Texto complementar Dois tempos e modos de ensinar a Aritmética Maria Laura Magalhães Gomes MATEMÁTICA 1 Matemática Assunto: Metodologia de ensino Dois tempos e modos de ensinar a Aritmética O objetivo deste artigo é analisar dois excertos de obras do passado escritas com o propósito de ensinar Aritmética. Fazemos uma primeira leitura comparativa desses textos, do ponto de vista do conteúdo matemático que abordam, sem levar em consideração quem os escreveu, a quem se destinavam, em que lugar e condições históricas foram produzidos. Em seguida, identificando todos esses aspectos, realizamos uma leitura contextualizada dos mesmos escritos para compreender suas características de maneira mais profunda e completa. Dois modos Os trechos que se vão ler a seguir reproduzem a introdução da operação de adição de números naturais em dois livros-texto de aritmética escritos por autores de períodos históricos diferentes. Primeiro autor: Para compreender a segunda operação, a adição, é necessário saber que ela é a união de vários números, pelo menos de dois, de modo que possamos conhecer a soma resultante desse acréscimo. Deve também ser entendido que na operação de adição, pelo menos dois números são necessários, a saber, o número ao qual adicionamos o outro, que deve ser o maior, e o número a ser adicionado, que deve ser o menor. Assim, sempre adicionamos o menor número ao maior, o que é um plano mais conveniente do que seguir a ordem contrária, embora esta última seja possível, sendo o resultado o mesmo em qualquer caso. Por exemplo, se adicionarmos 2 a 8, a soma é 10, e o mesmo resultado é obtido somando 8 a 2. Portanto, se desejamos somar um número a outro, escrevemos o maior em cima e o menor embaixo, colocando os algarismos na ordem conveniente, isto é, as unidades sob as unidades, dezenas sob dezenas, centenas sob centenas etc. Sempre começamos a somar com a ordem mais baixa, a qual é de menor valor. Assim, se queremos somar 38 a 59, escrevemos os números assim: 1 5 9 3 8 Soma 9 7 Dizemos então: "8 e 9 fazem 17", escrevendo 7 na coluna que foi somada, e carregando o 1 (pois quando há dois algarismos em um lugar, sempre escrevemos o de ordem mais baixa e carregamos o outro para o lugar seguinte de ordem mais alta). Este 1 nós agora somamos a 3, fazendo 4, e este a 5, fazendo 9, que é escrito na coluna da qual veio. Os dois números juntos fazem 97. Segundo autor: ... suponha que você conheça dois números, e deseje ou tenha necessidade de ter a sua soma, de conhecer o número que se pode formar juntando um ao outro – o número total de coisas que você sabe existir de uma vez, primeiro em um desses números, em seguida no outro desses números. Suponha, por exemplo, que você tenha 13 coisas em um lugar, e 26 em um outro, e que queira saber quantas tem ao todo, e, para isso, tomar a soma desses dois números, juntar 26 e 13. Você vê, à primeira olhadela, que 13 é 1 dezena e 3 unidades: que 26 é 2 dezenas e 6 unidades; você sabe que 3 unidades e 6 unidades são 9 unidades; que 1 dezena e 2 dezenas são 3 dezenas; os dois números encerram, portanto, 9 unidades e 3 dezenas; sua soma é, pois, 39. Quaisquer que sejam os dois números, você pode usar o mesmo meio, e conhecendo a soma das unidades, das dezenas, das centenas que os dois números contêm, você conhecerá sua soma. 1 Suponha, por exemplo, que você queira juntar 135 a 643, ou 2 345 a 3 621. Você verá que os dois primeiros números reunidos encerram oito unidades, sete dezenas e sete centenas; sua soma será 778. Você verá que os dois segundos números reunidos contêm seis unidades, seis dezenas, nove centenas e cinco milhares; sua soma será, portanto, 5 966. Se juntasse assim, um ao outro, números compostos de um número maior de algarismos, você perceberia logo que a necessidade de conservar na memória a soma das unidades, das dezenas, das centenas quando tiver chegado aos milhares, por exemplo, exige uma atenção fatigante, e que se ela lhe faltar, você será obrigado a recomeçar a operação. Mas para fazê-la mais facilmente, você só tem que escrever um sob o outro os números que quer juntar, colocando as unidades embaixo das unidades, as dezenas embaixo das dezenas, as centenas embaixo das centenas. Você dirá em seguida: 5 e 3 são oito, escrevo 8; 3 e 4 são 7, escrevo 7; 1 e 6 são 7, escrevo 7; a soma é, então, 778. 135 mais 643 igualam 778. Da mesma forma, você dirá: 5 e 1 são 6, escrevo 6; 4 e 2 são 6, escrevo 6; 3 e 6 são 9, escrevo 9; 2 e 3 são 5, escrevo 5. A soma é, portanto, 5 966; 2 345 mais 3 621 igualam 5 966. Fórmula da operação 1 1 6 3 5 4 3 5 7 7 8 1 2 3 3 6 4 5 2 1 5 5 9 6 6 Uma leitura comparativa Podemos observar que ambos os autores focalizam o mesmo algoritmo da adição de dois números – aquele que é ensinado na escola básica até os dias de hoje. O que podemos notar nos dois textos, além do fato de o segundo ser mais extenso que o primeiro? Certamente percebemos logo que o Primeiro autor aborda mais diretamente o tema, nomeando imediatamente uma operação a ser ensinada, a adição, sem referir-se a qualquer motivação para efetuar essa operação. O Segundo autor, por sua vez, não manifesta de início qualquer interesse em dar um nome a uma operação a ser feita, preocupando-se, em contrapartida, em apelar para o desejo ou a necessidade de seu leitor de conhecer o número que se pode formar juntando dois outros. Seguindo os dois excertos, verificamos que o Primeiro autor (embora não explique a razão disso) procura deixar claro ao leitor que, ao adicionar dois números, é mais conveniente somar o menor número ao maior, apesar de o resultado ser o mesmo se for seguida a ordem oposta a essa. Assim, o Primeiro autor instrui diretamente o aprendiz no sentido de escrever o maior número em cima, e o menor número embaixo dele, colocando os algarismos na ordem conveniente, isto é, as unidades sob as unidades, dezenas sob dezenas, centenas sob centenas etc. O Segundo autor não tem qualquer preocupação em fixar uma ordem para a escrita dos números a serem somados, mas faz questão de, em três exemplos, chamar a atenção do leitor para a maneira como são formados os pares de números que se devem somar – tantas unidades, dezenas e centenas, sendo cada ordem da soma o resultado de juntar as ordens que compõem os números. Mais: ele diz explicitamente que esse procedimento é o que servirá para encontrar a soma de dois números quaisquer. É somente depois dessas considerações que o Segundo autor alerta o leitor para a atenção fatigante que lhe seria exigida caso tivesse de conservar na memória a soma das unidades, das dezenas, das centenas, atenção essa que cresceria com o crescimento dos números a serem juntados. Dessa maneira, o Segundo Autor mostra ao seu leitor que seria interessante buscar um procedimento para aliviar o esforço requerido e então, sim, ele se refere a colocar unidades embaixo de unidades, dezenas embaixo de dezenas, centenas embaixo de centenas. Após a descrição desse procedimento por meio de palavras para dois exemplos, o Segundo Autor apresenta ao leitor o que denomina de Fórmula da operação. Aí é que aparecem armadas e efetuadas as duas adições, nas quais podemos notar a presença dos símbolos "1" e "5", bem como a de um traço que separa os números a serem adicionados de sua soma. 2 Por outro lado, voltando ao escrito do Primeiro autor, percebemos que o seu primeiro exemplo de uso do algoritmo da adição que, como vimos, é introduzido no estilo "faça deste modo" (se desejamos somar um número a outro, escrevemos o maior em cima e o menor embaixo, colocando os algarismos na ordem conveniente, isto é, as unidades sob as unidades, dezenas sob dezenas, centenas sob centenas etc. Sempre começamos a somar com a ordem mais baixa, a qual é de menor valor), é de uma "adição com reserva" ou "com transporte": 59 1 38. Essa adição aparece armada como foi indicado ao leitor, acompanhada do resultado, 97, sem os símbolos "1" e "5" e sem um traço separando o total (identificado pela palavra Soma) das parcelas. Só em seguida vem a explicação do que foi feito, com a instrução de “carregar o 1” que veio do 17 (soma de 9 e 8), visto que quando há dois algarismos em um lugar, sempre escrevemos o de ordem mais baixa e carregamos o outro para o lugar seguinte de ordem mais alta. O Primeiro autor não esclarece o porquê desse procedimento, e na continuação do texto aqui reproduzido focaliza a "prova dos noves" para a operação que acabou de ser efetuada. Depois disso, ele prossegue apresentando mais dois exemplos de adições (1 916 1 816 e 45 318 1 2 732) no mesmo estilo do exemplo mostrado no trecho transcrito. O Segundo autor também aborda a "adição com reserva" no prosseguimento do excerto que apresentamos. Contudo, ele o faz depois dos três exemplos "sem reserva" que mostramos, e de maneira bastante diferente, como vamos descrever a seguir. A adição escolhida para ilustrar a "reserva" é 18 1 25, e é calculada em duas etapas: 1 8 1 3 1 2 5 1 3 0 5 1 3 5 4 3 1 3 0 Vem então uma explicação de como reduzir, por comodidade, as duas operações a uma: ... para isso, você notará que depois de ter dito 8 e 5 são 13, não tem mais unidades a considerar: você escreve então 3 unidades; mas você tem ainda dezenas: você não escreverá esta dezena que obteve juntando 8 a 5, porém (você se lembrará dela) a guardará: dirá, então, 8 e 5 são 13, escrevo 3 e guardo 1 dezena; 1dezena que guardei e 1 dezena são 2, e 2 outras são 4, e escreverá 4 dezenas. E só então aparece 1 8 1 2 5 5 4 3 O exame dos dois textos mostra, portanto, claramente, dois modos distintos para ensinar o algoritmo da adição de dois números naturais. Comparando esses dois modos, pudemos notar que eles se distinguem essencialmente porque: – o primeiro apresenta ao aprendiz instruções diretas de como proceder para efetuar a operação, sem a preocupação de esclarecer a razão dos procedimentos aí envolvidos; – o segundo se caracteriza por uma tentativa de dialogar com o leitor de maneira a convencê-lo da necessidade dos procedimentos mostrados para facilitar uma tarefa e mais, por buscar explicar os motivos de cada um dos passos executados nas adições. Até aqui fizemos a leitura e a análise dos dois textos de forma isolada do contexto sócio‑histórico em que foram produzidos, desconhecendo apenas seus autores e a época em que foram escritos, mas também as finalidades e o público a quem se destinaram. Vamos agora examinar esses aspectos para tentar interpretar, à sua luz, as marcas dos novos modos de ensinar a adição. Dois tempos Comecemos por identificar os livros dos quais foram extraídos os excertos em foco. O primeiro texto faz parte da Aritmética de Treviso, obra de autor anônimo publicada em 1478 – trata-se não somente de um incunábulo, isto é, de uma publicação do século da invenção da imprensa, mas do 3 primeiro texto impresso de Matemática. O livro, que não tem um título próprio, é uma aritmética comercial, ou seja, um texto que se propõe a recordar os conhecimentos relevantes para o exercício dos negócios, especialmente em Treviso e Veneza. É importante situar Veneza no cenário do mundo do século XV: a cidade tinha, nesse período, se transformado no principal centro comercial da Europa e ao mesmo tempo em uma das cidades mais ricas do planeta então conhecido. Era ainda um centro de ensino e difusão da arte mercantil ao qual acorriam mercadores do norte, particularmente das cidades alemãs, para estudar as práticas de comércio da aritmética comercial e a troca de moedas. Uma habilidade básica que esses visitantes esperavam adquirir era certamente a proficiência em métodos da aritmética comercial italiana, a qual havia se desenvolvido cedo em decorrência do fato de os italianos em geral e os venezianos em particular terem logo compreendido a importância do uso da Aritmética em suas transações diárias a partir de seu contato com o sistema indo-arábico de numeração em suas relações comerciais em torno do Mediterrâneo. A Aritmética de Treviso é escrita no dialeto veneziano, o que caracteriza uma intenção de comunicar conhecimentos a um público amplo, evento possibilitado pela invenção da imprensa. É, portanto, um texto importante por integrar o movimento da eliminação do monopólio do conhecimento por parte das classes mais elevadas socialmente (que tinham acesso aos estudos nas universidades, onde a língua usada era o latim) e da consequente ascensão de uma classe média a partir da aceleração das atividades de comércio. Avalia-se terem sido impressas trinta aritméticas práticas entre o início da imprensa na Europa e o final do século XV. Dessas, mais da metade era escrita em latim, sete em italiano, quatro em alemão e uma em francês. A crescente publicação de textos impressos em vernáculo está associada a uma mudança da Matemática, do domínio da especulação escolástica para as aplicações das manufaturas e do mercado. O ambiente histórico ao qual pertence o nosso Primeiro autor, portanto, é o do início da Idade Moderna, no qual o desenvolvimento do comércio faz nascer o capitalismo mercantil. Culturalmente, estamos em um contexto marcado pelo florescimento das artes e pelas mudanças na orientação das ciências – é a época do Renascimento. Na Europa do século XV, tempo em que escreveu o Primeiro autor, uma parte importante da educação matemática consiste no ensino e na aprendizagem da aritmética comercial. A escola em que tem lugar essa parte não é a universidade, mas a escola mantida pelos mestres de cálculo, a qual é frequentada pelos filhos de funcionários públicos ou de mercadores, com idades entre 12 e 16 anos. Embora a autoria da Aritmética de Treviso não seja conhecida, as palavras iniciais do texto revelam que seu autor é um desses mestres de cálculo, que se dedica, a pedido de estudantes que desejam aprender a aritmética para seguir a carreira comercial, a colocar por escrito os princípios fundamentais da aritmética, comumente chamada ábaco (Swetz, 1989, p. 40). O livro é um algorismo, isto é, um tratado dedicado a explicar o uso dos símbolos indo-arábicos. Porém, trata-se de um tipo especial de algorismo – uma Practica – por apresentar situações-problema ligadas aos negócios e ao comércio. É importante referir-nos aqui ao estado de aceitação do sistema de numeração indo‑arábico, à época dessa Practica. Ainda que tal sistema já fosse conhecido na Europa desde aproximadamente o ano 1000, ele ainda não tinha sido adotado universalmente. No início do século XV, a Itália estava à frente do resto do continente europeu no uso dos novos símbolos para registros e cálculos – a forma física dos algarismos no livro de Treviso já é a atual, o que não acontecia nos outros países. Assim, os conhecimentos da obra eram ainda pouco difundidos no tempo de sua publicação. Como observamos anteriormente, o Primeiro autor não usa os símbolos "1" e "5". Segundo Boyer (1996), o mais antigo aparecimento do sinal "1" ocorreu em 1489, na aritmética comercial de Johann Widman, enquanto o sinal "5" foi registrado pela primeira vez em 1557, em um livro de Robert Recorde (1510-1558). Portanto esses símbolos, que o Segundo autor usa com naturalidade, só foram incorporados aos textos matemáticos depois da publicação do primeiro texto que analisamos, que, lembremos, data de 1478. Retomemos agora outros comentários tecidos na seção anterior deste texto, levando em conta o que acaba de ser exposto. Pudemos constatar que o Primeiro autor introduz de forma um tanto rápida a adição, sem uma tabela com os chamados "fatos fundamentais" e usando como primeiro exemplo uma operação "com reserva". Swetz (1989) informa que os primeiros autores de aritmética raramente incluíam essas tabelas em seus livros, mas também atribui essa abordagem ao fato de que os alunos dos mestres de cálculo eram 4 adolescentes que já tinham experimentado alguma educação básica na qual haviam aprendido a ler e estudado os "fatos fundamentais" da adição e da multiplicação. Comentamos também a posição do Primeiro Autor em relação à ordem a ser adotada na escrita das parcelas da adição: o número maior em cima, e o menor embaixo dele. Possivelmente essa recomendação se origina da incorporação de uma prática herdada do uso do ábaco. Quanto à instrução ao estudante no sentido de, quando a soma dos números em uma coluna exceder 10, escrever o algarismo da ordem menor e carregar o algarismo da ordem seguinte para a próxima coluna, Swetz comenta: Claramente, o conceito físico de "carregar" (portare) um número para a coluna seguinte deve sua origem ao ábaco, no qual um excesso de fichas em uma coluna ou linha requereria uma transferência física ou carregamento de fichas para uma posição de ordem superior. Nessa aritmética, o número carregado é somado ao algarismo que está na posição mais embaixo na coluna adjacente à esquerda, na qual a adição começa novamente de baixo para cima. Nem todos os autores antigos usam esse formato: alguns efetuam a adição da esquerda para a direita e escrevem a soma em cima ou ao lado da fileira das parcelas. (Swetz, 1989, p. 188-189) O que podemos notar, então, é que, conquanto o algoritmo seja o mesmo que conhecemos e usamos até hoje, a exposição do Primeiro autor é portadora de sinais característicos claros das práticas abacistas, ainda muito frequentes no século XV. Para concluir estas considerações contextualizadas em relação ao texto do Primeiro autor, resta-nos focalizar o seu estilo conciso, marcado pelo "Faça desta maneira", que mostra a concepção metodológica clara do "aprender fazendo", sem a explicitação das razões dos procedimentos. Tal característica não é exclusiva da Aritmética de Treviso, e está presente também em muitos outros autores antigos de aritméticas. Esse enfoque, evidentemente, gasta menos palavras – pudemos notar que o texto do Primeiro autor é menos extenso do que o do Segundo autor. Por outro lado, a brevidade do texto está associada ainda ao fator econômico, uma vez que a impressão era dispendiosa e que havia dificuldades específicas na confecção de textos matemáticos. Uma outra explicação para o estilo sucinto estaria no fato de o livro ter sido planejado para ser usado sob a orientação de um mestre de cálculo, ou então em uma autoinstrução aplicada, na qual o leitor teria de se esforçar realizando um trabalho suplementar para chegar a uma compreensão mais completa do material exposto na obra. O autor não teria, pois, a intenção de escrever um texto abrangente, completo: o livro de Treviso não é uma obra teórica sobre aritmética, à maneira dos acadêmicos da época que se expressavam em latim. É, sim, um livro no qual se aprendiam conhecimentos matemáticos – os símbolos e técnicas da aritmética e os métodos do cálculo comercial, e se desenvolvia alguma apreciação sobre as aplicações dessa matemática. Finalmente, o trecho comentado neste artigo integra a discussão realizada pelo Primeiro autor sobre as cinco operações essenciais para o aprendizado dos métodos aritméticos comerciais – trata-se da parte voltada fundamentalmente para preparar os estudantes para resolver problemas comerciais nas ocupações mercantis – são esses problemas que tomam o maior número de páginas do livro e, portanto, constituem seu objeto principal. O acento da Aritmética de Treviso cai, assim, não no aprendizado fundamentado das técnicas do cálculo aritmético, mas na aquisição de familiaridade com as mesmas como requisito básico para o domínio das aplicações demandadas no quotidiano mercantil. Em outras palavras, e usando uma metáfora muito comum, os algoritmos da adição, da subtração, da multiplicação e da divisão constituem a entrada, não o prato principal do livro renascentista. Passemos a abordar novamente o trabalho do Segundo autor. Mais de trezentos anos separam os dois textos de Aritmética que estamos analisando, pois o nosso Segundo autor, o marquês de Condorcet, escreveu a sua Aritmética, livro de onde extraímos o trecho inicial da Quarta Lição, em 1794. Esse tratado inacabado devido à morte de seu autor, quando fugia da perseguição do governo do Terror durante a Revolução Francesa, é um manual didático redigido com a intenção de participar de um concurso promovido por esse mesmo governo para selecionar os livros elementares a serem usados na instrução pública. A realização do concurso resultava de um aspecto característico da política educacional da França revolucionária – a composição de livros didáticos destinados a todo o país como praticamente o único meio de efetuar reformas no ensino. (Schubring, 1989) 5 Devemos enfatizar que o próprio Condorcet foi o responsável por um importante projeto para o ensino no qual eram propostas a elaboração desses livros elementares e a escolha dos manuais a serem financiados pela república por meio de um concurso público. Na verdade, a situação da França do Antigo Regime era completamente ineficiente em relação à escolarização, num momento em que o país precisava de uma mão de obra mais preparada considerando-se seu contexto socioeconômico. Furet e Ozouf (1977) descrevem o quadro da instrução nesse período dizendo que somente após alguns anos passados na aprendizagem da leitura e da escrita, poucos estudantes – aqueles de melhor condição material – tinham acesso aos rudimentos da aritmética. E essa educação precária ainda se mantinha sob o controle direto e constante da Igreja; na convocação dos Estados Gerais, em 1789, apresentaram-se vigorosas reivindicações quanto à instrução da população. Com a Revolução, tomaram-se medidas contra o clero que levaram ao fechamento de muitas escolas católicas, e transferiu-se para os poderes civis a supervisão da educação pública. Propuseram-se, então, vários planos para essa educação entre os quais o de nosso Segundo autor. Historicamente, assim, o segundo texto aqui focalizado insere-se no começo da Idade Contemporânea, no momento em que a burguesia, cuja visão de mundo abraçava fundamentalmente o Liberalismo com seus princípios básicos de liberdade, individualismo, igualdade, propriedade, democracia, obtinha seus primeiros triunfos. O interesse dos governos revolucionários franceses pela instrução pública – uma concessão ao povo que apoiava tal burguesia – está fortemente ligado ao programa de hegemonia dessa classe. No entanto, os estudos de Condorcet acerca da educação começaram bem antes dos acontecimentos revolucionários, e ele integra a face mais democrática dentre os autores de planos de educação pública da Revolução (Lopes, 1981). Na Primeira Memória sobre a Instrução Pública, em 1790, escreve: A sociedade deve ao povo uma instrução pública como meio de tornar real a igualdade de direitos. Afirmando a existência de uma desigualdade natural entre os homens, acrescenta que para garantir a igualdade de direitos prevista na lei, é suficiente que cada indivíduo seja instruído de forma a não depender daqueles que possuem conhecimentos que ele não tem. Entre esses conhecimentos comparece a Aritmética: ... (aquele) que ignora a Aritmética depende realmente do homem mais instruído, ao qual é obrigado a recorrer incessantemente. Ele não é igual àqueles a quem a educação deu esses conhecimentos. Ele não pode exercer os mesmos direitos com a mesma extensão e a mesma independência... Mas o homem que sabe as regras da Aritmética, necessárias para os usos da vida, não está na dependência do sábio, que possui no mais alto grau o gênio das ciências matemáticas, e cujo talento lhe será de uma utilidade muito real, sem jamais poder impedi-lo do gozo de seus direitos... (Condorcet, apud Buisson, 1929, p. 56) A visão de nosso Segundo autor contempla, pois, a instrução em geral e o ensino da Aritmética em particular como uma contribuição indispensável no sentido de tornar real a igualdade de direitos entre os cidadãos proclamada pela lei, devendo o primeiro grau de ensino previsto em seu projeto de instrução pública (Condorcet, 1997) ser acessível a todos os franceses. Dessa forma, a Aritmética de seu livro elementar deveria ser ensinada a todas as crianças na escola primária. Segundo Schubring (1989), todavia, não se tem qualquer informação sobre a utilização efetiva do manual, cujo uso nas escolas primárias foi autorizado pelo Estado cinco anos após a morte de seu autor. Como pudemos notar no trecho referente ao algoritmo da adição reproduzido neste texto, a concepção metodológica de Condorcet envolve necessariamente a compreensão dos procedimentos a partir das propriedades do sistema de numeração decimal e, por isso, ele gasta mais espaço em sua abordagem do que o autor da Aritmética de Treviso para tratar do mesmo assunto. A forma escolhida para a apresentação dos algoritmos das demais operações também compreende muitas palavras, pouca formalização matemática, e nenhuma ilustração, o que reflete a época do manual (Picard, 1989), em que, devemos recordar, a imprensa já avançou muito desde o final de século XV, tempo do Primeiro autor. A motivação para os algoritmos e a preocupação patente em tornar claras as razões de tudo o que é feito estão presentes não apenas no trecho que analisamos, mas em todo o livro. Condorcet manifesta seu ponto de vista a respeito disso no prefácio: 6 Pareceu-me que em geral nada se deveria ensinar às crianças sem lhes ter explicado e feito sentir os motivos. Esse princípio me parece essencial na instrução, mas eu o creio muito vantajoso sobretudo em Aritmética e Geometria. Assim, os elementos dessas ciências não devem apenas ter como objetivo preparar as crianças para executar seguramente e facilmente em seguida os cálculos dos quais podem ter necessidade, mas devem ainda lhes mostrar elementos de lógica, e servir para desenvolver nelas a faculdade de analisar suas ideias, de raciocinar com justeza. (Condorcet, 1989, p. 19) Assim, nosso Segundo autor embora tenha, como o Primeiro autor, o propósito do domínio das técnicas operatórias pelos estudantes, não deseja nem crê que tal domínio ocorra por meio da repetição e da memorização mecânicas: acredita na potencialidade da educação aritmética de desenvolver as faculdades intelectuais dos alunos, desde que seja realizada com ênfase na compreensão. Uma característica do manual que não podemos deixar de mencionar é o fato de conter, após o texto para o estudo dos alunos, orientações aos professores, específicas para cada uma das lições que é apresentada. Especificamente quanto ao algoritmo da adição, focalizado neste artigo, ele recomenda que o mestre trabalhe muitos exemplos com os estudantes, mas que cuide para que eles se tornem autônomos, a fim de que não adquiram o hábito de repetir as palavras "escrevo", "guardo", sem reflexão, e por meio de uma memória por assim dizer automática. (Condorcet, 1989, p. 120) A leitura comparativa dos dois trechos referentes à adição de números naturais mostrou‑nos diferenças claras, as quais tentamos, inicialmente, destacar mediante um enfoque interno ao conteúdo dos textos. Em seguida, no que acabamos de expor, procuramos situar esses textos quanto ao entorno de sua produção a fim de enxergar, sob outro prisma, essas diferenças. Os dois modos de ensinar a Aritmética ganham significação em dois tempos: dois contextos históricos distintos de educação matemática. Dois modos em dois tempos: comentários finais Na leitura dos textos didáticos aqui focalizados, colocamos em evidência uma dicotomia entre um modo que poderíamos denominar "aprender fazendo", predominante no trabalho do Primeiro autor, um mestre de cálculo da república de Veneza no século XV, e um outro modo que batizaríamos como "aprender compreendendo", indispensável no escrito do Segundo autor, um filósofo francês do Século das Luzes. É claro, como tentamos mostrar, que essas expressões pelas quais estamos chamando em dois estilos, ainda que traduzam a essência de duas concepções metodológicas, são insuficientes para revelar todos os aspectos envolvidos nas duas célebres aritméticas aqui abordadas. Todavia, essa dicotomização nos serve como ponto de partida para considerar a inadequação e as limitações de uma análise de concepções, materiais e práticas na educação matemática dissociada das muitas variáveis sociais e culturais que sempre a compõem. De fato, ao comparar mediante uma leitura descontextualizada o modo de ensinar do Primeiro autor – que parece não se preocupar com a compreensão do significado dos procedimentos que vai ditando ao leitor – com o do Segundo autor que, diferentemente, quer evidenciar a quem o lê os motivos de tudo aquilo que é exposto, não alcançamos uma significação completa de ambos os textos. Certamente vamos simpatizar mais com o Segundo Autor, mais próximo do que concebemos como o tratamento adequado da matemática na escola. Também queremos que os nossos alunos dominem as técnicas do cálculo aritmético entendendo-as e não simplesmente memorizando-as mecanicamente; assim, identificamo-nos mais com a atitude do filósofo iluminista. Defendemos, como Condorcet, que ao lado da dimensão instrumental da matemática escolar esteja sempre presente a dimensão formativa – enfatizamos a contribuição da matemática no desenvolvimento das faculdades do intelecto das crianças, dos adolescentes, dos jovens e adultos. E particularmente em relação à Aritmética, no contexto atual em que a destreza no uso dos algoritmos usuais é menos posta em relevo, se incentiva a utilização das calculadoras e se valorizam procedimentos pessoais dos alunos bem como as estimativas e o cálculo mental (Brasil, 1997), o enfoque de nosso Segundo autor é, sem dúvida, muito pertinente. Contudo, a abordagem do mestre de Treviso, como comenta Swetz (1989), não era somente adequada, mas desejável para as necessidades do século XV, em que um jovem frequentador das escolas de cálculo o fazia por pouco tempo – era uma educação dispendiosa. Esse jovem logo entrava como aprendiz na profissão comercial e continuava a aprender a Aritmética de que precisava. Swetz especula que talvez após vários anos de trabalho e associação com outros mestres, um calculador poderia de fato começar a pesquisar os 7 "porquês" da Aritmética. A atitude do Primeiro autor decorre ainda da inexistência da intenção de escrever um compêndio enciclopédico de conhecimentos mercantis e técnicas matemáticas; como diz o nome usado na época – Practica – seu livro é claramente orientado para objetivos mais imediatos. Assim, se a leitura e a análise dos textos do passado limitar-se a apresentar descrições das abordagens adotadas para os conteúdos matemáticos, provavelmente encontraremos vários aspectos curiosos e interessantes, mas teremos uma visão restrita do significado da matemática, da educação matemática e das relações entre elas e as sociedades em que se desenvolveram. GOMES, Maria Laura Magalhães (Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG). Dois tempos e modos de ensinar a Aritmética. Revista História & Educação Matemática, Rio Claro: Sociedade Brasileira de História da Matemática, v. 2, n. 2, p. 173-186, 2002. Referências bibliográficas BOYER, Charles. História da Matemática. Revista por Uta C. Merzbach. Trad. Elza F. Gomide. São Paulo: Edgard Blücher, 1996. BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais: Matemática. Brasília: MEC/SEF, 1997. BUISSON, Ferdinand. Condorcet. Paris: Librairie Félix Alcan, 1929. 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