerada válida.
Em síntese, a teoria da ponderação de valores exige que alguns deles sejam assumidos como prioritários pelo juiz e pelo direito, realçando um determinado valor moral
em detrimento dos demais, o que ameaça diretamente o pluralismo político-jurídico, o
qual exige respeito à pluralidade das formas de vida.
Neste trabalho nos aproximamos da concepção elaborada por Ronald Dworkin
de um sistema de direitos baseado na integridade do Direito, na idéia de que o suposto
conflito entre princípios não passa de um aparente embate e que a solução desse conflito aparente dar-se-á por meio da técnica do princípio adequado e não através de um
mecanismo de ponderação.
Nesse passo, assinala Dworkin que:
A integridade expande e aprofunda o papel que os cidadãos podem
desempenhar individualmente para desenvolver as normas públicas
de sua comunidade, pois exige que tratem as relações entre si mesmos
como se estas fossem regidas de modo característicos, e não espasmódico, por essas normas. [...] A integridade infunde às circunstâncias
públicas e privadas o espírito de uma e de outra, interpenetrando-as
102
para o benefício de ambas.
Desse modo, o direito deve ser interpretado sob a égide de princípios ordenadores
e não como fruto da tradição nem como norma moral. Colocar os direitos individuais
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
227
ou os sociais como norma moral prioritária a todas as pessoas acaba por negar os direitos
sociais e individuais, respectivamente, das que não compartilham dessa ou daquela visão
103
de mundo, pois não se identificariam com o direito produzido .
Direito como integridade, portanto, quer significar que o Direito é uno, e, por
assim ser, todas as normas existentes no ordenamento devem ser interpretadas de maneira a manter a coerência interna que lhe garanta unidade.
No teor desta teoria “os princípios jurídicos não podem ser vistos como opostos
entre si, mas coordenados por uma concepção pública de justiça. Cada princípio, sendo
ligado a todo o ordenamento de forma integral, traz em si uma dimensão pública e uma
104
dimensão individual.
É o que Clóvis de Couto e Silva denomina de “interpenetração do direito público
105
e do direito privado” . Essa é a tônica a ser considerada de agora em diante. Nem o
dirigismo estatal puro nem, muito menos, o voluntarismo.
Agora os campos de atuação do direito público e do direito privado não mais
devem ser determinados pela intervenção ou não intervenção estatal nas atividades
privadas ou pela exclusão do cidadão das esferas da administração pública, conforme
já frisamos para trás.
Doravante, o que deve determinar a área de abrangência de um e de outro será
a prevalência ora do interesse público ora do interesse privado, e isso será aferido no
106
caso concreto e não abstratamente. O que quer significar uma enorme transformação hermenêutica, pois terá repercussão em vários institutos tanto do direito público
quanto do privado.
Consequentemente, é um erro compreender a liberdade como um direito unicamente individual, por exemplo, pois a liberdade individual é a finalidade de qualquer
ordem pública soberana. Tampouco a assistência social seria um direito exclusivamente
coletivo, pois ele só se realiza na esfera do indivíduo, capacitando-o para exercer sua
autonomia e liberdade privada.
Nesse sentido as esferas pública e privada “são cooriginárias e igualmente primordiais”. A dimensão pública está presente em todo direito individual e este só se realiza
porque essa dimensão pública permite a cada pessoa torná-lo legitimamente exigível
frente ao Estado e frente aos demais cidadãos. No mesmo diapasão, “todo direito coletivo só se realiza mediante a dimensão privada de cada cidadão que, individualmente,
107
acessa e exerce tais direitos”.
Assim, dois princípios jurídicos que revelam demandas sociais distintas podem
perfeitamente conviver harmonicamente no direito sem que isso signifique contradição:
A propriedade, por exemplo, é expressão simultânea de princípios
opostos. Nela há um princípio egoísta que priva a coletividade do uso
e gozo de um determinado bem, mas também há um princípio social
que restringe o uso abusivo do direito de propriedade e impõe que
mesmo a propriedade individual contribua para a riqueza de toda a
108
coletividade.
A validade abstrata e universal de um princípio não ameaça nem afeta a validade abstrata e universal de outro princípio que lhe seja integralmente contrário. “A
228
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
integridade contesta a ideia já exposta de que ‘diferentes ideologias produziram partes
diferentes do direito’, pois o que ocorre não é acréscimo de novos direitos, mas a rein109
terpretação de todo o ordenamento” .
A par do exposto, na busca da solução de um caso concreto face a princípios
aparentemente divergentes, deve-se entender o Direito como interpretação jurídica e
não como mera subjunção do caso a uma norma.
Por assim ser, não vemos incompatibilidade em interpretar o caso concreto sob o
comando de um único princípio dentre todos aqueles abstratamente válidos no direito,
aquele que significará a manutenção da coerência e da integridade de todo o sistema – é
110
o que Ronald Dworkin chama de “dimensão da adequação” .
Nesse sentido, a decisão judicial exige uma escolha entre princípios aplicáveis
no caso, e esta escolha de um dentre outros princípios não retira a validade abstrata
dos demais, apenas indica qual é o mais adequado às particularidades únicas de uma
certa e determinada situação concreta.
Para melhor esclarecer o que aqui defendemos, analisaremos o case da jurisprudência norte-americana extraído da obra “O império do direito” de Ronald Dworkin:
111
o caso Elmer.
Elmer assassinou seu avô por envenenamento em Nova York, em 1882. Sabia
ele que seu avô o tinha deixado, por testamento, com a maior parte dos bens. Desconfiado que o testador pudesse modificar a disposição de vontade e deixá-lo sem nada em
virtude de novo casamento, simplesmente resolveu matar o ascendente, e assim o fez.
O crime de Elmer foi descoberto e ele foi condenado penalmente a alguns anos
de prisão. Assim, uma vez que a legislação testamentária e sucessória não dispunha
absolutamente nada sobre se uma pessoa citada em um testamento poderia ou não herdar
se houvesse assassinado o testador, a pergunta que se coloca é: estaria Elmer legalmente
habilitado a receber a herança que seu avô lhe deixara no último testamento? Ou os
legatários residuais (as filhas do avô) herdariam em seu lugar?
Como se vê, detecta-se no caso o envolvimento de quatro princípios aparentemente divergentes: a autonomia da vontade do testador livre de vícios no momento
da elaboração do testamento, o da segurança jurídica e legalidade (já que não havia
previsão legal que excluísse o direito de Elmer de herdar os bens do avô morto por ele)
e o relativo a princípios gerais do Direito que conferem unidade ao sistema.
O juiz Gray votou favoravelmente a Elmer, conferindo-lhe o exercício do direito
de herdar, optando por uma interpretação literal do ordenamento jurídico, dando à lei
testamentária um “significado acontextual”, insistindo que a verdadeira lei, interpretada de maneira adequada não continha exceções para os assassinos; e, dessa forma,
atendeu a alegação da defesa no sentido de que se assim não fosse o tribunal estaria
alterando o testamento e substituindo o direito e a vontade do testador por suas próprias
convicções morais.
Do conteúdo da decisão do juiz Gray, indo mais a fundo que a expressão interpretação literal pode sugerir, acrescentamos que não havia nenhuma condição no
testamento que atrelasse Elmer a se comportar dessa ou daquela forma em relação ao
próprio testador, ou a qualquer outra pessoa a ele relacionado, para ser merecedor do
legado deixado.
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
229
Bem assim, se Elmer perdesse a herança por ser um assassino estaria ocorrendo
aí um bis in idem, uma vez que sua penalidade na esfera penal estaria sendo aumentada
pelos juízes, sem prévia previsão legal, depois que o crime foi cometido, ofendendo
diretamente o princípio da segurança jurídica e o da legalidade quanto ao postulado
nulla poena sine praevia lege (não há crime sem lei anterior que o defina nem pena sem
prévia cominação legal).
Todavia, essa decisão foi rebatida pela maioria, liderada pelo voto do juiz Earl,
não reconhecendo o suposto direito de Elmer de receber a herança, por conta de ter
assassinado o próprio testador, seu avô.
Basicamente a decisão vitoriosa se fundou em duas razões: primeiro, se realçou
a razoabilidade de admitir, lançando mão de uma interpretação histórica, que uma lei
não pode ter nenhuma consequência que os legisladores teriam rejeitado se nela tivessem pensado, bem assim que os feitores da lei têm uma intenção genérica e difusa de
respeitar princípios tradicionais de justiça; segundo, considerando que a lei faz parte de
um sistema de Direito mais compreensivo e vasto, ela deve ser interpretada de modo a
conferir, em tese, maior coerência a esse sistema.
A par disso, sustentou o juiz Earl que o Direito, em outros contextos, respeita
o princípio de que ninguém deve beneficiar-se de seu próprio erro, de tal modo que a
lei sucessória deveria ser interpretada no sentido de negar uma herança a alguém que
tivesse cometido um homicídio para obtê-la.
Compreendendo o Direito como interpretação e não exclusivamente subjunção,
na visão de Ronald Dworkin, nada obstante não haver norma escrita dispondo sobre
situação semelhante à propiciada por Elmer que trouxesse alguma exceção ao direito de
herdar no caso de homicídio do autor da herança, o tribunal reconheceu a ofensa ao princípio geral pelo qual ninguém pode se beneficiar da sua própria torpeza, para impedir que
Elmer herdasse os bens a ele testados, mantendo assim a integridade do sistema jurídico.
Em se entendendo o Direito apenas como subjunção do fato a uma regra estaria
a imperar uma injustiça, uma vez que o elemento fático puro e simples da subjunção
possuía características que não estavam previstas no elemento normativo. Daí se recorrer
a um único princípio para se dá a resposta adequada à Constituição.
Inclinamos em compactuar com o acerto da decisão da maioria do tribunal
norte-americano no sentido de que guarda relação com a interpretação que opta pela
aplicação de um único princípio, coadunada que está com a manutenção da coerência
e da integridade de todo o sistema de Direito, e, por conseguinte, com o valor justiça
extraído do próprio Direito e não de uma norma moral calcada na subjetividade de cada
julgador ou juiz, e muito menos no raciocínio simplista da subjunção do fato à regra.
No caso que acabamos de examinar estávamos diante da aplicação (ou não) de
uma lei na espécie. Porém, em muitas situações de processos judiciais, o demandante
nem sempre discute a aplicação direta da lei, se esta se subsume ou não ao caso concreto. Discute-se como matéria principal o acatamento ou não de ou outro princípio
para a solução da lide posta. Tais situações se encontram facilmente no bojo de relações
contratuais levadas a juízo.
Em sendo assim, trazemos como leading case atinente à relação contratual e
princípios correlatos o contido na decisão do Recurso Especial nr. 691.738/SC do Su230
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
a
perior Tribunal de Justiça, de relatoria da Ministra Nancy Andrighi – 3 . Turma do STJ,
julgado em 12.05.2005, para darmos fecho ao defendido neste tópico.
Pessoa jurídica incorporadora de imóveis ajuizou ação ordinária contra o BESC
S/A (Banco do Estado de Santa Catarina) na qual obteve antecipação de tutela para
autorizar o fracionamento da hipoteca de imóvel dado em garantia àquela instituição
financeira, com a consequente liberação de gravame hipotecário sobre a totalidade do
112
imóvel, com fundamento no artigo 1.488 do Código Civil de 2002.
O BESC S/A agravou da decisão de primeiro grau alegando, dentre outros
argumentos, que a decisão contrariava o princípio do pacta sunt servanda e que a aplicação do artigo 1.488 do novo Código Civil ofendia o ato jurídico perfeito consolidado
na vigência do Código Civil de 1916. O agravo foi provido pelo TJSC para cassar a
antecipação de tutela.
A pessoa jurídica incorporadora que tinha interesse em comercializar os imóveis
que dera em garantia hipotecária ao BESC, atacou a decisão do Tribunal de Justiça
por meio do REsp aqui em comento, o qual foi provido para reconhecer o direito da
o
Incorporadora à antecipação da tutela que obtivera em 1 . grau, com fundamento
unicamente no princípio da função social do contrato.
Confira a ementa:
RECURSO ESPECIAL. ANTECIPAÇÃO DE TUTELA. IMPUGNAÇÃO EXCLUSIVAMENTE AOS DISPOSITIVOS DE DIREITO MATERIAL. POSSIBILIDADE. FRACIONAMENTO DE
HIPOTECA. ART. 1.488 DO CC/02. APLICABILIDADE AOS
CONTRATOS EM CURSO. INTELIGÊNCIA DO ART. 2.035
DO CC/02. APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA FUNÇÃO SOCIAL DOS CONTRATOS. (grifo nosso)
-[...].
-O artigo 1.488 do CC/02, que regula a possibilidade de fracionamento
de hipoteca, consubstancia uma das hipóteses de materialização do princípio da função social dos contratos, aplicando-se, portanto, imediatamente às relações jurídicas em curso, nos termos do artigo 2.035 do
CC/02. (grifo nosso)
-[...].
-Recurso Especial parcialmente conhecido e, nessa parte, provido
(Resp. nr. 691.738/SC do Superior Tribunal de Justiça, de relatoa
ria da Ministra Nancy Andrighi – 3 . Turma do STJ, julgado em
12.05.2005).
Percebe-se na decisão em apreço, e isso é de fundamental importância para o que
estamos a defender neste artigo, a coexistência não conflituosa dos princípios clássicos
do contrato (no caso a força obrigatória dos pactos) com os denominados princípios
contemporâneos (tal qual o da função social do contrato) e o uso da técnica de aplicação
de um único princípio adequado para a solução da controvérsia.
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
231
Na hipótese, a hipoteca pactuada entre a Incorporadora e o BESC S/A foi considerada válida, mas seus efeitos estariam subordinados ao que dispõe o artigo 1.488
do atual Codex (sem precedente no Código de 1916), que traz em seu bojo o postulado
da função social.
Disse o Superior Tribunal de Justiça neste recurso especial que o artigo 1.488 do
atual Código Civil não busca a desconstituição completa do negócio jurídico legitimamente pactuado entre o recorrente e recorrido. Ainda conforme aquela Corte Superior,
o dispositivo em referência não interfere no contrato, o qual continua válido entre as
partes signatárias, apenas cria uma “válvula de escape” para os adquirentes (terceiros)
das unidades do loteamento ou do condomínio edilício, em face de quem os efeitos da
hipoteca não se produzem.
Ademais, assim procedendo, o STJ determinou, no caso, a não prevalência
de uma convenção na hipótese de ela se conflitar com princípios de ordem pública
sacramentados pela Constituição da República.
A par do relatado e explicado vale transcrever a conclusão de Eroulths Cortiano
Júnior sobre a decisão em comento:
O entendimento – que induz a eficácia do negócio jurídico em prol
do adquirente de boa-fé – coaduna-se com o tratamento vanguardista que a jurisprudência já vinha dando ao direito real de hipoteca,
como demonstra a Súmula nr. 308 do Superior Tribunal de Justiça
(‘A hipoteca firmada entre a construtora e o agente financeiro não
tem eficácia perante os adquirentes do imóvel’). Este posicionamento
enfrentou os inúmeros litígios decorrentes da constituição de hipoteca do imóvel onde se constrói, e cujo financiamento não é quitado,
colocando em risco a aquisição do imóvel pelos particulares, e levou
em conta a boa-fé destes compradores. Nestes casos, como no julgado do Superior Tribunal de Justiça, resolveram-se as coisas no plano
113
da eficácia.
Em sendo assim, é de se extrair do até aqui apresentado e explicitado que, atualmente, nos sistemas de Direito ocidental lastreados pelo dogma do Estado Democrático
de Direito, dentre eles o brasileiro, sem sombra de dúvida, há uma proximidade bastante
evidente do Código Civil com a Constituição pela consideração da pessoa humana como
valor fundamental da ordem jurídica, gerando valores fundamentadores do conjunto
normativo. tais quais a justiça social, segurança jurídica, liberdade, igualdade material
e dignidade da pessoa humana.
É de se perceber que desse elenco de valores fundamentais há uma amálgama
de concepções ditas clássicas e outras consideradas de vanguarda, a denotar a interpenetração de valores de ordem pública e de ordem privada. Interpenetração esta que, à
luz da Constituição, exige, a partir dela, uma nova leitura dos princípios já conhecidos
integrados aos postulados que se achegam. E tal coexistência e integração nada mais
significam que, a seu ritmo, o Direito não fica (e não deve ficar) imune à passagem do
tempo, inerte e isolado como numa “torre de marfim”, como aduz Maria Helena Diniz:
232
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
Poder-se-á dizer que não há norma jurídica que não deva sua origem
a um fim, a um motivo prático. O propósito, a finalidade, consiste em
produzir na realidade social determinados efeitos que são desejados
por serem valiosos, justos, convenientes, adequados à subsistência de
uma sociedade. A busca desse fim social será a meta de todo o aplicador do direito. Com isso a teleologia social terá um papel dinâmico
e de impulsão normativa. Se assim não fosse, a norma jurídica seria,
na bela e exata expressão de Rudolf von Ihering, ‘um fantasma de
direito’, uma reunião de palavras vazias. Sem conteúdo substancial
esse ‘direito fantasma’, como todas as assombrações, viveria uma vida
de mentira, não se realizaria, e a norma jurídica – é ainda o mestre
do Gottingen quem diz – foi feita para se realizar. A norma não corresponderia a sua finalidade; seria, no seio da sociedade, elemento de
desordem e instrumento de arbítrio. Viveria numa ‘torre de marfim,
isolada, à margem das realidades, autossuficiente, procurando em si
mesma o seu próprio princípio e o seu próprio fim’. Abstraindo-se
do homem e da sociedade, alhear-se-ia de sua própria finalidade e
de suas funções, passaria a ser uma pura idéia, criação cerebrina e
114
arbitrária.
CONCLUSÃO
Sendo da essência do Estado Democrático de Direito o pluralismo político,
aquele deve estar amoldado, quanto aos princípios que norteiam seu tecido social e
seu sistema jurídico, na própria Constituição, o “fiel” da balança do equilíbrio social
– um equilíbrio de forças em tensão –, em prol da concretização do bem comum e do
bem existir. Ideais na Lei Fundamental propugnados por meio de postulados e normas
sintetizados no valor fonte da dignidade da pessoa humana.
E nesse rumo, a fim de trazer essa construção teórica para o instituto do contrato, lançamos mão da perspectiva civil-constitucional para propugnar o influxo da
Constituição no direito civil, e, especialmente no direito do contrato. Viés interpretativo
que trouxe ao ordenamento civil a superação da perspectiva patrimonialista da relação
contratual pelos valores da dignidade da pessoa, da solidariedade social, da igualdade
material e do valor social da livre iniciativa – valores existenciais que concretizarão a
tão almejada justiça social ou substancial dos contratos.
E como não poderia deixar de ser, esses paradigmas existenciais, fundados na
dimensão do homem como pessoa (e não mais indivíduo e muito menos súdito) e em
sua existência digna, se por um lado trouxeram em seu âmago novos princípios que
lhe deram sentido prático quando aplicados à relação contratual – a boa-fé objetiva, a
função social do contrato e o equilíbrio econômico – por outro, não reservou ao limbo
da história os consagrados princípios liberais clássicos da autonomia da vontade, da
força obrigatória do contrato e da relatividade de seus efeitos.
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
233
Embora estes últimos postulados não mais estejam dotados da força absoluta que
lhes fora impingida pelo contexto político-social em que foram forjados (século XVIII/
XIX pós-absolutismo), não há como negar sua presença na relação contratual contemporânea, ainda que em tonalidade mitigada, porquanto submetidos a valores existenciais
(não voluntaristas e patrimonialistas) edificadores da nova ordem constitucional.
A par disso, pugnamos neste artigo pela integração dos princípios clássicos da
relação contratual com os denominados novos princípios, a refletir o fenômeno da
interpenetração do direito público e do direito privado, aliado à hermenêutica “kelseniana” que exige a aplicação das demais normas à luz da Constituição e não o contrário.
É que, conforme nos alerta Gustavo Tepedino: “[...] o Código Civil é o que a
ordem pública constitucional permite que possa sê-lo. E a solução interpretativa do
115
caso concreto só se afigura legítima se compatível com a legalidade constitucional” .
Em sendo assim, é de se extrair do apresentado para trás que nos sistemas de
direito ocidental fundados no dogma do Estado Democrático de Direito, dentre eles o
brasileiro, há uma proximidade bastante evidente do Código Civil com a Constituição,
vínculo este que se dá pela consideração da pessoa humana como valor fundamental
da ordem jurídica, gerando valores fundamentadores do conjunto normativo atual, tais
quais a justiça social, segurança jurídica, liberdade, igualdade material e dignidade da
pessoa humana. E nessa linha, é desejo dessa nova ordem que a lógica do cada um por
si do liberalismo clássico ou o nexo do um por todos e todos por um do dirigismo estatal
ceda lugar à ideia do cada um por si e por todos.
Nota-se que nesse elenco de valores fundamentais há um combinado de concepções ditas individualistas, de cunho privado, com outras consideradas existenciais,
de natureza social, a denotar uma interpenetração de valores de ordem pública e de
ordem privada que anunciam a integridade do sistema do Direito, conforme nos apresenta Ronald Dworkin.
Essa integridade do direito vai de encontro ao pensamento de que diferentes
ideologias produziram partes diferentes do direito, pois o que ocorre não é acréscimo de
novos direitos, mas a reinterpretação de todo o ordenamento à luz da Constituição. E por
assim ser, não há que se falar em princípios divergentes, em conflito de princípios, mas
sim, quando muito, em uma aparente discórdia, em um suposto embate principiológico.
Direito como integridade, portanto, quer significar que o direito é uno, e, por
isso, todas as normas existentes no ordenamento devem ser interpretadas de maneira
a manter a coerência interna que lhe garanta unidade.
A validade abstrata e universal de um princípio não ameaça nem afeta a validade abstrata e universal de outro princípio que lhe seja supostamente contrário. Digo
“supostamente contrário” porque a integridade do direito, como vimos, contesta a
idéia do conflito de princípios a ser resolvido pela técnica da ponderação dos valores,
difundida por Robert Alexy.
Em sendo assim, não vemos incompatibilidade em interpretar o caso concreto
sob o comando de um único princípio dentre todos aqueles abstratamente válidos no
direito, aquele que significará a manutenção da coerência e da integridade de todo o
sistema – é o que Ronald Dworkin chama de “dimensão da adequação”
Por isso destacamos que a decisão judicial exige uma escolha entre princípios
aplicáveis no caso; e esta escolha de um dentre outros princípios não retira a validade
234
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
abstrata dos demais, apenas indica qual é o mais adequado às particularidades únicas
de uma certa e determinada situação concreta.
Trazendo tal constatação para o direito civil, especificamente para o instituto
do contrato, quisemos aqui demonstrar que as relações contratuais privadas assumiram
fundamentos diversos daqueles que se conciliavam com as perspectivas iluministas do
século XVIII, em relação às quais o direito civil teria como escopo a disciplina do indivíduo como ser abstrato, participante de relações jurídicas fundadas em uma igualdade
puramente formal.
Com o passar do tempo, aquela lógica liberal individualista forjada na liberdade
privada de contratar (primazia da vontade) teve que se defrontar com uma nova realidade
social, cuja complexidade, assomada às profundas desigualdades sociais verificadas em
seu bojo, trouxe ao conteúdo das relações contratuais uma nova perspectiva: a noção
de justiça contratual material (primazia da justiça social).
E nesse passo, com o escopo de realizar a justiça social, o instituto do contrato
(vale dizer, o direito civil) se renova e se adapta à passagem do tempo. Não renega o
passado mas o supera. Não se fecha à nova realidade social, mas a reflete. Daí defendermos aqui que a composição principiológica da relação contratual privada de hoje
se condensa em um bloco único de princípios numa integração, à luz da Constituição,
entre os princípios clássicos e os denominados novos princípios.
Dessa maneira, é nosso anseio que tal pensamento jurídico se espraie e repercuta
também na consciência jurídica dos aplicadores do direito ao se depararem com casos
concretos cuja solução depende do manuseio desse novo arcabouço principiológico.
Agindo assim, cremos estarmos a realizar e efetivar finalmente o valor constitucional
da justiça social dos contratos.
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Notas
1
Apud NEGREIROS, Teresa. Teoria do contrato: novos paradigmas. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar,
2006, p. 8.
O Iluminismo consiste em uma corrente filosófica da Escola Jusnaturalista cuja idéia central tem o homem
como ser dotado de direitos inatos que precedem o Estado e a comunidade política, e que têm de ser respeitados e garantidos pelo Poder Público. Como pensamento político tem o Iluminismo preocupação com
a racionalização e fundamentação da legitimidade do poder estatal, o que se buscou por meio das teorias
do contrato social e do constitucionalismo. É o marco filosófico do liberalismo político (SARMENTO,
Daniel. Direitos fundamentais e relações privadas. 2ª. ed. Rio de Janeiro: 2006, p. 6 a 9).
3
Para elencar os princípios contratuais contemporâneos lançamos mão da classificação de Antonio Junqueira
de Azevedo citado por Teresa Negreiros (in Teoria do contrato: novos paradigmas. 2. ed. Rio de Janeiro:
Renovar, 2006, p. 29 e 105-114).
4
Entenda-se por liberdade situada “a liberdade que se exerce na vida comunitária” (MARTINS-COSTA,
Judith. Revista Direito GV. Reflexões sobre o princípio da função social dos contratos. São Paulo:
Fundação Getúlio Vargas, 2005, p. 43), ou seja, o indivíduo situado no conjunto de suas circunstâncias,
fato que implica na visão concreta das relações jurídicas forjadas do convívio em sociedade.
5
O mecanismo de ponderação de valores aqui mencionado, diz respeito à teoria elaborada por Robert Alexy
quanto à adoção do princípio da proporcionalidade para a solução dos casos de conflito entre normas jurídicas dadas como divergentes, abrindo caminho para a aplicação simultânea e proporcional de diferentes
princípios jurídicos em um mesmo caso concreto através do método da ponderação de valores.
6
MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Martires e GONET BRANCO, Paulo Gustavo. Curso
de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 48.
7
Importante conhecer do alerta que faz Gustavo Tepedino sobre a compreensão que se deve dar à terminologia “Constitucionalização do Direito Civil” (in Temas de Direito Civil. 4ª. ed. Rio de Janeiro: Renovar,
2008, p. 22 e 23), “A adjetivação atribuída ao direito civil, que se diz constitucionalizado, socializado,
despatrimonializado, se por um lado quer demonstrar, apenas e tão-somente, a necessidade de sua inserção no tecido normativo constitucional e na ordem pública sistematicamente considerada, preservando,
evidentemente, a sua autonomia dogmática e conceitual, por outro lado poderia parecer desnecessária
e até errônea. Se é o próprio direito civil que se altera, para que adjetiva-lo? Por que não apenas ter a
coragem de alterar a dogmática, pura e simplesmente? Afinal, um direito civil adjetivado poderia suscitar
a impressão de que ele próprio continua como antes, servindo os adjetivos para colorir, como elementos
externos, categorias que, ao contrário do que se pretende, permaneceriam imutáveis. [...] Há de se advertir,
no entanto, desde logo, que os adjetivos não poderão significar a superposição de elementos exógenos do
2
238
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
direito público sobre conceitos estratificados, mas uma interpenetração do direito público e privado, de
tal maneira a se reelaborar a dogmática do direito civil. Trata-se, em uma palavra, de estabelecer novos
parâmetros para a definição de ordem pública, relendo o direito civil à luz da Constituição, de maneira a
privilegiar, insista-se ainda uma vez, os valores não-patrimoniais e, em particular, a dignidade da pessoa
humana, o desenvolvimento da sua personalidade, os direitos sociais e a justiça distributiva, para cujo
atendimento deve se voltar a iniciativa econômica privada e as situações jurídicas patrimoniais”.
8
FACHIN,
Luiz Edson. Teoria crítica do direito civil. 2ª. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 59
9
Registra-se que o Código Alemão de 1896 imprime um traço distinto no contrato, considerando pertencer
a uma categoria mais geral, sendo, pois, uma subespécie da espécie maior que é o negócio jurídico. Decorre
daí o fato de que o contrato por si só não transfere a propriedade – “é veículo de transferência, mas não
a opera” (in VENOSA, Silvio de Salvo. Direito Civil: Teoria Geral das Obrigações e Teoria Geral dos
Contratos. 4ª. ed. São Paulo: Atlas, 2004, p. 377). Como se vê, este sistema foi adotado em nosso ordenamento, tanto no Código Civil de 1916 quanto no atual (artigos 620 e 1.267 respectivamente). Sobre
o nascimento e evolução histórica do Código Civil brasileiro e a forte influência do direito romano, veja
MOREIRA ALVES, José Carlos. O direito romano e o direito civil brasileiro in O direito e o tempo:
embates jurídicos e utopias contemporâneas. Coord. Gustavo Tepedino e Luis Edson Fachin. Renovar:
RJ, 2008, p. 143 a 154.
10
O consensualismo é um aspecto do contrato originário relacionado com a concordância de vontades em
direção à produção de determinado efeito jurídico. Em seu âmbito se encontra a declaração de vontade,
que é o instrumento da manifestação de vontade. Sem ela (a declaração de vontade) o ato ou negócio
jurídico, e, por conseguinte, o contrato, simplesmente não existe (comentários elaborados a partir de
BARBOZA, Heloisa Helena. Reflexões sobre a autonomia negocial in O direito e o tempo: embates
jurídicos e utopias contemporâneas. Coord. Gustavo Tepedino e Luis Edson Fachin. Renovar: RJ, 2008,
p. 412).
11
Caio Mário da Silva Pereira anota que o Direito medieval, apegado ao poder da Igreja, equiparou a falta
de execução da obrigação contida no contrato à “mentira” (in Instituições de direito civil: teoria geral
das obrigações. 21ª. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 12, Vol. II). Decorre daí o princípio do pacta
sunt servanda, como respeito à palavra dada e aos compromissos advindos dela.
12
NEGREIROS, Teresa. Teoria do contrato: novos paradigmas. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p.
25.
13
“Autonomia: autos, ‘por si mesmo’ + nomos, lei, norma, convenção” (definição extraída do comento de
Heloisa Helena Barboza in Reflexões sobre a autonomia negocial in O direito e o tempo: embates
jurídicos e utopias contemporâneas. Coord. Gustavo Tepedino e Luis Edson Fachin. Renovar: RJ, 2008,
p. 408). Segundo esta autora, o significado da expressão remonta à Grécia antiga, referindo-se “à coletividade, ao seu poder autárquico, capacidade de a polis grega instituir os meios de seus poderes legítimos
e de fazê-los respeitados pelos cidadãos”. Apenas a partir do humanismo individualista do século XVIII é
que a terminologia autonomia passou a ser utilizada em relação aos indivíduos.
14
COUTO E SILVA, Clóvis de. A obrigação como processo. Rio de Janeiro: FVG, 2007, p. 25.
15
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil: teoria geral das obrigações. 21ª. ed. Rio
de Janeiro: Forense, 2007, p. 15, Vol. II .
16
FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Direitos reais. 6ª. ed. Rio de Janeiro: Lúmen
Iuris, 2009, p. 165.
17
Ibidem, p. 165 e 166.
18
Para Pietro Perlingieri (Apud BARBOZA, Heloisa Helena. Reflexões sobre a autonomia negocial in
O direito e o tempo: embates jurídicos e utopias contemporâneas. Coord. Gustavo Tepedino e Luis
Edson Fachin. Renovar: RJ, 2008, p. 409), “a definição de liberdade é influenciada de modo decisivo pelo
contexto cultural, antropológico e ideológico e pela concepção previamente acolhida pelo direito”. Na
cena política do Estado liberal clássico liberdade quer significar, em síntese, conforme, ainda, aquele autor,
“a limitação da soberania do Estado nos confrontos com o indivíduo, ao qual são conferidos direitos, tais
quais: liberdade de pensar, de circular, de associar-se” e a liberdade de contratar, acrescentamos.
19
FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Op. Cit., p. 166.
20
Artigo 524: “A lei assegura ao proprietário o direito de usar, gozar e dispor de seus bens, e de reavê-los do
poder de quem quer que, injustamente, os possua”.
21
PEREIRA, Cáio Mário da Silva. Instituições de direito civil: contratos. 12º. Ed. Rio de Janeiro: Forense,
2007, p. 167. Vol. III.
22
FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Direitos reais. 6ª. ed. Rio de Janeiro: Lúmen
Iuris, 2009, p. 167.
23
NEGREIROS, Teresa. Teoria do contrato: novos paradigmas. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p.
108.
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
239
24
PEREIRA, Cáio Mário da Silva. Op. Cit. p. 7. Vol. III.
Ibidem, p. 7.
Foi com a Lex Poetelia Papiria, de 428 a.C. que se aboliu a execução da obrigação sobre a pessoa do devedor,
projetando-se a responsabilidade sobre seu patrimônio.
27
NEGREIROS, Teresa. Teoria do contrato: novos paradigmas. 2.ed.Rio de Janeiro:Renovar, 2006, p. 4
e 5.
28
MARTINS-COSTA, Judith. O adimplemento e o inadimplemento das obrigações no novo Código
Civil e o seu sentido ético e solidarista in O novo Código Civil: estudos em homenagem ao Prof.
Miguel Reale. Coordenadores: Domingos Franciulli Netto; Gilmar Ferreira Mendes; Ives Grandra da
Silva Martins Filho. São Paulo: LTr, 2003, p. 332-335).
29
PEREIRA, Cáio Mário da Silva. Instituições de direito civil: contratos. 12º. Ed. Rio de Janeiro: Forense,
2007, p. 21-25. Vol. III.
30
É certo, porém, que hodiernamente, esta prerrogativa não vigora mais em sua plenitude, como em tempos
passados. O Código do Consumidor, em seu artigo 39 II e IX-A, é exemplo típico da mitigação desse
corolário do princípio da liberdade de contratar, quando dispõe que o fornecedor de produtos e serviços
não pode recusar o atendimento de demandas dos consumidores na exata medida de suas disponibilidades
de estoque, ressalvados os casos regulados em leis especiais (Ibidem, p. 22.).
31
Outrossim, percebe Caio Mário da Silva Pereira (Ibidem, p. 22 e 24), que esse postulado também não
é absoluto, haja vista que podem existir situações em que não há essa opção de escolha, a exemplo de
serviços públicos concedidos sob regime de monopólio.
32
Segundo destaca Clóvis de Couto e Silva (COUTO E SILVA, Clóvis de. A obrigação como processo. Rio
de Janeiro: FVG, 2007, p. 26-32), essa declaração “livre” de vontade, sofre duas restrições determinantes
para o negócio jurídico que se pretende: a) a restrição à autonomia da vontade no momento da conclusão
do negócio; b) restrição à autonomia da vontade para o regramento das cláusulas contratuais. A primeira
restrição está relacionada com a faculdade de cada um decidir se quer e com quem quer realizar o negócio.
A segunda, é a própria liberdade de dar conteúdo ao negócio jurídico.
33
Nesta linha, admite o Código Civil de 2002 em seu artigo 425 que é lícito às partes estipular contratos
atípicos, observadas as normas gerais ali fixadas. Aqui o Codex faz uma separação entre contratos chamados
típicos, aqueles cujas regras são expostas e desenvolvidas no próprio código e em leis extravagantes, e os
atípicos, aquele que dizem respeito a novas relações jurídicas não especificadas na legislação do país.
34
PEREIRA, Cáio Mário da Silva. Instituições de direito civil: contratos. 12º. Ed. Rio de Janeiro: Forense,
2007, p. 27. Vol. III.
35
COUTO E SILVA, Clóvis de. A obrigação como processo. Rio de Janeiro: FVG, 2007, p. 28.
36
Ibidem, p. 30 e 31.
37
Previstos nos artigos 423 e 424 do Código Civil de 2002.
38
COUTO E SILVA, Clóvis de. A obrigação como processo. Rio de Janeiro: FVG, 2007, p. 31.
39
PEREIRA, Cáio Mário da Silva. Instituições de direito civil: contratos. 12º. Ed. Rio de Janeiro: Forense,
2007, p. 27. Vol. III. Como exemplo do exposto: artigo 6º. inciso V do CDC que se refere ao instituto da
lesão.
40
Ibidem, p. 27. Nessa questão se situa o que se denominou de a teoria da imprevisão, regulada pelos artigos
478 a 480 do Código Civil de 2002 que trata da onerosidade excessiva.
41
COUTO E SILVA, Clóvis de. A obrigação como processo. Rio de Janeiro: FVG, 2007, p. 31.
42
Apud PEREIRA, Cáio Mário da Silva. Instituições de direito civil: contratos. 12º. Ed. Rio de Janeiro:
Forense, 2007, p. 29, Vol. III.
43
NEGREIROS, Teresa. Teoria do contrato: novos paradigmas. 2.ed.Rio de Janeiro:Renovar, 2006, p.
106-114.
44
MARTINS-COSTA, Judith. O adimplemento e o inadimplemento das obrigações no novo Código
Civil e o seu sentido ético e solidarista in O novo Código Civil: estudos em homenagem ao Prof.
Miguel Reale. Coordenadores: Domingos Franciulli Netto; Gilmar Ferreira Mendes; Ives Grandra da
Silva Martins Filho. São Paulo: LTr, 2003, p. 345-347.
45
PEREIRA, Cáio Mário da Silva. Instituições de direito civil: contratos. 12º. Ed. Rio de Janeiro: Forense,
2007, p. 14. Vol. III.
46
GOMES, Orlando. Contratos. 10ª. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1984, p. 38.
47
Aduz Orlando Gomes que o princípio da força obrigatória dos contratos continua vigorando com sua
essência preservada, ainda que sofra atenuações, visto que decorrentes de sensíveis modificações no
pensamento jurídico e não de suposta alteração radical nas bases do Direito dos contratos (Op. Cit., p.
39). Silvio de Salvo Venosa, por sua vez, embora comungue com o entendimento de que este princípio
vigora ainda hoje, expressa que as atenuações legais a ele incidentes alteram em parte sua substância (in
25
26
240
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
Direito Civil: Teoria Geral das Obrigações e Teoria Geral dos Contratos. 4ª. ed. São Paulo: Atlas,
2004, p. 390).
GOMES, Orlando. Contratos. 10ª. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1984, p. 39 e 40. De acordo este autor,
“A cláusula rebus sic standibus enuncia que para se conservar a eficiência da força obrigatória do contrato,
havia de se subentender que não deveria ser alterado o estado de fato existente no momento da formação
do contrato”. Cita, ainda, este jurista, como marco decisivo para a evolução do pensamento jurídico relacionado a este princípio a Lei francesa Failliot, de 21 de maio de 1918, a qual dispunha que “os contratos
mercantis estipulados antes de 1º. de agosto de 1914, cuja execução se prolongasse no tempo, poderiam
ser resolvidos se, em virtude do estado de guerra, o cumprimento das obrigações por parte de qualquer
contratante lhe causasse prejuízos cujo montante excedesse de muito a previsão que pudesse ser feita,
razoavelmente, ao tempo de sua celebração”.
Em referência à cláusula rebus sic standibus, a jurisprudência do STJ vem considerando ser possível a
resilição unilateral do compromisso de compra e venda por iniciativa do promitente comprador se ele não
reúne mais as condições econômicas de suportar o pagamento das prestações (no caso dos autos, o adquirente
do imóvel apresentava problemas de saúde e financeiro), ensejando retenções pelo promitente vendedor
de parte das parcelas pagas para compensá-lo pelos custos operacionais da contratação (FRAGA, Tânia
Regina Trombini (organizadora). Julgamentos e súmulas do STF e STJ. São Paulo: Método, 2009, p.
726) (grifo nosso).
49
Segundo Orlando Gomes, por não bastar a alteração do estado de fato no momento da formação do
vínculo, sendo preciso algo mais que justifique a quebra da fé jurada, a impossibilidade de se prever tal
mudança de estado veio a ser considerada condição indispensável à modificação do conteúdo do contrato
pela autoridade judicial, estruturando-se em torno dessa condição a denominada teoria da imprevisão (Op.
Cit., p. 40). Nesse sentido a jurisprudência assente em ambas as Turmas da Segunda Seção do STJ nos
precedentes REsp 803.481/GO, de 01.08.2007; REsp 722.130/GO, de 20.02.2006; REsp 800.286/GO, de
18.06.2007 e REsp 679.086/GO, de 10.06.2008 (FRANGA, Tânia Regina Trombini (organizadora). Op.
Cit., p. 727).
50
Reportando-se aos efeitos internos do contrato, Orlando Gomes (in Contratos. 10ª. ed. Rio de Janeiro:
Forense, 1984, p. 43) alerta para a necessária distinção entre a existência do contrato, a qual, na qualidade de fato, não pode ser indiferente a terceiros, dos seus efeitos internos, que dizem respeito a direitos
e obrigações decorrentes do ora pactuado, que devem se limitar às esferas jurídicas dos contratantes.
51
Ibidem, p. 44. Aspecto importante que nos traz Orlando Gomes é o que se refere à não restrição da relatividade dos efeitos do contrato aos sujeitos da relação contratual, também alcançando seu objeto: “o
contrato tem efeito apenas a respeito das coisas que caracterizam a prestação”. Para este autor os vícios
redibitórios e da evicção e suas conseqüências estão relacionadas com o alcance deste princípio (mais
detalhes, confira o capítulo 6º. nrs. 68 a 72 da obra aqui referida).
52
Importante já aqui ressaltar que o contrato em favor de terceiro (artigos 436 e 438 do Código Civil de
2002), o contrato de prestação de fato de terceiro (artigos 439 e 440 do Código Civil atual) e o contrato
com pessoa a declarar (artigos 467 a 471 do novo Código) não são exceções ao princípio da relatividade
dos pactos, no sentido que estamos a dar às mitigações desse princípio neste trabalho, relacionadas com
uma releitura do postulado à luz da Constituição; consistem, isto sim, em verdadeiros contratos. Como
referência sobre o assunto: PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil: contratos. 12º.
Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 105 a 120. Vol. III
53
GOMES, Orlando. Op. Cit.,p. 44.
54
FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Direito das Obrigações. 2. ed. Rio de Janeiro:
Lúmen Júris, 2007, p. 52.
55
Ibidem, p. 54.
56
Nesse sentido a disposição do artigo 608 do Código Civil de 2002. Na jurisprudência temos o caso emblemático do cantor Zeca Pagodinho que foi convidado por uma cervejaria para romper contrato que
mantinha com outra. O TJSP asseverou que “ainda que a AMBEV não tenha sido signatária do contrato
entre o cantor e a Schincariol, sua conduta, ao deixar de observar o pacto de exclusividade nele contido,
é potencialmente apta a gerar dano indenizável” (Ibidem, p. 55). Outro exemplo é a Súmula 308 STJ.
57
Ibidem, p. 52. Nesse sentido o artigo 456 do Código Civil de 2002 que permite a denunciação da lide pelo
evicto para alcançar o alienante imediato ou qualquer dos anteriores – agora o adquirente lesado pode
obter ressarcimento contra qualquer um dos componentes da cadeia dominial, mesmo que não seja parte
naquelas relações jurídicas, na qualidade de terceiro ofendido.
58
MELLO, Celso Antonio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 26º. Ed. Malheiros: São Paulo,
p. 488.
59
Ibidem, p. 487.
48
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
241
60
WALD, Arnoldo. O interesse social no direito privado in O direito e o tempo: embates jurídicos e
utopias contemporâneas. Coord. Gustavo Tepedino e Luis Edson Fachin. Renovar: RJ, 2008, p. 78 e 79.
FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Direito das Obrigações. 2. ed. Rio de Janeiro:
Lúmen Júris, 2007, p.28-38.
62
A idéia da noção dinâmica da relação obrigacional foi introduzida no Brasil por Clóvis de Couto e Silva,
para quem o adimplemento desempenha um papel fundamental na relação negocial, distinto da função
de mero modo de extinção das obrigações (in A obrigação como processo. Rio de Janeiro: FVG, 2007,
p. 5.).
63
SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais e relações privadas. 2ª. ed. Rio de Janeiro: 2006, p. 197220.
64
FARIAS, Cristiano Chaves de e ROSENVALD, Nelson. . Direito das Obrigações. 2. ed. Rio de Janeiro:
Lúmen Júris, 2007, p. 20 e 21.
65
São cláusulas gerais as formulações legislativas genéricas positivadas sem prescrever a repercussão pelo
seu descumprimento. Formulações legislativas cujo sentido e alcance são vagos e abstratos a ponto de
deixar para o juiz a densificação do conteúdo normativo destas formulações. Entrada de valores éticos na
legislação (meio caminho entre a regra e um princípio). O juiz tem liberdade para apresentar a repercussão
pelo descumprimento do preceito geral. Exemplos: propriedade imobiliária (artigo 1.228 parágrafos 4º. e 5º.
do Código Civil de 2002); previsão da boa-fé sem determinar a repercussão se descumprido este preceito
(artigo 113 do novo Código Civil).
São conceitos legais indeterminados: formulações legislativas positivadas vagas e abstratas com previsão
de repercussão pelo seu descumprimento – Exemplo: abuso de direito (artigo 187 do atual Código Civil).
66
ANDRIGHI, Fátima Nancy. Do contrato de depósito in O novo Código Civil: estudos em homenagem
ao professor Miguel Reale. Coordenadores: Domingos Franciulli Netto; Gilmar Ferreira Mendes; Ives
Grandra da Silva Martins Filho. São Paulo: LTr, 2003, p. 567.
67
A caracterização de um ordenamento jurídico como um sistema aberto diz respeito à assimilação em seu
âmbito da previsão de cláusulas gerais e de conceitos indeterminados – exemplos: artigos 11, 113, 187,
421, 422,o 884, 927, 1.228 e 1.511 do Código Civil de 2002.
68
Artigo 1 . do novo Código Civil: “Toda pessoa é capaz de direitos e deveres na ordem civil” (grifo nosso).
69
COUTO E SILVA, Clóvis de. A obrigação como processo. Rio de Janeiro: FVG, 2007, p. 32.
70
GOMES, Orlando. Contratos. 10ª. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1984, p. 43.
71
TEPEDINO, Gustavo; SCHREIBER, Anderson. A boa-fé objetiva no Código de Defesa do Consumidor
e no novo Código Civil in Obrigações: estudos na perspectiva civil-constitucional. Gustavo Tepedino
(coordenador). Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 29. Na legislação aparece tanto no Código Civil de 1916
(artigos 112, 221, 255, 490, 491, etc. ) quanto no Código atual (artigos 1.201, 1.242, 1.219 e 1.255).
72
GOMES, Orlando. Op. Cit., p. 43. Nessa direção caminha a jurisprudência da 3ª. Turma do STJ, REsp
981.750/MG, julgado em 13.04.2010, Relatora Min. Nancy Andrighi: “[...] A boa-fé objetiva se apresenta
como uma exigência de lealdade, modelo objetivo de conduta, arquétipo social pelo qual impõe o poder-dever
de que cada pessoa ajuste a própria conduta a esse modelo, agindo como agiria uma pessoa honesta, escorreita e leal. Não tendo o comprador agido de forma contrária a tais princípios, não há como inquinar seu
comportamento de violador da boa-fé objetiva” (Disponível em: <www.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia/
doc>. Acesso em 04.02.2011) (grifo nosso).
73
COUTO E SILVA, Clóvis. Op. Cit., p. 32 e 33.
74
COUTO E SILVA, Clóvis de. A obrigação como processo. Rio de Janeiro: FVG, 2007, p. 33.
75
O que não impediu que a boa-fé fosse aplicada em nosso direito das obrigações, “[...] já que de regra de
conduta se trata”, de acordo Couto e Silva ( Op. Cit. p. 33).
76
Ilustra a incorporação pelos nossos tribunais superiores da expressão “deveres anexos” o julgado da 3ª.
Turma no Resp 595.631/SC, de 08.06.2004, Relatora Min. Nancy Andrighi: “[...] O princípio da boa-fé
se aplica às relações contratuais regidas pelo CDC, impondo, por conseguinte, a obediência aos deveres
anexos ao contrato, que são decorrência lógica deste princípio. O dever anexo de cooperação pressupõe
ações recíprocas de lealdade dentro da relação contratual. A violação a qualquer dos deveres anexos implica em
inadimplemento contratual de quem lhe tenha dado causa [...]” (Disponível em <www.stj.jus.br/SCON/
jurisprudencia/doc> . Acesso em: 04.02.2011 (grifo nosso).
77
FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Direito das Obrigações. 2. ed. Rio de Janeiro:
Lúmen Júris, 2007, p. 63.
78
NEGREIROS, Teresa. Teoria do contrato: novos paradigmas. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p.
117.
79
TEPEDINO, Gustavo. Notas sobre a função social dos contratos in O direito e o tempo: embates
jurídicos e utopias contemporâneas. Coord. Gustavo Tepedino e Luis Edson Fachin. Renovar: RJ, 2008,
p. 395 e 396. Sobre esta questão específica da função econômico-social do contrato ver Orlando Gomes
(in Contratos. 10ª. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1984, p. 22 a 24).
61
242
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
80
Nesse sentido o artigo 413 do Código Civil de 2002 (função social da cláusula penal – redução da cláusula penal de ofício pelo juiz se a obrigação for cumprida em parte ou abusivamente, sob pena de gerar
enriquecimento sem causa, porque, se assim for, a cláusula estará extrapolando sua função) e Súmula 302
STJ (“É abusiva a cláusula contratual de plano de saúde que limita no tempo a internação hospitalar do
segurado”). Parece comungar com essa dupla eficácia da função social do contrato decisão da 4ª. Turma do
STJ no REsp 1127247/DF, julgado em 04.03.2010, Relator Min. Luis Felipe Salomão: “[...] 2. A cláusula
contratual que estipula o pagamento de multa caso o contratante empregue um dos ex-funcionários ou
representantes da contratada durante a vigência do acordo ou após decorridos 120 (cento e vinte) dias
de sua extinção, não implica em violação ao princípio da função social do contrato, pois não estabelece
desequilíbrio social e, tampouco, impede o acesso dos indivíduos a ele vinculados, seja diretamente, seja indiretamente, ao trabalho ou ao desenvolvimento pessoal” (Disponível em: <www.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia/
doc>. Acesso em 04.02.2011. (grifo nosso).
81
TEPEDINO, Gustavo. Notas sobre a função social dos contratos in O direito e o tempo: embates
jurídicos e utopias contemporâneas. Coord. Gustavo Tepedino e Luis Edson Fachin. Renovar: RJ, 2008,
p. 396- 399.
82
Posição assumida por Humberto Theodoro Júnior, conforme Gustavo Tepedino (Op. Cit., p. 396 e 397).
83
Posição defendida por Gustavo Tepedino (Op. Cit., p. 398 e 399). Os princípios citados constam, respectivamente, dos artigos 1º. Inciso III e IV; 3º. Inciso III e I da Constituição Federal de 1988.
84
NEGREIROS, Teresa. Teoria do contrato: novos paradigmas. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p.
231.
85
NEGREIROS, Teresa. Teoria do contrato: novos paradigmas. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p.
231.
86
Apud NEGREIROS, Teresa. Op. Cit., p. 157.
87
A lesão (cláusulas abusivas) é apurada na desproporção clara e anormal das prestações, quando um dos
contratantes aufere ou tem possibilidade de auferir do contrato um lucro demasiadamente maior que a contraprestação a ele incumbida, aproveitando-se das condições de inexperiência ou do estado de necessidade
do outro contratante no momento de contratar (SALLES, Raquel Bellini de Oliveira. O desequilíbrio da
relação obrigacional e a revisão dos contratos no Código de Defesa do Consumidor: para um Cotejo
com o Código Civil in Obrigações: estudos na perspectiva civil-constitucional. Gustavo Tepedino
(coordenador). Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 317). Não sendo possível a restauração do equilíbrio da
relação contratual, é possível a resolução do contrato (anulabilidade) (artigo 157 parágrafo 1º. primeira
parte do Código Civil de 2002), ou até mesmo a revisão do contrato (artigo 157 parágrafo 1º. segunda
parte do atual Código Civil) e sua nulidade de pleno direito (artigos 6º. inciso V primeira parte; 39 inciso
V; 51 inciso IV todos do CDC)
88
Há onerosidade excessiva quando uma obrigação contratual torna-se no momento da execução bem mais
gravosa do que era no momento em que surgiu – alteração superveniente nas circunstâncias que rodeia o
contrato (GOMES, Orlando. Contratos. 10ª. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1984, p. 139). Não sendo possível
a recuperação do equilíbrio da relação contratual o ordenamento admite a possibilidade de resolução do
contrato (artigo 478 do Código Civil de 2002 e artigo 51 parágrafo 2º. do CDC), da revisão contratual
(artigos 479 e 480 do atual Código Civil e artigo 6º. inciso V segunda parte do CDC) e da revisão judicial
(artigo 317 do novo Código Civil e artigo 6º. inciso V do CDC).
89
NEGREIROS, Teresa. Teoria do contrato: novos paradigmas. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p.
159.
90
NEGREIROS, Teresa. Op. Cit., p. 160.
91
DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. 2ª. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 36.
92
DWORKIN, Ronald . Levando os direitos a sério. 2ª. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 35 a 46.
93
Apud ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 3ª.
ed. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 28-31.
94
Ibidem, 2004, p. 29.
95
Representam esse entendimento: a própria Teresa Negreiros (Teoria do contrato: novos paradigmas. 2.
ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p, 111); Caio Mário (Instituições de direito civil: contratos. 12º. Ed.
Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 14. Vol. III); Ronaldo Rebello de Brito Poletti (A constitucionalização
do direito civil in Revista Jurídica Consulex, ano XIII, Brasília: Consulex, 15 de junho 2009, p. 9, nr.
300); Antonio Junqueira de Azevedo (citado por Teresa Negreiros, Op. Cit., p. 111), dentre outros.
Segundo assinala Caio Mário “a função social do contrato é um princípio moderno que vem a se agregar
aos princípios clássicos do contrato [...]. Como princípio novo ele não se limita a se justapor aos demais,
antes pelo contrário vem desafiá-los e em certas situações impedir que prevaleçam, diante do interesse
social maior” (Op. Cit., p. 14)
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
243
96
NEGREIROS, Teresa. Op. Cit., p. 30 e 31.
Apud NEGREIROS, Teresa. Teoria do contrato: novos paradigmas. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar,
2006, p. 40 e 41.
98
Inovando e considerando a existência hoje em dia de dois blocos distintos de princípios – os tradicionais e
os contemporâneos –, Teresa Negreiros propõe, na solução de eventual conflito entre eles, o que denomina
de o “paradigma da essencialidade” como critério de distinção dos contratos à luz das diferentes funções
que desempenham em relação às necessidades existenciais do contratante (Ibidem, p. 68; 31-41).
99
A ilustrar o exposto neste parágrafo, notadamente quanto à mitigação do princípio da autonomia da vontade
e da relatividade dos efeitos dos contratos e à relevância da aplicação dos princípios da boa-fé objetiva e da
função social do contrato, o julgado do STJ REsp 468.062/CE, 2ª. Turma, Rel. Mini. Humberto Martins,
julgado em 11.11.2008 – Informativo 376 (in Julgamentos e súmulas do STF e STJ. Organizadora Tânia
Regina Trombini Fraga. São Paulo: Método, 2009, p. 756): por unanimidade a 2ª. Turma conheceu em
parte do recurso da CEF e, nessa parte, negou-lhe provimento, para admitir que negócios entre as partes,
eventualmente, podem interferir (positiva ou negativamente) na esfera jurídica de terceiros, isso com base na
doutrina do terceiro cúmplice, na proteção do terceiro diante dos contratos que lhe são prejudiciais ou mesmo
pela tutela externa do crédito (grifei). No caso, um agente financeiro vinculado ao Sistema Financeiro de
Habitação (SFH) firmou contrato de cessão de direitos de crédito com a CEF após o adimplemento da
obrigação pelos cessionários junto ao agente financeiro do SFH. Assim, o posterior negócio entre a CEF
e este agente não tem força para dilatar sua eficácia e atingir os devedores adimplentes. Aplicou-se no
caso, por analogia, a Súmula 308 do STJ: “A hipoteca firmada entre a construtora e o agente financeiro,
anterior ou posterior à celebração da promessa de compra e venda, não tem eficácia perante os adquirentes
do imóvel”.
100
Apud POPPER, Karl. Conjecturas e refutações. Coimbra: Almedina, 2003, p. 419.
101
Apud KHOURI, Paulo R. Roque A. Direito do Consumidor: Contratos, Responsabilidade Civil e
Defesa do Consumidor em Juízo. 3ª. ed. São Paulo: Atlas, 2006, p. 31.
102
DWORKIN, Ronald. O império do direito. 2ª. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 230.
103
Comentários e trechos extraídos a partir do texto Ao encontro dos princípios: crítica à proporcionalidade
como solução dos casos de conflito aparente de normas jurídicas, de autoria do professor Damião Alves
de Azevedo, disponibilizado em março de 2010 nas aulas da disciplina Metodologia Jurídica do curso de
pós-graduação Ordem Jurídica da Fundação Escola Superior do Ministério Público do Distrito Federal e
Territórios-FESMPDFT, p. 14.
104
Ibidem, p. 14.
105
Nos informa Clóvis de Couto e Silva (in A obrigação como processo. Rio de Janeiro: FVG, 2007, p. 25)
que “Não há separação tão rigorosa, no Estado moderno, entre Estado e sociedade, pois ambas as esferas,
a pública e a privada, se conjugam, se coordenam, se interpenetram e se completam”.
106
TEPEDINO, Gustavo. Temas de Direito Civil. 4ª. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 20.
107
Comentários e trechos extraídos a partir do texto Ao encontro dos princípios: crítica à proporcionalidade
como solução dos casos de conflito aparente de normas jurídicas, de autoria do professor Damião Alves
de Azevedo, disponibilizado em março de 2010 nas aulas da disciplina Metodologia Jurídica do curso de
pós-graduação Ordem Jurídica da Fundação Escola Superior do Ministério Público do Distrito Federal e
Territórios-FESMPDFT, p. 14.
108
Ibidem, p. 16.
109
Ibidem, p. 16.
110
DWORKIN, Ronald. O império do direito. 2ª. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 277.
111
Ibidem, p. 20 a 25. Importante esclarecer que o caso trazido por Dworkin não trata diretamente de
aplicação de princípios, mas sim da forma que os tribunais americanos tratavam de interpretar e resolver
divergências de Direito. Aqui, apenas utilizamos o caso Elmer em sua descrição fática e jurídica. A questão
principiológica envolvida e os comentários à solução implementada sob à luz de princípios eventualmente
presentes no caso é de nossa inteira responsabilidade.
112
Artigo 1.488. “Se o imóvel, dado em garantia hipotecária, vier a ser loteado, ou se nele se constituir condomínio edilício, poderá o ônus ser dividido, gravando cada lote ou unidade autônoma, se o requererem
ao juiz o credor, o devedor ou os donos, obedecida a proporção entre o valor de cada um deles e o crédito”.
113
CORTIANO JÚNIOR, Eroulths. A função social dos contratos e dos direitos reais e o art. 2035 do
Código Civil brasileiro: um acórdão do Superior Tribunal de Justiça in O direito e o tempo: embates
jurídicos e utopias contemporâneas. Coord. Gustavo Tepedino e Luis Edson Fachin. Renovar: RJ, 2008,
p. 365.
114
DINIZ, Maria Helena. Lei de introdução ao Código Civil brasileiro interpretada. 9. ed. São Paulo:
Saraiva, 2002, p. 166.
115
TEPEDINO, Gustavo. Temas de direito civil. Tomo III. Rio de Janeiro: Renovar, 2009, p. 4.
97
—— • ——
244
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
O Alcance da Autonomia
Universitária à Luz do Artigo
207 da Constituição Federal
de 1988
Jaquelline Santos Silva
Ex-aluna da Escola de Magistratura do Distrito Federal
Resumo
H
aja vista as divergências em torno do alcance da autonomia universitária, há
que se analisar com mais vagar seu conteúdo à luz do artigo 207 da Constituição Federal, notadamente quando se observa que a solução desse problema é
essencial para o exame de questões que hoje inquietam a sociedade nacional, como é
o caso da política de cotas nas universidades para estudantes afrodescendentes ou provenientes de escolas públicas ou o caso da transferência ex officio de servidores públicos
ou militares entre instituições de ensino não congêneres. A presente pesquisa jurídica
classifica-se como operatória, segundo a distribuição de Paul Amselek. O método de
procedimento utilizado consiste em monografia dogmática e as técnicas de pesquisa
usadas foram a bibliográfica e a documental.
Palavras-chave: autonomia universitária; alcance; Constituição Federal.
Introdução
Ante a celeuma entre doutrina e jurisprudência acerca da dimensão da autonomia
universitária, notadamente quando se observa que a solução dessa questão é essencial
para o exame de questões que hoje inquietam a sociedade nacional (como é o caso da
política de cotas nas universidades para estudantes afrodescendentes ou provenientes
de escolas públicas ou o caso da transferência ex officio de servidores públicos ou militares entre instituições de ensino não congêneres) uma pergunta continua a ressoar e
a assombrar a todos os interessados direta ou indiretamente no tema:
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
245
A inserção constitucional desse valor no artigo 207 da Constituição Federal
promoveu sua intangibilidade ante a legislação hierarquicamente inferior?
De fato, a resposta não é tão simples. A formação dos parâmetros para a correta aplicação do aludido dispositivo partirá da análise da legislação constitucional e
infraconstitucional, da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo
Tribunal Federal, bem como da doutrina nacional imediatamente conexa com o problema ora formulado.
Não é outro, portanto, o objetivo do presente trabalho.
1. Breve levantamento da legislação referente ao problema
Antes mesmo da atual Constituição Federal, a autonomia universitária já se
encontrava prevista na Lei n. 5.540, de 28 de novembro de 1968, a qual preconizava em
seu artigo 3º que “as universidades gozarão de autonomia didático-científica, disciplinar,
1
administrativa e financeira, que será exercida na forma da lei e dos seus estatutos”.
Veio mais tarde o Texto Constitucional de 1988, que em seu artigo 207 cuidou
da referida autonomia:
“Art. 207. As universidades gozam de autonomia didático-científica,
administrativa e de gestão financeira e patrimonial, e obedecerão ao
princípio de indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão.
o
§ 1 É facultado às universidades admitir professores, técnicos e cientistas estrangeiros, na forma da lei.
o
§ 2 O disposto neste artigo aplica-se às instituições de pesquisa científica e tecnológica.”
Por sua vez, a Lei n. 9.394, de 20 de dezembro de 1996 (Lei de Diretrizes e Bases
da Educação Nacional, ou Lei Darcy Ribeiro, ou simplesmente LDB) – também cuidou
2
do tema, nos artigos 53, 54, 55 e 56, in verbis:
“Art. 53. No exercício de sua autonomia, são asseguradas às universidades, sem prejuízo de outras, as seguintes atribuições:
I - criar, organizar e extinguir, em sua sede, cursos e programas de
educação superior previstos nesta Lei, obedecendo às normas gerais
da União e, quando for o caso, do respectivo sistema de ensino;
II - fixar os currículos dos seus cursos e programas, observadas as
diretrizes gerais pertinentes;
III - estabelecer planos, programas e projetos de pesquisa científica,
produção artística e atividades de extensão;
IV - fixar o número de vagas de acordo com a capacidade institucional e as exigências do seu meio;
V - elaborar e reformar os seus estatutos e regimentos em consonância com as normas gerais atinentes;
246
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
VI - conferir graus, diplomas e outros títulos;
VII - firmar contratos, acordos e convênios;
VIII - aprovar e executar planos, programas e projetos de investimentos referentes a obras, serviços e aquisições em geral, bem como
administrar rendimentos conforme dispositivos institucionais;
IX - administrar os rendimentos e deles dispor na forma prevista no
ato de constituição, nas leis e nos respectivos estatutos;
X - receber subvenções, doações, heranças, legados e cooperação financeira resultante de convênios com entidades públicas e privadas.
Parágrafo único. Para garantir a autonomia didático-científica das
universidades, caberá aos seus colegiados de ensino e pesquisa decidir, dentro dos recursos orçamentários disponíveis, sobre:
I - criação, expansão, modificação e extinção de cursos;
II - ampliação e diminuição de vagas;
III - elaboração da programação dos cursos;
IV - programação das pesquisas e das atividades de extensão;
V - contratação e dispensa de professores;
VI - planos de carreira docente.
Art. 54. As universidades mantidas pelo Poder Público gozarão, na
forma da lei, de estatuto jurídico especial para atender às peculiaridades de sua estrutura, organização e financiamento pelo Poder Público, assim como dos seus planos de carreira e do regime jurídico do
seu pessoal.
§ 1º No exercício da sua autonomia, além das atribuições asseguradas
pelo artigo anterior, as universidades públicas poderão:
I - propor o seu quadro de pessoal docente, técnico e administrativo,
assim como um plano de cargos e salários, atendidas as normas gerais
pertinentes e os recursos disponíveis;
II - elaborar o regulamento de seu pessoal em conformidade com as
normas gerais concernentes;
III - aprovar e executar planos, programas e projetos de investimentos referentes a obras, serviços e aquisições em geral, de acordo com
os recursos alocados pelo respectivo Poder mantenedor;
IV - elaborar seus orçamentos anuais e plurianuais;
V - adotar regime financeiro e contábil que atenda às suas peculiaridades de organização e funcionamento;
VI - realizar operações de crédito ou de financiamento, com aprovação do Poder competente, para aquisição de bens imóveis, instalações e equipamentos;
VII - efetuar transferências, quitações e tomar outras providências
de ordem orçamentária, financeira e patrimonial necessárias ao seu
bom desempenho.
§ 2º Atribuições de autonomia universitária poderão ser estendidas a
instituições que comprovem alta qualificação para o ensino ou para a
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
247
pesquisa, com base em avaliação realizada pelo Poder Público.
Art. 55. Caberá à União assegurar, anualmente, em seu Orçamento
Geral, recursos suficientes para manutenção e desenvolvimento das
instituições de educação superior por ela mantidas.
Art. 56. As instituições públicas de educação superior obedecerão ao
princípio da gestão democrática, assegurada a existência de órgãos
colegiados deliberativos, de que participarão os segmentos da comunidade institucional, local e regional.
Parágrafo único. Em qualquer caso, os docentes ocuparão setenta por
cento dos assentos em cada órgão colegiado e comissão, inclusive nos
que tratarem da elaboração e modificações estatutárias e regimen3
tais, bem como da escolha de dirigentes.”
Com efeito, ante os sucessivos diplomas normativos sobre a matéria, é de se
questionar se a autonomia universitária conquistou um conteúdo diverso daquele
disciplinado pela Lei n. 5.540/68, vale dispor, se houve tão somente a concessão de um
novo status ao preceito infraconstitucional ou a fixação de uma independência, distinta
de um mero exercício limitado de competências e poderes no marco do ordenamento.
E não é porque o Pretório Excelso tenha fixado, por meio da ADI n. 51, que as universidades não possuem a autonomia política que lhes confere poder normativo derivado
4
diretamente da Constituição, que o debate cessou. Ora, a conclusão na referida ação
encerra apenas o debate formal. É imprescindível um exame com mais vagar sobre o
presente tema e suas nuances, sobretudo quando se constata divergência acerca da
questão entre doutrina e jurisprudência.
2. A posição do Supremo Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal a
respeito da questão
2.1. Jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça
Na Corte Superior de Justiça, não obstante a atribuição de um status constitucional à autonomia da universidade, o entendimento sobre o alcance de tal prerrogativa
pacificou-se no sentido de que essa não confere poder normativo primário à aludida
entidade.
2.1.1. Terceira Seção
Na Terceira Seção do tribunal, firmou-se que universidade pública federal, em
razão de sua natureza autárquica, possui autonomia jurídica, administrativa e financeira
para proceder às nomeações, aos comandos de pagamento de salários, benefícios previdenciários e descontos de seus servidores. Contudo, no exercício dessa prerrogativa
248
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
deve observar, não somente a Constituição, mas as leis e a disponibilidade orçamentária.
Nesse sentido, bem ilustra a seguinte ementa:
AGRAVO REGIMENTAL. RECURSO ESPECIAL. UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE. REALIZAÇÃO DE CONCURSO PÚBLICO PARA O CARGO DE PROFESSOR. ATO DE NOMEAÇÃO E POSSE. PRINCÍPIO DA
AUTONOMIA UNIVERSITÁRIA. APLICAÇÃO. INTERPRETAÇÃO DA LEI FEDERAL 9394/96 REGULAMENTADA PELO
DECRETO 2798/98. AGRAVO REGIMENTAL A QUE SE NEGA
O PROVIMENTO.
1. Consoante jurisprudência que vem se firmando no STJ, as Universidades Públicas possuem autonomia suficiente para gerir seu pessoal,
bem como o próprio patrimônio financeiro, sendo que o exercício
dessa autonomia não pode, contudo, sobrepor-se ao quanto dispõem
a Constituição e as Leis.
5
2. Agravo regimental a que se nega o provimento.
E ainda:
CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO - MANDADO DE
SEGURANÇA - EXTENSÃO ADMINISTRATIVA POR REITOR
DE UNIVERSIDADE DO PAGAMENTO DO IPC DE MARÇO
DE 1990 (84,32% - PLANO COLLOR), TENDO EM VISTA DECISÃO JUDICIAL QUE BENEFICIOU PARTE DOS SERVIDORES - RETENÇÃO DE VERBAS PELO MEC - VIOLAÇÃO AO
PRINCÍPIO DA AUTONOMIA UNIVERSITÁRIA - NÃO CARACTERIZAÇÃO - ART. 207, CF/88.
1. O princípio da autonomia universitária, anteriormente consagrado
em lei ordinária, foi erigido a (sic) “estatus” constitucional, consoante se infere da dicção do art. 207, da Carta Magna. Não obstante, a
noção de autonomia universitária não deve ser confundida com a de
total independência, na medida em que supõe o exercício de competência limitada às prescrições do ordenamento jurídico, impondo-se
concluir que a universidade não se tornou, só por efeito do primado
da autonomia, um ente absoluto, dotado da mais completa soberania, cabendo relembrar que a própria Lei nº 5.540/68, ao estabelecer
em seu art. 3º, que as universidades gozarão de autonomia didático-científica, disciplinar, administrativa e financeira, reafirma que tais
prerrogativas serão exercidas “na forma da lei”.
2. Sendo a universidade um ente integrante da Administração Pública, está obrigatoriamente vinculada à observância dos princípios da
legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da publicidade, assim
como ao disposto no art. 167, II, da Constituição Federal, que afirma
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
249
a vedação da “realização de despesas ou a assunção de obrigações
diretas que excedam os créditos orçamentários ou adicionais.” 3.
Assim, não pode o seu Reitor, estender administrativamente a integração de expurgo inflacionário aos vencimentos de servidores não
contemplados por decisão judicial, sem que haja previsão orçamentária para tanto, principalmente, como no caso concreto, em que a
orientação jurisprudencial se firmou no sentido de não ser cabível a
correção da remuneração dos servidores públicos com base no IPC
de março de 1990, correspondente a 84,32%; de conseguinte, o Sr.
Ministro de Estado, ao reter o repasse de verbas destinadas ao aludido pagamento, não violou o disposto no art. 207 do Texto Constitucional, alusivo à autonomia universitária, vez que o ato apontado
coator, dadas as peculiaridades do caso vertente, deu-se, em verdade,
na defesa do interesse público.
4. De outro lado, em casos que tais, não há se falar em aplicação
do princípio da isonomia, na medida em que o descompasso salarial
decorre do cumprimento de decisão judicial.
6
5. Segurança denegada.
Não é demais trazer à baila este julgado em que a Quinta Turma declarou a legalidade da anulação de certame realizado para o preenchimento de cargos em hospital
universitário estadual em face da inobservância de reserva de vagas aos afrodescendentes
e aos portadores de necessidades especiais exigida por lei local:
RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA.
CONCURSO PÚBLICO. ANULAÇÃO DO CERTAME. DESCUMPRIMENTO DE LEI ESTADUAL. RESERVA DE VAGAS
PARA AFRODESCENDENTES. CONSTITUCIONALIDADE.
IMPOSSIBILIDADE DE A AUTONOMIA UNIVERSITÁRIA
SOBREPOR-SE À LEI. INEXISTÊNCIA DE DIREITO LÍQUIDO
E CERTO. RECURSO DESPROVIDO.
1. A reparação ou compensação dos fatores de desigualdade factual
com medidas de superioridade jurídica constitui política de ação afirmativa que se inscreve nos quadros da sociedade fraterna que se lê
desde o preâmbulo da Constituição de 1988.
2. A Lei Estadual que prevê a reserva de vagas para afrodescendentes em
concurso público está de acordo com a ordem constitucional vigente.
3. As Universidades Públicas possuem autonomia suficiente para gerir seu pessoal, bem como o próprio patrimônio financeiro. O exercício dessa autonomia não pode, contudo, sobrepor-se ao quanto
dispõem a Constituição e as Leis.
4. A existência de outras ilegalidades no certame justifica, in casu,
a anulação do concurso, restando prejudicada a alegação de que as
vagas reservadas a afrodescendentes sequer foram ocupadas.
7
Recurso desprovido.
250
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
2.1.2. Primeira Seção
Na mesma linha de raciocínio, a Primeira Seção do referido tribunal sedimentou
que a universidade não tem competência para autorizar, reconhecer e credenciar curso
de nível superior, porque o art. 53 deve ser lido em conjunto com o art. 9º, inciso IX,
da Lei de Diretrizes e Bases, o qual estabelece a competência da União para autorizar,
reconhecer e credenciar cursos superiores e, especificamente para os cursos da área de
saúde, exige-se a manifestação do Conselho Nacional de Saúde (Decreto n. 2.207/97),
da mesma forma que se exige a manifestação da Ordem dos Advogados para a criação
de cursos na área jurídica. A esse respeito, leiam-se os precedentes abaixo:
ADMINISTRATIVO – ENSINO SUPERIOR – CURSO DE MEDICINA – CRIAÇÃO – LEI DE DIRETRIZES E BASE.
1. A universidade não tem competência para, ao seu talante, criar e
implantar curso de nível superior.
2. É da competência da UNIÃO, de acordo com o art. 9º da Lei
9.394 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional), a criação de
cursos de nível superior, em consonância com dispositivos da Constituição Federal.
3. Em relação ao Curso de Medicina, há ainda decretos que exigem
a prévia manifestação do Conselho Nacional de Saúde (Decretos
1.303/94 e 2.207/97).
8
4. Recurso especial improvido.
PROCESSUAL CIVIL - CONFLITO POSITIVO DE COMPETÊNCIA - ENSINO SUPERIOR - UNIVERSIDADE ESTADUAL
- CRIAÇÃO E IMPLANTAÇÃO DOS CURSOS DE MEDICINA
E DE ODONTOLOGIA - ARTIGOS 207, 209 E 211, CONSTITUIÇÃO FEDERAL - DECRETO FEDERAL 1203/94 (ARTS. 1. E
7.) - SÚMULA 15/TFR.
1. O princípio da autonomia universitária não despreza a vigilância
do poder estatal da União Federal de tornar efetivas as normas gerais
da educação nacional, e da saúde pública, objetivando a prevalência
da ordenação de caráter federativo, evitando a instalação de cursos
órfãos de garantias do padrão de qualidade e eficiência. Evidencia-se
a plena convivência entre a autonomia universitária e os poderes de
determinação e controle do Estado, em harmoniosa interação.
2. Quando o ato corresponder à típica atividade administrativa, interna corporis, originariamente insculpida nos estatutos e regimento
do estabelecimento de ensino superior do poder público estadual ou
de organização não governamental, a competência para processar e
julgar ações pode ser reconhecida em favor da justiça estadual.
3. Porém, a parla de ato, pela sua natureza e finalidade, criando e implantando cursos na área de saúde, (sic) aprisionado as normas gerais
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
251
da educação e saúde nacionais, está sujeito às diretrizes e exigências
de específica legislação de regência. No caso, dependente de prévia
avaliação e do consentimento do Conselho Nacional de Saúde, sucedendo-se a necessária autorização do presidente da república, (sic)
atraindo o interesse jurídico da União e de autarquias federais (art.
109, i, C.F.).
4. Conflito conhecido e declarada a competência do juiz federal sus9
citante.
UNIVERSIDADE BRAZ CUBAS. CURSO DE ODONTOLOGIA.
FECHAMENTO POR INOBSERVÂNCIA DA LEGISLAÇÃO DE
REGÊNCIA. PORTARIA N. 196, DE 3-2-94, DO MINISTRO DA
EDUCAÇÃO E DO DESPORTO.
I - O ato ministerial atacado, apoiado no art. n. 209, II, da Constituição Federal, no art. 2º do Decreto n. 359, de 9-12-91, no art. 2º
do Decreto n. 98.377, de 8-11-89, e no art. 3º do Decreto n. 77.797,
de 9-6-76, está ao amparo da legislação de regência e os decretos que
lhe servem de fundamento não infringem o princípio da legalidade,
não violam o princípio da autonomia universitária, nem exorbitam o
poder regulamentar.
II - A autonomia universitária, prevista no art. 207 da Constituição
Federal, não pode ser interpretada como independência e, muito menos, como soberania. A sua constitucionalização não teve o condão
de alterar o seu conceito ou ampliar o seu alcance, nem de afastar as
universidades do poder normativo e de controle dos órgãos federais
competentes.
III - Ademais, o ensino universitário, administrado pela iniciativa
privada, há de atender aos requisitos, previstos no art. 209 da Constituição Federal: cumprimento das normas de educação nacional e
autorização e avaliação de qualidade pelo Poder Público.
10
IV - Mandado de segurança denegado.
Vale destacar a posição da Segunda Turma da mencionada Corte, segundo a qual
a autonomia universitária permite à instituição de ensino optar por avaliação seriada
para seleção de seus futuros discentes – uma vez observados os ditames da LDB, a lisura,
seriedade e publicidade dos processos seletivos, todas as normas inclusive infralegais
baixadas pelo Ministério da Educação – e não afasta o controle pelos órgãos públicos
federais competentes sobre os administradores da referida entidade nem a responsabilização penal, civil e por improbidade administrativa de tais agentes, nos termos da
Lei 8.429/92. Confira-se:
PROCESSUAL E ADMINISTRATIVO – PROGRAMA EXPERIMENTAL DE INGRESSO NO ENSINO SUPERIOR – PEIES –
252
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
AVALIAÇÃO SERIADA – LEI DE DIRETRIZES E BASES DA
EDUCAÇÃO (LEI 9.394/96).
1. Não cabe ao STJ, em sede de recurso especial, examinar possível
violação a dispositivos constitucionais.
2. Incide a Súmula 284/STF se o recorrente, a pretexto de violação
do art. 535 do CPC, limita-se a fazer alegações genéricas, sem, contudo, indicar com precisão em que consiste a omissão, contradição
ou obscuridade do julgado.
3. Matéria que não foi discutida no Tribunal a quo não pode ser analisada em sede de especial, por ausência de prequestionamento (Súmula 282/STF).
4. Descabe, em sede de recurso especial, o exame de violação a decreto, a portaria interministerial ou a regimento interno, por não se
enquadrarem no conceito de lei federal, na forma do art. 105, III,
“a”, da CF/88.
5. A Lei 9.394/96, ao regulamentar o art. 207 da Constituição Federal de 1988, abandonou por completo a sistemática de acesso ao ensino superior unicamente através de “vestibular”, antes definido pela
Lei 5.540/68, traçando novas diretrizes quanto aos critérios de seleção e admissão de estudantes, que passaram a ser fixados de acordo
com o princípio da autonomia didático-científica das universidades,
mediante articulações destas com os órgãos normativos dos sistemas
de ensino.
6. Nesse contexto, uma vez que observadas as normas da Lei
9.394/96 e principalmente o princípio da publicidade dos critérios
de seleção, dentro do contexto de autonomia didático-científica
atribuída às instituições de ensino, como bem salientado pelo Tribunal de origem, legítimo é o processo seletivo de avaliação seriada
criado pela Universidade recorrida, sem que se possa falar em ofensa do princípio da igualdade no acesso à escola, previsto no art. 3º,
inciso I desta lei.
11
7. Recurso especial parcialmente conhecido e, no mérito, improvido.
Frise-se também um julgado proferido pela mesma turma, no qual se apontou que
a autonomia das universidades engloba a instituição pela entidade de sistema de cotas
em processo seletivo vestibular para indivíduos pertencentes a grupos étnicos, sociais
e raciais afastados compulsoriamente do progresso e do desenvolvimento. Contudo, na
mesma oportunidade, o referido colegiado observou que a autonomia não implicava
soberania nem independência, mas deveria ser exercida com base nos princípios da
legalidade, proporcionalidade e razoabilidade:
ADMINISTRATIVO – AÇÕES AFIRMATIVAS – POLÍTICA
DE COTAS – AUTONOMIA UNIVERSITÁRIA – ART. 53 DA
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
253
LEI N. 9.394/96 – INEXISTÊNCIA DE VIOLAÇÃO DO INC. II
DO ART. 535 DO CPC – PREQUESTIONAMENTO IMPLÍCITO
– MATÉRIA INFRACONSTITUCIONAL EM FACE DE DESCRIÇÃO GENÉRICA DO ART. 207 DA CF/88 – DEFINIÇÃO
DE POLÍTICAS PÚBLICAS DE REPARAÇÃO – CONVENÇÃO INTERNACIONAL SOBRE A ELIMINAÇÃO DE TODAS
AS FORMAS DE DISCRIMINAÇÃO RACIAL – DECRETO N.
65.810/69 – PROCESSO SELETIVO DE INGRESSO – FIXAÇÃO
DE CRITÉRIOS OBJETIVOS LEGAIS, PROPORCIONAIS E RAZOÁVEIS PARA CONCORRER A VAGAS RESERVADAS – IMPOSSIBILIDADE DO PODER JUDICIÁRIO CRIAR EXCEÇÕES
SUBJETIVAS – OBSERVÂNCIA COMPULSÓRIA DO PRINCÍPIO DA SEGURANÇA JURÍDICA.
1. A oposição de embargos declaratórios deve acolhida quando o pronunciamento judicial padecer de ambiguidade, de obscuridade, de
contradição, de omissão ou de erro material, os quais inexistem neste
caso. Não há, portanto, violação do art. 535 do CPC.
2. Admite-se o prequestionamento implícito, configurado quando a
tese jurídica defendida pela parte é debatida no acórdão recorrido.
3. A Constituição Federal veicula genericamente os contornos jurídicos de diversos institutos e conceitos, deixando, na maioria das vezes,
o seu trato específico para as normas infraconstitucionais. O assento constitucional de um instituto ou conceito, sem detalhamentos e
desdobramentos, não afasta a competência desta Corte quando a Lei
Federal disciplina imperativos específicos.
4. Ações afirmativas são medidas especiais tomadas com o objetivo de assegurar progresso adequado de certos grupos raciais, sociais ou étnicos ou indivíduos que necessitem de proteção, e que
possam ser necessárias e úteis para proporcionar a tais grupos ou
indivíduos igual gozo ou exercício de direitos humanos e liberdades fundamentais, contanto que, tais medidas não conduzam, em
consequência, à manutenção de direitos separados para diferentes
grupos raciais, e não prossigam após terem sido alcançados os seus
objetivos.
5. A possibilidade de adoção de ações afirmativas tem amparo nos
arts. 3º e 5º, ambos da Constituição Federal/88 e nas normas da
Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de
Discriminação Racial, integrada ao nosso ordenamento jurídico pelo
Decreto n. 65.810/69.
6. A forma de implementação de ações afirmativas no seio de universidade e, no presente caso, as normas objetivas de acesso às vagas
destinadas a tal política pública fazem parte da autonomia específica
trazida pelo artigo 53 da Lei n. 9.394/96, desde que observados os
princípios da razoabilidade e da proporcionalidade.
254
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
Portanto, somente em casos extremos a sua autonomia poderá ser
mitigada pelo Poder Judiciário, o que não se verifica nos presentes
autos.
7. O ingresso na instituição de ensino como discente é regulamentado basicamente pelas normas jurídicas internas das universidades, logo a fixação de cotas para indivíduos pertencentes a grupos
étnicos, sociais e raciais afastados compulsoriamente do progresso e do desenvolvimento, na forma do artigo 3º da Constituição
Federal/88 e da Convenção Internacional sobre a Eliminação de
Todas as Formas de Discriminação Racial, faz parte, ao menos considerando o nosso ordenamento jurídico atual - da autonomia
universitária para dispor do processo seletivo vestibular.
8. A expressão “tenham realizado o ensino fundamental e médio exclusivamente em escola pública no Brasil”, critério objetivo escolhido
pela UFPR no seu edital de processo seletivo vestibular, não comporta exceção sob pena de inviabilização do sistema de cotas proposto.
12
Recurso especial provido em parte. [g.n.]
Em ocasião diversa, a Primeira Seção concluiu caber ao Ministro da Educação,
no exercício do poder de supervisão ministerial, decidir sobre pedido de anistia de um
de seus ex-servidores, não a reitor de universidade, a pretexto de autonomia administrativa dessa. Veja-se:
PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO – MANDADO DE
SEGURANÇA – ATO MINISTERIAL INDEFERITÓRIO DE PEDIDO DE ANISTIA FORMULADO POR EX-PROFESSOR DA
FUNDAÇÃO UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA – DISCUSSÃO
SOBRE A ILEGALIDADE DO ATO IMPUGNADO, EM FACE
DA AUTONOMIA ADMINISTRATIVA DA FUNDAÇÃO
UNB – LEGISLAÇÃO APLICÁVEL À ESPÉCIE – RECEPÇÃO
PELA NOVA CARTA MAGNA – INOCORRÊNCIA DE ILEGALIDADE OU ABUSO DE PODER NA PRÁTICA DO ATO DA
AUTORIDADE MINISTERIAL – INEXISTÊNCIA DE DIREITO
LÍQUIDO E CERTO A SER AMPARADO POR MANDAMUS –
DENEGAÇÃO DA ORDEM.
O deferimento ou indeferimento do pedido de concessão de anistia
de ex-servidor de fundação universitária supervisionada pelo Ministério da Educação, consoante previsto na legislação excepcional que
regula a matéria, cabe ao respectivo Ministro de Estado.Conforme
orientação jurisprudencial assentada pela Egrégia Primeira Seção
deste STJ, “A autonomia universitária, prevista no art. 207 da Constituição Federal, não pode ser interpretada como independência e,
muito menos, como soberania. A sua constitucionalização não teve
o condão de alterar o seu conceito ou ampliar o seu alcance, nem de
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
255
afastar as universidades do poder normativo e de controle dos órgãos
federais competentes.” (MS 3.318 – DF) O princípio da autonomia
universitária, antes previsto em lei ordinária (Lei 5.540, de 1968)
e posteriormente elevado ao plano do ordenamento constitucional
(artigo 207 da Constituição Federal), não tem o condão de alterar
a competência conferida ao Ministro de Estado para decidir sobre
a situação individual de ex-servidor de fundação, supervisionada
pelo Titular da Pasta, que postula o reconhecimento de concessão
de anistia. É possível a plena convivência entre o instituto da autonomia universitária e as regras excepcionais que concedem poderes
à autoridade ministerial para analisar e julgar os pedidos de anistia,
porquanto não se conflitam, nem se repelem, mas se complementam
de forma harmônica dentro do ordenamento jurídico.
Não há como vislumbrar, in casu, violação a direito líquido e certo,
nem tampouco abuso de poder na prática do ato atribuído à autoridade ministerial impetrada.
13
Segurança denegada.
Diante dos precedentes, é fácil notar que o STJ solidificou, não obstante o princípio da autonomia universitária ter erigido-se ao patamar constitucional, a noção desse
valor como instituto inconfundível com total independência, sujeito ao que preceitua
todo o ordenamento jurídico.
2.2
Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal
2.2.1
Segunda Turma
O Supremo Tribunal Federal (STF) segue a mesma linha da jurisprudência do
Superior Tribunal de Justiça (STJ). Ao negar provimento ao Agravo Regimental no
Recurso Extraordinário n. 553.065, a Segunda Turma do Excelso Pretório manteve a
possibilidade de um estudante habilitado por meio de vestibular matricular-se simultaneamente em dois cursos da mesma universidade, salvo se houvesse incompatibilidade
de horários, muito embora existisse norma infralegal editada pela instituição proibindo
a aludida matrícula. Entendeu o tribunal que a citada vedação extrapolou os limites
da autonomia didático-científica, inovou no campo restrito à lei. Segue-se o julgado:
EMENTA: AGRAVO REGIMENTAL. INSTITUIÇÃO DE ENSINO SUPERIOR. POSSIBILIDADE DE MATRÍCULA EM DOIS
CURSOS SIMULTÂNEOS COM COMPATIBILIDADE DE HORÁRIOS. RESOLUÇÃO EDITADA PELA INSTITUIÇÃO DE
ENSINO NO SENTIDO DA PROIBIÇÃO. DISCUSSÃO INFRACONSTITUCIONAL. ALEGAÇÃO DE OFENSA AO ART. 207
DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. Nos termos da jurisprudência
256
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
deste Tribunal, o princípio da autonomia universitária não significa soberania das universidades, devendo estas se submeter às leis e
demais atos normativos. Controvérsia decidida à luz da legislação
infraconstitucional. A alegada ofensa à Constituição, se existente,
seria indireta ou reflexa, o que enseja o descabimento do recurso ex14
traordinário. Agravo regimental a que se nega provimento.
Em outro momento, a Segunda Turma da Suprema Corte entendeu ser ausente
a violação ao princípio autonômico por normas estaduais que exigiam a prestação específica de concurso público de provas e títulos para o acesso ao cargo de professor titular
e, consequentemente, rechaçou a promoção automática de professor adjunto, livre
docente e ex-titular interino ao referido cargo, como se constata na seguinte ementa:
EMENTA: CONSTITUCIONAL. RECLAMAÇÃO. VIOLAÇÃO
DA AUTORIDADE DE ACÓRDÃO PROLATADO PELA PRIMEIRA TURMA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. CONCURSO PÚBLICO. MAGISTÉRIO SUPERIOR. EXIGÊNCIA DE
APROVAÇÃO EM CONCURSO PÚBLICO ESPECÍFICO PARA
ACESSO AO CARGO DE PROFESSOR TITULAR. ALEGADO
DIREITO À PROMOÇÃO BASEADO NA UNICIDADE DA
CARREIRA DE DOCÊNCIA. Reclamação ajuizada pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ contra acórdão prolatado
pelo e. Superior Tribunal de Justiça, que reconheceu ao interessado
o direito de promover-se, por promoção automática, ao cargo de professor titular. Alegada violação da autoridade de precedente específico da Corte, que decidira que a exigência de concurso específico
não violava a autonomia universitária (art. 206 da Constituição).
Reclamação conhecida e julgada procedente para cassar o acórdão
15
reclamado.
2.2.2
Primeira Turma
Do mesmo modo, a Primeira Turma do citado tribunal sujeitou a autonomia à
Constituição e às leis. Assentou o colegiado a falta de ilegalidade e de violação da aludida
prerrogativa no ato do Ministro da Educação que, em observância a preceitos legais,
ordenou o reexame de determinação de reitor extensora dos efeitos de decisão judicial
em que se concedeu aumento de vencimentos a parte dos servidores aposentados da
instituição de ensino. É o que se destaca a partir do resumo do acórdão transcrito a seguir:
EMENTA: AGRAVO REGIMENTAL. RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA. CONSTITUCIONAL.
ADMINISTRATIVO. AUTONOMIA UNIVERSITÁRIA. ART.
207, DA CB/88. LIMITAÇÕES. IMPOSSIBILIDADE DE A AURevista da Escola da Magistratura - nº 13
257
TONOMIA SOBREPOR-SE À CONSTITUIÇÃO E ÀS LEIS.
VINCULAÇÃO AO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO QUE ENSEJA O CONTROLE DOS ATOS ADMINISTRATIVOS DAS
UNIVERSIDADES PÚBLICAS FEDERAIS [ARTS. 19 E 25, I,
DO DECRETO-LEI N. 200/67]. SUSPENSÃO DE VANTAGEM
INCORPORADA AOS VENCIMENTOS DO SERVIDOR POR
FORÇA DE COISA JULGADA. IMPOSSIBILIDADE. AUMENTO DE VENCIMENTOS OU DEFERIMENTO DE VANTAGEM
A SERVIDORES PÚBLICOS SEM LEI ESPECÍFICA NEM PREVISÃO ORÇAMENTÁRIA [ART. 37, X E 169, § 1º, I E II, DA
CB/88]. IMPOSSIBILIDADE. EXTENSÃO ADMINISTRATIVA
DE DECISÃO JUDICIAL. ATO QUE DETERMINA REEXAME
DA DECISÃO EM OBSERVÂNCIA AOS PRECEITOS LEGAIS
VIGENTES. LEGALIDADE [ARTS. 1º E 2º DO DECRETO N.
73.529/74, VIGENTES À ÉPOCA DOS FATOS].
1. As Universidades Públicas são dotadas de autonomia suficiente
para gerir seu pessoal, bem como o próprio patrimônio financeiro. O
exercício desta autonomia não pode, contudo, sobrepor-se ao quanto
dispõem a Constituição e as leis [art. 207, da CB/88]. Precedentes
[RE n. 83.962, Relator o Ministro SOARES MUÑOZ, DJ 17.04.1979
e MC-ADI n. 1.599, Relator o Ministro MAURÍCIO CORRÊA, DJ
18.05.2001].
2. As Universidades Públicas federais, entidades da Administração
Indireta, são constituídas sob a forma de autarquias ou fundações públicas. Seus atos, além de sofrerem a fiscalização do TCU, submetem-se ao controle interno exercido pelo Ministério da Educação.
3. Embora as Universidades Públicas federais não se encontrem subordinadas ao MEC, determinada relação jurídica as vincula ao Ministério, o que enseja o controle interno de alguns de seus atos [arts.
19 e 25, I, do decreto-lei n. 200/67].
4. Os órgãos da Administração Pública não podem determinar a suspensão do pagamento de vantagem incorporada aos vencimentos de
servidores quando protegido pelos efeitos da coisa julgada, ainda que
contrária à jurisprudência. Precedentes [MS 23.758, Relator MOREIRA ALVES, DJ 13.06.2003 e MS 23.665, Relator MAURÍCIO
CORREA, DJ 20.09.2002].
5. Não é possível deferir vantagem ou aumento de vencimentos a
servidores públicos sem lei específica, nem previsão orçamentária
[art. 37, X e 169, § 1º, I e II, da CB/88]. 6. Não há ilegalidade
nem violação da autonomia financeira e administrativa garantida
pelo art. 207 da Constituição no ato do Ministro da Educação
que, em observância aos preceitos legais, determina o reexame
de decisão, de determinada Universidade, que concedeu extensão administrativa de decisão judicial [arts. 1º e 2º do decreto n.
258
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
73.529/74, vigente à época]. 7. Agravo regimental a que se nega
16
provimento.
O mesmo colegiado, seguindo a posição já adotada por meio do seu
órgão plenário, ainda solidificou a ausência de violação ao princípio
autonômico ante a transferência ex officio de estudante militar ou servidor público, ou de seus dependentes, entre instituições de ensino
superior congêneres (vale dispor, a mudança de pública para pública
e de privada para privada), em virtude de comprovada remoção ou
transferência desse agente público por interesse da Administração,
com a respectiva mudança de domicílio:
EMENTA: AGRAVO REGIMENTAL EM RECURSO EXTRAORDINÁRIO. CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO.
TRANSFERÊNCIA DE ALUNO. AUTONOMIA UNIVERSITÁRIA. VULNERAÇÃO. ALEGAÇÃO IMPROCEDENTE. A transferência de alunos entre universidades congêneres é instituto que
integra o sistema geral de ensino, não transgredindo a autonomia
universitária, e é disciplina a ser realizada de modo abrangente, não
em vista de cada uma das universidades existentes no País, como decorreria da conclusão sobre tratar-se de questão própria ao estatuto
de cada qual. Precedente: RE n. 134.795, Relator o Ministro Marco
17
Aurélio, RTJ 144/644. Agravo regimental não provido.
AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE - INTERPRETAÇÃO CONFORME A CONSTITUIÇÃO - POSSIBILIDADE JURÍDICA. É possível, juridicamente, formular-se, em inicial de
ação direta de inconstitucionalidade, pedido de interpretação conforme, ante enfoque diverso que se mostre conflitante com a Carta
Federal. Envolvimento, no caso, de reconhecimento de inconstitucionalidade. UNIVERSIDADE - TRANSFERÊNCIA OBRIGATÓRIA DE ALUNO - LEI Nº 9.536/97. A constitucionalidade do
artigo 1º da Lei nº 9.536/97, viabilizador da transferência de alunos,
pressupõe a observância da natureza jurídica do estabelecimento
educacional de origem, a congeneridade das instituições envolvidas
- de privada para privada, de pública para pública -, mostrando-se
inconstitucional interpretação que resulte na mesclagem - de privada
18
para pública.
2.2.3. Plenário
O Plenário do STF, por sua vez, em caráter cautelar, assinalou que não malfere
a autonomia administrativa e financeira das universidades lei federal instituidora do
Sistema de Pessoal Civil da Administração Direta (Sipec), com abrangência sobre a
administração direta, as autarquias – incluídas as de regime especial – e as fundações
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
259
públicas, mas que não exclui do seu contexto as universidades públicas federais, bem
assim confere aos órgãos integrantes do mesmo sistema competência privativa para
os assuntos relativos ao pessoal civil dos órgãos e entidades do Poder Executivo e
subordina a administração pessoal dos entes públicos federais a um órgão central do
Ministério da Administração e Reforma do Estado, sem excetuar as universidades. No
entanto, por meio do mesmo julgado, o Plenário fixou que a Constituição não criou
uma nova autonomia universitária ao dar-lhe status constitucional. Para o tribunal,
esse valor deveria realizar-se dentro do regime da lei. A propósito, transcreve-se
abaixo a ementa:
EMENTA: MEDIDA CAUTELAR EM AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE: ART. 17 DA LEI Nº 7.923, DE
12.12.89, CAPUT DO ART. 36 DA LEI Nº 9.082, DE 25.07.95,
ART. 1º, PARÁGRAFO ÚNICO DO ART. 3º E ART. 6º DO
DECRETO Nº 2.028, DE 11.10.96. PRINCÍPIO DA AUTONOMIA DAS UNIVERSIDADES. PRELIMINAR: ILEGITIMIDADE ATIVA DE FEDERAÇÃO SINDICAL E DE SINDICATO
NACIONAL PARA PROPOR AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. PRELIMINAR DE CONHECIMENTO.
1. Preliminar: legitimidade ativa ad causam. O Supremo Tribunal
Federal, em inúmeros julgamentos, tem entendido que apenas as
confederações sindicais têm legitimidade ativa para requerer ação
direta de inconstitucionalidade (CF, art. 103, IX), excluídas as federações sindicais e os sindicatos nacionais. Precedentes. Exclusão dos dois primeiros requerentes da relação processual, mantido
o Partido dos Trabalhadores. 2. Preliminar: conhecimento (art. 36
da Lei nº 9.082/95). Não cabe ação direta para provocar o controle
concentrado de constitucionalidade de lei cuja eficácia temporária
nela prevista já se exauriu, bem como da que foi revogada, segundo
o atual entendimento deste Tribunal. 3. O princípio da autonomia
das universidades (CF, art. 207) não é irrestrito, mesmo porque não
cuida de soberania ou independência, de forma que as universidades
devem ser submetidas a diversas outras normas gerais previstas na
Constituição, como as que regem o orçamento (art. 165, § 5º, I), a
despesa com pessoal (art. 169), a submissão dos seus servidores ao
regime jurídico único (art. 39), bem como às que tratam do controle
e da fiscalização. Pedido cautelar indeferido quanto aos arts. 1º e 6º
do Decreto nº 2.028/96. 5. Ação direta conhecida, em parte, e deferido o pedido cautelar também em parte para suspender a eficácia da
expressão “judiciais ou” contida no pár. único do art. 3º do Decreto
19
nº 2.028/96.
Em outra decisão e em votação apertadíssima, o citado órgão, ao indeferir medida
cautelar para suspender os efeitos de ato normativo que estabeleceu o exame nacional
260
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
a ser obrigatoriamente prestado por estudante após a conclusão do curso acadêmico,
sob pena de o mesmo discente não receber o diploma a que faria jus, asseverou que a
autonomia universitária não poderia impedir a fiscalização pelo poder público do ensino
ministrado pela entidade.
EMENTA: CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. UNIVERSIDADE. PROVÃO. Lei 9.131, de 24.XI.95, artigo 3º e parágrafos. C.F., art. 5º, LIV; art. 84, IV; art. 207. I. - Avaliação
periódica das instituições e dos cursos de nível superior, mediante
exames nacionais: Lei 9.131/95, art. 3º e parágrafos. Arguição de
inconstitucionalidade de tais dispositivos: alegação de que tais
normas são ofensivas ao princípio da razoabilidade, assim ofensivas ao “substantive due process” inscrito no art. 5º, LIV, da C.F.,
à autonomia universitária — CF, art. 207 — e que teria sido ela
regulamentada pelo Ministro de Estado, assim com ofensa ao art.
84, IV, C.F. II. - Irrelevância da argüição de inconstitucionalida20
de. III. - Cautelar indeferida.
Nesse contexto e não obstante o firme entendimento nos tribunais superiores no
sentido de que as instituições de ensino superior gozam meramente de poder normativo
infralegal, há uma respeitada doutrina que sustenta exatamente o oposto dessa idéia.
Desse modo, subsiste a pergunta se a inserção constitucional da autonomia universitária
no artigo 207 da Constituição Federal promoveu sua intangibilidade ante a legislação
hierarquicamente inferior.
De fato, a resposta não é tão simples. Ela deve ser resolvida à luz do artigo
207 da Constituição Federal, notadamente quando se observa que a solução desse
problema é essencial para o exame de questões que hoje inquietam a sociedade
nacional, como é o caso da política de cotas nas universidades para estudantes
afrodescendentes ou provenientes de escolas públicas ou o caso da transferência
ex officio de servidores públicos ou militares entre instituições de ensino não
congêneres.
3. Análise do problema à luz da doutrina
Consoante se mencionou no capítulo anterior, os Tribunais Superiores pacificaram que o artigo 207 da Constituição Federal não confere poder normativo primário
para as instituições de ensino superior. Contudo, essa não é a posição de parte da doutrina. Nesse contexto e tendo em vista ser também essa uma fonte do Direito, faz-se
necessário observar como ela define o conteúdo da autonomia das universidades diante
da legislação e da posição pretoriana sobre o tema.
É, portanto, o que se passa a examinar, todavia dentro dos limites da proposta
deste trabalho.
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
261
3.1. A autonomia universitária e o seu alcance
A noção de autonomia universitária é anterior à do próprio Estado. Anna Cândida da Cunha Ferraz destaca que, quando o termo Estado se fixou, no século XVI,
a Universidade de Paris já possuía quatro séculos, a de Bolonha vinha de 1158, a da
21
22
Alemanha de 1348 e a de Coimbra de 1290.
Pinto Ferreira, ao dispor acerca da ideia de autonomia universitária, entende
que ela “está intimamente ligada à luta pela liberdade de pensamento, de crítica, de
pesquisa, de ensino, de orientação de suas atividades, sem o que é impossível a realização
23
da plena autenticidade do ideal universitário”.
Anita Lapa Borges de Sampaio, por sua vez, destaca que a autonomia “é uma
prerrogativa de cada universidade, e não das instituições universitárias consideradas
em conjunto”, tal como na Espanha. De fato, não é outra a ideia que se depreende da
24
dicção contida no artigo 207 da Constituição: “as universidades gozam” de autonomia,
não há nesse dispositivo uma referência a uma totalidade qualquer como a universidade
25
ou a instituição universitária.
Há, porém, uma divergência na doutrina quanto ao alcance da competência normativa do legislador no que tange aos limites da autonomia universitária. Para parte da
doutrina, da qual participam Pinto Ferreira, Adilson Abreu Dallari e Manoel Gonçalves
Ferreira Filho, a constitucionalização do preceito da autonomia não teria modificado
seu conteúdo, mas meramente declarado sua existência no campo infraconstitucional.
Com efeito, a aludida prerrogativa teria seus limites fixados pelo ordenamento infraconstitucional, não conferia às universidades poder normativo de primeiro grau ou em
26
nível legislativo. Eventual poder normativo seria derivado e infralegal.
Para segunda corrente (Anna Candida Cunha Ferraz, Nina Ranieri, Willis Santiago Guerra, Anita Lapa Borges Sampaio, Marcelo Arno Nerling e Lauro Morhy) a
inserção constitucional da autonomia das universidades no artigo 207 da Constituição
Federal promoveu a intangibilidade do princípio autonômico ante a legislação hierarquicamente inferior. A autonomia universitária passou a ter, portanto, seus limites
fixados pela Constituição, na medida em que esse diploma não subordinou tal garantia
à reserva legal. Nessa linha, às normas infraconstitucionais cabe meramente pormeno27
rizar o referido preceito para a maior efetividade desse, sem, contudo, desvirtuá-lo.
Em outros termos, “onde não há proibição, vedação ou limitação constitucional, há
de imperar o princípio autonômico”, “as leis não podem, em nenhum passo, restringir,
reduzir, diminuir ou afetar, ainda que de modo indireto, a autonomia universitária,
cujos limites [...] estão na Constituição e só dela podem ser extraídos”. Em verdade,
28
há um “núcleo essencial insuprimível” da autonomia, insuscetível de revogação e
regulação ilimitada pelo legislador ordinário, que além de assegurar, “não a existência
da universidade, mas antes a exigência de que a intervenção no âmbito da universidade
(inclusive por lei) seja mínima”, viabiliza o exercício da competência autonormativa
dessas entidades, competência essa da qual decorre a força normativa dos estatutos e
29
regimentos universitários.
Nesse diapasão, consideram ainda os citados doutrinadores que, por meio da
Carta Magna, a autonomia ganhou a mesma força dos demais princípios constitucio262
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
nais e, portanto, uma dimensão interpretativa, integrativa, diretiva e limitativa para
sua própria aplicação. Em outras palavras, segundo essa parcela da doutrina, ante a
previsão constitucional do princípio da autonomia, esse passou a merecer interpretação
harmônica com os demais princípios, a fim de ter aplicação mais eficiente e conforme
30
a finalidade para a qual foi instituído.
A esse respeito, Anna Candida da Cunha Ferraz registra:
“Inscrito na Constituição Federal, o princípio da autonomia universitária tem uma dimensão fundamentadora, integrativa, diretiva e
limitativa própria, o que significa dizer que é na própria Constituição
Federal: a) que se radica o fundamento do instituto; b) que é dela
que se extrai sua força integrativa em todo o sistema federativo do
País; c) que a Constituição Federal preordena a interpretação que se
possa dar ao instituto; d) que os limites que se podem opor à autonomia universitária têm como sede única a própria Constituição Federal; e) que o princípio da autonomia universitária, como princípio
constitucional, deve ser interpretado em harmonia – mas no mesmo
31
nível – com os demais princípios constitucionais.”
Não é por menos que Anna Candida da Cunha Ferraz, Nina Ranieri, Anita Lapa
Borges de Sampaio, Celso da Costa Frauches e Gustavo M. Fagundes observam que o
32
artigo 207 da Lei Maior é:
“[...] norma autoaplicável, bastante em si, na lição da doutrina clássica, ou de eficácia plena e de aplicabilidade imediata, na linguagem
de José Afonso da Silva ou completa, imediatamente exeqüível, na
33
dicção de Manoel Gonçalves Ferreira Filho.”
Tal aplicabilidade foi reforçada em vista da vinculação da autonomia com os
34
35
36
direitos previstos nos artigos 5º, IV e IX, e 206, II, da Constituição Federal e da
aplicação imediata das normas definidoras de direitos e garantias fundamentais. Aliás,
Anita Lapa Borges de Sampaio reconhece a autonomia universitária como direito
37
individual protegido pelo artigo 60, §4º, IV, do Texto Constitucional, dada a sua
derivação do direito fundamental de livre expressão da atividade intelectual, artística,
científica e de comunicação (artigo 5º, IX, CRFB) e da liberdade de transmissão e recepção do conhecimento (artigo 206, II, CRFB). E é em razão dessa natureza de direito
fundamental que a mesma autora afasta a qualificação do artigo 207 da Carta Magna
como “mero conteúdo organizativo ou institucional das liberdades fundamentais da
comunidade universitária”, como uma simples garantia institucional, que admite toda e
qualquer restrição desde que mantido um núcleo essencial da instituição e distingue-se
dos direitos fundamentais, que só admitem em seu âmbito uma intervenção legislativa
38
mínima, isto é, excepcional e limitada.
Ainda no que diz respeito à errônea qualificação da autonomia universitária
como uma mera garantia institucional, Anita Lapa Borges de Sampaio destaca que
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
263
ela é desnecessária ou porque a universidade tem uma proteção fundada pelo próprio
direito fundamental com que se vincula, ou porque a noção de garantia institucional
traz consigo a inconveniência de discussões conceituais acerca de sua teoria, ou porque
não apresenta uma categoria normativa similar com as decorrentes do ordenamento
jurídico constitucional, ou porque não se submete à reserva legal (sob a expressão “na
forma da lei”), pelo que seria descartada em um controle de constitucionalidade ante
39
as normas constitucionais.
A autoaplicabilidade do artigo 207 da Constituição Federal, no entanto, não
exclui, consoante já explicitado, os desdobramentos legislativos que se fizerem necessários para a maior efetividade da autonomia, desde que proporcionais e fundados na
Constituição Federal. De fato, incube à União “fixar as diretrizes e bases da educação
40
nacional”. Os outros entes federativos poderão, contudo, em suas Constituições e
leis, criar universidades públicas e – desde que se mantenham nos estritos limites para
os quais foram autorizados – definir a forma de administração descentralizada que
41
essas assumem, bem como o modo de controle e tutela específicos dessas entidades.
Ademais, vale lembrar que é atribuição comum dos entes federativos, por meio de ati42
vidade legislativa, “proporcionar os meios de acesso à cultura, à educação e à ciência”
e compete concorrentemente à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar sobre
43
educação, cultura, ensino e desporto.
Se, portanto, a autonomia deve ser desempenhada consoante os limites da
Constituição, necessário observar quais são eles.
3.1.1. Limitações ao exercício da autonomia
44
Conforme classifica Cunha Ferraz, existem limitações gerais e específicas. As
primeiras consistem na observância pelas universidades aos direitos fundamentais e aos
princípios norteadores da Administração Pública, bem como na compatibilização da
autonomia universitária com os princípios constitucionais interpretadores, como o da
45
razoabilidade, por exemplo.
As limitações específicas, ressalta Cunha Ferraz, podem ser extraídas do Capítulo II Da Educação, da Cultura e do Desporto, inserido no Título VIII do Texto
46
Constitucional, como de outras normas dispostas ao longo desse diploma. E continua
a doutrinadora:
“[...] no que concerne à autonomia-fim (autonomia didática e científica), devem as universidades observar, dentre outros, os princípios do próprio artigo 207 (indissociabilidade entre o ensino, pesquisa e extensão) e os contidos no artigo 206, particularmente os
referentes:
- ao pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas;
- a gratuidade do ensino público nos estabelecimentos oficiais;
- a gestão democrática do ensino público, na forma da lei;
47
- a garantia do padrão de qualidade.”
264
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
Anita Lapa de Borges Sampaio, por sua vez, classifica as limitações em imanentes (ou não expressas), em imediatas (ou diretas) e em competências atribuídas ao
legislador ordinário para matérias afetas à universidade. Das primeiras tem-se como
exemplo a garantia do padrão de qualidade. No que toca aos limites constitucionais
imediatos ou diretos, a referida autora cita a indissociabilidade entre o ensino, pesquisa
e extensão. Acerca da última espécie de limitação, servem como exemplo a compe48
tência prevista no artigo 206, VI e V, da Constituição Federal e as competências
49
para normas gerais para a Administração Pública. Os limites em referência devem,
porém, obedecer a requisitos formais (exigências formais de competência e de processo legislativo constitucionalmente previstas) e requisitos materiais (se o resultado
da intervenção legislativa realmente assegurou em grau ótimo o maior alcance ou
50
efetividade da autonomia).
No tocante à obediência aos requisitos materiais pelo legislador, a constatação
dessa exige a consideração das condições fáticas e jurídicas de cada caso, depende da
“ponderação entre o grau de restrição da autonomia universitária pela legislação e a
relevância da limitação da autonomia para a realização dos fins constitucionais que
justificam a norma”, isso porque seria impossível, em abstrato, determinar o grau de
limitação da autonomia universitária nas mais variadas circunstâncias. Nessa medida,
a restrição legal da autonomia, destaca Anita Lapa Borges de Sampaio, deve ter por
fim a maior eficácia de um princípio oposto à autonomia (adequação) e ser o menos
lesiva ou limitadora para o princípio objeto de restrição (necessidade), sob pena de
ser desproporcional e ilegítima. Além da adequação e da necessidade, a restrição deve
obedecer à proporcionalidade em sentido estrito, isto é, não pode ser excessiva em face
51
do ganho em realização do outro princípio.
Nesse contexto, para observar se as restrições impostas à autonomia são compatíveis com o princípio da proporcionalidade, Anita Lapa Borges de Sampaio propõe
algumas questões, a saber:
“a) Trata-se de uma norma veiculada em um diploma formalmente
constitucional, isto é, observou-se a competência legislativa constitucionalmente prevista, a restrição foi veiculada por lei em sentido
formal?
b) Trata-se de efetiva restrição do âmbito de proteção da autonomia
universitária ou de mera conformação, isto é, a normação retira ou
limita alguma prerrogativa ou posição jurídica em princípio contida
na autonomia universitária?
c) A Constituição autoriza a restrição?
c.1) Trata-se de uma restrição da autonomia universitária diretamente imposta pela Constituição?
c.2) Trata-se de uma competência de regulação deferida ao legislador?
c.2.1) Trata-se de uma competência legislativa expressamente referida à universidade pela Constituição?
c.2.2) Não se tratando de uma competência expressamente referida à
universidade, há um fundamento constitucional para que essa comRevista da Escola da Magistratura - nº 13
265
petência legislativa geral se aplique à universidade? Esse fundamento
constitucional, segundo um primeiro juízo de proporcionalidade em
que fosse ponderado com a preservação da autonomia universitária,
justificaria a intervenção legislativa?
c.2.3) Se houver um fundamento constitucional que justifique a aplicação da competência legislativa à universidade, a norma restritiva
concretamente oferecida pelo legislador orienta-se estritamente à realização daquele fundamento constitucional?
c.3) Trata-se da regulação de um limite constitucional imanente à
52
autonomia universitária?”
Com efeito, não é outra a conclusão a que se chega, senão que a Lei n. 9.394/96
não encerra o alcance e o âmbito da autonomia das universidades. Nessa perspectiva,
Anita Lapa Borges de Sampaio destaca que o legislador, ao dispor sobre as atribuições
relativas ao exercício da autonomia universitária no artigo 53 e 54, §1º, da LDB, ao
utilizar-se das reservas traduzidas nas expressões “obedecendo às normas gerais”, “diretrizes gerais pertinentes”, “normas gerais atinentes”, etc., a pretexto de fixar diretrizes e
bases da educação nacional, extrapolou a competência prevista para a União no artigo
53
22, XXIV, da Constituição, malferindo a autonomia das universidades. Nessa linha
de raciocínio, expõe:
“A legislação de diretrizes e bases da educação deveria fixar parâmetros gerais em que houvesse a necessidade de uma uniformidade
normativa em nível nacional e estritamente vinculada a questões
afetas ao ensino, preservando às universidades a flexibilidade organizacional e normativa que lhes permitisse, no uso da autonomia o
aprimoramento da realização de suas finalidades constitucionais. [...]
Mesmo com relação a questões relativas ao ensino (objeto também
da Lei de Diretrizes e Bases da Educação), a disciplina externa à universidade deveria limitar-se a aspectos não essenciais à realização da
autonomia universitária, reservando toda a matéria remanescente à
54
sua autonormação.”
3.1.2. Conteúdo do princípio autonômico
Sobre o conteúdo do princípio autonômico, esse se revela na autonomia didática e científica, na autonomia de gestão financeira e patrimonial e na autonomia
55
administrativa.
No que se refere à autonomia didática, essa é atividade fim da universidade e
define-se como a competência dessa entidade para determinar qual e como o conhecimento será transmitido. Dessa competência deflui a responsabilidade da universidade
pela qualidade de ensino e essa garantia de qualidade é o que justifica a intervenção
do Estado na esfera autonômica, no sentido de reconhecer e fiscalizar as universidades,
266
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
bem como de autorizar o funcionamento dessas. De fato, “a autonomia universitária
coloca a universidade ao abrigo de política partidária, mas não colide com a elevada
política pedagógica do Estado em, sem prejuízo da liberdade acadêmica, manter sempre
56
atuante o espírito da autonomia”. Aliás, o artigo 53 da Lei Darcy Ribeiro, ao traçar a
disciplina material dessa garantia não destoa da construída previamente pela doutrina:
“Art. 53. No exercício de sua autonomia, são asseguradas às universidades, sem prejuízo de outras, as seguintes atribuições:
I - criar, organizar e extinguir, em sua sede, cursos e programas de
educação superior previstos nesta lei, obedecendo às normas gerais
da União e, quando for o caso, do respectivo sistema de ensino [...];
II - fixar os currículos dos seus cursos e programas, observadas as
diretrizes gerais pertinentes;
III - estabelecer planos, programas e projetos de pesquisa científica,
produção artística e atividades de extensão;
IV - fixar o número de vagas de acordo com a capacidade institucional e as exigências do seu meio;
V - elaborar e reformar os seus estatutos e regimentos em consonância com as normas gerais atinentes;
VI - conferir graus, diplomas e outros títulos;
VII - firmar contratos, acordos e convênios;
VIII - aprovar e executar planos, programas e projetos de investimentos referentes a obras, serviços e aquisições em geral, bem como
administrar rendimentos conforme dispositivos institucionais;
IX - administrar os rendimentos e deles dispor na forma prevista no
ato de constituição, nas leis e nos respectivos estatutos;
X - receber subvenções, doações, heranças, legados e cooperação financeira resultante de convênios com entidades públicas e privadas.
57
.........................................................”
Relativamente à autonomia científica, essa consiste na liberdade de pensamento
(assegurada pelo artigo 5º da Carta Magna) e de ensino (firmada pelo artigo 206, incisos
58
II e III, da mesma Carta), bem como na responsabilidade de as universidades cumprirem com o dever de promover e incentivar o desenvolvimento científico, a pesquisa e
59
a capacitação tecnológica (obrigação firmada pelo artigo 218, caput, da Lei Maior).
Corresponde, assim, à liberdade que a entidade educacional possui para organizar seus
60
campos de conhecimento.
No que toca à autonomia de gestão financeira e patrimonial, essa se constitui no
poder dado às universidades para gerir, administrar e dispor de seus recursos financeiros,
assim como no dever de o ente político que instituiu a entidade de ensino de financiá-la
61
suficientemente para que ela exerça seus objetivos didáticos, científicos e culturais. A
respeito desses objetivos, bem os delineou Caio Tácito:
“a) transmitir o conhecimento adquirido, formando profissionais e
especialistas ou lhes atualizando a formação (difusão do conheciRevista da Escola da Magistratura - nº 13
267
mento); b) criar conhecimento novo ou nova tecnologia, mediante
pesquisa pura ou aplicada (conquista do desconhecido); c) prestação
de serviços à comunidade, tanto no plano técnico como no social
62
(extensão universitária).”
Na autonomia de gestão financeira e patrimonial, qualquer intervenção do Estado
somente se dará, segundo apontou a jurisprudência no Supremo Tribunal Federal, a
posteriori, por meio de tomada de contas e de inspeções contábeis. Nesse sentido, uma
disposição de direito estadual não pode, por exemplo, determinar como competência
de governador de Estado a aprovação dos orçamentos de custeio e de capital de uma
universidade e as alterações desses, nem autorizar o governador a regulamentar sobre
a elaboração de orçamento de custeio e investimento bem como de programação fi63
nanceira daquela entidade.
É oportuno observar que os artigos 53, VIII, IX e X; 54, caput e incisos III, IV,
V, VI, VII; 68; 69 e 72 da LDB estipulam alguns aspectos da autonomia de gestão
financeira e patrimonial. Importante também é dispor que o artigo 55 da referida lei
atribui à União o dever de, anualmente, assegurar recursos suficientes às instituições
64
de ensino superior.
Outra nuance da autonomia universitária é a administrativa que, a seu turno,
além de ser pressuposto da autonomia financeira e patrimonial; possui caráter acessório,
na medida em que decorre e é instrumento da autonomia didática e científica. Consiste
na competência conferida às universidades para autodeterminação e autonormação
relativas à organização e funcionamento dos serviços e do patrimônio dessas entidades
educacionais, bem como a todos os atos inerentes a essa competência. Constitui, pois,
no poder atribuído às universidades para “disciplinar as suas relações com os corpos
65
docente, discente e administrativo que a integram”.
No que concerne com a disciplina do pessoal docente, essa “abrange o estabelecimento do respectivo quadro, a definição da carreira, os requisitos para o ingresso,
a admissão e a nomeação dos docentes e servidores administrativos, a definição do
66
estatuto do pessoal docente, etc”. A esse respeito, a Lei de Diretrizes e Bases consigna:
“Art. 53. No exercício de sua autonomia, são asseguradas às universidades, sem prejuízo de outras, as seguintes atribuições:
.........................................................
IV - elaborar e reformar os seus estatutos e regimentos em consonância com as normas gerais atinentes;
.........................................................
Parágrafo único. Para garantir a autonomia didático-científica das
universidades, caberá aos seus colegiados de ensino e pesquisa decidir, dentro dos recursos orçamentários disponíveis, sobre:
.........................................................
V - contratação e dispensa de professores;
67
VI - planos de carreira docente.”
268
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
E o artigo 54 do supracitado diploma dispõe:
“Art. 54. As universidades mantidas pelo Poder Público gozarão, na
forma da lei, de estatuto jurídico especial para atender às peculiaridades de sua estrutura, organização e financiamento pelo Poder Público, assim como dos seus planos de carreira e do regime jurídico do
seu pessoal.
§ 1º No exercício da sua autonomia, além das atribuições asseguradas
pelo artigo anterior, as universidades públicas poderão:
I - propor o seu quadro de pessoal docente, técnico e administrativo,
assim como um plano de cargos e salários, atendidas as normas gerais
pertinentes e os recursos disponíveis;
II - elaborar o regulamento de seu pessoal em conformidade com as
normas gerais concernentes;
68
.........................................................”
Sobre o modelo institucional universitário, da supracitada regra, mais especificamente das expressões “regime especial” e “estatuto especial” nela contidas, infere-se que
as universidades gozam de um regime jurídico especial. Esse regime espelha a natureza
especial conferida às universidades, em virtude de sua autonomia ser constitucionalmente prevista, natureza essa que as distingue de quaisquer outros entes da Administração
indireta. Nessa medida, Anita Lapa Borges de Sampaio acrescenta que, de fato, as formas
fundacional e autárquica não seriam compatíveis com a universidade autônoma, tendo
em vista que “induzem, na prática rotineira do controle e da fiscalização externa da
69
universidade federal, a um tratamento semelhante àquele aplicado às demais entidades
70
integrantes da Administração Pública”. Nessa linha, a citada autora expõe:
“Se a Constituição consagra a autonomia da universidade diante
do Estado, não seria razoável afirmar que o Estado, por meio de um
instrumento infraconstitucional (a lei), possa amplamente delimitar
essa prerrogativa. Nesse sentido, a autodeterminação assegurada à
universidade deve significar a existência de uma esfera de decisão
universitária que nem a lei poderia suprir ou delimitar.
Essa esfera de autodeterminação insuprimível pela lei (isto é, o núcleo essencial da autonomia) diferencia a autonomia universitária
da proteção de outras instituições constitucionais, em que o que se
assegura não é um âmbito de autodeterminação, mas tão-somente a
71
existência da própria instituição.”
Cunha Ferraz, dissertando sobre esse ponto, conclui:
“É, pois, especial o regime das autarquias educacionais porque estão
estas autarquias submetidas a normas de organização, administração,
controle ou tutela administrativa, regime de pessoal, matéria recurRevista da Escola da Magistratura - nº 13
269
sal, etc., próprios, comuns entre as autarquias do gênero, diferentes
72
das autarquias de outros tipos.”
Em razão desse regime especial, as universidades terão sua organização disciplinada em estatutos e regimentos aprovados pelo Conselho de Educação. Tais diplomas, haja
vista a inserção do princípio da autonomia da universidade na Constituição Republicana,
têm fundamento decorrente do próprio Texto Constitucional, possuem força normativa.
Isso mesmo ressalta Cunha Ferraz:
“Ora, a inclusão, na Constituição Federal, do princípio da autonomia universitária em seu artigo 207, conferindo proteção reforçada
ao instituto, reafirma a força normativa dos estatutos e dos regimentos universitários, cujo fundamento, agora, já não deriva apenas da
73
lei, mas decorre do próprio ordenamento jurídico-constitucional.”
Em regra, os estatutos e regimentos são formalizados mediante resolução aprovada
pelo conselho universitário e expedida pelo reitor da universidade. Embora não sejam as
resoluções, estatutos e regimentos lei em sentido formal, satisfazem o princípio da legalidade, pois, como se viu, seu conteúdo material é predeterminado constitucionalmente.
Em outros termos, as resoluções das universidades, dentro de sua órbita de incidência,
equiparam-se às leis formais. “Assim, [sustenta Cunha Ferraz] a universidade, quando
estabelece o seu estatuto e nele desdobra sua autonomia universitária, usa estritamente
74
o poder que lhe advém da Constituição.”
Nesse prisma, vale ressaltar a preciosa observação de Nina Ranieri:
“Esse [a prevalência das decisões legais da universidade sobre normas
exógenas de igual valor, no que respeita a seu peculiar interesse] talvez seja o desdobramento mais significativo da autonomia universitária. A Universidade é uma entidade normativa. Produz direito; suas
normas integram a ordem jurídica porque assim determinou a norma
75
fundamental do sistema.”
Após a promulgação da Constituição de 1988, não obstante a Corte Suprema
ter fixado, por meio da ADI n. 51, que as universidades só detinham autonomia administrativa, não possuindo autonomia política que lhes conferisse poder normativo
derivado diretamente da Constituição, essa corte vem reconhecendo que há, na autonomia, desde a sua inserção no Texto Constitucional, um núcleo inarredável por normas
76
infraconstitucionais. Anita Lapa Borges de Sampaio dispõe, no entanto, que embora
haja o Excelso Pretório vinculado a autonomia universitária à proteção constitucional
da liberdade de cátedra, tal vinculação não foi acompanhada da devida análise sobre
77
o alcance daquele direito individual. Nesse sentido, observa a citada doutrinadora,
que a atribuição às universidades de um poder meramente infralegal não tem apoio no
próprio Texto Constitucional, na medida em que esse diploma emprega a autonomia
administrativa apenas como uma das matérias sobre as quais recai a autonormação
270
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
universitária. Nesse aspecto, destaca que o argumento fundado exclusivamente na
incompatibilidade da autonormação política com o modelo infraconstitucionalmente
atribuído às universidades (autárquico ou fundacional) no intuito de reduzir a autonomia
dessas, revela-se inconciliável com a supremacia constitucional e superado pela nova
78
concretização legal do artigo 207.
Dessarte, é inaceitável o entendimento de que a autonomia envolve simplesmente um poder de autodeterminação meramente infralegal, uma vez que a hermenêutica
constitucional guia-se pelo princípio da máxima efetividade. É, pois, dever ressaltar
que a competência de autonormação abrange tanto os aspectos didáticos, quanto os
científicos, os administrativos e de gestão financeira e patrimonial, haja vista que a
Constituição dispôs de maneira explícita esse alcance e que as liberdades fundamentais
previstas nos artigos 5º, IX e 206, II, da Lei Maior não impõem a limitação da autonomia,
79
ao contrário, ampliam-na.
Uma última consideração a respeito do alcance do artigo 207 que merece
destaque é que já se discutiu se a autonomia se estende às instituições de ensino não-universitárias, como é o caso dos centros universitários, faculdades integradas, faculdades e escolas superiores. Ives Granda da Silva Martins, analisando a questão, entende
que a autonomia constitucionalmente prevista foi outorgada apenas às universidades e
institutos de pesquisa, isso porque tais instituições, para ostentar seus respectivos perfis,
submetem-se a linhas severas de controle e fiscalização por parte do Poder Público
consideravelmente superiores às demais entidades educacionais, ex vi do artigo 52 da
80
Lei Darcy Ribeiro.
Conclusão
A inserção constitucional da autonomia das universidades no artigo 207 da
Constituição Federal promoveu a intangibilidade do princípio autonômico ante a
legislação hierarquicamente inferior. A autonomia universitária passou a ter, portanto, seus limites fixados pela Constituição, na medida em que esse diploma não
subordinou tal garantia à reserva legal, passou a merecer interpretação harmônica
com os demais princípios, a fim de que tenha aplicação mais eficiente e conforme a
finalidade para a qual foi instituída. Nessa linha, às normas infraconstitucionais cabe
meramente pormenorizar o referido preceito para a maior efetividade desse, sem,
contudo, desvirtuá-lo.
Ademais, dada a sua derivação do direito fundamental de livre expressão da
atividade intelectual, artística, científica e de comunicação (artigo 5º, IX, CRFB) e da
liberdade de transmissão e recepção do conhecimento (artigo 206, II, CRFB), a autonomia universitária constitui não uma simples garantia institucional – que admite toda e
qualquer restrição desde que mantido um núcleo essencial da instituição e distingue-se
dos direitos fundamentais – mas um direito individual radicado em norma auto-aplicável
e protegido pelo artigo 60, §4º, IV, do Texto Constitucional.
A autoaplicabilidade do artigo 207 da Constituição Federal, no entanto, não
exclui, consoante já explicitado, os desdobramentos legislativos que se façam necesRevista da Escola da Magistratura - nº 13
271
sários para a maior efetividade da autonomia, desde que proporcionais e fundados na
Constituição Federal. Com efeito, não é outra a conclusão a que se chega, senão que
a Lei n. 9.394/96 não encerra o alcance e o âmbito da autonomia das universidades.
Também em virtude de sua autonomia ser constitucionalmente prevista, as
universidades possuem uma natureza que as disferencia de quaisquer outros entes da
Administração indireta, natureza essa espelhada por um regime jurídico especial expresso
por estatutos e regimentos aprovados pelo Conselho de Educação, diplomas esses que
possuem força normativa e satisfazem o princípio da legalidade exatamente por terem
fundamento decorrente do próprio Texto Constitucional.
Dessarte, é inaceitável o entendimento de que a autonomia envolve simplesmente um poder de autodeterminação meramente infralegal, uma vez que a hermenêutica
constitucional guia-se pelo princípio da máxima efetividade. É, pois, dever ressaltar
que a competência de autonormação abrange tanto os aspectos didáticos, quanto os
científicos, os administrativos e de gestão financeira e patrimonial, haja vista que a
Constituição dispôs de maneira explícita esse alcance e que as liberdades fundamentais
previstas nos artigos 5º, IX e 206, II, da Lei Maior não impõem a limitação da autonomia,
ao contrário, ampliam-na.
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JANE SILVA (DESEMBARGADORA CONVOCADA DO TJ/MG), Sexta
Turma, julgado em 11/11/2008, DJe 01/12/2008.
______. CC 13.758/PR, Rel. Ministro MILTON LUIZ PEREIRA, Primeira Seção,
julgado em 06/06/1995, DJ 07/08/1995 p. 23003.
______. MS 3.129/DF, Rel. Ministro ANSELMO SANTIAGO, Terceira Seção, julgado
em 25/11/1998, DJ 01/02/1999 p. 100.
______. MS 3.318/DF, Rel. Ministro ANTÔNIO DE PÁDUA RIBEIRO, Primeira
Seção, julgado em 31/05/1994, DJ 15/08/1994 p. 20271.
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29/05/2001, DJ 13/08/2001 p. 37.
______. REsp 1.132.476/PR, Rel. Ministro HUMBERTO MARTINS, Segunda Turma,
julgado em 13/10/2009, DJe 21/10/2009.
______. REsp 513.890/PR, Rel. Ministra ELIANA CALMON, Segunda Turma, julgado
em 08/11/2005, DJ 13/02/2006 p. 730.
______. REsp 546.232/RS, Rel. Ministra ELIANA CALMON, Segunda Turma, julgado
em 09/08/2005, DJ 05/09/2005 p. 345.
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
273
______. RMS 26.089/PR, Rel. Ministro FELIX FISCHER, Quinta Turma, julgado em
22/04/2008, DJe 12/05/2008.
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. 1ª Turma. RE n. 83.962. Relator: Suarez Munhoz,
Brasília, DF, 17 abr. 1979. DJ de 4.5.1979, p. 3.519.
______. ADI 1.511 MC, Rel. Ministro CARLOS VELLOSO, Tribunal Pleno, julgado
em 16/10/1996, DJ 06-06-2003 PP-00029 EMENT VOL-02113-01 PP-00071.
______. ADI 1.599 MC, Rel. Ministro MAURÍCIO CORRÊA, Tribunal Pleno, julgado
em 26/02/1998, DJ 18-05-2001 PP-00430 EMENT VOL-02031-03 PP-00448.
______. ADI 3.324, Rel. Ministro MARCO AURÉLIO, Tribunal Pleno, julgado em
16/12/2004, DJ 05-08-2005 PP-00005 EMENT VOL-02199-01 PP-00140 RIP v. 6, n.
32, 2005, p. 279-299 RDDP n. 32, 2005, p. 122-137 RDDP n. 31, 2005, p. 212-213.
______. ADI 51, Rel. Mininstro PAULO BROSSARD, Tribunal Pleno, julgado em
25/10/1989, DJ 17-09-1993 PP-18926 EMENT VOL-01717-01 PP-00001.
______. MS 10.213, Rel. Ministro VICTOR NUNES, Tribunal Pleno, julgado em
14/12/1962, DJ 27-03-1963 PP-00654 ADJ DATA 02-05-1963 PP-00226 EMENT
VOL-00530-01 PP-00195 RTJ VOL-00027-01 PP-00014.
______. Rcl 2.280, Rel. Min. JOAQUIM BARBOSA, Segunda Turma, julgado em
01/04/2008, DJe-070 DIVULG 17-04-2008 PUBLIC 18-04-2008 EMENT VOL02315-02 PP-00412 LEXSTF v. 30, n. 358, 2008, p. 244-252.
______. RE 362.074 AgR, Rel.Ministro EROS GRAU, Primeira Turma, julgado em
29/03/2005, DJ 22-04-2005 PP-00013 EMENT VOL-02188-02 PP-00410 RNDJ
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EMENT VOL-02367-07 PP-01281 RT v. 98, n. 888, 2009, p. 159-161 LEXSTF v.
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______. RMS 22.047 AgR, Rel. Ministro EROS GRAU, Primeira Turma, julgado em
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TÁCITO, Caio. Ensino superior oficial: autarquia ou fundação? Rio de Janeiro:
UERJ, 1981.
Notas
1
LEI N. 5.540, de 28.11.68. Fixa normas de organização e funcionamento do ensino superior e sua articulação
com a escola média, e dá outras providências. DOU de 23.11.1968 e retificado no DOU de 3.12.1968.
2
LEI N. 9.394, de 20.12.96. Estabelece as Diretrizes e Bases da Educação Nacional. DOU de 23.12.96.
3
LEI N. 9.494, de 11.12.97. Regulamenta o parágrafo único do artigo 49 da Lei n. 9.394, de 20.12.96. DOU
de 12.12.97, p. 29.510.
4
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ADI 51, Rel. Ministro PAULO BROSSARD, Tribunal Pleno, julgado
em 25/10/1989, DJ 17-09-1993 PP-18926 EMENT VOL-01717-01 PP-00001.
5
SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. AgRg no REsp 519.366/RN, Rel. Ministra JANE SILVA (DESEMBARGADORA CONVOCADA DO TJ/MG), Sexta Turma, julgado em 11/11/2008, DJe 01/12/2008.
6
SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. MS 3.129/DF, Rel. Ministro ANSELMO SANTIAGO, Terceira
Seção, julgado em 25/11/1998, DJ 01/02/1999 p. 100.
7
SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. RMS 26.089/PR, Rel. Ministro FELIX FISCHER, Quinta Turma,
julgado em 22/04/2008, DJe 12/05/2008.
274
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
8
SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. REsp 513.890/PR, Rel. Ministra ELIANA CALMON, Segunda
Turma, julgado em 08/11/2005, DJ 13/02/2006 p. 730.
SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. CC 13758/PR, Rel. Ministro MILTON LUIZ PEREIRA, Primeira
Seção, julgado em 06/06/1995, DJ 07/08/1995 p. 23003.
10
SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. MS 3318/DF, Rel. Ministro ANTÔNIO DE PÁDUA RIBEIRO,
Primeira Seção, julgado em 31/05/1994, DJ 15/08/1994 p. 20271.
11
SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. REsp 546.232/RS, Rel. Ministra ELIANA CALMON, Segunda
Turma, julgado em 09/08/2005, DJ 05/09/2005 p. 345.
12
SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. REsp 1132476/PR, Rel. Ministro HUMBERTO MARTINS,
Segunda Turma, julgado em 13/10/2009, DJe 21/10/2009.
13
SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. MS 6.599/DF, Rel. Ministro GARCIA VIEIRA, Primeira Seção,
julgado em 29/05/2001, DJ 13/08/2001 p. 37.
14
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. RE 553065 AgR, Rel. Ministro JOAQUIM BARBOSA, Segunda
Turma, julgado em 16/06/2009, DJe-121 DIVULG 30-06-2009 PUBLIC 01-07-2009 EMENT VOL-0236707 PP-01281 RT v. 98, n. 888, 2009, p. 159-161 LEXSTF v. 31, n. 367, 2009, p. 236-240.
15
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Rcl 2280, Rel. Min. JOAQUIM BARBOSA, Segunda Turma, julgado
em 01/04/2008, DJe-070 DIVULG 17-04-2008 PUBLIC 18-04-2008 EMENT VOL-02315-02 PP-00412
LEXSTF v. 30, n. 358, 2008, p. 244-252.
16
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. RMS 22047 AgR, Rel. Ministro EROS GRAU, Primeira Turma,
julgado em 21/02/2006, DJ 31-03-2006 PP-00014 EMENT VOL-02227-01 PP-00174.
17
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. RE 362074 AgR, Rel.Ministro EROS GRAU, Primeira Turma,
julgado em 29/03/2005, DJ 22-04-2005 PP-00013 EMENT VOL-02188-02 PP-00410 RNDJ v. 6, n. 67,
2005, p. 75-76.
18
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ADI 3324, Rel. Ministro MARCO AURÉLIO, Tribunal Pleno,
julgado em 16/12/2004, DJ 05-08-2005 PP-00005 EMENT VOL-02199-01 PP-00140 RIP v. 6, n. 32,
2005, p. 279-299 RDDP n. 32, 2005, p. 122-137 RDDP n. 31, 2005, p. 212-213.
19
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ADI 1599 MC, Rel. Ministro MAURÍCIO CORRÊA, Tribunal
Pleno, julgado em 26/02/1998, DJ 18-05-2001 PP-00430 EMENT VOL-02031-03 PP-00448.
20
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ADI 1511 MC, Rel. Ministro CARLOS VELLOSO, Tribunal Pleno,
julgado em 16/10/1996, DJ 06-06-2003 PP-00029 EMENT VOL-02113-01 PP-00071.
21
A Universidade de Coimbra, em verdade, foi “fundada em Lisboa em 1290, esteve sediada em Coimbra entre
1308 e 1377 e aí se fixou de vez em 1537, com a ampla reforma de D. João III, que criou novas cadeiras
e bolsas de estudo para a formação de mestres no estrangeiro” (Encyclopædia Britannica do
Brasil Publicações Ltda. Barsa CD. São Paulo: Donaldson. M. Garschagen, 1999. 1 CD-ROM).
22
FERRAZ, Anna Cândida da Cunha. A autonomia universitária na Constituição de 05.10.1988. In:
Revista de Direito Administrativo, v. 215, p. 121-122, jan./mar. 1999.
23
FERREIRA, Pinto. Comentários à Constituição Brasileira. São Paulo: Saraiva, 1995. 7 v., v. 7, p. 112.
24
“Art. 207. As universidades gozam de autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira
e patrimonial, e obedecerão ao princípio de indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão” (Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil: texto promulgado em 5 de outubro
de 1988, com alterações adotadas pelas Emendas Constitucionais n. 1/92 a 38/2002 e pelas Emendas
Constitucionais de Revisão n. 1 a 6/94. Senado, Subsecretaria de Edições Técnicas, 2002, p. 123).
25
SAMPAIO, Anita Lapa Borges de. Autonomia universitária: um modelo de interpretação e aplicação
do artigo 207 da Constituição Federal. Brasília: Edunb, 1998, p. 186, 221-222.
26
FERREIRA, Pinto. Comentários à Constituição Brasileira. São Paulo: Saraiva, 1995. 7 v., v. 7, p. 112,124;
DALLARI, Adilson Abreu. Autonomia das universidades públicas. In: Revista trimestral de Direito
Público, n.1, p. 287-290, 1993; FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Comentários à Constituição
Brasileira de 1988. 2 ed. atual e reform. São Paulo: Saraiva, 1999. v. 2, v. 2, p. 246; SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ADI 51, Rel. Mininstro PAULO BROSSARD, Tribunal Pleno, julgado em 25/10/1989,
DJ 17-09-1993 PP-18926 EMENT VOL-01717-01 PP-00001.
27
Segundo José Joaquim Gomes Canotilho, o princípio da máxima efectividade, também designado por
princípio da eficiência ou princípio da interpretação efetiva, “pode ser formulado da seguinte maneira: a
uma norma constitucional deve ser atribuído o sentido que maior eficácia lhe dê. É um princípio operativo
em relação a todas e quaisquer normas constitucionais, e embora a sua origem esteja ligada à tese da actualidade das normas programáticas [...], é hoje sobretudo invocado no âmbito dos direitos fundamentais (no
caso de dúvidas deve preferir-se a interpretação que reconheça maior eficácia aos direitos fundamentais)”
(CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e teoria da Constituição. 3 ed. reimp.
Coimbra: Livraria Almedina, 1999, p. 1.149).[grifos do autor]
9
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
275
28
A respeito do princípio da proteção do núcleo essencial dos direitos fundamentais, Gilmar Ferreira Mendes
averbou: “Da análise dos direitos individuais pode-se extrair a conclusão errônea de que direitos, liberdades, poderes e garantias são passíveis de limitação ou restrição. É preciso não perder de vista, porém,
que tais restrições são limitadas. Cogita-se aqui dos chamados limites imanentes ou “limites dos limites”
(Schranken-Schranken), que balizam a ação do legislador quando restringe direitos individuais. Esse limites,
que decorrem da própria Constituição, referem-se tanto à necessidade de proteção de um núcleo essencial
do direito fundamental quanto à clareza, determinação, generalidade e proporcionalidade das restrições
impostas” (MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade: estudos
de direito constitucional. 3 ed. rev. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 41). [grifos do autor]
29
FERRAZ, Anna Cândida da Cunha. A autonomia universitária na Constituição de 05.10.1988. In:
Revista de Direito Administrativo, v. 215, p. 122-142, jan./mar. 1999; RANIERI, Nina. Autonomia
universitária. São Paulo: Edusp, 1994, p. 106-107, 139; GUERRA FILHO, Willis Santiago. A questão da
autonomia universitária. In: Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará, v.31/32,
n.1/2, p.113-115, jan./dez. 1990/1991; SAMPAIO, Anita Lapa Borges de. Autonomia universitária: um
modelo de interpretação e aplicação do artigo 207 da Constituição Federal. Brasília: Edunb, 1998, p. 100,
157-158, 218-219, 232; NERLING, Marcelo Arno. Autonomia universitária e reforma administrativa:
um texto para discussão. In: PINTO, Cristiano Paixão Araújo (Org.). Redefinindo a relação entre o
professor e a universidade: emprego público nas instituições federais de ensino? Brasília: Faculdade de
Direito/CESP, 2002, p. 71; MORHY, Lauro. Autonomia universitária. Correio Braziliense, Brasília, 10
out. 1999, caderno Opinião, p. 32.
30
FERRAZ, Anna Cândida da Cunha. A autonomia universitária na Constituição de 05.10.1988. In:
Revista de Direito Administrativo, v. 215, p. 123, jan./mar. 1999.
31
FERRAZ, Anna Cândida da Cunha. Op. cit.
32
FERRAZ, Anna Cândida da Cunha. A autonomia universitária na Constituição de 05.10.1988. In:
Revista de Direito Administrativo, v. 215, p. 122, jan./mar. 1999; RANIERI, Nina. Autonomia universitária. São Paulo: Edusp, 1994, p. 109; SAMPAIO, Anita Lapa Borges de. Autonomia universitária:
um modelo de interpretação e aplicação do artigo 207 da Constituição Federal. Brasília: Edunb, 1998, p.
224-225; FRAUCHES, Celso da Costa; FAGUNDES, Gustavo M. LDB anotada e comentada. Brasília:
Ilape, 2003, p. 71.
33
FERRAZ,
Anna Cândida da Cunha. Op. cit.
34
“Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros
e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: IV - é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o
anonimato” (Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil: texto promulgado
em 5 de outubro de 1988, com alterações adotadas pelas Emendas Constitucionais n. 1/92 a 38/2002 e
pelas Emendas Constitucionais de Revisão n. 1 a 6/94. Senado, Subsecretaria de Edições Técnicas, 2002,
p. 15).
35
“Art. 5º. [...]: IX - é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação,
independentemente de censura ou licença” (Ibidem, p. 15).
36
“Art. 206. O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios: II - liberdade de aprender, ensinar,
pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber” (Ibidem, p. 123).
37
“Art. 60. [...]: § 4º - Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: IV - os direitos
e garantias individuais” (Ibidem, p. 55).
38
SAMPAIO, Anita Lapa Borges de. Autonomia universitária: um modelo de interpretação e aplicação
do artigo 207 da Constituição Federal. Brasília: Edunb, 1998, p. 203-208, 220.
39
Ibidem, p. 212-213, 217-220.
40
“Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre: XXIV - diretrizes e bases da educação nacional”
(Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil: texto promulgado em 5 de outubro de 1988, com alterações adotadas pelas Emendas Constitucionais n. 1/92 a 38/2002 e pelas Emendas
Constitucionais de Revisão n. 1 a 6/94. Senado, Subsecretaria de Edições Técnicas, 2002, p. 30).
41
FERRAZ, Anna Cândida da Cunha. A autonomia universitária na Constituição de 05.10.1988. In:
Revista de Direito Administrativo, v. 215, p. 126, jan./mar. 1999.
42
“Art. 23. É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios: V - proporcionar os meios de acesso à cultura, à educação e à ciência” (Constituição (1988). Constituição da
República Federativa do Brasil: texto promulgado em 5 de outubro de 1988, com alterações adotadas
pelas Emendas Constitucionais n. 1/92 a 38/2002 e pelas Emendas Constitucionais de Revisão n. 1 a 6/94.
Senado, Subsecretaria de Edições Técnicas, 2002, p. 31).
43
“Art. 24. Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre: IX - educação, cultura, ensino e desporto” (Ibidem, p. 32).
276
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
44
Edivaldo Machado Boaventura, por sua vez, explicita algumas disposições que vinculam a universidade à
Constituição, a saber: a garantia da liberdade de expressão (artigo 5, IX), o apoio financeiro às atividades
de pesquisa e extensão (artigo 213, 2º), a promoção humanística, científica e tecnológica do País (artigo
214) e a organização multicampi (artigo 60, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias) (BOAVENTURA, Edivaldo Machado. A educação brasileira e o Direito. Belo Horizonte: Nova Alvorada,
1997, p. 185-187).
45
FERRAZ, Anna Cândida da Cunha. A autonomia universitária na Constituição de 05.10.1988. In:
Revista de Direito Administrativo, v. 215, p. 124-125, jan./mar. 1999.
46
FERRAZ, Anna Cândida da Cunha. A autonomia universitária na Constituição de 05.10.1988. In:
Revista de Direito Administrativo, v. 215, p. 124-125, jan./mar. 1999.
47
FERRAZ, Anna Cândida da Cunha. Op. cit.
48
“Art. 206. O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios: V - valorização dos profissionais
do ensino, garantidos, na forma da lei, planos de carreira para o magistério público, com piso salarial profissional e ingresso exclusivamente por concurso público de provas e títulos; VI - gestão democrática do
ensino público, na forma da lei” (Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil:
texto promulgado em 5 de outubro de 1988, com alterações adotadas pelas Emendas Constitucionais n.
1/92 a 38/2002 e pelas Emendas Constitucionais de Revisão n. 1 a 6/94. Senado, Subsecretaria de Edições
Técnicas, 2002, p. 123).
49
Muito embora sejam as universidades diferenciadas pela nota da autonomia, elas integram a Administração
Pública e por esta razão as previsões constitucionais de competência legislativa sobre a última também se
aplicam às primeiras. No entanto, consoante exemplifica Anita Lapa Borges de Sampaio, “mesmo naquelas
matérias em que a competência do legislador para a Administração Pública em geral alcance também a
universidade (como na hipótese de lei de licitações), será preciso reconhecer um poder normativo residual
mínimo para a universidade, isto é, a lei geral de licitações deve prever um regime especial que assegure
a parcela indispensável de autonormação universitária (SAMPAIO, Anita Lapa Borges de. Autonomia
universitária: um modelo de interpretação e aplicação do artigo 207 da Constituição Federal. Brasília:
Edunb, 1998, p. 236).
50
Ibidem, p. 231-241.
51
Ibidem, p. 242-244, 251-253.
52
SAMPAIO, Anita Lapa Borges de. Autonomia universitária: um modelo de interpretação e aplicação
do artigo 207 da Constituição Federal. Brasília: Edunb, 1998, p. 254-255.
53
Ibidem, p. 166, 176-181; SOUZA, Carlos Fernando Mathias de. Ponto Final. Correio Braziliense, Brasília,
6 abr. 1998, caderno Direito e Justiça, p. 5.
54
SAMPAIO, Anita Lapa Borges de. Autonomia universitária: um modelo de interpretação e aplicação
do artigo 207 da Constituição Federal. Brasília: Edunb, 1998, p. 178.
55
FERRAZ, Anna Cândida da Cunha. A autonomia universitária na Constituição de 05.10.1988. In:
Revista de Direito Administrativo, v. 215, p. 119, jan./mar. 1999.
56
Ibidem, p. 128-129; SAMPAIO, Anita Lapa Borges de. Autonomia universitária: um modelo de interpretação e aplicação do artigo 207 da Constituição Federal. Brasília: Edunb, 1998, p. 102-103; SUPREMO
TRIBUNAL FEDERAL. ADI 51, Rel. Mininstro PAULO BROSSARD, Tribunal Pleno, julgado em
25/10/1989, DJ 17-09-1993 PP-18926 EMENT VOL-01717-01 PP-00001; FERREIRA, Pinto. Comentários
à Constituição Brasileira. São Paulo: Saraiva, 1995. 7 v., v. 7, p. 113.
57
LEI N. 9.394, de 20.12.96. Estabelece as Diretrizes e Bases da Educação Nacional. DOU de 23.12.96, v.
248, p. 27.838.
58
“Art. 206. O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios: III - pluralismo de idéias e de concepções pedagógicas, e coexistência de instituições públicas e privadas de ensino” (Constituição (1988).
Constituição da República Federativa do Brasil: texto promulgado em 5 de outubro de 1988, com
alterações adotadas pelas Emendas Constitucionais n. 1/92 a 38/2002 e pelas Emendas Constitucionais
de Revisão n. 1 a 6/94. Senado, Subsecretaria de Edições Técnicas, 2002, p. 123).
59
“Art. 218. O Estado promoverá e incentivará o desenvolvimento científico, a pesquisa e a capacitação
tecnológicas” (Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil: texto promulgado
em 5 de outubro de 1988, com alterações adotadas pelas Emendas Constitucionais n. 1/92 a 38/2002 e
pelas Emendas Constitucionais de Revisão n. 1 a 6/94. Senado, Subsecretaria de Edições Técnicas, 2002,
p. 127).
60
FERRAZ, Anna Cândida da Cunha. A autonomia universitária na Constituição de 05.10.1988. In:
Revista de Direito Administrativo, v. 215, p. 129, jan./mar. 1999; SAMPAIO, Anita Lapa Borges de.
Autonomia universitária: um modelo de interpretação e aplicação do artigo 207 da Constituição Federal.
Brasília: Edunb, 1998, p. 101.
61
FERRAZ, Anna Cândida da Cunha. A autonomia universitária na Constituição de 05.10.1988. In:
Revista de Direito Administrativo, v. 215, p. 130-131, jan./mar. 1999; SAMPAIO, Anita Lapa Borges de.
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
277
Autonomia universitária: um modelo de interpretação e aplicação do artigo 207 da Constituição Federal.
Brasília: Edunb, 1998, p. 133-135.
TÁCITO, Caio. Ensino superior oficial: autarquia ou fundação? Rio de Janeiro: UERJ, 1981, p. 4-5.
63
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. 1ª Turma. RE n. 83.962. Relator: Suarez Munhoz, Brasília, DF, 17
abr. 1979. DJ de 4.5.1979, p. 3.519.
64
“Art. 55. Caberá à União assegurar, anualmente, em seu Orçamento Geral, recursos suficientes para
manutenção e desenvolvimento das instituições de educação superior por ela mantidas” (LEI N. 9.394,
de 20.12.96. Estabelece as Diretrizes e Bases da Educação Nacional. DOU de 23.12.96, v. 248, p. 27.839).
65
SAMPAIO, Anita Lapa Borges de. Autonomia universitária: um modelo de interpretação e aplicação do
artigo 207 da Constituição Federal. Brasília: Edunb, 1998, p. 106-107; FERRAZ, Anna Cândida da Cunha.
A autonomia universitária na Constituição de 05.10.1988. In: Revista de Direito Administrativo, v.
215, p. 132, jan./mar. 1999; CONSULTORIA-GERAL DA REPÚBLICA. Parecer SR-78. Brasília, 1988.
66
FERRAZ, Anna Cândida da Cunha. A autonomia universitária na Constituição de 05.10.1988. In:
Revista de Direito Administrativo, v. 215, p. 132, jan./mar. 1999.
67
LEI N. 9.394, de 20.12.96. Estabelece as Diretrizes e Bases da Educação Nacional. DOU de 23.12.96, p.
27.838.
68
Op. cit.
69
A esse respeito, Lauro Morhy traça um breve histórico da autonomia universitária, apresentando os variados graus de restrição desta garantia pelo Estado (MORHY, Lauro. Autonomia universitária. Correio
Braziliense, Brasília, 10 out. 1999, caderno Opinião, p. 32).
70
FERRAZ, Anna Cândida da Cunha. A autonomia universitária na Constituição de 05.10.1988. In:
Revista de Direito Administrativo, v. 215, p. 134-137, jan./mar. 1999; SAMPAIO, Anita Lapa Borges de.
Autonomia universitária: um modelo de interpretação e aplicação do artigo 207 da Constituição Federal.
Brasília: Edunb, 1998, p. 120-121, 175.
71
Ibidem, p. 219.
72
Apud FERRAZ, Anna Cândida da Cunha. Op. cit.
73
FERRAZ, Anna Cândida da Cunha. A autonomia universitária na Constituição de 05.10.1988. In:
Revista de Direito Administrativo, v. 215, p. 137, jan./mar. 1999.
74
FERRAZ, Anna Cândida da Cunha. Op.cit.
75
RANIERI, Nina. Autonomia universitária. São Paulo: Edusp, 1994, p. 125.
76
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ADI 51, Rel. Ministro PAULO BROSSARD, Tribunal Pleno, julgado
em 25/10/1989, DJ 17-09-1993 PP-18926 EMENT VOL-01717-01 PP-00001.
77
Antes mesmo da inserção da autonomia na Carta Magna de 1988, a jurisprudência já definia a autonomia
universitária como uma derivação da liberdade de cátedra (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. MS 10.213,
Rel. Ministro VICTOR NUNES, Tribunal Pleno, julgado em 14/12/1962, DJ 27-03-1963 PP-00654 ADJ
DATA 02-05-1963 PP-00226 EMENT VOL-00530-01 PP-00195 RTJ VOL-00027-01 PP-00014). Consoante preciosa observação de Anita Lapa Borges de Sampaio, o Supremo Tribunal Federal já reconhecia
tal origem, a qual, inclusive, permitiu à referida corte afastar a aplicação, sobre o ente universitário, de leis
gerais referentes aos servidores públicos, às autarquias e ao direito orçamentário e financeiro (SAMPAIO,
Anita Lapa Borges de. Autonomia universitária: um modelo de interpretação e aplicação do artigo 207
da Constituição Federal. Brasília: Edunb, 1998, p. 126-146). Aliás, elementos valiosos relacionados pela
nossa Corte Constitucional para uma interpretação do artigo 207 da Carta Magna sintetiza Anita Lapa
Borges de Sampaio: “[...] O reconhecimento de capacidade normativa aos estatutos universitários (no
regime disciplinar, no aspecto residual da eleição de reitores, na definição de menções para aprovação),
a afirmação do caráter corporativo da administração universitária e de uma relação de competência (e
não de subordinação) com a administração em geral, a afirmação de que o controle financeiro da universidade se faz a posteriori, a identificação de limites à legislação federal sobre diretrizes e bases da educação
nacional e a exigência de observância dos requisitos procedimentais legalmente previstos para a suspensão
da autonomia e a conseqüente intervenção na direção universitária (quando a suspensão era possível)
traduzem uma rica e complexa compreensão e proteção da autonomia universitária” (Ibidem, p. 146).
78
SAMPAIO, Anita Lapa Borges de. Autonomia universitária: um modelo de interpretação e aplicação
do artigo 207 da Constituição Federal. Brasília: Edunb, 1998, p. 223-226.
79
Ibidem, p. 227-229.
80
MARTINS, Ives Granda da Silva. Inteligência do artigo 207 da Constituição Federal sobre a autonomia
das universidades e dos institutos de pesquisas. In: Revista forense, v. 100, n. 374, p. 225-236, jul./ago.
2004.
62
—— • ——
278
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
A Comunicação Social sob o
Enfoque da Constituição Federal
de 1988
Mariana Caetano da Silva Souza Schwindt
Ex-aluna da ESMA/DF
I) INTRODUÇÃO
N
ão obstante o capítulo V do título VIII estar distante do rol de direitos e garantias
fundamentais, é unânime na doutrina e na jurisprudência a característica de
fundamentalidade do direito à comunicação social.
Os artigos 220 a 224 consagram a instituição de princípios intimamente ligados
ao exercício da liberdade de expressão em todas as suas formas: de informação – ser e
estar informado -, do pluralismo – expressivo da difusão de pensamento e da criação -,
e da proibição de qualquer censura prévia.
II) DA PROTEÇÃO DA LIBERDADE DE COMUNICAÇÃO
Na comunicação social impera o princípio do pluralismo como valor inerente à
pessoa humana, assim como estipulado nos fundamentos da República Federativa do
Brasil. Ou seja, a comunicação age e se relaciona com diversos agentes difusores do
pensamento.
Segundo José Afonso da Silva, o direito à comunicação social não pode sofrer
nenhum tipo de restrição. A classificação sugerida pelo constitucionalista parte dessa
premissa absoluta de não censura à comunicação social. Assim, nenhum ato legislativo
pode conter obstáculo à plena liberdade de informação e os veículos impressos não
precisam de autorização da autoridade competente para exercer esse direito.
Em oposição a esta classificação elaborada por José Afonso da Silva, o
constitucionalista Roberto Barroso afirma que existe um único princípio na comunicação
social - princípio da liberdade de expressão - e duas regras – proibição de censura e
proibição da subordinação das exibições a qualquer licença prévia.
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
279
Com efeito, os princípios constitucionais da comunicação social indicam que
as limitações impostas ao exercício desse direito estão, necessariamente, relacionadas
às três esferas de poder, ou seja, referem-se às limitações judicial, administrativa e
legislativa.
A limitação judicial impede que a honra e a imagem da pessoa seja violada. A
garantia de indenização por dano moral, material e de imagem estipulada no artigo 5º,
inciso V, indica que é um valor desvinculado de qualquer pretensão de censura.
O Poder Judiciário é legitimado para atuar quando a ofensa à liberdade de
expressão desnatura e esvazia qualquer dos incisos do artigo 221, quais sejam: preferência
para finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas; promoção cultural
nacional e regional com estímulo da produção independente; regionalização da produção
cultural e artística e respeito aos valores éticos sociais da pessoa e da família.
A limitação legislativa encontra-se tipificada no artigo 220, parágrafo 10, que
impede à atuação do legislador de constituir qualquer obstáculo a plena informação.
Todavia, a própria Constituição relativiza essa regra, em que se permite a intervenção
legislativa para regular as diversões e espetáculos públicos – função atualmente cabível
ao Ministério da Justiça -, estabelecimento de meios de defesa contra propaganda e
produtos nocivos ao consumo ou que ofendam os incisos do artigo 221 e a restrição da
propaganda de tabacos e bebidas, malefícios cientificamente comprovados.
No passado não muito distante era comum os meios de comunicação transmitir
propagandas de cigarros e bebidas com personagens fortes e saudáveis, induzindo o
consumo desenfreado desses produtos que causam sérios riscos à saúde.
Por fim, a limitação administrativa decorre de um viés contra a censura imposta
pela ditadura militar e, assim, regra geral o Poder Público fica impedido de realizar
qualquer ato que resulte na diminuição da liberdade de expressão. À exceção fica
disciplinada no artigo 22, inciso XVI, o qual restringe a competência legislativa privativa
da União para classificar as diversões públicas e programas de rádio e televisão.
Com efeito, resta salientar que as limitações acima descritas também estão
disciplinadas no artigo 5º, incisos IV – é livre a manifestação do pensamento sendo
vedado o anonimato, IX – é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica
e de comunicação independentemente de censura ou licença, X – são invioláveis a
intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurando o direito à
indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação, XIII – é livre o
exercício de qualquer trabalho, oficio ou profissão, atendidas as qualificações profissionais
que a lei estabelecer e XIV – é assegurado a todos o acesso à informação e resguardado
o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional.
Cumpre estabelecer neste trabalho que o texto constitucional prima pela
proteção de três liberdades expressamente consignadas. Primeiramente, a liberdade de
manifestação de pensamento envolve a análise da liberdade de opinião. Essa se dirige
a pessoas determinadas e indeterminadas.
O Supremo Tribunal Federal, no julgamento da Ação Direta de
Inconstitucionalidade nº 1969/DF, assentou o entendimento de que a liberdade de
manifestação de pensamento está associada ao direito ao segredo e ao direito de o
manifestante se identificar.
280
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
Em seguida, a liberdade de expressão e de comunicação está intimamente ligada à
comunicação de pensamentos, ideias, informações e expressão verbal. Ou seja, o objeto
principal dessa proteção se estende a chamada comunicação indireta, em que se insere
a noção de gestos, expressões e murmúrios. A proteção conferida ao assédio moral no
âmbito do trabalho se fundamenta nessa comunicação indireta, pois por ser uma situação
difícil de ser materializada, o Tribunal Superior do Trabalho possui o entendimento de
que gestos e expressões impróprias por parte do empregador indicam a concretização
do assédio moral ao empregado.
O Supremo Tribunal Federal assentou o entendimento no Recurso Extraordinário
nº 197.911/PE que o direito a liberdade de expressão e de comunicação atinge, inclusive,
a esfera privada da pessoa física e jurídica.
No caso analisado pela Corte Constitucional o sindicato dos trabalhadores
conseguiu resguardar sua liberdade de expressão e de comunicação com os empregados
por meio do quadro de avisos que a empresa disponibilizava para assuntos correlatos ao
trabalho no âmbito interno das dependências do estabelecimento.
Percebe-se, desse modo, que a liberdade de expressão e de comunicação possui
índole defensiva, porquanto possui como fundamento os argumentos humanistas e
democráticos da comunicação social.
O argumento humanista defende a concretização da proteção a liberdade de
expressão e de comunicação sob a ótica da dignidade da pessoa humana, ou seja, ao
titular do direito cumpre buscar todas as formas de efetivação para que a comunicação
seja a mais direta e clara possível, sem distorções no processo de transmissão da
mensagem.
O argumento democrático, o qual em alguns aspectos deriva do princípio do
pluralismo, impõe a necessidade de garantia do exercício da liberdade de expressão e de
comunicação para todos, ou seja, é um valor universal. Além disso, garante, no mínimo,
a igualdade formal de acesso aos meios de comunicação.
Interessante observar que o poder público, principalmente na área da
educação, se preocupa em efetivar esse direito, pois o acesso a comunicação social
é fundamental para o ensino e segue as diretrizes estabelecidas no artigo 205 da
Constituição Federal.
Por fim, a liberdade de informação garante o acesso à informação, o direito ao
sigilo profissional e a proibição de censura. O direito de informação é uma via de mão
dupla, pois a liberdade de informar e de ser informado garante ao titular do direito
o exercício da liberdade de expressão e de comunicação e da própria liberdade de
informação.
III) ANÁLISE DOS ARTIGOS 222 AO 224 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL.
O capítulo da ordem social é introduzido pelo artigo 220 que prevê que a
“manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer
forma, processo ou veículo, não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta
Constituição”.
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
281
Assim, a doutrina infere que a proteção absoluta da liberdade de expressão só
pode ser excepcionada por meio de própria Carta Magna, ou seja, apenas por um processo
de emenda à constituição pode-se relativizar esse direito fundamental. Importante
ressaltar que a Constituição de 1988 foi a primeira constituição brasileira a prever
expressamente um capítulo destinado a comunicação social, tamanha sua importância
no atual cenário social, político e econômico do país.
O Supremo Tribunal Federal, em recente julgamento ocorrido em treze de
novembro de 2009, consolidou o entendimento de que a restrição ao direito à liberdade
de expressão e de comunicação pode ser realizada via lei. Todavia, essa interpretação foi
contrária ao estabelecido pela doutrina pátria que rechaça a ideia de excepcionalidade
por meio de lei ordinária.
Com efeito, ficou assim ementado o acórdão: “”as liberdades de expressão e de
informação e, especificamente, a liberdade de imprensa, somente podem ser restringidas
pela lei em hipóteses excepcionais, sempre em razão da proteção de outros valores e
interesses constitucionais igualmente relevantes, como os direitos à honra, à imagem,
à privacidade e à personalidade em geral. (RE 511.961 Rel. Min. Gilmar Mendes,
julgamento em 17-6-2009, Plenário, DJE de 13-11-2009).
De fato, não foi a primeira vez que a Corte Constitucional utilizou do substantivo
lei em sentido genérico. Cumpre, de todo modo, enfatizar que no julgamento da Ação
de Descumprimento de Preceito Fundamental número 130, a chamada lei de imprensa
foi objeto de questionamento no Supremo Tribunal Federal e sua inconstitucionalidade
não foi reconhecida pelo fato de ser formalmente lei ordinária, mas por seu conteúdo
eminentemente proibitivo da atividade jornalística.
O relator Ministro Ayres Britto afirmou que “a Constituição reservou à imprensa
todo um bloco normativo, com o apropriado nome ‘Da Comunicação Social (capítulo V
do título VIII). A imprensa como plexo ou conjunto de ‘atividades’ ganha a dimensão
de instituição-ideia, de modo a poder influenciar cada pessoa de per se e até mesmo
formar o que se convencionou chamar de opinião pública. Pelo que ela, Constituição,
destinou à imprensa o direito de controlar e revelar as coisas respeitantes à vida do
Estado e da própria sociedade. A imprensa como alternativa à explicação ou versão
estatal de tudo que possa repercutir no seio da sociedade e como garantido espaço de
irrupção do pensamento crítico em qualquer situação ou contingência. Entendendo-se
por pensamento crítico o que, plenamente comprometido com a verdade ou essência
das coisas, se dota de potencial emancipatório de mentes e espíritos. O corpo normativo
da Constituição brasileira sinonimiza liberdade de informação jornalística e liberdade
de imprensa, rechaçante de qualquer censura prévia a um direito que é signo e penhor
da mais encarecida dignidade da pessoa humana, assim como do mais evoluído estado
de civilização. (...)
“O art. 220 da Constituição radicaliza e alarga o regime de plena liberdade de
atuação da imprensa, porquanto fala: a) que os mencionados direitos de personalidade
(liberdade de pensamento, criação, expressão e informação) estão a salvo de qualquer
restrição em seu exercício, seja qual for o suporte físico ou tecnológico de sua veiculação;
b) que tal exercício não se sujeita a outras disposições que não sejam as figurantes dela
própria, Constituição. A liberdade de informação jornalística é versada pela CF como
282
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
expressão sinônima de liberdade de imprensa. Os direitos que dão conteúdo à liberdade
de imprensa são bens de personalidade que se qualificam como sobredireitos”. (ADPF
130 Rel. Min. Ayres Britto, julgamento em 30-4-2009, Plenário, DJE de 6-11-2009.)
Passando para a análise do artigo 220, parágrafo 5, o qual prevê a proibição de
monopólio e oligopólios nos meios de comunicação social, o legislador buscou estabelecer
a difusão do pensamento por meio dos estabelecimentos comunicacionais de forma
mais ampla possível.
Assim, a título de exemplo, no direito constitucional alemão a Corte
Constitucional decidiu que o incentivo fiscal que o Estado estava concedendo para
subsidiar as pequenas empresas de comunicação encontrava-se conforme os ditames
constitucionais de proteção à liberdade de expressão e de comunicação da pessoa
humana.
O artigo 221 disciplina os princípios inerentes a comunicação social, também
previstos no artigo 5. São princípios dirigidos aos programadores e produtores das
emissoras de rádio e das empresas de televisão.
Importante mudança ocorreu no artigo 221 com a promulgação da Emenda
Constitucional 36 de 2002, que permitiu o ingresso do capital estrangeiro nos meios de
comunicação social. A Proposta de Emenda à Constituição 5 de 2002, de autoria do
Deputado LaProvita Vieira, deu origem a referida emenda com o fundamento em três
fatores principais: globalização dos mercados; parcerias entre o empresariado nacional
e estrangeiro e a reciprocidade em empreendimentos do gênero.
Ademais, a necessidade de capitalizar as empresas e de fazer frente à atual crise
financeira que as afeta, bem como a competição da televisão por assinatura, televisão
digital e internet, levaram a necessidade de instrumentalizar os meios de comunicação
social para cooptar as notícias de todo o mundo. A título de exemplo a BBC, empresa
inglesa, possui no Brasil uma filial a qual é destinado o maior montante de recursos
da matriz.
O artigo 222 estende, além do artigo 12, parágrafo 3, a necessidade de brasileiro
nato para ser proprietário de empresa jornalística e dos meios de comunicação. Ao
brasileiro naturalizado com mais de dez anos será possível ser proprietário, porém sua
participação estará restrita a trinta por cento do capital da empresa. O mínimo de setenta
por cento do capital total e votante pertencerá ao brasileiro nato, exclusivamente, nos
termos do parágrafo primeiro do artigo 222.
O parágrafo segundo do referido artigo estabelece a responsabilidade da edição
dos meios de comunicação ao brasileiro nato e naturalizado com mais de dez anos. Assim,
a Súmula 221 do Superior Tribunal de Justiça encontra-se em completa harmonia com
o texto constitucional ao dispor que “são civilmente responsáveis pelo ressarcimento
de dano, decorrente de publicação pela imprensa, tanto o autor do escrito quanto o
proprietário do veículo de divulgação”.
Em diversas ocasiões os tribunais reconhecem à pessoa que teve sua honra
maculada por meio de publicações inverídicas a indenização e a responsabilização do
autor do escrito solidariamente com o dono da empresa de comunicação.
Seguindo a sequência dos artigos do capítulo da comunicação social, o artigo
223 estipula as regras gerais para concessão, permissão e autorização do serviço público
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
283
de comunicação social. A Lei 8.987/90 prevê as regras específicas para a delegação do
serviço que também se aplicam aos meios de comunicação.
O princípio basilar da delegação do serviço de comunicação social é a
complementaridade dos sistemas privado, público e estatal. O sistema privado é guiado
pelas regras do modelo capitalista, adotado pelo país, e pelas regras inerentes ao mercado
financeiro. No sistema público impera o princípio da supremacia do interesse público
sobre o interesse privado, de modo que a intervenção do Estado se opera de maneira
indireta. Neste sistema, a presunção de legalidade, legitimidade e a Lei 9.784/99 são
utilizadas para fundamentar os atos inerentes à atividade.
Por fim, no sistema estatal, o ente federado possui o controle majoritário de
setenta por cento do capital total e votante da empresa. A Empresa Brasileira de
Comunicação segue esse sistema, pois a União é proprietária majoritária. O capital
privado pode ingressar na empresa sem nenhuma restrição, bem como o capital
estrangeiro, com todas as ressalvas expressamente previstas no texto constitucional.
O parágrafo primeiro do artigo 223 disciplina as regras do processo de apreciação
pelo Congresso Nacional para a aprovação da delegação, permissão e concessão, do
serviço público dos meios de comunicação. Assim, em quarenta e cinco dias o Congresso
Nacional deve se manifestar sobre a aprovação ou reprovação do ato concessivo.
Caso o Congresso opte pela negação da concessão ou permissão do serviço
público deverá fazê-lo por maioria qualificada de dois quintos dos membros e em votação
nominal. Ressalte-se que a votação nominal é muito rara no texto constitucional, sendo,
portanto, interessante essa exigência no capítulo da comunicação social.
O cancelamento do ato de concessão ou permissão só poderá ser feito via o
Poder Judiciário. O ato de autorização, por sua natureza precária, pode ser revisto por
meio de expediente da própria administração. O parágrafo quarto é expresso ao prever
a reserva de jurisdição para a rescisão do contrato de concessão ou permissão antes do
prazo previsto no instrumento.
O parágrafo quinto estabelece os prazos máximos de concessão e permissão do
serviço público de comunicação social: dez anos para emissoras de rádio e quinze anos
para os meios televisivos, não renováveis. Esse controle permite que o Estado reveja
a cada década suas prioridades na comunicação social e, mais relevante, aprimore os
meios de comunicação.
O último artigo, o 224, institui o Conselho de Comunicação Social, para
funcionar como órgão auxiliar do Congresso Nacional na fiscalização, acompanhamento
e direcionamento do setor dos meios de comunicação no país. A Lei 8.389/91 criou o
referido Conselho, nos termos do artigo 224 que destinava a lei sua instituição.
IV) NOVAS PROPOSIÇÕES LEGISLATIVAS
Tramita no Congresso Nacional a Proposta de Emenda à Constituição número
15 de 2003, que acrescentar o parágrafo 7 ao artigo 220 a fim de permitir que a lei possa
impor restrições à divulgação de pesquisa eleitoral. Essa introdução visa combater as
pesquisas de opinião no dia da eleição a qual induz o eleitor a possível mudança de
voto. Além disso, põe fim a especulação no resultado final da eleição.
284
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
Outra proposição que se encontra no Congresso Nacional é a Proposta de Emenda
à Constituição número 73 de 2007 que nova redação ao parágrafo 4 do artigo 220 para
incluir os alimentos e bebidas no rol de produtos, práticas e serviços cuja propaganda
comercial estará sujeita a restrições legais. Infere-se desse projeto a consciência de
proteção ao consumidor e os direitos básicos de informação e responsabilidade do
produtor e fornecedor de produtos potencialmente nocivos à pessoa humana.
CONCLUSÃO
A comunicação social na Assembléia Nacional Constituinte foi tema de grande
destaque e relevância. Sua importância fala por si mesmo, pois a ampliação dos meios
de comunicação é essencial ao desenvolvimento do país e ao crescimento intelectual
da população.
A Constituição acertou ao disponibilizar as regras gerais e os princípios no texto
constitucional e possibilitar a regulação infraconstitucional por meio de lei ordinária.
Outrossim, a conexão do capítulo destinado a comunicação social com os
direitos e garantias individuais, estabelecidos no artigo 5, demonstra a importância
de proteger as liberdades individuais de expressão e de comunicação, liberdades de
informação, liberdades de exercício dos meios de comunicação. Essas são liberdades que
despendem muito esforço do Estado, porquanto sua efetivação encontra-se presente
em atos omissivos e comissivos dos agentes de comunicação.
A proteção dos direitos relacionados a comunicação social possuem respaldo
na teoria da dimensão horizontal e vertical dos direitos fundamentais, porquanto ao
particular é cabível alegar essa proteção tanto para o ente federado quanto para o
agente – particular.
Desse modo, o Judiciário possui uma relevante função na proteção e efetivação
da comunicação social no atual cenário político, social e econômico do Brasil.
—— • ——
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
285
Fertilização In Vitro e suas
Implicações no Ordenamento
Jurídico Brasileiro
Eduardo Navarro Pereira
1
Advogado formado pelo Centro Universitário de Brasília-CEUB, 2008.
Pós-Graduado pela Escola de Magistratura do Distrito Federal
RESUMO
C
om o advento das novas técnicas de Reprodução Humana Assistida houve uma
profunda alteração do contexto social e jurídico que norteia a humanidade, pois lhe
foi conferida a possibilidade de manipulação do surgimento da vida. Ocorre que,
com os avanços advindos desses procedimentos, surgiu uma gama de implicações e questionamentos que ainda não possuem guarida no ordenamento jurídico brasileiro. A técnica da
Fertilização in vitro, tratada na presente monografia, resulta na produção de diversos embriões
excedentários que, por carência de legislação específica, acabam por favorecer inúmeras
problemáticas no âmbito sucessório, fecundação post mortem, da determinação do início da
vida e da personalidade civil, na presunção de paternidade disposta no art. 1.597 do Código
Civil, bem como, a elevação da socioafetividade em relação à consanguinidade. Frente a
essa lacuna jurídica existente, devem ser invocados os princípios basilares e norteadores do
ordenamento jurídico brasileiro, para que seja possível o enfrentamento de tais questões. Não
obstante, tendo em vista a lacuna existente, analisou-se no direito comparado as diversas
soluções encontradas pelos diversos ordenamentos.
Palavras-chave: Reprodução Humana Assistida, Direitos Fundamentais,
Fecundação in vitro, Bioética, Embriões Excedentários, Ordenamento Jurídico
Brasileiro,Direito Comparado.
INTRODUÇÃO
Os primeiros relatos que se tem notícia sobre o estudo da fertilização in vitro são
datados de 1878, quando Schenk incubou oócitos fertilizados em cobaias, não obtendo
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
287
2
êxito, no entanto . No entanto, em 1889, Dickinson realizou nos Estados Unidos a
primeira inseminação artificial heteróloga, mas somente em 1953, a inseminação arti3
ficial com sêmen congelado se tornou pública. Cumpre salientar que no decorrer do
trabalho será explicado como é realizado o procedimento da fertilização in vitro, bem
como, os termos técnicos aqui abordados.
No Brasil, essa prática se tornou conhecida com o nascimento de Ana Paula
Caldeira em sete de outubro de 1984, criança nascida no Hospital Santa Catarina, parto
4
por cesariana , o que deu início a utilização da fertilização in vitro no país.
Desde então, o rápido avanço trazido com as técnicas de reprodução humana
assistida acarretou uma nova realidade na sociedade, de modo que as novas situações
trazidas pela reprodução assistida não puderam ser acompanhadas pelo ordenamento
jurídico brasileiro, o que acabou por gerar uma diversidade de lacunas. A falta de legislação específica que coordene as técnicas de reprodução humana assistida gera uma
imensa dificuldade em regular tais procedimentos, cabendo à doutrina e à jurisprudência
dizerem essa “regulação” a partir do caso concreto.
Sendo assim, é imprescindível invocar os princípios constitucionais basilares
do ordenamento jurídico brasileiro para dizer sobre questões tão importantes, além, é
claro, das diretrizes trazidas pela Bioética.
A sociedade brasileira viu recentemente o julgamento da ADIN n° 3510-0,
em que se pleiteava a inconstitucionalidade do art. 5º da Lei n° 11.105, a Lei de Biossegurança. Em que pese o presente trabalho não tratar sobre as pesquisas científicas,
o julgamento desta representou para a sociedade brasileira um grande avanço para
a futura regulamentação das técnicas de Reprodução Humana Assistida, pois foram
suscitados, nos votos dos Ministros do Supremo Tribunal Federal, infindáveis questões
que careciam de uma pacificação, tal como determinar qual o momento em que se dá
o início da proteção jurídica da vida humana.
Apesar do presente trabalho não tratar sobre as pesquisas científicas, tal
julgamento representou para a sociedade brasileira um grande avanço para a futura
regulamentação das técnicas de Reprodução Humana Assistida, de modo que, foram
suscitados nos votos dos Ministros do Supremo Tribunal Federal, infindáveis questões
que carecem de uma pacificação, tal como determinar qual o momento em que se dá
o início da proteção jurídica da vida.
Na técnica da Fertilização in vitro, a fim de se obter uma maior possibilidade de
êxito de gravidez, são fecundados inúmeros embriões, sendo implantado na mulher o
número máximo de quatro, o que acaba por gerar uma diversidade de embriões excedentários.
As problemáticas trazidas por esses embriões excedentes são inúmeras, tais como
a determinação do início da vida, da personalidade civil, bem como, a fecundação post
mortem, recepcionada pelo art. 1.597 do Código Civil.
Os questionamentos acerca dos direitos sucessórios desses embriões excedentes
são infindáveis, por exemplo, o aparente conflito entres os arts. 1.597 e 1.798 do Código
Civil. No primeiro, há a presunção de paternidade no caso de se tratar o embrião
excedente, e no segundo há a disposição de que apenas estão legitimados a suceder
pessoas nascidas ou já concebidas no momento da abertura da sucessão.
288
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
Ocorre que, pela previsão constitucional da igualdade entre os filhos, não
legitimar os filhos havidos seria uma violação desse preceito da Constituição Federal.
Lado outro, se houver testamento que os contemplem e esses estiverem concebidos
até dois anos após a abertura da sucessão, estarão legitimados a suceder. Foi isso que se
procurou demonstrar neste trabalho.
Além da problemática trazida pelos embriões excedentes, a possibilidade da
fecundação na modalidade heteróloga traz consigo outra gama de problemáticas. A
filiação socioafetiva ganha um novo patamar no ordenamento jurídico brasileiro,
passando a prevalecer muitas vezes sobre a consanguinidade. A limitação do direito
à origem genética passa a ter fundamental importância nessa modalidade, conforme
veremos adiante.
O presente trabalho está subdividido em quatro capítulos. Inicialmente, explicita-se o Procedimento da Fertilização in vitro, explicando como funciona o processo
da fertilização e os procedimentos em relação dos Embriões Excedentários, com a
possibilidade da criopreservação.
Adiante, na segunda parte, intitulada a “Bioética na Reprodução Humana Assistida e os Direitos Humanos”, traz os princípios da bioética que são de fundamental
importância no futuro regulamentação das técnicas de reprodução humana assistida.
Assim também, faz-se menção à Declaração Universal dos Direitos Humanos, inseridos
na Constituição Federal, que deverão ser observados, bem como aos direitos fundamenteis e suas dimensões.
Já a terceira parte trata das garantias que devem servir de parâmetros para
preencher a lacuna existente no ordenamento jurídico brasileiro, tais como o princípio
da dignidade da pessoa humana, do planejamento familiar, dentre outros, bem como,
as situações jurídicas advindas com a utilização da Reprodução Humana Assistida,
mais precisamente da fertilização in vitro, trazendo em seu conteúdo questões como o
início da proteção jurídica da vida, personalidade civil, presunção de paternidade no
Código Civil, filiação socioafetiva, bem como as implicações advindas da fecundação
post mortem. O objetivo deste trabalho é, portanto, avaliar os conflitos trazidos pela
Reprodução Humana Assistida, buscando suscitar as lacunas existentes e a necessidade
de legislações específicas para a regulamentação dessas técnicas. Para tanto, buscou-se
no Direito Comparado as soluções encontradas para tão periclitante questão, a fim de
orientar o legislador brasileiro.
A metodologia utilizada no presente artigo foi a dogmática e sociojurídica. Foi
observado o vazio normativo do ordenamento jurídico brasileiro nessa matéria, utilizando-se ainda de uma abordagem interdisciplinar fornecida pela bioética. Em relação
ao método de pesquisa, utilizou-se da pesquisa bibliográfica como grande instrumento.
1. DA FECUNDAÇÃO IN VITRO
Desde os primórdios os homens seguem o mais básico dos instintos naturais, a
procriação, buscando sempre a propagação e perpetuação da espécie. A humanidade
mesmo atingida pelo diapasão do tempo, e com uma população alastrada por todo o
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
289
globo e disseminada em diferentes culturas e linhas de pensamento, é guiada por um
inconsciente coletivo comum, que envolve a transmissão de genes aos filhos e a manutenção da família durante os tempos.
Observa-se que essa obsessão pela fecundidade se perpetua desde os tempos
antigos, nas mais antigas civilizações, nas quais em suas manifestações artísticas já demonstravam a importância da procriação para a humanidade, sendo esta o bem maior
dos homens. Em Roma, com a figura do pater familias, a perpetuação da família, dos
bens, e de todas as outras concessões dadas a esta, dependia exclusivamente da existência de herdeiros, de modo que, na falta destes, a figura do pater famílias e da própria
família deixava de existir. No entanto, não é apenas em Roma que essa preocupação
pode ser verificada. Na mitologia Grega, na religião Chinesa, Japonesa, nos contos
brasileiros, e até em passagens da Bíblia, a preocupação com a fecundidade também
5
pode ser observada.
O gênio humano buscou, através do tempo e por meio da evolução da ciência, da
tecnologia e até do pensamento, o descobrimento de técnicas que pudessem garantir a
reprodução de forma artificial, permitindo a homens e mulheres estéreis, a propagação
de seus genes. No entanto, desde logo, faz-se mister salientar a diferenciação realizada
por Juliana Frozel de Camargo, em sua obra Reprodução Humana – Ética e Direito,
sobre infertilidade e esterilidade:
Para melhor compreensão do assunto, faz-se oportuno esclarecer que,
em ciências biológicas, há diferenciação entre esterelidade e infertilidade, uma vez que esta advém de causas orgânicas ou funcionais,
que, atuando no fenômeno da fecundação, impossibilitam a produção de descendência; enquanto aquela consiste na incapacidade do
homem ou da mulher, ou de ambos, por causas funcionais ou orgânicas, de fecundarem por um período de relação sexual normal, de,
6
no mínimo, dois anos, sem o uso de meios contraceptivos eficazes.
A vida moderna traz consigo uma série de desdobramentos que implicam na
tardia gestação, o que significa dizer que a fertilidade e a possibilidade de procriação
diminuem, pelo simples decurso do tempo. O surgimento do capitalismo, o sufrágio
feminino, a globalização, a própria evolução do pensamento inerente ao ser humano,
a inserção da mulher no mercado de trabalho, o dinamismo e o desenfreado ritmo de
vida, contribuíram e contribuem para essa nova realidade. Desse modo, as técnicas de
Reprodução Humana Assistida se tornam, cada vez mais, fundamentais para o futuro
da humanidade, devendo, todavia, encontrar no Direito seus limites. Nesse diapasão,
podemos dizer:
A procriação artificial inscreve-se num texto médico, científico e sociocultural próprio de sociedades industrializadas. Mas é no terreno
jurídico que a nova realidade cria maiores desafios aos estudiosos: ela
7
desestabiliza o equilíbrio, sempre mais ou menos precário, do Direito.
290
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
Ante todos esses aspectos históricos, não restam dúvidas de que o surgimento
das técnicas de reprodução humana assistida representa para humanidade um grande
avanço científico, demográfico e social, proporcionando a todos aqueles desprovidos de meios naturais o grande dom da descendência, permitindo-se ainda o pleno
exercício daqueles direitos constitucionalmente previstos ao sujeito de direito, tal
como o livre planejamento familiar, dando-lhes ainda condições de criar uma família
banhada por toda a alegria e afeto que um filho pode proporcionar. Todavia, o advento desses procedimentos promove um verdadeiro pandemônio jurídico e social,
rompendo diversas barreiras éticas e morais que fazem mudar a maneira de se ver o
mundo. Senão vejamos:
As técnicas de reprodução humana assistida suscitam questões muito controversas, que mexem com preconceitos e afetam diretamente
as mulheres. Além de pôr em xeque algumas certezas com relação
a gênero e a família, como necessidade de um casal para gerar um
filho, ou mesmo de um relacionamento prévio entre um homem e
uma mulher, a tecnologia da reprodução humana assistida mexe
diretamente com a saúde das mulheres, despertando preocupações
éticas e políticas. Atualmente essa é uma área de grande expansão
na pesquisa científica, e a maior parte das experiências vem sendo
feita em mulheres, a título de “tratamento”. Além de ser uma área
de pesquisa, os tratamentos contra infertilidade mobilizam grandes
interesses da indústria de medicamentos e jogam para último plano
8
as preocupações com os aspectos éticos da questão.
Todavia, em que pese essa quebra de paradigmas e preceitos éticos, as técnicas
de reprodução humana assistida se tornaram indispensáveis para o exercício de todos
aqueles direitos constitucionais e ainda para a simples manutenção da vida. Vejamos:
[...] Hoje em dia, a fecundação in vitro também se constitui numa
fonte muito importante de embriões humanos, utilizados posteriormente para experiências de tipos diversos. Tudo ocorre num mundo
em que a relativização moral – relativismo axiológico – [...] a célula
base da sociedade, a família, experimentou um grande enfraquecimento, produto desta crise moral em que vivemos. [...] Por meio do
uso da reprodução assistida, o homem passa a ter poder de decisão
sobre o destino de vidas humanas, algo que, em outros tempos, só
9
competia a Deus...
Atualmente, em que pese os inúmeros Projetos de Leis em trâmite no Senado
Federal em busca de aprovação, apenas a Resolução n° 1.358/92 do Conselho Federal
de Medicina, que não tem força de lei, estabelece algumas diretrizes de ética médica
para a utilização das técnicas de reprodução humana assistida. Vejamos algumas de
suas diretrizes.
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
291
De acordo com o texto da Resolução supra, as técnicas de reprodução humana
assistida têm papel de auxiliar na resolução dos problemas de infertilidade humana,
facilitando o processo de procriação. Dispõe que toda mulher, capaz nos termos da lei,
pode ser receptora das técnicas de Reprodução Assistida, desde que tenha concordado
de maneira livre e consciente em documento de consentimento informado, salientando inclusive que estando casada ou em união estável, será necessária a aprovação do
cônjuge ou do companheiro.
Nos termos da Resolução, fica claro que, no intuito de minimizar o risco já
existente de gravidez múltipla, o número ideal de oócitos e pré-embriões a serem transferidos para a receptora não deve ser superior a quatro. Não obstante, de fundamental
importância para o que trataremos mais adiante, dispõe que no momento da criopreservação os cônjuges ou companheiros devem expressar sua vontade, por escrito, quanto
ao destino que deverá ser dado aos pré-embriões criopreservados, em caso de divórcio,
doenças graves ou de falecimento de um deles ou de ambos, e quando desejam doá-los.
Igualmente importante para o presente estudo, a Resolução dispõe que os
doadores não devem conhecer a identidade dos receptores e vice-versa, devendo ser
obrigatoriamente mantido em sigilo a identidade de ambos. Ressalva, entretanto, que
em situações especiais, as informações sobre doadores, por motivação médica, podem ser
fornecidas exclusivamente para médicos, resguardando-se a identidade civil do doador.
Sendo assim, as clínicas, centros ou serviços que empregam a doação devem manter,
de forma permanente, registro de dados clínicos dos doadores.
Pode-se dizer, portanto, que a presente resolução do Conselho Federal de Medicina, pode-se mostrar como grande alicerce para a futura regulamentação das técnicas
de Reprodução Humana Assistida.
Atualmente existem inúmeros projetos de lei que tramitam nas instâncias legislativas brasileiras na busca para a regulamentação das técnicas de reprodução humana
assistida. Exemplo disso é o Projeto de Lei do Senado n° 90, de 1999 que tramitou no
Congresso Nacional, sem sucesso, mas que representou um marco nessa busca de uma
regulamentação. No entanto, em que pese representar apenas um início, o projeto
pode se apresentar como marco na busca dessa tão esperada regulamentação. Cumpre
ressaltar desde já, que veremos em capítulo oportuno o avanço legislativo brasilero.
Vejamos o que diz Silvio de Salvo Venosa:
Essa norma deve ser urgentemente carreada para nossa legislação,
de acordo com Projeto que está em tramitação que dispõe sobre a
reprodução assistida (Projeto de Lei do Senado, n° 90, de 1999). Há,
no entanto, em discussão inúmeros outros projetos. De acordo com
o referido Projeto n° 90, que se encontra em estado mais avançado
de tramitação, os estabelecimentos que praticarem a reprodução humana assistida estarão obrigados a zelar pelo sigilo da doação, impedindo que doadores e usuários venham a conhecer reciprocamente
suas identidades, zelando, da mesma forma, pelo sigilo absoluto das
informações sobre a criança nascida a partir de material doado. Nesse
projeto, abre-se, porém, a possibilidade de a pessoa gerada ter aces292
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
so às informações sobre sua geração em casos especificados em lei
e quando houver razões médicas que tornem necessário o conhecimento genético. Estas últimas disposições são polêmicas. A nova lei
deve examinar as várias técnicas possíveis de reprodução assistida,
questão envolvendo a forma de consentimento do casal dentre tantos outros assuntos. Como se vê, o assunto ainda tateia na doutrina,
visto que não há terreno seguro a ser trilhado nesse horizonte novo
e vasto da ciência. Há necessidade de que invoquemos princípios
éticos, sociológicos, fisiológicos e religiosos para uma normatização
10
da reprodução assistida.
1.1. Do procedimento da Fertilização in vitro
Os estudos com a fertilização in vitro advêm do final do Século XIX evoluindo
paulatinamente até o real surgimento do procedimento em 1978, quando os cientistas
ingleses Robert Edwards e Patrick Stepoe conseguiram o nascimento do primeiro bebê
advindo deste tipo de procedimento. Esse momento apresentou-se como ponto nodal
para o grande “boom” das técnicas de reprodução humana assistida nos anos subsequentes, chegando-se a técnica que hoje é aplicada e tornando-se cada vez mais arraigada
11
na cultura humana . Vejamos:
Assim, na década de 1980, com o êxito de mais de cem anos, a técnica em si da fertilização in vitro deixou de ser um assombro para a
sociedade, que começou a se preocupar com os conflitos, as consequências éticas e legais inerente a ela, verificando-se a necessidade
12
mundial de regulamentação das práticas.
No Brasil essa prática se tornou conhecida com o nascimento de Ana Paula
Caldeira em sete de outubro de 1984, criança nascida no Hospital Santa Catarina, de
13
cesariana , constituindo este no grande marco histórico das técnicas de reprodução
humana assistida no Brasil.
A Fertilização in vitro (FIVET) “consiste basicamente em reproduzir, com técnicas
de laboratório, o processo de fecundação do óvulo, que normalmente ocorre na parte
superior das Trompas de Falópio, quando obstáculos insuperáveis impedem que este
14
fenômeno se realize intra corpore” . A técnica se dará da seguinte forma:
A paciente receberá medicamentos para aumentar a capacidade
dos ovários em produzir folículos, e com isto, obter uma quantidade
maior de oócitos. Os efeitos dessa medicação serão avaliados, periodicamente, por intermédio de controle clínico, ultrassonográfico
e laboratorial, que orientam a equipe médica a prever, com maior
precisão, o aumento da ovulação e antecipar-se a ela entre aproximadamente uma a duas horas para iniciar a colheita dos oócitos. A
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
293
segunda etapa do citado tratamento consistirá na recuperação dos
oócitos, que se dará de acordo com os casos individuais, por meio
de ultrassonografia. A recuperação ultrassonográfica dos oócitos é,
geralmente, realizada por via transvaginal [...] A terceira etapa será
realizada no laboratório. Aqui se completará com a maturação dos
oócitos, após que serão inseminados ou injetados com espermatozoide do marido, ou companheiro, previamente encubados em um
meio de cultura adequado para preservar e aumentar sua capacidade
de fertilização. Se houve opção pela FIV, excepcionalmente, pode
suceder que ao ser realizada a contagem dos espermatozóides, o número resultante não seja suficientemente para fertilizar os oócitos,
ou que, embora consiga número suficiente, não ocorra a fertilização;
nestes casos, mudar-se-á o procedimento para ICSI, injetando os
espermatozoides obtidos [...] Ocorrendo fertilização dos gametas-embriões, relizar-se-á a quarta etapa, consistente na transferência
dos pré-embriões sob a mais restritas normas de assepsia. Nos casos
de FIV ou ICSI, colocar-se-á o pré-embrião no interior do útero por
meio de uma cânula especial sem anestesia, por se tratar de procedimento indolor [...] A transferência embrionária será efetuada entre
48 e 144 horas a partir da inseminação dos oócitos; ou no caso de
congelamento para a preservação pré-embriões, a transferência só
poderá ocorrer com a nova autorização de ambas as partes interessadas. O ovo humano, em desenvolvimento, será introduzido no útero
materno, aproximadamente entre o estado de pró-núcleo e o de pré-embrião em fase blastocisto, o que ocorre entre o segundo e sexto
15
dia, a partir do momento da captação do oócito.
Nesse contexto podemos afirmar então que a Fertilização in vitro se divide em
três fundamentais passos, quais sejam a extração dos ovócitos da mulher, realizando-se uma posterior fecundação, ou seja, o encontro do espermatozoide com o óvulo,
transferindo-se ao final o embrião para o interior do útero. Desse modo, uma vez que
são retirados e fecundados diversos óvulos, a técnica pode repetida outras vezes, sem que
seja necessária nova manobra invasiva para a retirada dos ovócitos. São os chamados
Embriões Excedentários, que serão tratados posteriormente. Assim explicita Cristiane
Bauren Vasconcelos:
As técnicas de fertilização in vitro procuram reproduzir artificialmente o ambiente da trompa de Falópio (onde a fecundaçãodo oócito
normalmente ocorreria), promovendo a fecundação dos gametas
humanos em um tubo de ensaio e transferindo, posteriormente, os
embriões obtidos para o útero da mulher. Compreende, para tanto,
várias etapas, dentre elas: (a) estimulação da ovulação; (b) punção
folicular e cultura de óvulos; (c) coleta e preparação do esperma; (d)
armazenagem dos gametas; (e) inseminação e cultura dos embriões
294
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
em clivagem; (f) preservação de embriões; e, finalmente, (g) introdução dos gametas no útero. Os embriões que excederem o número
16
suficiente serão congelados.
Para a obtenção da capacitação dos gametas primeiramente, a mulher irá utilizar-se de uma medicação diária que interromperá o funcionamento dos ovários, estimulando
o crescimento folicular, seguida por uma estimulação da produção de óvulos. Realizado o
procedimento, os ovócitos são coletados momentos antes da ovulação. Uma vez obtido
o sêmen, este passa por um processo no qual apenas serão utilizados os espermatozoides
no sobrenadante. Depois de realizado todo esse procedimento, o esperma será misturado
a inúmeras substâncias químicas, no qual irá penetrar no óvulo in vitro. Por fim,
tanto os espermatozoides quanto os óvulos, separadamente, são cultivados in vitro de 5 a 6 horas, aproximadamente, a 37-37, 2º, que é
a temperatura do corpo feminino após a ovulação, para que, uma vez
coletados e processados, completem seu amadurecimento (óvulos)
ou sua capacitação (espermatozoides). Isto se realiza em tubos ou
17
placas de vidro (in vitro).
A Fertilização in vitro assim se dará:
Para a inseminação in vitro, colocam-se 50.000-100.000 espermatozoides para cada óvulo num tubo de vidro contendo um meio de cultivo apropriado. Isto se realiza no escuro, com o intuito de se simular
o interior do ventre materno. Aproximadamente 3 mais tarde, os gametas se unem, e 12 horas após o início da fertilização, aparecem bem
diferenciados os pró-núcleos masculino e feminino, os quais se unem,
aproximadamente, 20 horas depois do início do processo. Uma vez
formado o ovo, o zigoto, este é conservado num meio com todas as
substâncias nutritivas necessárias a fim de que possa dividir-se até o
estágio de 4 células [...] Após várias horas, o zigoto é passado a outro
tubo ou placa de vidro para a eliminação dos espermatozoides excedentes e dos restos da parte externa do óvulo que possam ter ficado
no meio do cultivo. De 25 a 35 horas após a inseminação, ocorre a
primeira divisão do zigoto e o embrião resultante possui, então, 2
células; 48 horas depois, o embrião já é constituído por 4 células; e,
18
após 72 horas, por 8.
Pode-se afirmar, portanto, que se trata de procedimento extremamente invasivo
para a mulher, envolvendo a manipulação de medicamentos com hormônios que irão
promover uma estimulação para a liberação de óvulos que serão retirados por laparoscopia do corpo da mulher, sendo os óvulos colocados em solução especial e guardados.
Após o processo acima descrito, com a inserção do espermatozoide no óvulo, no máximo
4 (quatro) serão novamente inseridos no corpo da mulher em busca da ocorrência da
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
295
gravidez. Em que pese a baixa incidência de riscos, o sucesso da técnica é relativamente
baixo, o que implica na repetição do procedimento, sendo, portanto, imprescindível a
armazenagem dos embriões já fecundados. Além disso, outros fatores devem ser levados
em conta a fim de maior probabilidade de sucesso da técnica:
O sucesso do tratamento sofre influência de diversos fatores, sendo
que o elemento isolado mais importante é a idade da mulher. Os
melhores resultados são obtidos quando ela está abaixo de 30 anos.
Pacientes entre 32 e 34 apresentam bons prognósticos, sendo que a
partir dos 35 anos, a chance de sucesso passa a sofrer uma redução
significativa. A literatura especializada traz relato de sucesso entre
25% e 40% por transferência de embriões, numa relação íntima com
a idade da mulher, sendo que 25% parece representar uma boa média ponderada. A presença de endometriose comprometendo o bom
funcionamento dos ovários é outro elemento que interfere nos resul19
tados.
A fecundação pode se dar de diferentes formas, sendo o material genético de
ambos os pais, a dita fecundação homóloga, ou sendo apenas um dos materiais genéticos
dos pais, ou ainda com material genético de diversos doadores. Senão vejamos:
Homóloga: consiste na reprodução assistida realizada mediante a doação ou recepção de material genético de casais que buscam uma
solução para seus problemas de fertilidade ou de sexualidade, ou seja,
os gametas (espermatozoide e óvulo) pertencem ao próprio casal solicitante. Heteróloga: é a reprodução realizada com a participação de
gametas de um terceiro doador, alheio ao casal que deseja ter filhos.
Mista: é entendida como uma vertente da fecundação heteróloga e
consiste na realização da fecundação de uma mulher com sêmen proveniente de vários homens, entre os quais se encontra incluído o de
seu parceiro; bem como a fecundação realizada com óvulos de distintas mulheres, misturados aos óvulos da parceria do casal que deseja
ter filhos. É uma técnica criticada, tendo em vista a possibilidade de
alterações genéticas, já que o material genético de várias pessoas são
20
misturados.
É indubitável o fato de que a Fertilização in vitro ainda carece de aprimoramentos a fim de que haja um aumento na incidência de sucesso, e ainda na busca de
um procedimento menos invasivo a saúde e integridade da mulher. Salienta-se ainda
que cada vez mais se torna imprescindível e latente a necessidade da criação de uma
Legislação Específica que regulamente as técnicas de reprodução humana assistida,
dando maior segurança jurídica a esse ato que se torna cada vez mais disseminado
na cultura brasileira.
296
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
1.2. Dos Embriões Excedentários
O procedimento da Fertilização in vitro envolve a formação de inúmeros embriões
fecundados, haja vista que não garante a certeza da gravidez. Todavia, a Resolução n°
1.358/92, único instrumento que atualmente estabelece diretrizes médicas acerca do procedimento, apenas permite a nidação de no máximo 4 (quatro) embriões fecundados, a fim de
que se minimize a possibilidade de uma gravidez múltipla. Assim ensina Cristiane Beuren:
Como a maioria das técnicas de fertilização in vitro utiliza os tratamentos de estimulação ovariana, dá-se vazão à obtenção de vários
embriões, os quais não poderão ser transferidos na sua totalidade (o
máximo permitido pela Resolução do CFM é o número de três ou
quatro) para evitar gravidezes múltiplas e, consequentemente, risco para as gestantes e até mesmo para os bebês, além de prevenir
os riscos já existentes de multiparidade. Como não existem normas
internacionalmente uniformes acerca do número ideal de embriões a
serem transferidos, cada país adota uma posição diferente: em Cingapura, o número de transferências é de quatro embriões para mulheres
acima dos 35 anos com dois insucessos em tentativas anteriores; na
Itália, a regra é de três, extensível a quatro para mulheres acima de
36 anos; na Coéria do Sul, o números varia de quatro a seis; na Grécia, de cinco a sete; na França, os CECOS limitaram o número a três
ou quatro; no Brasil, o limite de transferência – segundo o disposto
no Código de Ética Médica (Resolução nº 1.358/92) do Conselho
21
Federal de Medicina – também é de quatro.
Acerca do destino destes embriões excedentários, além do disposto no art. 5º
da Lei de Biossegurança, em que poderão ser utilizados para pesquisa se congelados
há mais de 3 (três) anos, os embriões excedentes poderão ser destinados à fecundação
de outras mulheres, pela doação ou ainda descartados com o consentimento dos pais.
A criopreservação destes embriões excedentários é fundamental para que possam
ser implantados posteriormente em outras fecundações. Esta assim se dará:
A criopreservação dos pré-embriões dar-se-á da seguinte forma maneira: nos dias posteriores à inseminação de nossos oócitos, todo
pré-embrião excedente será congelado. A equipe de laboratório o
transferirá a uma solução especial, que contém o composto crioprotetor. Os pré-embriões serão resfriados até 150ºC negativos em um
aparelho desenhado para controlar cuidadosamente o grau e o tempo
de congelamento. Após isso, serão mantidos a uma temperatura de
22
196º C negativos, até que se decida descongela-los.
A conservação dos embriões em câmaras de criogenia trouxe uma nova possibilidade para a geração de filhos, qual seja a questão da Fecundação Post Mortem, da
qual trataremos melhor no capítulo seguinte.
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
297
No entanto, pode-se dizer por enquanto que acerca desta podemos ter a fecundação post mortem de pai falecido, de mãe falecida, ou até no caso de ambos terem
falecidos. Tal possibilidade levanta para o ordenamento jurídico, para o mundo da ética
e da moral, uma série de questionamentos, quais sejam os direitos sucessórios que este
nascituro poderia ter, ou como fazer nascer um filho sem que este jamais tenha a possibilidade de conhecer o próprio pai ou a própria mãe. Tais limites ou diretrizes ainda
não possuem ainda um entendimento pacífico na doutrina.
Nesse sentido, dispõe o art. 1.597 do novel Código Civil:
Art. 1.597. Presumem-se concebidos na constância do casamento os
filhos:
IV - havidos, a qualquer tempo, quando se tratar de embriões excedentários, decorrentes de concepção artificial homóloga.
Manifesta-se Venosa sobre a questão dos embriões excedentários:
Outra questão que a técnica genética cria diz respeito à fecundação extracorporal, que o Código se refere como embriões excedentários, no inciso IV. Quando se busca a fecundação de embrião in vitro, a questão coloca-se no número plural de embriões
que são obtidos por essa técnica. Apesar de tratar-se de uma técnica muito difundida e aplicada, traz o incoveniente de produzir
embriões excedentes. Como existe um limite embriões que podem
ser transferidos para o útero, sempre restarão embriões excedentes que serão mantidos congelados. Não se deve atribuir direitos
aos embriões obtidos dessa forma, antes de sua introdução no aparelho reprodutor da mulher receptora, quanto então sim teremos
um nascituro, com direitos definidos na lei [...] Essa fecundação
é possível por vários métodos, mediante a manipulação dos gametas, espermatozoides e óvulos. A técnica atual permite conservar
por tempo considerável sêmen e óvulos para utilização posterior
no processo de fertilização. Nessa situação, sêmen e óvulos podem
ser doados ou vendidos. Assim, o embrião de um casal pode ser
transferido para o útero da mulher, para possibilitar a gestação,
23
impossível ou difícil na mãe biológica.
Além da criopreservação, os embriões excedentes poderão ser doados, sem
qualquer fim lucrativo, claro, para a utilização na nidação de terceiros, sempre que
houver consentimento dos pais, conforme dispõe a Resolução n° 1.358/92, devendo
ser obedecidos os ditames da Constituição Federal de 1988 que veda toda e qualquer
comercialização de matéria humana com fins lucrativos.
Não obstante, os embriões excedentes, estes poderão com o consentimento dos
pais serem descartados, contrário sensu à proibição da Resolução do Conselho Federal
de Medicina, sempre que transcorrido o prazo de três anos estipulado no art. 5º da Lei
298
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
de Biossegurança, haja vista que não há qualquer fundamento legal que estabeleça tal
proibição. Vejamos:
Descarte é a denominação atribuída à destruição dos embriões excedentes. As opiniões acerca de sua admissibilidade ou não variam de
acordo com a corrente que se estuda. Para aqueles que acreditam ser
o embrião humano, desde a concepção, pessoa, não há que se falar
em descarte. Em opinião completamente oposta, os que entendem
ser o embrião apenas um amontoado de células afirmam que ele se
encontra em uma situação de total disponibilidade. Agora, para os
adeptos da corrente intermediária, para a qual o embrião é uma pessoa em potencial, não há como se falar de uma disponibilidade sem
24
limites, porque não aceita a destruição de embriões.
Igualmente neste contexto, Cristiane Beuren assevera:
Enquanto a maioria dos países ainda não prevê critérios ou soluções
jurídicas específicas acerca do prazo de armazenamento dessas vidas,
o mundo depara com outro resultado mais sombrio: uma enorme
quantidade de embriões excedentes crioconservados em laboratório
à espera de um destino, seja ele o de um futuro projeto parental (que
muitas vezes não ocorre por razões de várias ordens: desistência ou
separação posteior do casal, morte de quaisquer dos cônjuges etc.),
seja o da pesquisa e manipulação científicas, utilização em indústrias
de cométicos ou , ainda, o descarte […] Atualmente, não há como
contabilizá-los em face da multiplicação anual dos centros especializados em criogenia espalhados pelo mundo, especialmente em solos
europeu e americano. Sua existência é notória e facilmente identificável por pesquisas na rede virtual. Na Inglaterra, existe até norma
estatuindo tempo máximo de criopreservação. Decorrido este prazo,
a prorrogação desse lapso temporal passa a depender da reafirmação
expressa do consentimento do casal doador envolvido no procedimento. A falta de interesse implica no descarte ou doação para fins
de presquisa. A necessidade de estabelecimento de um status para
estes embriões é premente, tendo em vista a necessidade de adoção
de medidas institucionais capazes de previnir o problema. Mas, para
25
isso, é mister que se determine o marco inicial da vida humana.
Em que pese o fato de que essa discussão doutrinária que se perpetuará, sem qualquer consenso entre os doutrinadores, durante enorme período, tal questão, a meu sentir,
se encerra com a Declaração de Constitucionalidade do Art. 5º da Lei n° 11.105/2005,
proferida pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADIN n° 3.510-0.
Com essa decisão ficou permitida a utilização dos embriões excedentários
advindos da fecundação in vitro nas pesquisas de células-tronco que são, no termo
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
299
da lei, aquelas células de embrião que apresentam a capacidade de se transformar
em células de qualquer tecido humano. Portanto, uma vez que se permite tal prática,
passa-se desconsiderar o embrião in vitro como detentor de personalidade jurídica e,
via de consequência, não lhe sendo garantindo os direitos inerentes ao nascituro, de
modo que se torna plausível os descartes desses embriões excedentes, desde que haja
o consentimento daqueles que se submeteram ao tratamento, quer pela fecundação
homóloga ou heteróloga.
Por fim, resta referendar a mais nova e crescente modalidade de utilização dos
embriões excedentários, qual seja a utilização para o desenvolvimento de Pesquisas
Científicas.
Conforme disposto no art. 5º da Lei de Biossegurança, é permitida a utilização
para fins de pesquisa e terapia, deste que os embriões decorram de fecundação in vitro,
que estejam congelados há pelo menos três anos, ou que sejam inviáveis, lembrando
que sempre se faz necessário o consentimento dos genitores.
Nesse sentido, com a improcedência da Ação Direta de Inconstitucionalidade
n° 3.510-0 e a consequente constitucionalidade do art. 5º da lei supra, a realização de
pesquisas nesses termos é claramente permitida.
Assim, com essa nova faceta na realidade brasileira na busca pelo desenvolvimento da biogenética, a técnica da fertilização in vitro ganha um papel fundamental
na busca pela cura de inúmeras enfermidades, representando a esperança de milhares
de pessoas na procura de uma vida melhor alheia a qualquer problema de saúde que
lhes limite no direito de viver.
2. ASPECTOS BIOÉTICOS E OS DIREITOS HUMANOS
A ciência, principalmente no ramo da biotecnologia, caminha a passos largos
nesse estrondoso avanço que vem proporcionando o surgimento de novas modalidades de
manipulação da vida. Ocorre que essa evolução “natural” traz consigo inúmeros aspectos
morais e éticos, que servirão sem dúvida como limitadores nesse rápido desenvolvimento.
Nesse sentido, o surgimento da Bioética se mostra como principal ponto de partida para que, futuramente, esses novos procedimentos de reprodução humana assistida
sejam passiveis de serem regulados pelo ordenamento jurídico brasileiro.
Não obstante, a Bioética será de fundamental importância nessa nova realidade,
vez que através dela será possível controlar todas essas novas relações que surgem, haja
vista que traz, além de inúmeros princípios, aspectos éticos que serão imprescindíveis
para o futuro da Biotecnologia e da própria humanidade. Façamos então uma breve
digressão acerca dos aspectos éticos dessa nova modalidade de reprodução humana.
Pode-se afirmar acerca das influências trazidas pelo avanço da biomedicina que:
O homem passou a interferir em processos até então monopolizados
pela natureza, inaugurando uma nova era que poderá se caracterizar pelo controle de determinados fenômenos que escapavam ao
seu domínio. As técnicas de reprodução humana assistida, o mape300
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
amento do genoma, o prolongamento da vida mediante transplantes, as técnicas para alteração do sexo, a clonagem e a engenharia
genética descortinaram de forma acelerada um cenário desconhecido e imprevisível, no qual o ser humano é simultaneamente ator
26
e espectador.
Roberto Aguiar assim explicita:
Quando tratamos da bioética, adentramos por um conjunto de princípios que se chocam com os pressupostos de um direito da Primeira
Revolução Industrial. A bioética é um dos elementos constituidores
de um direito ético, onde a vida, em todas as suas dimensões, seja
respeitada. Daí a primeira interpenetração entre as duas facetas do
saber. O direito fornece instrumentos formais a fim de que as normas
éticas se transformem em documentos e procedimentos efetivos. Mas
é a ética (que é também política) que vai questionar os valores e as
práticas do direito positivo, introduzindo novos valores e procurando
27
responder aos desafios que emergem da contemporaneidade.
Ademais, Geilza Fátima Cavalcanti aduz:
A bioética é uma forma recente de ética aplicada à biologia e à medicina, que caracteriza o momento atual de avanço nessas áreas. É resultado de um interesse interdisciplinar sobre condutas de profissionais da área de saúde, juristas, legisladores, pesquisadores, pacientes
e outras pessoas envolvidas naquelas relações […] São indagações
científicas relacionadas com o direito, a biologia, a medicina, as ciências da vida e da saúde, a filosofia e a ética. Assim, descobertas
recentes e fundamentais no campo da medicina e da biologia, são
hoje analisadas e estudadas ao lado da teoria dos direitos humanos.
Trata-se, no estudo da bioética, de estudar os limites, o certo e o
errado no agir relacionado ao uso das diversas e recentes técnicas
de biotecnologia. O papel da bioética ganha especial relevo com o
avanço molecular e da genética […] Quanto a essa elaboração de
critérios, ela se refere a uma delimitação das pesquisas científicas que
envolvam o corpo humano. Busca solucionar uma notória colisão de
direitos fundamentais que temos nessa área: a liberdade de pesquisa
28
científica versus a dignidade da pessoa humana.
A bioética se baseia em três principais princípios, quais sejam o da beneficiência, da autonomia e da justiça. O primeiro implica na obrigatoriedade do profissional
da saúde priorizar o bem-estar do paciente. Já o princípio da autonomia funda-se na
simples liberdade de vontade do paciente, o qual será responsável pela própria vida. Por
fim, no princípio da justiça teremos uma equidade entres as pessoas, aonde os avanços
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
301
alcançados pela ciência médica terão guarida para todos da sociedade, sem distinção
29
de cor, credo ou raça.
Nesse contexto, ensina Geilza Fátima Cavalcanti:
O princípio da autonomia deve ser entendido como respeito pela
pessoa e, ao mesmo tempo, como a capacidade da pessoa de participar das pesquisas médicas. O princípio da beneficiência remonta às
noções utilitaristas e importa em não causar dano que pode ser evitado e em maximizar os benefícios minimizando os riscos ao paciente
[…] O princípio da justiça significa imparcialidade na distribuição
30
dos riscos e dos benefícios.
Decorrente da própria ética profissional que move os médicos no âmbito de sua
profissão, o princípio da beneficência é o principal motor na utilização nos métodos
de reprodução humana assistida, haja vista que os médicos devem sempre preconizar
a saúde do paciente, evitando ao máximo quaisquer conseqüências advindas do uso
procedimento, conforme previsão feita no Código de Ética Médica, art. 6º, o qual dispõe:
O médico deve guardar absoluto respeito pela vida humana, atuando
sempre em benefício do paciente. Jamais utilizará seus conhecimentos para gerar sofrimento físico ou moral, para o extermínio do ser
humano, ou para permitir e acobertar tentativa contra sua dignidade
31
e integridade.
Imperioso destacar o exposto por Cristiane Beuren:
Para adentrar no campo da bioética, faz-se necessário o devido esclarecimeto do sentido e contornos da palavra “ética”. Longe de se pretender estabelecer um conceito fechado ou definitivo para o termo,
a ambição é tornar possível sua compreensão a partir de uma leitura,
não exauriente, de premissas constitutivas fundamentais importantes
para a instauração de uma análise crítica da problemática tratada
neste texto. Para isso, parte-se da etimologia do termo, de sua convivência com a técnica, bem como da contextualização de ambas no
mercado capitalista […] O termo bioética refere-se à ética aplicada à
genética e teve sua origem, basicamente, nos grandes temas – atualmente divisores de opiniões – da humanidade, entre eles: dos grandes
avanços testemunhados na biologia molecular e biotecnologia aplicada à medicina; da denúncia de abusos realizados pelas experimentações genéticas em seres humanos; do pluralismo moral existente nos
países de cultura ocidental; dos questionamentos levantados pela filosofia contemporânea no concernente à qualidade da vida humana,
bem como seu início e seu final; do descontentamento expresso pelas
instituições religiosas sobre esses temas; das intervenções estatais le302
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
gislativas envolvendo o respeito do direito à vida e à dignidade dos
cidadãos; do posicionamento assumido por organismos e entidades
supranacionais. Desde então, não parou mais de crescer em contin32
gentre e importância o seu debate na atualidade.
Desse modo, conforme vimos anteriormente, a utilização da Fertilização In
vitro é um método bastante invasivo, submetendo a mulher a um medicamento que
interrompe o funcionamento dos ovários e aumenta a produção de oócitos, que nada
mais é do que o óvulo feminino. Além disso, a FIVET (Fertilização In vitro) promove a
produção de inúmeros óvulos fecundados in vitro, vez que é um procedimento que não
garante a gravidez e que, portanto, faz-se necessário a fecundação de inúmeros zigotos,
a fim de serem implantados posteriormente, caso necessário. Desse modo, o princípio
da beneficência é essencial nesse aspecto, pois o médico deve informar sobre todos os
aspectos, inclusive legais, e conseqüências da utilização desse procedimento àqueles
que se submetem ao mesmo.
Alguns autores, como Maria Garcia, elencam ainda como princípio da Bioética,
o princípio da não-maleficência, que nada mais seria do que uma compulsão de não
33
praticar dano a outrem de maneira positiva ou por omissão.
O princípio da autonomia, primordialmente, caracteriza-se naquela máxima em
que a qualquer um será permitido a utilização desse tipo de técnica. Vejamos:
O princípio da autonomia requer que o profissional da saúde respeite
a vontade do paciente, ou de seu representante, levando em conta,
em certa medida, seus valores morais e crenças religiosas. Reconhece
o domínio do paciente sobre a própria vida (corpo e mente) e o respeito à sua intimidade, restringindo, com isso, a intromissão alheia
no mundo daquele que está sendo submetido a um tratamento. Considera o paciente capaz de autogovernar-se, ou seja, de fazer suas
opções e agir sob a orientação dessas deliberações tomadas, devendo,
por tal razão, ser tratado com autonomia. Aquele que tiver sua vontade reduzida deverá ser protegido. Autonomia seria a capacidade
atuar com conhecimento de causa e sem qualquer coação ou influencia externa. Desse princípio decorrem a exigência do consentimento
livre e informado e a maneira de como tomar decisões de substituição
quando uma pessoa for incompetente ou incapaz, ou seja, não tiver
autonomia suficiente para realizar a ação de que se trate, por estar
34
preso ou ter alguma deficiência mental.
Por fim, se apresenta na bioética o princípio da justiça, o qual se calca naquele
adágio constitucional preconizado no art. 5º, em que traz que todos são iguais perante
a lei, sem distinção de qualquer natureza. Não obstante, funda-se no art. 226, § 7º, o
qual atribui aos pais o direito do livre planejamento familiar. Sendo assim, surge para
o Estado um dever de disponibilizar a todos seus cidadãos, sem qualquer distinção, a
utilização das técnicas de reprodução humana assistida.
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
303
Pode-se avaliar, portanto, que a Bioética traz consigo princípios de inúmeras
áreas do direito e até do Código de Ética Médica, funcionando como grande norteador para o intérprete, doutrina, jurisprudência, e, claro, para o legislador, a fim de que
finalmente se estabeleçam, sob a forma de lei, as diretrizes das técnicas de Reprodução
Humana Assistida. Não obstante, o princípio da dignidade da pessoa humana surge
como o grande limitador das atividades científicas e ainda como princípio basilar da
bioética e do biodireito.
Mais uma vez, é de suma relevância transpor para o presente trabalho os dizeres
de Maria Helena Diniz, verbis:
Com o reconhecimento do respeito à dignidade humana, a bioética
e o biodireito passam a ter um sentido humanista, estabelecendo um
vínculo com a justiça. Os direitos humanos, decorrentes da condição
humana e das necessidades fundamentais de toda pessoa humana,
referem-se à preservação da integridade e da dignidade dos seres
humanos e à plena realização de sua personalidade. A bioética e o
biodireito andam necessariamente juntos com os direitos humanos,
não podendo, por isso, obstinar-se em não ver as tentativas da biologia molecular ou da biotecnologia de manterem injustiças contra
a pessoa sob a máscara modernizante de que buscam o progresso científico em prol da humanidade. Se em algum lugar houver
qualquer ato que não assegure a dignidade humana, ele deverá ser
repudiado por contrariar as exigências ético-jurídicas dos direitos
humanos. Assim sendo, intervenções científicas sobre a pessoa
humana que possam atingir sua vida e a integridade físico-mental
deverão subordinar-se a preceitos éticos e não poderão contrariar os direitos humanos. As práticas das “ciências da vida”, que
podem trazer enormes benefícios à humanidade, contêm riscos
potenciais muito perigosos e imprevisíveis, e, por tal razão, os profissionais da saúde devem estar atentos para que não transponham
os limites éticos impostos pelo respeito à pessoa humana e à sua
35
vida, integridade e dignidade.
Atualmente, apenas o Conselho Federal de Medicina, através da Resolução n°
1.358/92, orienta os especialistas em reprodução, elencando uma série de diretrizes e
limitações para a realização da reprodução humana assistida, de modo que é a única
norma que diz acerca desses tipos de técnicas. Por seu turno, a Lei de Biossegurança n°
11.105, de 24 de março de 2005, trata, ainda que indiretamente, da utilização desses
procedimentos, assim dispondo:
o
Art. 5 É permitida, para fins de pesquisa e terapia, a utilização de células-tronco embrionárias obtidas de embriões humanos produzidos
por fertilização in vitro e não utilizados no respectivo procedimento,
atendidas as seguintes condições:
304
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
I – sejam embriões inviáveis; ou
II – sejam embriões congelados há 3 (três) anos ou mais, na data da
publicação desta Lei, ou que, já congelados na data da publicação
desta Lei, depois de completarem 3 (três) anos, contados a partir da
data de congelamento.
o
§ 1 Em qualquer caso, é necessário o consentimento dos genitores.
o
§ 2 Instituições de pesquisa e serviços de saúde que realizem pesquisa ou terapia com células-tronco embrionárias humanas deverão submeter seus projetos à apreciação e aprovação dos respectivos comitês
de ética em pesquisa.
o
§ 3 É vedada a comercialização do material biológico a que se refere
este artigo e sua prática implica o crime tipificado no art. 15 da Lei
9.434 de 04.02.1997.
A partir daí devem ser feitas algumas considerações acerca da redação desse
artigo. Primeiramente, faz-se mister analisar se o embrião humano é ou não um ser
dotado de personalidade jurídica, ou melhor, se este pode ser considerado um nascituro.
Considerar o embrião in vitro como ser dotado de personalidade jurídica torna a disposição do artigo supra, ao menos despretensiosa, vez que permite, nos casos dispostos,
sua utilização em pesquisa científicas. Contudo, ao passo que o § 3º trata o embrião ali
presente como se material genético fosse, lhe coisifica, afastando a qualidade de sujeito
36
de direito do embrião.
Faz-se mister salientar que de acordo com o ordenamento civil, à luz do art.
2º do novel Código Civil, a personalidade civil se adquire a partir do nascimento com
vida, resguardando-se seus direitos desde sua concepção. Esse assunto será melhor
apreciado mais adiante.
Outro problema de suma relevância para a Bioética e todo o ordenamento
jurídico reside na questão dos embriões excedentários.
A Fecundação in vitro, a fim de obter uma maior probabilidade de êxito e,
obviamente, uma maior possibilidade de gravidez, promove a geração de inúmeros
embriões, dos quais apenas alguns são implantados na mulher. Ocorre que, apesar de
serem transplantados determinados embriões no corpo da mulher, infindáveis outros
não o são, ficando estes confinados à conservação em câmaras criogênicas, por ao menos 3 (três) anos nos moldes da Lei de Biossegurança, dando-lhes a partir daí outros
destinos, tais como para nova implantação no corpo da mãe genética, ou para outros
casais, pesquisas, ou até o descarte.
Voltando-se novamente à questão do início da vida, já que a partir daí é possível
definir o futuro que será dado a esses embriões excedentários, é sabido que o embrião
apenas começa a adquirir impulsos cerebrais a partir do 14º dia, ou seja, a partir de
então teríamos a vida humana, de modo que, antes desse período o que temos é um
mero emaranhado de células, sem qualquer atividade cerebral lhe garante a qualidade
37
de nascituro . Nesse sentido, entendendo-se dessa forma, os embriões excedentários
não poderiam ser considerados vida humana de forma alguma, constituindo-se somente
como uma mera expectativa de vida, existência esta que apenas se concretizará com
esse prazo transcorrido após a nidação.
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
305
Ponto quase incontroverso na Bioética reside na questão do consentimento de
ambos os pais para a realização do procedimento de reprodução assistida, principalmente
quando se tratar de fecundação heteróloga, sempre que haja casamento ou união estável,
devendo ainda os doadores renunciarem a qualquer tipo de direito sobre a criança daí
advinda. Todavia, tais aspectos serão relativizados em alguns momentos, podendo ser
essa aceitação inclusive tácita, sob alguns aspectos elementares da bioética, da própria
Constituição Federal e do novel Código Civil.
A conservação dos embriões em câmaras de criogenia trouxe outra nova possibilidade para a geração de filhos, qual seja a questão da Fecundação Post Mortem, que
será melhor abordado mais adiante do presente estudo, tema este que se constitui em
ponto de suma contrariedade no ordenamento jurídico e ético. Assim, pode ocorrer
a fecundação post mortem de pai falecido, de mãe falecida, ou até no caso de ambos
terem falecidos. Todavia, tal possibilidade levanta para o ordenamento jurídico e para
o mundo da ética e da moral, uma série de questionamentos, quais sejam os direitos
sucessórios que este nascituro poderia ter, ou ainda, como fazer nascer um filho sem
que este jamais tenha a possibilidade de conhecer o próprio pai ou a própria mãe, ou
ainda o direito de filiação deste menor, bem como, tantas outras possibilidades que
poderiam ser aqui elencadas.
Assim sendo, uma vez que o ordenamento jurídico brasileiro não regula a Fecundação Post Mortem, esta promove sem dúvida um dos grandes pontos de dúvida na
doutrina brasileira. Devem, então, ser considerados alguns princípios basilares do direito,
tais como a dignidade da pessoa humana, o direito à vida, o livre planejamento familiar,
e ainda, o princípio nodal do Direito de Família, qual seja, o princípio do melhor interesse do menor. A partir deste último, uma vez que não haveria um ambiente familiar
adequado para a criação do menor, a Fecundação Post Mortem deveria ser proibida.
Todavia, esse critério não pode ser absoluto, haja vista que, não obstante a
Constituição Federal ter instituído novas formas de instituição familiar, como a família
monoparental, ou seja, aquela formada por um dos pais e seus descentes, a Fecundação
post mortem é um procedimento que, em que pese toda sua problemática, não possui
a meu ver, guarida que lhe permita ser vedada. Entretanto, devem ser estabelecidas
limitações a essa prática, como se poderá observar mais adiante.
Como se pode ver são muitos os aspectos éticos que circundam a reprodução
humana assistida, de modo que é imprescindível a realização de uma abordagem interdisciplinar para que tais procedimentos sejam passíveis de regularização. Uma vez
que todas essas questões envolvem o bem maior do Estado Democrático de Direito,
dignidade, e o bem maior da humanidade, a vida, há, obviamente, uma celeuma jurídica
que ainda padece de reconhecimento legal.
Com o surgimento das novas modalidades de manipulação da vida, cada vez
se faz mais necessário a integração entre o Direito, Moral e Ética, de modo que seja
possível, sempre se observando aqueles princípios e diretrizes básicos inerentes à própria
essência do Estado Democrático de Direito, tais como os direitos fundamentais e os
direitos humanos. Os primeiros possuem previsão constitucional, sendo direitos inerentes a cada cidadão, ao passo que, estes se caracterizam por serem direitos intrínsecos à
própria natureza do homem.
306
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
Nesse sentido, faz-se necessário trazer a possível definição dos direitos humanos,
elencando-os nos moldes da Declaração de Direitos Humanos da ONU, de modo que
serão imprescindíveis na futura regulamentação das técnicas de reprodução humana
assistida.
Após a Segunda Guerra Mundial, os anseios nazistas pela busca da purificação
da raça ariana, pela eugenia e o consequente massacre dos judeus, fizeram surgir para
a humanidade a Declaração Universal dos Direitos Humanos, adotada e proclamada
pela Resolução 217 A (III) da Assembleia Geral das Nações Unidas de 10 de dezembro
de 1948.
Aqui as diretrizes que serão pertinentes no presente estudos, verbis:
Artigo I - Todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e
direitos. São dotadas de razão e consciência e devem agir em relação
umas às outras com espírito de fraternidade.
Artigo II - Toda pessoa tem capacidade para gozar os direitos e as
liberdades estabelecidos nesta Declaração, sem distinção de qualquer
espécie, seja de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de
outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou
qualquer outra condição.
Artigo III - Toda pessoa tem direito à vida, à liberdade e à segurança
pessoal.
Artigo VI - Toda pessoa tem o direito de ser, em todos os lugares,
reconhecida como pessoa perante a lei.
Artigo VII - Todos são iguais perante a lei e tem direito, sem qualquer distinção, a igual proteção da lei.
Artigo XXV - 1. Toda pessoa tem direito a um padrão de vida capaz
de assegurar a si e a sua família saúde e bem estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais
indispensáveis, e direito à segurança em caso de desemprego, doença, invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda dos meios de
subsistência fora de seu controle. 2. A maternidade e a infância têm
direito a cuidados e assistência especiais. Todas as crianças nascidas
dentro ou fora do matrimônio, gozarão da mesma proteção social.
Artigo XXIV - 2. No exercício de seus direitos e liberdades, toda pessoa estará sujeita apenas às limitações determinadas pela lei, exclusivamente com o fim de assegurar o devido reconhecimento e respeito
dos direitos e liberdades de outrem e de satisfazer às justas exigências
da moral, da ordem pública e do bem-estar de uma sociedade demo38
crática.
Como se pode avaliar, a Constituição Federal de 1988 trouxe consigo diversos dos direitos humanos abarcados na presente Declaração, buscando-se sempre a
igualdade entre os homens, resguardando-lhes sempre o respeito da dignidade da
pessoa humana.
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
307
Todavia, o caráter universal dos direitos humanos abarcados do documento
supra, não significa que os direitos ali compreendidos devem ter seus entendimentos
padronizados, ou melhor, apesar de terem caráter absoluto em sua essência, devem ser
amoldados as diferenças de cada Estado, haja vista as diversidades culturais, religiosas
e éticas de cada cultura, levando-se em conta sempre o princípio da autodeterminação
39
dos povos.
Pode-se assim dizer sobre a conceituação de aplicação dos Direitos Humanos:
Os direitos humanos, assim compreendidos, devem atuar concomitantemente com os direitos fundamentais de cada ordem jurídica
coconstitucional em particular. Na aplicação de determinado preceito positivado por dado ordenamento particular, deve-se colocar
em mira os valores que norteiam os direitos humanos. Verifica-se a
necessidade de se promover a reaproximação entre a esfera do Direi40
to, da Moral e da Ética.
Sendo assim, os direitos humanos se mostram como diretrizes que buscam
“defender a pessoa humana contra os excessos do poder ou daqueles que exercitam o
41
poder, visto que também são oponíveis contra atos de outros indivíduos” . A partir
daí, pode-se firmar o claro entendimento de que os direitos humanos visam sempre
defender a liberdade de cada indivíduo de direito, bem como, resguardar a sempre
presente dignidade da pessoa humana.
Vale salientar que buscar garantias aos indivíduos do Estado, a Declaração dos
Direitos Humanos influi, quase que diretamente, nas diretrizes governamentais de cada
Estado Democrático de Direito.
Não restam dúvidas que a vida humana e a dignidade dos indivíduos devem
ser vistos como elementos absolutos, salvaguardadas as peculiaridades existentes em
cada Estado Democrático, mas sempre lhes garantindo a aplicação e o respeito desses
princípios. Vejamos.
Os direitos fundamentais, na qualidade de normas constitucionais,
não dependem somente de seu conhecimento normativo para que
sejam eficazes. Para sua plena efetivação, necessitam esses direitos
de um real sistema de proteção; e que os indivíduos possam dispor
de meios pertinentes para assegurá-los, o que requer a prescrição
de garantias constitucionais e recursos jurisdicionais adequados. Os
direitos fundamentais e os direitos humanos identificam-se, fundamentalmente, por suas características materiais, na medida em que se
expressam como os direitos mais importantes do indivíduo. A importância desses direitos deriva de sua relação com a dignidade da pessoa
42
humana e da sua imprescindibilidade em um sistema democrático.
Como já exaustivamente explicitado, o surgimento das novas técnicas de reprodução humana assistida fez surgir novas relações e situações jurídicas, que acabaram por
308
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
modificar os interesses e direitos de cada indivíduo, de modo que, se torna necessário
buscar para estabelecer limites e diretrizes à esse tipo de procedimento, toda essa gama
de direitos fundamentais e humanos, estabelecidos pela Declaração Universal dos
Direitos Humanos e referendados na Constituição, sendo esses princípios inerentes a
própria concepção do Estado Democrático de Direito.
2.1 Tipologia dos Direitos Fundamentais e suas Dimensões
O direitos fundamentais surgem inicialmente como freio para o arbítrio estatal
no seu âmbito de atuação, como verdadeiros direitos de defesa do indivíduo em face
do Estado, sendo inicalmente ligados ao valor de liberdade, ou seja, caracterizaram-se
precipuamente como direitos de caráter negativo, exigindo uma não atuação estatal
em face dos indivíduos.
Sobre o tema ensina Paulo Bonavides:
A vinculação essencial dos direitos fundamentais à liberdade e à dignidade humana, enquanto valores históricos e filosóficos, nos conduzirá sem óbices ao significado de universalidade inerente a esses
direitos como ideal da pessoa humana. A universalidade se manifestou pela vez primeira, qual descoberta do racionalismo francês da
Revolução, por ensejo da célebre Declaração dos Direito do Homem
de 1789. A percepção teórica identificou aquele traço na Declaração
francesa durante a célebre polêmica de Boutmy com Jellinek ao começo deste século. Constatou-se então com irrecusável veracidade
que as declarações antecedentes de ingleses e americanos podiam
talvez ganhar em concretude, mas perdiam espaço de abrangência,
porquanto se dirigiam a uma camada social privilegiada (os barões
feudais), quando muito a um povo ou a uma sociedade que se libertava politicamente, conforme era o caso das antigas colônias americanas, ao passo que a Declaração francesa de 1789 tinha por destinatário o gênero humano. Por isso mesmo, e pelas condições da época,
foi a mais abstrata de todas as formulações solenes já feitas acerca
da liberdade. Os direitos do homem ou da liberdade, se assim podemos exprimi-los, eram ali “direitos naturais, inalienáveis e sagrados”,
direitos tidos também por imprescritíveis, abraçando a liberdade, a
43
propriedade, a segurança e a resistência à opressão.
Assim ensina Geilza Fátima Cavalcanti:
Classificam-se os direitos fundamentais em gerações levando-se em
conta, entre outros aspectos, o modelo de Estado adotado em cada
uma delas. A Revolução Industrial, no século XVIII, e o movimento do Iluminismo relacionam-se com o modelo liberal, o qual tinha
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
309
por preceito que o Estado deveria interferir o mínimo possível nas
relações sociais, assegurando a liberdade dos indivíduos. Não à, os
direitos relativos a essa época são chamados de direitos negativos ou
de primeira geração, cuja efetivação pressupõe uma não-intervenção
do Estado, como reação da classe burguesa ao Estado totalitário e
44
absolutista que reinava até então.
Consubstanciados, portanto, nos chamados direitos de primeira dimensão, encontram guarida em em documentos oriundos dos Séculos XVII, XVIII e XIX, como da
45
Carta de 1215 assinada pelo rei João Sem Terra, as Declarações Francesa e Americana.
São portanto, direito fundamentais que importam em um não fazer do Estado, de modo
que sua concretização depende de uma ausência estatal. Conforme bem lembra Geilza
Cavalcanti, tais direitos se consubstanciam na noção jusnaturalista de direitos inerentes
ao ser humano, como o direito à vida, que necessita apenas de uma não intervenção do
46
Estado. São, assim, direitos que valorizam o homem como indivíduo singular.
Nas noções de Paulo Bonavides podemos referendar:
Os direitos de primeira geração são os direitos da liberdade, os primeiros a constarem do instrumento normativo constitucional, a saber,
os direitos civis e políticos, que em grande parte correspondem, por
um prisma histórico, àquela fase inaugural do constitucionalismo do
Ocidente. Se hoje esses direitos parecem já pacíficos na codificação
política, em verdade se moveram em cada País constitucional num
processo dinâmico e ascendente, entrecortado não raro de eventuais recuos, conforme a natureza do respctivo modelo de sociedade,
mas permitindo visualizar a cada passo de uma trajetória que parte
com frequência do mero reconhecimento formal para concretizações
parciais e progressivas, até ganhar a máxima amplitude nos quadros
consensuais de efetivação democrática do poder […] Os direitos da
primeira geração ou direitos da liberdade têm por titular o indivíduo,
são oponíveis ao Estado, traduzem-se como faculdades ou atributos
da pessoa e ostentam uma subjetividade que é seu traço mais característico; enfim, são direitos de resistência ou de oposição perante o
Estado. Entram na categoria do status negativo da classificação de
Jellinek e fazem também ressaltar na ordem dos valores políticos a
nítida separação entre a Sociedade e o Estado. Sem o reconhecimento dessa separação, não se pode aquilatar o verdadeiro caráter
anti-estatal dos direitos da liberdade, conforme tem sido professado
como tanto desvelo terórico pelas correntes do pensamento liberal
47
de teor clássico.
Ultrapassado este marco histórico, com o advento da Revolução Industrial Europeia no Século XIX e com as duas Grandes Guerras surge a ideia do Estado de Bem Estar
Social, cujos princípios aduz que todo o indivíduo teria o direito, desde seu nascimento
310
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
até sua morte, a um conjunto de bens e serviços que deveriam ter seu fornecimento
garantido seja diretamente através do Estado ou indiretamente, mediante seu poder de
regulamentação sobre a sociedade civil. Esses direitos incluiriam a educação em todos
os níveis, a assistência médica gratuita, o auxílio ao desempregado, a garantia de uma
48
renda mínima, recursos adicionais para a criação dos filhos. Representam, pois, um
direito de prestação material aos indivíduos da sociedade.
Nessa esteira de pensamento devemos trazer à baíla os ensinamentos de Paulo
Bonavides:
Os direitos de segunda geração merecem um exame mais amplo.
Dominam o século XX do mesmo modo como os direitos da primeira geração dominaram o século passado. São os direitos sociais,
culturais e econômicos bem como os direitos coletivos ou de coletividades, introduzidos no constitucionalismo das distintas formar
de Estado social, depois que germinaram por obra da ideologia e da
reflexão antiliberal deste século. Nasceram abraçados ao princípio
da igualdade, do qual não se podem separar, pois fazê-lo equivaleria a desmembrá-los da razão de ser que os amapara e estimula
[…] De juridicidade questionada nesta fase, foram eles remetidos
à chamada esfera programática, em virtude de não conterem para
sua concretização aquelas garantias habitualmente ministradas pelos instrumentos processuais de proteção aos direitos da liberdade.
Atravessaram, a seguir, uma crise de observância e execução, cujo
fim parece estar perto, desde que recentes Constituições, inclusive
a do Brasil, formularam o preceito da aplicabilidade imediata dos
49
direitos fundamentais.
Neste sentido, explicita Geilza Cavalcanti:
Com o fim da Segunda Guerra Mundial novos direitos foram reconhecidos, em um processo histórico em que os direitos se somam,
nunca se excluem. Tais direitos, que vieram, pois, a se somarem com
os direitos de primeira dimensão, são os direitos econômicos e sociais, consagrados especialmente pela Constituição alemã de 1919
– A Constituição de Weimar […] Os direitos de segunda geração
são frutos de um período histórico conturbado, situado entre o século XIX e os primeiros anos do século XX, em que houve uma grave
deterioração do quadro social, especialmente na Europa e nos Estados Unidos […] A partir da segunda geração de direitos, buscava-se
não somente a realização das liberdades individuais, mas também,
uma igualdade de todos perante a lei e o Estado, pois o capitalismo
e liberalismo que até então reinavam estavam criando sérias desigualdades econômicos e sociais entre os cidadãos, e a filosofia era
de que o Estado não poderia, dado seu traço não intervencionista,
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
311
remediar tal situação […] Lutou-se e foram conquistados os chamados direitos de crédito do indivíduo em relação à coletividade,
tais como direitos do trabalho, saúde, educação, segurança social,
etc. Eram direitos positivos, ou seja, que pressupunham, para a sua
concretização, uma prestação do Estado, a qual poderia ser de índole
material ou normativa. Essa geração de direitos, assim, modificou a
relação até então existente entre um indivíduo e Estado e coincide
com o Estado Social […] Os direitos sociais, assim como os direitos
de primeira geração, são direitos subjetivo. O que os diferencia destes
é que aqueles são meros direitos de agir que, para se concretizarem
implicam apenas uma abstenção, um non facere por parte do sujeito
passivo. Os direitos de segunda geração, se constituem em direitos de
50
exigir, são direitos, pois, de crédito.
Nesse sentido, trago à baíla ainda os ensinamentos de Marília de Ávila e Silva
Sampaio:
Além das funções descritas pelas dimensões objetiva e subjetiva dos
direitos fundamentais, vale registrar o esforço de sistematização que
se tornou clássico, desenvolvido por Jellinek, e que se tornou ponto
de partida para outros estudos doutrinários, conhecido como a teoria
dos status. Tal teoria tomou por base as posições que o indivíduo
pode assumir perantes os Estado […] Em apertada síntese, o status
passivo diz respeito à posição do cidadão frente ao Estado, na condição de submissão aos deveres impostos pelo mesmo. O status negativo é consectário da personalidade de que são detentores os homens,
pois esta enseja uma parcela de liberdade em relação à interferência
dos poderes públicos. O status positivo diz respeito à possibilidade de
o cidadão exisgir do Estado algumas prestações em seu favor e, por
fim, o status ativo é concernente aos direitos políticos exercidos pelos cidadãos, como forma de possibilitar a interferência direta destes
51
sobre a formação da vontade estatal.
De acordo com tais ensinamentos, pode-se dizer que tais direitos sociais representam não só uma conquista socíal, mas parte do núcleo intangível da Constituição
Federal, mas representam direitos pertencentes a um mínimo existencial capaz de
garantir respeito ao princípio bazilador da dignidade da pessoa humana. Representam,
pois, um núcleo nulo de direitos que não podem ser suprimidos pelo constituinte, sob
pena de violação do princípio da vedação do retrocesso.
Advindos agora de uma sociedade massificada, os direitos de terceira dimensão
representam um novo marco na busca pela concretização de determinados direitos,
pugnando-se por uma nova perspectiva da coletividade, passando a individualidade a
dar lugar à coletividade, ou seja, as preocupações passam a ser representadas por uma
direito coletivo. Assim ensina Perdro Lenza:
312
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
Marcado pela alteração da sociedade, por profundas mudanças na
comunidade internacional (sociedade de massa, crescente desenvolvimento tecnológico e científico), as relações econômico-sociais se
alteram profundamente. Novos problemas e preocupações mundais
surgem, tais como a necessária noção de preservacionismo ambiental
52
e as dificuldades para proteção dos consumidores.
Assim elucida Paulo Bonavides:
A consistência de um mundo partido entre nações desenvolvidas e
subdesenvolvidas ou em fase de precário desenvolvimento deu lugar
em seguida a que se buscasse uma outra dimensão dos direitos fundamentais, até então desconhecida […] Com efeito, um novo polo
jurídico de alforria do homem se acrescenta historicamente aos da
liberdade e da igualdade. Dotado de altísimo teor de humanismo e
universalidade, os direitos da terceira geração tendem a cristalizar-se
neste fim de século equanto direitos que não se destinam especificamente à proteção dos interesses de um indivíduo, de um grupo ou de
um determinado Estado. Tem primeiro destinatário o gênero humano mesmo, num momento expressivo de sua afirmação como valor
supremo em termos de existencialidade concreta. Os publicistas e
juristas já os enumeram com familiaridade, assinalando-lhe o caráter
fascinante de coroamento de uma evolução de trezentos anos na esteira da concretização dos direitos fundamentais. Emergiram eleas da
reflexão sobre temas referentes ao desenvolvimento, à paz, ao meio53
ambiente, à comunicação e ao patrimônio comum da humanidade.
O importante avanço proveniente de novas tecnologias trazidas pela ciência,
faz surgir uma série de novas possibilidade para humanidade. Nesse contexto, uma vez
que essas novas tecnologias possibilitam ao homem um novo horizonte de possibilidades, surge para o Direito uma série de novas situações passíveis de regulação. Assim,
partindo-se das premissas de Noberto Bobbio, pode-se dizer acerca dos direitos de
quarta dimensão:
Como frutos da evolução humana e da sociedade, os direitos fundamentais representam m processo de conquistas do homem na luta
por seus direitos ao longo do tempo. Assim, atualmente fala-se em
uma quarta geração de direitos humanos fundamentais, que coincidiria com um novo modelo estatal: o Estado neoliberal globalizado.
Esse novo modelo caracteriza-se por uma elasticidade no conceito de
soberania, para proporcionar maior integração entre todos os Estado
[…] Tal universalidadedos direitos humanos, que se torna latente
com a quarta geração, faz com que haja uma maior concretização dos
direitos fundamentais, que deixam de ser direitos do homem desta
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
313
ou daquele Estado, para passarem a ser direitos do gênero humano universalmente considerado […] Os direitos de quarta geração
coincide com as inovações tecnológicas, que criam para a humanidade problemas que forçariam o Direito a apresentar soluções. Sob
pena de alteração e deterioração do genoma humano, deve haver
limitações às pesquisas e uso de dados com vistas à preservação do
patrimônio genético da espécie humana. O Direito não protege, nesse ínterim, o indivíduo, mas sim, o membro de uma espécie de seres
vivos Costuma-se definir os direitos de quarta geração como aqueles
que resultam dos novos conhecimentos e tecnologias resultantes das
54
pesquisas biológicas contemporâneas.
Em outro sentido, na esteira de pensamento de Paulo Bonavides pode-se dizer:
São direitos da quarta geração o direito à democracia, o direito à
informação e o direito ao pluralismo. Deles depende a concretização
da sociedade aberta do futuro, em sua dimensão de máxima universalidade, para qual parece o mundo inclinar-se no plano de todas
as relações de convivência. A democracia positivada enquanto direito de quarta geração há de ser, de necessidade, uma democracia
direta. Materialmente possível graças aos avanços da tecnologia de
comunicação, e legitimamente sustentável graças à informação correta e às aberturas pluralistas do sistema […] Os direitos da quarta
geração não somente culminam a objetividade dos direitos das duas
gerações antecedentes como absorvem – sem, todavia, removê-la – a
subjetividade dos direitos individuais, a saber, os direitos da primeira
geração. Tais direitos sobrevivem, e não apenas sobrevivem, senão
ficam opulentados em sua dimensão principal, objetiva e axiológica,
podendo, doravante, irradiar-se com a mais subida eficácia normativa a todos os direitos da sociedade e do ordenamento. Daqui se pode,
assim, partir para a asserção de que os direitos da segunra, terceira e
da quarta gerações não se interpretam, concretizam-se. É na esteira
dessa concretização que reside o futuro incorporadora de seus valores
de libertação […] Enfim, os direitos da quarta geração compendiam
o futuro da cidadania e o porvir da liberdade de todos os povos. Tão
55
somente com ele será legítima e possível a globalização política.
Pode-se observar, diante dos ensinamentos acima expostos, que paira profunda
divergência na doutrina acerca de qual o real conteúdo dos ditos direitos de quarta
dimensão. Assim podemos asseverar a partir dos ensinamentos de Geilza Cavalcanti:
Além da controvérsia acima exposta, sobre a existência, ou não, dos
direitos de quarta geração, há grande divergência doutrinária sobre o
conteúdo ou conceitos desses direitos. Os direitos humanos de quar314
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
ta geração seriam os direitos difusos e globalizados, concernentes à
evolução biogenética, tecnológica e do meio ambiente (direitos à
vida das gerações futuras, direitos a uma vida saudável e em harmonia com a natureza, desenvolvimento sustentável, bioética, manipulação genética, biotecnologia e bioengenharia, direitos advindos da
realidade virtual) […] Mas, afinal, qual será o efetivo conteúdo dessa
dimensão de direitos fundamentais? Estariam eles consubstanciados
no direito à democracia, à informação e ao pluralismos, como afirma
Paulo Bonavides? Ou seriam direitos ligados à bioética, a novas formas de manipulação da vida humana? […] Em suma, grande parte
da doutrina entende como conteúdo dos chamados direitos humanos de quarta dimensão aqueles relativos aos avanços biocientíficos e
tecnológicos ocorridos hordiernamente. Com efeito, há pouco tempo
atrás não se pensava na necessidade de regulamentar e garantir esses
56
direitos relacionados ao próprio corpo, embora eles já existissem.
Em que pese a discordância doutrinária existente, tal divergência tem pouca
valia nessa esteira de dimensões dos direitos fundamentais, haja vista que a evolução
da sociedade implica, a todo momento, no surgimentos de novos direitos a serem concretizados e regulamentados pelo ordenamento jurídico. Existem autores, ainda que de
forma tímida, que já têm acrescentado outras dimensões de direitos fundamentais. Para
alguns autores, o direito de quinta dimensão parte-se da ideia de um entrelaçamento
entre Direito, Moral e Ética, aonda não basta a existência de uma lei regulamentadora
do direito, mas sim um reconhecimento de sua relação obrigatória com outras disciplinas. Paulo Bonavidades, por sua vez, consubstanciado na doutrina de Karel Vasak ,
coloca o direito à paz como direito de quinta dimensão. Por sua vez, o dito direito de
sexta dimensão está relacionado ao direito ao amor, à beleza. Entende-se que diante dos
padrões instituídos na sociedade capitalista, o Estado deve propiciar o acesso a estes,
de modo do a possibilitar um Direito de Inclusão Social dos indivíduos na sociedade.
Sobre o tema podemos concluir:
Os direitos de primeira, da segunda e da terceira geração abriram
caminho ao advento de uma nova concepção de universalidade dos
direitos humanos fundamentais, totalmente distinta dos sentido abstrato e metafísico de que se impregnou a Declaração de Direitos do
Homem de 1789, uma Declaração de compromisso ideológico definido, mas que nem por isso deixou de lograr expansão ilimitada,
servindo de ponto de partida valioso para a inserção dos direitos da
liberdade – direitos civis e políticos – no constitucionalismo rígido do
nosso tempo, com uma amplitude formal de positivação a que nem
sempre corresponderam os respectivos conteúdos materiais. A nova
universalidade dos direitos fundamentais os coloca assim, desde o
princípio, num grau mais alto de juridicidade, concretude, positividade e eficácia. É universalidade que não exclui os direitos da liberdade,
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
315
mas primeiro fortalece com as expectativas e os pressupostos de melhor concretizá-los mediante a efetiva adoção dos direitos da igualdade e da fraternidade […] A nova universalidade procura, enfim,
subjetivar de forma concreta e positiva os direitos da tríplice geração
na titularidade de um indivíduo que antes de ser homem deste ou
daquele País, de uma sociedade desenvolvida ou subdesenvolvida, é
pela sua condição de pessoa a um ente qualificado por sua pertinên57
cia ao gênero humano, objeto daquela universalidade.
3. GARANTIAS E SITUAÇÕES JURÍDICAS
É indubitável o fato de que o surgimento de procedimentos de reprodução
humana assistida possibilita ao homem o grande dom da descendência, garantia dada
pela Constituição, a qual elencou, em seu rol de direitos fundamentais, direitos de cada
indivíduo, tais como o direito de descendência, do livre planejamento familiar, origem
genética, dentre tantos outros.
Com o aparecimento dessas novas situações jurídicas é indispensável que se
faça uma majoração dos valores e princípios constitucionais fundamentais, partindo-se
sempre da premissa da inafastabilidade da dignidade da pessoa humana e da inviolabilidade do direito à vida.
3.1 Do direito à vida
Dispõe o art. 5º da Constituição Federal de 1988 que todos são iguais perante
a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à
segurança e à propriedade.
Garantido está o direito à vida pela norma constitucional em cláusula pétrea (art. 5º), que é intangível, pois contra ela nem mesmo há
o poder de emendar. Daí conter uma força paralisante total de toda
a legislação que, explícita ou implicitamente, vier a contrariá-la, por
força do art. 60, §4º, da Constituição Federal. O art. 5º da norma
constitucional tem eficácia positiva e negativa. Positiva, por ter incidência imediata e ser intangível, ou não emendável, visto que não
pode ser modificado por processo normal de emenda. Possui eficácia
negativa por vedar qualquer lei que lhe seja contrastante, daí sua
força vinculante, paralisante total e imediata, permanecendo intangível, ou não emendável pelo poder constituinte derivado, exceto por
meio de revolução ou de ato de novo poder constituinte originário,
criando e instaurando uma novel ordem jurídica. O direito à vida
deverá ser respeitado ante a prescrição constitucional de sua invio316
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
labilidade absoluta, sob pena de se destituir ou suprimir a própria
58
Constituição Federal, acarretando a ruptura do sistema jurídico.
A Constituição Federal de 1988 já prevê como “principal” direito fundamental,
o direito à vida, excludente de qualquer outro que o atente. Desse modo, qualquer ato
ou direito que atente contra a vida deve ser firmemente afastado. Novamente, faz-se
mister invocar os dizeres de Maria Helena Diniz:.
A vida tem prioridade sobre todas as coisas, uma vez que a dinâmica
do mundo nela se contém e sem ela nada terá sentido. Consequentemente, o direito à vida prevalecerá sobre qualquer outro, seja ele o de
liberdade religiosa, de integridade física ou mental etc. Havendo con59
flito entre dois direitos, incidirá o princípio primado mais relevante.
Portanto, pode-se afirmar que a vida se constitui como um bem jurídico tutelado
pelo Estado e resguardado pela Constituição Federal, de modo que se constitui por si só
uma limitação à utilização desenfreada das técnicas de reprodução humana assistida.
Nesse sentido, conclui o professor Daury César Fabriz:
Se às ciências da vida cabe o livre exercício do especular em torno
das várias possibilidades dos elementos que integram a vida, cabe ao
Direito proceder ao enquadramento legal, no sentido de se preservar a integridade da vida e da pessoa humana. Nesse enquadramento, os instrumentos jurídicos a serem criados, diante dessas novas
demanadas, devem buscar inspiração no campo da Ética e a partir
dela; a oferta de um núcleo de preceitos que venha responsabilizar
os possíveis abusos cometidos, principalmente àqueles afetos ao direito à vida. A vida é a premissa maior, donde tudo o mais deve ser
derivativo. Em conclusão, ninguém deve ser privado arbitrariamente
de sua vida. Mas, como vimos, dessa premissa maior decorrem várias
menores, que devem ser mais bem analisadas em consonância com
60
outro princípio superior, o da dignidade da pessoa humana[...]
Além da previsão constitucional sobre o direito à vida, o Código Civil se manifestou sobre o início da proteção jurídica da vida humana, dispondo assim no art. 2°
do Código Civil: “personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas
a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro”. A redação pouco clara
do artigo em tela levanta uma série de questões sobre o início da personalidade civil, o
que proporcionou o surgimento de diversas teorias acerca do surgimento do sujeito de
direito dotado de personalidade.
A discussão acerca do momento do início da vida encontra respaldo entres as
diversas teorias que buscam definir esse momento, tais como as correntes natalistas e
concepcionistas. Cumpre salientar que a improcedência da ADIN n° 3.510-0, com a
consequente constitucionalidade do art. 5º da Lei de Biossegurança, representa sem
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
317
dúvida um grande avanço para se chegar a um entendimento comum no ordenamento
jurídico brasileiro, deixando de considerar os embriões conservados in vitro como se
nascituros fossem, e, portanto, deixando de conceder-lhes os direitos inerentes ao
nascituro, principalmente o inafastável direito à vida.
Todavia, apesar desse posicionamento do Supremo Tribunal Federal quanto ao
destino dos embriões excedentários, a discussão quanto ao momento do início da vida
está longe de ser pacíficada, refletindo em diversas outras áreas do ordenamento jurídico
brasileiro. Sendo assim, é imprescindível para o presente estudo trazer as principais
correntes que buscam determinar o começo da vida humana, da personalidade civil.
Vale salientar que a personalidade civil nada mais é que a capacidade de cada
indivíduo de exercer direitos e adimplir obrigações, aptidão essa adquirida após o nascimento com vida, ou seja, quando o nascituro enche os pulmões de ar, há o marco do
61
início da vida .
Primeiramente, a corrente concepcionista fixa o entendimento de que com a
concepção, ou seja, com a fecundação do óvulo pelo espermatozoide surge a vida, sendo
o nascituro, portanto, ser vivo dotado de personalidade jurídica, de modo que, desde
62
então há a existência de um ser dotado de DNA próprio . À luz de tal entendimento,
o nascituro desde a concepção é sujeito de direito, ou seja, passível de ser titular de
direitos, sendo reconhecida sua personalidade jurídica desde sua concepção.
Em contraposição à corrente concepcionista, segue a corrente natalista, na qual
o nascituro se torna sujeito de direito quando nasce, de modo que, na gestação existe
63
apenas uma esperança de personalidade, ou seja, há uma mera expectativa de vida . É
pois, a partir do nascimento com vida que o nascituro passa a fazer jus a toda a gama
de direitos inerentes ao sujeito de direito, como sucessão, propriedade, etc., ou, se de
outra forma o nascituro nascer morto, é como se jamais tivesse existido.
Promovendo uma junção das teorias natalista e concepcionista, a teoria da
personalidade condicionada explicita que o início da personalidade jurídica se dá com
a concepção, condicionando-a ao nascimento com vida do nascituro, de modo que,
64
assim sendo, seus direitos retroagem à concepção.
Passada a explanação acerca do início da personalidade jurídica, sobre as teorias
que explicitam sobre momento do início da vida, há ainda a chamada corrente desenvolvimentista, na qual a mera fecundação não é suficientemente capaz de caracterizar o
início da vida, de modo que, “os desenvolvimentistas acham que a fecundação, mesmo
estabelecendo as bases genéticas, o novo ser necessita de certo grau de desenvolvimento,
e, por isso, a vida começaria com a nidação, para outros da formação do córtex cerebral,
65
ou, mesmo, a partir do parto”.
Sob o diapasão da corrente desenvolvimentista, inclusive amplamente referendado pelos Ministros na ADIN n° 3.510-0, o início da vida do embrião pode ser
considerado a partir do 14° dia de desenvolvimento, fase em que o feto começa a ter
os primeiros impulsos nervosos. Nesse sentido, a Resolução n° 1.358/92 do Conselho
Federal de Medicina dispõe no item VI. 3 que “o tempo máximo de desenvolvimento de
pré-embriões ‘in vitro’ será de 14 dias”. Tal posicionamento evidencia a tese de que com
o início da formação nervosa do embrião o início da vida pode ser verificado. Todavia,
não há a menor linearidade no entendimento sobre essa questão.
318
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
A declaração de constitucionalidade do art. 5° da Lei de Biossegurança pode
ser o grande marco para que se possa chegar a um entendimento uniforme sobre o
início da proteção jurídica da vida e da personalidade civil, pelo menos no ordenamento jurídico.
A utilização dos embriões in vitro para fins de pesquisa e terapia, a concepção,
ou seja, a união dos gametas masculino e feminino, não é o real marco para o início
da proteção jurídica da vida e da personalidade civil, vez que não trata o embrião ali
contido como se nascituro fosse, a quem é garantido primordialmente o direito à vida,
garantia essa que não lhes é concedida.
Ocorre que fixar esse entendimento é um tanto quanto perigoso, haja vista que
significaria afirmar que o embrião in vitro não faria jus aos direitos sucessórios e filiação
no caso de uma fecundação post mortem, por exemplo, circunstância esta que, apesar de
pouco referendada no Código Civil, é uma possibilidade cada vez mais crescente com
a utilização da reprodução assistida. Sérgio Abdalla Semião ao tratar sobre a doutrina
concepcionista no âmbito da biogenética, assim se pronuncia:
[...] a chamada doutrina verdadeiramente concepcionista mostra-se mais retrógrada diante da embriologia. Não há como explicar,
sob esta corrente, que só porque o embrião não está no ventre materno, não seja pessoa, mesmo que tecnicamente também não seja
nascituro. A qualidade e a essência dos seres e das coisas, não se
modificam, ontologicamente, apenas por sua localização no espaço
ou pelos diversos nomes que têm, a menos que sejam coisas e seres
diferentes. Nascituro ou não, o embrião fertilizado in vitro está concebido. Se não é nascituro, concebido é. Destarte, aquela doutrina,
que ao contrário da doutrina natalista afirma que desde a concepção
o fruto do ser humano é pessoa, entra em total contradição diante da
biogenética [...] a adoção desta doutrina significaria um retrocesso
de uma magnitude descomunal e, na verdade, inexeqüível, colocando em risco a efetividade do sistema jurídico, bem como a evolução
66
científica do país.
Lado outro, à luz do entendimento do mesmo autor, a corrente natalista se
apresenta como a melhor solução para essa problemática, haja vista que o nascituro
se mostra apenas como mera expectativa de pessoa, como expectativa de sujeito de
direitos, de modo que, o infans conceptus é parte do ventre materno e ao se separar da
genitora com vida, a personalidade civil tem seu início. Vejamos.
A escola natalista, que, por sua vez, defende a taxatividade dos direitos do
nascituro como meras expectativas, atende não só ao aspecto prático, como também
ao aspecto jurídico em conformidade com a interpretação sistemática e teleológica do
nosso ordenamento jurídico como um todo... A escola natalista não se confronta com
a evolução da genética e do biodireito, e, ao mesmo tempo, pode se adaptar até com
as opiniões da Igreja Católica. Ou seja, a escola natalista adapta-se perfeitamente ao
mundo moderno e ao futuro previsível, assim como se adaptou muito bem ao Direito
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
319
Romano. A sua aplicação prática sempre foi possível e, pelo que tudo indica, nesta era,
67
sempre o será.
Pode-se evidenciar, portanto, a dificuldade do ordenamento jurídico em fixar
o real entendimento sobre qual é o marco do início da proteção jurídica da vida, da
personalidade jurídica. A corrente desenvolvimentista parece se apresentar como o
entendimento mais coerente ao ordenamento jurídico brasileiro, adequando-se ainda
a biogenética, evidenciada ainda pelo entendimento de alguns ministros do Supremo
Tribunal Federal nos votos da ADIN n° 3.510-0, determinando-se como grande marco
do início da vida o início das formações nervosas do feto. Pode-se dizer ainda, que os
embriões in vitro não podem ser considerados ainda como nascituros, mas sim um sujeito
de direito em potencial.
3.2 Do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana
Elemento basilar do Estado Democrático de Direito, o princípio da dignidade
da pessoa humana está elencado no art. 1º da Constituição Federal de 1988, verbis:
Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em
Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
III - a dignidade da pessoa humana;
O princípio da dignidade da pessoa humana não possui uma definição clara,
não estando intimamente ligado à integridade física, psíquica e moral, de modo que,
constitui-se como grande orientador desse todo jurídico e ético ao qual nos submetemos,
trazendo consigo a máxima de que o bem estar individual não poderá ser afastado em
benefício de nenhum interesse coletivo. Desse modo, pode-se dizer que o princípio da
dignidade da pessoa abrange uma gama de direitos individuais, da personalidade, fundamentais à existência de um sujeito de direito e inerentes à sua existência. Todavia, em
que pese seu caráter individual, tal princípio não se pode limitar a essa mera concepção, estendendo-se a toda aquela gama moral e ética que envolve a própria sociedade
dando-lhe diretrizes que regem todas as relações entre os indivíduos.
Pode-se dizer ainda que o princípio da dignidade da pessoa humana é essencial
na manutenção da vida em sociedade, caracterizando-se como elemento precípuo para
uma vida digna. Vejamos o que nos ensina o celebre Daury César Fabriz:
O princípio da dignidade da pessoa humana manifesta-se como instrumento abalizador dos demais princípios e direitos compreendidos
como superiores. Se a vida é o pressuposto fundamental, premissa
maior, a dignidade se absolutiza em razão de uma vida que somente
é significativa, se digna. É claro que o conceito de dignidade deve se
orientar de acordo com a cultura à qual vincula-se como valor. Dependerá da consciência de cada cultura em particular, ao considerar
320
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
a vida como um valor. A dignidade da pessoa é própria dela mesma,
e diz respeito a qualquer indivíduo, sendo que o ser (liberdade) deve
68
prevalecer sobre o ter (propriedade).
Ocorre que, ao passo que surgem as novas técnicas de reprodução humana assistida, tal como a fecundação in vitro, um arriscado caminho começa a ser trilhado, que
envolve desumanizar o embrião humano dando-lhe um caráter de coisa, tornando-o
um objeto passível de toda e qualquer manipulação. Nesse sentido se manifesta Maria
Helena Diniz:
Os biocientistas devem ter como paradigma o respeito à dignidade
da pessoa humana, que é o fundamento do Estado Democrático de
Direito (CF, art. 1º, III) e o cerne de todo o ordenamento jurídico.
Deveras, a pessoa humana e sua dignidade constituem fundamento
e fim da sociedade e do Estado, sendo o valor que prevalecerá sobre
qualquer tipo de avanço tecnológico. Consequentemente, não poderão bioética e biodireito admitir conduta que venha a reduzir a pessoa
humana à condição de coisa, retirando dela sua dignidade e o direito
69
a uma vida digna.
Todavia, essa desumanização do embrião in vitro não acontece, haja vista que o
mesmo não se apresenta como um nascituro propriamente dito, constituindo-se em um
mero feto em potencial, que adquirirá sua proteção com a nidação. No entanto, não
se pode fechar os olhos para uma futura regulamentação sobre os embriões excedentários e sobre todos os demais procedimentos de reprodução assistida, de modo que o
ordenamento jurídico deve-se mostrar como um norteador e limitador a essas técnicas
e suas consequências.
Em que pese a inafastabilidade do princípio da dignidade da pessoa humana e
sendo este o grande norteador do Estado Democrático de Direito, tal fundamento não
pode ser visto isoladamente, pois todos os outros princípios elementares da República
Federativa Brasileira irão se apresentar igualmente a fim de regular essas novas relações
jurídicas existentes.
Não há como afastar do indivíduo o direito à saúde consagrado no art. 196 da
CF/88, ou então da liberdade, que envolve a livre escolha pela utilização da reprodução
assistida, ou então do direito à maternidade (art. 203, I, CF/88), do livre planejamento
familiar, da paternidade responsável.
Desse modo, uma vez que a família é a base de todo Estado, cabe a ele assisti-la
e protegê-la, vez que é direito de todo cidadão buscar pela reprodução assistida.
Daury César Fabriz responde assim a esses questionamentos:
Os direitos fundamentais emanados da Constituição e os direitos humanos prescritos pelas declarações de direito, tratados e convenções
internacionais, devem implicar uma nova arquitetura que possa determinar o devido respeito à dignidade da pessoa humana, na esteira
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
321
de uma teorização política, cuja orientação busque ordenar a nova
realidade que se encontra em curso, devendo os contextos minoritários ser respeitados e protegidos. O campo da Bioética não pode prescindir da esfera dos direitos superiores, na concepção, positivação e
70
aplicação do biodireito[...]
É indubitável, portanto, que as técnicas de reprodução humana assistida representam uma nova realidade na sociedade, proporcionando aos casais estéreis a construção
de uma família, de modo que, sob a observância dos princípios constitucionais a busca
por esses métodos de reprodução é um direito de todo cidadão e cabe ao Estado, por
meio de legislações específicas, regular a utilização destes.
3.3 Do Livre Planejamento Familiar
Previsto como garantia constitucional, o livre planejamento familiar encontra
sua previsão na Magna Carta no art. 226, § 7º, o qual segue em epígrafe, verbis:
Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal,
competindo ao Estado propriciar recursos educacionais e científicos
para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por
parte de instituições oficiais ou privadas.
Nesse sentido, a Lei n° 9.263 de 12 de janeiro de 1996 regulou o supracitado
indicativo constitucional estabelecendo penalidades e outras providências, conforme
abaixo:
Art. 1º O planejamento familiar é direito de todo cidadão, observado
o disposto nesta Lei.
Art. 2º Para fins desta Lei, entende-se planejamento familiar como o
conjunto de ações de regulação da fecundidade que garanta direitos
iguais de constituição, limitação ou aumento da prole pela mulher,
pelo homem ou pelo casal.
Art. 3º O planejamento familiar é parte integrante do conjunto de
ações de atenção à mulher, ao homem ou ao casal, dentro de uma
visão de atendimento global e integral à saúde.
Art. 4º O planejamento familiar orienta-se por ações preventivas
e educativas e pela garantia de acesso igualitário a informações,
meios, métodos e técnicas disponíveis para a regulação da fecundidade.
Art. 5º - É dever do Estado, através do Sistema Único de Saúde,
em associação, no que couber, às instâncias componentes do sistema
educacional, promover condições e recursos informativos, educacio322
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
nais, técnicos e científicos que assegurem o livre exercício do planejamento familiar.
Portanto, à luz de tal diploma, o livre planejamento familiar é cabível a toda e
qualquer pessoa humana, restando a ela ou ao casal a deliberação de escolher os meios
e as formas para constituir essa entidade chamada família, fundando-se nos princípios
da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, sendo dever do Estado
71
propiciar e assegurar meios para o desenvolto exercício desse direito.
Lembrando que a paternidade responsável se calca na máxima de que caberá
aos pais o dever de assegurar aos filhos o direito à vida, integridade, alimentação, educação, lazer, afeto etc. “A influência dos pais na formação do filho é primordial para
seu desenvolvimento psicossocial, inclusive com consequências no próprio conceito
de cidadania, que começa a se desenvolver dentro do lar, com as noções preliminares
72
de direitos e obrigações”.
Faz-se mister salientar que o advento da Constituição Federal de 1988 fez surgir
para o direito uma nova concepção de família, desvinculando-se daquela concepção
matrimonialista que ordenou tal conceito do século passado. Desse modo, a existência
da entidade familiar pode ser calcada no matrimônio, na união estável, ou então aquela
dita família monoparental, ou seja, aquela formada por um ascendente e um descendente, ou ainda anaparental, dentre outras formas de entidades familiares, haja vista
que o dispositivo supra não é numerus clausus. Sendo assim, fundada sob um modelo
eudemonista, em que se busca o desenvolvimento individual de cada indivíduo da família, e à luz do princípio do pluralismo familiar, a entidade familiar passa a se constituir
por vínculos de afetividade, estabilidade e publicidade. “Predomina, assim, um modelo
familiar eudemonista, afirmando-se a busca da realização plena do ser humano. Aliás,
constata-se, finalmente, que a família é o lócus privilegiado para garantir a dignidade
73
humana e permitir a realização plena do ser humano”.
Pode-se afirmar, portanto, que com o advento da CF/88, surge para o direito
de família uma ideia de constitucionalização, que envolve, além de sua publicização,
sua elevação ao nível de direitos fundamentais, de modo que o torna passível de uma
proteção mais intensa por parte do ordenamento. À luz desse entendimento tem-se a
ideia da importância que foi dada à família pela Magna Carta.
Além da previsão constitucional do livre planejamento familiar, o Código Civil
abarcou esse direito no art. 1.565, § 2º, vejamos: “O planejamento familiar é de livre
decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e financeiros
para o exercício desse direito, vedado qualquer tipo de coerção por parte de instituições
privadas ou públicas”.
Em face de toda essa atenção que foi dada à entidade família, caberá a cada
um, o livre planejamento familiar seja pela procriação comum, natural ou aquela dita
reprodução assistida, a qual cada vez mais se localiza nos liames do Direito de Família,
de modo a representar essa nova realidade parental, calcada na felicidade e no afeto,
propiciando àqueles inférteis esse grande dom da descendência.
Ocorre que, toda essa liberdade do planejamento familiar disposta na Constituição Federal e no Código Civil acaba por gerar uma série de problemáticas no âmbito
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
323
civil, no tocante às técnicas de reprodução humana assistida, como a fertilização in vitro
post mortem. Vejamos.
A criopreservação permite o congelamento dos embriões excedentes para posterior implantação no útero materno, de modo que, possibilita a fecundação do embrião
congelado após a dissolução do vínculo conjugal ou ainda se houver a morte de um
dos cônjuges ou companheiro.
Cumpre ressaltar que a Resolução n° 1.358/92 determina que “no momento
da criopreservação, os cônjuges ou companheiros devem expressar sua vontade, por
escrito, quanto ao destino que será dado aos pré-embriões criopreservados, em caso de
divórcio, doenças graves ou de falecimento de um deles ou de ambos, e quando desejam
doá-los”. Ocorre que, como aqui amplamente referendado, a resolução não possui força
de lei, ficando apenas inserida no contexto ético.
Apesar de não ter ainda o devido respaldo legislativo, a fecundação post mortem,
na modalidade homóloga, encontra, ainda que superficialmente, previsão no novo
Código Civil, o qual elenca nas hipóteses de presunção de paternidade do art. 1.597,
inciso III, o filho havido por fecundação homóloga, ainda que falecido o marido. Não
restam dúvidas, portanto, que o Código Civil anuiu com esse tipo de procedimento post
mortem, restando a lacuna, no entanto, se é conferido a esse filho os direitos sucessórios
advindos da sucessão legítima, conforme nos art. 1.829, I e art. 1.845 do Código Civil.
Na hipótese da fecundação in vitro homóloga, onde o material genético é de
ambos os pais, é inegável que a filiação biológica se aproxima da filiação jurídica, ou
seja, há o parentesco consanguíneo entre os pais e o filho. Desse modo, à luz do disposto
nos artigos supracitados, uma vez constituído esse parentesco consanguíneo, os filhos
tornam-se herdeiros necessários, quando lhes são conferidos direitos sucessórios.
Entretanto, de encontro a essa vertente, dispõe o artigo 1.798 do Código Civil
que se legitimam a suceder as pessoas nascidas ou já concebidas no momento da abertura da sucessão.
Surge aí a grande problemática, qual seja a de que o embrião excedente in vitro
quando inserido no útero materno, faz jus ao direito de sucessão. Emana desta situação,
novamente, a questão de determinar se o embrião criopreservado é ou não concebido.
Guiando-se pelo julgamento da ADIN n° 3.510-0, os embriões congelados não
podem ser considerados com seres concebidos, não fazendo jus, desse modo, a sucessão
legítima. Todavia, não se configura o cerne do presente trabalho fixar de pronto tal
entendimento, mas sim suscitar as problemáticas trazidas por esse procedimento. Desse
modo, assim se manifesta Cristiane Avancini Alves:
Quanto à inseminação post mortem, existem dois pontos diferentes de
indagação. O primeiro refere-se ao congelamento do sêmen ou óvulo, enquanto que o segundo diz respeito à conservação do embrião.
Isto porque temos qualificações distintas. O sêmen e o óvulo não são
considerados seres humanos, pois isso não ocorreu, neste ponto, a fecundação, ou seja, a união entre eles. Já o embrião é um ser humano,
pois, com a concepção, está configurada a sua informação genética,
determinada, única. Para ambos os casos, contudo, há a necessidade
324
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
de uma definição temporal de implantação, pois não é possível deixar
em suspenso bens que afetam o patrimônio de toda uma família ou,
74
até mesmo, de uma empresa, de uma rede de negócios.
Conforme disposto no artigo 1.799, I, do Código Civil, o testador pode chamar
a suceder os filhos ainda não concebidos de pessoas indicadas no testamento, nos termos artigo 1.800, § 4º do mesmo ordenamento, se decorridos dois anos da abertura da
sucessão, não for concebido o herdeiro esperado, os bens reservados a ele, salvo disposição diversa do testador, caberão aos herdeiros legítimos, assim considerados à época.
O conflito gerado pela inquieta indagação se o filho concebido por fecundação
post mortem faz jus ou não à sucessão legítima faz a doutrina se digladiar em determinar a
lacuna que o Código Civil não tratou de forma mais ampla, buscando sempre encontrar
finalmente um consenso sobre o direito ou não à sucessão legítima.
Sob a égide do disposto no artigo 1.798 do Código Civil, apenas são aptos a
suceder as pessoas nascidas ou já concebidas no momento da abertura da sucessão,
cujo prazo para início acontece com o falecimento, ou seja, sob este entendimento
pode-se dizer que o filho concebido pela fecundação post mortem não faz jus aos direitos
sucessórios inerentes aos herdeiros necessários.
Lado outro, à luz do disposto na Constituição Federal e no Código Civil é
explícito o preceito de igualdade entre os filhos, não podendo haver de modo algum
discriminação entre eles, bem como, aos preceitos da dignidade da pessoa humana,
herança, e da presunção disposta no art. 1.597 do Código Civil.
É inegável que o ordenamento jurídico brasileiro precisa urgentemente de uma
solução para essa lacuna existente, sendo imprescindível que se estabeleça um lapso
temporal para que esse embrião seja concebido. Se houver disposição testamentária,
esse prazo é claro, conforme disposto no artigo 1.800, § 4º, havendo dois anos para que
seja concebido o infante.
Não havendo testamento, é indispensável que para que haja direito sucessório
do filho havido por fecundação post mortem, que este tenha sido concebido dentro dos
prazos estabelecidos no art. 1.597, incisos I e II do Código Civil, ou seja, nascido cento
e oitenta dias, pelo menos, depois de estabelecida a convivência conjugal ou nascidos
nos trezentos dias subsequentes a morte do de cujus.
Ao fixar esse prazo, concede-se aos herdeiros legítimos uma maior segurança
jurídica a partilha realizada após o falecimento, de modo que, ultrapassado esse período
acima e havendo filho concebido por fecundação post mortem, este não pode fazer jus
a herança deixar pelo de cujus, não sendo necessário, portanto, o retorno ao status quo
do momento da abertura da sucessão. Assim se manifesta Cristiane Avancini Alves:
Sugere-se, neste sentido, a disposição francesa de 180 dias para a implantação após a morte do marido no caso de embriões congelados,
na medida em que todo o processo de indução da ovulação quanto
à mulher e recolhimento de esperma pelo homem, bem com a fertilização in vitro, são procedimentos já realizados no âmbito da reprodução assistida. Quanto à inseminação posto mortem de esperma e
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
325
óvulo, poder-se-ia pensar num prazo de 210 dias, para que seja feita,
assim, a fertilização. Ainda, estabelece-se o requisito da autorização
por documento autêntico, de maneira a preservar e legitimar o desejo
do próprio casal de ter um filho, corroborando a relação conjugal e,
75
assim, o projeto parental.
Por toda essa problemática acima desenvolvida, alguns autores rechaçam veementemente a utilização da fecundação post mortem, verbis:
Aceitar incondicionalmente a fecundação post mortem abriria, também, a hipótese às mulheres viúvas, que quisessem ser inseminadas
com o esperma do falecido companheiro apenas por motivações de
natureza econômica, de ‘fabricar’ possíveis herdeiros. Esta técnica
deveria ser proibida, tendo em vista que não garante ao filho um
ambiente familiar adequado, mas uma coisa é certa: se se admitir a
realização da fecundação após a morte, tem-se que aceitar suas consequências, ou seja, não se devem impor limites ao Direito Sucessório
76
e de Filiação.
Frente ao divisado, a lacuna existente no âmbito da fecundação post mortem
no ordenamento jurídico brasileiro, se exige uma profunda e rápida reflexão a fim de
se resolver a problemática existente, observando-se sempre os princípios da dignidade
da pessoa humana, do melhor interesse do menor, da autonomia privada, conforme
veremos adiante, do próprio livre planejamento familiar, bem como, todos os princípios
norteadores do ordenamento jurídico.
3.4 Direito à Origem Genética
A visão matrimonialista, em que a filiação apenas existia àqueles concebidos no
âmbito do casamento, constituindo-se os demais em filhos ilegítimos, deu lugar a um
novo e mais amplo entendimento da entidade familiar, principalmente com o advento
da Constituição Federal de 1988, entendimento que proporcionou aos filhos uma
igualdade constitucional entre os mesmos, independente da origem, fazendo surgir a
todos, o direito de filiação.
Nesse sentido, faz-se necessário salientar o novo conceito de filiação, à luz do
entendimento de Paulo Luiz Netto Lobo, verbis:
Filiação é conceito relacional; é a relação de parentesco que se estabelece entre duas pessoas, uma das quais é considerada filha da outra (pai
ou mãe). O estado de filiação é a qualificação jurídica dessa relação
de parentesco, atribuída a alguém, compreendendo um complexo de
direitos e deveres reciprocamente considerados. O filho é titular do
326
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
estado de filiação, da mesma forma que o pai e a mãe são titulares dos
77
estados de paternidade e de maternidade, em relação a ele.
Essa filiação não necessariamente deve advir da consanguinidade, uma vez que
a própria Constituição Federal e o novel Código Civil introduziram novas possibilidades
de filiação, quais sejam da adoção, por meio de técnicas de reprodução humana assistida ou então de qualquer outro meio. Essa nova gama de possibilidades possui caráter
natural no âmbito da evolução do entendimento da sociedade. Desse modo, é possível
afirmar que a socioafetividade se mostra cada vez mais presente e determinante, para
a posse de estado de filiação, conforme veremos mais adiante no presente trabalho.
Grande exemplo de uma situação em que a socioafetividade deve predominar
é na questão da inseminação artificial heteróloga, aquela em que o material genético
é de terceiro doador. Nesse caso, o pai socioafetivo deve sobrepujar o pai biológico, se
tornando o pai legítimo desse filho, não podendo contestar sua paternidade do mesmo.
Faz-se mister salientar que para a utilização deste tipo de procedimento é imprescindível
a anuência daquele que não contribui com o material genético.
A posse de estado de filiação nada mais é do que aquela constituição na qual
“alguém assume o papel de filho em face daquele ou daqueles que assumem os papéis
78
ou lugares de pai ou mãe ou de pais, tendo ou não entre si vínculos biológicos”.
O direito da origem genética traduz-se em direito da personalidade, segundo o
qual o indivíduo tem o direito de conhecer sua ascendência, de modo a poder conhecer
os problemas de saúde que por ventura possam ser transmitido. Em um sentido mais
amplo, pode-se dizer que envolve o tão aclamado direito à vida, uma vez que esse
conhecimento poderia prevenir doenças congêneres. Vejamos:
Toda pessoa tem direito fundamental, na espécie direito da personalidade, de vindicar sua origem biológica para que, identificando
seus ascendentes genéticos, possa adotar medidas preventivas para
preservação da saúde e, a fortiori, da vida. Esse direito é individual,
personalíssimo, não dependendo de ser inserido em relação da famí79
lia para ser tutelado ou protegido.
No mesmo sentido salienta-se que é direito de todos o conhecimento de sua
origem genética. Senão vejamos:
A identidade pessoal possui uma dimensão absoluta ou individual
na medida em que cada pessoa humana é uma realidade singular,
dotada de uma individualidade que a distingue de todas as demais, e
uma dimensão relativa ou relacional, definida em função da memória
familiar conferida pelos antepassados, sendo possível se falar, aqui,
80
num direito à historicidade pessoal.
Por outro lado, prevalece nas clínicas de reprodução assistida o entendimento
que é garantido aos doadores o anonimato, de modo que, não obstante o fato do doador
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
327
do material genético não ter jamais pretendido se tornar pai, afastar essa garantia aos
doadores poderia causar um pandemônio na sociedade médica e jurídica, haja vista que
seria um absurdo imaginar que de repente os doadores se vissem pais de infindáveis filhos,
sendo alvo de prestação de deveres sob esses filhos, e ainda, tal garantia implicaria em
81
uma diminuição drástica nos bancos de sêmen . A partir surgem algumas teorias que
devem ser aqui referidas, verbis:
Uma das correntes defende o anonimato absoluto, alegando que se
os doadores pudessem ser identificados, isso diminuiria o número de
doações, tendo em vista que os doadores não gostariam de correr o
risco de ter uma criança investigando a paternidade e assim virem a
ser obrigados a reconhecer essa paternidade e assumir todos os encargos da filiação.[...] Outra corrente defende que o conhecimento
do doador de sêmen deverá ficar a critério da criança que assim foi
gerada, pois parte do pressuposto de que esse conhecimento faz parte
dos direitos da personalidade da criança, dentro do direito à identificação, posto ser direito seu conhecer sua origem genética[...] Uma
outra corrente defende o conhecimento do doador de sêmen apenas
82
nos casos de doenças.
A meu ver, a corrente que melhor se encaixa no ordenamento jurídico brasileiro
é aquela que só permite a quebra desse anonimato no caso de doenças hereditárias,
que envolvam a preservação do próprio direito à vida do filho, haja vista que a quebra
deste sigilo em quaisquer outras circunstâncias acarretaria violação à garantia dada ao
doador no momento do ato de doação. Vale salientar que muitas vezes até nessas circunstâncias pode ser difícil detectar a quem pertence aquele DNA, material genético,
haja vista que em alguns casos são feitos coquetéis com sêmen de diversos doadores.
Dessa forma, ainda que seja assegurado esse direito ao menor, é fundamental que
o ordenamento jurídico e a jurisprudência garantam ao doador do material genético a
não-filiação da prole e muito menos o dever de prestar alimentos. Vejamos o que diz
Clarissa Bottega:
De todas essas complicações que envolvem a inseminação artificial,
entendemos que a única maneira de assegurar o direito à origem genética ao ser gerado, bem como dar maior segurança às relações sociais, seria estabelecer em legislação o direito à origem genética como
pressuposto de qualquer inseminação artificial, entretanto deveria
ficar estabelecido que mesmo com o reconhecimento à origem genética, isso não implicaria qualquer vínculo de filiação entre a criança e
o doador do gameta, ficando a informação restrita ao conhecimento
da criança e somente podendo ser utilizada nos casos de risco à saúde
da criança gerada pela inseminação, ou seja, não servindo para qualquer outro direito relacionado ao direito de família ou à filiação como
83
alimentos, nome ou poder familiar.
328
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
Todavia, uma vez que se trata de direito personalíssimo e não há, no ordenamento
jurídico brasileiro, qualquer limitação que impeça ou regule tal procedimento, caberá
ao magistrado a apreciação do mérito dessa questão, levando-se sempre em conta as
limitações ao exercício desse direito, limitando-se ao simples conhecimento da origem
genética. Nesse sentido, arremata Clarissa Bottega:
A natureza do direito à origem genética é ligada aos direitos da personalidade, não tendo nenhuma ligação com direito à filiação, dessa
forma, o conhecimento da informação acerca da ascendência biológica da pessoa nada tem a ver com qualquer tipo de desconstituição
de paternidade socioafetiva ou jurídica já reconhecida e declarada,
sequer intervindo no seio familiar já constituído [...] Dessa forma,
o simples conhecimento da origem genética não outorga – ou não
deve outorgar – ao doador do material fecundante (sêmen ou óvulo)
qualquer direito oriundo do direito de família, mais especificamente
direitos ligados à filiação (poder familiar, alimentos, sucessão, etc.),
mas apenas e tão somente conferir à pessoa gerada através da técnica
de inseminação artificial heteróloga o direito de saber e conhecer
sua origem genética e seus antepassados biológicos como questão de
84
observância do princípio da dignidade da pessoa humana.
3.5 Princípio do Melhor Interesse do Menor
O advento da Constituição Federal de 1988 dá à família uma proteção constitucional em que se busca o desenvolvimento individual de cada membro nela presente.
Todavia, uma vez que o menor não goza de capacidade e discernimento para
conduzir-se no ardiloso caminho da vida, tal proteção é diferenciada no âmbito familiar, sempre na busca pelo seu desenvolvimento até a idade adulta, quando o indivíduo
adquirirá o pleno gozo de seus direitos.
Nesse sentido, dispõe a Constituição Federal em seu art. 227:
É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e
ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde,
à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura,
à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência,
discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
Acompanhando a disposição do artigo supra, dispõe o Estatuto da Criança e
do Adolescente:
Art. 3º A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção inteRevista da Escola da Magistratura - nº 13
329
gral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhes, por lei ou por outros
meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o
desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade.
Art. 4º É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral
e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação
dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação,
ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao
respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária.
O rápido desenvolvimento das ciências biológicas e biotecnológicas fazem surgir
para o Direito diversas novas situações e relações, as quais modificam por completo
a atual noção dessa instituição chamada família. Nesse sentido cada vez se faz mais
necessário que o ordenamento jurídico se desprenda de um positivismo secular, a fim
de, poder abarcar o ilustre todas essas novas circunstâncias que se apresentam na modernidade. Nesse sentido explicita Cristiano Chaves de Farias:
Nesse passo, antevisto esse avanço tecnológico, cientifico e cultural,
dele decorre, inexoravelmente, a eliminação de fronteiras arquitetadas pelo sistema jurídico-social clássico, abrindo espaço para uma
família contemporânea, susceptível às influências da nova sociedade,
que traz consigo necessidades universais, independentemente de lín85
guas ou territórios.
Dessa forma, o melhor interesse do menor ou então a busca pela melhor forma
de desenvolvê-lo constitui-se na maior busca do direito de família.
Nesse caminho, sobreleva apontar dois motivos essenciais para formação do núcleo familiar na sociedade, dos quais um é, antes, o fim
imediato visado pelo outro: o desenvolvimento da personalidade humana e a concretização do projeto de felicidade. A família, pois, não
se localiza dentro de um conjunto de muros ou num campo, mas em
86
atitudes mentais, no terreno fecundo da cultura.
Mas, se a busca pelo desenvolvimento individual de cada um é o objetivo da
entidade familiar, até que ponto permitir a nidação de um embrião in vitro no caso de
pessoa divorciada, viúva, solteira prejudicaria a criação do individuo daí gerado? Vejamos.
Sob a égide do melhor interesse do menor em que se busca “cuidar de sua
87
boa formação moral, social e psíquica” , tal procedimento deveria ser totalmente
rechaçado, uma vez que não seria possível propiciar de forma plena seu melhor
desenvolvimento, não havendo um ambiente familiar adequado. No entanto, não
obstante a enunciação constitucional da família monoparental, o afeto é o grande
alicerce da família, de modo que, é perfeitamente possível e aceitável que apenas
um pai seja capaz de propiciar um ambiente familiar adequado. Desse modo, não há
330
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
embasamento constitucional que implique o impedimento da utilização das técnicas
de reprodução humana assistida.
É importante lembrar que com o advento da Constituição Federal e do novo
Código Civil, o âmbito familiar se desprende da conjuntura patrimonial e passa a se
calcar cada vez mais na égide da afeição, sempre se preconizando pelo desenvolvimento
de cada indivíduo presente no seio familiar. Vejamos:
A mudança do Direito de Família, da legitimidade para o plano da
afetividade, redireciona a função tradicional da presunção pater is
est. Destarte, sua função deixa de ser a de presumir a legitimidade
do filho, em razão da origem matrimonial, para a de presumir a paternidade em razão do estado de filiação, independentemente de sua
origem ou de sua concepção. A presunção da concepção relaciona-se
88
ao nascimento, devendo esta prevalecer.
Sendo assim, ao passo que surgem as técnicas de reprodução humana assistida,
a presunção pater is est se relativiza no reconhecimento da filiação, vez que no caso da
inseminação heteróloga, onde o material genético é diverso do pai, o registro civil do
menor passa a se apresentar como pedra angular na determinação da sua paternidade,
quase que absoluta nesses termos, apenas podendo ser contestado nos casos expressos
do artigo 1.604 do Código Civil, o qual dispõe que “ninguém pode vindicar estado
contrário ao que resulta do registro de nascimento, salvo provando-se erro ou falsidade
do registro”.
Ressalta-se que, uma vez que na fertilização heteróloga é indispensável à anuência do marido ou companheiro, cuja concordância por si só garante a presunção de
paternidade disposta no ordenamento civil.
É importante ressaltar que, independentemente da origem da filiação, todos os
filhos gozam de igualdade entre eles, nos termos dispostos pelo art. 227, § 6º da Constituição Federal e art. 1.596 do Código Civil: “Os filhos, havidos ou não da relação do
casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer
designações discriminatórias relativas à filiação”.
Dessa feita, principalmente guiado pela Constituição Federal de 1988, a qual
igualou os filhos, o Direito Civil trouxe com o tempo diversas mudanças no âmbito do
direito de família e principalmente no direito de filiação. Nesse contexto, a socioafetividade muitas vezes prepondera sobre a consanguinidade, fato este que fomentou a
doutrina ao entendimento de que na inseminação heteróloga a socioafetividade é que
definirá o parentesco.
Conforme Juliana Frozel de Camargo, atualmente estamos de frente com três
espécies de maternidade e paternidade, quais sejam, uma jurídica, uma biológica e
89
uma socioafetiva . Nesse diapasão, pode-se dizer que a “posse de estado de filho”,
apesar de não haver qualquer menção no pátrio direito, é que conduz o ordenamento
jurídico, podendo ser utilizada inclusive como um meio de prova, supletivo ao registro
de que há filiação, já que se constitui naquela relação existente entre os pais e os filhos,
socioafetivos ou biológicos. Para tanto, esta pode conduzir-se através de três elemenRevista da Escola da Magistratura - nº 13
331
tos, o nome familiar, o trato como filho, e por fim a fama, na qual o filho (a) sempre é
90
apresentado como tal.
Portanto, a socioafetividade e a convivência familiar se apresentam como elementos determinantes para o estado de filiação, desprendendo-se do entendimento de
que a consanguinidade constitui fundamento nodal para determinar a posse de estado
de filiação, não se podendo esquecer, obviamente, da máxima norteadora do direito de
família, qual seja do melhor interesse do menor. Vejamos:
Diante do momento social e da pressão que se está exercendo sobre
o sistema codificado que trata do estabelecimento da maternidade e
paternidade, brota um sentimento de que a reforma está próxima e
o reconhecimento da relação socioafetiva é uma verdade que já não
se pode ignorar. É o estabelecimento da filiação por meio do direito
91
voluntário!
Outra questão de imensa relevância reside da presunção de paternidade disposta
no artigo 1.597 do Código Civil, verbis:
Art. 1.597. Presumem-se concebidos na constância do casamento os
filhos:
I - nascidos cento e oitenta dias, pelo menos, depois de estabelecida
a convivência conjugal;
II - nascidos nos trezentos dias subsequentes à dissolução da sociedade conjugal, por morte, separação judicial, nulidade e anulação do
casamento;
III - havidos por fecundação artificial homóloga, mesmo que falecido
o marido;
IV - havidos, a qualquer tempo, quando se tratar de embriões excedentários, decorrentes de concepção artificial homóloga;
V - havidos por inseminação artificial heteróloga, desde que tenha
prévia autorização do marido.
Frente ao disposto no artigo supra, é indubitável o fato que a presunção ali disposta referente à inseminação homóloga possui a presunção pater is est absoluta já que o
simples ato de se submeter a reprodução assistida nesta modalidade, na qual o material
genético utilizado é de ambos os pais, possuindo o filho aqui concebido traços genéticos
de ambos, o que, afasta, portanto, a contestação de paternidade em relação ao menor.
Lado outro, em relação à fecundação heteróloga a presunção se torna juris
tantum, ou seja, admite prova em contrário, vez que para sua ocorrência prescinde
de anuência do marido, de modo que, essa manifestação de vontade é o motor para o
estabelecimento do vínculo de filiação quando há o uso deste tipo de procedimento,
em face da falta da relação sexual entre os pais.
Donde se conclui que caso a mulher realize a inseminação heteróloga sem a
autorização do marido, a presunção de paternidade prevista neste dispositivo do Código
332
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
Civil pode ser contestada, culminando na anulação do registro de nascimento do menor, bem como, o marido poderá pretender a dissolução do casamento, já que além de
atingir a moral e honra. Deve-se levar em conta ainda o princípio do melhor interesse
do menor, de modo que, essa indesejada gravidez pode gerar uma negação pelo marido
dessa criança, o que pode gerar uma série de problemas psicológicos ao mesmo.
Faz-se mister salientar que a Resolução n° 1.358/92 do Conselho Federal de
Medicina, apesar de ser norma ética sem caráter cogente, dispõe que a mulher “estando
casada ou em união estável, será necessária a aprovação do cônjuge ou companheiro,
após processo semelhante de consentimento informado”.
Assim dispõe Silvio de Salvo Venosa sobre a fecundação heteróloga:
Questão primeira que se coloca para o campo jurídico é que se a
inseminação heteróloga deu-se sem o consentimento do marido, este
pode impugnar a paternidade. Se a intimação deu-se com seu consentimento, há que se entender que não poderá impugnar a paternidade e que assumiu. Nesse sentido se coloca o inciso V, do art. 1.597,
do atual Código. A lei brasileira passa a resolver expressamente essa
questão. A lei não esclarece ainda, porém, de que a forma deve ser
dada essa autorização. Por outro lado, a nova lei civil fala em ‘autorização prévia’, dando a entender que o ato não pode ser aceito ou rati92
ficado posteriormente pelo marido, o que não se afigura verdadeiro.
Sobre a fertilização artificial heteróloga e a lacuna no Código Civil, assim se
manifesta Guilherme Calmon Nogueira da Gama:
Na realidade, o Código Civil de 2002, em relação aos aspectos civis da
reprodução assistida heteróloga, toca superficialmente no critério de
estabelecimento da parentalidade-filiação decorrente da procriação
assistida heteróloga, bem como no que tange à origem do parentesco
civil, mas pouco modifica o sistema jurídico envolvendo as relações
de parentesco – e, consequentemente, de paternidade, maternidade
e filiação – no campo das novas técnicas conceptivas. Nesse sentido,
revela-se fundamental a necessária e obrigatória atuação da doutrina
e da jurisprudência brasileiras nas suas funções, especialmente relacionadas à compreensão, interpretação, aplicação e efetivação das
normas jurídicas constantes do Código de 2002, sempre procedendo
à conferência a respeito da existência do fundamento de validade
constitucional a seu respeito diante da nova tábua de valores inscul93
pidos na Constituição Federal de 1988 com seus princípios e regras.
Outra questão de suma relevância reside na questão dos embriões excedentários,
à luz do disposto no inciso IV do dispositivo supra.
Como já anteriormente referendado, no procedimento da fertilização in vitro, a
fim de se obter uma maior possibilidade de êxito são fecundados inúmeros embriões,
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
333
implantando-se no útero feminino, no entanto, o número máximo de quatro, nos
ditames da Resolução n° 1.358/92.
Em relação a este inciso IV, é interessante para a doutrina e jurisprudência no
intuito de solucionar de vez a grande problemática advinda desses embriões excedentes, estabelecerem que a presunção ali estabelecida deva ocorrer apenas se adstrita nos
prazos descritos nos incisos I e II, de modo que, passado tal período a presunção da
94
paternidade não ocorre, devendo esta se reconhecida pelo pai.
Pode-se observar, portanto, que o Código Civil não é suficientemente abrangente
para regular as novas situações trazidas pelo avanço da biomedicina, o que evidencia
cada vez mais uma movimentação doutrinária, jurisprudência e normativa, a fim de
finalmente se regular essa nova conjuntura.
3.6 Princípio da Autonomia Privada
Em que pese a relevância pública que envolve o Direito de Família, os interesses
tutelados no seio familiar possuem caráter privado, de modo que, a intervenção estatal
deve ser limitada ao mínimo possível, competindo ao Estado, portanto, apenas a tutela
desses indivíduos, sem preteri-los, no entanto, de sua autonomia.
Desse modo, faz-se mister tratar aqui do princípio da autonomia privada, que
“constituirá a base do novo enfoque das relações entre os profissionais da saúde e os
pacientes nas Cartas dos direitos dos doentes, cujo fundamento está na preocupação
95
com a capacidade de decisão do paciente” . O princípio da autonomia privada irá se
apresentar como a real determinação das relações jurídicas provenientes dos procedimentos de reprodução assistida, de modo que, será indispensável o consentimento do
casal, tornando-os responsáveis pelo ato ao qual se submeteram e pelas consequências
advindas deste.
Nesse sentido, pode-se dizer que passa a vigorar em algumas circunstâncias no
Direito da Família, o princípio da menor intervenção estatal, onde o Estado se fará
presente apenas com cunho assistencialista, propiciando aos seus membros os meios
para se desenvolverem, fato este abarcado inclusive pela nova Carta Magna, em seu
art. 226, já anteriormente aqui referido:
Ficou muito claro que a Constituição Federal procurou unir a liberdade do indivíduo à importância que a família representa para a sociedade e para o Estado. Ao garantir ao indivíduo a liberdade através
do rol de direitos e garantias contidos no art. 5º, bem como de outros
princípios, conferiu-lhe a autonomia e o respeito dentro da família
e, por conseguinte, assegurou a sua existência como célula mantenedora de uma sociedade democrática. Isto, sim, deve interessar ao
Estado. No texto constitucional está prevista também a liberdade do
casal, no que concerne ao planejamento familiar, com fundamento
nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade res96
ponsável.
334
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
Dispõe ainda o art. 1.513 do Código Civil que “é defeso a qualquer pessoa, de
direito público ou privado, interferir na comunhão de vida instituída pela família”.
Portanto, pode-se dizer que, sob a égide do princípio da dignidade da pessoa
humana e do livre planejamento familiar, a utilização de técnicas de reprodução humana
assistida não podem de maneira alguma ser impedidas, devendo ser, no entanto, melhor
reguladas pelo ordenamento jurídico. Desse modo, conclui-se:
Por fim, a aplicabilidade do princípio da autonomia privada da família como instrumento de freios e contrapesos da intervenção do
Estado funda-se, ainda, no próprio direito à intimidade e liberdade
dos sujeitos que a compõem, que resulta também da personificação
do indivíduo [...] O desafio fundamental para a família e das normas
que disciplinam é conseguir conciliar o direito à autonomia e à liberdade de escolha com os interesses de ordem pública, que se consubstancia na atuação do Estado apenas como protetor. Esta conciliação
deve ser feita através de uma hermenêutica comprometida com os
princípios fundamentais do Direito de Família, especialmente o da
autonomia privada, desconsiderando tudo aquilo que põe o sujeito
em posição de indignidade e o assujeite ao objeto da relação ou ao
97
gozo de outrem sem o seu consentimento.
4. Legislações Infraconstitucionais
Conforme já amplamente observado e ressalvado nesse trabalho, observa-se que
o limbo legislativo acerca da regulamentação dos ditames das técnicas de Repodução
Humana Assistida pode gerar um pandemônio na órbita jurídica, haja vista que são
diversas as suas implicações no âmbito civil. Assim, tendo em vista que a técnica da
Fertilização In Vitro implica na produção de diversos embriões excedentários que, por
carência de legislação específica, acabam por implicar em inúmeras problemáticas no
âmbito sucessório, fecundação post mortem, da determinação do início da vida e da personalidade civil, na presunção de paternidade disposta no art. 1.597 do Código Civil,
bem como, a elevação da socioafetividade em relação à consanguinidade.
No Brasil, a respeito de regulamentação acerca da reprodução humana assisida
vigora apenas a Resolução 1.358/92, do Conselho Federal de Medicina, a qual contém
as únicas normas em respeito da reprodução humana assistida. Ocorre que, em verdade, a aludida Resolução apenas contém normas éticas dirigidas aqueles que realizam o
procedimento, referindo-se à regras e procedimentos a serem igualmente observadas.
Da leitura de tal resolução normativa do Conselho de Medicina resta disposto
alguns princípios gerais, usuários, disposição para as clínicas que realizam a técnica,
dentre outras questões mais, como o fato de assegurar o sigilo dos procedimentos.
Assim, importante destacar que a Resolução prevê, por exemplo, a necessidade do
consentimento informado nos casos de FIVET, a limitação do número de receptores
por doação, dispões sobre prazo máximo para o desenvolvimento de um embrião fora
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
335
do corpo, proíbe descarte de embriões, permite a seleção embrionária, este apenas no
sentido de evitar a trasmissão de doenças hereditárias, autoriza a doação temporária do
útero entre mulheres, ou gestação substituta, e permite a possibilidade da fertilização
in vitro em mulheres solteiras.
Todavia, tal resolução representa apenas uma orientação a ser seguida, não tendo
que se falar em qualquer efeito vinculativo ou sancionatório pela não observância de
suas orientações, nem ao menos estabelece diretrizes para regulamentar os efeitos provenientes da reprodução assistida. A meu sentir, a grande problemática do tema refere-se
a questão dos embriões excedentários e sua fecundação post mortem, haja vista que o
âmbito sucessório e de filiação em razão do genitor ou genitora pré-morto traduzem
grandes implicações no âmbito civil. Nesse diapasão, faz-se importante destacar que
tramitam no Brasil alguns Projetos de Lei no sentido de diminuir a lacuna legislativa
existente no ordenamento jurídico brasileiro, o qual passamos a observar.
Nesse diapasão, destaca-se que atualmente tramita no Senado o Projeto de Lei
n.º 54/02, de autoria do Deputado Luiz Moreira, que compõe-se de quatorze artigos
organizados em sete capítulos que tratam, dos princípios gerais, dos usuários e da técnica
de reprodução assistida, dos serviços que aplicam técnicas de reprodução assistida, da
doação de gametas ou pré-embriões, da criopreservação de gametas ou pré-embriões,
do diagnóstico e tratamento de pré-embriões e sobre a gestação de substituição. Propõe
ainda acerca da necessidade do consentimento do cônjuge ou companheiro, se a mulher
for casada ou viver em união estável, além de prever que a decisão sobre o destino dos
embriões cabe ao casal. Percebe-se deste contexto, que o aludido projeto de lei visa
transformar a Resolução do Conselho Federal de Medicina em lei.
Outra proposta de regulamentação estava prevista Projeto de Lei nº 90/99, de
autoria do Senador Lúcio Alcântara, o qual dispõe de 43 (quarenta e três) artigos, prevendo os procedimentos podem ser utilizados por mulheres casadas ou em união estável,
bem como pelas solteiras. Admite que os usuários possam permitir que seus gametas e
pré-embriões sejam utilizados em pesquisas, salvo nesses casos, a intervenção em gametas
ou embriões somente será permitida com fins terapêuticos ou diagnósticos. A doação
deverá ser gratuita e sigilosa. Além disso, a criança poderá ter acesso à identidade civil
do doador. Não obstante, a mais importante regulação a meu ver referenda que, no
caso de inseminação post mortem, não será reconhecida a paternidade.
Todavia, o aludido projeto já restou substituído Projeto de Lei nº 1.184/03, de
autoria do Senador Roberto Requião, o qual define normas para realização de inseminação artificial e fertilização “in vitro”, proibindo a gestação de substituição (barriga de
aluguel) e os experimentos de clonagem radical, dispõe que somente casais (casados
ou em união estável) podem ter acesso à técnica. Dentre as disposições do aludido
projeto, resta prevista que os usuários poderão permitir que seus gametas e pré-embriões
sejam utilizados em pesquisas, bem como proíbe também a criopreservação e o congelamento de embriões. Como outros projetos, permite a seleção terapêutica e a doação
temporária do útero entre mulheres com parentesco até o segundo grau. Destaca-se
ainda, que permite a possibilidade de o filho conhecer a identidade do genitor após a
maioridade, além de prever que o doador possa ser pai de apenas um beneficiário. Por
fim, possibilita a inseminação post mortem, prevendo que a filiação será reconhecida,
336
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
desde que o depositário dos gametas tenha autorizado em testamento a sua utilização
pela esposa ou companheira.
Nesse diapasão, faz-se mister trazer à baila o voto exarado pelo deputado Regis
de Oliveira, VTS 2 CCJ – Comissão de Constituição e Justiça no âmbito de tramitação
do Projeto de Lei Supracitado. Vejamos:
Dispõe o parágrafo 7º do art. 226: “Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e na paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar
recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou
privadas”.
O objetivo básico da lei é a regulamentação do uso de técnicas de
reprodução assistida “para implantação artificial de gametas ou embriões humanos fertilizados in vitro, no organismo de mulheres receptoras”. Disciplina o uso de gametas de forma responsável e apenas
mediante o livre consentimento das mulheres e na hipótese de constatada a infertilidade.
O projeto em tela tem o cuidado extremo de cuidar da livre manifestação da vontade, preservando a identidade de doadores e beneficiários, ressalvadas hipóteses que prevê.
Segundo voto proferido no curso da tramitação procedimental, as
técnicas de reprodução assistida já são conhecidas e utilizadas em boa
parte do mundo, constituindo-se na inserção do sêmen do marido no
útero, na vagina ou nas trompas de falópio da mulher. Nos casos de
esterilidade masculina, legítimo é falar-se em doação de sêmen para
reprodução humana. Tais técnicas já estão ao alcance de cientistas e
médicos brasileiros.
De seu turno, nada ficamos a dever, em todos os níveis do mundo,
em termos éticos. A bioética brasileira em nada se encontra atrás de
outros países.
O que busca fazer o projeto é colocar a ciência à disposição de
casais que não podem reproduzir, por qualquer razão ou motivo.
Preservando a vontade das pessoas e a liberdade na decisão de o
que fazer com sua intimidade, conecta tais pontos, possibilitando
colocar a ciência à disposição da felicidade das pessoas. Ainda
que na Constituição da República brasileira não exista dispositivo equivalente ao da Constituição norte-americana, na busca da
felicidade, na feliz expressão de Thomas Jefferson, em verdade é
um dos ingredientes do todo constitucional. Na medida em que
se preserva a dignidade da pessoa humana e tem como objetivo fundamental “promover o bem de todos” (inciso IV do art.
3º), legítimo se afigura inserir em tais conceitos a preservação e o
atendimento da felicidade.
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
337
[…] Dessa forma, a reprodução assistida, assim como qualquer outro
instrumento de planejamento familiar, deve ser fomentado pelo Estado, e não coibido. Diante do que a própria Constituição estabelece
quanto ao desenvolvimento científico e quanto ao planejamento familiar, não se pode proibir a procriação, sobretudo quando só é viável através das técnicas de reprodução assistida, pois são os avanços
técnico-científicos que garantirão a existência de uma família plena
e, portanto, digna.
Ao contrário, em vez de coibir, o Estado deve fomentar as mais diversas formas de planejamento familiar, sejam elas conceptivas ou contraconceptivas. O texto do artigo 226, § 7o, CF/88 é de clareza meridiana ao afirmar que cabe ao Estado “propiciar recursos educacionais
e científicos para o exercício” do planejamento familiar. Ademais,
nos termos da Constituição, cabe ao Estado promover e incentivar “o
desenvolvimento científico, a pesquisa e a capacitação tecnológica”
(art. 218, CF/88). Daí, não se pode negar a importância da participa98
ção do Estado no fomento da utilização de tais tecnologias.
Juntamente com o projeto de lei supracitado, tramitam alguns outros projetos
conjuntamente, como por exemplo o Projeto de Lei nº 4686/04, que visa acrescentar o
Art. 1567-A no Código Civil, visando assegurar o direito ao conhecimento da origem
genética do ser gerado a partir de reprodução assistida, disciplina a sucessão e o vínculo
parental, nas condições que menciona. Além desse, o Projeto de Lei nº 120/2003, que
dipõe sobre a investigação de paternidade de pessoa nascidas da Reprodução Humana
Assistida, bem como o Projeto de Lei nº 1135/03, que define norma para realização da
inseminação artificial, fertilização in vitro, e criopreservação de gametas e pré-embriões.
Observa-se que a Poder Legislativo, embora vislumbrando a necessidade da
edição de norma reguladora do procedimento da Reprodução Humana Assistida, caminha a passos lentos dentro do Processo Legislativo, enquanto a evolução tecnológica
acontece muito rapidamente e implica profundas alterações na sociedade que vivemos.
4.1 Do Direito Comparado
Nessa esteira de análise, tem-se como imprescindível a análise das normas
existentes no direito comparado, a fim de se observar as soluções encontradas por
outros países nesse tipo de procedimento de reprodução humana assistida, visando
referendar as mais interessantes soluções encontradas em outros países. Como se sabe,
a evolução da tecnologia e os avanços científicos proporcionaram a acessibilidade
global da procriação humana artificial. A FIVET, embora tenha surgido primeiramente nos Estados Unidos, se espalhou pelo globo, tendo surgido “de forma evidente
e provocadora, dali se espalhou pelo globo, atingindo países não industrializados ou
probres, gerando as mesmas dúvidas e perplexidades dos principais centro de origem,
99
ou de difusão das novas técnicas.”
338
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
De acordo com Juliana Frozel de Camargo pode-se referendar que:
A diversidade de postura nos mais variados países não deriva, pois,
de uma questão econômica, mas, e especialmente, das influências
decorrentes das tradições, dos usos e costumes e, certamente, das
religiões e ideologias aí dominantes. Com excecao destes elementos,
os problemas levantados pelas conquistas científicas colocam-se de
100
modo quase comparável.
Contrario sensu do que poder-se-ia imaginar, foi na Suécia que surgiu a primeira
legislação completa sobre inseminação artificial, datada de 1 de março de 1985, aonde
referendou normas específicas sobre procriação humana assistida, dando proteção legal
às crianças que forem fruto da inseminação homóloga, mesmo quando o casla estiver
101
em situação de concubinato.
Destaca-se que a inseminação artificial heteróloga surgiu nos anos 20 na Suécia,
na década de 20, embora quase não tenha tido grande utilização até a década de 80.
Em seu caso, restou disposto que apenas será considerado o genitor legal da criança
se tiver expressamente consentido anteriormente, não podendo, nessa hipótese,
contestar a paternidade. Inicialmente, da análise desse disposto, pode-se vislumbrar
a inseminação artificial como um contrato, aonde deve-se observar os ditames previstos no Código Civil a seu respeito, como o princípio da boa-fé objetiva e ainda, do
dito venire contra factum proprium, ou seja, veda-se comportamentos contraditórios
na diagnose contratual.
Na Suécia, a lei de inseminação artificial, datada de 1985, resta definido, dentre
outras hipóteses mais, condições para a realização da FIVET, assim como disposição
acerca de direito do filho proveninente desta técnica de ter acesso aos dados do doador tanto quando alcançar a maioridade. Conforme amplamente referendado nesse
trabalho, acredito que tal hipótese o sigilo do doador apenas poderia ser quebrado
na hipótese de descoberta de alguma doença genética, cuja vida dependesse de tais
informações.
Aduz-se que a legislação sueca, embora tenha considerado a inseminação artificial homóloga sem qualquer relevância jurídica a ser suscitada, como mera medida
para contornar a esrelidade do casal, proibiu, prontamente, a inseminação post mortem.
Ressalta-se que a legislaçào daquele país permitiu a utilização desta técnica em qualquer
tipo de união livre, sendo totalmente dispensável a existência de matrimônio entre o
casal. Todavia, na hipótese de inseminação heteróloga, deve-se observar:
Quanto à inseminação heteróloga, o novo texto legal colocou os pais
da criança em situação paralela àquela desfrutada pelos pais adotivos. Assim, a legislação sueca requer que o casal que idealizou a fecundação in vitro venha a adotar o bebê. O número de dodores de
esperma acessível para inseminação é limitado, como corre em outros países europeus, e a doação não é remunerada. Alguns médicos,
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
339
exigem que o doador seja casado e que tenha filhos próprios e sãos,
assim como exigem que sua esposa consinta com a doação. Ou seja,
a doação ocorre de um casa (fértil) a outro casal (estéril). A doação
é de casal para casal.
É necessário o consentimento escrito do marido,ou companheiro.
Assim, será ele o responsável legal, de forma irrevogável, pela criança
nascida a partir da inseminação. Este tipo de inseminação é proibida
em mulheres celibatárias ou que viviam uma relação lésbica.
A inseminação heteróloga somente pode ser realizada em hospitais públicos sob a reponsabilidade de médicos com especialização em ginecologia
e obstetrícia, evitando-se, por meio desta medida, o surgimento de bancos
102
de esperma com base comercial, como ocorre nos Estados Unidos.
A referida lei sueca de 1985, art. 6, só permite a entrada de material fertilizante
congelado no país com autorização do Conselho Superior de Seguridade Social. A
Suécia proíbe a inseminação post mortem e a Lei 1.140/80 também veda a possibilidade
de transexual ou homosexual pretender que a companheira obtenha filho por meio
103
dessas técnicas.
Conforme pode-se observar desde o surgimento da técnica da fertilização in vitro,
na Alemanha também passou-se a questionar acerca da necessidade da regulamentação
acerca do procedimento de reprodução humana assistida.
Após a realização de diversos relatórios acerca do tema, e o surgimento de Resolução do Conselho Federal, passa a vigorar em 1990, Lei de Proteção aos Embriões sob
o nº 745/1990, a qual inclui diversos dispositivos, consagrando a existência de algumas
figuras delitivas e infrações administrativas, bem como referenda diversos outros tópicos, dispondo sobre “usos inadequados de técnicas artificiais de reprodução humana e
manipulação de embriões, transferência arbitrária de embriões e a fecundação artificial
104
depois da morte, limites à atuação dos médicos e suas violações.”
No tocante à inseminação homóloga, existem algumas distinções em relaçào à
disposição sueca, a qual, não obstante ser necessária a prescrição médica para o procedimento, é imprescindível que haja Autorização por escrito do marido para a realização
desta. Referenda-se, que a inseminação post mortem é igualmente proibida. Nesse sentido,
inclusise, apenas será permitida a fecundação de número de óvulos necessários para
apenas uma inseminação, evitando assim a existência de embriões excedentários, sendo,
proibida a conservação destes, inclusive com a tipificação da conduta na seara penal.
No que diz respeito à inseminação heteróloga, predomina a ideia de que não
deve haver proibição, podendo ser autorizada em algumas hipóteses apenas, como o
tratamento para a esterelidade e, desde que haja pertubação duradoura da fecundidade
105
do marido e após o consentimento escrito deste, na presença de notário. Ressalta-se
que em ambas as hipóteses de inseminação artificial, homóloga ou heteróloga, somente
instituições aprovadas pelo Estado podem realizar o procedimento.
Ante a observância do princípio do direito à identidade e ascendência genética,
tem-se como obrigatória a consevação dos dados dos doadores, fato que possibilita o
106
conhecimento pela criança de seus pais genéticos.
340
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
Observa-se ainda o referendado por Juliana Frozel de Camargo:
Relativamente à paternidade, embora se tenha admitido, em dado
momento da evolução jurisprudência, a possibilidade de contestação
do marido em caso de inseminacao artificial heteróloga, a posição
atual é muito diversa. Em primeiro lugar, a tendência mais recente
entende que o consentimento do marido para a inseminação heteróloga deve ser sacramentado por meio de ato notarial. Em segundo
lugar, a maioria, se não a unanimidade da doutrina, entende que o
consentimento manifestado diante de notário gera, como consequência para o marido, a perda de seu direito contestar a legitimidade
107
da criança assim concebida.
Nesse sentido, no Direito Civil Brasileiro, diante da observância do princípio da
instrumentalidade das formas, tal previsão deveria passar a ter previsão legal para ser
legítima, haja vista que tal exigência apenas é possível se houver exceção prevista na lei.
Na Espanha, em 22 de novembro de 1988, foi votada a “Lei sobre técnicas de
reprodução assistida”- Lei 35/1988. Essa lei, embora contenha uma série de normas civis,
não é uma lei de caráter exclusivamente civil, pois contém, também, numerosas normas
de caráter administrativo e sancionador. De acordo com essa lei, restava disposto que
estas técnicas só poderiam realizar-se: a) quando há possibilidade de êxito e quando
não põem em risco grave a saúde da mulher e de sua possível descendência; b) e em
108
mulheres maiores e em bom estado de saúde psicofísico (art. 2).
Não obstante, a aludida lei dispunha que sendo a mulher casada seria necessário
o consentimento do marido, bem como veda a inseminação post mortem, estabelecendo
inclusive que em qualquer tentativa dessa modalidade de inseminação não há que se
falar no estabelecimento de qualquer tipo de filiação, salvo se tiver havido manifestação
expressa de vontadade em vida. Inclusive, a criopreservação é limitada a cinco anos,
mas, após dois anos ficam à disposição dos bancos de gametas.
Destaca-se, no entanto, que houve alteração na legislação espanhola, através
da Lei 45/2003, que entrou em vigor em 2005, a qual passou a permitir a doação de
embriões excedentes para pesquisas científicas, desde que haja o consentimento dos
genitores (Disposición final primera).
Nos Estados Unidos, tendo em vista a ausência de lei específica sobre as técnicas
de reprodução humana assistida, o valor constitucional do Right of Privacy passou a ser
evocado frente ao juizo para fazer reconhecer – nos caos de maternidade de substituição – a procriação artificial como um elemento do direito de procriar, protegida para os
109
casais casados pela Corte Suprema dos Estados Unidos. Nesse contexto:
A American Medical Association e a American Fertilicity Society recomendam que estes métodos só sejam empregados em benefício dos
casais estéreis. Quanto às condições de realização das técnicas, o
princípio fundamental do direito americano continua sendo o consentimento inequivoco do casal.
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
341
Em se tratando de fecundação in vitro, estima-se que as 25 leis limitando a pesquisa sobre o embrião podem ser interpretadas como
incluindo a totalidade ou parte das técnicas de fecundação in vitro.
A legislação de certos Estados impõe, ainda, a necessidade de uma
autorização governamental para adquirir os equipamentos necessários à fertilização in vitro. Um procedimento de aprovação é igualmente aplicado aos bancos de esperma, em um número limitado de
110
Estados.
Na ordenação americana, algumas questões encontram diferentes respaldos.
De acordo com o disposto em alguns Estados, não é permitido congelamento de embriões além do tempo do parto. No mesmo sentido da legislação dos demais países, na
hipótese de inseminação heteróloga, em grande maioria na legislação dos Estados resta
disposto que tendo o marido consentido pela realização da inseminação não pode negar
a paternidade. Veja-se ainda:
Em 1986, a American Fertilicity Society pronunciou-se favoravelmente sobre o princípio da pesquisa em embriões. De acordo com
Westfall, no sistema americano verifica-se que disputas envolvendo a
disposição de pré-embriões produzidos por fertilização in vitro devem
ser resolvidas, primeiro, levando-se em consideração as preferências
dos progenitores. Mas se o desejo destes não puder ser determinado,
ou ainda, se houver disputa entre o casal, então a opnião de cada um
deverá ser analisada e, geralmente, o desejo da paternidade que quer
evitar a procriação deve prevalecer. Se nenhuma outra alternativa
razoável existe, então o argumento em favor de usar os pré-embriões
para realizar a gravidez pode ser considerado. Porém, se a parte que
busca o controle sobre os embriões tem a intenção meramente de
doá-los para um outro casal, daí a objeção da outra parte, obviamente, prevalecerá.
Mas não há uma regra geral contemplata de uma criação automática
111
do veto, considerações caso a caso devem ser feitas.
Na França, em 1994, o Conselho Constitucional foi chamado a apreciar a
constitucionalidade da “Loi relative au respect du corps humain” e da “Loi relative
au don et à l’utilisation des éléments et produits du corps humain, à l’assistance
médicale à la procréation et au diagnostic prénatal”, e considerou ambas compatíveis
112
com a Constituição do país.
Nesse diapasão, observa-se que a situação na França é mais similar a existente
no Brasil, aonde já houveram diversas propostas legislativas apresentadas, mas sem a
formação de uma legislação específica. Esta indefinição legislativa tem muito a ver com
o fato de na França possuir um comitê Consultor Nacional de Ética, o qual regulamenta
os casos de inseminação artificial e de manipulação genética. Observa-se que no ordenamento francês alguns princípios norteadores do procedimento, como gratuidade
342
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
da doação, anonimato dos doadores, exigência prévia de paternidade. Nesse diapasão,
113
veja-se ainda:
Na França, realizada inter vivos, a inseminação artificial pelo marido
ou pelo concubino não cria problema algum, mesmo no plano ético;
a criança está juridicialmente vinculada a seu pai e à sua mãe. Realizada post mortem, quando a mulher se faz inseminar após a morte de
seu marido, ou de seu concubino, graças à coleta previamente feita,
o processo suscita uma dificuldade dupla.
De um lado, a criança nascida depois dos 300 dias da morte de seu
genitor é considerada como concebida após a morte daquele (conforme art. 315 do Code Civil). Em outras palavras, é filho exclusivo
da mãe.
De outro, o CECOS, que realizou a coleta e o depósito do esperma,
pode se recusar a devolver os capilares de esperma congelado a qualquer pessoa, mesmo que o defunto, em vida, tenha autorizado a sua
entrega. A inseminação post mortem é, pois, proibida.
Tratando-se porém de inseminação artificial heteróloga, duas situações diferentes podem ocorrer: pode-se falar de inseminação remérdio (para a esterelidade do casal) ou de inseminação de conveniência
( de uma mulher só, ou de homosexuais).
No primeiro caso, o direito francês permite a negatória de paternidade ao marido da mãe da criança, ou a contestação de seu reconhecimento ao concubino que consentiu, ou mesmo quis a inseminação.
Este consentimento não tem valor jurídico algum, pois não é permitido, no direito francês, renunciar, por antecipação, a uma ação
relativa à filiação.
No segundo caso, a ética dos CECOS conduz a recusar a inseminação, uma vez que estes estabelecimentos entenderam, como objetivo,
remediar a esterelidade do casal.
Quanto aos embriões excedentes ( e não utilizados), a idéia dominante na França continua sendo a de que cabe à equipe médica decidir o que fazer desses embriões.
Na Inglaterra o tema restou regulamentado através do Human Fertilization and
Embryology Act 1990(Chapter 37), aonde se estabeleceu alguns restrições no tocante a
114
realização do procedimento da reprodução humana assisitida.
Na observância da disposição supra, observa-se que na Inglaterra adota a
mesma posição de alguns outros países, como Espanha, ao permitir a inseminação
post mortem, mas esta apenas produz efeitos na órbita civil se previamente referendado pelo morto.
Em Portugal, primeiramente, restou promulgado o Decreto-Lei nº 319/86, embora apenas com três artigos regula a atividade referente à procriação artificial humana,
embora tempos depois, tenha havido projetos no intuito de proibir a inseminação e a
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
343
fertilização in vitro, post mortem com esperma, determinando ainda que, se da violação
desta proibição, resultar gravidez da mulher inseminada, a criança que vier a nascer é
115
havida como filha do falecido.
O documento estabelece que os procedimentos realizados por fertilização assistida
sejam praticados sob responsabilidade direta deum médico ligado a organismo público
ou privado, sob a autorização do Ministério da Saúde. Será dispensada a autorização
quando a fertilização for da modalidade homóloga.
No direito constitucional português: “Art. 36, n 1 da CRP, consagra o direito
fundamental de constituir família, o que significa o direito fundamental de procriar.
Já o Código Civil português, referenda, que o filho nascido de fecundação heteróloga
será do casal encomedante, bem como estabelece que na hipótese de a maternidade
por sub-rogação, privilegia-se a mãe que teve gravidez e o parto. Além disso, resta
disposto que depois de os cônjuges terem consentido numa inseminação com esperma
de doador, não poderão impugnar a paternidade do filho que foi atribuída, por lei, ao
marido, embora norma de direito probatório, aceita os progressos da ciência com relevo
forense, abrindo o sistema à verdade científica e aos meios de prova mais modernos.
Por sua vez, na Argentina, de acordo com o resultado da XVI Jornada Nacional
de Direito Civil da Argentina, setembro de 1997 – Tema: “Fecundação Assistida e
Manipulação Genética – a maioria dos argentinos acredita que a existência das pessoas começa desde o momento da concepção, ou seja, dentro ou fora do seio materno.
A pessoa por nascer goza dos mesmos direitos que a pessoa física, reconhecend-se a
116
qualidade de ser humano ao óvulo fecundado.
De acordo com os doutrinadores argentinos, a criopreservação dos embriões
humanos representa um ato violador do direito à vida. Ressalta-se que, como em
outro países, “também na Argentina tem-se preocupado com o avanço da fecundação
assistida e sua falta de legislação. Preocupam-se em evitar excessos que possam levar à
117
violação e manipulações genéticas por parte dos profissionais intervenientes.” Nesse
diapasão, vale-se destacar
Os argentinos reconhecem o avanço e a importância destas técnicas e acreditam que estas podem evitar muitos males, como, por
exemplo, enfermidades de caráter congênitos. Em contrapartida,
para ele não é menos certo que, para evitar esses males, recorra-se
a uma manipulação que possa resultar em outro dano ao embrião,
o que seria a violação dos direitos humanos da pessoa que está por
nascer, e sobre este aspecto questionam até que ponto a ciência
pode intervir. A fecundação homóloga, como na maioria dos países, não apresenta maiores problemas, já a heteróloga é assunto de
muitas controvérsias. Há duas correntes sobre a fecundação heteróloga: uma que proíbe e outra que a admire. Para os que defendem
a proibição desta técnica, o principal fundamento é que se trata de
uma situação potencialmente conflitiva, porque introduz um elemento genético estranho ao casal. Cria uma situação de desigualdade entre o casal porque, embora a mulher esteja ligada ao filho
344
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
pelo parto, o homem não está. Põe em crise a figura do pai e, com
relação ao doador, provoca uma dissociação entre a procriação e a
responsabilidade. Portanto, para esta corrente, são métodos eticamente inaceitáveis porque contrariam a dignidade do matrimônio.
Já para que os que aceitam a regulamentação desta técnica, o principal fundamento é que a proibição é basicamente injusta, ineficaz,
cega à realidade internacional, contraria os intereses dos filho e
é violadora do direito à procriação. Para estes, a proibição consagra uma légitima descriminação entre mulheres férteis e inferteis;
fomenta a clandestinidade; desconhece importantes avanços científicos; desconhece a realizadade, já que as práticas de fecundação
medicamente assistida com material genético de terceiros doadores
118
é praticada na Argentina há mais de 25 anos.
Assim, na análise das legislações existentes no direito comparado pode-se observar que foram adotadas soluções comuns nos diversos ordenamentos, as quais podem
permitir ao legislador brasileiro uma análise sobre a realidade brasileira no tocante ao
procedimento da reprodução humana assistida. Veja-se
A fertilização com sêmen do marido ou companheiro é aceita em praticamente todas as legislações existentes. Relativamente à fertilização
com sêmen de doador, a grande maioria dos países estabelece expressamente a necessidade da autorização do marido, após o que a criança será registrada como filha do casal, não recaindo, sobre o doador,
qualquer direito ou obrigação. O anonimato dos doadores é de entendimento não unânime, havendo países que votam pelo anonimato,
como França, e outros, como Inglaterra e Espanha, que sugerem que
os flhos, após os 18 anos, tenha o direito de saber a própria origem. A
maioria dos países, com referência aos procedimentos dos centro médicos, salientam que se faz necessário o controle da atuação, por meio
de comissão específica, criada após a licença do órgão responsável pela
saúde pública. A grande divergência legislativa está na fecundação heteróloga, bem como na possibilidade de utilização da chamada mãe de
119
substituição e fecundação post mortem.
Colhe-se ainda o referendado pelo Mininistro do Supremo Tribunal Federal,
Joaquim Barbosa, no voto proferido na ADI nº 3510, senão vejamos:
Enfim, esses são apenas alguns exemplos, colhidos do direito comparado, que demonstram a preocupação dos países europeus com a
pesquisa envolvendo célulastronco embrionárias. Vê-se que as legislações estrangeirastêm ao menos três pontos em comum: o primeiro,
referente à obrigatoriedade de que os embriões sejam utilizados em
pesquisas que visem ao bem-comum; o segundo, que sejam utilizados
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
345
apenas embriões excedentes dos processos de fertilização in vitro, o
que, em outras palavras, significa a proibição de que sejam criados
embriões para este fim; e, por último, que haja o consentimento expresso dos genitores. Nessa ordem de idéias, parece-me que a legislação brasileira segue os critérios mínimos que têm sido exigidos por
outros países que permitem a pesquisa envolvendo células-tronco
embrionárias. Ademais, creio que a existência de autorização expressa para pesquisa em diversos países no mundo certamente nos levará,
mais cedo ou mais tarde, a outro dilema ético: se o Brasil proibir
a pesquisa com essas células-tronco poderemos futuramente admitir
que os tratamentos derivados de pesquisas feitas em outros países
sejam aplicados no país? Em outras palavras, não aceitaremos que
os embriões brasileiros, dentro dos limites objetivos fixados na lei de
biossegurança, sejam objeto de pesquisa no país por ofensa ao direito
à vida, mas aceitaremos, no futuro, os tratamentos que podem beneficiar milhares de pessoas decorrentes de pesquisas feitas com embriões de outras nacionalidades? Por fim, julgo importante fazer uma
última observação lateral. A pesquisa envolvendo seres humanos,
sejam eles embriões, fetos, bebês, crianças, adultos ou idosos, deve
ser pautada pelos mais rigorosos critérios, tanto no momento em que
a pesquisa é autorizada como durante o desenvolvimento dos trabalhos. No direito comparado, o papel de fiscalização das pesquisas
com seres humanos é desempenhado com qualidade pelos Comitês
ou Conselhos de Bioética, órgãos multidisciplinares, compostos por
diversos integrantes da sociedade, cuja missão é avaliar, autorizar e
fiscalizar as pesquisas envolvendo seres humanos. Sem um Conselho ou Comitê sério e responsável, comprometido com a preservação da sociedade e o desenvolvimento da ciência, corre-se o risco
da banalização da pesquisa envolvendo seres humanos. Vivemos
um momento histórico da mais ampla significação, e não digo isso
apenas em relação a este julgamento. De fato, a evolução da humanidade, em seus múltiplos aspectos, requer respostas éticas diferentes dos modelos outrora construídos sobre teorias filosóficas,
teológicas e científicas fundamentadas numa visão de mundo (e
de ser humano) agora aparentemente ultrapassada. Ultrapassada
não porque eram teorias ruins, mas porque a sociedade evoluiu e
surgiram questionamentos para os quais elas não se aplicam a contento. Assim, o melhor caminho para a proteção do direito à vida,
em seus diversos e diferentes graus, é uma legislação consciente
e a existência de órgãos dotados de competência técnica e normativa para implementá-la, fiscalizando efetivamente a pesquisa
científica no país. A proibição tout court da pesquisa, no presente
caso, significa fechar os olhos para o desenvolvimento científico
e para os eventuais benefícios que dele podem advir, bem como
346
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
significa dar uma resposta ética unilateral para uma problemática
que envolve tantas questões éticas e tão diversas áreas do saber e
da sociedade.
CONCLUSÃO
A técnica da Fecundação in vitro, aqui debatida, visa obter uma maior possibilidade de sucesso da gravidez, vez que promove a fecundação de inúmeros embriões,
sendo implantados o número máximo de quatro, minimizando assim, o risco de gravidez
múltipla. Desse modo, os embriões excedentes são criopreservados para que possam ser
posteriormente utilizados. Ocorre que, as implicações trazidas pelo procedimento da
fecundação in vitro e pela criopreservação geram diversos questionamentos no âmbito
legal, tal como os direitos sucessórios desses embriões.
A Reprodução Humana Assistida da Fertilização in vitro pode ocorrer em duas
modalidades, a fecundação homóloga e a fecundação heteróloga, de modo que, a primeira
corresponde aquela situação em que são utilizados os matérias genéticos do próprio
casal que se submete ao tratamento, ao passo que a segunda hipótese é aquela em que
o material genético provém de terceiro, seja da mãe, do pai, ou de ambos.
Na fecundação homóloga, é inegável a filiação existente entre os pais e o menor,
já que o este possui os traços genéticos de ambos os pais. Já na modalidade heteróloga,
se estiverem os pacientes casados ou viverem em união estável, é imprescindível a
autorização expressa do marido, tornando-se a paternidade juris tantum, ou seja, a
autorização do marido é crucial neste caso. Lado outro, se não houver matrimônio
ou união estável, jamais poderá ser atribuída a paternidade ao doador do material
genético.
Desse modo, a socioafetividade, com a fecundação heteróloga, se torna cada vez
mais um fator determinante para caracterizar a filiação, tornando-se a consanguinidade,
nessa circunstância, fator secundário na estrutura familiar, ou seja, o pai socioafetivo
se sobrepuja ao pai biológico. Não obstante, à luz do disposto no art. 227 da Constituição Federal, é vedada a discriminação entre os filhos, sendo esses iguais perante a lei
independente de sua origem.
Além disso, a fertilização in vitro na modalidade heteróloga gera outro importante
questionamento, qual seja se o filho havido por esse procedimento faz jus ao direito
personalíssimo de buscar sua origem genética, na busca de averiguar os possíveis problemas de saúde que poderiam ter sidos transmitidos. Nessa circunstância, de um lado
há o direito à vida, e do outro o direito de anonimato do doador.
Em que pese as diversas possibilidades trazidas pelas técnicas de reprodução
assistida, aquela que parece causar maior problemática é a fecundação post mortem.
Referendada no art. 1.597, III, do Código Civil, consiste na possibilidade de
fecundar a cônjuge supérstite com o embrião criopreservado do de cujus, ou no caso
de morte da mulher, utilizar o homem para fecundá-lo em outra mulher, que será caracterizada como substitutiva do útero. À luz do disposto no artigo supracitado, há a
presunção de paternidade se ocorrer a fecundação homóloga post mortem.
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
347
O maior de todos esses questionamentos reside na questão dos direitos sucessórios
do filho havido pela fecundação post mortem.
Conforme disposição do art. 1.798 do Código Civil, estão legitimadas a suceder
as pessoas nascidas ou já concebidas no momento da abertura da sucessão. Determinar
se os embriões criopreservados já são concebidos, é ponto vital para se chegar a um
entendimento acerca do tema.
A declaração de constitucionalidade do art. 5º da Lei de Biossegurança deu
um grande passo para firmar que o embrião in vitro não é ser dotado de vida ainda, de
modo a fazer jus ou não aos direitos sucessórios inerentes aos herdeiros. É importante
salientar que, conforme disposição da Resolução n° 1.358/92 do Conselho Federal de
Medicina, os pacientes devem deixar expresso o destino dos embriões criopreservados
no caso de divórcio, separação judicial, falecimento. Ocorre que, essa resolução não
possui força normativa, constituindo-se como meras normas de conduta.
Sendo assim, se torna mais uma vez imprescindível invocar os princípios basilares do Direito, como o melhor interesse do menor, ou seja, deve-se avaliar se é melhor
que seja concebida criança sem pai ou mãe, ou que seja essa concebida. Não obstante,
deve-se levar em conta os princípios da bioética, como da autonomia, beneficência e,
para alguns, da não-maleficência.
Dessa feita, a fim de conceder aos herdeiros uma maior segurança sobre a
partilha da legítima, a fixação de prazo legal para que seja concebido filho havido por
fecundação post mortem, não podendo a utilização de esse procedimento ficar ao alvedrio do supérstite. O melhor entendimento parece ser estender os direitos sucessórios
ao filho concebido por fecundação post mortem, se havidos nos prazos estabelecidos no
art. 1.597 do Código Civil.
É evidente que, frente ao rápido avanço das ciências, o ordenamento jurídico
brasileiro carece de legislação específica que traga a terreno remansoso toda a problemática trazida pelas técnicas de Reprodução Humana Assistida, já que a legislação
pátria existente não é capaz de responder a tais lacunas.
Ao poder legiferante cabe ouvir aos anseios da sociedade, com o intuito de
jurisdicizar fato que a ciência pôs como corriqueiro no dia a dia, vez que pelo Direito é
possível a pacificação de interesses em busca do equilíbrio das relações sociais e atingimento de sua vontade. Por seu turno, os operadores do Direito devem ser à sociedade
para que o melhor entendimento prevaleça para cada caso concreto que venha à baila,
vez que o conceito de família, como um dia conhecido, modificou-se.
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GLOSSÁRIO
Crescimento Folicular: a primeira metade do ciclo menstrual, durante o qual o folículo
dominante secreta grande quantidade de estrógeno (hormônio feminino responsável
pelo espessamento endometrial durante a primeira metade do ciclo menstrual).
Criopreservação: conservação em baixa temperatura.
Fecundação Homóloga: consiste na reprodução assistida realizada por meio da doação
ou recepção de material genético de casais que buscam uma solução para seus
problemas de fertilidade ou de sexualidade, ou seja, os gametas pertencem ao
próprio casal solicitante.
Fertilização in vitro (FIVET): um método de reprodução assistida que envolve aspiração
de óvulos dos ovários, união com sêmen em uma placa de laboratório. Os óvulos, se
fertilizados, resultarão em pré-embriões que serão transferidos para o útero da mulher.
Gametas: célula sexual, masculina ou feminina.
Laparoscopia: é um procedimento cirúrgico minimamente invasivo realizado sob efeito
de anestesia. Há casos que necessita o acompanhamento de um médico anestesista,
utilizada para diagnosticar alterações na superfície dos órgãos ginecológicos.
350
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
Nidação: implatação do óvulo na mucosa uterina.
Oócito: gameta feminino que ainda não atingiu a maturidade.
Ovócitos: citoplasma de células femininas de caráter embrionário.
Sobrenadante: que fica por cima de outra solução.
Notas
1
Advogado formado pelo Centro Universitário de Brasília-CEUB, 2008. Pós-Graduado pela Escola de
Magistratura do Distrito Federal, 2009/2010. [email protected]
Apud OLIVEIRA, Deborah C. Alvarez de. Reprodução assistida: até onde podemos chegar? – Compreendendo a ética e a lei. São Paulo: Gaia, 2000, p. 11 In CAMARGO, Juliana Frozel de. Reprodução
Humana – Ética e Direito. São Paulo: Edicamp, 2003, p. 22.
3
Apud BOLZAN, Alejandro. Reprodução assistida e dignidade da pessoa humana. São Paulo. Paulinas,
1998, p. 33-37. In CAMARGO, Juliana Frozel de. Reprodução Humana – Ética e Direito. São Paulo:
Edicamp, 2003, p. 22.
4
DINIZ, Maria Helena. O estado atual do biodireito. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 489.
5
SAUWEN, Regina Fiúza e HRYNIEWICZ, Severo. O direito in vitro: da bioética ao biodireito. 2. ed.
Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2000, p. 89.
6
CAMARGO, Juliana Frozel de. Reprodução humana – ética e direito. São Paulo: Edicamp, 2003, p. 16.
7
LEITE, Eduardo de Oliveira. Procriações artificiais e o direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995, p. 26.
8
PASSINI, Leo e BARCHIFONTAINE, Christian de Paul de. Problemas atuais de bioética. São Paulo:
Centro Universitário São Camilo: Loyola, 2005, p. 295.
9
Apud BOLZAN, Alejandro. Reprodução assistida e dignidade da pessoa humana. São Paulo, p. 7 e 8
In CAMARGO, Juliana Frozel de. Reprodução Humana – Ética e Direito. São Paulo: Edicamp, 2003, p.
25.
10
VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito de família. São Paulo: Atlas, 2007, p. 221.
11
Apud SCARPARO, Mônica Sartori. Fertilização assistida: uma questão aberta: aspectos científicos e
legais. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991, p. 7 In CAMARGO, Juliana Frozel de. Reprodução
Humana – Ética e Direito. São Paulo: Edicamp, 2003, p. 24.
12
CAMARGO, Juliana Frozel de. Reprodução humana – ética e direito, São Paulo: Edicamp, 2003, p. 25.
13
DINIZ, Maria Helena. O estado atual do biodireito. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 489.
14
Apud LAMADRID, Miguel Angel Soto. Biogenética, filiación y delito. Buenos Aires: Astrea de Alfredo
y Ricardo Depalma, 1990, p.33 In CAMARGO, Juliana Frozel de. Reprodução Humana – Ética e Direito.
São Paulo: Edicamp, 2003, p. 29.
15
DINIZ, Maria Helena. O estado atual do biodireito. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 532 – 533.
16
VASCONCELOS, Cristiane Beuren. A proteção jurídica do ser humano in vitro na era da biotecnologia. São Paulo: Atlas, 2006, p. 22.
17
Apud BOLZAN, Alejandro. Reprodução assistida e dignidade da pessoa humana. São Paulo, p. 59. In
CAMARGO, Juliana Frozel de; Reprodução Humana – Ética e Direito. São Paulo: Edicamp, 2003, p. 48.
18
Apud BOLZAN, Alejandro. Reprodução assistida e dignidade da pessoa humana. São Paulo, p. 59. In
CAMARGO, Juliana Frozel de. Reprodução Humana – Ética e Direito. São Paulo: Edicamp, 2003, p. 49.
19
CAMARGO, Juliana Frozel de. Reprodução humana – ética e direito. São Paulo: Edicamp, 2003, p. 57.
20
CAMARGO, Juliana Frozel de. Reprodução humana – ética e direito. São Paulo: Edicamp, 2003, p. 30
21
VASCONCELOS, Cristiane Beuren. A proteção jurídica do ser humano in vitro na era da biotecnologia. São Paulo: Atlas, 2006, p. 26.
22
DINIZ, Maria Helena. O estado atual do biodireito. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 539.
23
VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito de família. São Paulo: Atlas, 2007, p. 222.
24
SILVA, Patrícia Leite Pereira da. A busca de uma solução ético-jurídica para a destinação dos embriões
excedentários In Revista da Fundação Escola Superior do Ministério Público do Distrito Federal e
Territórios, v. 14, dez/2006, p.287
25
VASCONCELOS, Cristiane Beuren. A proteção jurídica do ser humano in vitro na era da biotecnologia. São Paulo: Atlas, 2006, p. 27
26
BARBOZA, Heloisa Helena. Bioética X biodireito: insuficiência dos conceitos jurídicos In BARBOZA,
Heloisa Helena. BARBBARRETTO, Vicente de Paulo. Temas de Biodireito e Bioética. Rio de Janeiro:
Renovar, 2001, p. 2.
2
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
351
27
AGUIAR, Roberto A. R. de. Bioética e direito: saberes que se interpenetram In Revista Humanidades:
Bioética, vol. 9, n° 4, out/dez.. Universidade de Brasília, 1991, p. 403.
DINIZ, Geilza Fátima Cavalcanti. Aspectos jurídicos da clonagem reprodutiva de seres humanos.
Cuiabá: Juará, 2008, p. 79.
29
CAMARGO, Juliana Frozel de. Reprodução humana – ética e direito. São Paulo: Edicamp, 2003, p.
66.
30
DINIZ, Geilza Fátima Cavalcanti. Aspectos jurídicos da clonagem reprodutiva de seres humanos.
Cuiabá: Juará, 2008, p. 83
31
Disponível em: <http:// pt.wikipedia.org>. Acesso em 17 ago. 08.
32
VASCONCELOS, Cristiane Beuren. A proteção jurídica do ser humano in vitro na era da biotecnologia. São Paulo: Atlas, 2006, p. 139.
33
GARCIA, Maria. Limites da ciência: a dignidade da pessoa humana: a ética da responsabilidade. São
Paulo: Revistas dos Tribunais, 2004, p. 157.
34
DINIZ, Maria Helena. O estado atual do biodireito. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 15.
35
DINIZ, Maria Helena. O estado atual do biodireito. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 20.
36
ALVES, Cristiane Avancini. Embrião humano: proposição de um estatuto jurídico no direito privado
brasileiro In NICOLAU JÚNIOR, Mauro (coord.). Novos Direitos. Curitiba: Juruá, 2007, p. 120.
37
SILVA, Patrícia Leite Pereira da. A busca de uma solução ético-jurídica para a destinação dos embriões
excedentários In Revista da Fundação Escola Superior do Ministério Público do Distrito Federal e
Territórios, v. 14, dez/2006, p.264.
38
Disponível em <www.onu-brasil.org.br/documentos_direitoshumanos.php>. Acesso em 27 abr. 08.
39
FABRIZ, Daury César. Bioética e direitos fundamentais. Belo Horizonte: Mandamentos, 2003, p. 238
– 239.
40
Ibidem, p. 237.
41
Ibidem, p. 240.
42
FABRIZ, Daury César. Bioética e direitos fundamentais. Belo Horizonte: Mandamentos, 2003, p. 256.
43
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros, 1997, p. 515.
44
DINIZ, Geilza Fátima Cavalcanti. Aspectos jurídicos da clonagem reprodutiva de seres humanos.
Cuiabá: Juará, 2008, p. 43
45
LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 670.
46
DINIZ, Geilza Fátima Cavalcanti. Aspectos jurídicos da clonagem reprodutiva de seres humanos.
Cuiabá: Juará, 2008, p. 53
47
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros, 1997, p. 516
48
Disponível em: <http:// pt.wikipedia.org>. Acesso em 20 de dez. 2010
49
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros, 1997, p. 518
50
DINIZ, Geilza Fátima Cavalcanti. Aspectos jurídicos da clonagem reprodutiva de seres humanos.
Cuiabá: Juará, 2008, p. 55
51
SAMPAIO, Marília de Ávila e Silva. Aplicação dos Direitos Fundamentais nas Relações entre os Particulares e a Boa-Fé Objetiva. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 35
52
LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 670.
53
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros, 1997, p. 525
54
DINIZ, Geilza Fátima Cavalcanti. Aspectos jurídicos da clonagem reprodutiva de seres humanos.
Cuiabá: Juará, 2008, p. 63
55
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros, 1997, p. 525
56
DINIZ, Geilza Fátima Cavalcanti. Aspectos jurídicos da clonagem reprodutiva de seres humanos.
Cuiabá: Juará, 2008, p. 69
57
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros, 1997, p. 526
58
DINIZ, Maria Helena. O estado atual do biodireito. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 23.
59
Ibidem, p. 25.
60
FABRIZ, Daury César. Bioética e direitos fundamentais. Belo Horizonte: Mandamentos, 2003, p.
273.
61
FRANÇA, Genival Veloso de. Intervenções fetais – uma visão bioética In BARBOZA, Heloisa Helena.
MEIRELLES, Jussara M. L. de. BARRETO, Vicente de Paulo Barreto (coord.). Novos Temas de Biodireito
e Bioética. Rio de Janeiro: São Paulo: Renovar, 2003, p. 28.
62
SILVA, Patrícia Leite Pereira da. A busca de uma solução ético-jurídica para a destinação dos embriões
excedentários In Revista da Fundação Escola Superior do Ministério Público do Distrito Federal e
Territórios, v. 14, dez/2006, p. 260.
63
SEMIÃO, Sérgio Abdalla. Os direitos do nascituro. Belo Horizonte: Del Rey, 2000, p. 40.
28
352
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
64
SILVA, Patrícia Leite Pereira da. A busca de uma solução ético-jurídica para a destinação dos embriões
excedentários In Revista da Fundação Escola Superior do Ministério Público do Distrito Federal e
Territórios, v. 14, dez/2006, p. 270.
65
FRANÇA, Genival Veloso de. Intervenções fetais – uma visão bioética In BARBOZA, Heloisa Helena.
MEIRELLES, Jussara M. L. de. BARRETO, Vicente de Paulo (coord.). Novos Temas de Biodireito e
Bioética. Rio de Janeiro, São Paulo: Renovar, 2003, p. 29.
66
SEMIÃO, Sérgio Abdalla. Os direitos do nascituro. Belo Horizonte: Del Rey, 2000, p. 206 – 208.
67
Ibidem, p. 209.
68
FABRIZ, Daury César. Bioética e direitos fundamentais. Belo Horizonte:Mandamentos, 2003, p. 276.
69
DINIZ, Maria Helena. O estado atual do biodireito. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 17.
70
FABRIZ, Daury César. Bioética e direitos fundamentais. Belo Horizonte: Mandamentos, 2003, p. 281.
71
VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito de família. São Paulo: Atlas, 2007, p. 15.
72
SEREJO, Lourival. Direito constitucional da família. Belo Horizonte: Del Rey, 2004, p. 70.
73
FARIAS, Cristiano Chaves de. Direito constitucional à família (ou famílias sociológicas versus famílias
reconhecidas pelo direito: um bosquejo para uma aproximação conceitual à luz da legalidade constitucional)
In Temas Atuais de Direito e Processo de Família. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, p.31.
74
ALVES, Cristiane Avancini. Embrião humano: proposição de um estatuto jurídico no direito privado
brasileiro In NICOLAU JÚNIOR, Mauro (coord.). Novos Direitos. Curitiba: Juruá, 2007, p. 120.
75
ALVES, Cristiane Avancini. Embrião humano: proposição de um estatuto jurídico no direito privado
brasileiro In NICOLAU JÚNIOR, Mauro (coord.). Novos Direitos. Curitiba: Juruá, 2007, p. 121.
76
CAMARGO, Juliana Frozel de. Reprodução humana – ética e direito. São Paulo: Edicamp, 2003, p.
135.
77
LÔBO, Paulo Luiz Netto. Direito ao estado de filiação e direito à origem genética: uma distinção
necessária In Temas Atuais de Direito e Processo de Família. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, p. 325.
78
Ibidem, p. 327.
79
LÔBO, Paulo Luiz Netto. Direito ao estado de filiação e direito à origem genética: uma distinção
necessária In Temas Atuais de Direito e Processo de Família. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, p. 342.
80
ALVES, Cristiane Avancini. Embrião humano: proposição de um estatuto jurídico no direito privado
brasileiro In NICOLAU JÚNIOR, Mauro (coord.). Novos Direitos. Curitiba: Juruá, 2007, p. 89.
81
BOTTEGA, Clarissa. Reprodução humana medicamente assistida e o direito à origem genética In Revista
Jurídica da Universidade de Cuiabá, Vol. 8, n° 2, Cuiabá, EdUNIC, 2006, p. 77.
82
BOTTEGA, Clarissa. Reprodução Humana Medicamente Assistida e o Direito à Origem Genética In
Revista Jurídica da Universidade de Cuiabá, Vol. 8, n° 2, Cuiabá, EdUNIC, 2006, p. 81 – 83.
83
Ibidem, p. 83.
84
BOTTEGA, Clarissa. Reprodução Humana Medicamente Assistida e o Direito à Origem Genética In
Revista Jurídica da Universidade de Cuiabá, Vol. 8, n° 2, Cuiabá, EdUNIC, 2006, p. 89.
85
FARIAS, Cristiano Chaves de. Direito constitucional à família (ou famílias sociológicas versus famílias
reconhecidas pelo direito: um bosquejo para uma aproximação conceitual à luz da legalidade constitucional)
In Temas Atuais de Direito e Processo de Família. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, p. 22
86
FARIAS, Cristiano Chaves de. Direito constitucional à família (ou famílias sociológicas versus famílias
reconhecidas pelo direito: um bosquejo para uma aproximação conceitual à luz da legalidade constitucional)
In Temas Atuais de Direito e Processo de Família. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, p. 21.
87
PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Princípios fundamentais norteadores para o direito de família. Belo
Horizonte: Del Rey, p. 137.
88
LÔBO, Paulo Luiz Netto. Direito ao estado de filiação e direito à origem genética: uma distinção
necessária In Temas Atuais de Direito e Processo de Família. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, p. 335.
89
CAMARGO, Juliana Frozel de. Reprodução humana – ética e direito. São Paulo: Edicamp, 2003, p.
210.
90
FACHIN, Luiz Edson. Estabelecimento da filiação e paternidade presumida. Porto Alegre: Sergio
Antonio Fabris, 1992, p. 150 – 156.
91
CAMARGO, Juliana Frozel de. Reprodução humana – ética e direito. São Paulo: Edicamp, 2003, p.
219.
92
VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito de família. São Paulo: Atlas, 2007, p. 220.
93
GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. A reprodução assistida heteróloga sob a ótica do novo código
civil In Temas Atuais de Direito e Processo de Família. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, p. 368.
94
Ibidem, p.358.
95
ALVES, Cristiane Avancini. Embrião humano: proposição de um estatuto jurídico no direito privado
brasileiro In NICOLAU JÚNIOR, Mauro (coord.). Novos Direitos. Curitiba: Juruá, 2007, p. 87.
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
353
96
PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Princípios fundamentais norteadores para o direito de família. Belo
Horizonte: Del Rey, 2005, p. 158.
Ibidem, p. 162.
98
http://www.camara.gov.br/sileg/integras/439892.pdf, Acessado em 18/11/2010.
99
CAMARGO, Juliana Frozel de. Reprodução humana – ética e direito. São Paulo: Edicamp, 2003, p. 272
100
Idem.
101
Idem, p. 295
102
CAMARGO, Juliana Frozel de. Reprodução humana – ética e direito. São Paulo: Edicamp, 2003, p. 297
103
DINIZ, Maria Helena. O estado atual do biodireito. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 482.
104
CAMARGO, Juliana Frozel de. Reprodução humana – ética e direito. São Paulo: Edicamp, 2003, p. 274
105
DINIZ, Maria Helena. O estado atual do biodireito. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 483
106
CAMARGO, Juliana Frozel de. Reprodução humana – ética e direito. São Paulo: Edicamp, 2003, p. 274
107
Idem, p. 277.
108
Apud FERNANDEZ, María Carcaba. Los problemas jurídicos planteados por las nuevas técnicas de
procreación humana. Barcelona: J.M. Bosh Editor S.A, 1995, p. 60 In CAMARGO, Juliana Frozel de.
Reprodução Humana – Ética e Direito. São Paulo: Edicamp, 2003, p. 282.
109
CAMARGO, Juliana Frozel de. Reprodução humana – ética e direito. São Paulo: Edicamp, 2003, p. 287
110
Idem.
111
Apud WESTFALL, David. Family Law. American Casebook Series – Saint Paul (MN): West Publishing
Co., 1994, pp. 380-381 In CAMARGO, Juliana Frozel de. Reprodução Humana – Ética e Direito. São
Paulo: Edicamp, 2003, p. 282.
112
ADI
nº 3510. Voto Joaquim Barbosa
113
CAMARGO, Juliana Frozel de. Reprodução humana – ética e direito. São Paulo: Edicamp, 2003, p. 290
114
Activities governed by the Act
3 Prohibitions in connection with embryos
(1) No person shall—
(a) bring about the creation of an embryo, or
(b) keep or use an embryo,
except in pursuance of a licence.
(2) No person shall place in a woman—
(a) a live embryo other than a human embryo, or
(b) any live gametes other than human gametes.
(3) A licence cannot authorise—
(a) keeping or using an embryo after the appearance of the primitive streak,
(b) placing an embryo in any animal,
(c) keeping or using an embryo in any circumstances in which regulations prohibit its keeping or use, or
(d) replacing a nucleus of a cell of an embryo with a nucleus taken from a cell of any person, embryo or
subsequent development of an embryo.
(4) For the purposes of subsection (3)(a) above, the primitive streak is to be taken to have
appeared in an embryo not later than the end of the period of 14 days beginning with the day when
115 the gametes are mixed, not counting any time during which the embryo is stored.
Apud BARBAS, Stela M. Neves. Direito ao Patrimônio Genético. Coimbra: Almedina, 1998, p. 142In
CAMARGO, Juliana Frozel de. Reprodução Humana – Ética e Direito. São Paulo: Edicamp, 2003, p. 292.
116
Apud BULA, María Andrea Fernández. “Fecundacion Assistida y Manipulación Genética”. XVI Jornadas
Nacionales de Derecho Civil – setiembre/1997. Disponível em: <http://www.jornadas-civil.org>, p. 04
In CAMARGO, Juliana Frozel de. Reprodução Humana – Ética e Direito. São Paulo: Edicamp, 2003, p.
278.
117
CAMARGO, Juliana Frozel de. Reprodução humana – ética e direito. São Paulo: Edicamp, 2003, p.
279.
118
Idem.
119
Idem, p. 302.
97
—— • ——
354
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
A Obrigação como Processo:
um Estudo sobre a Obra de
Clóvis do Couto e Silva
Daphne de Carvalho Pereira Nunes
Advogada e ex-aluna da Escola da Magistratura do Distrito Federal e Territórios - Amagis
1. Introdução
I
nteressante notar como há ramos no Direito Civil que se mostram ainda deveras
refratários às mudanças e que pouco se alteraram desde suas raízes romanas.
Provavelmente, esta característica decorre da elevada abstração conceitual e do
rigor dogmático que permeiam esta disciplina, além da proximidade deste instituto das
relações econômicas, mantendo-a afastada do imediatismo das influências evolutivas
1
da sociedade .
Assim, é extremamente interessante o estudo da obrigação como um processo,
pensamento novo (e relativamente recente para patamares históricos) da forma de
vislumbrar a relação obrigacional, que durante séculos foi vista no Brasil e em outras
partes do mundo apenas como uma atividade estática, ignorando peculiaridades da
relação jurídica concreta e de valores contemporâneos.
Neste sentido, toma vulto a obra A obrigação como processo, do ilustre jurista
Clóvis do Couto e Silva, que trouxe para a doutrina brasileira esta nova abordagem
teórica do avoengo instituto das obrigações, renovando-lhe os ares e demonstrando a
necessidade de aplicação ao mesmo de princípios de Direito, como a boa-fé, e ainda de
uma interpretação sob o prisma constitucional de seus elementos, sem perder o foco
na característica dinâmica e funcional de cada obrigação, como um caminho a ser
2
perseguido, passo a passo e não como um vínculo estático .
Com efeito, o mérito do uso da expressão “obrigação como processo”, que muito
influenciou Clóvis do Couto e Silva, a ponto de a ter usado como título de sua tese de
cátedra da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, se deve
ao autor alemão Karl Larenz, para quem a unidade do direito das obrigações provinha
da unidade de seus efeitos jurídicos: “Existe uma relação obrigatória sempre que existe uma
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
355
obrigação frente a determinadas pessoas para cumprir uma determinada prestação, qualquer
3
que seja o acontecimento no qual esta relação se fundamente” .
Impende destacar, contudo, que como prefaciado na obra de Couto e Silva,
embora Karl Larenz tenha chegado a se utilizar explicitamente da terminologia “relação
obrigacional como estrutura e como processo” na introdução do primeiro volume do seu
manual de obrigações, este não empregou explicitamente o conceito de obrigação como
processo no curso de sua exposição. Assim, cresce em vulto a contribuição de Couto
e Silva para o tema, pois, além de trazer tal discussão para a seara do direito nacional,
ainda permeou a peculiaridade da relação obrigacional como processo como fio condutor
de toda sua análise do nascimento e desenvolvimento do vínculo obrigacional em cada
uma de suas fases e momentos.
Desta forma, embora o atualmente vigente Código Civil de 2002 tenha perdido
a oportunidade de abordar o direito das obrigações sob esta perspectiva mais dinâmica,
não podem os operadores do Direito deixar de superar este enfoque estático que a
história confere à relação obrigacional para compatibilizá-la com os princípios e valores
constantes da Constituição Federal, e nem de objetivar atender de forma satisfatória
aos centros de interesses demandantes da devida tutela das relações jurídicas concretas,
conferindo ao instituto das obrigações a devida eficácia social.
2. Evolução Histórica do Direito das Obrigações
Em se tratando de um instituto que pouco se alterou desde tempos remotos,
parece-nos adequado discorrer brevemente sobre a evolução histórica do Direito das
Obrigações, de modo a demonstrar o significativo avanço que a leitura da obrigação como
um processo representou para o estudo desta disciplina, notadamente em sistemas nos
quais o nexo finalístico entre Direito das Obrigações e Direito das Coisas tem posição
relevante, como ocorre no Brasil, assunto ao qual voltaremos com mais detalhes no
decorrer deste artigo.
Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona nos ensinam que, embora já houvesse
esboços da noção de obrigação na Grécia antiga, dividindo-as entre voluntárias
(decorrentes de um acordo entre as partes) e involuntárias (advindas de um fato
do qual nasce a obrigação, subdividindo-as, por sua vez, a depender se o ato ilícito
dela originador era cometido às escondidas ou praticado com violência), é no Direito
4
Romano, na época de vigência da lei das XII Tábuas , que surgem seus equivalentes
históricos (embora o termo obrigação ainda não houvesse sido empregado), com a figura
do nexum, espécie de empréstimo que conferia ao credor o poder de exigir do devedor
o cumprimento de determinada prestação, inclusive com a disposição de seu corpo,
5
que poderia ser usado para quitar a dívida, por meio da escravidão (manus infectio) ou
6
mesmo da sua mutilação entre credores .
Além disso, o Direito Romano ainda conheceu o contractus, o pactum e as
constituições imperiais.
O contractu, por sua vez, refletia um teor de rigidez em sua estrutura que
perdura até tempos recentes (ora, contudo, mitigado pela interpretação doutrinária e
356
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
jurisprudencial), sendo ainda amplamente empregado desta forma estanque, ainda que
imprecisa, ao redor do mundo. Tratava apenas dos contratos reais ou formais, nos quais,
em caso de inadimplemento, o credor poderia se valer da actio (forma de preservação
do direito utilizada pelos credores).
Com as constituições imperiais, o formalismo do contractu foi atenuado, criandose, assim, uma teoria sobre contratos inominados e uma para os pactos mais simples.
O pactum, por sua vez, possuía mero valor moral e não era revestido de caráter
obrigatório, consistindo em um acordo no qual as partes não poderiam responsabilizar
o devedor em caso de descumprimento do acordado. O pacto era, portanto, desprovido
7
da correspondente actio .
A disposição física do corpo do devedor só foi suprimida com a lei Papiria Poetelia
no século IV a.c., embora haja indícios de que tal prática já se encontrava em desuso
na sociedade. A grande contribuição da lei Poetelia foi a de transformar o conceito de
obrigação, para retirar o vinculum iuris da pessoa do devedor e fazê-lo recair apenas sobre
seu patrimônio. Tal lei, contudo, não permitia ao devedor o direito de autodefesa, que
8
só poderia ser realizado por meio de um uindex , falha esta corrigida posteriormente
pela Lex Varia.
Com tal evolução empreendida pela Lex Poetelia, as obrigações no Direito Romano
passaram a se constituir em um vínculo pessoal e intransferível, e a responsabilidade
pelo inadimplemento desta passou a recair apenas sobre o patrimônio do devedor.
Posteriormente, pouca foi a contribuição dada pelo período medieval, salvo
registros atinentes aos costumes germânicos, entre os séculos V e XV, que cada vez
mais abandonaram o apego a qualquer ideia pessoal da dívida obrigacional, para fundarse na concepção de um direito sobre os bens do devedor. A obrigação, no conceito
germânico, converteu-se numa noção econômica e objetiva, suscetível de transferência
e transformação.
Com efeito, esta fase pouco expressiva para o Direito das Obrigações perdurou até
o Renascimento, merecendo registro que a relação obrigacional foi-se caracterizando por
dar cada vez mais valor às palavras previstas nos contratos, em razão da forte influência
da Igreja nos valores morais.
Importante modificação veio a surgir somente em 1804 com o Código de
Napoleão, consagrando fase de individualismo exorbitado, no qual as partes eram livres
para contratar da maneira que melhor lhes conviesse: porém, uma vez pactuada, esta
liberalidade fazia lei entre os nela envolvidos. Além disso, sedimentou-se o entendimento
de que “os bens do devedor são a garantia comum de seus credores” (art 2.093 do Código
Civil Francês) que, como nos relembram Pablo Gagliano e Rodolfo Pamplona, é “regra
fundamental não somente para aquele direito positivado, mas para toda a construção teórica
9
moderna do Direito das Obrigações, inclusive o brasileiro” .
Outra importante contribuição do Código Napoleônico nos é destacada por
Caio Mário da Silva Pereira, quando preleciona que é neste momento que se passa
a considerar a vontade como sendo a força geradora do vínculo obrigacional, mas
ao mesmo tempo em que ainda se aceitava a ideia de impessoalidade da obrigação,
distanciando a concepção romana da moderna sobretudo no que diz respeito a esta
10
impessoalidade do vínculo .
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
357
Enfim, o centro de tudo passou a ser o indivíduo, a propriedade e a aquisição
de bens.
Em tempos mais recentes, no Brasil, é inegável que o Código Civil de 1916
sofreu forte influência da legislação francesa, inspirada no liberalismo, valorizando o
indivíduo, a liberdade e a propriedade.
A base contratual na qual se pautou o diploma civil de 1916 registrou
características individualistas, observando apenas uma igualdade formal, fazendo lei
entre as partes (pacta sunt servanda). Não se pode ouvidar que o Código Civil de 1916
é “reflexo de uma sociedade estável, agrária e conservadora, recém-saída de um regime de
11
escravidão” . Falhava, portanto, em não contemplar de forma precisa certos aspectos de
uma nova era capitalista, como os juros compensatórios e moratórios e as indenizações
por danos morais, pois fundava sua preocupação na importância dada ao proprietário
e nos Direitos Reais.
Merecido destaque deve ser dado, contudo, à promulgação da Constituição
Federal de 1988, que trouxe para o âmbito do Direito Brasileiro conceitos fundamentais
à forma de interpretar a disciplina das obrigações, como os princípios da dignidade da
pessoa humana e da boa-fé, bem como os valores sociais da livre iniciativa.
O Código Civil de 2002, por sua vez, pouco inovou nesta seara, salvo o aspecto
didático de trazer para o início da parte especial esta disciplina, atendendo ao reclamo
da doutrina, posto que o estudo de diversos institutos do Direito Civil depende do
entendimento prévio do Direito das Obrigações, bem como distribuiu de forma mais
lógica matérias como a cessão de crédito e a assunção de dívida, ainda reconhecendo
a correção monetária como efeito de desvalorização da moeda.
Merece ressalva, contudo, que o atual Código Civil é reflexo de anteprojeto que
data de 1975, cuja comissão de juristas foi criada em época ainda mais remota (no ano de
1967) e mais de uma década antes da promulgação da atual Constituição Federal, quando
permeavam no âmago do legislador brasileiro os ideais liberalistas que já tinham norteado o
anterior Código Civil de 1916 e que vêm sendo cada vez mais mitigados em âmbito mundial.
Portanto, o estudo da matéria em tempos atuais depende da avaliação
compatibilizada da legislação civilista com a presente Constituição da República,
merecendo destaque o uso constante da moderna doutrina que trata a obrigação como
processo, superando-lhe o enfoque estático do atual Código Civil, bem como valendose do uso de cláusulas gerais presentes no ordenamento brasileiro, que têm permitido
ao aplicador do Direito renovar determinados institutos demasiado individualistas e
engessados, para adequá-los à nova interpretação do Direito sob o prisma da preservação
da dignidade da pessoa humana e da ênfase na boa-fé.
3. A Obrigação Como Processo
3.1. Conceitos e elementos dinâmicos do Direito das Obrigações
A obrigação, em uma acepção jurídica genericamente aceita do termo, tem sido
historicamente entendida como “uma relação jurídica pessoal que vincula duas pessoas,
358
Revista da Escola da Magistratura - nº 13
credor e devedor, em razão da qual uma fica ‘obrigada’ a cumprir uma prestação patrimonial
12
de interesse da outra”
Mesmo Karl Larenz, que inspirou o estudo da obrigação como um processo,
definia obrigação como uma relação pela qual uma ou mais pessoas se obrigam a cumprir
e adquirem direito a exigir determinada prestação. Àquela pessoa a quem corresponde
exigir a prestação chamamos de credor, porque se trata de uma relação de caráter
contratual, aquela que “crê” na pessoa do obrigado, em sua vontade e capacidade de
cumprir a obrigação. O credor crê que o devedor - que ocupa o polo passivo da relação
- irá cumprir com sua prestação.
No entanto, cumpre notar que esta definição, que pouco se modificou deste o
tempo das Institutas de Justiniano, deve ser atualmente interpretada por três i
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