A25
ID: 56872987
01-12-2014
Tiragem: 34943
Pág: 41
País: Portugal
Cores: Cor
Period.: Diária
Área: 20,05 x 23,25 cm²
Âmbito: Informação Geral
Corte: 1 de 1
Homenagem da Polónia à tranquila
moderação portuguesa
João Carlos Espada
Cartas do Atlântico
A esperança da democracia
tem um preço: o
autocontrole dos nossos
ódios particulares
oram sem dúvida duas, e não
apenas uma, semanas difíceis
em Portugal. Mas saímo-nos
bastante bem — pelo menos até à
data em que escrevo, um pouco à
distância, desta vez de Varsóvia.
E é em Varsóvia que os meus
amigos polacos elogiam o digno
comportamento político dos
portugueses.
Há duas semanas, tinha havido uma série
de prisões preventivas de altos funcionários
da administração pública. O ministro da
tutela, que não estava envolvido no assunto,
optou honrosamente — e sem que nada a
isso o obrigasse — pela demissão. Foi um
primeiro sinal de tranquila moderação
portuguesa.
A seguir tivemos um caso muito mais
grave: a detenção de um ex-primeiroministro. As reacções dos mais altos
responsáveis políticos foram exemplares.
O Partido Socialista podia ter tentado
desencadear uma onda de indignação
popular, fingindo-se vítima de uma cabala
conspirativa. Mas não o fez. Com grande
dignidade e autocontrolo, os responsáveis
socialistas reafirmaram a sua confiança
no Estado de direito democrático — do
qual, os meus amigos polacos recordam
enfaticamente são fundadores e foram,
sempre que foi decisivo, inabaláveis
defensores (designadamente contra os
comunistas, eles gostam de enfatizar).
Em seguida, outro aspecto notável foi a
serena contenção do primeiro-ministro,
do Governo e dos partidos da maioria. Não
houve qualquer tentativa de exploração
F
política. Pelo contrário, houve uma vincada
contenção: à justiça o que é da justiça, à
política o que é da política. O Presidente da
República terá enfaticamente sublinhado
este entendimento, ao expressamente
evitar referir o tema, na partida para uma
visita oficial ao estrangeiro.
Esta posição dos responsáveis políticos
foi ao mesmo tempo saudavelmente
contrariada por comentadores dos
mais variados disposições políticas. Nas
televisões, nos jornais, nas redes sociais,
houve uma livre e pluralista confrontação
de interpretações rivais, em regra polida,
portuguesmente contida, mesmo quando
um pouco inflamada.
Esta feliz expressão, livre e sem medo,
de posições rivais é a mais reconfortante
experiência de liberdade para os que, com
diferentes preferências políticas, valorizam
acima de tudo a liberdade ordeira sob a
lei: somos livres, temos todos exprimido
livremente opiniões diferentes. Todos
sob a igual protecção da lei — e ninguém
apelando ao desrespeito da lei ou do regime
democrático, constitucional e pluralista.
Este é o ponto que os meus amigos polacos
mais enfatizam — e eles certamente sabem
do que falam.
Dirão agora os nossos críticos: mas isso
é tudo que eles têm a dizer? E a urgente
abolição da corrupção? E a exemplar
condenação de quem usou cargos públicos
para ganhos pessoais? Como pode a
democracia sobreviver se permitiu um
primeiro-ministro corrupto?
A resposta é bastante simples. Em
primeiro lugar, quer tenha sido corrupto
ou não, qualquer cidadão tem sempre
direito a um julgamento leal (segundo
a Magna Carta de 1215); e o julgamento
do cidadão que está em causa ainda não
teve lugar. Em segundo lugar, o facto de o
poder judicial ter acusado um ex-primeiroministro (com ou sem razão, por enquanto
não sabemos) é a prova mais irrefutável
de que a separação de poderes está a
funcionar — que o longo braço da lei trata
todos por igual.
Em terceiro lugar, e mais crucialmente,
os democratas nunca disseram que a
democracia garantia a inexistência de
corrupção. Foram as ditaduras que
demagogicamente prometeram acabar para
sempre com a corrupção — as ditaduras
nacional-socialistas e as comunistas, ambas
infelizmente bem conhecidas pelos polacos.
Nós, os
democratas, apenas
temos dito, mais
ou menos nos
últimos 2500 anos,
desde a Atenas
de Péricles, que a
democracia apenas
permite o combate
à corrupção —
e, mesmo este,
sempre sujeito à
condição humana
da incerteza e do
erro. Por outras
palavras, como
dizia Karl Popper,
a democracia não
oferece certezas,
apenas oferece
esperança:
esperança
de melhorar,
de corrigir
gradualmente males
concretos, não de
garantir perfeições
abstractas.
Mas a esperança
da democracia
tem um preço: o
autocontrole dos nossos ódios particulares,
sob a disciplina comum de regras gerais
de boa conduta. Foi esse autocontrole
tranquilo, honrado, quase doce, que
os meus amigos polacos atribuíram aos
portugueses nestas duas últimas semanas.
Talvez tenham alguma razão.
Como dizia
Karl Popper, a
democracia
não oferece
certezas,
apenas oferece
esperança:
esperança
de melhorar,
de corrigir
gradualmente
males
concretos
Professor universitário, IEP-UCP
Escreve à segunda-feira
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Homenagem da Polónia à tranquila moderação portuguesa