A INFLUÊNCIA HISTÓRICA NA LINGUAGEM DO POVO DO OESTE CATARINENSE Noeli Woloszyn1 O português, derivado do latim, é a língua majoritária e oficial do Brasil. Entretanto, a maioria desconhece a complexidade da formação deste idioma, especialmente em nosso país, devido à diversidade étnica do território brasileiro. No século XVI, período áureo da economia portuguesa, devido ao mercantilismo e às grandes navegações, que levaram à descoberta de novas terras e ao contato com outros povos, a língua portuguesa incorporou muitos elementos estrangeiros, sobretudo lexicais, mas também morfológicos e fonológicos. No Brasil, a língua portuguesa entrou em contato com falares nativos e africanos. Durante os séculos XVI e XVII e boa parte do século XVIII, os portugueses tiveram dificuldade em impor sua língua no Brasil, devido ao seu pequeno número comparativamente ao dos nativos, especialmente no litoral, que praticavam extensamente o tupi-guarani, sobretudo sob a forma de língua geral. A língua dominante no país continuou, assim, a ser o tupi-guarani, que influenciou fortemente até mesmo o português dito culto, que incorporou palavras como mirim, urubu, jaguatirica. Mais tarde, com a chegada de milhões de trabalhadores escravizados ao Brasil, o português passou a ser fortemente influenciado pelas línguas africanas, tanto no seu léxico – que incorporou palavras como moleque, moringa, tanga, bunda etc. –, quanto na sua fonologia, que se afastou progressivamente da fonologia do português europeu. Mas, à medida que se consolidava o processo colonizador, mais e mais portugueses foram chegando e cresceu o esforço do Estado colonial para impor língua, religião, tradição e costumes lusitanos, com a criação de escolas e igrejas, por um lado, e, por outro, com forte política glotocida 2. Mesmo assim, sobretudo os padrões populares da língua portuguesa, falada especialmente 1Noeli Woloszyn possui Mestrado em História Regional, pela UPF (Universidade de Passo Fundo). No Conselho Municipal de Educação de Concórdia é representante dos Pais de Alunos da Rede Municipal. 2 Significa matadora de linguas. Nesse caso, o objetivo era acabar com os idiomas de origem africana. pelas comunidades caboclas, possuem idioma linguísticas com contribuições culturais das mais variadas. 3 A região oeste catarinense, nascida do entrecruzamento de comunidades cultural e socialmente diversas é um típico exemplo dessa variedade linguística. Sem qualquer pretensão a um estudo mesmo superficial dessa realidade, pareceu-nos necessário ressaltar e abordar uma realidade tão importante. Várias palavras, originárias dos povos nativos dessas regiões, foram incorporadas ao vocabulário dos habitantes do território em estudo, conforme destacou o professor Nilson Thomé, em Sangue, suor e lágrimas no chão contestado: “typoia (faixa para carregar crianças; depois tipóia), kuia (prato ou disco de porongo; depois cuia), guyrapuca (arapuca), aypí (mandioca doce; depois aimpim), paris (represa de ramos para pesca), jurum (abóbora, depois jerumim). Entre tantos nomes próprios, a ‘nova civilização’ aceitou: xá (queda d’água), xim (pequeno), erê (campo), xanxá (cascavel), pecó (ratinho), goio (água), que deram origem aos nomes de Xaxim, Xapecó, Xanxerê, Erexim, Goio-Erê [sic], e outros.”4 [grifo meu] Essas palavras ou expressões de origem nativa sofreram mudanças mais ou menos profundas, sendo simplificadas e adaptadas, sobretudo ao hábitos fonéticos dos habitantes majoritários na região. Em relação à linguagem do caboclo, Nilson Thomé acrescenta: “O nosso caboclo aplicava a ‘lei do menor esforço’ [sic.], numa cultura baseada mais no ouvir do que no ler, evitando grupos consonantais que exigissem esforços nas pronúncias, e encontramos em escritos antigos, e mesmo nos modos de falar atual: coroné (coronel), hôme (homem), tava (estava), in riba de (ao redor de) [sic], dotô (médico), inté (até), cumpade (compadre), orêia (orelha), trabáio (trabalho), mió (melhor), vencê (você), tarvês (talvez), moiáda (molhada), baruio (barulho), das veis (às vezes), etc. “5 Segundo alguns estudiosos, as influências, sobretudo das línguas africanas, na língua portuguesa não se restringiram apenas ao vocabulário. 3 CARBONI , Florence e MAESTRI, Mário. A linguagem escravizada: língua, história, poder e luta de classes. 2 ed. rev. e ampliada. São Paulo: Expressão Popular. 2005. p. 18. 4 THOMÉ, Nilson. Sangue, suor e lágrimas no chão contestado. Caçador: INCON Edições/EdiUnC. 1992. p. 20 5 Thomé, Nilson. Obra citada. 1992. p. 35 Isso é defendido pelo pesquisador Jacques Raimundo, em O elemento afronegro na língua portuguesa, onde são apontadas algumas mudanças fonéticas, observadas a partir da fala dos trabalhadores escravizados, mas que ainda se mantêm em variações do português do Brasil. Segundo ele, as vogais "e" e "o" passam a ser pronunciadas, respectivamente, como "i" e "u" (mininu, nutiça); as vogais tônicas terminadas em "s", mesmo as grafadas com "z", tornam-se ditongos (atrais, mêis, vêis); e ainda, a conjugação dos verbos do pretérito perfeito, terceira pessoa do plural, se reduz a "o" (fizero, caíro, tocaro) 6. Concepções como essas evidenciam que as variações fonéticas nãopadrão, próprias de classes subalternizadas, continuam sendo discriminadas de forma sistemática. Florence Carboni e Mário Maestri, em A linguagem escravizada, assinalam: “Apesar da censura linguística, as comunidades subalternizadas influenciaram a própria versão culta do português falado no Brasil. Essa ação foi, sobretudo, lexical determinando que numerosos étimos americanos e africanos invadissem as mais castiças formas do falar português, para o terror dos puristas de então.”7 A influência cultural e linguística na região oeste catarinense, completouse com a vinda dos colonos rio-grandenses, descendentes de imigrantes italianos e alemães. É tangível a interferência fonética dos dialetos italianos em pronúncias como “pom” (para pão), “caroça” (para carroça), “cassias” (para Caxias). A miscigenação linguística deu-se igualmente em nível léxicosemântico, por exemplo em expressões como: “pena agora” (para recém), “ponhá” (para colocar), “dá de í” (para posso ir), “não levei” (para não trouxe), “vô indo” (para estou indo). Além das características linguísticas próprias dos descendentes de imigrantes italianos, há outras características paralinguísticas originadas nessa comunidade, como o tom alto da voz e o uso das mãos ao falar. Para Osvaldo Savoldi, descendente italiano: “O italiano fala com as mãos, se cortar elas fora, ele fica mudo” 8. Essa característica do habitante da região tende a ser discriminada, conforme aponta a fonoaudióloga Josiane Sandi, em entrevista 6 RAIMUNDO, Jacques. O elemento afro-negro na língua portuguesa. Rio de Janeiro: Renascença. 1933. 7 CARBONI , Florence e MAESTRI, Mário. A linguagem escravizada. Obra citada. p. 29 às jornalistas Gisele Silveira e Lisângela Brandalise: “Essa maneira de falar não pode ser considerada errada, de forma alguma. A linguagem que se formou com a mistura de raças [sic] é o que ocorre também em outros lugares. O problema disso está ‘na exigência da sociedade’. Isso é inadmissível nos meios de comunicação, por exemplo. Apesar de ainda hoje, existirem comunicadores com dificuldade na pronúncia do ‘r’”. 9 Sobre o exposto, Florence Carboni e Mário Maestri, em Linguagem, Escritura e Luta de Classes, complementam: “[...] os aparatos culturais institucionalizados – escola, universidade, gramáticas, mídia, etc. – discriminam igualmente sotaques* de grupos étnicos ou de regiões socialmente não prestigiosos. Por exemplo, os sotaques caipira e ítalo-gaúcho – caro por carro; revoluçón por revolução – são mal vistos e reprimidos, enquanto o chiado carioca é valorizado por ser originário de uma metrópole e ex-capital.” 10 Esse tipo de discriminação, infelizmente, tem continuado. Mas já existem considerações bastante relevantes na superação desse pensamento. Em seu livro didático direcionado ao aluno do ensino médio, Marina Ferreira diz: “ É importante estar ciente de que, em princípio, não existe uma forma melhor ( “mais certa”) ou pior ( “mais errada”) de falar. Trata-se apenas de uma diferenciação que se estabelece com base em critérios sociais e em situações de uso efetivo da língua.” 11 A variante linguística da região é uma das principais características da identidade local. Considerá-la insignificante seria o mesmo que negar a pluralidade cultural e descaracterizar a contribuição dada pelas classes subalternizadas ao idioma oficial. 8 IN: SILVEIRA, Gisele e BRANDALISE, Lisângela. A Imigração italiana: Influência da cultura e do dialeto no contexto social de Concórdia. Concórdia: UnC, 2004. Monografia de Graduação. p. 46. 9 Ibidem. p.46. 10 CARBONI , Florence e MAESTRI, Mário. Linguagem, Escritura e Luta de Classes. Revista Espaço Acadêmico. Nº 48. Maio/2005. Ano IV. Disponível em: http://www.espacoacademico.com.br/048/48 carboni_ maestri.htm. Acessado em 05/04/2006. 11 FERREIRA, Marina. Português. São Paulo: Atual. 2004. p.