O LUGAR DO PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA NA JURISPRUDÊNCIA DOS TRIBUNAIS PORTUGUESES. UMA PERSPECTIVA METODOLÓGICA. Marcos Keel Pereira FDUNL N.º4 - 2002 Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa Working Papers Working Paper 4/02 O LUGAR DO PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA NA JURISPRUDÊNCIA DOS TRIBUNAIS PORTUGUESES. UMA PERSPECTIVA METODOLÓGICA. Marcos Keel Pereira © Marcos Keel Pereira Nota: Os Working Papers da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa são textos resultantes de trabalhos de investigação em curso ou primeiras versões de textos destinados a posterior publicação definitiva. A sua disponibilização como Working Papers não impede uma publicação posterior noutra forma. Propostas de textos para publicação como Working Papers, Review Papers (Recensões) ou Case-Notes (Comentários de Jurisprudência) podem ser enviadas para: Miguel Poiares Maduro, [email protected], Ana Cristina Nogueira da Silva, [email protected] ou Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, Travessa Estevão Pinto, Campolide 1400-Lisboa. As normas constitucionais são, por natureza, normas que muitas vezes incluem conceitos indeterminados e cláusulas gerais. O conceito constitucional de “dignidade da pessoa humana”, base da República nos termos do art. 1º da CRP, será talvez dois mais indeterminados (e ao mesmo tempo, et pour cause, dos mais fundantes) de todos os conceitos constitucionais. Marcos Keel Pereira fez um notável trabalho de pesquisa jurisprudencial para tentar responder à seguinte questão: que método(s), e que consciência dele(s), terão os nossos tribunais superiores sempre que são chamados a “aplicar” – e portanto, a interpretar – semelhante conceito indeterminado? Trabalho vasto, e pela primeira vez (creio) empreendido entre nós. Maria Lúcia Amaral 2 O lugar do princípio da dignidade da pessoa humana na jurisprudência dos tribunais portugueses. Uma perspectiva metodológica. 1. Introdução Se em qualquer trabalho de investigação é forçoso começar por definir o seu âmbito, estabelecer os seus limites, esclarecer os seus propósitos, tanto mais assim sucederá, diríamos até (recorrendo a uma expressão tão cara aos juristas) por maioria de razão, num estudo que se pretende seja de metodologia jurídica. Na verdade, não pareceria metodologicamente correcto iniciar a exposição de um trabalho de índole metodológica sem fazer referência aos três aspectos indicados. O propósito deste trabalho foi o de procurar perceber em que medida a jurisprudência dos tribunais portugueses que interpretou e aplicou o princípio da dignidade da pessoa humana [DPH], consagrado no art. 1º da Constituição da República Portuguesa [CRP], reflecte, no seu iter decisório, o novo modo de pensar e decidir problemas jurídicos característico das correntes metodológicas contemporâneas (aproveito para esclarecer que, daqui em diante, por uma questão de facilidade de exposição, empregarei, geralmente, a expressão “jurisprudência”, não no sentido rigoroso de actividade humana que consiste em resolver problemas jurídicos com base num certo complexo de normas, o que abarcaria quer a actividade judicial quer o labor legislativo, mas no sentido, menos próprio, mas mais corrente e restrito, de “conjunto de decisões dos tribunais”). Em virtude do maior peso (leia-se potencialidade para influenciar decisões posteriores) que, em geral, se reconhece aos arestos dos tribunais superiores, e também devido à menor acessibilidade das decisões das instâncias inferiores, apenas se analisaram acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça (STJ) e do Tribunal Constitucional (TC). De resto, os resultados da busca de jurisprudência efectuada apontaram, na sua esmagadora maioria, para decisões destes dois últimos tribunais. Não se teve a preocupação de colocar a ênfase nesta ou naquela corrente específica, nem a pretensão de “esgotar”, ao longo do percurso, a multiplicidade de tendências que actualmente coexistem. Aliás, julgo que uma tal ambição poderia gerar efeitos perversos, 3 designadamente o de, na ânsia de querer a todo o custo vislumbrar traços de todas as correntes possíveis, se proceder não já a uma “desconstrução” da jurisprudência mas antes à sua “reconstrução” à imagem do pré-juízo do sujeito investigador. Procurou-se, sim, sobretudo, fazer o contraponto entre o paradigma positivista e a visão pós-positivista que caracteriza o conjunto das correntes contemporâneas e ilustrar essa nova visão recorrendo a exemplos concretos de formas de resolução de questões jurídicas pelos tribunais. Naturalmente, a omnipresença do mencionado objectivo ao longo do trabalho fez com que, ao abordar uma determinada decisão judicial, o olhar fosse deliberadamente dirigido para a busca de quaisquer vestígios de elementos que pudessem indiciar a aproximação a uma ou a outra doutrina metodológica. Contudo, a consciência disso mesmo levou a que, como se disse, se tivesse especial cuidado para não “forçar demasiado a nota”, i. e., para não se cair numa reconstrução demasiado artificiosa das decisões judiciais apreciadas (este problema será retomado adiante). A escolha do princípio da DPH como “matéria” (por oposição a método) de investigação justifica-se por este ser um tema particularmente carente de um forte controlo racional do discurso (também ele supostamente racional) dos tribunais. Senão, vejamos. O princípio da DPH é visto, pela doutrina e pela jurisprudência, como o princípio “primeiro e último” do ordenamento jurídico nacional. Ele constitui, em articulação com outros (por exemplo, o do Estado de direito e o da soberania popular), o fundamento e o limite da actuação dos poderes públicos. Mas, como é sabido, a “DPH” consubstancia também um dos conceitos com maior grau de indeterminação1 e vaguidade da ordem jurídica. Consequentemente, da conjugação destas duas características (fundamentalidade e indeterminação), resulta uma necessidade particularmente premente de um controlo racional sobre qualquer discurso jurídico que verse sobre a aplicação do princípio da DPH. Acresce que, numa época na qual se crê que, nas relações entre os cidadãos e o poder e nas relações sociais e jurídicas entre os próprios indivíduos, a única verdade que pode aspirar a ser reconhecida como objectivamente válida se identifica, afinal, com uma verdade 1 Segundo K. Engisch, Introdução ao pensamento jurídico, 7.ª ed., Lisboa, Gulbenkian, 1996, conceitos indeterminados são aqueles “cujo conteúdo e extensão são em larga medida, incertos” (p. 208), nos quais 4 intersubjectiva2 (ou seja, aceite pelo maior número possível dos membros da sociedade), tornase essencial descobrir quais as concepções culturais, políticas, jurídicas dominantes numa certa comunidade social. E, como se tem vindo a defender na doutrina jurídico-constitucional europeia, essas concepções estão largamente espelhadas no modo como são estruturados os catálogos de direitos fundamentais nas constituições, que fornecem o “mínimo ético comum” vigente numa comunidade socio-política temporal e espacialmente delimitada3. Ora, como se verá com maior detalhe noutra parte deste trabalho, ao princípio da DPH é atribuído um importante papel na determinação do conteúdo e na harmonização dos diversos direitos fundamentais (aliás, a influência é de duplo sentido). Assim, o campo do direito constitucional, e mais especificamente o dos direitos fundamentais, mostra-se especialmente apropriado a um trabalho desta natureza. De tudo quanto precede, resulta também já o fundamental acerca do âmbito do trabalho. Acrescento apenas mais uma nota relativa à definição dos seus limites. A realização de uma investigação de cariz metodológico parece pressupor a possibilidade de uma distinção clara entre o “método” e a “substância”. Assim é que, no presente trabalho, não se visa, de modo algum, explanar e discutir a dogmática dos direitos fundamentais ou as construções doutrinárias e jurisprudenciais em torno da questão do conteúdo do princípio da DPH. Esse seria um bom propósito para uma investigação sobre a substância dos problemas jurídicos envolvidos nesta temática. Neste trabalho, pretende-se, diferentemente, atacar a questão de uma perspectiva metodológica. No entanto, esta distinção aparentemente simples e linear é de difícil concretização prática (e, quiçá, até reveladora de um “equívoco metodológico” por parte de quem a julga possível!). Na verdade, ao crermos ser teoricamente pensável e factível esta separação rígida entre método e substância, não estaremos a incorrer num vício metodológico análogo ao do positivismo, quando este sustentava a divisão rigorosa entre os momentos de podemos distinguir um “núcleo” conceitual e um “halo” conceitual, sendo que “onde as dúvidas começam, começa o halo do conceito” (p. 209). 2 Cfr., p. ex., Arthur Kaufmann, “Problemgeschichte der Rechtsphilosophie”, em A. Kaufmann, W. Hassemer (org.), Einführung in die Rechtsphilosophie und Rechtstheorie der Gegenwart, 6.ª ed., Heidelberg, C.F. Müller, 1994, pp. 5, 22, 123, 127 e 168 ss; Fritjof Haft, “Recht und Sprache”, em Kaufmann, Hassemer, Einführung..., cit., p. 281; Günter Ellscheid, “Das Naturrechtsproblem”, em Kaufmann, Hassemer, Einführung..., cit., pp. 192 s. 3 Cfr. Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, IV (Direitos Fundamentais), 3.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 2000, pp. 43 ss. e 180 ss. 5 criação e aplicação do direito? Não será que uma investigação de feição metodológica implica sempre uma incursão, ainda que instrumental, no domínio da substância, cuja presença aquela sempre pressupõe? Parece-me que sim, o que não quer dizer que não seja desejável separar as águas até onde tal seja possível. Não pode é sustentar-se, sob pena de se tomar como base de todo um trabalho uma crença ilusória, que método e substância representem como que dois círculos cujas circunferências nunca chegam a intersectar-se ou, sequer, a tocar-se. Tendo presente esta advertência, procurarei centrar a minha atenção nos aspectos mais especificamente metodológicos, não deixando, porém, de fazer as referências “materiais” que eventualmente venham a revelar-se indispensáveis. 2. Decisões judiciais analisadas Passarei agora a enunciar as passagens dos acórdãos analisados que mais relevam para a problemática em causa. Admito que, à primeira vista, se poderá pensar ser esta uma tarefa meramente descritiva e, porventura, até fastidiosa. Contudo, não creio que assim seja, pelas razões que passo a explicitar. Em primeiro lugar, tal opção prende-se com a própria natureza do trabalho realizado. Não se procedeu a um levantamento e a uma análise das diversas correntes metodológicas “em abstracto”, sem conexão com a realidade do direito em acção. Antes pelo contrário, procurou-se identificar, na jurisprudência portuguesa que se debruçou, directa ou indirectamente, sobre a aplicação do princípio da DPH, traços das diferentes correntes metodológicas contemporâneas e/ou resquícios do paradigma metodológico positivista. Ora, não seria adequado realizar todo um trabalho com base em casos concretos, para, no relatório sobre esse mesmo trabalho, se omitir a indispensável referência ao suporte fáctico a que se recorreu. Por outro lado, não pode ser esquecido que, de certo modo, a análise começa logo com a escolha dos elementos sobre os quais ela há-de incidir. Aliás, grande parte do trabalho 6 consistiu precisamente na selecção da matéria considerada relevante. Dito com outras palavras, ao extrair-se de certo acórdão uma determinada passagem, por se entender ser particularmente relevante para o problema que se discute, está-se já, de alguma maneira, a tomar posição sobre ele: escolhe-se um trecho, e não outro, porque, com base numa primeira intuição secundada por uma reflexão mais atenta, se descortinou (ou pretendeu descortinar) naquele, e não neste, elementos relacionados com a questão debatida, determinantes para o seu esclarecimento. Aliás, faço notar que, de qualquer forma, não citarei passagens de todos os acórdãos sobre os quais me debrucei, limitando-me àqueles que, no juízo que faço, se me afiguram mais aptos a ilustrar as questões metodológicas relevantes. Por fim, julgo ser útil apontar, neste relatório, as passagens mais importantes das decisões judiciais apreciadas, na medida em que a sua presença permitirá simultaneamente iluminar e justificar as conclusões adiante expostas. De facto, é evidente que tais conclusões só ganham sentido e só são compreensíveis à luz da “substância” a partir da qual foram extraídas. A apresentação, neste momento, das referidas passagens permitirá também, espero, tornar o enunciado das conclusões mais claro e consistente, na medida em que se tornará desnecessário referir, a propósito da discussão de cada uma delas, o acórdão e a respectiva passagem concreta a que se reporta, o que prejudicaria a clareza e a sequência da exposição. Aproveitarei para, ao longo da descrição, destacar (em itálico) as palavras ou expressões que se me afiguram decisivas para a identificação, na respectiva sentença, deste ou daquele traço metodológico. Começo, pois, por destacar o facto de um número significativo dos acórdãos analisados se debruçar sobre o princípio da DPH a respeito da problemática da culpa em direito penal. Esta constatação não me parece surpreendente, uma vez que a “capacidade de culpa” (sem entrar agora na questão de saber se esta deve ser entendida num sentido exclusivamente normativo, ou, pelo contrário, deve ser encarada, também, como um problema psicológico) é uma característica específica do ser humano e a sua exigência para a atribuição de responsabilidade criminal uma decorrência da sua dignidade enquanto pessoa, que não a perde por ter praticado um facto penalmente ilícito. 7 Assim, no acórdão do Tribunal Constitucional 16/84, a respeito do art. 30/4 CRP, no qual se vê plasmada uma proibição de penas com carácter infamante e da atrbuição de efeitos automáticos estigmatizantes que perturbem a readaptação social do delinquente, considerouse o princípio da DPH princípio estrutural da República Portuguesa. Faz-se a associação (óbvia) entre tal princípio e o respeito e garantia dos direitos fundamentais, para se afirmar que o referido art. 30/4 CRP deriva, em linha recta, e que os grandes princípios constitucionais de política criminal decorrem, dos primordiais princípios definidores da actuação do Estado de direito democrático que estruturam a Lei Fundamental portuguesa, entre os quais se encontra, como ponto de partida, o princípio da DPH. Conclui-se que, “se da aplicação de uma pena resultasse, como efeito necessário, a perda de quaisquer direitos civis, profissionais ou políticos, far-se-ia tábua rasa daqueles princípios, figurando o condenado como um proscrito, o que constituiria um flagrante atentado contra o princípio do respeito pela DPH”. No acórdão do TC 426/91, trilhou-se o mesmo caminho, ao afirmar-se que o princípio da culpa deriva da essencial dignidade da pessoa humana, mas acrescentou-se que esta não pode ser tomada como simples meio para a prossecução de fins preventivos, o que manifesta um evidente apelo ao pensamento kantiano. Daí se retira que o princípio da culpa veda a incriminação de condutas destituídas de ressonância ética. No acórdão do TC 209/93, insistiu-se, uma vez mais, na utilização do verbo “derivar” para descrever a relação que se estabelece entre os princípios da culpa e da DPH. No acórdão do TC 549/94, ao discutir-se o problema da pena relativamente indeterminada, empregou-se uma terminologia ligeiramente diferente, considerando-se que os princípios da culpa e da ressocialização já não “derivam” do princípio da DPH, mas antes que estão nele alicerçados. Contudo, não parece que as diferentes expressões impliquem qualquer mudança de perspectiva. Antes pelo contrário, traduzem, no essencial, a mesma ideia de prioridade ou de anterioridade de um princípio face a outro(s) e a dependência destes em relação àquele quer no que concerne ao seu fundamento de validade quer no que respeita ao 8 seu conteúdo. Mais adiante procurar-se-á dilucidar melhor qual a natureza desta “dependência”. Dois aspectos distintos, ambos importantes, se nos revelam ao confrontarmo-nos com o acórdão do STJ, de 5.3.97. Em primeiro lugar, o princípio da culpa é-nos explicitamente apresentado já não apenas como decorrência do princípio da DPH. Embora tal caracterização não seja negada – antes pelo contrário, ela é mantida –, adiciona-se uma nota digna de realce. Se, por um lado, o princípio da culpa deriva do princípio da DPH, por outro lado, e simultaneamente, aquele assume a função de garantia deste. Evidencia-se, pois, que a relação entre os dois referidos princípios não é encarada pelo STJ como unidireccional (dir-se-ia, fazendo uso de uma expressão parca em elegância, mas com força ilustrativa, que não se produzem efeitos apenas “de cima para baixo”), mas antes como um jogo de interacção e influência recíproca. Em segundo lugar, uma vez afirmado esse carácter garantístico do princípio da culpa relativamente à DPH, o tribunal avança, com base naquele pressuposto, para a afirmação do mesmo princípio como limite da sanção penal, que não pode jamais ser ultrapassado por preocupações preventivas, preocupações essas que, embora exigindo um mínimo de pena imprescindível à estabilização das expectativas comunitárias quanto à validade das normas violadas, apenas podem ser satisfeitas na medida do possível, isto é, enquadradas e (por isso) limitadas pela moldura traçada pelo princípio da culpa, justamente enquanto garante da DPH. Socorrer-me-ei, neste ponto, de um outro acórdão incidente ainda sobre matéria criminal, que permitirá operar uma transição “suave” para uma abordagem de tipo diferente (o que não significa, aqui, antagónica) do princípio da DPH. Falo em transição “suave”, na medida em que, embora do ponto de vista metodológico o enfoque seja já diverso, nos situamos no mesmo território no que concerne à substância do problema (o princípio da culpa em sede de direito penal). Deste modo, podemos observar, agora à luz do direito em acção, algo a que já 9 aludimos acima, isto é, o facto de os planos jurídico-substantivo e jurídico-metodológico serem distintos, ainda que não representem compartimentos estanques, totalmente cindíveis. Assim é que, no acórdão do TC 527/95, sem deixar de se reiterar que o princípio da culpa, ao assentar no princípio do Estado de direito democrático e na DPH, é fundamento legitimador e limite da aplicação de qualquer pena, introduz-se uma nota inovadora em comparação com as decisões referidas supra. A tónica é colocada na necessidade de averiguar da relação entre a ordem axiológica constitucional e a ordem legal dos bens jurídicos protegidos pelo direito penal, para se poder responder à questão de saber se há ou não uma correspondência legitimadora da qualificação de uma determinada conduta como crime. A abordagem axiológica está também bem patente em alguns outros acórdãos que versam sobre matérias relacionadas com o direito do trabalho e da segurança social. Em 20.10.89, o STJ caracterizou a natureza do direito à retribuição do trabalhador como um direito fundamental indissociavelmente ligado ao direito ao trabalho, para assinalar a função social da retribuição, que considera ter como objectivo último a realização, quanto ao trabalhador, do basilar princípio da DPH que enforma a Lei Fundamental. O acórdão do TC 232/91 inaugurou uma série de decisões que trataram do problema das pensões sociais (da sua actualização e impenhorabilidade). Nele se viu implicada no princípio do Estado de direito uma ideia de protecção ou garantia dos direitos fundamentais e de vinculação dos poderes públicos ao direito justo, que não se deixa identificar com a lei independentemente do seu conteúdo, mas que visa a verdade e a justiça. O objectivo primeiro do Estado de direito é identificado com a criação e manutenção de uma situação jurídica materialmente justa, que, tendo como pedra de toque a salvação da dignidade do homem como pessoa, é dominada por uma ideia de igualdade. Por isso, diz-se, o mesmo princípio do Estado de direito impõe que as leis sejam instrumentos de realização do bem comum, entendido este sempre na perspectiva do respeito pela dignidade humana. 10 No âmbito da mesma temática material, e cronologicamente muito próximo desta última decisão, o acórdão 349/91 TC pronunciou-se acerca da consagração constitucional de um direito fundamental a um mínimo de sobrevivência. Admitiu ser defensável que um tal direito não possa ver-se garantido no art. 43 CRP, mas, por não querer abdicar de encontrar um fundamento constitucional para esse direito e por não conseguir reconduzi-lo directamente ao conteúdo de qualquer dos direitos fundamentais expressamente enunciados pela Constituição, acabou por elevar o princípio da DPH a fonte directa e imediata de direitos fundamentais. Assim o fez, de facto, ao ter por seguro que o direito a um mínimo de sobrevivência se há-de extrair do princípio da DPH, condensado no art. 1º CRP. E não se fica por aqui a importância deste acórdão no que se refere ao problema que nos ocupa, já que nele se focou também a decisiva questão da colisão ou conflito de direitos (fundamentais). Considerou-se, então, que, “em caso de colisão entre o direito do credor e o direito do devedor a uma pensão que lhe garanta uma sobrevivência condigna, deve o legislador, para tutela do valor supremo da DPH, sacrificar o direito do credor, na medida do necessário e, se tanto for preciso, mesmo totalmente, não permitindo que a realização deste direito ponha em causa a subsistência do devedor.” Defende-se, depois, a adopção de um critério de proporcionalidade na distribuição dos custos do conflito. Faz-se ainda notar que o direito mínimo de subsistência, embora constitucionalmente salvaguardado, não pode ser definido em termos válidos para todos os tempos, uma vez que é historicamente situado. Doutrina exactamente idêntica foi seguida, a propósito do mesmo assunto, pelo acórdão do TC 411/93. É interessante observar ainda como o acórdão do TC 318/99 retomou esta mesma orientação, chegando mesmo a citar literalmente o acórdão de 91, para, do mesmo passo, o “retocar” do ponto de vista da terminologia usada. Assim, insiste na qualificação feita pelo acórdão de 91 do princípio da DPH como valor supremo, mas entende ser necessário esclarecer que, enquanto tal, o princípio da DPH se revela vector axiológico estrutural da própria CRP. Por outro lado, se o acórdão de 91 falava em “critérios de proporcionalidade na repartição dos custos do conflito”, agora exprime-se esta mesma ideia através do conceito de 11 balanceamento de direitos e situações jurídicas. Para além disso, salienta-se, tal como em outros acórdãos já referenciados, a relação entre os princípios do Estado de direito e da DPH, mas, curiosamente, numa posição que não pude ver retratada em nenhum outro acórdão, entende-se que este último princípio decorre daquele, o que, para além de original, me parece ser algo contraditório com a afirmação, já mencionada, da DPH como valor supremo. Para terminar, aludirei a três acórdãos que se debruçaram sobre questões relacionadas com o(s) direito(s) de personalidade. O STJ, em 26.4.95, frisou que o direito à vida é uma “irrecusável conquista civilizacional”, sem o qual não se entenderia, hoje, na nossa cultura, a própria DPH. Este direito é, segundo o tribunal, de cariz superior, porque inerente à qualidade humana, devendo (à partida) prevalecer sobre outros direitos, embora sempre se diga que tal prevalência apenas terá de verificar-se, no concreto, “se for caso disso e na medida do adequado”. Em 8.6.88, o TC (acórdão 130/88) sustentou, em homenagem à liberdade ética do homem individual (Kant), que o acatamento da vontade de cada homem sobre o destino a dar aos seus órgãos e tecidos após a sua morte decorre para a consciência colectiva a partir de raízes ancestrais. E mesmo que assim não fosse, diz-se que aquele direito sempre encontrará fundamento, em último termo, na própria ideia de Estado de direito, iluminado pelo relevo que nele tem a DPH. Por fim, no acórdão do TC 6/84, a DPH é designada fundamento da República, do qual decorre o princípio de que a todo e qualquer direito de personalidade deve caber o maior grau de protecção do ordenamento jurídico, ou seja, aquele grau de protecção que assiste aos direitos fundamentais, já que os direitos de personalidade são inerentes à própria pessoa, não podendo, por isso, ser postergados por qualquer modo, sob pena de se negar o papel da pessoa como figura central da sociedade. 12 Esta mesma decisão foi ainda das primeiras a explorar o método de balanceamento (ainda que não se exprimisse com estes termos) de direitos como modo de resolução de conflitos. De facto, considerou-se que o direito de personalidade a proteger se relaciona com a dignidade da pessoa e, por isso mesmo, tem ele mesmo de possuir um mínimo de dignidade, respeitando as susceptibilidades dos outros, o seu direito a não ser afrontado com situações que o molestam na sua forma de estar na vida. 3. Explicitação dos traços metodológicos fundamentais presentes nos acórdãos analisados 3.1. Antecipação de conclusões Tendo presente as passagens mais significativas dos acórdãos analisados, podemos agora passar à identificação nessas passagens dos tais traços, sinais das correntes metodológicas contemporâneas. No entanto, ao contrário do que talvez fosse de esperar, começarei pelo fim, isto é, irei, de alguma maneira, proceder a uma “inversão metodológica” no esquema do relatório. Consciente de estar eu próprio a realizar uma opção metodologicamente discutível, visto poder ser acusado de estar “ilegitimamente” a querer tomar como adquirido aquilo que pretendo demonstrar antes de proceder à respectiva demonstração, anteciparei, desde já, duas conclusões deste trabalho, que, a meu ver, são decisivas. Creio ser esta uma escolha metodologicamente defensável e adequada, porque, por um lado, ao ser feita de forma clara, aguça no leitor o espírito crítico, estimulando-o a aquilatar, ao longo da exposição subsequente, a bondade da conclusão antecipada. Por outro lado, julgo que esta opção serve também para confirmar e revelar a ampla potencialidade de uma das constatações levadas a cabo pela moderna hermenêutica (jurídica): se é verdade que um texto nunca é simplesmente objecto apreendido em si mesmo, de forma “pura”, pelo sujeito cognoscente, antes sendo construído e produzido através da sua interpenetração com as estruturas mentais e com a carga cultural desse sujeito, algo de semelhante se desenrola no plano “intra-textual”. 13 Tradicionalmente, um trabalho de investigação (jurídica ou não) costuma ser dividido, nas suas grandes linhas, em três partes, designadas (com estas expressões ou com outras de significado equivalente) “Introdução”, “Desenvolvimentos” e “Conclusões”. Ora, se fizermos apelo aos ensinamentos da hermenêutica, apercebemo-nos de que uma tal divisão é, no mínimo, problemática. E isto porque pode trazer com ela a ilusão de ser possível separar, por exemplo, os “desenvolvimentos” das “conclusões”, de tal modo que estas representariam um mero corolário-efeito daqueles, que, por sua vez, teriam sido elaborados por um autor imparcial, puro, livre. Não é assim que as coisas se passam, nem é bom que se pretenda que elas assim se passem, sob pena de o autor se enganar a ele próprio e àqueles com quem visa comunicar. Na realidade, é inevitável que, ao desenvolver o seu trabalho, o sujeito investigador esteja já condicionado ou pelo resultado que se propôs ou que gostaria de atingir ou pelas conclusões “intuitivas” que os primeiros contactos com a matéria a investigar sempre lhe suscitam. Portanto, julgo ser preferível assumir explicitamente, por antecipação, algumas conclusões centrais e correr o risco de que venham a ser infirmadas pelos desenvolvimentos subsequentes (“subsequentes” apenas na ordenação gráfica do texto...), do que (fazer por) ignorar a sua existência prévia e o seu efeito condicionante sobre todo o percurso da exposição. Assim, aponto como primeira “conclusão antecipada” o facto de o tratamento dado pelos tribunais portugueses ao princípio da DPH espelhar a situação actual de caos ou de pluralismo metodológico (conforme se perfilhe uma posição mais negativa ou mais positiva acerca do panorama metodológico contemporâneo). Uma das características essenciais que podem ser assinaladas ao estado actual da metodologia jurídica consiste na verificação de que, ao contrário do que por vezes aconteceu em épocas passadas, as correntes metodológicas não se sucedem temporalmente numa lógica de substituição de umas por outras, antes convivem no mesmo horizonte cronológico, paralelamente. Os agentes jurídicos, ao serem confrontados com a necessidade de encontrar 14 uma solução para um determinado problema jurídico concreto, não se limitam a apreender e, consequentemente, a aplicar um único método proposto por uma certa tendência metodológica. Antes pelo contrário, recolhem elementos metodológicos de correntes diversas, sem que a recepção das teses de uma, evidenciada, por exemplo, em determinado ponto de uma decisão judicial ou de uma lei, signifique, por si só, a rejeição das outras. Nota-se até que, muitas vezes no mesmo acórdão, não só coexistem correntes diferentes, como essa coexistência acaba por traduzir-se em influência recíproca, mesmo que não explícita. A utilização de conceitos e modos de raciocínio próprios de uma certa tendência ganha sentido, é iluminada e complementada pelo aproveitamento das formas de pensar e decidir típicas de uma outra corrente. É este tipo de abordagem que creio poder ver-se retratada nas decisões judiciais que referenciei acima. Como procurarei mostrar de seguida, podemos identificar nelas traços do pensamento da jurisprudência dos valores, da jurisprudência ética, da hermenêutica e até da tópica (num caso específico que ainda não mencionei, mas que indicarei mais adiante). Poderse-á dizer, não sem alguma razão, que só por ingenuidade se pode pretender que os tribunais portugueses tenham uma consciência metodológica de tal modo aguçada que sejam levados a, intencionalmente, mesclar diferentes tipos de metodologias nas suas decisões, por considerarem ser essa a forma mais profícua de chegar a uma solução adequada para o caso concreto. A identificação dos tais traços metodológicos nos diferentes acórdãos resultaria então de um mero trabalho de reconstrução artificial e a posteriori por parte de quem se dedicou à análise das ditas decisões. De certa forma, esta observação não deixa de ser verdadeira. O que não me parece é que ela tenha de assumir necessariamente um cariz negativo. Se, hoje, se reconhece, por exemplo, que o processo de criação de uma lei não está terminado quando o legislador dá por finda a sua intervenção, mas que esse mesmo processo segue o seu caminho no momento em que a lei é aplicada (regressarei a este problema), por que não reconhecer que, de modo análogo, uma determinada decisão de um aplicador do direito a propósito de um caso concreto não está “acabada” quando sai das suas mãos, podendo vir a ser enriquecida ou, pelo menos, 15 clarificada pela posterior actividade interpretativa que sobre ela incida? Aliás, não seria contraditório defender a superação de um modelo rígido de separação entre criação (entendase actividade legislativa) e aplicação (leia-se resolução dos problemas jurídicos concretos com base em leis previamente elaboradas) do direito, para depois se vir sustentar que tal separação estanque já se torna possível realizar na relação entre a aplicação do direito e o trabalho “doutrinário” crítico sobre essa mesma aplicação? Seja como for, ainda que, por vezes, os tribunais não tenham consciência de estar a seguir determinadas linhas de raciocínio identificáveis com esta ou com aquela corrente metodológica, o certo é que o fazem por não serem obviamente imunes ao ambiente cultural que os rodeia, por serem, também eles, simultaneamente, motores de uma determinada evolução da cultura jurídica e receptores de influências e tradições que os precedem e os ultrapassam. É, pois, inevitável que os tribunais espelhem, de forma mais ou menos explícita, mais ou menos consciente, o ambiente jurídicocultural vivido numa determinada época. Gostaria ainda de, com base na apreciação jurisprudencial que tive oportunidade de fazer, tomar posição acerca da questão de saber se o assinalado pluralismo metodológico deve ser visto como uma realidade essencialmente benéfica e estimuladora do desenvolvimento da cultura jurídica4, ou se, pelo contrário, o panorama actual revela apenas um quadro de total desorientação metodológica5, um caos em que a coexistência no mesmo horizonte cronológico de variadas tendências se vem a traduzir num sincretismo redutor. Creio que, pelo menos no que respeita ao concreto problema sobre o qual me debrucei, o do tratamento do princípio da DPH pelos tribunais portugueses, o balanço é positivo. Parece-me que o pluralismo metodológico acaba por retomar, embora de uma perspectiva completamente diferente, a “humildade científica” que de certo modo caracterizava o positivismo jurídico científico do século XIX. Assim, ao invés de se ter a pretensão de encontrar um método único, supostamente apto a guiar o aplicador do direito na resolução de qualquer caso, reconhece-se que os problemas jurídicos podem ser abordados de diversos 4 Cfr., neste sentido, A. Kaufmann, ob. cit., pp. 5 e 127. Cfr. A. Menezes Cordeiro, “Introdução à edição portuguesa” da obra de C.-W. Canaris, Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência do direito, 2.ª ed., Lisboa, Gulbenkian, 1996, p. XXXI. 5 16 ângulos e que o caminho para a sua solução não é único nem linear. Aliás, a meu ver, em larga medida, nem sequer se coloca uma questão de incompatibilidade entre as diversas correntes, já que cada uma delas destaca aspectos próprios, não focados pelas outras, havendo, pois, entre elas mais uma relação de complementaridade do que de exclusão recíproca. Acresce que algumas das escolas metodológicas são, pelo menos em parte, mais descritivas do que prescritivas. No entanto, é importante sublinhar que pluralismo metodológico não é (ou não deve ser) sinónimo de sincretismo arbitrário. Ou seja, não se defende que o intérprete e decisor escolha de entre cada uma das várias correntes os elementos que melhor lhe servirem para justificar a solução que mais lhe convém ou que lhe parece adequada apenas de acordo com a sua “intuição”. Antes pelo contrário, tudo está em saber escolher, face à factualidade concreta, aquele percurso decisório que melhor permita fundamentar racionalmente a decisão, de modo que esta seja mais facilmente controlável (também numa perspectiva racional). Contudo, admita-se que, por vezes, a fronteira entre a racionalidade e a arbitrariedade (eventualmente disfarçada sob a capa de uma fundamentação aparentemente racional) pode ser muito ténue. A outra conclusão a que a análise dos acórdãos referidos me permitiu chegar foi a confirmação de que, como já deixei indiciado no ponto anterior, não é possível, hoje, continuar ou voltar a defender o dualismo estrito, fundamental e estruturante no pensamento positivista, entre os momentos de criação e de aplicação do direito6. Esta impossibilidade torna-se particularmente patente quando estamos a lidar com um princípio – o da DPH – que é, porventura, o conceito jurídico vago ou indeterminado por excelência. O legislador constituinte de 1976 ao consagrar (reconhecer) tal princípio como fundamento de toda a ordem jurídica portuguesa não deu ao intérprete e ao aplicador do direito um conceito de conteúdo rigorosamente definido e susceptível de fornecer soluções para os casos concretos através de um mero raciocínio subsuntivo. Desde logo, porque, como também o demonstram os acórdãos analisados, o princípio da DPH só ganha pleno sentido e alcance práticos quando articulado com outros princípios constitucionais e com os diversos direitos fundamentais constitucionalmente consagrados. Por outro lado, porque a DPH é algo que carece de 6 V., p. ex., Ulrich Schroth, “Philosophische und juristische Hermeneutik”, em Kaufmann, Hassemer, Einführung..., cit., p. 348. Ou, escrevendo sobre a relação entre direito e linguagem, Fritjof Haft, “Recht und Sprache”, cit., loc. cit. 17 concretização em cada momento histórico e face a cada problema concreto, não devendo nem podendo o intérprete, como bem salientou um dos acórdãos supracitados, pretender ver plasmado na Constituição um conceito intemporal, a-histórico de dignidade humana. È através da actividade dos tribunais (auxiliados pelas reflexões doutrinárias) que um tal conceito ganha corpo, se concretiza, vai sendo construído. Não significa isto que, desta forma, se caia no extremo oposto ao do positivismo e se coloque exclusivamente nas mãos dos tribunais a definição livre e não vinculada do conteúdo das normas e dos princípios jurídicos. Se assim fosse, estaríamos a erigir um governo de juizes e estaria posto em xeque o próprio Estado de direito democrático e, em particular, um dos seus pilares - o princípio da separação de poderes. A fonte de legitimidade democrática directa de que beneficia o legislador por virtude da sua eleição através do voto popular, em contraste com a ausência dessa mesma fonte (pelo menos, de modo directo) no processo de designação dos juizes, impõe que se reconheça à lei algum grau de “autonomia” (no sentido etimológico da palavra), que se valorize em certa medida o contexto em que ela surge e em que se insere. O que já não é defensável, sobretudo quando estejam em causa conceitos com grau de indeterminação elevadíssimo, é que o juiz se limite a uma operação meramente subsuntiva; o juiz, na sua actividade interpretativa, traz sempre algo de si mesmo, da cultura e da tradição em que se insere, enriquecendo dessa maneira o conteúdo da norma, dando, no fundo, continuidade ao seu processo formativo7. 3.2. Especificidade metodológica na abordagem ao princípio da DPH ? Antes ainda de me referir especificamente aos traços metodológicos contemporâneos (ou não) contidos nas sentenças judiciais analisadas, abordarei brevemente a questão de saber se é ou não possível reconhecer ao tratamento do princípio da DPH em cada uma das decisões judiciais concretas uma especificidade metodológica, ou se, pelo contrário, a discussão desse problema se dilui na metodologia geral de resolução do caso. Numa primeira reflexão, a observação dos casos referidos levou-me a negar essa especificidade metodológica da aplicação do princípio da DPH. Pareceu-me haver tão-somente um método geral de decisão 18 do caso, no contexto do qual a discussão em torno do princípio da DPH surgiria como um argumento ou como um incidente argumentativo tendente à justificação da decisão final do tribunal, que, do ponto de vista metodológico, não se distinguiria do restante conteúdo do acórdão em que se integraria. Contudo, após nova ponderação da questão, julgo ser necessário mudar de posição. Assim, sendo certo que não é possível separar a metodologia seguida em geral para a decisão do problema jurídico concreto do método adoptado no confronto com a questão específica da pertinência da aplicação in casu do princípio da DPH, a verdade é que tal impossibilidade não decorre da diluição desta última questão naquela outra. De certa maneira, o que sucede é exactamente o oposto. Passando a explicar : nos casos em que o princípio da DPH não é alvo de uma mera referência lateral ou acidental, mas constitui antes peça fundamental da ratio decidendi, é a partir da análise do modo como o juiz trata e aplica o princípio da DPH que podemos identificar qual a metodologia seguida em todo o caso. Por outras palavras, é o tratamento dispensado ao princípio da DPH que caracteriza metodologicamente todo o processo decisório, na medida em que é aquele tratamento que nos fornece os “índices” que permitem estabelecer a correspondência entre o raciocínio seguido pelo juiz e os traços típicos de determinada corrente metodológica. Socorrendo-nos de um conceito próprio do domínio da retórica, quase poderíamos dizer que, metodologicamente, estamos perante uma “sinédoque”, em que se toma o todo (a decisão judicial globalmente considerada) pela parte (o modo de abordar o princípio da DPH no contexto global da decisão). Irei agora procurar pôr em destaque os principais aspectos que, segundo julgo, permitem vislumbrar nos acórdãos citados elementos próprios de determinadas correntes metodológicas contemporâneas ou, de uma forma mais genérica, integrá-los no paradigma metodológico hodierno (ainda em formação...), por oposição ao paradigma positivista. O meu objectivo principal nesta parte do trabalho será o de pôr a nu aquela que considerei a conclusão primeira e mais fundamental a que julgo ter podido chegar: a de que as decisões judiciais que versam sobre a aplicação do princípio da DPH ilustram, no seu conjunto, de forma exemplar, o actual estado de pluralismo metodológico. Contudo, devo frisar que, como explicitarei, não me parece líquido que, em certos casos, os tribunais se tenham já desligado 7 Ver as referências da nota anterior. 19 completamente das estruturas mentais próprias do positivismo. Terei, pois, a preocupação de, sempre que tal me pareça pertinente, questionar se os tribunais, em alguma medida, não estarão ainda presos a um modo de pensar positivista. 3.3 O pluralismo metodológico “em acção”: a DPH como valor; positivismo?; hermenêutica jurídica; teoria da argumentação; tópica; general principles of law Um dos aspectos que mais impressiona quem se debruce sobre os acórdãos supracitados é a frequência com que surge, no discurso dos tribunais, a afirmação do princípio da DPH como valor “supremo”, “basilar”, “estruturante”, “vector axiológico estrutural” da República Portuguesa. Importa, assim, descortinar qual o sentido que os tribunais portugueses atribuem à qualificação do princípio da DPH como integrando a ordem dos valores. É que, embora tal possa parecer estranho, cabe perguntar se, em alguns casos, não se estarão a recuperar categorias anteriores ao próprio paradigma positivista, que foram firmemente rejeitadas por este. Dito de forma clara, está em causa saber se os tribunais porventura ensaiam, em algum momento, um regresso do direito natural. Note-se que o terreno em que nos movemos é particularmente fértil para fazer florescer uma “tentação” de recuperação do “sonho” do direito natural, já que este é historicamente indissociável (na cultura ocidental, obviamente) da compreensão cristã8 do homem e do mundo, a qual é também causa primeira, ainda que “reformulada” por perspectivas laicas do Estado, da recepção pelos ordenamentos jurídicos ocidentais da dignidade humana como fundamento do Estado e limite para a sua actuação. E, por surpreendente que seja, não deixa de ser possível identificar alguns acórdãos em que a aproximação a uma perspectiva jusnaturalista representa o modo mais razoável de explicar certo tipo de afirmações. Como exemplo disso mesmo, temos o acórdão do TC 232/91, quando este sustenta a vinculação do Estado a um direito “justo”, orientado pelas ideias de “verdade e de justiça”. Neste caso, os conceitos utilizados pelo tribunal e a sua articulação com a dignidade humana e com o “bem comum”; ausência de uma referência ao carácter relativo e mutável do conteúdo de tais conceitos; o modo como, pelo contrário, se parece partir de uma 8 Embora a associação do conceito de DPH à ideia de justiça esteja já presente no estoicismo: v. D. Freitas do Amaral, “O princípio da justiça no art. 266 da Constituição”, em Estudos em homenagem ao Prof. Doutor Rogério Soares, Coimbra, Coimbra Editora, 2001, p. 692. 20 ordem pressuposta, tudo isto leva-nos a pensar estarmos perante um (surpreendente?) regresso do direito natural como elemento decisivo de fundamentação de decisões jurídicas. No entanto, o acórdão mencionado representa um caso isolado no conjunto dos acórdãos apreciados. Mas então qual é o sentido da referência ao valor da DPH nas restantes decisões? A DPH é vista como fundamento primeiro da comunidade jurídico-política, porque nela se condensa o mínimo denominador comum a todos os membros que integram aquela comunidade. Por conseguinte, não está em causa um valor enquanto realidade com um conteúdo pressuposto, mas antes um valor que exprime uma verdade intersubjectivamente válida. Assim se compreende a necessidade sentida pelos tribunais de salientar o carácter sempre historicamente situado e relativo do conteúdo da DPH. Portanto, podemos dizer que estamos não já perante uma recuperação do direito natural, mas antes face ao desenvolvimento de um raciocínio próprio da jurisprudência das valorações. Para esta corrente metodológica, os valores supralegais que constituem os alicerces do sistema jurídico – como é o caso da DPH – são instrumentos metodológicos que ajudam, na incerteza, a descobrir o sentido oculto das normas, a encontrar a solução justa. O seu conteúdo é extraído a partir do espírito jurídico dominante na comunidade política e cultural, não a partir de uma qualquer ordem natural pressuposta9. Neste sentido vão precisamente as insistentes referências dos tribunais ao carácter “não puramente apriorístico” e à “dimensão eminentemente cultural” do princípio da DPH. Esta ligação forte entre o conteúdo dos valores e aquilo que é reconhecido como um bem “jurídico-cultural” para um número máximo de pessoas que constituem uma comunidade política e cultural é uma das características fundamentais da jurisprudência das valorações. Importa ainda saber de que modo este valor da DPH actua como instrumento auxiliar na resolução dos casos. Quanto a esta questão, não podemos identificar uma linha dominante nas decisões analisadas. Tanto se considera que o princípio da DPH pode servir, por si só, de padrão para a emissão de um juízo de constitucionalidade sobre as normas mas que dele não são dedutíveis soluções jurídicas concretas, como se defende que a DPH pode ser fonte 21 directa e imediata de direitos fundamentais. De qualquer maneira, certo é o papel do valor DPH enquanto critério de interpretação dos diversos direitos fundamentais. A esta questão se regressará adiante. Ao afirmarem o princípio da DPH como valor “primeiro”, “ultima ratio” do ordenamento jurídico, etc., os tribunais encaram-no como fonte da qual “decorrem” ou “derivam” os restantes princípios constitucionais e normas jurídicas. A questão que se nos coloca é a de saber se não estaremos aqui ainda perante resquícios de um conceitualismo positivista ou até mesmo face a um positivismo lógico kelseniano. Aquilo que caracteriza essencialmente a jurisprudência dos conceitos é a dedução de princípios jurídicos a partir de meros conceitos. Configura-se uma “pirâmide conceptual” em cujo topo está um conceito supremo (que, no nosso caso, seria a DPH), a partir do qual se deduzem, em primeiro lugar, conceitos muito abstractos e genéricos; destes são, por sua vez, deduzidos conceitos mais concretos e com um conteúdo mais denso. Num sistema conceitualista perfeito, seria possível subsumir todos os conceitos, suas espécies e subespécies, ao conceito supremo situado no topo da pirâmide. A este seria possível chegar, partindo de qualquer ponto da base, através de um processo de progressiva e crescente abstracção10. Por outro lado, o positivismo lógico-normativo adopta também uma “construção por degraus”, uma pirâmide, no topo da qual coloca a Grundnorm, norma pressuposta que constitui a fonte de legitimidade de todo o acto estadual11. Este tipo de construção hierárquica, piramidal, parece, de facto, estar subjacente a alguns dos acórdãos, sobretudo aos mais antigos, que evidenciam ainda um excessivo apego a um raciocínio puramente dedutivo, segundo o qual se parte do princípio (DPH) para a norma (por exemplo, uma norma constitucional que consagra um direito fundamental concreto) e da 9 Cfr., sobre o problema dos critérios de valoração supralegais, Karl Larenz, Metodologia da Ciência do Direito, 3.ª ed., Lisboa, Gulbenkian, 1997, pp. 172 ss. 10 V., sobre a jurisprudência dos conceitos, Larenz, Metodologia..., cit., pp. 21 ss.; A. Kaufmann, “Problemgeschichte...”, cit., pp. 140 ss.; A. M. Hespanha, Panorama Histórico da Cultura Jurídica Europeia, Europa-América, 1997, pp. 191 s. 11 V. Larenz, Metodologia..., cit., pp. 91 ss.; A. Kaufmann, “Problemgeschichte...”, cit., pp. 150 ss.; Hespanha, Panorama..., cit., p. 195. 22 norma para o caso, não se reconhecendo a existência de um movimento também em sentido contrário. Por exemplo, a DPH seria causa do efeito “princípio da igualdade”, que, por seu turno, causaria ele próprio uma determinada configuração de certa norma legal. No entanto, esta tendência não se observa exclusivamente nos acórdãos mais antigos. Também num acórdão relativamente recente se pode observar uma manifestação, se bem que não tão explícita, deste tipo de raciocínio. Assim, no acórdão do STJ de 26.4.95, o tribunal não resiste à tentação de considerar o direito à vida como à partida prevalecente sobre quaisquer outros direitos. Esta opção poderá parecer até natural e louvável, por revelar uma intenção de conferir um grau de protecção máxima ao direito à vida. Contudo, ela implica uma tomada de posição metodológica com repercussões altamente discutíveis do ponto de vista da dogmática dos direitos subjectivos. Actualmente, a doutrina dominante entende não ser adequado construir uma hierarquia de direitos fundamentais, que levaria a afirmar a precedência, em abstracto, de uns direitos face a outros. Prefere-se proceder a uma ponderação dos bens jurídicos conflituantes, procurando seguir um critério designado de “concordância prática”12. Ora, a doutrina perfilhada pelo STJ acaba por significar um regresso ao passado, por implicar um retrocesso na doutrina dos direitos fundamentais, e por indiciar a adesão a uma construção hierárquica e rígida da ordem jurídica. Todavia, estes indícios de um aparente regresso ao positivismo são amplamente contraditados por outros sinais que apontam para um modo de resolução dos casos já póspositivista13. Impõe-se começar por dizer que nem todas as construções do ordenamento jurídico “por degraus” são necessariamente positivistas. O problema não reside tanto na “geometria” da construção, mas nas diferentes concepções acerca dos processos dinâmicos que se desenrolam entre os diversos componentes do “edifício”. Assim, é perfeitamente 12 V. J.C. Vieira de Andrade, Os direitos fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, 2.ª edição, Coimbra, Almedina, 2001, pp. 102 ss. 13 Não viso, de modo algum , uma “demonização” de tudo quanto se qualifique de “positivista”. Por exemplo, dificilmente se conseguirá, hoje, raciocinar juridicamente se se abandonar completamente a ideia de “sistema”. De resto, creio que uma concepção segundo a qual dois paradigmas de pensamento que se sucedem no tempo, por serem radicalmente incompatíveis, não podem apresentar pontos de contacto ou de influência não só não retrata fielmente a realidade como, por obstar à comunicação interparadigmática, não promove da melhor forma a evolução da cultura (jurídica). No entanto, como já sublinhei, julgo ser útil distinguir as diversas concepções, na medida em que essa distinção promove a clareza do discurso e, como tal, a possibilidade de um controlo racional sobre ele. 23 plausível concebermos (seguindo Arthur Kaufmann14) um sistema não positivista composto por três degraus: um primeiro formado pelos princípios jurídicos abstractos-gerais, meta-positivos e meta-históricos (não no que se refere ao seu conteúdo, concretizado de forma diferente em cada momento histórico) ; um segundo em que se encontram as regras jurídicas concretizadasgerais, formal-positivas, válidas por um período temporal razoavelmente longo; e, finalmente, um terceiro degrau constituído pelo direito concreto, material-positivo, histórico. Temos, pois, em degraus diferentes da ordem jurídica, princípio jurídico, norma jurídica e decisão jurídica. Aquilo que distinguirá, então, uma construção deste género de uma perspectiva positivista do ordenamento jurídico será o facto de se reconhecer que se, por um lado, não há regra jurídica sem princípio jurídico, nem decisão sem regra jurídica, por outro lado, não há regra jurídica só a partir dos princípios jurídicos, nem decisão jurídica só a partir da regra jurídica. Portanto, a determinação do direito, para uma perspectiva não positivista, decorre dedutivamenteindutivamente, ou, na visão de A. Kaufmann, analogicamente. Ora, creio ser possível detectar, em grande parte dos acórdãos referidos, um modo de raciocinar que vai ao encontro desta última perspectiva. Na verdade, se, por um lado, o princípio da DPH é utilizado ora como auxiliar interpretativo na determinação do conteúdo dos direitos fundamentais que concretamente estejam em jogo, ora como “pedra de toque” para a resolução de um dado conflito, ora também como fonte de direitos fundamentais não expressamente consagrados na Constituição, por outro lado, verifica-se um movimento de vaie-vem entre o princípio da DPH, os direitos fundamentais individualmente considerados e os factos concretos. De tal modo que o próprio princípio da DPH acaba por ver o seu conteúdo iluminado pela configuração dos diversos direitos fundamentais e pelas vicissitudes factuais de cada caso. Os tribunais acabam, pois, por assumir, ainda que talvez de forma inconsciente (esta questão permanece em aberto), que a correspondência entre a norma (princípio da DPH e direitos fundamentais numa relação de complementaridade recíproca) e o caso só se torna possível após ambos terem sido, respectivamente, enriquecidos com empirismo e 14 A. Kaufmann, “Problemgeschichte...”, cit., p. 159. 24 normatividade, de tal maneira que se “correspondam”, o que pressupõe uma identidade na relação de sentido entre eles15. Acresce que ao princípio da DPH, apesar de considerado estruturante e fundamentador, não é atribuído o exclusivo da primacialidade. Um dos aspectos bem patentes nas decisões apreciadas prende-se com a íntima associação feita entre os princípio da DPH e o princípio do Estado de direito, que se fortalecem mutuamente, sendo praticamente impossível dizer qual deles ocupa afinal o lugar de topo. E isto porque, no fundo, os próprios tribunais, embora dêem por vezes sinais de adesão a uma configuração hierárquica rígida e unidireccional do sistema jurídico, mostram sentir dificuldades em conciliar essa rigidez com a fluidez e diversidade dos casos concretos e, bem assim, com a necessidade de encontrar um conteúdo concreto para conceitos tão vagos como a DPH. Aliás, parece-me que, em alguma medida, a utilização de qualificativos “fortes” como “supremo”, “estrutural” serve também para iludir alguma dificuldade de fundamentar a sentença de forma objectiva. Na realidade, não é tarefa fácil averiguar o que seja o “espírito jurídico dominante” numa comunidade jurídica, por forma a alcançar o conteúdo histórico concreto do princípio da DPH. Esta dificuldade é inevitável e, de certa forma, inerente ao elevadíssimo grau de abstracção que um tal princípio comporta se considerado em si mesmo. Por isso, é muitas vezes mais cómodo recorrer a expressões grandiloquentes como “vector axiológico estrutural” do que proceder ao trabalho, mais penoso, do confronto exaustivo do dito princípio com os outros princípios e direitos constitucionalmente consagrados. A mencionada interactividade e enriquecimento recíproco entre os princípios da DPH e do Estado de direito, os direitos fundamentais individuais e outros direitos, esta relação dinâmica pluridireccional que se estabelece entre princípio, norma e caso pode ser descrita como uma forma de raciocínio “em espiral”, e, assim, tendo partido da jurisprudência das valorações, eis-nos chegados à hermenêutica jurídica. De facto, pode observar-se, nas decisões em causa, um “balançar do olhar” entre o caso concreto e o conceito indeterminado 15 A. Kaufmann, “Problemgeschichte...”, cit., p. 162. 25 de “dignidade da pessoa humana”, que ajuda a ir concretizando este último e, desse modo, a encontrar uma solução adequado ao caso. E não ficam por aqui os indícios de uma aproximação ao método (ou melhor, à filosofia) hermenêutico. Apontarei mais dois aspectos que considero importantes. Em primeiro lugar, é sabido que, para o pensamento hermenêutico, o sujeito que compreende um texto ou um caso da vida se insere no “horizonte de compreensão e não se limita a representar passivamente o objecto da compreensão na sua consciência, antes o configura ele próprio”16. Mais, a hermenêutica parte do princípio de que “aquele que quer compreender está ligado ao que é transmitido e estabelece contacto com a tradição, da qual brota aquilo que é comunicado” 17. A compreensão não é um processo puramente receptivo, é sempre antes do mais compreensão de si mesmo por parte do sujeito que compreende. Só entrando ele mesmo no horizonte de compreensão, com toda a tradição de que é portador, conseguirá fundamentar a decisão “intuitiva” inicial que ele toma ao contactar com o caso. Ora, esta consciência do peso da tradição, da herança cultural no modo de decidir do sujeito aplicador do direito está bem presente em muitos dos acórdãos citados, designadamente quando se apela à “consciência colectiva” fundada em “raízes ancestrais”, ou quando se acentua o carácter historicamente situado ou a necessidade de “concretização histórico-cultural” do princípio da DPH. Um outro ponto em que se evidencia a influência do pensamento hermenêutico, que já foi em parte tratado supra, mas que agora se complementa, relaciona-se com a função do princípio da DPH como critério decisivo de balanceamento de direitos fundamentais conflituantes18. É bem clara, sobretudo nos acórdãos que lidaram com problemas do âmbito do direito do trabalho e da segurança social, a ideia da necessidade de resolver o conflito entre direitos fundamentais recorrendo a um critério de “concordância prática”, princípio de harmonização na busca de uma solução que garanta ambos os direitos conflituantes na máxima amplitude possível. Nesse sentido, os tribunais orientaram-se por uma 16 V. A. Kaufmann, “Problemgeschichte...”, cit., p. 122; Larenz, Metodologia...cit., sobretudo pp. 285 ss.; Schroth, “Philosophische und juristische Hermeneutik”, cit., pp. 345 ss. 17 Gadamer, Wahrheit und Methode, 5.ª ed., 1986, p. 279, citado por A. Kaufmann, “Problemgeschichte...”, cit., p. 123. 18 Sobre esta questão, v. Larenz, Metodologia..., cit., pp. 574 ss. 26 proporcionalidade ponderada em função do peso que cada um dos direitos tem no caso sub judice e, para determinar qual o direito que, em concreto, devia ser preferido, utilizaram como “pedra de toque” o princípio da DPH. O reconhecimento implícito, em quase todas as decisões, de que a ordem constitucional é aberta, comportando uma pluralidade de valores que podem surgir em conflito nos casos concretos e que este deve ser solucionado, não através da aplicação de uma mera escala de prioridades hierárquicas entre os direitos, mas sim através de uma racionalidade prática que pondera os interesses em jogo de modo a atingir um resultado razoável corresponde precisamente ao modo de pensar da hermenêutica. O pluralismo metodológico é evidenciado pelo facto de serem também identificáveis, em mais do que um acórdão, traços de uma corrente metodológica que, pelo menos em parte, se opõe à hermenêutica: a teoria da argumentação. Esta teoria (aliás, segundo notam os autores que se dedicaram a esta matéria, fala-se em “teoria da argumentação” como uma espécie de “macro-corrente” metodológica que, na realidade, representa um conjunto de correntes distintas) acusa a hermenêutica de propugnar uma “metafísica irracional” e não a acompanha na abolição do esquema sujeito-objecto, prevalecendo-se antes da objectividade, chegando ao ponto de negar a existência de lacunas na argumentação e de excluir a possibilidade de coincidências ou acasos nesta mesma argumentação. Esta exigência de objectividade, e a crença na sua possibilidade, é responsável pelo facto de muitos teóricos da argumentação rejeitarem o pluralismo com um fenómeno negativo19. Ora, um dos acórdãos que tive oportunidade de analisar, e que ainda não citei, pareceme espelhar uma tensão entre elementos recolhidos da hermenêutica e da teoria da argumentação, que acaba por levar o tribunal a, de alguma forma, entrar em contradição, por pretender conciliar pontos de vista dificilmente compatíveis. Falo do acórdão 105/90 do TC. Nele se quer, por um lado, admitir como legítimo o “pluralismo mundivivencial ou de concepções” na concretização do que se deva entender por DPH, concretização essa que, segundo o tribunal (e bem), se tem de realizar por referência a um determinado momento “histórico-cultural”. O tribunal confronta-se, em seguida, com a questão de saber a quem deve 19 A. Kaufmann, “Problemgeschichte...”, cit., pp. 126 s. 27 ser reconhecida competência para proceder a essa concretização, o que o leva a afirmar ser o legislador, dada a sua legitimação democrática, o órgão especialmente vocacionado para a “criação” do direito, cabendo-lhe, como tal, “em primeira linha”, verter no ordenamento jurídico o conteúdo histórico concreto do princípio da DPH. É evidente que o tribunal se apercebe bem do delicado problema de separação de poderes que aqui se coloca e da escolha institucional que está subjacente a qualquer tomada de posição relativamente a ele. Simplesmente, julgo que esta preocupação, não obstante ser legítima e necessária em si mesma, acaba por levar o tribunal longe demais. Assim, o tribunal entende que a separação de poderes exige que só onde se verifique uma flagrante incompatibilidade das soluções adoptadas pelo legislador com o princípio da DPH deve o juiz constitucional intervir, decidindo-se pela inconstitucionalidade daquelas soluções. Até aqui, parece estarmos perante uma posição razoável, que justamente revela um raciocínio de concordância prática na busca de um equilíbrio entre os poderes legislativo e judicial. Contudo, o problema surge quando o tribunal exige que, na determinação do que seja uma incompatibilidade flagrante, “real e inequívoca”, entre as normas legais e o princípio constitucional da DPH, o juiz se atenha a um critério exclusivamente “objectivo” (o tribunal dá como exemplo o critério de “todos os que pensam recta e justamente”), não se deixando influenciar pelo seu critério “subjectivo”. Esta perspectiva parece corresponder à aludida posição da teoria da argumentação, contrariando um dos dados essenciais da hermenêutica jurídica. E, a meu ver, um tal posicionamento prejudica o encontrar de uma solução adequada, porque, se bem que a teoria da argumentação, à semelhança da hermenêutica, pretenda afastar-se da defesa de um método subsuntivo, neste ponto corre-se o risco de se regressar a ele ou a algo de equivalente. É certo que não se sustenta, no acórdão, a velha tese positivista segundo a qual o juiz só estaria sujeito à lei. No entanto, a convicção, por parte do juiz, de que pode proferir a decisão com base em critérios puramente objectivos, sem interferência de quaisquer juízos de valor pessoais, acaba por ter subjacente o mesmo vício de raciocínio. Agora, já não será a “lei” o critério objectivo único que guia o juiz, mas esta é substituída pela opinião de “todos os que pensam recta e justamente”. Esquece-se, por conseguinte, que, na concretização de qualquer norma jurídica, e mais ainda quando estamos face a um princípio 28 indeterminado como a DPH, influi certamente a concepção pessoal do juiz, a “précompreensão” (no sentido já explicitado supra de “carga histórico-cultural” que traz consigo e que o leva a formular um resultado provisório assim que toma contacto com os factos) com que aborda o caso. Como nota A. Kaufmann, não se censura o juiz pelo facto de “entrar” para a abordagem do caso com as suas “pré-compreensões”. Isso é inevitável. Aliás, alguns autores entendem mesmo que a sensibilidade jurídica consiste em ter a arte de ter as précompreensões certas. Merecedor de censura é, sim, o facto de o juiz não reconhecer que tem uma pré-compreensão, de não reflectir sobre ela, visto que essa atitude pode conduzir à formulação de fundamentações aparentes da sentença. Um dos contributos mais importantes da teoria da argumentação, aqui em sintonia com a hermenêutica, passou pela demonstração de que a teoria da interpretação, originária de Savigny e ainda hoje não totalmente superada, segundo a qual existe apenas um número exacto de quatro “elementos” (modi da argumentação), o gramatical, o lógico, o histórico e o sistemático (o positivismo exigia esta limitação), não se ajusta à realidade. Para além dos quatro citados, podem ser apontados muitos mais argumentos com os quais se podem fundamentar decisões jurídicas. A título exemplificativo, mencionem-se a garantia da segurança jurídica ou da justiça, a valorização das consequências, a sensibilidade jurídica, a praticabilidade, a homogeneidade do direito. O número dos possíveis argumentos é, em princípio, ilimitado, não existindo um catálogo fechado de cânones interpretativos20. Existe, pois, uma multiplicidade inesgotável de argumentos igualmente admissíveis num discurso jurídico racional. A razão pela qual entendo ser pertinente destacar este aspecto reside no facto de várias das sentenças analisadas lançarem mão de conceitos como por exemplo “bem comum” ou “justiça” não só para sublinhar o seu papel enquanto fins do Estado e da actuação dos órgãos públicos, mas também para, em conjugação com este aspecto, os utilizarem como critérios interpretativos próprios, (ainda que) sempre vistos à luz do princípio básico da DPH. Não se pretende com isto dizer que os elementos “clássicos” de interpretação sejam postos de 20 A. Kaufmann, “Problemgeschichte...”, cit., pp. 125 s. 29 parte na linha argumentativa seguida pelos tribunais, nem faria sentido que o fossem, já que mantêm plena actualidade (apenas se contesta que sejam os únicos critérios de interpretação a ter em conta). Designadamente, como tivemos já oportunidade de constatar a partir de tudo quanto ficou dito, o elemento sistemático assume um papel fulcral no jogo de interacção entre o princípio da DPH e os direitos fundamentais individuais. Simplesmente, julgo que aqueles outros conceitos enunciados desempenham um papel decisivo quer enquanto padrões a que se recorre, em conjunto com outros, para decidir, por exemplo, qual o direito que deve ser mais ou menos sacrificado num caso concreto de colisão, quer como auxiliares na determinação do que se deva entender pelo conteúdo concreto do princípio da DPH. Apesar do que ficou dito, subsiste ainda a alternativa de incluir os referidos conceitos de “justiça”, “bem comum” etc. no elemento teleológico da interpretação. De facto, este elemento – enquanto nos indica, em termos gerais, qual o fim que a lei e/ou o legislador prossegue, ao dar corpo a uma certa ou a um certo princípio jurídico – é dotado de uma extensão muito ampla, susceptível de abarcar os ditos conceitos. Ainda assim, qualquer discurso jurídico ganhará em “racionalidade” quanto mais claro e transparente for o seu teor, e estes atributos serão melhor promovidos através da consideração autónoma daqueles critérios de interpretação do que pela integração destes numa categoria relativamente difusa como a “teleologia” da norma. Aproveito esta última referência para fazer notar que os tribunais não avançam muito no sentido de efectivamente descrever o conteúdo material do princípio da DPH. Utilizam-se muitos termos cujo grau de indeterminação não se afasta daquele que se assinala ao próprio princípio da DPH, sublinha-se a necessidade de realizar uma “concretização histórico-cultural”, mas, em última análise, acaba por se arriscar muito pouco neste domínio. Os acórdãos que mais longe vão nesta matéria reportam-se à vertente do imperativo categórico de Kant que manda tratar cada pessoa como um fim em si mesmo. No fundo, esta posição corresponde à “tese do objecto”, originária da Alemanha, mais especificamente de Günter Dürig, segundo a qual a DPH é atingida quando o homem concreto é degradado à condição de objecto, de mero meio, de medida substituível21. E, porventura, partindo do pressuposto de que a única verdade 21 Cfr. Peter Häberle, “Die Menschenwürde als Grundlage der staatlichen Gemeinschaft”, em Isensee, Kirchhof (org.), Handbuch des Staatsrechts, I, Grundlagen von Staat und Verfassung, 2.ª ed., Heidelberg, 30 à qual podemos aspirar tem necessariamente um cariz intersubjectivo, não será possível ir muito mais longe na definição do conteúdo da DPH. Antes de terminar, gostaria ainda de aludir brevemente à teoria dos general principles of law e de me referir à tópica com base num acórdão do TC que ainda não mencionei. Quanto à primeira questão, quando me reporto à teoria dos general principles estou, obviamente, a pensar na construção elaborada por Dworkin. Segundo este autor norteamericano22, a determinação do direito deve ser concebida como um processo interpretativo. A ordem jurídica não é constituída apenas por regras (rules), mas também por princípios (general principles of law), princípios esses que, ao contrário do que havia sucedido no tempo do positivismo, teriam força vinculativa face a todos os poderes estaduais (legislativo, executivo, judicial). De entre estes general principles, Dworkin nomeia três valores fundamentais, a saber, justiça, fairness e Estado de direito. Tais princípios devem auxiliar o juiz, sobretudo nos “casos difíceis”, a encontrar a solução juridicamente correcta que, segundo Dworkin, é sempre uma e só uma. Ora, em muitos dos acórdãos referidos, os juizes, confrontados com casos que podemos qualificar de “difíceis”, uma vez que neles se coloca a questão de saber como aplicar um princípio ao mesmo tempo basilar e extremamente aberto e vago e, em diversas ocasiões, de resolver um conflito entre direitos fundamentais de igual valia em abstracto, socorreram-se precisamente de (outros) princípios – designadamente, como já foi frisado, da “justiça” e do “Estado de direito” – que, conjugados com o da DPH, permitem ao intérprete extrair da Constituição uma unidade de sentido, que lhe fornece as directrizes para a resolução do problema jurídico concreto. A forma de raciocínio “tópico” foi aquela que menos se evidenciou no conjunto dos acórdãos analisados. Contudo, há uma decisão em particular em que ela se pode ver manifestada. Trata-se do acórdão do TC 236/99. Está em causa um divórcio a propósito do qual se levanta a questão de saber sobre quem deve recair o ónus da prova da culpa do C.F. Müller, 1995, p. 836; Christian Starck, “Art.1 des Grundgesetzes”, em Mangoldt, Klein, Starck, Das Bonner Grundgesetz, I, 3.ª ed., Munique, Franz Vahler, 1985, p. 34. 22 Segue-se o resumo feito por A. Kaufmann, “Problemgeschichte...”, cit., pp. 128 ss. 31 cônjuge que deu origem à separação de facto. Pergunta o cônjuge autor se não será violada a presunção de inocência, e desse modo atingida a DPH, se se entender que, face a um facto – a violação do dever de coabitação – condenado pela ordem jurídica nas suas normas-regra, traduzido na saída de um dos cônjuges da habitação comum do casal, se deve impor ao outro que venha a demonstrar a sua inocência, isto é, que não foi ele quem esteve na origem daquele comportamento (a saída de casa do primeiro). O tribunal inverte por completo a lógica do raciocínio do autor da acção, sustentando não haver qualquer presunção de culpa do cônjuge autor na violação, pelo cônjuge réu, do dever conjugal de coabitação, na justa medida em que aquilo que o Código Civil consagra é uma presunção de inocência do cônjuge réu! Daí o tribunal concluir pela não violação do princípio da DPH. Para chegar a este resultado, o tribunal desenvolve começa por partir de um primeiro lugar comum, que lhe é fornecido pelo “signo seguro” que constitui o princípio constitucional “sagrado” da presunção de inocência. Nenhuma das partes em litígio se lembraria de questionar este princípio, tal a sua evidência intersubjectiva. Daí o tribunal parte para a construção deste princípio como uma decorrência do princípio da DPH (2º lugar comum). Depois, articulando os princípios da presunção de inocência e da DPH com o princípio da culpa, o tribunal afirma a exigência da prova do carácter culposo de um determinado comportamento pela parte que imputa à outra esse mesmo comportamento (3º lugar comum). Finalmente, o tribunal conclui que, dos três lugares comuns anteriormente desenhados, decorre necessariamente não ser violador do princípio da DPH que se faça recair sobre quem imputa a outrem certos factos, pretendendo que estes lhe causaram danos, o ónus da prova do carácter culposo desses mesmos factos (4º lugar comum). Note-se como, deste modo, o tribunal foi caminhando de argumento para argumento, alicerçando cada um deles nos outros previamente sustentados, para acabar por “virar do avesso” o argumento inicialmente aduzido pelo cônjuge autor na acção. É ainda de realçar que o fio de raciocínio seguido pelo tribunal faz também lembrar a espiral hermenêutica, sobretudo se atentarmos na forma como o princípio da DPH surge logo no início da corrente argumentativa, para reaparecer, a final, como justificador da conclusão. Fica assim feita a tentativa de demonstração de uma “coexistência pacífica” (utilizo esta expressão não para significar um estado de ausência de tensão, mas para salientar que, em 32 geral, as várias metodologias não estabelecem entre si relações de exclusão) de traços de várias correntes metodológicas contemporâneas no tratamento conferido pelos tribunais portugueses ao princípio da DPH e às matérias que lhe estão “naturalmente” adjacentes. Não repetirei, agora, as conclusões que antecipei no início desta parte da exposição. O meu objectivo era, como disse, que elas fossem sendo “testadas” e verificadas ao longo do percurso deste relatório. Espero, pois, que os desenvolvimentos realizados tenham contribuído para confirmar as “hipóteses” de que parti. 3.4 O caso alemão Em jeito de epílogo, gostaria de enunciar sinteticamente o modo como o Bundesverfassungsgericht tem vindo a interpretar e aplicar o princípio da DPH, consagrado no art. 1º/1 da Lei Fundamental alemã23. Este artigo é encarado pelo tribunal constitucional alemão como a fonte, o ponto de partida dos direitos subjectivos fundamentais, servindo, ao mesmo tempo para reforçar a sua garantia e iluminar, enquanto critério de interpretação, o seu conteúdo. O art. 1º/1 é o centro da construção de um sistema de valores constitucionais que revelou, por vezes, na prática, implicar uma hierarquia desses valores e dos direitos fundamentais. Daí ter sido alvo de fortes críticas por parte de certos sectores doutrinários. Essas críticas fizeram-se sentir particularmente na chamada decisão “Mephisto”. Nesta, estava em causa o conflito entre o direito geral de personalidade de um famoso actor alemão, falecido, e a liberdade de expressão artística. O tribunal, a isso conduzido pelo sistema de valores que havia elaborado, considerou, por maioria, dever dar-se prevalência ao primeiro, contido no art.1º/1, sobre a segunda, protegida pelo art. 5º/324. O próprio BVG considerou que o sistema de valores da Constituição alemã gira em torno da personalidade humana, que se desenvolve livremente no seio da comunidade social, e 23 Seguindo P. Häberle, “Die Menschenwürde...”, cit., pp. 820 ss. Cfr., sobre este caso, Larenz, Metodologia..., cit., pp. 584 ss. Este Autor, colocado perante a questão de saber se, “segundo a ordem de valores contida na Lei Fundamental, se pode estabelecer uma clara prevalência de um dos bens em questão face ao outro”, sustenta que “à vida humana e, do mesmo modo, à dignidade humana, corresponde um escalão superior ao de outros bens, em especial os bens materiais.” Num dos votos de vencido do acórdão Mephisto, disse-se que, não tendo a Lei Fundamental estabelecido qualquer limite à liberdade de expressão artística, deveria entender-se que aquela “quis, in dubio, atribuir prevalência à liberdade artística”. 24 33 da sua correlativa dignidade. Esta última chegou a ser entendida como “pressuposta” pela Constituição e foi-lhe atribuído um carácter “pré-positivo”. Esta referência clara ao direito natural, que surgiu logo na década de 50, compreende-se bem se tivermos em conta a traumática experiência vivida com o não-Estado de direito nazi e consequente necessidade sentida, no pós-guerra, de restaurar um ordem jurídica “justa”. Para além de se referir que a DPH foi qualificada como valor constitucional supremo, fim último de todo o direito e princípio constitucional (note-se a semelhança com os termos utilizados pelos tribunais portugueses, maxime pelo tribunal constitucional), é indispensável mencionar a adopção da tese do objecto, proposta doutrinária de Dürig (já referida supra), expressa, por exemplo, na proibição de fazer do homem “mero objecto do Estado ou de o submeter a uma actuação que lhe negue a sua subjectividade.” Esta tese foi surpreendentemente posta em causa numa decisão conhecida como “Abhörurteil”. Nela se disse, contra a fórmula do objecto que “o homem não raras vezes é tomado como objecto não apenas das relações e do desenvolvimento social, mas também do direito, na medida em que tem de se ajustar à ordem jurídica independentemente de isso satisfazer o seu interesse pessoal.” Como seria de esperar, esta decisão mereceu duras críticas por banda da doutrina e, de resto, não teve continuidade em decisões posteriores. Globalmente, pode dizer-se, acompanhando Peter Häberle, que o BVG foi fazendo uma utilização relativamente parcimoniosa da cláusula do art. 1º/1, o que se veio a revelar bastante profícuo, na medida em que evitou a banalização e consequente desvalorização do princípio da DPH. Sobretudo, o BVG resguardou-se de empregar a expressão DPH exclusivamente num sentido supremo. O princípio foi concretizado em face dos casos concretos e contribuiu para determinar o conteúdo e o alcance dos diversos direitos fundamentais. A técnica de recurso aos exemplos concretos mostrou-se particularmente feliz, ao permitir atribuir à DPH um conteúdo mais concreto à luz da tese do objecto e, dessa forma, torná-la sindicável perante o juiz. No fundo, também o BVG adoptou um tipo de racionalidade prática, reconhecendo que o preenchimento do conceito de DPH com (outras) fórmulas abstractas apenas pode alcançar uma descrição aproximada do conceito. A delimitação positiva e negativa do seu conteúdo é conseguida através da análise de exemplos concretos, conjugada com a procura das concepções sociais dominantes, isto é, trabalha-se não só do 34 princípio para a norma e para o caso, mas também, em sentido inverso, “de baixo para cima”, do caso para a norma e para o princípio. 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