O INQUÉRITO POLICIAL SOB A ÓTICA DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA: A
AMPLA DEFESA E O CONTRADITÓRIO COMO PRESSUPOSTOS
Monike de Souza Brasil1
RESUMO
O exercício dos princípios da ampla defesa e do contraditório no curso do inquérito policial
suscita uma intensa discussão doutrinária e jurisprudencial dada a relevância do tema. Pretendese esclarecer sobre quais argumentos parte da doutrina e também alguns julgados se apoiam para
afirmarem que são contrários à existência da ampla defesa e do contraditório no bojo do inquérito
policial; por outro lado, busca-se analisar o que sustenta a ampla defesa e o contraditório como
essenciais no curso do inquérito policial, já que há no ordenamento jurídico brasileiro, de maneira
geral, a preocupação com a criação e a manutenção do respeito à dignidade da pessoa humana, a
qual se tornou um dos pilares de sustentação da Constituição Federal de 1988. Dessa forma, o
que se objetiva é instigar uma análise crítica a respeito da teoria em que se funda o inquérito
policial, a qual determina que se trata de um procedimento administrativo, investigativo, interno e
inquisitório. Pretende-se evidenciar a importância da ampla defesa e do contraditório, sob forma
mitigada, no curso deste procedimento, tendo em vista a necessidade de garantir que os ditames
constitucionais sejam respeitados e aplicados na realidade fática.
Palavras-chave: constitucionalidade, ampla defesa, contraditório, dignidade da pessoa humana e
inquérito policial.
ABSTRACT
The use of the principles of the full defense and the contradictory in the course of criminal
investigation raises an intense doctrinal and jurisprudential debate given the relevance of the
topic. This essay aims to clarify the arguments on which part of the doctrine and some case law
are based upon to argue that they are opposed to the existence of the full defense and of the
contradictory in the midst of the criminal investigation. On the other hand, it seeks to analyze
what sustains the full defense and the contradictory as essential in the course of the criminal
investigation, as there is in the Brazilian legal system, in general, a concern about the creation
and the maintenance of the respect for the human being dignity, which became one of the pillars
of the Federal Constitution of 1988. Therefore, what is intended is to instigate a critical analysis
on the theory that supports the criminal investigation, which states that it is an administrative,
investigative, inquisitorial and internal procedure. The aim is to highlight the importance of full
defense and contradictory, under a mitigated form, in the course of this procedure, taking into
consideration the need of ensuring that constitutional provisions are respected and applied in the
factual reality.
Keywords: constitutionality, full defense, contradictory, human being dignity and criminal
investigation.
1
Estudante do curso de Direito do Centro Universitário do Pará – Cesupa.
1 CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES
Atualmente, com a preocupação cada vez mais elevada em cumprir os ditames impostos
pela Constituição Federal de 1988 ao ordenamento jurídico, haja vista que se busca aperfeiçoar a
instituição de um Estado Democrático de Direito no Brasil, no âmbito do Direito Penal, surge a
necessidade de se analisar com maior cautela todo o procedimento adotado pelo Estado, quando
da efetivação de seu jus puniedi, e a compatibilização deste com os princípios e normas
constitucionais.
Nesse diapasão, dentro do prisma do Direito Processual Penal, o início do procedimento
estatal que visa à aplicação do jus puniedi sobre qualquer indivíduo que venha a ser considerado
culpado pela prática de um crime é a fase pré-processual. Trata-se de um procedimento de
natureza investigativa, o qual servirá de base para a desenvoltura da fase processual propriamente
dita. Sabe-se que a parte responsável pela acusação necessita de indícios de autoria e provas de
materialidade do crime para obter sucesso no curso do processo penal, assim, para que seja
possível sanar tal necessidade é atribuída à Polícia Judiciária a função de instaurar, desenvolver e
concluir o inquérito policial.
Nesse sentido, a fase investigativa pode até não fazer parte do processo penal
propriamente dito, porém é inegável a sua intervenção, contribuição e participação no
procedimento estatal para a aplicação do jus puniendi. Dessa forma, é notório que devam ser
incutidas no inquérito policial as diretrizes presentes na Constituição Federal de 1988.
É de suma importância a análise crítica, sob o prisma constitucional, da fase préprocessual, ou seja, da investigação criminal, e, nesse contexto, é latente a necessidade de discutir
a importância do princípio da ampla defesa e do contraditório no curso do inquérito policial como
forma de garantir a preservação da dignidade da pessoa humana, “espinha dorsal” da
Constituição Federal brasileira. Busca-se demonstrar, fundamentalmente, quais os reflexos da
ausência, no curso do inquérito, de uma defesa ampla e de um direito a contra-argumentar do
investigado, sobretudo no que diz respeito à maculação da dignidade da pessoa humana.
Na tentativa de justificar tal entendimento trata-se dos temas mais controversos e
relevantes que envolvem o assunto proposto. Para isso, recorre-se ao paradigma constitucional, o
qual serviu de alicerce para toda a análise da fase de investigação criminal. Busca-se garantir uma
visão geral do que vem a ser inquérito policial, princípio da ampla defesa e do contraditório,
princípio da dignidade da pessoa humana e, a partir desses pressupostos, esclarecer sobre quais
argumentos parte da doutrina e também alguns julgados se apoiam para afirmar que são
contrários à existência da ampla defesa e do contraditório no bojo do inquérito policial. Por outro
lado, quais argumentos são utilizados por aqueles que acreditam na indispensabilidade da ampla
defesa e do contraditório na fase investigativa. Salienta-se, por fim, que dentro da perspectiva
desta última corrente, trata-se da possibilidade de a “defesa” e o contraditório garantir a
dignidade da pessoa humana no curso do inquérito policial. Também serão analisados os sistemas
penais e as implicações do mito do sistema misto no inquérito policial, bem como a possibilidade
de “desafogamento” do Poder Judiciário viabilizado pela existência dos dois princípios
constitucionais supracitados no curso da fase investigativa.
2 INQUÉRITO POLICIAL
Sabe-se que quando se transgride uma norma penal incriminadora, surge para o Estado o
jus puniendi, o qual tem como meio de concretização o devido processo legal. Porém, somente se
inicia o processo judicial quando se interpõe a ação penal em juízo. Assim, para que o Estado
possa punir criminosos é necessária a existência de uma ação penal. Esta, por sua vez, para ser
recebida precisa ser coerente e apresentar um mínimo de elementos probatórios que indiquem a
ocorrência do fato típico e sua autoria. Sendo assim, o inquérito policial surge como o meio mais
comum para a obtenção de provas que sustentam a propositura da ação penal em juízo.
Dessa forma, o inquérito policial por ser um procedimento que antecede a fase judicial
propriamente dita, também é conhecido como fase pré-processual, cujo principal objetivo é
garantir um alicerce probatório consistente para que a fase processual possa ser instaurada.
Seguindo essa definição, Pacelli (2009, p. 43) explica:
A fase de investigação, portanto, em regra promovida pela policia judiciária, tem
natureza administrativa, sendo realizada anteriormente à provocação da jurisdição penal.
Exatamente por isso se fala em fase pré-processual, tratando-se de procedimento
tendente ao cabal e completo esclarecimento do caso penal, destinado, pois, à formação
do convencimento (opinio delicti) do responsável pela acusação.
Em consonância com o artigo 4º do CPP o qual determina que “a polícia judiciária será
exercida pelas autoridades policiais no território de suas respectivas circunscrições e terá por fim
a apuração das infrações penais e da sua autoria”, o inquérito policial pode ser conceituado como
um procedimento de natureza administrativa que tem por finalidade investigar as provas
materiais de ocorrência de um crime, assim como seus indícios de autoria. Busca-se, com isso, o
fornecimento das provas necessárias ao Ministério Público ou ao ofendido para que eles possam
oferecer a denúncia ou queixa-crime, respectivamente e, por conseguinte, iniciar a ação penal
correspondente.
O inquérito policial é o instrumento pelo qual o delegado de polícia materializa a
investigação criminal por ele conduzida e obtém provas, as quais serão utilizadas em juízo contra
o autor do delito.
No mais, vale destacar que o inquérito possui algumas características que o definem. A
primeira delas é a inquisitorialidade, já que, teoricamente, por não se tratar de uma fase
processual não são respeitados os direitos fundamentais do acusado, tais como: publicidade dos
atos praticados, ampla defesa, contraditório, dentre outros, que por sua vez são características que
desenham o sistema penal acusatório. Nesse sentido, Azevedo(2010) afirma que
(...) o procedimento deve ser constituído por atividades persecutórias que se concentram
nas mãos de uma única autoridade, a qual, por isso, prescinde, para a sua atuação, da
provocação de quem quer que seja, podendo e devendo agir de ofício, empreendendo,
com discricionariedade, as atividades necessárias ao esclarecimento do crime e da sua
autoria.
Além de inquisitivo, o inquérito policial é também dispensável, pois “não é
indispensável à propositura de ação penal, já que a acusação poderá formar o seu convencimento
a partir de quaisquer outros elementos probatórios” (PACELLI, 2009, p. 43). Ademais, o
procedimento de investigação, conforme o art. 8° do CPP, é escrito, sendo que, ao final das
investigações, o delegado deverá fazer um relatório escrito, o qual será enviado ao Ministério
Público, dando-se por encerrada a fase investigatória.
Indisponível é outra característica do inquérito, já que, uma vez instaurado, conforme o
art. 17 do CPP, a autoridade policial jamais poderá arquivá-lo, tendo em vista que tem por objeto
valores de natureza pública, não podendo, portanto, o delegado de polícia, segundo o seu juízo
discricionário de conveniência e oportunidade, arquivá-lo.
Além disso, segundo o art. 20 do CPP, o inquérito é sigiloso. Não é qualquer pessoa que
pode ter acesso aos autos do inquérito, como ocorre com processos judiciais que não estão sob
segredo de justiça, com o argumento de que atrapalharia a atividade de investigação. Dessa
forma, os autos do inquérito poderão ser acessados, via de regra, pelo representante do Ministério
Público, pela autoridade judiciária e, também, pelo advogado do investigado.
O inquérito policial também é oficial – não podendo o particular exercê-la, mesmo em se
tratando de ação penal privada, cuja titularidade é atribuída ao ofendido – e obrigatório, de
acordo com o art. 5°, inciso I, do CPP, o qual postula que em se tratando de crime que se apura
mediante ação penal pública, tendo a autoridade conhecimento da infração, é obrigatória a
instauração do inquérito policial. Como corolário desse entendimento, se o delegado não instaura
o inquérito poderá infringir o art. 319 do Código Penal (prevaricação), haja vista o seu dever e
não a sua opção. De outro lado, como bem explica Azevedo(20010)
(...) no que diz respeito aos crimes de ação penal pública condicionada, e de ação penal
privada, a autoridade policial só poderá dar início às diligências policiais e instaurar o
inquérito, havendo, na primeira modalidade de ação, a representação do ofendido (CPP,
art.5º, § 4º), e, na segunda, o requerimento de quem tenha qualidade para intentá-la
(CPP, art.5º, § 5º).
Este breve panorama do inquérito policial suscita reflexões sobre a forma como esse
procedimento é concebido, efetivado. Seguem explanações sobre o tema, concluindo-se pela
importância e compatibilização da existência da ampla defesa e do contraditório no curso da fase
investigativa, como forma de garantir a dignidade da pessoa investigada.
3 OS PRINCÍPIOS DO CONTRADITÓRIO E DA AMPLA DEFESA
De acordo com o art. 5º, inciso LV da Constituição Federal, a ampla defesa garante às
partes de um litígio judicial o direito de serem ouvidas, de apresentar suas razões e de contraargumentar as alegações feitas pela parte oponente. Por meio da ampla defesa pode-se prestar a
tutela jurisdicional de forma coerente com os direitos fundamentais insculpidos na Constituição
de 1988, visto que o processo prevê um mecanismo que evita julgamentos unilaterais, arbitrários,
além de conceder uma maior clareza e transparência ao procedimento judicial, o que se traduz
como fundamental para manutenção de um Estado democrático de direito.
Por esse motivo, sabe-se que o advogado ou defensor público das partes, juntamente
com seus clientes, devem participar ativamente de sua defesa, para que seja garantida a existência
da defesa técnica, a qual, por força da súmula 705 do STF, é obrigatória.
Outra vertente do princípio da ampla defesa é a autodefesa, o direito que o acusado
possui de produzir provas a seu favor e de estar presente na produção de provas do demandante,
salvo algumas exceções previstas em lei.
Além disso, muitos juristas, entre eles Almeida(2010) defendem a tese de que a ampla
defesa é, sobretudo, “algo que se encontra arraigado ao ser humano, é uma necessidade inata do
indivíduo, é algo que resulta do próprio instinto de defesa que orienta todo ser vivo”. Eis, então, a
explicação para sua essencialidade diante de um conflito judicial.
Ressalta-se que para haver plena aplicabilidade da ampla defesa é necessário que todas
as partes envolvidas no litígio possam exercer os direitos que lhe foram assegurados pelas
legislações vigentes. Os mais nítidos deles seriam o direito à produção de prova e o direito a
argumentar e contra-argumentar em juízo a seu favor.
Por fim, destaca-se que a realização efetiva do contraditório é um dos pilares da ampla
defesa. Tais princípios encontram-se entrelaçados e intimamente ligados. Porém, de acordo com a
súmula 523 do STF, não basta apenas conceder ao réu o direito de se manifestar no processo
(contraditório); essa manifestação deve ocorrer de fato. Cabe diferenciar, portanto, que o
princípio da ampla defesa vai além do princípio do contraditório, haja vista que enquanto este
exige a garantia de participação, aquele impõe a realização efetiva desta participação, sob pena
de nulidade, caso o prejuízo pela sua não observância tenha que ser suportado pelo acusado.
Nesse caso, com razão Pacelli (2009) diz que a ampla defesa realiza-se por meio da
defesa técnica, da autodefesa, da defesa efetiva e, finalmente, por qualquer meio de prova hábil a
demonstrar a inocência do acusado.
Quanto ao princípio do contraditório, este tem previsão legal no art. 5º, LV da CF e é
comumente conhecido como “o direito de resposta”, isto é, o acusado tem o direito de rebater
todos os argumentos da parte contrária. Carvalho (2006) ratifica esta idéia dizendo que, pelo
princípio do contraditório, se há direito de ação para o autor, há também direito de defesa para o
réu, explicitando a necessidade de garantir a “resposta” do acusado face à ação penal deduzida
em juízo. Conforme Marques (2003, p. 87) “sem contraditório não pode haver devido processo
legal. Uma vez que a lide tem sentido bilateral, porque a sua parte nuclear é constituída por
interesses conflitantes, o processo adquire caráter verdadeiramente dialético (...)”.
Além disso, muitos autores concordam que o contraditório está a serviço do direito de
defesa, ou seja, prioriza a defesa ou o réu, tanto é assim que, em regra, é a acusação que faz a
defesa oral primeiro e se a parte que se defende não tiver acesso ao contraditório o processo é
nulo (causa de nulidade absoluta), podendo ser declarado de ofício pelo juiz. Desse modo, Pacelli
(2009, p. 33) alerta que “o contraditório constitui verdadeiro requisito de validade do processo, na
medida em que a sua não-observância é passível até de nulidade absoluta, quando em prejuízo do
acusado”.
Em contrapartida, se a acusação não tiver acesso ao contraditório ao longo do processo,
esse só será nulo se o promotor responsável pleitear a nulidade. Se assim não o fizer, o direito à
anulação do processo preclui, haja vista que a nulidade, aqui, é relativa.
Dessa forma, é nítido o tratamento diferenciado em relação à importância que é dada ao
contraditório quando se refere à defesa e, de outro lado, à acusação. O contraditório, de fato,
privilegia a defesa, ou melhor, o respeito a este princípio é mais rigoroso quando se trata da
defesa, ficando evidente a preocupação com os direitos do réu, fato que sugere uma visão
garantista do sistema penal brasileiro. Nesse sentido, Pacelli (2009, p. 25) observa que
(...) o risco de condenação de um inocente há de merecer muitos e maiores cuidados que
o risco da absolvição de um culpado. Não porque os danos levados ao réu pela pena
sejam maiores que aqueles causados à vítima no crime, mas porque toda e qualquer
reconstrução da realidade (a prova processual) submete-se à precariedade das regras do
conhecimento humano.
A idéia de que o contraditório privilegia os direitos do acusado tem guarida na
constatação de que
o Estado é sempre mais forte, agindo por órgãos constituídos e preparados, valendo-se
de informações e dados de todas as fontes às quais tem acesso, assim, merece o réu um
tratamento diferenciado e justo, razão pela qual a ampla possibilidade de defesa se lhe
afigura a compensação devida pela força estatal (NUCCI, 2008, p. 82).
Ademais, atualmente, o princípio do contraditório agrega o direito de reação na mesma
intensidade e extensão que fora concedido a outra parte, não se resumindo mais apenas ao direito
de se manifestar, pura e simplesmente.
Em suma, os princípios da ampla defesa e do contraditório, como afirma Carvalho (2006),
genericamente incluem a possibilidade de contraditar as provas produzidas, tomar conhecimento
das alegações da parte contrária, contra-alegar, e, finalmente, tomar ciência dos atos e decisões
para poder impugná-los. Somente dessa forma, sob o prisma da Constituição Federal, estar-se-á
garantido o pleno direito à defesa no curso de um processo judicial.
4 AMPLA DEFESA X “DEFESA”: ADEQUAÇÃO À REALIDADE DO INQUÉRITO
POLICIAL
Apesar da necessidade da aplicação dos princípios do contraditório e da ampla defesa no
escopo do inquérito, ressalta-se que tal defesa não deverá ser ampla, isto é, não deve ser a mesma
ofertada no curso de um processo judicial, na qual se admite irrestrita produção de provas para
fundamentar a defesa do acusado. A bilateralidade de todos os atos praticados pelo delegado de
policia no inquérito, bem como a aplicação da regra de dar ciência as partes envolvidas de tudo
aquilo que for produzido, certamente comprometeria a eficiência do inquérito policial, tendo em
vista sua natureza investigativa. Ou seja, tanto a ampla defesa quanto o contraditório deveriam
ser contemplados na fase pré-judicial de forma mitigada, mais branda, diferenciada, vindo a
atender os objetivos do procedimento investigatório, não impedindo que ele pudesse cumprir com
sua função e também não violando o direito à mínima defesa do indiciado.
Portanto, entende-se que a defesa deve ser aceita, não ampla e irrestritamente, mas na
exata medida de resguardar os direitos fundamentais do cidadão de forma a coibir excessos
praticados pelas autoridades responsáveis pela investigação criminal(2010).
Opta-se pela existência da ampla defesa e do contraditório em uma versão híbrida, a qual
contempla em um mesmo instituto o atendimento ao direito de defesa do investigado, aliando-se
a isto a necessidade de garantia da dignidade da pessoa humana do curso do inquérito, e o
respeito aos aspectos inerentes a uma investigação criminal, a qual, muitas vezes, para obter
sucesso, deverá restringir alguns direitos do réu, desde que lhe seja garantido o mínimo
constitucional para a manutenção de sua dignidade. Assim, defende-se a existência de uma
“defesa” e não de uma “ampla defesa” durante a fase investigativa, tal como deve ocorrer com o
contraditório.
5
O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA
A grande maioria da doutrina concorda e afirma que a definição ou a explicação objetiva
da idéia de dignidade não possuem contornos bem delimitados e claros. Ao contrário, há uma
carga de subjetividade e abstração neste conceito. No entanto, a dificuldade em definir a
dignidade não é, nem pode ser, utilizada como argumento para a inaplicabilidade concreta do
princípio da dignidade humana, o qual é vivo, real, pleno e está em vigor, devendo ser levando
em conta sempre, em qualquer situação.
Nesse diapasão, Nunes (2009, p. 52) discorre:
(...) é difícil a fixação semântica do sentido de dignidade, isso não implica que ela possa
ser violada. Como dito, ela é a primeira garantia das pessoas e a última instância de
guarida dos direitos fundamentai. E é visível sua violação, quando ocorre. (...) mesmo
que se possa postular por posições diversas na definição do conceito de dignidade, isso
não impede que na prática social se possam apontar as violações reais que contra ela se
realizem.
Ainda no sentido de esclarecer o que vem a ser dignidade, deve-se saber que esta nasce
com o próprio homem, é algo inerente ao ser humano. Assim, segundo Nunes (2009), “a
dignidade nasce com a pessoa. É-lhe inata. Inerente à sua essência”, portanto, o homem é digno
pelo simples fato de ser humano.
Dito isso, é importante salientar que a idéia de dignidade foi construída ao longo do
tempo. Em muitos momentos históricos o homem cometeu atrocidades contra seus semelhantes,
mostrando seu lado mais perverso e cruel. A repulsa às praticas nazistas, fascistas, inquisitórias,
por exemplo, justifica-se pelo desrespeito ao que o homem tem de mais valioso: sua dignidade.
Nesse mesmo raciocínio, Nunes (2009, p. 48 e 49) explica:
É por isso que se torna necessário identificar a dignidade da pessoa humana como uma
conquista da razão ético-jurídica, fruto da reação à história de atrocidades que,
infelizmente, marcam a experiência humana.
(...) para definir dignidade é preciso levar em conta todas as violações que foram
praticadas, para, contra elas lutar.
Em suma, tem-se que a dignidade é inerente ao ser humano, sendo que este é merecedor
dessa pelo simples fato de ser humano, mas não só isso, a dignidade mostra-se como um instituto
concebido ao longo do tempo e que se presta a resistir contra as investidas bestiais e cruéis do
homem.
Assim, a dignidade se mostra como algo supremo, que deve ser mantida incólume, sob
pena de condenar à pena capital a própria espécie humana. A importância da dignidade é tão
significante que alguns autores como Ekmekdjian ( NUNES, 2002, p. 52) afirmam que o direito à
vida – o qual é tido como o bem máximo – está hierarquicamente inferior ao direito à dignidade.
Os autores acordam que só há vida sem dignidade do ponto de vista biológico, porém, do ponto
de vista racional, que é o que difere o ser humano das outras espécies, a vida é muito mais que se
alimentar e reproduzir-se. De uma perspectiva ética, moral, filosófica e, portanto, essencialmente
humana, não há vida sem a concessão de direitos sociais básicos como moradia, emprego, lazer,
saúde etc. O homem como ser complexo que é necessita de um conjunto de fatores para poder
viver do ponto de vista ético. Esse conjunto de fatores reunidos configura exatamente a noção de
dignidade, ou seja, para que a dignidade possa ser vislumbrada, permitindo ao homem viver, é
fundamental a concretude dos direitos hoje denominados fundamentais. É interessante esclarecer
que a idéia de viver, sob o prima ético, nada mais é que a concepção de que a vida só é vivida
quando se tem qualidade de vida. Assim, não bastar estar vivo com todos os sinais vitais
normalizados e em pleno funcionamento. Para o homem, ser dotado de capacidade cognitiva, é
necessário a felicidade, a paz, a segurança jurídica, o exercício de seus direitos etc. Sem isso, o
ser humano não se realiza como homem, satisfazendo-se apenas enquanto ser vivo.
Diz-se, dessa forma, que a Constituição Federal delimitou um mínimo necessário para o
alcance de uma vida digna, que são exatamente a observância dos direitos fundamentais. Por isso,
conclui-se que o conteúdo do princípio da dignidade da pessoa humana é a realização efetiva dos
direitos fundamentais, tal qual o da ampla defesa e do contraditório.2
Diante desse cenário, é imperativo que se busque garantir e concretizar a dignidade a
todos os cidadãos. É nesse momento que o Direito vem ao socorro da sociedade, utilizando
mecanismos que possibilitem o respeito à dignidade humana, impondo limites à atuação tanto do
poder estatal, quando dos demais cidadãos, nas relações uns com os outros. Para tanto, a
Constituição Federal em seu artigo 1°, inciso III, determinou que a dignidade da pessoa humana
constitui um fundamento da República Federativa do Brasil. Salienta-se, como bem explicou
2
Celso Antônio Pacheco Fiorillo, em seu livro O Direito de Antena em face do Direito Ambiental no Brasil, usa a expressão “piso
vital mínimo” para se referir à idéia de um conteúdo essencial sobre o qual está pautada a concretude da dignidade da pessoa
humana.
Carvalho (2009),
que não é porque a Constituição colocou a dignidade humana como
fundamento que esta não configura como direito fundamental, na verdade, a dignidade não só é
direito fundamental como, para além disso, é, também, um fundamento do Estado brasileiro,
demonstrando, assim, a sua imponência e superioridade em relação a todas as normas e princípios
esculpidos na Carta Magna.
Com isso, impôs-se ao restante do ordenamento jurídico que passasse a se nortear pelo
princípio da dignidade humana. Isso porque, de acordo com a pirâmide Kelseniana, na qual a
Constituição ocupa o topo, o princípio constitucional que é supremo, o será também para todo
ordenamento. É o caso da dignidade da pessoa humana. A doutrina de maneira majoritária
concorda em afirmar que o princípio em tela é o mais importante da Constituição. É notória a
opção feita pelo legislador constituinte em submeter todo o sistema jurídico ao princípio da
dignidade da pessoa humana. Para Nunes (2002, p. 51)
(...) é um verdadeiro supraprincípio constitucional que ilumina todos os demais
princípios e normas constitucionais e infraconstitucionais. E por isso não pode o
Princípio da Dignidade da Pessoa Humana ser desconsiderado em nenhum ato de
interpretação, aplicação ou criação de normas jurídicas.
É coerente, pois, considerar que qualquer dispositivo ou procedimento que venha
contrariar os direitos fundamentais – cuja concretude compõe o conteúdo da dignidade humana –
deve ser considerado inconstitucional e, portanto, merece ser extirpado do ordenamento jurídico.
É o caso do inquérito policial.
6
OS FUNDAMENTOS DA CORRENTE CONTRÁRIA À EXISTÊNCIA DA AMPLA
DEFESA E DO CONTRADITÓRIO NO CURSO DO INQUÉRITO POLICIAL
A maioria da doutrina e também a tendência jurisprudencial são desfavoráveis a
possibilidade de aplicação dos princípios da ampla defesa e do contraditório no curso do
Inquérito Policial, ou mesmo de uma “defesa” ou contraditório mitigados (como já foi dito, é
notório que a ampla defesa e o contraditório na concepção plena são inviáveis de serem
praticados na fase de investigação criminal). Os principais argumentos que norteiam esta corrente
circundam os aspectos constituintes do Inquérito, isto é, prendem-se aos aspectos formais desse
procedimento. Assim, afirmarão, fundamentalmente, que por não se tratar de uma fase processual
propriamente dita, os direitos do acusado não podem ser semelhantes ao do investigado. Soma-se
a este argumento outros de ordem também formal, isto é, analisa-se o procedimento em sua
“estrutura”, e, a partir disso, conclui-se pela impossibilidade do exercício da defesa e do
contraditório.
Essa corrente não analisa de maneira global os reflexos que o inquérito possui, nem
mesmo leva em consideração que tal instituto compõe o ordenamento jurídico, apesar de não ser
fase processual, e, além disso, não considera o objetivo concreto, a utilização real do inquérito,
que é a de produção de provas contra o indivíduo que, em tese, não é utilizada para condená-lo.
Assim, pode-se dizer que a corrente tratada não se apega à realidade factual que envolve o
inquérito policial, mas tão-somente teórica ou formal. Segue a análise dos principais argumentos
adotados contra a existência da ampla defesa e do contraditório na investigação criminal.
6.1 ASPECTOS
TEÓRICA
CONSTITUINTES
DO
INQUÉRITO
POLICIAL:
UMA VISÃO
O primeiro argumento desta corrente doutrinária e jurisprudencial reside no fato de o
inquérito ser tido como uma fase pré-processual, ou seja, não seria necessário o respeito ao
direito fundamental à defesa (concretizado pela aplicação da ampla defesa e do contraditório),
tendo em vista que não se está em sede judicial, mas tão-somente em sede administrativa.
Afirmam os adeptos a esta idéia que somente no curso da ação penal propriamente dita é que
cabe o exercício pleno do direito à defesa, crendo que o art. 5º, LV da CF prevê a ampla defesa e
o contraditório apenas nos processos judiciais ou administrativos em que se faça presente a figura
do acusado. Dessa forma, Tourinho Filho (2009, p. 70) determina que “Se no inquérito não há
acusação, mais investigação, não se pode admitir contraditório naquela fase preambular da ação
penal”. [grifo nosso].
Em outras palavras, diz-se que no inquérito há investigado e, por vezes, indiciado,
jamais acusado. Isto é, o indiciado seria apenas objeto de investigação de um procedimento
administrativo, sendo assim, não seria parte passiva de um litígio judicial, portanto, não haveria
sentido garantir a esse uma postura participativa em um procedimento “interno”, inquisitivo.
Morais (2006, p. 96 e 97) ratifica esta idéia:
O contraditório nos procedimentos penais não se aplica aos inquéritos policiais, pois a
fase investigativa é preparatória da acusação, inexistindo, ainda acusado, constituindo,
pois, mero procedimento administrativo, de caráter investigatório, destinado a
subsidiar a atuação do titular da ação penal, o Ministério Público. [grifo nosso].
Outro argumento diz respeito ao inquérito não ter o condão de condenar o investigado.
Isso porque tratar-se-ia apenas de uma investigação criminal a qual, por ser mera investigação,
não importaria em condenação do indivíduo mesmo que provas contundentes fossem
encontradas. Ou seja, a idéia básica é a de que o delegado de polícia não é juiz, portanto, não
condena nem absolve ninguém e como o direito à ampla defesa e ao contraditório só se
justificaria quando da eminência de uma condenação, então, no inquérito tais institutos seriam
dispensáveis. Tourinho Filho (2009, p. 70) entende que “Ora, se o inquérito não tem finalidade
punitiva, por óbvio não se admite o contraditório”.
Ademais, Tourinho Filho (2009), lembrando do dispositivo constitucional estabelecido
no artigo 5°, LV da Constituição Federal de 1988, acredita que as expressões “acusados em
geral” e também “aos litigantes”, não guardam relação com a fase investigativa. Isso porque
afirmam que “acusados em geral” não engloba os envolvidos em um mero procedimento
administrativo e, além disso, que no inquérito não há “litigante”, mas tão-somente o Estadopolícia e o investigado.
Ainda como argumento utilizado, tem-se o simples fato de que a natureza do inquérito é
inquisitorial. Assim, formalmente, o inquérito não deve ser eivado dos direitos à ampla defesa e
ao contraditório, nem mesmo se mitigados, simplesmente porque se instituiu que a natureza deste
procedimento é inquisitorial. Neste raciocínio, Barbosa (2007) esclarece que o inquérito policial,
por sua natureza, é inquisitório, sigiloso e não permite defesa.
Além disso, alguns doutrinadores entendem que a presença dos princípios
constitucionais da ampla defesa e do contraditório no curso da investigação criminal tumultuaria
o procedimento de forma tão agressiva, que acabaria por comprometê-lo, fadando-o ao fracasso.
Nesse sentido, de maneira incisiva, Marques (2000, p. 89) discorre:
A investigação policial, ou inquérito, tem mesmo de plasmar-se por um procedimento
não contraditório (...) absurdo de adotar sistema diverso, como o dizia Astolfo de
Resende, deixando, assim, “desamparo o interesse superior da coletividade” e
“estabelecendo o que não se em parte nenhuma, e é absolutamente impraticável – a
investigação contraditória, ou seja, - a investigação acompanhada, perturbada,
aniquilada, pela intervenção, à luz do sol, do malfeitor que a sociedade precisa punir”.
O mesmo autor ainda acredita que “Ao contrário do que pensam alguns, não se deve
tolerar um inquérito contraditório, sob pena de fracassarem as investigações policiais sempre que
surja um caso de difícil reparação” (MARQUES, 2009, p. 167).
Por fim, ainda nesse contexto, acredita-se que a concessão dos direitos à defesa no
inquérito privilegiaria o interesse do particular em detrimento do interesse coletivo, no sentido de
repressão à criminalidade. Dessa forma, estar-se-ia violando o princípio da supremacia do
interesse público. Dermercian e Maluly (2009) comungando desse entendimento, explicam que
sob a aparência de proteger direitos do cidadão, a idéia de transportar o contraditório para o
inquérito prejudica o interesse público de repressão da criminalidade.
Cabe ainda destacar alguns julgados do Superior Tribunal de Justiça, do Supremo
Tribunal Federal, bem como do Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina. Tais julgados
evidenciam a defensa da incompatibilização ou desnecessidade dos princípios constitucionais em
discussão com o procedimento do inquérito policial. É nesse sentido que o HC38831/MG;
HABEASCORPUS foi proferido pelo STJ:
2004/0143959-4 Relator(a) Ministro ARNALDO ESTEVES LIMA (1128) Órgão
Julgador T5 - QUINTA TURMA Data do Julgamento 12/04/2005 Data da
Publicação/Fonte DJ 20.06.2005 p. 310
Ementa: PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. DENUNCIAÇÃO
CALUNIOSA. JUSTA CAUSA. LIMITES DO HABEAS CORPUS. INQUÉRITO
POLICIAL. INAPLICABILIDADE DOS PRINCÍPIOS DA AMPLA DEFESA E DO
CONTRADITÓRIO. AÇÃO PENAL. ORDEM DENEGADA
1. Em sede de habeas corpus, conforme pacífico magistério jurisprudencial, somente se
admite o trancamento de inquérito policial ou ação penal por falta de justa causa, quando
desponta, induvidosamente, a inocência do indiciado, a atipicidade da conduta ou a
extinção da punibilidade, circunstâncias não demonstradas na hipótese em exame.
2. As impressões dos impetrantes sobre a parcialidade das autoridades locais não podem
ser consideradas, haja vista que não teriam o condão de afastar a tipicidade da conduta
das pacientes, objetivamente relatadas nos autos, além da impossibilidade de dilação
probatória na via estreita do habeas corpus.
3. Eventuais vícios procedimentais ocorridos no inquérito policial não teriam o condão
de inviabilizar a ação penal, haja vista que aquele constitui mera peça informativa, não
sujeito aos princípios da ampla defesa e do contraditório.
4. Ordem denegada.
Depreende-se do julgado acima que a jurisprudência tende a não considerar que vícios
no inquérito policial ocasionem a extinção da ação penal que fora baseada neste procedimento.
Isso porque, firma-se posição no sentido de que o inquérito é peça meramente informativa. Vale
lembrar, todavia, que caso o mesmo vício ocorrido na fase investigativa ocorresse no curso ação
penal, provavelmente isto acarretaria em sua anulação.
Quanto ao Supremo Tribunal Federal, julgados semelhantes podem ser vislumbrados, no
mesmo sentido dos julgados do proferidos pelo STJ acima mencionados, conforme as decisões
que seguem:
Inq1070/TOCANTINS
Relator(a): Min. SEPÚLVEDA PERTENCE
Julgamento: 24/11/2004 Órgão Julgador: Tribunal Pleno
Publicação: DJ 01-07-2005 PP-00006 EMENT VOL-02198-01 PP-0014
EMENTA: I. Denúncia: cabimento, com base em elementos de informação colhidos em
auditoria do Tribunal de Contas, sem que a estes - como também sucede com os colhidos
em inquérito policial - caiba opor, para esse fim, a inobservância da garantia ao
contraditório. II. Aprovação de contas e responsabilidade penal: a aprovação pela
Câmara Municipal de contas de Prefeito não elide a responsabilidade deste por atos de
gestão. III. Recurso especial: art. 105, III, c: a ementa do acórdão paradigma pode servir
de demonstração da divergência, quando nela se expresse inequivocamente a dissonância
acerca da questão federal objeto do recurso.
O Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina também acompanha o entendimento
dos Tribunais Superiores em relação à matéria tratada, optando por considerar o inquérito como
instrumento meramente informativo e, em assim sendo, não poderia contemplar a ampla defesa e
o contraditório. Além disso, qualquer irregularidade cometida ao longo do inquérito não seria
capaz de causar a nulidade da ação penal. Essa é a idéia que transparece no seguinte julgado:
HC77770/SC-SANTACATARINA-HABEASCORPUS
Relator(a): Min. NÉRI DA SILVEIRA
Julgamento: 07/12/1998 Órgão Julgador: Segunda Turma
Publicação: DJ 03-03-2000 PP-00062 EMENT VOL-01981-04 PP-00670
EMENTA: - Habeas Corpus. 2. Não cabe, em habeas corpus, discutir fatos e provas já
considerados pela Corte competente, no aresto que recebeu a denúncia e nos limites do
juízo de delibação aí cabível. 3. No caso, não é possível, desde logo, afirmar a
improcedência da denúncia. Tratando-se de fato típico e havendo indícios de autoria e
materialidade, impõe-se o prosseguimento da ação penal. 4. Com apoio no art. 129 e
incisos, da Constituição Federal, o Ministério Público poderá proceder de forma ampla,
na averiguação de fatos e na promoção imediata da ação penal pública, sempre que
assim entender configurado ilícito. Dispondo o promotor de elementos para o
oferecimento da denúncia, poderá prescindir do inquérito policial, haja vista que o
inquérito é procedimento meramente informativo, não submetido ao crivo do
contraditório e no qual não se garante o exercício da ampla defesa. 5. Conversão do
julgamento de 10.11.98 em diligência para que os impetrantes formalizassem, em
petição, o fundamento novo invocado da tribuna, com apoio no fato do arquivamento da
Representação e à vista do conteúdo do acórdão do Tribunal de Justiça de Santa
Catarina. 6. Arquivamento do procedimento administrativo disciplinar contra o paciente,
tendo em conta que os fatos já estavam sendo apurados na ação penal. Irrelevância, em
face da autonomia das instâncias administrativa e penal. 7. Habeas corpus indeferido e
cassada a liminar.
7 ANÁLISE CRÍTICA, SOB O PRISMA CONSTITUCIONAL, DO PROCEDIMENTO
DO INQUÉRITO POLICIAL
Em contraposição a corrente já exposta, nesse momento, passa-se a explicação dos
principais argumentos que embasam a corrente doutrinária e jurisprudencial que entendem ser a
“defesa” e o contraditório fundamentais no curso da fase investigativa. Não só isso, tal corrente
acredita ser os dois princípios constitucionais compatíveis com a função precípua do inquérito –
investigação e colheita dos indícios de autoria e prova de materialidade do crime – desde que se
apresentem na forma mitigada. Aqueles que comungam desta idéia procuram garantir uma
coerência entre as diretrizes da Carta Magna e a prática do inquérito policial. O inquérito é algo
que está inserido no ordenamento jurídico, portanto, deve se adequar à Constituição, sob pena de
violar a Lei Maior, e com isso, ferir os valores eleitos como fundamentais.
A corrente a ser apresentada não se prende aos aspectos constituintes e, portanto,
formais do inquérito. Busca-se uma visão mais real, mais próxima do que ocorre de fato no dia-adia da atividade policial e judiciária no que diz respeito à feitura da investigação criminal. É
sabido que a teoria nem sempre condiz com a realidade. O que se busca é produzir teorias que
modifiquem práticas ilegais, abusivas, incoerente com o Estado Democrático de Direito instituído
pela Constituição de 1988.
7.1 A “DEFESA” E O CONTRADITÓRIO COMO FORMA DE GARANTIR A DIGNIDADE
DA PESSOA HUMANA NO CURSO DO INQUÉRITO POLICIAL
Faz-se necessário retomar o paradigma constitucional que faz da dignidade da pessoa
humana a estrela máxima do universo principiológico(NUNES, 2002, p.56) para, então, destacar
quais os principais argumentos que corroboram para a existência da ampla defesa e do
contraditório na fase pré-processual, a partir de constatações que envolvem a realidade factual do
inquérito policial.
Fazendo-se um adendo ao que fora dito quando da explicação do princípio da dignidade
humana e na tentativa de direcionar a aplicação deste princípio ao objeto de estudo do presente
artigo, tem-se que o princípio da ampla defesa e do contraditório são direitos fundamentais, por
isso, merecem concretude e, mais que isso, exigem que o sistema jurídico como um todo se
adéqüem aos seus ditames. Caso tal raciocínio não seja posto em prática – como ocorre no
inquérito policial, que apesar de ser uma fase pré-processual é um procedimento previsto no
ordenamento jurídico e, portanto, deve respeito aos preceitos constitucionais – violar-se-ia o
próprio direito fundamental à defesa e macular-se-ia, como conseqüência, a dignidade da pessoa
humana, já que a essência deste princípio reside no respeito e na concreção dos Direitos
Fundamentais elencados na Constituição de 1988. Vale lembrar que dentre esses princípios está a
ampla defesa e o contraditório.
Não é possível que em um Estado Democrático de Direito viole o direito à defesa. Nesse
sentido, qual o cidadão que poderá viver, do ponto de vista ético, ou melhor, viver com garantia
de uma qualidade de vida satisfatória, sem que seu direito a defender-se do aparelho estatal, por
ocasião da realização de seu jus puniendi, seja respeitado? De fato, isto não é possível, por isso, a
dignidade da pessoa humana é, nos casos de desrespeito aos Direitos Humanos, confrontada
diretamente.
Assim, sabendo que a Constituição é hierarquicamente superior a todas as demais
normas, já que estaria no topo da pirâmide idealizada por Hans Kelsen, uma vez que o texto
constitucional (art. 1°, III) previu a dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos da
República Federativa do Brasil, exaltando a sua proeminência em relação a todos os demais
princípios e normas jurídicas. É evidente que a dignidade da pessoa humana deva ser não só
respeitada, como também perseguida. A violação deste princípio incorre em uma afronta brutal à
Carta Magna.
Não se pode imaginar que a dignidade da pessoa humana, tenha reconhecimento e
respeito adstrito apenas à fase processual. O texto constitucional abrange o ordenamento jurídico
como um todo. Sabendo que o inquérito policial faz parte desse ordenamento, deve haver em seu
bojo a preocupação com a manutenção da dignidade da pessoa humana do investigado. Para
tanto, deveria ser inafastável a presença da ampla defesa e do contraditório, ainda que em forma
mitigada, durante a investigação policial.
Dito isso, parte-se para a análise da realidade fática do inquérito policial, a qual
evidenciará a importância da “defesa” e do contraditório neste procedimento, e, dessa forma,
rechaçar-se-á os principais argumentos da corrente doutrinária e jurisprudência contrária a esta
idéia. Para isso é fundamental que se adote o paradigma constitucional, que por sua vez impõe o
respeito à dignidade da pessoa humana acima de qualquer outro interesse.
Inicialmente, sabe-se que distante da idéia de ser o inquérito um procedimento
“meramente interno”, que não tem validade nenhuma caso o indiciado não adentre em um
processo judicial – o qual possui todas as garantias de defesa – na prática, o inquérito policial
sempre será motivo de constrangimento para a pessoa investigada. Isso porque a sociedade
entende o inquérito como o procedimento que investiga o “autor do crime”. Assim, na teoria, esse
procedimento pode até não ter o condão de condenar ninguém, como afirmam muitos autores, no
entanto, na prática, no momento em que se instaura um inquérito policial para investigar um
cidadão e não se abre espaço para que esse se manifeste sobre o ocorrido, este passa a ser, na
visão da sociedade, um criminoso. Isso é, há um julgamento moral sobre a pessoa indiciada, sem
que ela possa evitá-lo, ou ao menos defender-se. Dessa forma, estar-se-ia em desconformidade
com o art. 5º, X, da CF, pois não seria garantida plenamente a inviolabilidade da intimidade, da
honra e da imagem das pessoas, tendo em vista a ausência de defesa nesse procedimento.
Assim, defende-se a idéia de que é necessária a existência de pelo menos uma mínima
defesa no interior de um inquérito policial, haja vista o constrangimento que este, por si só, traz à
pessoa indiciada. Por isso, esta deveria ter o direito de se manifestar e se defender de algo que
atente contra sua idoneidade, ou imagem perante a sociedade. Silva(2010) põe em relevo que
O inquérito policial pode ser considerado processo administrativo em sentido amplo,
assim como àquele considerado indiciado também é um acusado em sentido amplo. Não
o é formalmente, mas é inegável que sua posição jurídica é desconfortável e não deixa
de a ele ser imputada, pelo menos indiciariamente, a autoria de um delito.
Seguindo semelhante raciocínio, Pacelli (2009, p. 44) afirma que
(...) a instauração de investigação criminal, por si só, uma afetação no âmbito do
espaço de cidadania plena do investigado (isto é, na constituição de sua dignidade
pessoal e de sua reputação social, além do evidente transtorno na sua
tranqüilidade) (...) [grifos meus].
Nesse sentido, é desejável a existência de um inquérito policial garantista, pois o
julgamento moral que recai sobre o indiciado devia ser merecedor de uma defesa por parte deste.
Do contrário, se estaria retrocedendo e invalidando, nessa situação, os princípios fundamentais
ora existentes. E, como já dito, ignorar os Direitos Fundamentais implica negar, suprimir, a
dignidade da pessoa humana.
Fala-se em justiça penal quando se defende a existência da ampla defesa ou de uma
“defesa” no inquérito policial. Isso porque um inquérito garantista e constitucional adequar-se-ia
à realidade e não permitiria que indivíduos fossem taxados pela sociedade de criminosos, sem ao
menos terem a chance de provar, em fase inicial, sua inocência e evitar graves conseqüências de
difícil ou até mesmo impossível reparação.
O pensamento é simples, se há investigações é porque se sugere a autoria do crime por
certo indivíduo, sendo assim, este deveria ter o direito de se defender dessa sugestão unilateral, e
não apenas em grau de litígio judicial, já que não fora apenas lá que se iniciou o seu
constrangimento, a perturbação a sua dignidade. Em acordo, Bozolo(2010) esclarece:
Aos litigantes, mesmo no administrativo, são assegurados, diz a Carta Magna, o
contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes. Ora, a polícia
judiciária está praticamente "formando a culpa" do indiciado, e a ele há de se aplicar o
contraditório, e com muito mais razão, a ampla defesa. Ad argumentandum: se não há
indiciado, não há que se falar em contraditório ou ampla defesa, mas, havendo indiciado,
inafastável o imperativo constitucional.
Além disso, é notório que o inquérito policial serve de base para a ação penal, portanto,
não cabe o argumento de que neste procedimento não há nada de concreto contra o indivíduo que
possa ter força suficiente para ensejar a integração de uma defesa em seu curso. O que
fundamenta a propositura de uma ação penal para em seguida haver acusação é exatamente o que
fora colhido durante o inquérito. Ou seja, uma coisa leva a outra, ferindo os direitos fundamentais
na fase investigatória – mesmo que tais direitos mereçam ser minimamente respeitados, como é o
caso da “defesa” e não de uma “ampla defesa” – se compromete também a abertura da ação
penal, a qual pode acabar por ser proposta sem que o indiciado mereça torna-se acusado. É nesse
contexto que vem à tona a justiça penal.
Acredita-se que uma vez que o inquérito policial se destina a servir de base à denúncia
ou queixa, ou melhor, a servir de fundamento para a instauração de um processo penal contra o,
até então, indiciado, seria contrário a qualquer senso de justiça, afastar o investigado desse
procedimento, como se ele não tivesse nada a ver com a sua própria liberdade.
Assim, antes de se submeter uma pessoa ao constrangimento de sentar no "banco dos
réus", há de apurar um mínimo de indícios que autorizem o início da ação penal. No entanto,
esses indícios devem ser apurados com a colaboração, sob forma de defesa, da pessoa indiciada.
Do contrário, macular-se-ia o art. 5º, X da CF e, sobretudo, o art. 1°, III da CF, o que, de fato, é
mais grave, haja vista que a dignidade humana deve estar acima de qualquer outro interesse.
Todo o sistema jurídico deve se adequar às exigências deste princípio e não o contrário.
Por fim, defende-se a aplicação do contraditório e de uma defesa mínima no bojo do
inquérito policial, uma vez que o art. 5°, inciso LV da Constituição Federal faz referência a
“procedimento administrativo” e, também, a “acusados em geral”. Quanto ao primeiro termo
usado, mesmo que o inquérito não seja considerado processo este é, ao menos, dado como
procedimento administrativo, portanto, não se afasta a aplicabilidade do art. 5, LV da CF na fase
investigatório sob o argumento de que não se trata de fase processual propriamente dita (que
prevê a ampla defesa e o contraditório). Ademais, quanto ao termo “acusados em geral” não há
dúvida de que o indiciado possa ser qualificado como um acusado no sentido mais amplo dessa
palavra.(AZEVEDO, 2010)
Além disso, apesar de a jurisprudência ser quase uníssona no sentido contrário à tese
defendida, pode-se encontrar alguns julgados que primam pelos preceitos constitucionais, sendo,
portanto, favoráveis à existência dos princípios constitucionais supracitados na fase de
investigação policial.
É o que se percebe na decisão oriunda do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, HC nº
515770/2000, que tinha como relator o juiz Erik Gramstrup, publicada em 28/08/2001. Nela,
afasta-se o contraditório, mas entende-se cabível a ampla defesa na fase inquisitorial:
(...) ainda que o contraditório não se faça presente, no mais das vezes, na fase do
inquérito policial, nem por isso o direito de defesa do indivíduo, garantido na nossa
Carta Magna, bem como o princípio do duplo grau de jurisdição, reconhecido
expressamente na Convenção Americana dos Direitos do Homem, devem restar
prejudicados. [grifo nosso]
Além desta, destaca-se a decisão relacionada ao Mandado de Segurança 8790-5/1989, do
Tribunal Regional Federal da 2ª Região, que tinha como relator o juiz Arnaldo Lima. O
magistrado firmou entendimento no sentido de considerar o inquérito um procedimento
administrativo e, portanto, submetido à ampla defesa e ao contraditório.
Por fim, o Supremo Tribunal Federal, em decisão antiga, por ocasião do habeas corpus
58579/RJ, publicado em 12/05/1981, que tinha como relator o Ministro Clovis Ramalhete,
posicionou-se afirmando que “a instauração do inquérito policial, com indiciados nele
configurados, faz incidir nestes a garantia constitucional da ampla defesa, com os recursos a ela
inerentes”.
7.2 SISTEMAS PENAIS: O INQUÉRITO POLICIAL E O MITO DO SISTEMA PENAL
MISTO
Com o intuito de facilitar a compreensão de uma visão constitucional do inquérito
policial é importante situá-lo dentro do ordenamento jurídico, isto é, mostrar em que fase,
exatamente, o inquérito é realizado e qual são seus reflexos nas ações penais. Para tanto, é
necessário estudar os sistemas penais existentes e qual o sistema penal que vigora no Brasil. Dizse isso porque a “brecha” de possibilitar que o inquérito policial exista em sua forma inquisitorial
dentro de um sistema penal – exigido pela Constituição Federal – acusatório, dá-se no momento
de classificar o sistema penal brasileiro como misto. Notar-se-á que este sistema, na verdade, é
um reducionismo ilusório(LOPPES JR.,2008,p.66), portanto, deve ser desmitificado, o que
colaboraria de forma decisiva para que o inquérito se tornasse minimamente garantista, prevendo
a defesa e o contraditório temperados em seu bojo.
Sabe-se que existem três tipos de sistemas penais: inquisitivo, acusatório e misto.
Inicialmente, cumpre destacar que nos países em que o utilitarismo judicial é preponderante, isto
é, em que o sistema judicial é utilizado como forma de combater as mais diversas insatisfações
sociais, devendo para isso ser dotado de características, tais como supressão da publicidade dos
atos, concessão de gestão de prova a magistrados etc., nas quais se manifesta, claramente, a
escolha pela vigência do sistema inquisitorial. Em outras palavras, pode-se afirmar que os países
com histórico de governos ditatoriais, autoritários, totalitários, nos quais a hegemonia estatal está
acima dos direitos individuais, são aqueles que costumam optar pelo sistema penal inquisitório.
Por outro lado, nos países em que a base democrática é consolidada e que, por isso, a liberdade
individual é respeitada como sendo um dos pilares de sustentação do próprio poder instituído,
predomina a vigência do sistema acusatório.
Cabe pontuar as principais características do sistema inquisitório: a) predomínio do
segredo dos atos realizados ao longo da investigação e julgamento do acusado; b) predomínio da
forma escrita nos atos processuais (as sentenças deixaram de ser lidas e passaram a assumir a
forma escrita, sendo lidas somente na audiência); c) concentração das funções do juiz de julgar e
acusar (os juízes ganharam a gestão probatória, isto é, assumiram o poder de irem atrás das
provas que fossem condizentes com seu convencimento); d) substituição do tratamento entre as
partes pela figura onipotente do juiz (o juiz atua como parte e como magistrado); e)
impossibilidade de o acusado se defender das acusações que lhe eram impostas unilateralmente
pelos magistrados; f) existência da “tarifação probatória” (eram elencadas as formas de se
encontrar provas para o processo, e, a partir isso, o juiz realizava as práticas descritas, as quais
geralmente coincidiam com “torturas”, e, de acordo com a reação do acusado, se tinha a produção
de uma prova. Esta, por sua vez, tinha um valor pré-estabelecido, o qual tinha que ser respeitado
pelo juiz. Se o indivíduo ao ser torturado confessasse o crime, então, esta prova era tida como
“absoluta”, ao magistrado restava apenas a feitura da sentença condenatória, e não mais um juízo
de valor sobre o que foi dito pelo acusado; g) inexistência da “coisa julgada” (o individuo poderia
vir a ser julgado dezenas de vezes pelo mesmo fato típico). Em síntese, Lopes Jr. (2005, p. 162),
ao tratar do assunto, reitera que
O sistema inquisitório muda a fisionomia do processo de forma radical. O que era um
duelo leal e franco entre acusador e acusado, com igualdade de poderes e oportunidades,
se transforma em uma disputa desigual entre juiz-inquisidor o acusado. O primeiro
abandona sua posição de árbitro imparcial e assume a atividade de inquisidor, atuando
desde o início também como acusador. Confundem-se as atividades do juiz e acusador e
o acusado perde a condição de sujeito processual e se converte em mero objeto da
investigação.
Após séculos de vigência, o sistema penal inquisitório entrou em colapso. Movimentos
sociais como a Revolução Francesa, os quais possuíam um caráter fortemente humanitário,
acabaram por influenciar a mentalidade da sociedade da época, a qual passou a clamar por
mudanças de paradigma. Assim, o sistema inquisitório deu lugar, mais uma vez, ao sistema
acusatório, garantista.
Porém, o sistema acusatório que passou a vigorar em meados do século XIX, não era
mais o mesmo que existiu até o século XII. A essência desse sistema foi mantida, no entanto,
algumas modificações foram feitas no sentido de aperfeiçoá-lo. As principais características
desse “novo” sistema acusatório passaram a ser, na visão de Lopes Jr (2005, p. 159):
a) Clara distinção entre as atividades de acusar e julgar;
b) A iniciativa probatória deve ser das partes;
c) Mantém-se o juiz como um terceiro imparcial, alheio a labor de investigação e
passivo no que se refere à coleta de provas;
d) Tratamento igualitário entre as partes;
e) Procedimento é em regra oral (predominantemente);
f) Plena publicidade de todo o procedimento;
g) Contraditório e possibilidade de resistência;
h) Livre convencimento motiva do órgão jurisdicional;
i) Instituição, atendendo a critérios de segurança jurídica da coisa julgada;
j)
Possibilidade de impugnar as decisões e o duplo grau de jurisdição.
Nesse sentido, tem-se um sistema penal que veio a atender as necessidades da sociedade
moderna, pautado no respeito ao ser humano. Na maioria dos países, as Constituições reiteraram
a idéia de dignidade da pessoa humana, isto é, o homem tornou-se o centro das preocupações
estatais, sobretudo no que diz respeito à forma como o Poder Judiciário, no exercício de seu jus
puniedi, trata o acusado. Não mais é cabível um sistema, na contemporaneidade, que vá de
encontro a esse paradigma humanitário. Por isso diz-se que o sistema acusatório tornou-se um
imperativo, já que somente por meio dele ao juiz é permitida a imparcialidade, o que faz com que
ele sentencie de maneira coerente com um Estado Democrático. Percebe-se, com isso, que o
acusado deixa de ser um mero objeto, que contém a “verdade absoluta”, devendo o juiz saber-lhe
tirá-la, e passa a ser parte do processo, merecendo tratamento digno e respeitoso.
Feita a apresentação dos sistemas penais inquisitório e acusatório, parte-se para o estudo
do sistema misto. É importante lembrar que Lopes Jr. (2008), assim como outros juristas,
questionam a existência de um sistema misto; acreditam que, por obviedade, todos os sistemas
penais vigentes atualmente são mistos, haja vista que não mais existem sistemas penais puros
desde a Idade Média. Dessa forma, o autor denomina o fato de a maioria da doutrina apresentar a
classificação do sistema penal brasileiro como sendo misto, um “reducionismo ilusório”
Mesmo assim, a doutrina brasileira, de maneira geral, costuma classificar o sistema
penal atual como sendo misto, uma vez que prevalecem as características do sistema inquisitório
na fase pré-processual, no curso do inquérito policial, e durante o processo judicial, no qual
aparece a figura do acusado, prevalece os ditames do sistema acusatório, respeitando-se os
direitos fundamentais do réu. Quanto a isso, Lopes Jr. (2008, p. 68) pontua “(...) exatamente o
que temos no sistema brasileiro. O monstro de duas cabeças (inquérito policial totalmente
inquisitório e fase processual com “ares” de acusatório (...)”.
No caso do Brasil, essa existência de um sistema bifásico (investigação – fase preliminar
– e ação penal – fase judicial) favorece a crença do sistema misto. No entanto, a realidade prática
dos fóruns e Tribunais demonstra que a divisão entre as fases pré-processual e processual não é
rígida, muito menos intransponível. Uma fase está intimamente ligada a outra e diversas provas
colhidas de maneira unilateral – e, portanto, inquisitorial – são aproveitadas na segunda fase pelo
magistrado, em um completo contra-senso ao sistema acusatório: “A fraude reside no fato de que
a prova é colhida na inquisição do inquérito, sendo trazida integralmente para dentro do processo
e, ao final, basta o belo discurso do julgador para imunizar a decisão” (LOPES JR., 2008, p. 68).
Sendo assim, jamais se deveria permitir que no curso do inquérito policial pudessem práticas
inquisitórias ser realizadas. Um sistema acusatório que comporta um micro-sistema inquisitório
acaba constituindo-se um paradoxo e, o que é pior, legitima decisões que tiveram como alicerce
provas obtidas de maneira absolutamente rechaçada pela lógica do sistema acusatório.
Portanto, deve-se ter certa cautela em aceitar a tese do sistema bifásico, a qual traz “tira
colo” a legitimidade das características do sistema inquisitorial para dentro do processo penal
acusatório.
Ressalta-se, neste momento, a impossibilidade de co-existência de um Estado
Democrático, o qual respeita os direitos fundamentais do homem, pois o coloca no centro de todo
o sistema estatal, com o sistema penal inquisitório, uma vez que esse possui um viés autoritário,
ditatorial e, portanto, enxerga o ser humano como objeto, fazendo crer que o controle de
determinados fatos sociais (como a criminalidade) são mais importante que a própria dignidade
da pessoa humana.
7.3 POSSIBILIDADE DE DESAFOGAMENTO DO PODER JUDICIÁRIO VIABILIZADA
PELA “DEFESA” E PELO “CONTRADITÓRIO” NO INQUÉRIO POLICIAL
Para além dos argumentos constitucionais e explicações teóricas que invocam a
dignidade da pessoa humana para defender a presença dos princípios da ampla defesa e do
contraditório no bojo do inquérito policial, outro aspecto relevante relacionado à matéria
desponta. Trata-se do atual cenário de ineficácia e morosidade em que se colocou o Poder
Judiciário brasileiro. Este Poder se encontra severamente abarrotado de processos que chegam a
durarem longos e penosos anos, comprometendo a celeridade da tutela jurisdicional, por
conseguinte, colaborando com a descredibilização da Justiça.
Diante disso, o inquérito policial, se realizado de maneira condizente com as regras dos
princípios da ampla defesa e do contraditório (mais uma vez, é preciso lembrar que tais princípios
deverão configurar de modo “temperado”, adequando-se à realidade investigativa), surge como
uma alternativa para amenizar a problemática do “abarrotamento do Poder Judiciário”, a qual
compromete o desenvolvimento das funções primordiais à sociedade que deveriam ser realizadas
por este Poder.
O inquérito, fazendo uso dos princípios constitucionais supracitados, poderia evitar que
inúmeros casos ou litígios se transformassem em ação penal, não necessitando serem julgado
pelo Poder Judiciário, desafogando-o e, como conseqüência, atendendo ao princípio da economia
processual. Sabendo que a função precípua do inquérito é dar subsídios à propositura da ação
penal, o investigado poderia, no momento destinado a sua defesa, provar que algumas provas
coletadas, na verdade, estariam equivocadas e, assim, evitar-se-ia um encadeamento de
procedimentos investigatórios baseados em tal prova errônea. Dessa forma, provavelmente
extinguir-se-ia os subsídios até então existentes à ação penal e evitar-se-ia a sua propositura
desnecessária. É o que considera Pacelli (2009, p. 44) ao afirma que
De se ver que o contraditório na fase de investigação pode até se relevar muito útil, na
medida em que muitas ações penais poderiam ser evitadas pela intervenção da defesa,
com a apresentação e/ou indicação de material probatório suficiente a infirmar o juízo de
valor emanado da autoridade policial ou do Ministério Público por ocasião da
instauração da investigação.
Salienta-se que o inquérito policial inicialmente já fora idealizado para evitar o
ajuizamento de ações penais que não possuíssem critérios probatórios mínimos, já que algum
elemento deve ser submetido à apreciação do magistrado. Caso contrário, não haveria como se
decidir a lide. Porém, percebeu-se que somente o inquérito, em sua forma inquisitiva, não seria
capaz de conter a propositura de ações penais cuja base probatória fosse insuficiente ou
absolutamente frágil. Sendo assim, notou-se que a presença da ampla defesa e do contraditório no
inquérito, em suas versões mitigadas, tornaria as provas colhidas mais robustas, com menores
chances de equívocos, portanto, ofereceria à ação penal maiores chances de sucesso.
Em síntese, conclui-se que a defesa e o contraditório no curso da fase investigativa
poderiam colaborar para o desafogamento do Poder Judiciário, possibilitando que este venha a se
aperfeiçoar na prestação da tutela jurisdicional, concentrando esforços na elucidação de ações
penais que realmente tenham um alicerce firme, e isso somente será possível se as provas
colhidas no inquérito passarem pelo crivo do contraditório e da ampla defesa.
8 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Feitas as principais considerações que reafirmam a necessidade do respeito à dignidade
da pessoa humana em qualquer procedimento existente no ordenamento jurídico e sabendo que
isto se conquista por meio da preservação dos Direitos Fundamentais em todo o ordenamento
jurídico, conclui-se pela necessidade do contraditório e da ampla defesa no inquérito policial.
Assim, caso haja práticas ou procedimentos inquisitórias no bojo de um sistema
acusatório, deve-se providenciar mudanças estruturais na legislação, na prática cotidiana do
sistema jurídico, nos entendimentos jurisprudenciais etc. no sentido de compatibilizar tais
práticas ou procedimentos com o modelo acusatório, sob pena de se estar retrocedendo aos
direitos já conquistados, à democracia já existente, e, sobretudo, à valorização do homem, que se
mostrou ser essencial para que se persiga um estado-cidadão, preocupado em garantir o bem-estar
da sociedade. Sendo assim, é extremamente importante a adequação do inquérito policial,
atualmente inquisitorial, à Carta Magna, que optou por um sistema penal acusatório.
Faz-se a ressalva de que não se pode jamais construir um futuro melhor sem se ter o
cuidado de observar os erros cometidos no passado, os quais assolaram a dignidade do homem e
o utilizaram ora como animais, propriedade de um senhor, ora como objetos, ora como máquinas
etc. Exemplos emblemáticos disto foi o período da Santa Inquisição, o período da escravidão, o
período da Revolução Industrial, dentre outros.
Com isso, para que o futuro seja, de fato, o aperfeiçoamento dos tempos atuais é
importante que se tente consertar aquilo que está “defeituoso” e, de outro lado, lutar para que
aquilo que já fora conquistado e que se mostra extremante positivo, seja conservado. Fugindo da
abstração, se quer que os procedimentos que são hoje regidos por regras inquisitoriais, como é o
caso do inquérito policial, passem a adotar os ditames constitucionais garantistas, típicos do
sistema acusatório. É notória a clara intenção do legislador em optar pela preservação da
dignidade e pelo respeito aos direitos humanos, em detrimento de um Estado “seguro”, no qual
nenhuma anormalidade se sustenta, sob pena de serem os culpados por ela extirpados do seio da
sociedade. Não se quer o extermínio dos homens que não seguem o padrão social da
normalidade, se quer a sua ressocialização, sua reintegração. Assim, o paradigma de um Estado
segregador entrou em colapso e é bom que assim seja.
Nesse diapasão, se é o sistema acusatório que se almeja, então que este seja aplicado a
todo o ordenamento jurídico, do contrário surge o “mostro de duas cabeças”(LOPPES JR.,2008)
que consiste em um paradoxo em si mesmo e não colabora para a evolução social, e estatal
necessária.
Desse modo, entende-se que o Brasil deva caminhar no sentido de garantir a plena
vigência de um sistema acusatório e, em contrapartida, rechaçar ações e atividades que dependam
da intromissão das características do sistema inquisitorial. Como é através do sistema penal
vigente que se “mede” a estruturação de toda uma nação, concebe-se que o Brasil merece ser tido
como uma nação democrática, que prima pelos interesses dos brasileiros, independentemente de
sua condição econômica, política, cultural e social. Eis a utopia moderna, a qual se tornará
realidade, ao menos no âmbito jurídico-penal, na medida em que o sistema acusatório ganhar
força e vigência ampla.
Em síntese, a partir do que fora exposto, conclui-se que quanto à existência de duas fases
penais, a investigatória e a judicial, nada impede que elas permaneçam a existir, no entanto, como
esclareceu Lopes Jr. (2008), não se pode tolerar um “mostro de duas cabeças”, ou seja, não se
pode admitir que a fase investigatória ganhe status de inquisitorial, haja vista que se assim fosse
permitido, estar-se-ia legitimando um micro-sistema inquisitorial dentro de um macro-sistema
acusatório. Entende-se, com isso, que o sistema acusatório deve prevalecer em todo o
ordenamento brasileiro, inclusive por imposição constitucional. Assim, na fase investigatória
dever-se-ia ter os cuidados com a violação da ampla defesa e do contraditório semelhante, porém
de forma mitigada, em relação ao que é concedido ao acusado, durante a instrução probatória, sob
pena de inconstitucionalidade do procedimento. Mesmo porque, como bem ressaltado por Lopes
Jr. (2008), as provas colhidas no inquérito policial, via de regra, são utilizadas pelos juízes
quando do julgamento do acusado, o significa dizer que o cidadão, atualmente no Brasil, pode ser
condenado com base em provas sobre as quais se quer teve o direito de defesa e de resistência.
Opta-se, então, pela completa incoerência e injustiça deste procedimento.
Nota-se que aquilo que o legislador constituinte já havia percebido e, por isso, escrito na
Carta Magna como forma de dirigir a sociedade brasileira para um contexto socioeconômico
melhor desenhado, no qual a dignidade da pessoa humana seja tida como a “palavra de ordem”
do sistema, é algo que alguns juristas estão trabalhando para disseminar, combatendo de forma
contundente as práticas inquisitoriais existentes ainda hoje que desafiam a soberania da
Constituição Federal. É evidente que um sistema inquisitorial – o qual não prima pela concretude
e efetividade dos Direitos Fundamentais dos cidadãos – não comporta o respeito à dignidade da
pessoa humana, tendo em vista que o conteúdo deste princípio é exatamente o respeito aos
Direito Fundamentais dos homens. Este é, cabe ressaltar, o aspecto em que reside o ineditismo
deste trabalho: a relação do inquérito policial em sua forma inquisitorial com a afronta do
princípio da dignidade humana.
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