Malvinas na UNIVERSIDADE Concurso de Ensaios 2012 Subsecretaria de Gestão e Coordenação de Políticas Universitárias Malvinas na UNIVERSIDADE Programa Malvinas na Universidade Publicação Malvinas na Universidade. Concurso de Ensaios 2012 Equipe editorial Florencia Jakubowicz Júri do concurso Carlos Cansanello Carlos Giordano María Pía López Enrique Manson Tradução para o português Karina Patrício Design gráfico Diego Puga Os ensaios são responsabilidade dos autores e não representam necessariamente a opinião do Ministério da Educação. Esta publicação foi realizada com a colaboração da Universidade Nacional de La Plata. Imagens cedidas pela Télam S.E. Anônimo Malvinas na universidade: concurso de ensaios 2012 / Anônimo ; compilado por Anônimo. - 1ª Ed. – Buenos Aires: Ministério da Educação da Nação. Subsecretaria de Gestão e Coordenação de Políticas Universitárias, 2013. 266 p. ; 21x14 cm. ISBN 978-950-00-0980-5 1. Ensaio Histórico. I. Anônimo, comp. II. Título. CDD 982 Data da catalogação: 04/02/2013 2013 Câmara Argentina do Livro - Feito o depósito estabelecido pela Lei 11.723 LIVRO DE EDIÇÃO ARGENTINA É proibida a reprodução total ou parcial desta obra, seu armazenamento, aluguel, transmissão ou transformação, em qualquer forma ou por qualquer meio, seja eletrônico ou mecânico, mediante fotocópias, digitalização ou outros métodos, sem autorização prévia e por escrito do autor. A infração desta disposição é penada pelas leis 11.723 e 25.446. Malvinas na UNIVERSIDADE Concurso de Ensaios 2012 Malvinas: na entranha dos vivos Decorridos já 30 anos da guerra e quase 180 desde a usurpação britânica, as Malvinas ainda persistem na vida social e política argentina com a força daqueles enigmas que, concentrando sentidos tão potentes, sempre convidam toda a cultura a repensá-los. Neste livro, são os estudantes e recém-formados das universidades argentinas quem, atendendo à chamada do Programa Malvinas na Universidade, reatualizam a questão a partir das preocupações do presente. Estamos diante de uma questão e de uma causa que, além de abranger tempos históricos de curta e longa data, convocam a pensar sobre diferentes assuntos de grande importância: a nação, a soberania, os recursos naturais, as alianças continentais, as marcas locais da memória, a ditadura, a guerra, os ex-combatentes, os mortos. Para este Ministério, a questão das Malvinas não é nova, mas, pelo contrário, faz parte das políticas educacionais desde 2003. A Lei Nacional da Educação (Lei n° 26.206) contém uma disposição 5 Malvinas na UNIVERSIDADE Concurso de Ensaios 2012 específica sobre o assunto, o artigo 92, que propõe a inclusão efetiva de conteúdos curriculares mínimos, comuns a todas as jurisdições. Exemplo destes seriam a construção de uma identidade nacional a partir da perspectiva regional latino-americana, a causa da recuperação das Malvinas, o exercício e a construção da memória coletiva da história recente com a finalidade de “despertar nos(as) alunos(as) reflexões e sentimentos democráticos e de defesa do Estado de direito e da plena vigência dos direitos humanos”. Estas políticas educacionais se inserem numa política nacional que propõe o exercício intelectual de abordagem da questão das Malvinas em toda a sua amplitude: a compreensão da usurpação ocorrida em 1833, o conhecimento e a ampliação dos legítimos argumentos argentinos de reclamação da soberania no Atlântico Sul, a revisão da desacertada decisão da Junta Militar de levar adiante a guerra em 1982, a homenagem àqueles que lutaram nas ilhas. Embora, como dizíamos, esta questão não seja nova para o Ministério, este livro traz algumas novidades. Por um lado, ele revela o ânimo crescente das universidades de participar das grandes discussões nacionais, contribuindo, a partir do mundo dos estudos superiores, com perspectivas e visões que sempre nos surpreendem por sua vitalidade. E por outro, ele coloca em evidência que uma política de Estado sustentada com coerência habilita os jovens a tratarem sobre o assunto com novas perguntas, novos ânimos. E, sobretudo, faculta-os a retomar a imaginação política. Estes trabalhos nos revelam uma juventude que escreve e pensa que, no contexto da democracia, é possível recordar aqueles que tombaram na guerra e as vidas que logo se perderam por sua causa. Além disso, eles nos mostram formas inovadoras e produtivas de trabalhar a memória local, lutar pelos recursos naturais e recuperar a soberania por meios diplomáticos, sendo este o caminho escolhido pela Nação Argentina com eloquente firmeza. Estes trabalhos nos mostram também algo sobre o qual sempre 6 Malvinas na UNIVERSIDADE Concurso de Ensaios 2012 insistimos, pois este é um valor que se tornou possível com a democracia que estamos vivendo: o retorno da política como ferramenta de transformação social por excelência, uma via privilegiada que nos permite recuperar a autoestima de um povo que acredita que outro futuro é possível, um futuro com níveis crescentes de justiça e liberdade. Às vezes, a poesia sintetiza e resolve questões que outros saberes vacilam em definir. Assim, o poeta inglês W. H. Audren foi capaz de encontrar a palavra certa para falar sobre o amor, a dor e a memória, os três traços brutais que atravessam a experiência das Malvinas. Com a beleza de seus textos, Audren une o passado, o presente e o futuro. “As palavras do homem que já morreu se alteram na entranha dos vivos”, escreveu. Os três trabalhos premiados e os sete de menção honrosa publicados neste livro reafirmam que, quando pretendemos reviver o legado do passado, não importa o quão amargo ele seja, em nossos corações, o conhecimento e o compromisso político devem e podem andar de mãos dadas, abrindo, assim, as portas do futuro para as novas gerações. Prof. Alberto E. Sileoni Ministro da Educação 7 Malvinas na UNIVERSIDADE Concurso de Ensaios 2012 8 Malvinas na UNIVERSIDADE Concurso de Ensaios 2012 Prefácio Se uma questão pode ser chamada de nacional, essa questão é, com certeza, a das Malvinas. O caso das Ilhas Malvinas, que se iniciou com a ocupação colonial efetuada pela Grã Bretanha nos primeiros dias do mês de janeiro de 1833, é uma prioridade atual da política exterior argentina. O governo argentino exige a devolução das ilhas e, com isso, mantém vigente no plano internacional sua reclamação de soberania territorial e marítima sobre o arquipélago. A questão não se relaciona somente com uma disputa territorial – não se trata de uma reivindicação de propriedade sobre um território que foi arrebatado de nosso país por uma potência colonial quando esta se encontrava em plena expansão. O núcleo do assunto é, pelo contrário, uma afirmação pacífica da soberania. Por isso, enquanto se recorre à negociação na comunidade internacional e nas Nações Unidas, repele-se, ao mesmo tempo, a invariável e intolerante atitude colonialista do Reino Unido da Grã Bretanha, 9 Malvinas na UNIVERSIDADE Concurso de Ensaios 2012 reiterada nas estratégias de militarização que o governo britânico emprega no Atlântico Sul. Sobre este ponto há suficiente consenso internacional, haja em vista que a reclamação de soberania é apoiada por quarenta resoluções das Nações Unidas e do Comitê de Descolonização da ONU. Sucessivos governos argentinos exigiram, desde a usurpação em 1833, a restituição à Argentina de sua legítima soberania sobre as Ilhas Malvinas, Geórgias do Sul, Sandwich do Sul e as zonas marítimas adjacentes. A situação colonial está pendente, conforme reconhecido pelas Nações Unidas e a maioria esmagadora da comunidade internacional. As resoluções da ONU não só pedem que as partes negociem sobre a soberania, mas qualificam a situação colonial como “especial”, a qual deve ter uma solução pacífica, como exige o Direito Internacional. Se a demanda soberana foi persistente, pela via da negociação e até mesmo da arbitragem, o conflito bélico de 1982 significou um grave obstáculo. A guerra iniciada a partir da ocupação das ilhas, decidida pela ditadura militar (1976-1983) que havia estabelecido o terrorismo de Estado, longe de abonar a obtenção da soberania, levou a um cenário internacional adverso para o sucesso da reivindicação. Deste modo, a presidenta da Nação Argentina, Cristina Fernández de Kirchner, impulsionou uma decidida ação diplomática em todos os foros internacionais, onde reiterou o caminho da negociação pacífica, embasada em todos os direitos que podem ser exigidos e nas resoluções das Nações Unidas. A oportunidade da reclamação internacional de soberania sobre as ilhas ganhou relevância porque a ação é empreendida pelo mesmo governo democrático que promoveu os julgamentos pela verdade, o mesmo governo que apoia as ações dos Tribunais de Justiça e a imprescritibilidade da ação penal nos crimes contra a humanidade. Destarte, cumpre debater, no contexto de uma política integral do 10 Malvinas na UNIVERSIDADE Concurso de Ensaios 2012 Estado, os métodos e argumentos adequados para uma solução favorável da controvérsia. Neste sentido, com o fim explícito de que as universidades pesquisem sobre temas nacionais em debate e sobre projetos estratégicos que incluem a soberania, a Subsecretaria de Políticas Universitárias do Ministério da Educação criou, mediante um concurso de ensaios, o Programa Malvinas na Universidade. A resposta ao chamado foi ampla e contou com a participação de graduados, estudantes e docentes, mostrando as vinculações possíveis entre a universidade e questões centrais na vida nacional. O júri decidiu sua seleção priorizando a originalidade dos enfoques, a precisão da escrita e a afirmação de uma perspectiva democrática e pacifista no que diz respeito à demanda de soberania. O primeiro prêmio foi entregue a Luciano Fino e Luciano Pezzano, autores de “Malvinas e a livre determinação dos povos”, um trabalho de pesquisa rigoroso que confronta o argumento do governo britânico fundado no “suposto” direito dos kelpers a decidir sobre a soberania em disputa. Os autores, Fino e Pezzano, construíram um sólido ensaio no qual foram capazes de demonstrar a posição do governo argentino, que não reconhece os desejos, e sim os interesses dos habitantes, e não considera o direito à livre determinação aplicável ao conflito, ao contrário de outras situações coloniais. Com essa temática de grande atualidade, o trabalho contou com documentação e bibliografia adequadas para uma construção sem fissuras. Já o segundo prêmio foi para María de los Milagros Pierini e Pablo Gustavo Beecher, autores do trabalho “As Malvinas e a Província de Santa Cruz: uma relação histórica cortada por uma guerra”. Neste ensaio, a clareza com a qual são expostas as marcas regionais e locais do conflito é também interpelada pelas emoções; a proximidade geográfica e os vínculos demográficos e produtivos pesam tanto quanto a proximidade cultural. Laços familiares que se entrelaçam com amizades entre vizinhos: tudo isto é arrasado pelo conflito deflagrado em 1982 e, consequentemente, muitas são as marcas regionais da 11 Malvinas na UNIVERSIDADE Concurso de Ensaios 2012 memória. “A «questão das Malvinas» a partir dos símbolos: experiência, memória e subjetividade” é o trabalho apresentado por Mariana Romina Marcaletti, que mereceu o terceiro prêmio. Neste ensaio, cujo tema são as representações textuais das Malvinas, poemas, romances e peças de teatro são abordados com perspicácia e ofício. Além disso, o cinema e a televisão permitiram à autora dar uma explicação ajustada e didática sobre várias e célebres representações das Malvinas no presente. Menções honrosas: “Malvinas: doce de leite estilo colonial” é o trabalho apresentado por Carlos Sebastián Ciccone, que procura encontrar novos argumentos, embasados na História e no Direito Internacional, sobre a questão das Malvinas. Federico Martín Gómez, em “A Falklands Fortress. A construção da questão das Malvinas como questão latino-americana ante o paradigma neocolonial britânico no Atlântico Sul”, trata sobre as questões ideológicas nas quais a Argentina e a Inglaterra sustentam suas posições sobre as ilhas. Marcelo Lascano, no trabalho “A reatualização dos significados históricos para a consolidação da soberania no Atlântico Sul”, analisa as relações entre diplomacia e história que fundamentam a reclamação das Ilhas Malvinas, com diferentes hipóteses sobre sua ocupação e povoamento. “A morte em contexto: diferentes formas de dar sentido à morte na Guerra das Malvinas”, escrito por Laura Marina Panizo, trata sobre os marcos simbólicos de interpretação vinculados com a morte na guerra. Em “As Malvinas e sua projeção continental. A questão das Malvinas e das Ilhas do Atlântico Sul e sua projeção na Antártida sul-americana como problema continental”, Eduardo José Pintore e María Pilar Llorens 12 Malvinas na UNIVERSIDADE Concurso de Ensaios 2012 avaliam e repensam a importância da questão das Malvinas para o futuro da Argentina e da América Latina. Carlos Mariano Poo, em “Malvinas: decálogo de uma espoliação”, faz uma história das ilhas do ponto de vista da colonização e dos diferentes países que foram ocupando-as. Por último, Helga Ticac, em “A recuperação da memória da Guerra das Malvinas em General Roca, Província do Rio Negro”, resgata a experiência da guerra e dos ex-combatentes numa pequena cidade da Província do Rio Negro, fazendo uma história local, baseada nas narrações daqueles que a viveram. Além das contribuições específicas de cada um dos ensaios, este júri quer destacar a relevância do engajamento investigativo e reflexivo no campo da educação universitária. Nossas universidades cultivaram formas acadêmicas autorreprodutivas e, em muitos casos, silenciosas no que diz respeito aos problemas da nação. No horizonte das transformações necessárias, é preciso retomar um sentido público para o conhecimento e a pesquisa. Deste modo, a ampla e engajada participação neste concurso é um indício dessa vontade em nossas instituições. Carlos Cansanello Reitor da Universidade Nacional de Luján Carlos Giordano Professor da Universidade Nacional de La Plata e ex-combatente María Pía López Diretora do Museu do Livro e da Língua Enrique Manson Professor da Universidade Popular das Mães da Praça de Maio 13 Malvinas na UNIVERSIDADE Concurso de Ensaios 2012 14 Malvinas na UNIVERSIDADE Concurso de Ensaios 2012 1º Prêmio MALVINAS E A LIVRE DETERMINAÇÃO DOS POVOS Luciano Oscar Fino e Luciano Pezzano Luciano Oscar Fino e Luciano Pezzano MALVINAS E A LIVRE DETERMINAÇÃO DOS POVOS 1 Luciano Oscar Fino e Luciano Pezzano I. Introdução O trigésimo aniversário da Guerra das Malvinas é uma oportunidade propícia para refletir sobre tão importante questão para todos os argentinos. Dentro da vastidão de assuntos passíveis de ser tratados, bem como de aspectos a partir dos quais o tema pode ser abordado, a 1 Luciano Pezzano é advogado (Universidade de Ciências Empresariais e Sociais, UCES San Francisco, 2007) e mestrando em Relações Internacionais (Centro de Estudos Avançados, UNC). Professor adjunto por concurso da cátedra de Direitos Humanos sob a Perspectiva Internacional (UCES San Francisco). Chefe de trabalhos práticos da cátedra de Direito Internacional Público e da Integração (UCES San Francisco). Publicou diversos artigos de sua especialidade. Luciano Fino é advogado (Universidade Nacional de Córdoba, Faculdade de Direito e Ciências Sociais, Córdoba, 2011). Atualmente, cursa especialização em Direito de Danos (Facudade de Ciências Jurídicas e Sociais, Universidade Nacional do Litoral). 16 Malvinas na UNIVERSIDADE Concurso de Ensaios 2012 aplicação do princípio da livre determinação dos povos é de grande relevância. Sua importância não é casual, pois ele está presente na própria Carta das Nações Unidas, que funda a organização em 1945, época na qual um dos principais problemas do mundo eram as possessões coloniais de países europeus. No entanto, transcorridos sessenta e sete anos após aquele acontecimento, já em pleno século XXI, permanecemos atrelados ao anacronismo histórico que o colonialismo significa. Assim, o princípio da livre determinação dos povos não é novidade no direito internacional e nacional dos Estados, tendo sido considerado de grande relevância no caso das Malvinas. Desde o famoso Alegato Ruda (“Arrazoado Ruda”), de setembro de 1964, podemos notar sua importância na questão das Ilhas. Naquele momento, num contexto político e histórico muito diferente do atual, já era possível perceber com clareza um argumento essencial da posição argentina para justificar sua legítima reivindicação. É preciso destacar a importância adquirida pelo assunto nos últimos tempos, quando ele deixou de ser uma questão puramente diplomática, bilateral entre dois Estados, para se transformar, como disse a presidenta Cristina Fernández no Comitê de Descolonização das Nações Unidas, num assunto de interesse para o mundo e a sociedade toda. Nós, como argentinos e como parte do povo que ratificou na própria Constituição o objetivo permanente e irrenunciável de reclamação da soberania das Ilhas, devemos assumir o bastão, registrando, com a profundidade que o assunto merece, as diretrizes teóricas que se referem à reclamação argentina, deixando de lado as confusões e os erros veiculados por alguns meios de comunicação, que assim os inseriram na vida cotidiana. Deste modo, o propósito deste ensaio é fazer uma pequena contribuição que sirva para compreender, em sua real dimensão, a causa da livre determinação, sua aplicação (ou não) à questão das ilhas Malvinas e suas consequências na disputa pela soberania do arquipélago com o Reino Unido. 17 Luciano Oscar Fino e Luciano Pezzano II. Exposição da questão Para uma abordagem adequada do assunto escolhido, é preciso realizar uma exposição propícia da matéria, dado que a aplicação (ou não) do princípio da livre determinação na disputa sobre as Ilhas Malvinas aparece como uma “disputa dentro da disputa”. Ambas as nações têm visões contrapostas sobre a questão, sendo este o primeiro obstáculo para a celebração de negociações que possam trazer uma solução pacífica para o conflito. Convém, pois, revisar as posições essenciais das partes sobre o assunto. O Reino Unido sintetizou sua visão no Livro Branco dos Territórios de Ultramar, de recente publicação: O Reino Unido não tem dúvidas com relação a sua soberania sobre as Ilhas. O princípio da livre determinação, consagrado na Carta das Nações Unidas, subjaz à nossa posição. Não pode haver negociação sobre a soberania das ilhas, a menos e até que seus habitantes o desejem. Os habitantes deixam claro, regularmente, que desejam permanecer britânicos. No dia 12 de junho de 2012, o governo das Ilhas Falkland [sic] anunciou sua intenção de convocar um referendo 1 sobre o status político das Ilhas Falkland [sic] . Por sua vez, a postura da Argentina se manteve invariável ao repelir a aplicação da livre determinação ao conflito. Assim o expressou José María Ruda em seu célebre arrazoado de 9 de setembro de 1964 2 perante o Comitê de Descolonização das Nações Unidas: Consideramos que o princípio da livre determinação seria mal aplicado em situações nas quais parte do território de um Estado independente tenha sido separada, contra a vontade de seus habitantes, em virtude de um ato de força realizado por um terceiro Estado, como no caso das Malvinas, não existindo nenhum acordo internacional posterior que convalide esta situação de fato e, pelo contrário, ante o protesto permanente do Estado agravado contra esta situação. Estas considerações são agravadas, muito em especial, porque a população originária foi despejada por este ato de força, tendo sido substituída 18 Malvinas na UNIVERSIDADE Concurso de Ensaios 2012 por grupos flutuantes de nacionais da potência ocupante. Por outro lado, a aplicação indiscriminada do princípio da livre determinação a territórios tão escassamente povoados por nacionais da potência colonial colocaria o destino desse território nas mãos da potência que ali se instalou pela força, em violação das mais elementares normas do direito e da moral internacional. O princípio fundamental da livre determinação não deve ser utilizado para transformar uma posse ilegítima numa soberania plena, sob o manto de proteção que as Nações Unidas lhe dariam.3 Apresentadas as posturas das partes, faremos agora nossa própria exposição. Adiantamos, desde já, que não estudaremos aqui o valor da livre determinação como título jurídico fundador da soberania de um Estado sobre um território, nem a evidente contradição na qual incorre a tese britânica de, por um lado, sustentar que não tem dúvidas acerca de sua soberania sobre as ilhas e, por outro, afirmar o princípio da livre determinação e do respeito à vontade dos habitantes, pois se não houvesse dúvidas, não haveria motivo algum para consultá-los sobre a questão. Pelo contrário, limitar-nos-emos a buscar uma resposta para aquilo que, para nós, consiste na pergunta-chave do assunto: o princípio da livre determinação é aplicável à questão das Ilhas Malvinas? III. O titular da livre determinação Tanto o parágrafo 2 da resolução 1514 (VX) da Assembleia Geral das Nações Unidas – a “Carta Magna da descolonização” – como o artigo 1º comum aos Pactos Internacionais de Direitos Humanos estabelecem que “todos os povos têm o direito à sua autodeterminação [...]”. Frente a certo setor da doutrina, bem como a alguns Estados que pretendem limitar a aplicação do princípio aos povos sob dominação colonial ou ocupação estrangeira, ambas as disposições são claras, estendendo-o a “todos” os povos. O problema radica, então, em determinar o que é um “povo”, tarefa bastante complexa, dada a inexistência de uma definição aceita 19 Luciano Oscar Fino e Luciano Pezzano internacionalmente. Assim, foram propostas noções sociológicas de povo no sentido de “uma coletividade de homens unidos por um vínculo de solidariedade” cujos traços característicos seriam “a comunidade de 4 raça e de tradições e a existência de uma consciência comum”. Alguns autores consideram que, para obter o reconhecimento do direito à livre determinação, o povo “sociológico” deve reunir certos critérios. Seriam eles: a) […] a existência de uma população concentrada e amplamente majoritária em certo território, capaz de expressar uma vontade comum [...]. b) A população em questão deve viver num território delimitado [...]. c) O terceiro elemento é a firme vontade dessa coletividade, por um lado, de viver em comum, e por outro, de separarse do Estado no qual vive [...]. d) O elemento complementar que pode reforçar a vontade para a autodeterminação é a existência de uma organização interna, de um embrião de poder dessa coletividade, que simboliza seu particularismo.5 Afirmou-se também que, além desses critérios, “o elemento determinante é a capacidade dos membros da coletividade que aspira a 6 se transformar em povo de se considerarem como tal”. Neste mesmo sentido, o povo foi definido como um tipo específico de comunidade humana que tem o desejo comum de estabelecer uma entidade capaz de funcionar para garantir um futuro comum.7 Por outro lado, outros afirmam que o conceito de “povo” é estritamente jurídico. Esta é a posição do nosso país, curiosamente não na questão das Malvinas, mas no procedimento consultivo da Corte Internacional de Justiça no caso Kosovo. Nele, os representantes do nosso país expressaram: Uma premissa básica para a aplicação do princípio da livre determinação é a qualificação do titular desse direito como um “povo”. Esta é uma qualificação jurídica no contexto do direito internacional, e não uma mera qualificação sociológica ou étnica. Os órgãos das Nações Unidas tiveram um papel fundamental na aplicação da livre determinação [...]. Em todos os casos em que os órgãos pertinentes 20 Malvinas na UNIVERSIDADE Concurso de Ensaios 2012 reconheceram a existência de um “povo” no sentido jurídico e, consequentemente, o seu direito à livre determinação, isso foi indicado expressamente.8 Em outras palavras, sendo “povo” um conceito jurídico, cabe aos órgãos competentes das Nações Unidas determinarem sua existência. É preciso destacar, no mesmo sentido, o reconhecimento da doutrina de que a Assembleia Geral “reservou para si, nesta matéria, um poder de qualificação”.9 Com relação a isto, é frequente a citação do seguinte trecho da opinião consultiva de 16 de outubro de 1975 da Corte Internacional de Justiça sobre o Saara Ocidental: A validade do principio da livre determinação, definido como a necessidade de se respeitar a vontade livremente expressa dos povos, não é afetada pelo fato de, em certos casos, a Assembleia Geral ter dispensado da obrigação de consultar os habitantes de um território determinado. Esses casos se baseavam na consideração de que uma determinada população não constituía um “povo” com direito à livre determinação ou na convicção de que a consulta era totalmente desnecessária, tendo em vista circunstâncias especiais.10 Este parágrafo é muito importante, pois nele a Corte faz uma sutil, porém incisiva referência à titularidade do direito à livre determinação e ao conceito de “povo”. Segundo o nosso entendimento, a Corte está reafirmando que só os “povos” têm direito à livre determinação. Em outras palavras, para ser titular do direito à livre determinação, é condição necessária ser “povo”, e nem toda população de um território o é. Além disso, segundo Kohen, conclui-se da opinião consultiva que, “em matéria de descolonização, é a Assembleia Geral quem tem a competência para reconhecer, nos habitantes de um território, a qualidade ou não de povo”. 11 A Corte Internacional de Justiça se manifestou novamente sobre este assunto em sua opinião consultiva de 9 de julho de 2004, sobre as consequências jurídicas da construção de um muro no território 21 Luciano Oscar Fino e Luciano Pezzano palestino ocupado, onde expressou: Com relação ao princípio relativo ao direito dos povos à livre determinação, a Corte observa que a existência de um “povo palestino” já não se questiona. Essa existência, além disso, foi reconhecida por Israel [...]. No Acordo Provisório Israelo-Palestino sobre a Margem Ocidental e a Faixa de Gaza, de 28 de setembro de 1995, também se faz referência, em várias oportunidades, ao povo palestino e a seus “legítimos direitos” [...]. A Corte considera que esses direitos incluem o direito à livre determinação, como foi reconhecido pela Assembleia Geral em várias oportunidades.12 Acreditamos que, embora o “povo” titular do direito à livre determinação seja efetivamente um conceito jurídico, ele não pode ser entendido de maneira isolada da realidade histórica e sociológica. É verdade que a intervenção dos órgãos competentes das Nações Unidas, principalmente da Assembleia Geral, é de grande relevância para se determinar se há ou não um “povo”, mas também é verdade que tal intervenção se dá para efeitos de “reconhecimento” de sua existência. Isto é, há um reconhecimento ou constatação de uma realidade pré-existente. Isso ocorre com frequência no mundo do direito: a “pessoa”, entendida como sujeito de direitos e deveres, é certamente um conceito jurídico, mas que se funda numa realidade subjacente, a do ser humano. O mesmo ocorre no caso dos povos, e para seu reconhecimento, os órgãos das Nações Unidas seguiram certos critérios que se desprendem de sua prática. Isso foi destacado por Aureliu Cristescu, Relator Especial da Subcomissão de Prevenção da Discriminação e Proteção das Minorias, em seu estudo sobre a livre determinação: Os elementos de uma definição [de povo] que surgiram dos debates sobre este assunto nas Nações Unidas não podem nem devem ser ignorados. Estes elementos podem ser levados em consideração em situações específicas nas quais é necessário decidir se uma entidade constitui ou não um povo apto para usufruir e exercer o direito à livre determinação: a) o termo “povo” denota uma entidade social que possui uma identidade clara e características próprias; b) implica uma 22 Malvinas na UNIVERSIDADE Concurso de Ensaios 2012 relação com um território, inclusive se o povo em questão foi injustamente expulso e artificialmente substituído por outra população; c) um povo não deve ser confundido com minorias étnicas, religiosas ou linguísticas, cuja existência e direitos são reconhecidos no artigo 27 do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos.13 Consideramos de particular relevância o elemento segundo o qual o povo se relaciona com um território determinado, relação que se dá quando se trata de uma população autóctone ou que vive no local desde tempos imemoriais. Conforme registrado por doutrina autorizada sobre o tema, a Assembleia Geral determinou que a livre determinação é, basicamente, um direito da população autóctone.14 É o que indicam as resoluções 2138 (XXI) e 2151 (XXI), sobre a questão da Rodésia do Sul; 2228 (XXI) da Somália Francesa; 2229 (XXI), 2711 (XXV), 2983 (XXVII) e 3162 (XXVIII) do Saara Ocidental; 2795 (XXVI) dos territórios sob administração portuguesa, entre outras. O povo autóctone conserva seu direito à livre determinação mesmo se tiver sido expulso sem causa justa e artificialmente substituído por outra população. Isso é importante não só para efeitos da imprescritibilidade do direito, mas também para indicar que a população que substitui o povo não é um “povo” em si mesma e, portanto, não tem direito à livre determinação. Assim resolveu a doutrina: “O exercício do direito à livre determinação só é cabível aos povos autóctones e com personalidade inconfundível, e não às populações adventícias oriundas da potência colonial, a ela afins e a seu serviço” .15 No caso das Malvinas, este requisito não é atendido. A população não é autóctone nem está vinculada ao território desde tempos imemoriais, mas, pelo contrário, a maioria é nativa ou descendente de nativos da potência colonial, o Reino Unido, como demonstra o último censo realizado nas ilhas.16 Além disso, desde 1983, em virtude da British Nationality (Falkland Islands) Act, os habitantes das ilhas são nacionais 17 britânicos. O próprio Reino Unido reconhece em seu já citado Livro Branco: “A maioria da população das Ilhas Falklands [sic] é britânica por nascimento ou por ascendência”. 18 23 Luciano Oscar Fino e Luciano Pezzano Consequentemente, estamos diante de uma população que é difícil de distinguir étnica, linguística e juridicamente da população da potência colonial. Por sua vez, tanto a Assembleia Geral como o Comitê de Descolonização se referem constantemente à “população” do território e à necessidade de levar em consideração seus “interesses”, e não seus “desejos”, ao passo que – com exceção de Gibraltar, que analisaremos mais adiante –, com relação aos outros territórios não autônomos, eles sempre se referem a seus “povos”. A postura do governo argentino a este respeito é muito clara: Os interesses dos habitantes, e não seus desejos são os que devem ser considerados, conforme indicado pelas Nações Unidas nos diferentes documentos relativos à questão das Ilhas Malvinas. A Organização entendeu que uma população transplantada pela potência colonial, como é o caso das Ilhas Malvinas, não é um povo com direito à livre determinação, já que não se diferencia do povo da metrópole. O caráter britânico dessa população foi reconhecido pelo Reino Unido e seus integrantes têm status de cidadãos britânicos desde 1983, de acordo com a Lei de Nacionalidade Britânica, que entrou em vigor a partir daquele ano. Se admitida a autodeterminação dos atuais habitantes das Malvinas, cujo caráter e nacionalidade são britânicos, estar-se-ia admitindo que um grupo de pessoas da própria potência colonial decidisse o destino de um território reclamado por outro Estado que essa potência despojou, por um ato de força, há quase duzentos anos.20 Tal postura em nada difere dos argumentos aqui apresentados, o que nos permite afirmar, sem maior hesitação, que a população das Ilhas Malvinas, por não ser autóctone, senão implantada pela potência colonial, e por não se distinguir étnica, linguística nem juridicamente da população desta, não é um povo e, portanto, carece do direito à livre determinação. Consequentemente, sua natureza como tal não foi – nem pode ser – reconhecida pelos órgãos das Nações Unidas encarregados do processo de descolonização. 24 Malvinas na UNIVERSIDADE Concurso de Ensaios 2012 IV. A livre determinação nas disputas de soberania Assim como sustentamos que a livre determinação é aplicável a todos os povos, e não só àqueles sob o domínio colonial, a prática das Nações Unidas demonstra que tal princípio não é aplicável a todos os casos de descolonização. À primeira vista, poder-se-ia pensar que todas as situações coloniais evidenciam um conflito que poderíamos chamar de “clássico”, isto é, entre uma metrópole ou potência colonial e o povo do território que ela administra. Em tal caso, a situação colonial só pode er resolvida mediante o exercício da livre determinação por parte do povo do território. No entanto, nem todos os casos são idênticos. Dos dezesseis territórios não autônomos que restam na atualidade, tanto a Assembleia Geral como o Comitê de Descolonização reconheceram a aplicação da livre determinação em quatorze deles, com exceção dos dois restantes, que apresentam características diferentes às do conflito “clássico” e certas semelhanças entre si. Estes são os casos de Gibraltar e das Malvinas. No caso de Gibraltar, o Reino Unido ocupa e administra, desde 1713, um território cuja soberania é reivindicada pela Espanha. No âmbito das Nações Unidas, a Assembleia Geral declarou que a manutenção da situação colonial em Gibraltar é contrária à Carta e à resolução 1514 (XV), solicitando à potência administradora que ponha fim a essa 21 situação. Além disso, ela convidou os governos da Espanha e do Reino 22 Unido a iniciarem negociações nas quais os interesses da população do 23 território sejam considerados e protegidos, declarando que a celebração de um referendo pelo Reino Unido em 1967 contravinha suas resoluções.24 Com respeito a esta questão, podemos extrair várias considerações. Trata-se de uma situação colonial, sendo assim reconhecida, mas que não responde ao modelo clássico. Não há nela nenhum povo em luta por sua livre determinação contra a metrópole, mas uma disputa entre 25 Luciano Oscar Fino e Luciano Pezzano dois Estados pela soberania de um território. Apesar de não ser explícita, é possível inferir, razoavelmente, a insistência da Assembleia Geral para que a questão seja resolvida mediante negociações entre os dois Estados. Com efeito, nas resoluções não se menciona “povo” algum; só há uma referência à “população” – que, como vimos, não é um povo – e à necessidade de que seus interesses – e não seus desejos – sejam respeitados. Esta referência pode ser validamente interpretada como uma recusa da Assembleia Geral a aplicar a livre determinação ao caso, postura que, no nosso entendimento, foi ratificada com o seu repúdio ao referendo organizado pela potência em novembro de 1967. Assim sendo, a Assembleia Geral considera que a livre determinação é inaplicável a esta peculiar situação colonial. Do contrário, teria feito referência à existência de um “povo” cuja vontade, e não só os interesses, devem ser respeitados, e não teria repudiado o exercício de seu direito a decidir por meio de um referendo. No entanto, isso não deve nos induzir a pensar que a Assembleia esteja negando direitos a um povo somente porque há uma disputa de soberania entre dois Estados: ocorre que, neste peculiar caso, esse povo não existe. O assunto pode ser advertido com muito maior clareza se o transferirmos à questão das Malvinas. Neste caso, a Assembleia Geral e o Comitê de Descolonização reconheceram, nas resoluções já citadas, a existência de uma presença colonial no território à qual é preciso pôr um fim, instando a Argentina e o Reino Unido a celebrar negociações para encontrar uma solução pacífica ao problema que respeite os interesses da população do território e, além disso, solicitando às partes que se abstenham de adotar decisões que acarretem a introdução de modificações unilaterais na situação enquanto as Ilhas estiverem atravessando o processo recomendado. Mas, além disso – ao contrário do que vimos no caso anterior –, reconheceram expressamente a existência de uma disputa de soberania entre os governos da Argentina e do Reino Unido. Se no caso de Gibraltar reconhecemos que se trata de uma disputa de soberania na qual a livre determinação não pode ser aplicada, esta não 26 Malvinas na UNIVERSIDADE Concurso de Ensaios 2012 pode, a fortiori, ser aplicada no caso das Malvinas. Em primeiro lugar, como já foi apontado, não há nas Ilhas nenhum povo titular do direito à livre determinação e, além disso, a situação colonial é uma disputa de soberania entre dois Estados que, segundo os órgãos das Nações Unidas, só pode ser resolvida por meio de negociações entre eles. Mais uma vez, conforme a direito, a postura argentina é: A comunidade internacional, ao reconhecer a existência de uma disputa de soberania relativa à questão das Ilhas Malvinas, ao especificar seu caráter bilateral entre a Argentina e o Reino Unido e ao estabelecer que ela deve ser resolvida pela via pacífica da negociação entre as partes, fazendo referência expressa aos interesses – e não aos desejos – dos habitantes das Ilhas, exclui a aplicação do princípio 25 da autodeterminação. V. Livre determinação e integridade territorial Em certas ocasiões, o exercício da livre determinação pode entrar em colisão com a integridade territorial de um Estado, gerando um conflito entre dois importantes princípios do direito internacional contemporâneo. Neste aspecto, começaremos analisando a postura argentina na questão das Malvinas: A resolução 1514 (XV) “Declaração sobre a concessão da independência aos países e povos coloniais” [...] proclamou “a necessidade de pôr fim rápido e incondicional ao colonialismo em todas as suas formas e manifestações”, consagrando dois princípios fundamentais que deviam guiar o processo de descolonização: o da autodeterminação e o da integridade territorial. Esta resolução estabelece, em seu parágrafo sexto, que “toda tentativa encaminhada a quebrar total ou parcialmente a unidade nacional e a integridade territorial de um país é incompatível com os propósitos e princípios da Carta das Nações Unidas”. Esta limitação interposta ao princípio da autodeterminação implica que este cede perante o respeito à 26 integridade territorial dos Estados. 27 Luciano Oscar Fino e Luciano Pezzano 27 Por sua vez, embora em outro contexto, o Reino Unido alega: A proteção da integridade territorial dos Estados é uma proteção “nas relações internacionais”. Não é uma garantia de permanência, em qualquer tempo, do Estado tal como ele existe atualmente, nem se aplica a movimentos secessionistas dentro do território do Estado. Em termos gerais, o direito internacional não proíbe a separação de parte do território de um Estado que surja de um processo interno. Em outras palavras, embora a integridade territorial de um Estado seja protegida no direito internacional, esta proteção foi estendida com caráter geral somente no que concerne ao uso da força e à intervenção por parte de terceiros Estados. Não é extensiva ao ponto de prover uma garantia de integridade territorial contra processos internos que possam levar, com o tempo, à dissolução ou reconfiguração do Estado.28 Temos, assim, duas visões opostas. Para a Argentina, o respeito à integridade territorial é absoluto, prima sobre a livre determinação e funda-se, entre outros, no parágrafo 6º da resolução 1514 (XV). Já para o Reino Unido, este não é um princípio absoluto, sendo sua aplicação limitada às relações entre Estados. Frente a esta discrepância, devemos analisar qual é o âmbito de aplicação do parágrafo 6º da resolução 1514 (XV), bem como o alcance do princípio do respeito à integridade territorial e, por último, se este é aplicável ao caso da luta de um povo por sua livre determinação. Embora vários e respeitados autores – e alguns Estados, como o nosso – afirmem que o parágrafo 6º da resolução 1514 (XV) protege a integridade territorial dos Estados soberanos, outra parte da doutrina entende que o trecho em questão se aplica somente aos territórios sob domínio colonial: Convém salientar que o parágrafo 6º da resolução 1514 não foi previsto para ser aplicado às reivindicações territoriais entre Estados soberanos. Pelo contrário, foi instaurado como cláusula de salvaguarda com o fim de proteger a integridade territorial e a unidade 29 nacional dos territórios não autônomos. 28 Malvinas na UNIVERSIDADE Concurso de Ensaios 2012 Esta interpretação parece se derivar da própria resolução, já que ela se refere a “país” e não a “Estado”, e o sentido da expressão não pode ser diferente ao de “países e povos coloniais” presente no título. A prática das Nações Unidas parece apoiar esta interpretação quando, por exemplo, no caso da ilha comoriana de Mayotte,30a Assembleia Geral condenou a presença da França no local e, além disso, alegou a existência de uma violação à unidade nacional, à integridade territorial e à soberania da República das Comoras – que havia adquirido sua independência pouco antes –, invocando expressamente a resolução 1514 (XV) ao declarar que ela “garante a unidade nacional e a integridade territorial” dos países coloniais.31 Deste modo, o objetivo do parágrafo 6º é evitar que, no próprio processo de descolonização, a potência colonial – ou outro Estado – pretenda introduzir modificações que ocasionem a ruptura da unidade nacional ou da integridade territorial do território que está sendo descolonizado; não se aplicando, à primeira vista, no caso de Estados soberanos.32 O respeito à integridade territorial entre os Estados, não obstante, é amplamente reconhecido no direito internacional, encontrando-se expressamente enunciado no art. 2.4 da Carta das Nações Unidas e na “Declaração sobre os princípios de direito internacional referentes às relações de amizade e à cooperação entre os Estados de conformidade com a Carta das Nações Unidas”, aprovada pela resolução 2625 (XXV) da Assembleia Geral. No entanto, seu alcance é discutido, especialmente no que diz respeito a seu caráter absoluto. A este respeito, a resolução 2625 (XXV) expressa: Nenhuma das disposições dos parágrafos anteriores será entendida no sentido de autorizar ou incentivar qualquer ação dirigida à violação ou menoscabo, seja total ou parcial, da integridade territorial de Estados soberanos e independentes que se conduzam em conformidade com os princípios da igualdade de direitos e da livre determinação dos povos, já descrito, estando, portanto, dotados de um governo que represente a totalidade do povo pertencente ao território, sem distinção por razões de raça, credo ou cor. 29 Luciano Oscar Fino e Luciano Pezzano Este parágrafo foi denominado “cláusula de salvaguarda” da integridade territorial dos Estados. Segundo ela, a livre determinação não deve afetar a integridade territorial dos Estados soberanos e independentes na medida em que eles: [...] se conduzam em conformidade com os princípios da igualdade de direitos e da livre determinação dos povos, já descrito, estando, portanto, dotados de um governo que represente a totalidade do povo pertencente ao território, sem distinção por razões de raça, credo ou cor.33 Interpretando o parágrafo a contrario sensu, um Estado que não se conduza em conformidade com o princípio da livre determinação, isto é, que careça de um governo que represente a totalidade do povo do território, sem discriminação alguma, não será amparado por esta garantia. Em tal caso, a livre determinação dos povos primará sobre sua integridade territorial, justificando-se o exercício da independência com efeito de secessão. Não obstante os esforços realizados por alguns 34 Estados e por parte da doutrina, não encontramos, a nosso ver, nenhum elemento que permita argumentar que não seja possível interpretar o parágrafo a contrario sensu. Com efeito, acreditamos que se tal interpretação não fosse permitida, a cláusula perderia grande parte de seu sentido, já que de pouco valeria a aclaração feita na última parte se todos os Estados, inclusive aqueles que violam o direito dos povos à livre determinação, tivessem sua integridade territorial protegida. Do contrário, uma mera reafirmação do princípio da integridade territorial – sem aclaração alguma – teria bastado. Portanto, segundo esta interpretação, a qual subscrevemos, o princípio do respeito à integridade territorial não é absoluto. Por último, é preciso determinar se o respeito à integridade territorial, mesmo com seu alcance limitado, é um princípio a cujo cumprimento também são obrigados os povos. Nesse sentido, a Corte Internacional de Justiça foi breve, porém incisiva, em sua opinião consultiva de 22 de julho de 2010 sobre a conformidade com o direito internacional da declaração unilateral da independência do Kosovo: “o alcance do 30 Malvinas na UNIVERSIDADE Concurso de Ensaios 2012 princípio da integridade territorial se circunscreve ao âmbito das relações entre Estados”.35 Assim sendo, um povo em exercício de seu direito à livre determinação não é obrigado a respeitar a integridade territorial do Estado ou dos Estados que reclamarem a soberania do território no qual o povo está assentado. As considerações anteriores nos permitem afirmar que não é totalmente exato fundar a posição argentina sobre as Malvinas no parágrafo 6º da resolução 1514 (XV) – que não parece ter por objeto a proteção da integridade territorial de Estados soberanos – nem numa suposta primazia da integridade territorial sobre a livre determinação – que tanto a resolução 2625 (XXV) como a opinião da Corte Internacional de Justiça se encarregam de descartar. No entanto, longe estamos de afirmar que o princípio do respeito à integridade territorial não seja aplicável à questão das Malvinas. Pelo contrário, acreditamos que ele se aplica com todo vigor. Para isso, fundamo-nos nos seguintes argumentos: em primeiro lugar, como já dissemos, a questão das Malvinas é uma disputa de soberania entre Estados e, portanto, o respeito à integridade territorial continua sendo um princípio fundamental e que se reveste de caráter absoluto. Em segundo lugar, para que o princípio cedesse, teríamos que estar diante de um exercício do direito à livre determinação de um povo. Como no caso das Malvinas – segundo já foi dito – não há povo, a livre determinação não é aplicável e, consequentemente, não se configura exceção alguma ao princípio do respeito à integridade territorial dos Estados. Demonstrada a aplicação do principio na espécie, é imperioso concluir que a manutenção da situação colonial nas ilhas Malvinas é uma violação manifesta da integridade territorial da República Argentina. VI. Conclusão Ao longo destas páginas, afirmamos que a população das ilhas 31 Luciano Oscar Fino e Luciano Pezzano Malvinas, por não ser autóctone, e sim implantada pela potência colonial, e por dela não se distinguir étnica, linguística nem juridicamente, não é um povo, carecendo, portanto, do direito à livre determinação. Consequentemente, sua natureza como tal não foi – nem pode ser – reconhecida pelos órgãos competentes das Nações Unidas. Afirmamos também que a livre determinação não foi nem é aplicável a situações coloniais nas quais há uma disputa entre dois Estados pela soberania de um território, como ocorre neste caso, já reconhecido pela comunidade internacional. Por último, sustentamos que, no que diz respeito à integridade territorial, embora a postura argentina se baseie em premissas que não são exatas, a conclusão é correta: o princípio é aplicável, com todo vigor, à disputa sobre as Malvinas. Acreditamos, assim, estar em condições de responder nossa interrogação inicial, e não é preciso aprofundar muito para concluir que o princípio da livre determinação não se aplica nem pode ser aplicado à questão das Ilhas Malvinas. Sua invocação por parte do Reino Unido só tem motivações políticas, carecendo – como ficou demonstrado aqui – de fundamento jurídico, e tem o claro objetivo de entorpecer e obstaculizar qualquer tentativa de solução pacífica da disputa. Esta atitude do Reino Unido é merecedora de uma dupla repreensão: por um lado, pois ela se destina a perpetuar uma situação colonial, incorrendo, assim, em violação manifesta da integridade territorial de um Estado soberano – e, portanto, de todos os princípios do direito internacional aplicáveis. Por outro lado, pois ela constitui uma manipulação política daquele que a Corte Internacional de Justiça considerou “um dos princípios essenciais do direito internacional contemporâneo”.36 Como corolário dessa afirmação, permitimo-nos fazer uma reflexão sobre o já mencionado referendo que se pretende convocar nas ilhas 37 para o primeiro semestre de 2013, o qual tem por objeto decidir sobre o futuro da condição política do território. De acordo com as conclusões, 32 Malvinas na UNIVERSIDADE Concurso de Ensaios 2012 o referendo carece de validade como exercício da livre determinação (já que dele não participa nenhum povo), não se podendo, portanto, reconhecer-lhe efeito jurídico algum. No entanto, não obstante a nulidade intrínseca do fato, acreditamos ser de grande importância que a República Argentina dobre o esforço diplomático para obter um pronunciamento da Assembleia Geral das Nações Unidas – e não só do Comitê de Descolonização – que repreenda a celebração do referendo, tendo em vista que ele contravém suas resoluções sobre a questão ao pretender introduzir uma modificação unilateral da condição jurídica do território em disputa. Como vimos, existem antecedentes em que a Assembleia repudiou vários referendos em casos análogos, e há numerosas razões que justificam um repúdio de espécie similar. Do contrário, correríamos o risco de uma eventual convalidação tácita das ações do Reino Unido e dos habitantes insulares, o que poderia debilitar politicamente a posição argentina, de mais a mais, muito bem sustentada na força do Direito. Notas 1 - FOREIGN & COMMONWEALTH OFFICE, “The Overseas Territories. Security, Success and Sustainability”. Londres, 2012, p. 100. Endereço URL: http://www.fco.gov.uk/resources/en/pdf/publications/overseas-territories-white-paper0612/ot-wp-0612 2 - O nome completo do Comitê é “Comitê Especial encarregado de examinar a situação com respeito à aplicação da Declaração sobre a concessão da independência aos países e povos coloniais”. 3 - Endereço URL: http://constitucionweb.blogspot.com.ar/2012/03/alegato-ruda1964.html. 4 - Jules BASDEVANT, Dictionnaire de la terminologie du droit international, Paris, Sirey, 1960, págs. 449-450. 5 - Aristidis CALOGEROPOULOS-STRATIS, Le droit des peuples à disposer d'euxmêmes, Bruxelas, Bruylant, 1973, págs. 171-172. 6 - Laurent LOMBART, “Gibraltar et le droit à l'autodétermination – Perspectives actuelles”, em Annuaire Français de Droit International, LIII , Paris, CNRS Éditions, 2007, págs. 157-181. 7 - Héctor GROS ESPIELL, The right to self-determination. Implementation of United Nations Resolutions, Nova York, Documento E/CN.4/Sub.2/405/Rev.1. Nações Unidas, 33 Luciano Oscar Fino e Luciano Pezzano 1980. Parágrafo. 56. 8 - Declaração escrita da Argentina. Parágrafos. 89 e 90. Endereço URL: . 9 - Laurent LOMBART, op. cit., p. 168. 10 - CIJ: Sahara occidental, avis consultatif; C.I.J. Recueil, 1975, p. 12, parágrafo 59. 11 - Marcelo G. KOHEN, “La libre determinación de los pueblos y su relación con el territorio”, em Zlata DRNAS DE CLÉMENT (coord.), Estudios de Derecho Internacional en homenaje al Profesor Ernesto J. Rey Caro. Tomo II, Córdoba, Drnas-Lerner Editores, 2003, p. 866. 12 - Corte Internacional de Justiça: Consecuencias jurídicas de la construcción de un muro en el territorio palestino ocupado. Opinión consultiva. Documento A/ES-10/273. Nações Unidas, Nova York, 2004, parágrafo 118. 13 - Aureliu CRISTESCU, “The right to self-determination. Historical and current development on the basis of United Nations instruments”, Nova York, Nações Unidas, 1981, parágrafo 279. 14 - Zlata DRNAS DE CLÉMENT, “El Derecho de libre determinación de los pueblos. Colonialismo formal. Neocolonialismo. Colonialismo interno”, Anuario Argentino de Derecho Internacional III, Córdoba, 1987-1989, págs. 193-240. 15 - Antonio GOMEZ ROBLEDO, “Resolución sobre el Derecho de autodeterminación de los pueblos y su campo de aplicación”, Resoluciones adoptadas en el XI Congreso del Instituto Hispano Luso Americano de Derecho Internacional, Madrid-Salamanca, 1977, Endereço URL: http://www.ihladi.org/resoluciones_XI.pdf. 16 - Dos 2630 habitantes maiores de dez anos em 2006, só 1090 (41%) havia nascido nas ilhas. Dos 1540 habitantes restantes, 1155 (43,92% da população maior de dez anos) nasceram no Reino Unido ou em Santa Helena, uma de suas dependências. Sobre o total da população da noite do censo (3000), só 44,63% nasceu nas ilhas, sendo que 41,56% nasceu no Reino Unido ou em suas dependências. Todos estes dados se encontram disponíveis em http://www.falklands.gov.fk/documents/Census%20Report%202006.pdf. 17 - De acordo com o censo de 2006, de um total de 3000 pessoas, 89,93% tinha nacionalidade britânica. O dado não é irrelevante por duas razões. A primeira delas é que a nacionalidade foi definida pela Corte Internacional de Justiça como “um vínculo jurídico que tem em sua base um fato social de apego, uma solidariedade efetiva de existência, de interesses, de sentimentos junto a uma reciprocidade de direitos e de deveres. Ela é, pode-se dizer, a expressão jurídica do fato de que o indivíduo ao qual é conferida, seja diretamente pela lei, seja por um ato da autoridade, está, de fato, mais estreitamente relacionado com a população do Estado que a confere do que a qualquer outro Estado” (CIJ: Affaire Nottebohm (deuxième phase), Arrêt du 6 avril 1955, CIJ. Recueil, 1955, p. 123). Se os habitantes das Ilhas têm um vínculo real e efetivo com o Reino Unido, como podem, então, constituir um “povo” diferente do britânico? A segunda razão é que ao conceder unilateralmente a nacionalidade britânica, o Reino Unido cai numa nova e manifesta contradição com a livre determinação dos habitantes insulares que afirma defender, porquanto tal decisão devesse ser consequência da vontade livremente manifesta destes, caso constituíssem um “povo”. 18 - FOREIGN & COMMONWEALTH OFFICE: op. cit., p. 100. 34 Malvinas na UNIVERSIDADE Concurso de Ensaios 2012 19 - Resoluções 2065 (XX), 37/9 e 39/6, da Aseembleia Geral; e resoluções A/AC.109/756, A/AC.109/793, A/AC.109/842, A/AC.109/885, A/AC.109/930, A/AC.109/972, A/AC.109/1008, A/AC.109/1050, A/AC.109/1087, A/AC.109/1132, A/AC.109/1169, A/AC.109/2003, A/AC.109/2033, A/AC.109/2062, A/AC.109/2096, A/AC.109/2122, A/AC.109/1999/23, A/AC.109/2000/23, A/AC.109/2001/25, A/AC.109/2002/25, A/AC.109/2003/24, e as resoluções aprovadas em 18 de junho de 2004, 15 de junho de 2005, 15 de junho de 2006, 21 de junho de 2007, 12 de junho de 2008, 18 de junho de 2009, 24 de junho de 2010, 21 de junho de 2011 e 14 de junho de 2012. 20 - http://www.cancilleria.gov.ar/portal/seree/malvinas/home.html. 21 - Resoluções 2353 (XXII) e 2429 (XXIII). 22 - Resoluções 2070 (XX), 2231(XXI), 2353 (XXII), 2429 (XXIII) e 3286 (XXIX). 23 - Resoluções 2231(XXI) e 2353 (XXII). 24 - Resolução 2353 (XXII). 25 - http://www.cancilleria.gov.ar/portal/seree/malvinas/home.html. 26 - http://www.cancilleria.gov.ar/portal/seree/malvinas/home.html. 27 - Durante o já mencionado processo consultivo sobre a independência do Kosovo na Corte Internacional de Justiça. 28 - Declaração escrita do Reino Unido da Grã Bretanha e Irlanda do Norte, parágrafos 5.9 e 5.10. Endereço URL: http://www.icjcij.org/docket/files/141/15638.pdf. 29 - Laurent LOMBART, op. cit., p. 166. 30 - As Comores eram um território não autônomo administrado pela França, composto por quatro ilhas principais: Grande Comore, Anjouan, Mohéli e Mayotte. Em 22 de dezembro de 1974, celebrou-se no território um referendo no qual – considerando o arquipélago em conjunto – venceu por ampla maioria a opção da independência. No entanto, em Mayotte, o resultado foi contra a emancipação da França. Isso levou a potência administradora a reconhecer a independência de três das ilhas e a organizar dois novos referendos em Mayotte, em 8 de fevereiro e 11 de abril de 1976, nos quais foi ratificada a permanência da ilha na República Francesa. A Assembleia Geral condenou e declarou nulos ambos os referendos. 31 - Resolução 31/4. A Assembleia Geral reiterou o repúdio nas resoluções 32/7, 34/69, 35/43, 36/105, 37/65, 38/13, 39/48, 40/62, 41/30, 42/17, 43/14, 44/9, 45/11, 46/9, 47/9, 48/56 e 49/18. 32 - De qualquer modo, é preciso reconhecer que a prática da Organização se mostra errática a este respeito. Assim, na resolução 2353 (XXII), já citada, sobre a questão de Gibraltar, a Assembleia Geral considerou que “toda situação colonial que destrua, parcial ou totalmente, a unidade nacional e a integridade territorial de um país é incompatível com os propósitos e princípios da Carta das Nações Unidas e, especificamente, com o parágrafo 6º da resolução 1514 (XV) da Assembleia Geral”. 33 - O direito de um povo a se separar de um Estado como ultima ratio havia sido reconhecido pela Segunda Comissão da Sociedade das Nações no caso das Ilhas Aaland: “A separação de uma minoria do Estado do qual ela faz parte e sua incorporação a outro Estado só pode ser considerada como uma solução por completo excepcional, um último recurso quando o Estado carece de vontade ou de poder para 35 Luciano Oscar Fino e Luciano Pezzano sancionar e aplicar garantias justas e efetivas” (Report of the Commission of Rapporteurs Presented to the Council of the League. Documento B.7.21/68/106, 16 de abril de 1921). As “garantias” às que o documento se refere são, segundo a própria Comissão, as vinculadas com a preservação do caráter social, étnico e religioso do povo em questão. 34 - Em sua declaração escrita, citada no ponto 8, a Argentina se opõe – sem sucesso, ao nosso entender – à interpretação a contrario sensu da disposição. 35 - Corte Internacional de Justiça: Conformidad con el derecho internacional de la declaración unilateral de independencia relativa a Kosovo. Opinión consultiva. Documento A/64/881. Nova York, Nações Unidas, 2010, parágrafo 80. 36 - Corte Internacional de Justiça: Timor oriental (Portugal c. Australie), arrêt, CIJ. Recueil 1995, p. 90. 37 - http://www.penguin-news.com/index.php/news/politics/item/354-falklandislands-to-hold-referendum-on-political-future. Bibliografia BASDEVANT, Jules, Dictionnaire de la terminologie du droit international, Paris, Sirey, 1960. CALOGEROPOULOS-STRATIS, Aristidis, Le droit des peuples à disposer d'eux-mêmes, Bruxelas, Bruylant, 1973. 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Pablo Gustavo Beecher é jornalista e pertence ao grupo de pesquisa da professora Pierini na UNPA. 40 Malvinas na UNIVERSIDADE Concurso de Ensaios 2012 paulatinamente, para Santa Cruz as Malvinas tiveram uma identificação que, com exceção da ilha da Terra do Fogo, foi muito diferente do resto do país. A Guerra das Malvinas quebrou esse vínculo violenta e dolorosamente, provocando um corte que foi sentido de forma muito especial pelos integrantes da comunidade britânica santa-cruzense, muitos dos quais eram descendentes de malvinenses. Além disso, como as bases aéreas de onde partiam os aviões que participavam da guerra estavam em Rio Gallegos e em Puerto San Julián, e em Rio Gallegos havia soldados à espera para viajar às Ilhas, a convivência da sociedade local com os pilotos e soldados deu ao conflito bélico uma importância muito maior, fazendo com que os sofrimentos que ele implicou fossem sentidos muito de perto. O objetivo de nosso ensaio é analisar, por meio de documentos e de testemunhos orais, diversos aspectos da história de Santa Cruz que mostram a vinculação existente entre ambos os territórios, contribuindo, a partir da Patagônia Austral, para o enriquecimento da história da relação entre as Ilhas Malvinas e o restante da Argentina. A presença malvinense nos inícios do Território de Santa Cruz Os homens As Ilhas Malvinas e a região magalhânica, cujo centro era a cidade de Punta Arenas, foram as vias de acesso preferenciais para o povoamento europeu do território de Santa Cruz, que começou em 1880. A zona central da Argentina e a cidade e porto de Buenos Aires cumpriram um papel muito secundário neste processo. Estas vias de acesso reforçaram a dependência em relação a essas duas regiões. No caso de Punta Arenas, ela perdurou até meados da década 1 de 1920, formando uma “região autárquica argentino-chilena”, e significou também a porta de entrada dos migrantes chilenos que, de forma estacional ou definitiva, chegaram a Santa Cruz. 41 María de los Milagros Pierini e Pablo Gustavo Beecher A presença britânica nas Malvinas na segunda metade do século XIX e a 2 implementação do processo de “corrente migratória” foram as responsáveis pelo predomínio de britânicos no povoamento de Santa Cruz. Das Malvinas, chegaram à Patagônia os seguintes colonos: Herbert Felton – parente da esposa de Moyano –, John Scott, William Rudd, John Blake, Henry Jamieson, George Mac George, John Hamilton, Donald Patterson, John Halliday, Woods, Weldon, Woodman e Rodman, que se assentaram na área de Rio Gallegos e de Coyle. Por sua vez, Robert Blake e Donald Munro o fizeram perto de San Julián. A política de ocupação das regiões austrais chilenas se materializou com a instalação de um presídio em Fuerte Bulnes em 1843, transferindo-se, pouco depois, para a “ponta arenosa”, de onde deriva o nome da cidade de Punta Arenas. O presídio foi destruído por uma rebelião em 1852, mas, a partir de 1867, a população renasceu e ganhou impulso com uma política de atração de novos habitantes e de desenvolvimento econômico, sendo uma de suas principais medidas a eliminação da Alfândega. Além disso, a navegação regular para a Europa, inaugurada em 1865, fez com que Punta Arenas se transformasse em porto obrigatório para o aprovisionamento de lenha, água, carne e hortaliças das numerosas embarcações que atravessavam o Estreito de Magalhães. Na década de 1870, teve início a exploração ovina com exemplares trazidos das Ilhas Malvinas. Posteriormente, na década de 1880, começou o avanço da fronteira ovina para a o território de Santa Cruz, gerando novas necessidades – como serrarias, casas comerciais e bancárias e transporte marítimo –, que foram cobertas pela cidade de 3 Punta Arenas e as zonas limítrofes. Desta maneira, foi criada a já mencionada região autárquica, cuja base era a produção e exportação de lã e de carne para os mercados europeus. A região, integrada pelo sul do Chile, Santa Cruz e a Terra do Fogo, teve como centro a cidade de Punta Arenas, a partir da qual nasceram diversas atividades econômicas, de caráter exclusivamente privado, nas áreas circundantes. Estas, por sua vez, permitiram a acumulação do capital 42 Malvinas na UNIVERSIDADE Concurso de Ensaios 2012 que, nos últimos anos do século XIX, foi investido na pecuária ovina, estendendo-se também pelo território santa-cruzense. No início do povoamento de Santa Cruz e durante seus primeiros anos, as terras das Ilhas Malvinas estavam totalmente ocupadas, e o gado ovino tinha sido introduzido em substituição do vacum com muito bons resultados. A empresa londrinense Falkland Islands Company iniciou a pecuária ovina nas Malvinas após adquirir uma concessão de quinhentos mil hectares e, poucos anos depois, monopolizou a comercialização da lã produzida por seus habitantes – oriundos, a partir de 1867, da Escócia, Inglaterra, Austrália e Nova Zelândia. Foram os escoceses que desempenharam a maioria dos cargos de capatazes e ovelheiros devido à sua experiência prévia como pastores em sua terra 4 natal. A concentração fundiária nas mãos da Companhia fez com que “praticamente todos os campos pertencessem a ela, sem que houvesse 5 futuro promissório para os empregados”. Por esta razão, segundo testemunhos dos descendentes dos primeiros povoadores, muitos de seus habitantes foram “empurrados” a emigrar para Santa Cruz. Além disso, vários dos primeiros malvinenses, como Greenshields, Waldron, Felton, Hamilton, Saunders e Smith, já tinham campo nas 6 Ilhas e buscavam ampliar suas atividades na costa patagônica. Embora não tenham chegado a se tornar proprietários rurais em Santa Cruz, muitos outros malvinenses também emigraram para o continente. Alguns deles foram empregados de estabelecimentos pecuários, outros se estabeleceram nos povoados, dedicando-se a atividades urbanas. Entre os numerosos testemunhos existentes, escolhemos os mais representativos. George Mac George, nascido em 1856, chegou às Malvinas em 1875, onde trabalhou por dez anos. Em 1885, transferiuse para a Patagônia austral e, nos anos de 1886 e 1888, fez viagens a Rio Negro com o objetivo de conseguir gado – equino e ovino – para 43 María de los Milagros Pierini e Pablo Gustavo Beecher povoar seus campos em Rio Gallegos. John Scott, chegado em 1879 às Malvinas, decidiu, em 1889, emigrar a Santa Cruz, para onde vários malvinenses escoceses já tinham se 7 dirigido com o propósito de povoar campos. Donald Munro chegou à área de San Julián em 1889, junto com seus sócios Juan M. Ray e Roberto Giles. Os três sócios, que levaram ovelhas para o local, instalaram-se em Cañadón Paraguay. Ray e Giles foram embora pouco depois, Munro permaneceu como primeiro povoador do lugar. Posteriormente, Munro se associou com Mc Caskill, trazendo mais ovelhas das Malvinas.8 Em 1893, chegaram à área de San Julián os irmãos Roberto e Guillermo Patterson. Saindo das Malvinas – onde tinham trabalhado nas estâncias da Falkland Islands Company –, passaram por Punta Arenas e, logo depois, instalaram-se nas estâncias “Cañadón de las Vacas” e “La Colmena”. Guillermo ficou encarregado da estância “La Colmena” quando seu proprietário, Guillermo Hope, partiu para as Malvinas a fim de se casar com Ana Kyle, trazendo a família de sua esposa, liderada por Andrés Kyle, para que também se assentasse na área.9 No caso dos Halliday, eles receberam suas terras em arrendamento com opção de compra e pagaram nove mil pesos ouro pelo campo de “Hill Station” (Los Pozos).10 Por sua vez, “Christopher Smith queria que seus filhos deixassem as ilhas e tentassem futuro no continente, por isso, quando eles fizeram dezoito anos, deu-lhes trezentas ovelhas e certa quantia em dinheiro para começar”. 11 Yolanda Bertrand de Jamieson lembra que seu bisavô: Foi o primeiro inspetor de sarna da Falkland Islands Company nas Malvinas e, quando acabou com a peste, ficou sem emprego. Quando seus filhos homens voltaram após concluir seus estudos na Inglaterra, o pai lhes disse que eles não teriam futuro nas Malvinas, pois não havia expansão possível devido à escassez de terra. Naquela época, muitos malvinenses começaram a partir para o continente, entre eles Herbert 44 Malvinas na UNIVERSIDADE Concurso de Ensaios 2012 Felton, que povoou a estância “KillikAike Norte”.12 Segundo o testemunho de Cecilia Alder, membro de uma antiga família radicada em San Julián: Meu pai, Steven Alder, nasceu em Wildshire, norte da Inglaterra, e deixou seu país em 1882, aos quinze anos, para ir trabalhar como peão na estância dos Waldron, localizada nas Ilhas Malvinas. Lá esteve durante cinco anos e viveu uma linda etapa trabalhando no campo, contava-nos que era uma festa quando os barcos da Marinha Britânica chegavam às Ilhas. Quando, em 1887, seu contrato nas Malvinas finalizou, tinha a possibilidade de renová-lo, mas decidiu deixar as ilhas. Havia uma linha marítima semanal até o Uruguai, e ele atravessou de barco até o porto de Montevidéu junto com um amigo, Oliver Angel. De lá, eles foram para a Argentina, onde trabalharam em diferentes portos até chegar a Bahia Blanca, onde meu pai foi estivador. Quando reuniu dinheiro suficiente, viajou para Rio Gallegos, pois sabia que os Waldron também tinham campos em Santa Cruz, e foi trabalhar na estância “Cóndor”. Trabalhou como tosquiador e aramador e, depois de um tempo, viajou de volta para a Inglaterra para visitar sua família e levar uma carta à família de seu colega de trabalho. Foi lá que ele conheceu a irmã de Oliver, Rose Annie Angel, e após alguns meses eles se casaram.13 A par dessa relação de caráter privado e econômico, é preciso ressaltar a ação institucional promovida por Carlos M. Moyano, primeiro governador do território de Santa Cruz. Assim como os outros governadores patagônicos, ele tinha o mandato expresso da União de povoar as regiões conquistadas aos indígenas. Além de sua apreciação sobre o desenvolvimento da pecuária ovina nas Ilhas – que ele conhecia devido às referências proporcionadas por Luis Piedra Buena –, Moyano tinha contatos pessoais muito próximos com suas autoridades, pois era casado com Ethel Turner, sobrinha do governador. Por estes motivos, empreendeu viagens frequentes para promover a entrada de pecuaristas das Malvinas e de Punta Arenas, nos quais oferecia até quarenta mil hectares a baixo preço. Em maio de 1885, Moyano assinou o primeiro contrato de arrendamento com uma sociedade de 45 María de los Milagros Pierini e Pablo Gustavo Beecher britânicos, integrada por Walter, Diego, Esteban, Tomás, Juan Federico e Enrique Waldron e Tomás Greenshilds, sobre uma superfície de duzentos mil hectares localizada no extremo SE do território. Em fevereiro daquele ano, Eberhard e o escocês William Halliday fizeram uma viagem exploratória a Santa Cruz, onde escolheram um terreno para cada um e projetaram atrair e instalar outros povoadores. Os britânicos que chegaram a Santa Cruz oriundos da região magalhânica chilena eram escoceses que tinham sido contratados pela Falkland Islands Co e que, depois de finalizado o contrato, decidiram não voltar a seu país de origem, transferindo-se à Patagônia para aproveitar as possibilidades que a nascente exploração ovina oferecia. O historiador chileno Mateo Martinic considera que sua contribuição foi fundamental, pois eles introduziram uma tecnologia ovina absolutamente desconhecida no Chile, como o padrão de criação anglo-escocês adaptado às Ilhas Malvinas, que se tornou “o fundamento tecnológico sobre o qual se desenvolveu a estrutura 14 econômica vertebral de Magalhães”. O autor sintetiza a contribuição britânica ao dizer que: […] a participação de capitais britânicos na gênese e no posterior desenvolvimento da economia magalhânica durante o período 18801920 foi absolutamente determinante quanto à sua produção matriz: a criação ovina. A história de Magalhães e da região meridional americana inteira teria sido diferente, não fosse tão oportuna e eficaz participação.15 Como acrescenta em sua análise o historiador chileno Laurie Nock, embora houvesse alguns britânicos desde o momento da fundação de Punta Arenas, as possibilidades da pecuária ovina foram as responsáveis pela chegada dos britânicos a Magalhães, 16 majoritariamente escoceses, provenientes das Malvinas. Os ovinos Para a instalação de uma empresa pecuária em Santa Cruz, a obtenção 46 Malvinas na UNIVERSIDADE Concurso de Ensaios 2012 de ovelhas era fundamental. Por esta razão, optou-se, em primeiro lugar, por trazê-las das Malvinas, tendo em vista a dupla vantagem da proximidade geográfica e de que elas já estavam adaptadas ao clima. Por isso podemos dizer que, além da contribuição humana, as Malvinas forneceram uma raça de origem inglesa adaptada à região austral, a malvinense. As primeiras raças radicadas nas Ilhas foram Cheviot e Southdown, e logo chegaram outras, como Romney Marsh, Lincoln, Merino, Corriedale, Border Leicester e Shropshire. Na década de 1920, as raças predominantes eram Romney Marsh e Corriedale. Nas duas últimas décadas do século XIX, o excedente de ovinos malvinenses 17 começou a ser exportado para o território de Santa Cruz. Em 1886, Herbert Felton levou oitenta ovelhas malvinenses e, em 1889, Donald Munro fez o mesmo. O capitão alemão Hermann Eberhardt, proprietário da estância “Chimen Aike”, comprou seiscentas borregas nas Malvinas e, no transporte para o continente na goleta “Ripling Wave”, que durou vinte 18 dias, elas foram cuidadas e alimentadas por Scott. Como relembra “Douggie” Scott: O capitão Eberhardt tinha comprado seiscentas borregas nas Malvinas, e o avô Scott – casado com uma malvinense, Sara Betts – cuidou delas na travessia a bordo da histórica goleta “Ripling Wave”. Ele não só tinha que cuidar dos animais a bordo, mas também alimentá-los. Scott solicitou uma parada numa das últimas ilhas antes de chegar ao continente, onde colheram grama suficiente, espécie de mogote-coirón, para que as borregas viessem se alimentando de algo mais do que água. Assim, os animais chegaram saudáveis depois de quase vinte dias de viagem. Embora Eberhardt não conhecia Scott, sabia por comentários de outros povoadores que ele era uma pessoa responsável e, além disso, tinha bons conhecimentos, dada sua experiência nas Malvinas e o que aprendera antes, na Escócia, como 19 pastor de ovelhas. A arquitetura 47 María de los Milagros Pierini e Pablo Gustavo Beecher Um aspecto relevante quando se assinalam as conexões entre Santa Cruz e as Ilhas Malvinas é o da arquitetura. A intervenção do homem na construção do próprio hábitat é sempre orientada à transformação da natureza para adaptá-la a suas necessidades, é um esforço considerável de “culturização” do espaço. O maior ou menor sucesso dessa transformação depende da capacidade de interpretação das mensagens que chegam do ambiente, procurando aproveitá-lo sem ocasionar agressões irreparáveis. A vastidão do território, as características de um solo pouco produtivo e a rigorosidade do clima foram condicionantes naturais que requereram respostas pontuais. Isso explica a qualidade diferenciada da estância patagônica, destacada por Ramón Gutiérrez,20 como consequência desses requerimentos ambientais que “obrigam a tanta rigidez que o assentamento da estância adquire as características de um verdadeiro refúgio que deve reunir os requisitos básicos da autossuficiência”. A isso, somam-se as condições de isolamento num território praticamente despovoado. Tipologicamente, estas obras concernem à arquitetura funcionalista, que em nosso país chegou a soluções admiráveis, muito ligadas à influência inglesa, tendo em vista a preponderância política, econômica e social que a Inglaterra exerceu durante a etapa de consolidação nacional e até as primeiras décadas do século XX. Dir-se-ia a modo de simplificação que, enquanto a França influiu no design dos edifícios ligados à cultura, a influência britânica teve mais impacto na solução dos novos requerimentos produtivos e no sistema ferroviário, tendo em vista o rápido desenvolvimento industrial da Grã Bretanha. Da Inglaterra, chegavam à Patagônia austral os capitais, os produtos, as técnicas e as ideias. Na região de Santa Cruz, foi adotado um sistema de construção com os nomes shingle style e balloon Frame. Sua rápida facilidade de montagem e armação, além da reduzida quantidade de materiais utilizados – madeira, chapa de metal e pregos –, explicam sua eficácia, o que fez com que o sistema se difundisse pelos Estados Unidos e a Grã Bretanha. Além disso, ele possibilitava a troca de partes 48 Malvinas na UNIVERSIDADE Concurso de Ensaios 2012 e funções, o que lhe garantia uma característica muito importante: a flexibilidade. Um exemplo disso é o caso das moradias que eram projetadas e construídas com uma galeria exterior semicoberta. Esta galeria, nas moradias construídas em climas tropicais e/ou quentes, servia como local fresco e de sombra para os cômodos que davam para esse espaço. Essa mesma moradia, construída em climas patagônicos, cumpriu a mesma função, mas com a diferença de não ser aberta, e sim fechada com painéis de vidro que a transformavam num local receptor de luz e calor extremamente confortável.21 Como exemplo, em 1894 havia, em Rio Gallegos, entre vinte e trinta 22 casas e galpões de zinco sem pintar que, segundo relata Siewert, eram obras “sem arquitetura […] ouvem-se quase exclusivamente vozes inglesas, e a gente acha que chegou a Old England ou, pelo menos, às Malvinas. Com exceção dos empregados da Capitania, tudo é inglês: dinheiro, ovelhas, idioma, bebidas, ladies and gentlemen”.23 A conexão religiosa entre Santa Cruz e as Ilhas Malvinas Um fato interessante nesta análise das relações entre Santa Cruz e as Malvinas é a conexão religiosa criada pela Obra de Dom Bosco, tanto dos sacerdotes salesianos como das religiosas de Maria Auxiliadora. Desde que a Espanha assumiu as Malvinas, em 1767, sempre houve um sacerdote católico nas ilhas. O primeiro foi o mercedário Frei Sebastián Villanueva. Durante a comandância de Luis Vernet e nos primeiros vinte anos depois da usurpação britânica, iniciada no ano de 1833, a Capelania esteve vaga. Em 1853, os irlandeses residentes conseguiram um sacerdote, Lorenzo Kiewin, e, em 1873, construíram a igreja de Stella Maris. Sucederam-se vários capelães irlandeses até 1885, quando a igreja malvinense volta a ficar vaga.24 Em 16 de novembro de 1883, o papado criou o Vigariato Apostólico, que compreendia a Patagônia setentrional e central com os centros missionários de Viedma e Patagones, e a Prefeitura Apostólica da 49 María de los Milagros Pierini e Pablo Gustavo Beecher Patagônia Meridional e Terra do Fogo, que compreendia os territórios austrais da Argentina e do Chile, juntamente com as Ilhas Malvinas. Sob a responsabilidade de José Fagnano, a sede da Prefeitura Apostólica foi estabelecida em Punta Arenas, que era o único centro urbano importante da região. Ambas as circunscrições dependiam diretamente da Congregação da Propagação da Fé. Em 1897, o Papa Leão XIII manteve ambas as jurisdições, mas dispôs que os territórios da Terra do Fogo, Santa Cruz, Chubut e Rio Negro passassem a depender da Arquidiocese de Buenos Aires, enquanto os de Neuquén e La Pampa ficariam sob a jurisdição das dioceses do Cujo e La Plata, respectivamente. No ano de 1909, o vicariato foi dissolvido, sendo criadas em seu lugar as Vicarias Forâneas de Rio Negro, Chubut, Santa Cruz e Terra do Fogo – dependentes do Arcebispado de Buenos Aires – , Patagones e La Pampa – do Bispado de La Plata – e Neuquén – do Bispado do Cujo. Na década de quarenta, nascem as Inspetorias de São Francisco de Sales, que tinham sede em Buenos Aires e incluíam os territórios de Santa Cruz, Terra do Fogo e as Ilhas Malvinas, e a de São Francisco Xavier, com sede na cidade de Bahia Blanca, que incluía o 25 Chubut, Rio Negro, Neuquén e La Pampa. Devido a estas disposições do papado, o Vaticano urgiu a intervenção dos salesianos. Assim, Monsenhor Fagnano – que, até sua morte, em 1916, manifestou uma preocupação permanente pela missão salesiana nas Malvinas – desembarcou nas Ilhas em 19 de abril de 1888, deixando como capelão o Padre Diamond. Em conjunto, os dois restauraram a velha capela, batizaram as crianças, regularizaram os casamentos celebrados pelo pastor anglicano e administraram os 26 sacramentos. O Padre O'Grady esteve a cargo da capela entre os anos 1890 e 1900. O Padre Diamond voltou entre 1900 e 1905, até ser substituído pelo sacerdote Mario Luis Migone, de nacionalidade uruguaia e formado na Argentina. Migone fundou uma escola, foi professor de espanhol, instalou a primeira usina elétrica, introduziu o primeiro cinematógrafo nas Ilhas, ajudou os pobres, socorreu as vítimas da guerra e foi zeloso 50 Malvinas na UNIVERSIDADE Concurso de Ensaios 2012 defensor da soberania argentina em seus trinta e três anos de vida malvinense. Desde 1907, o Colégio das filhas de Maria Auxiliadora foilhe um poderoso auxiliar. Faleceu em 1º de novembro de 1937. Amou tanto o arquipélago que desejou veementemente lá morrer e ser enterrado naquela terra.27 Já a religiosa María J. Ussher, depois de realizar um meritório labor nas 28 Malvinas durante trinta e cinco anos, morreu em Buenos Aires em 1949. A presença salesiana se dedicou à população católica, cada vez mais reduzida, e nunca pretendeu a evangelização dos protestantes. Na primeira etapa, os sacerdotes se encarregaram de atender a população de Puerto Stanley e visitar as famílias católicas do campo. Durante sua longa estadia nas Ilhas, Migone se dedicou quase exclusivamente aos fiéis de Puerto Stanley, e as Irmãs realizaram uma importante tarefa pedagógica em sua escola mista. O estabelecimento era sustentado economicamente, além das esmolas e das atividades realizadas pela Congregação para arrecadar fundos, pelas contribuições de companhias privadas: a Compañía Malvinera, a Casa Williams e a Falkland Islands Co. Também se analisou a possibilidade de que os alunos pudessem, por meio de bolsas de estudo, continuar o colegial em Punta Arenas.29 A etapa final da presença salesiana nas Malvinas concluiu com o fim da Missão. Em primeiro lugar, as Irmãs finalizaram sua atividade no ano de 1942, lá ficando os sacerdotes Hugo Drum, até 1947, e Juan Kenny, até 1952. Naquele ano, o Visitador Modesto Bellido deu a ordem de liquidar os bens da Missão e designou o sacerdote irlandês James Ireland para atender os poucos católicos.30 Embora este não seja o tema de nossa análise, podemos considerar que, no que tange à religião, o território da Terra do Fogo também teve uma grande conexão com as Malvinas, uma vez que, além da presença da Obra de Dom Bosco, o centro das missões anglicanas que evangelizaram os indígenas do arquipélago da Terra do Fogo se 51 María de los Milagros Pierini e Pablo Gustavo Beecher encontrava em Puerto Stanley. A repercussão da Guerra das Malvinas na comunidade de Santa Cruz Embora a relação entre a comunidade britânica das Malvinas e a santacruzense tenha se atenuado com o tempo, devido à diminuição paulatina do número de povoadores provenientes das Ilhas que chegavam ao continente – apesar de que, em muitos casos, as relações entre as famílias foram mantidas–, podemos considerar que a ruptura definitiva desses contatos se produziu com a irrupção da guerra entre a Grã Bretanha e a Argentina pelo domínio das Ilhas em 1982. Analisaremos a repercussão da guerra na comunidade santa-cruzense em geral, especialmente na comunidade descendente de britânicos, com ênfase nas áreas que tiveram maior conexão histórica com as Ilhas, como Rio Gallegos e San Julián. Para isso, utilizaremos, principalmente, os ricos testemunhos orais que obtivemos. A Guerra das Malvinas deve ser compreendida no contexto da ditadura militar implantada em 24 de março de 1976. Esta, já em 1981, mostrava profundas falhas em sua consolidação, tendo em vista o fracasso de seu projeto econômico, o desprestígio do governo, a escassa unidade das Forças Armadas e o despertar da sociedade civil. O General Leopoldo Fortunato Galtieri – que assumira a presidência em 22 de dezembro de 1981 – tinha como um de seus objetivos principais a recuperação do prestígio perdido e, por este motivo, embarcou seu governo e toda a Argentina na Guerra das Malvinas. 31 O desembarque nas Malvinas, em 2 de abril de 1982, comoveu o país e mudou o cenário político de forma favorável para o governo militar, unificando a maioria dos setores sociais e das agrupações políticas em torno dessa reivindicação histórica. Contudo, infelizmente, a Guerra foi encarada sem nenhuma preparação militar, bem como com uma apreciação errônea sobre a postura que os Estados Unidos e as principais potências europeias tomariam, ignorando que os 52 Malvinas na UNIVERSIDADE Concurso de Ensaios 2012 estadunidenses priorizariam o apoio a seu principal aliado europeu na OTAN – a Grã Bretanha – em vez de apoiar a Argentina em cumprimento do Tratado Interamericano de Assistência Recíproca, e o mesmo ocorreu com muitos países europeus. Por esse motivo, apesar do apoio oferecido por numerosos países nos foros internacionais e da ação dos combatentes, no dia 14 de junho a Argentina teve de se render à Grã Bretanha. Os analistas políticos concordam que este fato – que Galtieri atribuiu à superioridade material da Grã Bretanha e ao apoio logístico dos Estados Unidos – significou o início do fim da ditadura militar.32 A repercussão na comunidade santa-cruzense em geral As bases aéreas de onde partiam os aviões para as Malvinas estavam instaladas em Rio Gallegos e em San Julián e, além disso, antes de partir para as Ilhas, os soldados se alojavam nas bases militares de muitas das localidades costeiras da província – Puerto Santa Cruz, Puerto Deseado e Piedrabuena, além das já mencionadas. A precariedade das instalações aeroportuárias fez com fosse necessário buscar alternativas, como a instalação de placas de alumínio na taxiway 33 de San Julián e a utilização de parte da Rodovia Provincial Nº 5 na região de Güer Aike. A convivência com os integrantes das Forças Armadas e a criação de organismos como as Juntas Municipais de Defesa Civil, que integravam a rede provincial da Defesa Civil, bem como o fortalecimento da rede de radioamadores e das filiais da Cruz Vermelha, fizeram com que a população civil seguisse mais de perto os acontecimentos da guerra, conhecendo as mentiras dos comunicados oficiais no que se refere às 34 baixas no conflito. Assim, embora muitos santa-cruzenses tenham sido surpreendidos pelo desfecho da Guerra no dia 14 de junho, não foram pegos tão de surpresa como o resto dos habitantes da Argentina. Os testemunhos recolhidos junto daqueles que viveram a guerra em 53 María de los Milagros Pierini e Pablo Gustavo Beecher Santa Cruz, independentemente de sua idade e ocupação na época, são coincidentes no que se refere aos sentimentos provocados pelo conflito. “Foram momentos difíceis e de muita angústia”, expressa um 35 maquinista do trem que unia Rio Gallegos a Rio Turbio, ao que acrescenta a mãe de família E. G.: “O que passamos foi horrível, foi muito angustiante, você não sabia o que ia acontecer a cada momento […]. Depois de tudo o que passamos, já não me assusto com nada. As pessoas de Rio Gallegos não se esquecem mais”.36 O mesmo temor e incerteza eram sentidos também pelas crianças e adolescentes de Rio Gallegos, como lembra N., que tinha doze anos e também conserva viva a memória da Guerra das Malvinas: As simulações no colégio, os toques de recolher, os sons de que ainda hoje me lembro, o silêncio sepulcral dia e noite quando só se escutava o barulho da usina, o barulho das sirenes, sem saber o que esperar. Estar deitada na cama prestando atenção em qualquer barulho. Saber que tinham saído quatro aviões e voltado só dois, que algum conhecido não tinha voltado, pessoas que via todos os dias e que não voltavam. Viver trancados, espiando por uma fresta, esperando os ingleses chegarem. A sensação de que já estavam desembarcando em Rio Gallegos. Dormíamos pensando que, quando acordássemos, veríamos a bandeira inglesa na praça. Lembro que a Guarda Costeira disse que três soldados tinham desembarcado perto de Rio Gallegos: um espanhol, um argentino e um inglês, e que os mataram. Nunca vi céus noturnos tão diáfanos como durante a guerra das Malvinas.37 Em alguns casos, as famílias optaram por mandar seus filhos a casas de familiares longe de Santa Cruz nos aviões que o Exército tinha colocado à disposição, como acontecera quando a guerra com o Chile estava por vir. Já outras famílias utilizaram meios alternativos, como Raúl e Ana Heredia, que nos primeiros dias da guerra decidiram, por precaução, ir a Punta Bandera, onde a empresa familiar tinha uma fábrica. Foram acompanhados por mães e crianças de famílias amigas, mas a falta de infraestrutura adequada – que as crianças viviam como uma aventura– 38 levou as mulheres a decidir o retorno à cidade poucos dias depois. 54 Malvinas na UNIVERSIDADE Concurso de Ensaios 2012 Muitas das famílias, tanto de Rio Gallegos como de San Julián, transformaram-se em lares substitutos dos soldados e pilotos que haviam sido convocados a partir para a guerra. Elas lhes davam carinho e contenção psicológica, proporcionando-lhes facilidades de ordem prática, como uma comida “maternal”, atendimento religioso, lazer, 39 asseio e ligações telefônicas para suas famílias. Contudo, as tentativas de fazê-los relaxar fracassavam frequentemente, pois “era 40 praticamente impossível sair da questão bélica e falar de outra coisa”. A falta de informações sobre os acontecimentos bélicos fazia com que os fatos fossem sentidos com mais temor. Este foi o caso da bomba que foi jogada na ria local, conforme relata Raúl Heredia: Naquele dia estávamos justo no Rotary, preparando chocolate para duzentos e cinquenta soldados. Lembro que, quando a bomba caiu, alguns começaram a chorar. Era um avião A-4 que vinha das Ilhas e não conseguia desprender-se de uma das bombas que levava, então não podia aterrissar porque estragaria a pista. Numa última tentativa, o piloto conseguiu jogá-la na ria, na frente da cidade, caso contrário iria se ejetar. No primeiro momento, a comoção e o tumulto nos superaram, além disso, não sabíamos se era um bombardeio nem de que bando era o avião. Pouco tempo depois, fomos sabendo das 41 notícias. Relembra E. G.: Soube do desembarque de ingleses perto de Rio Gallegos e que eles tinham sido mortos. Eu temia a invasão dos ingleses. As pessoas compravam provisões para ter caso bombardeassem a cidade, também tinham que guardar água. Lembro-me da janela de casa e da neve, e de dizer a meu marido que por lá veríamos os ingleses 42 chegarem. A solidariedade dos habitantes de Santa Cruz com os protagonistas da Guerra das Malvinas foi reconhecida e agradecida por eles. Como relembra Ana Lamor de Heredia, que acolheu muitos soldados em sua casa: 55 María de los Milagros Pierini e Pablo Gustavo Beecher Com o fim da guerra, fomos recebendo muitas cartas dos próprios soldados ou de suas famílias agradecendo o que tínhamos feito e lhes respondemos. É pouco, tudo o que é feito numa guerra é pouco, mas eles nos fizeram sentir muito orgulhosos […] Queria tê-los visto novamente, talvez quando viajavam outros contingentes às ilhas, mas não voltamos a vê-los. Numa viagem, visitamos Moraco, em Junín, dentro do Regimento de Artilharia nº 101. Foi uma grande alegria que nos víssemos outra vez.43 Esse agradecimento continua se manifestando vários anos depois, conforme expressado pelo capitão Luis Cervera numa dissertação dada em 2012 na cidade de Rio Gallegos: […] tirando a dureza e a crueldade da guerra, a vivência positiva que tivemos é que a cidadania de Rio Gallegos compartilhou da guerra, viveu-a na própria carne, com um montão de coisas que tiveram que viver, com sirenes, alarmes de bombardeio e, neste sentido, a cidade compreendeu e nos acompanhou muito […] Nós estávamos hospedados no hotel Santa Cruz, iam nos visitar, estavam conosco, pessoas que nos levavam bolo para dividir à noite, pessoas que nos convidaram para ir às suas casas, nossa atividade gerou muita união, e realmente foi algo muito importante porque estávamos sós, longe da família, num momento muito duro, e isso foi feito por pessoas de família, por isso estamos aqui […] Agradecemos os cidadãos de Rio Gallegos, estamos presentes, eles têm nossa presença, e mais uma 44 vez nos acompanham para prestar esta homenagem. Por sua vez, a Câmara Municipal de Rio Gallegos sancionou, em 12 de abril de 2012, uma resolução em que reconhece o trabalho realizado por Ana Lamor de Heredia durante a guerra, “por sua enorme contribuição humana para com os soldados estabelecidos em nossa 45 cidade na Guerra das Malvinas”. A repercussão da Guerra das Malvinas nos descendentes de britânicos No caso da comunidade britânica de Santa Cruz, se lembrarmos dos 56 Malvinas na UNIVERSIDADE Concurso de Ensaios 2012 laços que havia com as Ilhas Malvinas no início de sua instalação no território de Santa Cruz, considerando que de lá proveio uma importante corrente povoadora, bem como uma raça de ovinos, é compreensível que esta guerra fosse sentida especialmente por seus integrantes, embora, após várias gerações de nascidos neste solo, eles se sentissem mais argentinos do que britânicos. No entanto, apesar de seu sentimento de vinculação com a Argentina, parte da comunidade santa-cruzense sentia que os descendentes dos povoadores britânicos eram súditos da nação agressora. Assim, os testemunhos dos membros da comunidade britânica sobre aquele período são carregados de tristeza e de estranheza para com uma postura hostil que eles consideravam injustificada. Num primeiro momento, esta situação ambivalente causou-lhes perplexidade e um dissabor de sentimentos contraditórios, ao que se somou o pesar – comum a todos os habitantes de Santa Cruz – pela morte em combate 46 dos soldados argentinos. Entre os testemunhos representativos destes sentimentos, podemos citar os de Amy Beecher, que “durante a Guerra das Malvinas não duvidou em se reconhecer naturalmente argentina, indo além de suas origens, do orgulho familiar e de uma forte tradição, embora muita gente tenha visto, equivocadamente, os 'gringos' locais como 47 inimigos”. Relembra Roberta Lambert: […] durante a Guerra das Malvinas, papai se sentiu humilhado porque as pessoas mudaram o tratamento para com ele. Anteriormente, o fato de ser inglês era símbolo de seriedade e confiabilidade em qualquer empreendimento comercial, de trabalho ou social, e depois das Malvinas, ser inglês ou “gringo” passou, injustamente, a ser palavrão.48 Segundo Yolanda Bertrand de Jamieson: Durante a Guerra das Malvinas, em 1982, papai viveu uma experiência interior bastante conflituosa porque ele tinha nascido em Gobernador 57 María de los Milagros Pierini e Pablo Gustavo Beecher Gregores, onde passou sua infância e juventude, depois foi educado em Buenos Aires e viveu muitos anos nas Malvinas; então, ele lamentou muitíssimo uma guerra tão absurda, quando todos sabiam que a Grã Bretanha estava próxima de entregar as Ilhas à Argentina.49 Jorge Jamieson – presidente do Clube Britânico na época – recorda: Uma vez declarada a guerra, decidi chamar os meios de comunicação locais para que difundissem um ato [realizado nessas instalações], no qual li um discurso onde mencionei que certamente estávamos vivendo um momento muito similar ao que deve ter ocorrido em 1808, 1809 e 1810, quando os mais velhos se surpreenderam porque seus filhos quiseram se separar da mãe pátria, e dali em diante nasceu a nação argentina. A seguir, tirei o quadro com o retrato da rainha 50 e coloquei, no mesmo lugar, o de San Martín. Isso foi impactante. As pessoas entenderam que muitos éramos descendentes de britânicos, mas, sobretudo, argentinos. Alguns quiseram mudar o nome do Clube, mas eu me opus porque entendia que devíamos ser sensatos, mas de maneira nenhuma renegar das nossas origens. Certa noite roubaram a placa original que dizia “British Club” e fizemos uma nova com o nome 51 “Clube Britânico”. A atividade do Clube Britânico decaiu de forma notável devido ao malestar popular, pois algumas pessoas associavam a coletividade britânica ou seus descendentes com o inimigo. Segundo relata um sócio não britânico, embora durante a Guerra das Malvinas tenha havido algumas (leves) asperezas, ele não se lembra de que algum sócio tenha renunciado. Não devemos nos esquecer de que a situação interna do Clube também tinha refletido conflitos que ocorreram na Europa, tais como as duas guerras mundiais. Como uma das consequências da Guerra das Malvinas, podemos mencionar o fechamento do Vice-Consulado Honorário britânico de 52 Santa Cruz. Anos depois do fim da guerra, em 1987, o coronel reformado Luis Balcarce, coordenador da área das Malvinas no Ministério das Relações Exteriores da Argentina, ofereceu a Yolanda Bertrand de Jamieson uma 58 Malvinas na UNIVERSIDADE Concurso de Ensaios 2012 viagem aos Estados Unidos para participar da missão argentina na Organização das Nações Unidas, a qual solicitaria à Comissão de Descolonização que a Grã Bretanha se sentasse para dialogar com a Argentina sobre a questão das Malvinas. Yolanda Bertrand viajou com Luis Vernet, descendente direto do primeiro governador das Ilhas. Depois da intervenção do representante das Malvinas, Yolanda Bertrand – que se sentiu muito honrada por ter sido escolhida, em virtude de sua história familiar, para representar seu país num acontecimento internacional tão importante – leu seu discurso, que versou sobre a vida de sua família na Argentina, o respeito que o país tinha por sua religião, a relação das Ilhas Malvinas com a Patagônia argentina e a necessidade de reestabelecer contatos aéreos entre Rio Gallegos e as Ilhas. O resultado deste discurso foi que os votos se inclinaram a favor da Argentina, postura que se mantém até hoje, o que permitiu que a Comissão de Descolonização instasse a Grã Bretanha a 53 sentar-se para conversar com nosso país sobre a questão das Malvinas. Além disso, Juan Douglas “Douggie” Scott e James Lewis, descendentes de malvinenses, também viajaram à ONU, ano após ano, 54 para manter a postura argentina. Algo similar ocorreu com Guillermo Clifton, neto de um malvinense que chegou a Santa Cruz depois da Primeira Guerra Mundial, que conserva familiares nas Ilhas com os quais mantém contato e foi peticionário na 55 Comissão de Descolonização da ONU. O aventureiro itinerário de um barco Como dado curioso da relação entre Santa Cruz e as Ilhas Malvinas, podemos mencionar o caso de um barco que, como dissemos no título, teve um “aventureiro itinerário”. O “Ketch 'Feuerland” – também chamado de “Holzpantine” e erroneamente qualificado como goleta – pertenceu originalmente a 59 María de los Milagros Pierini e Pablo Gustavo Beecher Gunther Plüschow, capitão da Marinha Imperial alemã, que tinha mandado fabricá-lo no porto de Büsum (Alemanha) para ser utilizado em sua viagem pela região austral argentino-chilena entre 1927 e 1929. Depois de vendê-lo em 1929 para John Hamilton, Plüschow voltou novamente à Patagônia, onde morreu em janeiro de 1931 devido a uma falha mecânica de seu avião – o “Cóndor de Plata” – perto do 56 Lago Rico. John Hamilton – a quem já nos referimos – era um ovelheiro com propriedades na área de Rio Gallegos e no arquipélago das Malvinas (nas ilhas de Weddol, Beaver, Passage e Saunders). Ele utilizou o navio de Plüschow – que batizou de Auxiliary Ketch Penelope – na navegação entre seus estabelecimentos nas ilhas. Hamilton morreu em 1945, e 57 sua filha Penélope o herdou. Em 1949, o barco foi entregue ao Serviço britânico de exploração antártica, mas continuou sendo utilizado para a navegação entre as ilhas no transporte de pessoas, gado e outros materiais. Em 1952, ele foi vendido pelo Serviço ao estancieiro Jim Lee, dono da ilha Sea Lion. Em 1967, foi comprado pela Falkland Islands Co, continuando com suas atividades costumeiras. Quando começou a Guerra das Malvinas, foi confiscado pela Marinha argentina em maio de 1982, a qual lhe designou sete tripulantes, entre eles, o recruta Roberto Herrscher como intérprete, devido a seus conhecimentos de inglês. Com o fim da guerra, a Falkland Islands Co o vendeu a Finlay e Bob Ferguson em 1989. Posteriormente, no ano 2006, Bernd Buchner – um apaixonado admirador das façanhas de Gunther Plüschow – comprou o “Penélope” de Michael Clarke, seu então proprietário desde 1993, devolvendo-lhe o nome original e o transportando-o ao porto de Hamburgo – aonde chegou em julho de 2008 – para que permanecesse 58 no museu de barcos antigos Ovelgöne. Algumas conclusões Conforme fomos analisando, o Território Nacional de Santa Cruz teve desde o início, na década de 1880, uma relação muito estreita com as Ilhas Malvinas devido à sua proximidade geográfica com o arquipélago 60 Malvinas na UNIVERSIDADE Concurso de Ensaios 2012 e sua própria história demográfica, cultural e pecuária. Durante muito tempo, houve uma idiossincrasia comum entre malvinenses e patagônicos, uma permanente relação entre as Ilhas, Santa Cruz e Magalhães, além da mesma paisagem, clima e imaginário coletivo. Contudo, as mudanças políticas, econômicas e sociais que se iniciaram na província de Santa Cruz, a partir da metade do século passado, foram desgastando essa relação. A Guerra das Malvinas significou um corte violento e doloroso das relações entre as Malvinas e Santa Cruz. Esta foi sentida muito especialmente pelos integrantes da comunidade britânica santacruzense, muitos dos quais eram descendentes de malvinenses e conservavam parentes no arquipélago, com os quais, em alguns casos, tinham contato frequente. A guerra interrompeu ou, no melhor dos casos, dificultou a manutenção dos laços familiares. Além disso, como as bases aéreas de onde partiam os aviões que participavam da guerra estavam em Rio Gallegos e em Puerto San Julián, e em Rio Gallegos havia soldados à espera para viajar às Ilhas, a convivência da sociedade local com os pilotos e soldados deu ao conflito bélico uma importância muito maior, fazendo com que os sofrimentos que ele implicou fossem sentidos muito de perto. Propusemo-nos analisar, através de documentos escritos e testemunhos orais, aspectos da história de Santa Cruz que mostravam a relação existente com as Malvinas, destacando o fato de que, para nossa província, as Ilhas tiveram uma identificação muito particular e muito diferente da mantida pelo resto da Argentina. Desta maneira, desejamos contribuir, a partir da história da Patagônia Austral, para o enriquecimento da análise da relação entre as ilhas Malvinas e o resto da Argentina, promovendo a possibilidade de retomar as relações entre ambas as populações, que foram interrompidas violentamente no ano de 1982. Notas 61 María de los Milagros Pierini e Pablo Gustavo Beecher 1 - Embora Elsa Mabel Barbería em Los dueños de la tierra en la Patagonia Austral. 1880 - 1920. Rio Gallegos, Universidade Federal da Patagônia Austral (1995) situe sua finalização no ano de 1925, o historiador magalhânico Mateo Martinic aponta o ano de 1943 como o de efetiva dissolução desta (Citado por Susana Bandieri, em “La Patagonia: mitos y realidades de un espacio social heterogéneo”; em (coord.) Jorge Gelman, La historia económica argentina en la encrucijada. Balances y perspectivas. Buenos Aires, Prometeo Libros. 2006. pág. 390). 2 - Elsa M. Barbería, Op. cit. págs. 97, 172; contribuições de Edward Halliday. 2011. O conceito de “correntes migratórias ou de chamada” tem uma longa tradição no mundo anglo-saxão. John e Leatrice Mac Donald, já desde a década de 1960, definem a corrente como “o movimento pelo qual os migrantes futuros tomam conhecimento das oportunidades de trabalho existentes, recebem os recursos para se transportar e conseguem alojamento e um emprego inicial por meio de suas relações sociais primárias com emigrantes anteriores”. Hernán Otero, “Redes sociales primarias, movilidad espacial e inserción social de los inmigrantes en la Argentina. Los franceses de Tandil, 1850-1914”; em María Bjerg e Hernán Otero, Hernán comp. Inmigración y redes sociales en la Argentina moderna. Tandil, CEMLA – IEHS. 1995. págs. 81-105 e págs. 89- 90. 3 - Elsa Barbería, Op. cit. págs. 54-56. 4 - Com relação a este assunto, Reginald Lloyd afirmava, em 1911, que “os homens das duas nacionalidades (escoceses e irlandeses) estão mais dispostos do que os ingleses a se adaptarem ao meio, incorporando os hábitos e costumes do povo com o qual dividem seu destino”. Citado por Andrew Graham Yooll. La colonia olvidada. Tres siglos de habla inglesa en la Argentina, Buenos Aires, EMECE, 2007, pág. 165. 5 - Entrevista de Pablo Beecher com Eric Rudd, 1999. 6 - Testemunhos de John L. Blake. 2010. Parte de suas contribuições estão contidas em sua obra A story of Patagonia, Sussex, T he Book Guild Ltd., 2003. 7 - Entrevista de Pablo Beecher com Juan Douglas “Douggie” Scott. 8 - VV. AA. Centenario de Porto San Julián. 1901 – 2001. Una ventana al pasado. Provincia de Santa Cruz. Patagonia argentina. 2002. Volume I. pág. 145. 9 - Op. cit., págs. 145-146. Entrevista de Pablo Beecher com Ancel Patterson, 2006. 10 - Contribuições de Edwaed Hallyday. 2011. 11 - Entrevista de Pablo Beecher com Anne Hewlett. 12 - Entrevista de Pablo Beecher com Yolanda Bertrand de Jamieson. 13 - Entrevista de Pablo Beecher com Cecilia Alder. 14 - Matero B. Martinic. Los británicos en la región magallánica. Valparaíso, Universidad de Magallanes y Universidad de Playa Ancha de Ciencias de la Educación [s. f.], pág. 78. 15 - Mateo B. Martinic. Op. cit., pág. 105. John Blake concorda que a evolução do sistema de criação extensa de ovinos foi introduzida por britânicos como Ernest Hobbs ('Gente Grande') e A. A. Cameron ('Exploradora') no Chile, Waldron, Fenton e Wood em ambos os lados do Estreito, e Blake em San Julián (Testemunhos de John Blake, 2010). 16 - Laurie Nock, “Los Británicos en Magallanes”; Anales del Instituto de la Patagonia. Serie Ciencias Sociales. Punta Arenas (Chile) Vol. 16. 1985-1986. págs. 23-40. 62 Malvinas na UNIVERSIDADE Concurso de Ensaios 2012 17 - Elsa M. Barbería, Op. cit., págs. 53-54, contribuições de Yolanda Bertrand de Jamieson. 2010. 18 - VV AA. Centenario de Porto San Julián. 190-2001. Una ventana al pasado. Buenos Aires, Imprensa do Congresso da Nação, 2002, Volume I, págs. 145, 215; Elsa M. Barbería, Op. cit., págs. 251-252. 19 - Entrevista de Pablo Beecher com Juan Douglas “Douggie” Scott. 20 - Ramón Gutiérrez, Arquitectura y Urbanismo en Iberoamérica, Madri, Cátedra, 1983, pág. 333. 21 - Marcelo Gustavo Cufré e María Marcela Zonaro. “Análisis de la tipología de vivienda patagónica en Rio Gallegos”; em Juan Bautista Baillinou. Centenario de Rio Gallegos. 1885–1985, Municipalidad de Rio Gallegos, 1985, págs. 136-142. 22 - Carlos Siewert foi um engenheiro agrônomo que fez mensurações para a estância Cóndor. 23 - Silvia Mirelman, Liliana Lolich e Julio Fernández Mallo, Arquitectura Pionera de la Patagonia Austral-Capítulos de la historia de Rio Gallegos (1885-1940), Instituto Salesiano de Estudos Superiores. 24 - Juan Carlos Moreno, “En las Malvinas”; Juan E. Belza, Juan. SDB Argentina salesiana. Setenta y cinco años de acción de los hijos de Don Bosco en la tierra de los sueños paternos, Buenos Aires, Talleres Gráficos Buschi, 1952, págs. 182-183. 25 - M. Andrea Nicoletti, Indígenas y Misioneros en la Patagonia. Huellas de los Salesianos en la cultura y religiosidad de los pueblos originarios, Buenos Aires, Continente, 2008, págs. 48-55. 26 - Juan Carlos Moreno, Op. cit., págs. 183. 27 - Ibidem. 28 - Ibidem. 29 - M. Andrea Nicoletti. Una misión en el confín del mundo: la presencia salesiana en las islas Malvinas (1888-1942), Neuquén, 1999, págs. 215-234. 30 - Ibidem. 31 - “No dia do desembarque uma multidão estimada em dez mil pessoas se concentrou na Praça de Maio para celebrar a exitosa façanha”. Citado por Hugo Quiroga, “El tiempo del 'Proceso'”, em Juan Suriano, Dictadura y democracia (19762001). Nueva Historia Argentina, Volume X, Buenos Aires, Sudamericana, 2005, págs. 33-86. 32 - Hugo Quiroga, Op. cit., págs. 76-79. 33 - VV. AA. 1901-2001. Centenario de Porto San Julián. Una ventana al pasado, Volume I, Buenos Aires, Imprensa do Congresso da Nação, 2001, págs. 213-214. 34 - IB. págs. 215. Todos os testemunhos são coincidentes no sentido de que viam o retorno de menos aviões do que os que partiam das bases aéreas santa-cruzenses. 35 - Entrevista de Pablo G. Beecher com Esteban Tita, 20/9/2009. 36 - Entrevista de M. Milagros Pierini com E. G. 24/7/2009. Neuquén. 37 - Entrevista de M. Milagros Pierini com N. S. 24/7/2009. Neuquén 38 - Entrevista de Pablo G. Beecher com Raúl Heredia e Anita Lamor, 10/6/2012. 39 - Ibidem. 40 - Entrevista de Pablo G. Beecher com Mabel Tournour e Guillermo Rossi, 14/11/2010. 41 - Entrevista de Pablo G. Beecher com Raúl Heredia e Anita Lamor, 10/6/2012. 63 María de los Milagros Pierini e Pablo Gustavo Beecher 42 - Entrevista de M. Milagros Pierini com E. G., 24/7/2009, Neuquén. 43 - Entrevista de Pablo G. Beecher com Raúl Heredia e Anita Lamor, 10/6/2012. 44 - Jornal La Opinión Austral, 9/6/2012. 45 - Entrevista de Pablo G. Beecher com Raúl Heredia e Anita Lamor, 10/6/2012. 46 - Devido às disposições das Forças Armadas, enquanto o Exército estava instalado em Comodoro Rivadavia, em Rio Gallegos e San Julián estava a Força Aérea. Por isso, todos os testemunhos recolhidos fazem referência à partida de um número determinado de aviões e ao retorno de uma menor quantidade. 47 - Testemunhos de Pablo Beecher, 25/10/2009. 48 - Entrevista de Pablo Beecher com Roberta Lambert. 49 - Entrevista de Pablo Beecher com Yolanda Bertrand de Jamieson. 50 - Este teria sido doado pela Embaixada Britânica de Buenos Aires em 21 de novembro de 1977, Livro de Atas do Clube Britânico. 51 - Entrevista de Pablo Beecher com Jorge Jamieson, 2010. 52 - Entrevista de Pablo Beecher com Jesse Aldridge, 1998. 53 - Entrevista de Pablo Beecher com Yolanda Bertrand de Jamieson. 54 - Ibidem. 55 - Entrevista radial com Patricia Aguirre, LU 12, Rio Gallegos, 13/6/2012. 56 - As apaixonantes aventuras de Plüschow e seus companheiros e sua admiração pelas maravilhosas paisagens da Terra do Fogo – que ele qualifica como “país de meus sonhos eternos” – são magistralmente descritas em sua obra Sobre la Tierra del Fuego. En velero y aeroplano a través del país de mis sueños, traduzida para o espanhol em 1930 e que tem várias edições. 57 - Após sua morte, em 1987, seus herdeiros venderam as ilhas ao governo das Malvinas, que as entregou – no contexto de divisão dos latifúndios e de entrega de lotes a povoadores – à família Marsh. 58 - Roberto Herrscher, Los viajes del Penélope. La historia del barco más viejo de la guerra de Malvinas, Buenos Aires, Tusquets, 2007. Bibliografia Bandieri, Susana, “La Patagonia: mitos y realidades de un espacio social heterogéneo”, em Jorge Gelman (coord.), La historia económica argentina en la encrucijada. Balances y perspectivas, Buenos Aires, Prometeo, 2006. Barbería, Elsa Mabel, Los dueños de la tierra en la Patagonia Austral. 1880-1920, Rio Gallegos, Universidad Federal de la Patagonia Austral, 1995. Cufré, Marcelo Gustavo e María Marcela Zonaro, “Análisis de la tipología de vivienda patagónica en Río Gallegos”, em Juan Bautista Baillinou. Centenario de Río Gallegos. 1885-1985, Rio Gallegos, 1985, págs. 136-142. Graham Yooll, Andrew, La colonia olvidada. Tres siglos de habla inglesa en la Argentina, Buenos Aires, Emecé, 2007. Gutiérrez, Ramón, Arquitectura y Urbanismo en Iberoamérica, Madri, Cátedra, 1983. Herrscher, Roberto, Los viajes del Penélope. La historia del barco más viejo de la guerra de Malvinas, Buenos Aires, Tusquets, 2007. Martinic B., Mateo, Los británicos en la región magallánica, Valparaíso, Universidad de Magallanes y Universidad de Playa Ancha de Ciencias de la Educación [s. f.]. 64 Malvinas na UNIVERSIDADE Concurso de Ensaios 2012 Migone, Mario Luis, 33 años de vida malvinera, Buenos Aires, Instituto de publicaciones navales del Centro Nava, 2a edição, 1996. Mirelman, Silvia; Liliana Lolich, Julio Fernández Mallo, Arquitectura Pionera de la Patagonia Austral-Capítulos de la historia de Río Gallegos (1885-1940), Instituto Salesiano de Estudios Superiores. Moreno, Juan Carlos, “En las Malvinas”, em Juan E. Belza, SDB Argentina salesiana. Setenta y cinco años de acción de los hijos de Don Bosco en la tierra de los sueños paternos, Buenos Aires, Talleres Gráficos Buschi, 1952, págs. 182-183. Nicoletti, M. Andrea, Una misión en el confín del mundo: la presencia salesiana en las islas Malvinas (1888-1942), Neuquén [s. e.], 1999. Nicoletti, M. Andrea, Indígenas y Misioneros en la Patagonia. Huellas de los Salesianos en la cultura y religiosidad de los pueblos originarios, Buenos Aires, Continente, 2008. Otero, Hernán, “Redes sociales primarias, movilidad espacial e inserción social de los inmigrantes en la Argentina. Los franceses de Tandil, 1850-1914”, em María Bjerg e Otero, Hernán (comp.), Inmigración y redes sociales en la Argentina moderna, Tandil, CEMLA-IEHS, 1995, págs. 81-105. Pierini, M. de los Milagros e Pablo G. Beecher, Cien años del Club Británico de Río Gallegos. Los británicos en Santa Cruz. 1911-2011, Rio Gallegos, 2011. Quiroga, Hugo, “El tiempo del 'Proceso'”, em Juan Suriano, Dictadura y democracia, 1976-2001. Nueva Historia Argentina. Tomo X, Buenos Aires, Sudamericana, 2005, págs. 33-86. VV. AA., Centenario de Puerto San Julián. 1901-2001. Una ventana al pasado, Buenos Aires, Imprenta del Congreso de la Nación, 2002, Tomo I. 65 66 Malvinas na UNIVERSIDADE Concurso de Ensaios 2012 3º Prêmio A “QUESTÃO DAS MALVINAS” A PARTIR DOS SÍMBOLOS: EXPERIÊNCIA, MEMÓRIA E SUBJETIVIDADE Romina Mariana Marcaletti Romina Mariana Marcaletti A “QUESTÃO DAS MALVINAS” A PARTIR DOS SÍMBOLOS: EXPERIÊNCIA, MEMÓRIA E SUBJETIVIDADE Romina Mariana Marcaletti 1 É possível conceber e explicar facilmente esse sentimento profundo e zeloso dos povos pela integridade de seu território, e que a usurpação de um único palmo de terra inquiete sua existência futura, como se nos arrebatassem um pedaço de nossa carne. José Hernández As representações têm em comum a característica diferencial de estar “no lugar de” outra coisa, como explica o semiótico Charles Peirce 1 Mariana Romina Marcaletti é bacharel em Ciências da Comunicação pela Universidade de Buenos Aires e trabalha como jornalista. 68 Malvinas na UNIVERSIDADE Concurso de Ensaios 2012 (1987). Ao realizar esta substituição de um significante por outro, efetua-se uma operação linguística que deixa marcas materiais nos objetos: falar das Malvinas a partir da representação serve para particularizar, metaforizar e compreender um fenômeno social vigente que não deixa de produzir consequências reais sobre o presente da cidadania argentina e suas projeções para o futuro. Nas reflexões que se realizam sobre as Malvinas, veiculadas nas mais diversas expressões – a literatura, o teatro, o jornalismo, as produções audiovisuais –, são utilizados recursos narrativos para explicar o significado da guerra há trinta anos e o que a “questão das Malvinas” simboliza hoje em dia. No contexto de uma sociedade pós-ditadura, as Ilhas são retratadas por várias manifestações artísticas – que, evidentemente, são heterogêneas e têm múltiplos pontos de vista que não podem ser reduzidos a um sentido único – como uma perda, uma carência, uma parte do corpo da nação que foi mutilado, e cuja recuperação é uma espécie de “ato de justiça” para reverter uma situação de fato que persistiu durante anos e que, agora, é vista como uma necessidade histórica de reivindicar aquilo que é próprio. Este ensaio pretende, a partir da sociologia da cultura, abordar a ordem do representável com relação às Malvinas, propondo alguns interrogantes sobre o que este conflito significa para alguns setores da sociedade. Por que se recorre ao passado quando se toca no assunto das Malvinas? Qual é o papel da memória no esboço do presente? Que objetivos explícitos têm essas manifestações culturais? Que outros propósitos e inquietudes se escondem sob a superfície textual? Qual é a relação destas representações com o momento histórico em que são apresentadas ao público? Como a sociedade se apropria destes sentidos? A hipótese principal é que, apesar da multiplicidade de textos e significados construídos sobre a guerra e a reclamação de soberania da Argentina sobre as ilhas, as produções culturais vinculadas com o 69 Romina Mariana Marcaletti assunto retomam as Malvinas como sinédoque para aprofundar noções que, tendo em vista a história autoritária do país, são problemáticas para a nossa sociedade, tais como nação, pátria, identidade, cidadania, território. A “questão das Malvinas” se transforma, nesta trama discursiva, na “questão da Argentina”. O corpus que analiso é composto por materiais disponíveis em 2011 e 2012 na cidade de Buenos Aires, incluindo lançamentos originais e reedições ou reestreias. No campo da literatura, os textos que examino incluem desde o romance inaugural de Rodolfo Fogwill, Los pichiciegos, e o também pioneiro poema de Jorge Luis Borges Juan Pérez e John Ward até as novas elaborações da literatura de ficção, como a antologia Las otras islas e Malvinas, la ilusión y la pérdida, de Silvia Plager e Elsa Fraga Vidal. Na produção da mídia, detenho-me no paradigmático episódio La asombrosa excursión de Zamba en las islas Malvinas, emitido pelos canais Paka Paka e Encuentro, e em outras produções audiovisuais e jornalísticas – os especiais multimídia de jornais de circulação massiva como o La Nación e o especial multimídia Malvinas 30 – para estudar como eles ressignificaram a “questão das Malvinas”. Quanto ao teatro, analiso as peças Las islas (versão feita pelo diretor Alejandro Tantanián da novela homônima de Carlos Gamerro), Queen Malvinas e Las islas de la memoria para estudar como este problema é pensado em expressões menos massivas do que a televisão e a gráfica. Para saber más sobre o processo de produção e de busca do sentido particular de cada expressão, realizei algumas entrevistas pessoais: Sebastián Mignona (diretor de El perro en la calle, produtora independente da série Zamba, do canal Paka Paka), Álvaro Liuzzi (realizador do web-documentário Malvinas 30), Alejandro Tantanián, Raúl Cardoso e Lucía Adúriz (diretor e atriz de Malvinas, islas de la memoria), Agustín María Palmeiro, Federico Saslavsky e Federico De Gyldenfeldt (dramaturgo e atores de Queen Malvinas). O cruzamento de análise do discurso e de entrevistas obedece à 70 Malvinas na UNIVERSIDADE Concurso de Ensaios 2012 necessidade de efetuar duas operações sobre o corpus: indagar a materialidade textual (estudar que significados propõem estas narrativas) e, ao mesmo tempo, perguntar sobre os imaginários desatados por estas obras, bem como sobre os objetivos explícitos e implícitos que guiam sua produção. Conversando com os realizadores e relacionando suas palavras com suas obras, a leitura comparativa dos eixos temáticos propostos se enriquece com o olhar dos atores sobre seus próprios resultados. O objetivo deste ensaio é cruzar esta pluralidade de pontos de vista, juntamente com o que as produções comunicam, para estabelecer linhas de pensamento que indiquem como a “questão das Malvinas” é pensada, sentida e feita hoje na Argentina. Na literatura: a humanização da guerra Se há algo no qual Fogwill e Borges foram pioneiros foi não só no tratamento ficcional da Guerra das Malvinas, mas também na aproximação da contenda bélica ao plano humano. Ambos parecem insistir em que a guerra foi uma tragédia que aconteceu com seres de carne e osso que, imersos no dia a dia do conflito, tiveram que padecer as misérias da guerra. Enquanto em Juan López e John Ward, Borges, com a metáfora bíblica de Caim e Abel, se propõe um claro objetivo pacifista – compartilhando sua preocupação e estranhamento diante de uma guerra que ele não entende –, o polêmico Fogwill disse que nada mais distante de sua 1 escrita que uma intenção pacifista , pois “pacíficos são todos os romances”. 1 Não obstante, o que ambos fazem – Borges ao dar um nome próprio aos personagens de seu poema, e Fogwill com o relato minucioso de detalhes às vezes escatológicos – é deixar claro que os protagonistas reais da contenda não foram a ditadura nem os governos posteriores, mas pessoas jovens para quem a interpretação política ou diplomática 71 Romina Mariana Marcaletti do conflito quase não tinha significado quando elas tiveram que enfrentar uma luta quase animal pela sobrevivência. Desta forma, o conflito não fica difuso, aproximando-se do universo dos leitores por meio da personalização. Em Los pichiciegos, Fogwill conta a história de um grupo de soldados argentinos que decidiram se refugiar em uma caverna para resistir à guerra que levaria a maioria deles à morte. Nesta história, o autor relata os problemas cotidianos dos soldados argentinos no conflito: não ter pilhas para as lanternas, não saber o que fazer com os corpos, a amarga realidade de que cada ferido acaba sendo um morto, os escambos de provisões com os ingleses em troca de informação, o cheiro e a sujeira por causa da falta de pó químico para eliminar os detritos humanos, o frio intolerável do exterior da caverna dos pichis, os que se autolesionavam para voltar ao país, as conversas intermináveis no esconderijo que os refugiava (embora não totalmente) da verdade da guerra. O pichi é um bicho que mora embaixo da terra. Faz cavernas. Tem carapaça dura, um casco e não vê. Anda de noite. Você o pega, vira-o, e ele nunca sabe se endireitar, fica esperneando de barriga para cima […] Sabem como eles são caçados? São caçados com cachorros: vai o cachorro, fareja-o, persegue-o e o animal faz uma cova em qualquer lugar, para disfarçar a dele, onde esconde a cria, e nessa cova falsa ele se enterra e fica com o bumbum para fora. Então você o pega pelo rabinho e o tira (Fogwill, 2012). A metáfora que unifica toda a história, o nome do livro, fala desta comunidade de “mortos em vida” a quem, como os animais reais, um depredador capturou pelas costas. Neste relato, os assassinos não são representados porque Fogwill não considerou pertinente explicitar uma responsabilidade que não precisa ser nomeada: os pichis foram enviados por um governo corrupto (esta é a definição que Borges enuncia de forma literal em seu poema) cujos oficiais violentavam e abusavam de seu poder sem conhecimento concreto das condições deploráveis às quais os combatentes foram submetidos durante a guerra: a fome, o frio, os maus-tratos e a possibilidade iminente de 72 Malvinas na UNIVERSIDADE Concurso de Ensaios 2012 perda da humanidade, aqueles que, numa leitura foucaultiana, transformam-se em “seres sem ser” que se “deixam morrer”. Destes seres é habitado o universo de Fogwill, que ilustra uma paisagem de desídia e esquecimento, o universo de soldados que têm nome, sobrenome e história e foram abandonados, deixados à própria sorte, por uma causa em que eles mesmos deixaram de confiar, não por falta de conhecimento ou de adesão patriótica à gesta, na qual muitos personagens inclusive acreditavam, mas pela evidência material que foram obrigados a enfrentar. O romance de Fogwill mostra que essa identidade nacional é a primeira coisa que se dissolve quando seus hipotéticos portadores são jogados como peões numa cena onde a fraqueza dos princípios unificadores é potenciada pela proximidade da morte.Entender os pichis é entender exatamente o que uma guerra (não qualquer guerra, mas essa, a desencadeada pela aventura de Galtieri) faz com os 2 homens (Sarlo). A cosmovisão da guerra como medida desesperada de uma ditadura que via seus dias contados é uma interpretação reiterada sobre a memória do conflito. O que a ficção faz com esta visão subjacente é fornecer elementos para alimentar o absurdo, o desnecessário, o deplorável do conflito armado. Uma operação similar é empreendida por vários autores argentinos na antologia Las otras islas (Alfaguara, 2012). De diferentes formas, todos os escritores aludem ao conflito geral por meio de episódios particulares que metaforizam algumas facetas da guerra. No fundo, o que a literatura faz é, através de um conto (story), contar uma história (history) que teve existência real e que tem um resultado palpável em processos sociais concretos. O ato de individualizar, de resumir em um ou vários personagens o que foi vivido por milhares, aproxima dos leitores o universo familiar e cotidiano de seres que, em outro tipo de representações, não passam 73 Romina Mariana Marcaletti de dados numéricos, estatísticas ou simples generalizações interpeladas a partir do poder (ao contrário do que ocorre na ficção literária, as pessoas anônimas quase nunca chegam a ser fonte na imprensa informativa, por exemplo). Talvez devido à menor massividade do fenômeno literário – ou pelo atributo tão próprio da literatura de simbolizar tudo e contar uma “segunda história” que possa ser lida nas entrelinhas da primeira história literal –, a ficção nos livros se dispôs a problematizar as vivências cotidianas de seres humanos que muitas vezes não entraram na ordem do representável nos meios de comunicação tradicionais. Em La penitencia, Marcelo Birmajer conta a história do irmão mais velho de um amigo do narrador que foi recrutado para ir às Malvinas em 1982. Sua memória se enche de amargura quando ele rememora o quão “terríveis” foram aqueles dias. Lembro-me com precisão de cada um dos garotos do meu colégio, fossem da turma que fossem, que tinham um irmão nas Malvinas. E me lembro especialmente do Rafael (Birmajer, 2012). A época se constrói quase como um pesadelo, e a questão dos combatentes se configura como um tabu na família do jovem soldado. A proibição de tocar em determinados assuntos naquele momento histórico permeia este relato, assim como muitos outros desta antologia que também são narrados em primeira pessoa por autores que eram muito jovens, adolescentes e, alguns deles, inclusive crianças quando a guerra ocorreu. Seus contos são imbuídos de percepções que naquele momento eles não puderam captar bem e agora, no intento artístico, evidenciam a busca de algum tipo de sentido para o acontecido. Além de humanizar a contenda, estes microrrelatos representam as Malvinas como uma tragédia. Neste universo, a guerra importou mais do que a derrota argentina por uma força estrangeira: significou perder seres queridos, “garotos do bairro”, pessoas “iguais a nós”, alguém que 74 Malvinas na UNIVERSIDADE Concurso de Ensaios 2012 “nós costumávamos ver parado na esquina”. Com esta aproximação, a operação linguística que os autores parecem fazer é que qualquer um poderia ter sido mais um morto ou ferido na guerra, e que as vítimas fomos todos. Em abril daquele ano estourou a Guerra das Malvinas. Eu não quero falar de política, de imperialismo ou das manobras de um lado e do outro para reter o poder. Eu quero falar do Tatu e do Yagu. Os governantes de lá e de cá, os que tomaram as decisões, estão nos livros de História. Yagu e Tatú, não. Deles, se eu não falar, ninguém fala (Inés Garland, 2012). Eles analisam a necessidade de dar um nome próprio – como Borges, como Fogwill – àqueles que não foram mencionados pelos poderes de plantão. Como explica o historiador Federico Lorenz (2006), no pósguerra da pós-ditadura, o campo da política procurou “desmalvinizar” o país, apagando qualquer referência ao passado imediato em prol do que se propunha como a construção de uma nova época. Por que se procurou esquecer tudo aquilo que se relacionava com as Malvinas? Porque a primavera democrática pretendia se desfazer de tudo aquilo que se relacionasse com o mandato autoritário que exerceu uma das ditaduras mais sangrentas da história argentina de 1976 a 1983. Se os militares tentavam aglutinar a cidadania argentina com a “questão das Malvinas”, com reiteradas chamadas à ação por meio do nacionalismo e do patriotismo, e com a desculpa de que a recuperação das ilhas significava um ponto de acordo e encontro de todos os argentinos, o alfonsinismo e o menemismo exerceram uma política do esquecimento para não se vincular com medidas militaristas. Nessa “desmalvinização”, tudo o que foi calado durante décadas no país (com o ocultamento sistemático e a falta de reconhecimento dos ex-combatentes) conseguiu uma revanche simbólica na literatura: as vozes dos caídos e dos mortos podem ser silenciadas, ignoradas e não reconhecidas, mas encontram seu lugar nas ficções. Somente hoje, trinta anos depois, o país está se “remalvinizando” com 75 Romina Mariana Marcaletti medidas concretas, desde a homenagem aos tombados na guerra com a instauração do dia 2 de abril como feriado nacional, até a insistência na ONU e em outros organismos de direitos humanos sobre a soberania argentina das Ilhas Malvinas, algumas das várias ações do governo de Cristina Fernández de Kirchner que vão além desta análise. Os contos de Las otras islas mostram os ignorados na “desmalvinização”. São as vozes dos que foram negados: primeiro, por serem meros objetos de políticas arquitetadas em outras esferas, segundo, por voltarem derrotados da guerra, famélicos e perdedores. Estas ficções retomam, como as predecessoras, a dimensão humana das Malvinas. Não era uma notícia no jornal, não era um número anônimo e distante, era o “Gaby”, aquele que tinha me colocado como titular num jogo contra o Dock Sud (Pablo Ramos, 2012). Esta estratégia se repete: “eu o conhecia”, “não era alguém anônimo”, “era meu vizinho, meu amigo, meu irmão”. “Aconteceu com alguém próximo”, logo “poderia ter acontecido comigo”. O que se consegue com este tipo de recursos é que a história, em vez de ser ensinada através de livros de textos ou de compilações de reportagens que agrupam dados e sentidos desprovidos de dimensão humana, torne-se uma materialidade tangível, que se aproxime da realidade, seja verossímil, convincente e dolorosa. Como explica Andreas Huysseen (2002), a ficção pode ser uma forma efetiva de elaboração da memória quando se trata de construir uma narração que contribua para o conhecimento e a superação do passado. Quando o crítico cultural analisa a série televisiva estadunidense Holocausto, transmitida pela NBC em 1978, lançada na Alemanha no ano seguinte, Huysseen se pregunta por que este programa foi capaz de despertar uma “superação do passado” (Vergangenheitsbewältigung) que outras formas artísticas não conseguiram. O que é realmente a Vergangenheitsbewältigung (superação do 76 Malvinas na UNIVERSIDADE Concurso de Ensaios 2012 passado) e qual era seu significado na Alemanha do pós-guerra? No livro Die Unfähigkeit zu trauern (1967), Alexander e Margarete descreveram a Vergangenheitsbewältigung – da qual o Holocausto é um componente essencial mas não o único – como o processo psíquico de relembrar, repetir e atravessar; um processo que deve começar no individuo, mas que somente pode se completar com sucesso se sustentado por uma instância coletiva, por toda a sociedade. O teatro, a mídia e as instituições educativas poderiam ter colaborado na criação de uma Vergangenheitsbewältigung coletiva se a Alemanha tivesse dado prioridade política e social à confrontação com o passado. No entanto, aconteceu exatamente o contrário” (Huyssen, 2002). Durante o período posterior ao Holocausto, a sociedade alemã atribuiu as culpas pelo extermínio à mentalidade irracional dos dirigentes nazis, especialmente de Adolf Hitler, e com esta interpretação esquivou sua responsabilidade no processo. Não reconhecendo a cumplicidade e a participação do povo alemão na matança, ela se autoeximiu e se liberou do pecado, omitindo o papel que a comunidade teve ao legitimar os crimes que estavam sendo cometidos. Ressalvando as diferenças, algo similar acontece na Argentina quando se atribui à ditadura a loucura de alguns oficiais, deixando de lado a ativa colaboração de muitos setores que apoiaram o regime no país. Com as Malvinas, ocorre o mesmo: a guerra não foi consequência somente de uma política militar sistemática de destruição dos direitos humanos, mas também o resultado de um consenso social amplo que legitimou a contenda e favoreceu sua realização com apoio ativo e emocional. Huyssen reconstrói como alguns gêneros documentais da indústria cultural, o teatro e a educação tentaram debater o passado recente e mostrar como os judeus foram assassinados devido a uma política antissemita ativa. No entanto, suas estratégias não foram suficientes para contribuir para a construção de uma memória compartilhada que permitisse uma revisão crítica do acontecido, pois recorreram a formas narrativas racionais, privilegiando um ponto de vista que identifica a audiência com os criminosos, uma posição difícil de assumir. Pelo 77 Romina Mariana Marcaletti contrário, com o melodrama afetivo Holocausto, ele transformou a history (os fatos que aconteceram na realidade) em story (relato ficcional): a partir da história de uma família de judeus, ele permitiu que os telespectadores se colocassem no lugar das vítimas e, com a identificação sentimental, possibilitou-lhes a compreensão do terror que significou o Holocausto. Graças a uma narração focada no afetivo, com personagens que representavam os oprimidos, o público pôde compreender o drama histórico por situar-se do lado dos vencidos. O que a informação dura e real não conseguiu foi, assim, alcançado por uma ficção sem maiores aspirações do que conseguir pontos de audiência. E no caso da literatura argentina, configura-se uma memória da guerra que escolhe como protagonistas não os grandes personagens da história, mas os seres anônimos que a viveram da forma mais trágica e, deste modo, a guerra se torna mais próxima, mais humana e mais (in)compreensível por meio da identificação emocional com a narração humanizada. Talvez a única exceção a esta construção dominante seja o livro Malvinas, la ilusión y la pérdida, de Silvia Plager e Elsa Fraga Vidal, um romance histórico de 444 páginas que tem como protagonistas Luis Vernet (o governador argentino nas ilhas que foi expulso pelos ingleses em 1833) e sua esposa María Sáez. Neste caso, as personagens são políticos da época que “povoaram” as Malvinas e se apropriaram de um espaço que, antes de sua chegada, era representado na história como vazio e inóspito. Embora os personagens sejam funcionários públicos também citados em livros de história e relevamentos jornalísticos, o registro emocional também se apropria da narração. Com múltiplas alusões sobre a dureza da vida nas ilhas em virtude do frio, da carência de facilidades culturais e da ruralidade da existência, a narração é permeada de dramas familiares (sobretudo os relacionados com o “dever ser”, os bons costumes e a vida cotidiana) para demonstrar que a população autóctone argentina foi deslocada das Malvinas por uma invasão inglesa. 78 Malvinas na UNIVERSIDADE Concurso de Ensaios 2012 O tom emocional dos protagonistas quando falam das ilhas não oculta o verdadeiro sentido que estas têm para eles: além de terem sido seu lar, o lugar onde nasceu a pequena Malvinita e onde brincaram as crianças na infância, as Malvinas são um recurso estratégico. Em várias conversas particulares e políticas dos personagens, menciona-se a “pátria”, a necessidade de “defender” a Nação, o amor pela terra própria, a proteção dos recursos naturais, a passagem estratégica para a Antártida e os oceanos Pacífico e Atlântico, entre outros valores atribuídos às ilhas. As Malvinas são descritas como solo argentino, território próprio, como parte da identidade do país que foi saqueada. As ilhas são concebidas como um “pedaço da pátria” que foi roubado por uma grande potência mundial à custa do governo de Juan Manuel de Rosas, que foi condescendente com os ingleses e pediu ao governador argentino das ilhas que ele se retirasse a tempo, antes de ser derrotado. No teatro: Malvinas, um assunto pendente Beatriz Sarlo (1987) defende a hipótese de que, quanto menos massivas as produções culturais, mais chances elas têm de ser provocadoras ou arriscadas. Em sua análise da literatura durante a ditadura, a acadêmica conclui que são as obras com público mais reduzido e minoritário (o teatro, a literatura) as mais propensas a questionar convenções e fatos que são naturalizados pelas formas de expressão mais massivas (o jornalismo gráfico comercial, a televisão). No teatro, não houve nenhuma hesitação em retratar a “questão Malvinas” da forma mais crua e selvagem. Desde a cena do estupro de um pai a seu filho na versão do diretor Alejandro Tantanián do romance Las islas, de Carlos Gamerro, ou da entrega de cartas reais pelos protagonistas de Las islas de la memoria com seus testemunhos e experiências pessoais, até a terrível experiência de dois soldados que fazem plantão à frente da batalha em Queen Malvinas, o teatro tratou da maneira mais explícita a intimidade da guerra, a partir da expressão de dilemas particulares que aludem ao conflito em geral. 79 Romina Mariana Marcaletti Em Las Islas, estreada em 2010 no teatro San Martín, são exploradas as consequências da guerra, estimulando a audiência a repensar nos resultados do passado recente. Ambientada nos anos noventa, o protagonista da peça é o rico homem de negócios Fausto Tamerlán, que convoca o hacker Felipe Félix para que ele descubra o que aconteceu com seu amado filho, que desapareceu durante a Guerra das Malvinas. Na obra, Félix realiza a tarefa que lhe foi encomendada e conhece, no caminho, o outro filho de Tamerlán, um homossexual que acaba traindo seu pai, e a esposa de um ex-combatente que foi sequestrada e torturada durante a última ditadura. O romance de seiscentas páginas, escrito durante o governo menemista, retratada a relação de um pai com seu filho perdido e de vários personagens que também enfrentam muitos lutos: o de sua integridade pessoal, o de seus direitos humanos, o dos seres que se foram, o da guerra que os derrotou. Tamerlán condensa o pior do neoliberalismo, mas tem uma fraqueza: perdeu um filho. Pior do que isso: seu filho desapareceu. Este personagem detestável sofre uma dor profunda, e isso o torna mais humano e menos odiável. Se nos dissessem que “os militares são pessoas más”, e estivéssemos de acordo e deixássemos de pensar, qual seria o sentido disto? Teríamos que analisar o que isso implica. O mesmo acontece quando dizemos “as Malvinas são argentinas”. Simplesmente o aceitamos, como se fôssemos os cachorros de Pavlov, e Las islas tenta se opor a qualquer tipo de dogmatismo (Alejandro Tantanián). Apesar de evitar qualquer tipo de adesão ideológica, a peça toma uma posição: ela recorre à provocação constante para gerar reações no público, com o intuito de que ninguém fique indiferente. Não há uso de metáforas: pelo contrário, abundam as referências literais numa série de micro-histórias explícitas, fortes, dolorosas, baseadas na realidade. Em Queen Malvinas, escrita por Agustín María Palmeiro, também são retomadas cenas escabrosas da guerra para que os espectadores se relacionem com a teatralização: aqui dois jovens soldados se escondem na trincheira enquanto ocorre a batalha de Monte Longdon, dois dias antes da rendição argentina. Eles confessam seus desejos 80 Malvinas na UNIVERSIDADE Concurso de Ensaios 2012 adolescentes, falam da fome, do frio, de suas famílias e mostram um ódio forte aos oficiais que os maltratavam e torturavam, quando um dos personagens admite que tem mais vontade de matar um militar argentino do que um soldado inglês. O que me interessa ressaltar é o companheirismo entre os jovens soldados. Eu fui recrutado para a guerra mas não combati, sou um dos que ficou na Terra do Fogo. Mas senti e me contaram como numa situação tão extrema como a guerra você se une a desconhecidos para se proteger. Você se agrupa até por questões banais, como um chocolate, um mantecol, por tudo o que sente saudade. Não é à toa que o Che Guevara costumava dizer que o maior sintoma da nostalgia é a comida. Você fica amigo de gente que não volta a ver (Agustín María Palmeiro). Os laços fraternais construídos numa situação limite são os que predominam na peça, como refúgio de uma série de hostilidades externas: o frio, o desamparo, a solidão, a morte iminente. Como em Los Pichiciegos, os jóvenes de Queen Malvinas sabem que seu destino é fatal e narram, com suas próprias palavras, todos os detalhes da experiência da guerra para dar um nome e uma história a todos e cada um dos atores do conflito. Neste gesto, dá-se visibilidade aos excombatentes, um grupo social negado durante mucho tiempo. Esta é a mesma busca de Las islas de la memoria, peça que individualiza e reconhece os ex-combatentes. A memória, nestas duas obras, consiste em não esquecer as vítimas da guerra, porque em homenagem às suas ações é que hoje é preciso fazer algo com relação à recuperação das Malvinas. Em Las islas de la memoria, que estreou em 2012 no teatro Cervantes, um grupo de atores interpreta vários personagens (soldados, kelpers, professoras de ensino fundamental, funcionários públicos e até a própria Margaret Thatcher) que narram de forma muito participativa (olhando nos olhos dos espectadores e fazendo-os interagir com os conteúdos da peça) a história das Malvinas, desde a conquista da 81 Romina Mariana Marcaletti América até o final da guerra. Esta peça recorre à parodia e às metáforas para inferir algumas noções sobre o conflito bélico. Como as outras, ela também particulariza para chegar ao fundo, a um significado mais global. A arte não pode falar de ninguém de forma geral. Quando representamos os ingleses como piratas ou Margaret Thatcher como o próprio diabo, estamos lidando com ideais, com arquétipos. A paródia não transforma Margaret Thatcher em demônio, mas a humaniza. É uma forma de contar nosso conto de uma forma mais simples e que fazer com que ele seja mais compreensível para a audiência. Sempre associamos os ingleses com piratas, por exemplo, porque é como os vimos sempre politicamente (Lucía Adúriz). Com a compilação de dados históricos e de histórias de vida sistematizados pelo Observatório das Malvinas da Universidade de Lanús (UNLA), o grupo trabalhou com um conjunto interessante de pequenas experiências subjetivas relacionadas com a guerra e com as Malvinas – a de um soldado argentino que se apaixona por uma kelper, outro jovem que pulou de um barco para salvar um amigo que tinha caído, um veterano que trocava cartas com uma professora com quem casou ao voltar, a fuga das balas inimigas de vários companheiros quando tentavam proteger um ferido. As histórias vão acontecendo num sem-fim de narrações contadas por narradores vários que reproduzem cada detalhe, cada sentimento, cada lembrança. Falam de amor, irmandade, esperança, amizade e, deste modo, tocam momentos muito pessoais: a solidão, a distância, a saudade dos seres queridos. Ao personalizar, Las islas de la memoria aproxima. Enfocando estes personagens e suas vivências, a peça indaga o que significou as Malvinas para a sociedade: O que a peça expressa é que as Malvinas foram, são e continuarão sendo sempre argentinas. Não reivindicamos a guerra, pelo contrário. Mas sim a recuperação das ilhas, porque o sonho das Malvinas está 82 Malvinas na UNIVERSIDADE Concurso de Ensaios 2012 sempre no horizonte. Indo além da reclamação territorial, as Malvinas são um elemento simbólico de disputa que orienta nossos pensamentos. Para nós, a realidade que a ilha nos mostra é colonial: ela nos lembra que há poderes colonialistas, os dominantes, e que nós estamos do outro lado. Falar das Malvinas é falar da Argentina. E não é só isso: é falar da América do Sul (Julio Cardoso). As Malvinas, aqui também, carregam a marca originária de um roubo, são a perda, o lugar do mapa que teve que ser apagado, uma ferida que deixa marcas. As Malvinas nos lembram da nossa posição de terceiro mundo, jogando pela janela as fantasias da Argentina como poder mundial. Elas nos ressaltam o sentido das palavras “impotência” e “injustiça”. As Malvinas são, mais uma vez, a falta, mas, ao mesmo tempo, carregam consigo a possibilidade e a esperança. Na mídia: das pequenas histórias ao grande relato unificador A lógica dos meios de comunicação obedece ao paradigma da dosagem da informação, da atualização constante e da construção de notícias que são oferecidas a cada edição. Nenhum artigo jornalístico é definitivo, mas é lido em relação a outros similares, prévios e posteriores, os quais dão uma noção de sistema a partes que, isoladas, perdem sentido. Por isso, ler a “cobertura” jornalística sobre as Malvinas escolhendo artigos ou conteúdos audiovisuais ajuda a aprofundar determinadas questões, mas perde de vista o significado global de várias produções analisadas em conjunto. Se tomarmos os exemplos da cobertura especial do site do jornal La Nación (lanacion.com) e do documentário amador Malvinas 30, é possível coletar um leque de pequenos relatos unidos por conceitos aglutinadores que dão coerência interna e união a fragmentos que, de outro modo, seriam inconexos. No primeiro exemplo, o site do La Nación lançou um especial 3 multimídia em que privilegiou as narrações em primeira pessoa, as histórias de vida e as experiências do passado, procurando construir 83 Romina Mariana Marcaletti um olhar sobre a guerra que vai além da cobertura do “dia a dia” e em “tempo real” da atualidade do país (que também foi muito cuidada) e, assim, aprofundando em aspectos pouco explorados da guerra. A seção principal foi a “Combatentes”, que continha memórias diferenciais sobre a guerra diretamente na voz de seus protagonistas. Além das entrevistas e artigos,4 produziu-se uma série de curtas 5 audiovisuais nos quais veteranos de guerra voltavam às Ilhas e se reencontravam com objetos, lugares, que serviram como disparadores de lembranças compartilhadas. Outras seções mais tradicionais foram “Funcionários” (cobertura da atualidade política), “Curiosidades” (detalhes da vida cotidiana nas Ilhas e curiosidades) e “Cronologia” (retrospectiva de eventos passados). Este especial focalizou as experiências, as vivências particulares dos ex-combatentes. Eles mesmos falaram diante das câmeras e por meio de reportagens. Nas produções audiovisuais, predominaram os abraços, os pontos de vista subjetivos sobre o acontecido, a música de fundo e as palavras entrecortadas à beira das lágrimas, utilizando recursos ficcionais para tratar uma história real que é apresentada como conteúdo jornalístico para, deste modo, alcançar um impacto emocional por meio das notícias (Eco, 1987). Na cobertura do site, são tomados certos elementos da ficção para que a realização multimídia seja o mais próxima possível do universo dos usuários. Eles, talvez, não se identifiquem tanto com as notícias “duras” do site, mas sim com os conteúdos mais lúdicos, interessantes e novelados deste conjunto de microrrelatos sobre a guerra. Nunca tinha andado de avião, nunca tinha tido uma arma em minhas mãos, de repente me vejo no frio de Chubut. A instrução durou quinze dias e eu estive na logística, lembra (Rubén).6 Estava nevando, todos estávamos congelando, tínhamos fome, estávamos sujos, sem munições, nem comida, nem nada, rememora (Davies).7 84 Malvinas na UNIVERSIDADE Concurso de Ensaios 2012 As ilhas eram uma grande desorganização. Puerto Argentino não tinha um cais para suportar o descarregamento das 3500 toneladas que levávamos e demorou-se quinze dias descarregar um barco que tinha sido carregado em seis dias.8 As palavras que mais se repetem nestas histórias são o verbo “lembrar”, o substantivo “secreto” e a ação midiática de “revelar”. O que o conjunto de testemunhos procura “dar a conhecer” é a experiência subjetiva dos atores da guerra, que, recorrendo à lembrança, narram como foi sua experiência traumática e o que puderam tirar dela. Nestas micro-histórias, abundam detalhes sobre a fome, o medo, a injustiça e o drama humano da nostalgia, a perda, o desespero. No documentário multimídia Malvinas 30 estas vozes não foram usadas como fonte principal, mas foram os comentários dos ex-combatentes que abriram a participação e a interação que os realizadores deste especial esperavam. Malvinas 30, criado por um grupo de jornalistas, 9 programadores e web designers, foi pensado com o objetivo de reconstruir, em tempo real, o que acontecia na guerra das Malvinas trinta anos atrás. Para isso, basearam-se numa grande quantidade de material de arquivo e integraram os conteúdos da página web com redes sociais. A resposta dos usuários superou as expectativas dos produtores. Valendo-se da memoria, a audiência também se apropriou do conflito social e geral de uma forma muito individual e personalizada. A partir de elementos que propúnhamos, formamos uma narração coletiva que foi personificada por nosso personagem no Twitter (@soldadoM30).10 Os usuários fazem perguntas, participam, as pessoas relembram e compartilham o que fizeram em 1982. Queríamos colocar coisas dos usuários no site. O mais louco é que chamamos alguns ex-combatentes. Um veterano enviou um e-mail sobre sua experiência nas ilhas e a publicamos. Aliás, ele criou um usuário no Twitter e fez catarse: publicou suas lembranças, sentiu que há uma comunidade que o lê, que o acompanha (Álvaro Liuzzi). 85 Romina Mariana Marcaletti De fato, Gabriel Beber, a pessoa real por trás do personagem de ficção virtual de @dosdeabril, contou numa entrevista que fazer parte deste documentário teve, para ele, poder curador: escrever e compartilhar por meio de um usuário anônimo que, portanto, dava-lhe um ar de ficção, permitiu a ele uma maior aproximação e uma compreensão diferente de sua experiência nas Ilhas, através de uma classificação da correspondência com seus familiares em 1982. Este ano, a releitura das cartas foi um exercício terapêutico. Twittear foi para mim, uma espécie de jogo de papéis com esse eu de 18 anos, tentando me colocar naquele lugar como se eu não soubesse o final e ser fiel ao que lia, bem como ao que a leitura das cartas provocava em minha memória. Limitação óbvia é que meu uso das redes não é o de alguém de 18 anos. Quando fiquei sabendo sobre o Malvinas 30, divulguei-o para outros ex-combatentes, mas dá para perceber que o chamado ecoou em mim, mas não em outros, queria tê-los encontrado 11 na interação (Gabriel Beber). Este espaço permitiu a Beber repensar suas vivências num ambiente social: para ele, não era a mesma coisa ler estas cartas sozinho do que compartilhá-las com uma comunidade. Segundo conta, ele gostaria de ter conhecido mais pares que fizessem o mesmo que ele fez: colocar à disposição do público coisas que são supostamente privadas. Sua memória da guerra, essas lembranças seletivas que acordam quando ele convoca este fato do passado, é permeada de interpretações próprias, subjetivas, mas isso não implica que elas não possam ser sociais – a partir de seu caso individual, muitos outros podem se sentir refletidos e identificados. O que se tenta é que a memória literal (única, pessoal e intransferível) seja transformada em memória exemplar (social e compartilhada e, portanto, reparadora, como explica Jelin, 2002). Para Beber, sua memória teria que ser social e geral para poder discutir com seus pares as implicações e os sentidos de sua trajetória. Os microrrelatos, que parecem sinais da pós-modernidade e do desmoronamento dos grandes princípios explicativos que ordenavam o 86 Malvinas na UNIVERSIDADE Concurso de Ensaios 2012 pensamento, só ganham magnitude quando são comparados e, deste modo, se transformam num grande relato que tenta dar algum tipo de explicação intersubjetiva para o acontecido. O Estado procurou construir um grande relato que proporcionasse um quadro teórico e conceitual, amparado em categorias históricas, geográficas e ideológicas, para explicar a “questão das Malvinas”. Para compreender melhor o conteúdo desse relato consensual, analisarei o tratamento que os organismos estatais deram às Malvinas em suas 12 produções audiovisuais. Para isso, recorrerei ao episódio La asombrosa excursión de Zamba en las islas Malvinas, realizado pela produtora independente El perro en la calle e emitido pelo Paka Paka e o Encuentro, canais públicos que dependem do Ministério da Educação da Argentina. Neste capítulo, que faz parte de uma série de episódios em que uma criança revive fatos históricos do país para aprender com eles, Zamba viaja no tempo e chega até as Ilhas Malvinas em 1982. Nesta jornada, ele conhece Sapucai, um soldado argentino, jovem, nortista, valente, patriótico. Lá, presencia a batalha de Monte Longdon, uma das mais sangrentas da guerra, e observa uma quantidade de soldados argentinos que passavam fome, frio e estavam mal equipados virarem cruzes (que simbolizam a morte material). Zamba também se encontra com um soldado inglês, que tem armas melhores, é agressivo e dominante. Sapucai representa todos os soldados que combateram. Queríamos colocar os soldados em cena para recuperar o contexto no qual eles lutaram. Não nos esqueçamos de que Zamba sempre trata de efemérides: este capítulo foi pensado para homenagear os tombados em dois de abril. Foi um desafio: como recuperar o heroísmo dos soldados num desenho animado? Sapucai simboliza este heroísmo. No final do capítulo, Sapucai reencarna num professor, pois queríamos demonstrar que os veteranos tiveram vida após a guerra. Por sua vez, o soldado britânico personifica o soldado britânico profissional. Os ditadores são representados em preto e branco, e seu rosto pode ser 87 Romina Mariana Marcaletti visto claramente pelo registro quase fotográfico. Fizemos isso para que as crianças identifiquem estas pessoas se as veem nos jornais (Sebastián Mignona). Esta edição foi a única que lidou com um fato histórico recente (o resto trata de acontecimentos do século XIX). Qual é o objetivo desta produção? Segundo o realizador, é “aproximar as crianças dos assuntos delicados: o da ditadura militar e da Guerra das Malvinas, um conflito muito traumático para a história argentina”. Para conseguir isto, tiveram que transformar uma interpretação da história recente em fragmento de ficção. “Foi complicado porque até mesmo para o Estado é difícil organizar este relato. Tivemos que sintetizá-lo e realizar uma análise suficiente para satisfazer as demandas do público infantil, que está muito treinado na aquisição de competências audiovisuais”. Embora seja verdade que as crianças fazem diferentes interpretações de Zamba, também é verdade, como explica Umberto Eco, que há uma clausura do sentido no texto. São produções culturais que não podem ser interpretadas de qualquer forma, mas, pelo contrário, sugerem várias assimilações que serão decodificadas de formas diferentes pelo público. No caso de Zamba, o relato construído é muito uniforme e contundente: as Malvinas são argentinas. O que você aprendeu hoje, Zamba? Descobri que as Malvinas são argentinas e que os ingleses as ocuparam faz muito tempo e que não querem devolvê-las. Também fiquei sabendo que nossos soldados combateram muito, foram realmente valentes e lutaram por nossa soberania. A guerra é triste. Nunca vou me esquecer desta história (Zamba). O capítulo sintetiza uma visão muito clara do que as Malvinas significam e do que ele pretende incutir: as ilhas nos lembram, mais uma vez, um saqueio de outrora cujas consequências ainda perduram e que, por isso, não deve ser esquecido. A questão da memória é sugerida novamente e as Malvinas são, afinal de contas, a representação de uma violência contra a argentinidade, a evidência de uma falta e a esperança de uma recuperação – talvez ter de novo as Malvinas seja, 88 Malvinas na UNIVERSIDADE Concurso de Ensaios 2012 neste imaginário, uma forma de devolver certos aspectos da identidade. Assim sendo, há uma construção, encaminhada pelo Estado, mas retomada e assumida como própria por diferentes setores sociais, das Malvinas como um sonho, como terra prometida que nos proporciona elementos para percebermos o que poderíamos ter sido como nação e não fomos. É a perda, a castração, o roubo, o crime, a impotência, a falta, mas também é a possibilidade de recuperar aquilo de que sentimos falta. As Malvinas são uma metáfora da argentinidade. Mas quanto representa a “questão das Malvinas” para os argentinos? 13 Segundo uma enquete binacional realizada pela Ibarómetro sobre uma amostra representativa de argentinos e ingleses, 86% dos entrevistados do nosso país respondeu que a questão das ilhas Malvinas é “importante” para Argentina, enquanto 65% dos britânicos pensa o mesmo quanto a seu país. Quando inquiridos sobre a “legitimidade” da reclamação argentina pela soberania das ilhas, 89% dos argentinos respondeu que ela é “legítima”, enquanto a metade dos britânicos opinou que é “ilegítima” (quando 80% dos argentinos acham que as demandas britânicas são ilegítimas). Além disso, 89% dos argentinos disse concordar com a postura de que o governo argentino e o britânico sentem para dialogar sobre a soberania. Sobre a guerra, 77 % da população argentina pensa que foi uma decisão do governo militar para esconder seus problemas políticos e 60% declara que não apoiaria um novo conflito armado para recuperar as ilhas. Embora somente 33% acredite que a resolução do conflito será favorável à soberania argentina, 66% espera que assim seja. Uma pesquisa exploratória do geógrafo cultural britânico Matt Benwell revela que, de fato, uma parte da população, os jovens, acreditam e estão dispostos a reconhecer que “as Malvinas são argentinas.” Contudo, ele diz que, embora esta adesão esteja presente em todas as suas entrevistas, as formas que os adolescentes escolhem para falar 89 Romina Mariana Marcaletti sobre o assunto são difusas, pouco claras, e ainda não têm elementos para formar um juízo de valor próprio. Eles têm uma sensação de incomodidade, falam da confusão e da sensação desagradável que sentem quando viajam e elas são chamadas de Falklands. Os jovens são muito conscientes do que as ilhas significam em relação à presença britânica: elas têm conotações colonialistas. Não há unidade em todas as entrevistas, há diferentes perspectivas. Mas o que posso notar na maioria dos entrevistados é que há um laço emocional que os une com este território (Matt Benwell). A relação dos jovens com as Malvinas não é um dado acessório, pois dela depende a forma como as próximas gerações tratarão o assunto. O que esta sondagem e as representações estudadas sugerem sobre a forma como a “questão das Malvinas” é elaborada hoje na Argentina é que, apesar da pluralidade de opiniões, as Ilhas são tidas como uma parte importante da nossa idiossincrasia como país que foi invadida, corrompida e disposta por mãos alheias. Esta forma de pensar o conflito não é inovadora, podendo ser rastreada nas origens da “questão das Malvinas” na literatura. A metáfora das ilhas como “irmãzinha perdida” 14 é constante. Seu precursor foi José Hernández15, que, em artigo publicado no jornal El Río de la Plata em novembro de 1869, concebe as Ilhas como parte do corpo da nação que foi roubada. Os argentinos, especialmente, não puderam esquecer que se trata de uma parte muito importante do território nacional, usurpada devido a circunstâncias desfavoráveis […]. Os povos precisam do território que os fizeram nascer para vida política, assim como precisamos do ar para a livre expansão dos nossos pulmões. Absorver um pedaço de seu território é como arrancar-lhes um direito, e esta injustiça representa um duplo atentado, pois não só é o despojamento de uma propiedade, mas também a ameaça de uma nova usurpação (José Hernández, 1869). 90 Malvinas na UNIVERSIDADE Concurso de Ensaios 2012 Neste imaginário, a “questão das Malvinas” também é tratada de um ponto de vista subjetivo, que vincula a perda do território à mutilação de parte da integração nacional. Este roubo fere não só a soberania, mas também o orgulho patriótico, evidenciando que o laço que une a argentinidade com as Ilhas foi quebrado por uma força estrangeira. No fundo, o vínculo com as Ilhas é mais do que político, histórico e geográfico: é de tipo emocional – as Malvinas nos lembram duma derrota, uma usurpação, uma ferida ao narcisismo autóctone, um flagelo a nosso senso de identidade. Nestas elaborações literárias das Malvinas, há muitas diferenças e matizes, mas também há sentidos em comum que superam o universo literário, teatral, jornalístico e audiovisual, apropriando-se de significados que circulam pela sociedade neste momento histórico de efervescência da temática em seu 30º aniversário. O que as Ilhas representam para a Argentina? Essa é a pregunta que estas ficções procuram responder. Em primeiro lugar, elas são o símbolo de um roubo. Esta usurpação de um pedaço de território revela várias questões: os invasores foram uma potência estrangeira, o que deixa em evidência a fraqueza da Argentina como país de terceiro mundo. A este despojamento, acrescenta-se a conivência de vários governos: primeiro o de Rosas, que com um gesto conciliador esconde a clara entrega de parte do território local a outro país; depois a da ditadura militar, que embarcou os “garotos da guerra” num pesadelo real de consequências devastadoras; depois a do silêncio e o esquecimento da primavera alfonsinista e do menemismo; e que só agora, com o mandato de Cristina Fernández de Kirchner, está começando a mudar. As Malvinas, nestas ficções, aconteceram com alguns (os sujeitos próprios das histórias), mas aconteceram com todos nós (cidadãos argentinos). A experiência não é distante, é próxima. Não é objetiva, é subjetiva. Não é racional, é emocional. Não tem grandes personagens, eles são múltiplos e são parecidos a nós. As Malvinas sangram, latejam 91 Romina Mariana Marcaletti com a lembrança de um dano passado que nos diz hoje o que não somos, o que não pudemos ser. Destroem o sonho da “Argentina potência”, machucam a autoestima nacional, oferecem-nos um panorama do que deixamos que nos fizessem. As Malvinas, no fundo, são uma ferida aberta. As Malvinas somos nós, atravessados por uma história que ainda tem consequências no presente. Notas 1 - Entrevista completa com Fogwill em http://www.palabrasmalditas.net/archivo/content/view/614/2/. 2 - Texto completo de Beatriz Sarlo, “No olvidar la guerra. Sobre Cine, Literatura e Historia”, em http://www.literatura.org/Fogwill/fsobpich.html. 3 - O especial multimídia do La Nación sobre as Malvinas está disponível em http://especiales.lanacion.com.ar/multimedia/item.asp?m=162. 4 - “Volver a Malvinas 30 años después: la guerra contada por un protagonista” é o artigo que apresenta a série de curtas-metragens produzidos para este especial: http://www.lanacion.com.ar/1459019-volver-a- malvinas-30-anos-despues-de-pelearen-la-guerra. 5 - Trecho extraído de: http://www.lanacion.com.ar/1249377-malvinas-una-guerracon-dos-finales- muy-distintos. 6 - Idem 5. 7 - “El recuerdo de los civiles que burlaron el bloqueo inglés”, em http://www.lanacion.com.ar/1475372-el- recuerdo-de-los-civiles-que-burlaron-elbloqueo-ingles. 8 - Site do especial Malvinas 30: http://www.malvinastreinta.com.ar/. Os realizadores são Álvaro Liuzzi, Guadalupe López, Ezequiel Apesteguía, Tomás Bergero Trpin e Romina Vázquez (http://www.malvinastreinta.com.ar/autores). 9 - Este usuário do Twitter foi inventado pelos realizadores para contar as vivências da guerra em primeira pessoa. Desta forma, eles se apropriaram de um recurso ficcional para contar uma história real do ponto de vista de um soldado. Pouco tempo depois do lançamento do especial, um soldado “real” (@dosdeabril) criou seu próprio usuário no Twitter para contar, ele mesmo, o que tinha vivido na guerra. 10 - Carta de Gabriel Beber publicada em Malvinas 30: http://www.malvinastreinta.com.ar/twittear-fue- como-un-juego-de-roles. 11 - Não vou me estender sobre a peça publicitária lançada pelo Governo Nacional e criada pela agência Young & Rubicam. Protagonizada por Fernando Zylberberg, ela contém a legenda “Para competir em solo inglês, treinamos em solo argentino”, em referência aos Jogos Olímpicos de Londres 2012. Estudar a imbricação entre políticas e a questão das Malvinas não é o objetivo deste ensaio. 12 - Publicada em http://demo.ibarometro.com/advf/documentos/4f843e548c9600.83406845.pdf. 92 Malvinas na UNIVERSIDADE Concurso de Ensaios 2012 13 - Metáfora que condensa a famosa canção folclórica de Atahualpa Yupanqui e Ariel Ramírez. 14 - O artigo completo de José Hernández sobre as Malvinas está disponível em: http://www.elhistoriador.com.ar/articulos/dictadura/jose_hernandez_y_la_soberania_s obre_malvinas.php. Fontes Entrevistas pessoais Lucía Adúriz, atriz da peça de teatro “Las islas de la memoria”. Matt Benwell, geógrafo cultural inglês, pesquisador sobre a relação entre as Malvinas e os jovens. Raúl Cardoso, escritor e director da peça de teatro “Las islas de la memoria”. Álvaro Liuzzi, realizador do webdocumentário “Malvinas 30”. Agustín María Palmeiro, escritor da peça de teatro “Queen Malvinas”. Sebastián Mignona, diretor de El perro en la calle, produtora independente da série “Zamba” para o canal Paka Paka. Alejandro Tantanián, diretor da peça “Las islas”, escrita por Carlos Gamerro. Literatura Borges, Jorge Luis, “Juan López y John Ward”, em Los conjurados, Madri, Alianza, 1985. Endereço URL: http://www.poesi.as/jlb1340.htm Fogwill, Rodolfo, Los pichiciegos, Buenos Aires, Editora El Ateneo, 2012. Hernández, José, “Relación de un viaje a las Islas Malvinas”, jornal Río de la Plata, n° 86, Buenos Aires, 19 de novembro de 1869. Endereço URL: http://www.elhistoriador.com.ar/articulos/dictadura/jose_hernandez_y_la_soberania_s obre_malvinas.php Plager, Silvia e Elsa Fraga Vidal, “Malvinas, la ilusión y la pérdida. Luis Vernet y María Sáez, una historia de amor”, Buenos Aires, Sudamericana, 2012. Antología. Las otras islas, Buenos Aires, Alfaguara, série vermelha, 2012. Teatro Las islas (Teatro San Martín) Las islas de la memoria (Teatro Cervantes) Queen Malvinas (Pan y arte) Webjornalismo Documentário Malvinas 30: http://www.malvinastreinta.com.ar/. Especial Malvinas, La Nación: http://www.lanacion.com.ar/a-30-anos-de-malvinast48007. 93 Romina Mariana Marcaletti Audiovisual La asombrosa excursión de Zamba en las islas Malvinas (El perro en la calle, para o canal Paka Paka). Bibliografia Huyssen, Andreas, “La política de la identificación: Holocausto y el drama de Alemania occidental”, em Después de la gran división, Modernismo, cultura de masas, posmodernismo, Buenos Aires, Adriana Hidalgo, 2002. Foucault, Michel, Genealogía del Racismo, Buenos Aires, Altamira, 1996. Lorenz, Federico G., Las guerras por Malvinas, Buenos Aires, Edhasa, 2006. Jelin, Elizabeth, “Las luchas políticas por la memoria” en Los trabajos de la memoria, série Memoria de la represión n° 1, Madri, Siglo XXI, 2002. Peirce, Charles Sanders, Fragmentos de Obra Lógica Semiótica, Madri, Taurus, 1987. Sarlo, Beatriz, “Política, ideología y figuración literaria”, em Balderston, Daniel, Ficción y política: la narrativa argentina durante el proceso militar, Buenos Aires, Alianza, 1987. Sarlo, Beatriz, “No olvidar la guerra: sobre cine, literatura e historia”, Punto de Vista n° 49, Buenos Aires, agosto de 1994. Endereço URL: http://www.literatura.org/Fogwill/fsobpich.html. 94 Malvinas na UNIVERSIDADE Concurso de Ensaios 2012 Menção especial MALVINAS: “DOCE DE LEITE ESTILO COLONIAL” Carlos Sebastián Ciccone Carlos Sebastián Ciccone MALVINAS: “DOCE DE LEITE ESTILO COLONIAL ” 1 Carlos Sebastián Ciccone2 O nome destas ilhas evoca em todo argentino um inefável sentimento, parecido com o do pai cujo filho pequeno escapou. Não o viu mais, mas sabe que ele ainda vive e convalesce, apesar de que a imagem se desfaça, lá longe, há tempos. Raúl A. Ringuelet-1 Estamos transitando os primeiros passos de um novo século e, no entanto, é possível encontrar nele vestígios de séculos anteriores. Entre 1 O “doce de leite estilo colonial” é um doce de leite condensado muito conhecido na Argentina. O “estilo colonial” é uma de suas variedades, de consistência espessa, porém cremosa, obtido a partir da mistura de uma quantidade maior de caramelo com o leite. Acredita-se que a receita original do doce de leite da primeira metade do século XX tinha um sabor similar. 2 Sebastián Ciccone é estudante da Universidade Nacional do Sul e reside em Bahia Blanca. 96 Malvinas na UNIVERSIDADE Concurso de Ensaios 2012 estes, encontra-se a perduração de casos de colonialismo, modelo expansionista que beneficiou política e economicamente as potências europeias e, posteriormente, os Estados Unidos. O controle das Ilhas Malvinas por parte da Grã Bretanha é um claro exemplo disto. Com o passar dos anos, a disputa entre a Argentina e a Grã Bretanha pela soberania das ilhas ganhou tanta importância que acabou por transbordar as fronteiras da esfera política, instalando-se em todos os âmbitos da sociedade. Basta observar um jogo de futebol, esporte popular por excelência na Argentina, para perceber isso. Em primeiro lugar, por meio de uma revisão dos argumentos geográficos e históricos que se constituíram, ao longo do século XX, nas bases da reclamação de soberania do Estado argentino, procurarei representar o panorama atual da “questão das Malvinas” com o objetivo de entender por que é necessário buscar novos argumentos. O que vou expor neste ensaio é um plano de ação baseado na aplicação conjunta de três estratégias: a política de aproximação à população, a elaboração de um projeto de integração a partir do caso de Hong Kong – reconhecendo que, no arquipélago, a Constituição vigente é a promovida pelo Reino Unido – e a reforma da Constituição Argentina como ferramentas para tornar efetiva a soberania argentina sobre as ilhas. O projeto aqui proposto se relaciona diretamente com a busca e a construção de um processo de integração das Malvinas e de seus habitantes, com aceitação de sua realidade jurídica, histórica, social e política. Portanto, a análise em linhas gerais do contexto prévio visa à compreensão de que, embora as Malvinas pertençam por inúmeros direitos à Argentina, elas são habitadas por pessoas que, em sua maioria, identificam-se com a Grã Bretanha, seja por laços sanguíneos ou por posicionamentos ideológicos. Bases da reivindicação Ao longo da história, a Argentina tentou, de diversas formas, recuperar um espaço que reclama como parte de seu território: as Ilhas Malvinas. 97 Carlos Sebastián Ciccone Os argumentos para a reclamação de soberania são vários e, embora muitos de seus direitos sejam legítimos, são frequentemente confrontados e desacreditados como inválidos no concerto internacional. O primeiro dos fundamentos é geográfico e se baseia tanto no pertencimento das ilhas à plataforma continental argentina como em sua proximidade com o continente americano. As Ilhas Malvinas são um arquipélago localizado numa das regiões mais austrais do Atlântico Sul, composto por mais de cinquenta ilhas (as duas maiores são a Grande Malvina e a Soledad) e uma centena de ilhotas de menor tamanho. Em termos geológicos, diz-se que estas ilhas são uma prolongação do continente americano e da cordilheira dos Andes, conformando “um arco que começa na primeira destas ilhas e que 2 conclui nas terras de San Martín”. Além disso, a proximidade geográfica entre as ilhas e a Argentina é notória. A Ilha dos Estados, próxima à Terra do Fogo, encontra-se a somente 345 quilômetros da Grande Malvina; Río Gallegos, a 760 quilômetros de Puerto Argentino; e a Cidade de Buenos Aires, a aproximadamente dois mil quilômetros. A herança do território insular ora pertencente à Coroa espanhola foi (e continua sendo) o argumento principal no qual se apoia o Estado argentino. Seu fundamento reside nos seguintes pontos: a atribuição do descobrimento a navegantes a serviço da Espanha, as bulas papais do século XV, o tratado de Tordesilhas de 1494 e a ocupação efetiva das ilhas. O descobrimento das Ilhas representa um fato controverso para a historiografia mundial, já que Portugal (Américo Vespúcio, em 1501/1502), a Espanha (Fernão de Magalhães, em 1520; Alonso de Santa Cruz, em 1540), a Inglaterra (Davis, em 1541; Hawkins, em 1594) e a Holanda (Sebald de Weert, em 1600) disputam a façanha. No entanto, é quase impossível determinar com exatidão quem foi seu verdadeiro descobridor. 98 Malvinas na UNIVERSIDADE Concurso de Ensaios 2012 Durante a Idade Média, segundo a palavra de Santo Agostinho, o mundo era propriedade de Deus, sendo o Papa, seu representante na terra, o encarregado de administrar suas posses. Por isso, com a Inter caetera de 1493, Alexandre VI concedeu a Castilha e a Portugal o direito de conquistar e colonizar todas as terras e as ilhas que descobrissem, fixando como limite entre as potências uma linha imaginária traçada a 100 léguas ao oeste de Cabo Verde e dos Açores – transferida, posteriormente, para 270 léguas no sentido oeste com o Tratado de Tordesilhas. Nesta bula, além disso, ambas as partes se comprometiam a não se intrometer no território da outra.4 A legitimidade papal começou a ser questionada no contexto da Reforma, quando os príncipes não católicos desconheceram a validade das bulas e se opuseram ao monopólio hispano-português sobre o continente americano. Assim, a necessidade de colonizar esses territórios se transformou num novo argumento legitimador de soberania. Agindo em função desta nova doutrina, a França estabeleceu a primeira colônia nas Malvinas. Assim, no dia 17 de março de 1764, Bougainville fundou Port Louis, em nome de (e em homenagem a) Luís XV. A colônia e seus trinta habitantes, que se estabeleceram na Ilha Soledad, ficaram a cargo de Nerville, ao passo que Bougainville regressou à França para voltar, no ano seguinte, com reforços para a colônia. Diante deste fato, a Espanha respondeu diplomaticamente com uma indenização para o empresário francês; assim, a Coroa espanhola conseguiu, em 1767, tornar efetivo seu domínio sobre as Malvinas. A partir daquele momento, exerceu a administração absoluta e ininterrupta do arquipélago até fevereiro de 1811, quando os espanhóis instalados nas ilhas foram transferidos para Montevidéu a fim de concentrar forças militares para combater a revolução rio-platense. Com a nomeação do primeiro governador das Malvinas, representante da Coroa espanhola, “as Ilhas foram declaradas dependentes e subordinadas à Capitania-Geral de Buenos Aires, o que significou sua 5 integração ao território do Rio da Prata”. 99 Carlos Sebastián Ciccone Um dado importante que não deve ser esquecido na análise do processo de ocupação das Ilhas é a presença britânica. Em 1765, o inglês John Byron aportou nas Ilhas, declarando-as propriedade do rei da Inglaterra e fundando Port Egmont na Ilha de Saunders (Ilha da Trindade, para a Argentina) sem estabelecer ali nenhuma colônia. No ano seguinte, os representantes ingleses formaram uma colônia em Port Egmont, que conviveu nas Ilhas com a colônia francesa durante um curto período. Quando a notícia da presença inglesa chegou à Espanha, Carlos III ordenou ao governador portenho sua expulsão. Para estes fins, o funcionário espanhol enviou uma carta a Hunt, que desde 1767 comandava os colonos britânicos, advertindo-lhe que devia se retirar das Ilhas. A resposta inglesa foi negativa e, além disso, exigia à população hispânica que abandonasse o assentamento. Após vários enfrentamentos, as potências pactuaram em Londres (em 1770) voltar ao statu quo, reafirmando, ambas, seus direitos sobre as ilhas.6 O abandono derradeiro ocorreu em 1774, quando a Coroa inglesa, sem tentativas posteriores de voltar a se estabelecer nas Ilhas, alegando que a colônia gerava muitos gastos, decidiu delas se retirar, deixando nas proximidades do forte uma placa com a inscrição de que “the Falkland islands” se mantinham sob sua propriedade. Após o abandono britânico das Ilhas, consolida-se a posse efetiva e incontestada da Espanha de 1767 a 1810. Curiosamente, durante esses anos, foi firmado um dos acordos que garantem a não intromissão política da Inglaterra na região. Estamos nos referindo à Convenção de São Lourenço, mais especificamente a seu artigo sexto, que proibia o estabelecimento de ingleses nas costas oriental e ocidental da América do Sul e de suas ilhas adjacentes, embora lhes desse a liberdade de nelas desembarcar e construir cabanas para fins de pesca. Com a separação das Províncias Unidas do Rio da Prata da Espanha, estas se constituíram, segundo as normas internacionais, em herdeiras natas de todos os direitos e deveres que a Mãe Pátria tinha com relação àquelas terras. 100 Malvinas na UNIVERSIDADE Concurso de Ensaios 2012 Em 1820, quase dez anos após a partida dos espanhóis que habitavam as ilhas, as Províncias Unidas do Rio da Prata enviaram uma fragata sob o mando do Coronel Jewett, formalizando a posse em nome do governo rio-platense em seis de abril daquele ano. O ato se apoiou no princípio do uti possidetis, segundo o qual a soberania é definida com base nos antigos limites administrativos coloniais. No entanto, o estabelecimento efetivo nas Ilhas só foi realizado em 1826, com Vernet. A irrupção inglesa não se produziu senão em 1833, quando o comandante Onslow hasteou a bandeira britânica e obrigou os argentinos estabelecidos nas Malvinas a abandonar o solo insular. Seis 3 meses depois desse episódio, um grupo de criollos que trabalhavam na região se rebelou contra a nova situação: seu líder era o mítico gaúcho Antonio Rivero. Vários meses depois, a rebelião foi sufocada e seus protagonistas, ajuizados. O ano de 1833 marcou o início de uma contínua presença britânica nas Ilhas do Atlântico Sul, reforçada por uma política de colonização do espaço por meio do transplante populacional. O estabelecimento de cidadãos ingleses em território malvinense, feito de forma estratégica, transformou-se no principal argumento da Inglaterra para legitimar seu direito sobre as Ilhas, orientado, posteriormente, pela ideia da “autodeterminação”. O transplante populacional pode ser uma faca de dois gumes para a potência europeia: pelo simples fato de os habitantes não serem originários das Malvinas, fica descartada uma possível reclamação de 9 autodeterminação, o que é ainda mais ilógico se considerarmos que tanto os órgãos governamentais – administrativos e legais – como a saúde e a economia do arquipélago são claramente influenciados pelas decisões do Parlamento. 10 De acordo com o especialista em filosofia política Ernesto Laclau, de cujo ponto de vista compartilhamos, a autodeterminação fica descartada porque os habitantes das ilhas não são parte de uma etnia. Das 3000 pessoas que nelas se encontram, a maioria – 2500 – é de 101 Carlos Sebastián Ciccone ingleses, embora haja também um grande número de chilenos e, em menor medida, de uruguaios. Além disso, uma boa parte dos habitantes de cultura britânica decide, uma vez aposentada, continuar sua vida no sul da Inglaterra, não se podendo, portanto, dizer que exista uma cultura malvinense. A tentativa de conquista da autodeterminação é uma estratégia clássica empregada pelas metrópoles para a imposição de um neocolonialismo sobre suas colônias já independentes. Ela se baseia no controle da economia e dos recursos naturais por parte das potências e, como é bem sabido, o controle econômico limita a autonomia política dos novos Estados. Status jurídico das ilhas Conforme já foi destacado, elaborar um projeto que omita a situação atual das Malvinas é incorrer no erro de empreender propostas idealistas, totalmente absortas da realidade. Por isso, devemos considerar os seguintes aspectos: há vários anos, as ilhas fazem parte da Commonwealth of Nations, organização de países independentes que possuem laços históricos com a Coroa britânica e que tem como fim a cooperação internacional no âmbito político e econômico. Atualmente, cinquenta e três países integram esta organização (desde 1950, fazer parte dela não implica submissão alguma à coroa), sendo Moçambique o único deles que não tem vínculos históricos com a Grã Bretanha. Através da Comunidade de Nações, a Inglaterra exerce uma grande influência em todo o mundo, pois a organização congloba aproximadamente um bilhão e 922 milhões de pessoas nos cinco 11 continentes (quase um terço da população mundial). As Ilhas fazem parte do “Território Britânico Ultramarinho”, circunscrição que se encontra sob a soberania do Reino Unido, mas que não faz parte do reino, como é o caso da Grã Bretanha ou da Irlanda do Norte. 102 Malvinas na UNIVERSIDADE Concurso de Ensaios 2012 Outro aspecto que é necessário considerar é que a Grã Bretanha foi capaz de dotar aos “Falkland islanders” de uma constituição. Há mais de duas décadas que os habitantes das ilhas têm sua própria Carta Magna, que entrou em vigência em 1985, sendo reformada em 1997 e em 2008. Nela, estabelece-se que os habitantes gozam de um governo próprio; no entanto, sua máxima autoridade, o governador (que, de acordo com o artigo 37 da constituição das Ilhas, possui superpoderes) é eleito pela rainha Isabel II. Além disso, é o Reino Unido que se encarrega da proteção, das relações exteriores e dos assuntos de negócios das Malvinas. É preciso esclarecer que as leis votadas pela Câmara são sujeitas à aprovação da Rainha, representada pelo Ministro das Relações Exteriores. Desta forma, o grau de autonomia do qual os habitantes das Ilhas falam é limitado. Além de estarem sujeitos às decisões da Grã Bretanha, não existem partidos políticos (não há nem mesmo um regime de partido único), sendo o governo ocupado por cidadãos independentes. Diante do exposto, somado a que os malvinenses não gozam de representação no Parlamento britânico, podemos dizer que as Ilhas Malvinas se encontram “numa situação de dependência total própria dos territórios não autônomos do artigo 73 12 da Carta das Nações Unidas, conhecidos como colônias” .13 Projetar é pensar no futuro O Dicionário da Real Academia Espanhola define “projeto” como “plano e disposição que se forma para a realização de um tratado ou para a execução de algo importante”.14 Tal como se pode apreciar na definição, fazer um projeto implica construir um plano, isto é, uma base ou estrutura sobre a qual se assenta um tratado ou algo importante: são estes os alicerces que sustentam as ações ou consequências futuras. A elaboração de um projeto sobre as Ilhas Malvinas que aborde aspectos sociais, jurídicos, administrativos, econômicos e culturais 103 Carlos Sebastián Ciccone permitiria à Argentina estar preparada para enfrentar melhor um processo de incorporação das Ilhas a seu circuito econômico e político, mas, principalmente, de integração entre as populações do continente e da ilha, respeitando as peculiaridades de cada comunidade. Considerando que a diplomacia argentina tem se focado na reclamação de soberania com objetivos que têm apontado, basicamente, para um presente ou um futuro imediato, um antecedente que poderia servir de referência para a construção de um projeto de médio ou longo prazo é a política de aproximação com os malvinenses, iniciada no fim dos anos sessenta e interrompida com a morte do general Juan Domingo Perón, cujo sucesso se refletiu na proposta britânica de soberania compartilhada.15 Desde o fim dos anos sessenta, o Estado argentino se propôs construir laços que propiciassem um contato fluido com a comunidade 16 kelper, colocando à sua disposição direitos e serviços que, pouco a pouco, geraram uma mudança na visão da população insular sobre a Argentina. Por isso, a partir de 1969 – porém, com maior ênfase depois de 1971 –, foram dados os primeiros passos para o estabelecimento de comunicações diretas entre o continente e o arquipélago: linhas marítimas e aéreas, incorporação de professores de espanhol à educação dos habitantes das ilhas, acesso dos habitantes insulares às instituições educacionais da Argentina, visitas de barcos turísticos, ampliação das facilidades do único aeroporto, abastecimento de combustível (com a instalação da YPF na Ilha), entre outras facilidades hospitalares para melhorar suas condições de vida, demonstrandolhes, assim, os benefícios de fazer parte de um Estado localizado a menos de treze mil quilômetros de distância. Graças às conquistas alcançadas, uma grande quantidade de países de diferentes lugares do mundo elogiou a iniciativa do governo argentino. A Resolução 3160, elaborada no dia 14 de dezembro de 1973 pelas Nações Unidas, é a máxima expressão de “reconhecimento pelos contínuos esforços realizados”.17 Uma das consequências mais importantes desta resolução foi a proposta realizada pelo governo 104 Malvinas na UNIVERSIDADE Concurso de Ensaios 2012 britânico em 1974, que previa o estabelecimento de uma administração conjunta e de uma soberania compartilhada sobre as Ilhas durante vinte e cinco anos; uma vez finalizado este prazo, a soberania seria argentina. Convém assinalar que a aceitação por parte da Argentina foi adiada porque os conflitos internos eram cada vez maiores, e finalmente descartada com a morte do general Juan Domingo Perón. A construção de boas relações – baseadas, principalmente, no oferecimento de benefícios que melhorem as condições de vida da população insular – favorecerá uma nova percepção dos falklanders de que o Estado e a sociedade argentina não têm más intenções para com eles, ajudando-lhes a deixar de lado todos os preconceitos que a guerra de 1982 e a propaganda do governo britânico instalaram no imaginário que eles têm dos “argentinos”. Este seria um primeiro grande passo: o contato fluido com os habitantes das Ilhas será um incentivo para que o Estado argentino considere a possibilidade de incorporá-los como um terceiro ator na disputa, deixando de lado a necessidade de depender do bilateralismo e da existência ou não de disposição para o diálogo por parte da Grã Bretanha (algo que o embaixador Argüello e seu It takes two to tango consideram fundamental). Na elaboração deste tipo de projetos, os acontecimentos passados podem funcionar não só como uma ferramenta legitimadora de soberania, mas também como um instrumento capaz de proporcionar conhecimentos sobre a resolução de conflitos produzidos pela “descolonização”, isto é, pela retirada dos velhos impérios de terras coloniais. Não é só a história argentina que pode servir de exemplo. Pelo contrário, é indispensável ampliar a visão e observar como o resto dos Estados que foram vítimas do colonialismo enfrentaram a invasão estrangeira. Com relação a isto, um caso que pode ser tido como referência é o de Hong Kong. Ampliando horizontes: o caso de Hong Kong Com o objetivo de encontrar uma proposta viável para resolver a 105 Carlos Sebastián Ciccone “questão das Malvinas”, intelectuais de todo o mundo fizeram extensas comparações com diversos exemplos de colonialismo, chegando a diferentes propostas sobre o status jurídico que ela deveria adquirir. Assim, podemos encontrar análises sobre as semelhanças e diferenças entre as Malvinas e as Ilhas Alanda, arquipélago que pertence à Finlândia, situado geograficamente no mar Báltico, entre a costa finlandesa e a Suécia, com população majoritária de origem sueca. O conflito nestas ilhas bálticas foi solucionado quando, em 1922, o governo finlandês concedeu um alto grau de autonomia política e de respeito à cultura local em troca do desconhecimento das reivindicações suecas. Outro caso é o paralelo estabelecido entre as ilhas do Atlântico Sul e Gibraltar, estando ambos os conflitos sem solução até o momento. Esses territórios “refletem um mesmo processo: a árdua transição vivida por alguns domínios imperiais quando quiseram passar do mundo dos impérios para o das nações”. 18 O último exemplo, considerado o mais apto para estabelecer uma comparação com o caso das Malvinas, é o de Hong Kong. As semelhanças entre o caso de Hong Kong e o das Malvinas são várias. O primeiro aspecto a ser salientado é que ambos os territórios se encontram a uma considerável distância da Grã Bretanha e, no entanto – como consequência da política imperialista britânica, mantida durante todo o século XIX –, foram apropriados pela Inglaterra (apesar de que, como veremos mais adiante, Hong Kong foi devolvida à China recentemente). Com o passar dos anos, a colônia asiática se 19 transformou na “pérola do Oriente”, foco de desenvolvimento econômico, industrial e financeiro na região; já as Malvinas, devido à sua grande variedade de recursos marinhos, mas principalmente por seus recursos petrolíferos, pode se transformar, em poucos anos, numa importante fonte de riquezas para o Reino Unido, na “pérola americana” .20 Embora as semelhanças ora apontadas devam ser consideradas, é 106 Malvinas na UNIVERSIDADE Concurso de Ensaios 2012 indispensável salientar que tanto as Malvinas como Hong Kong se transformaram em símbolos formadores de identidade, tendo a reclamação de soberania de ambos os territórios adquirido um caráter nacionalista. O caso de Hong Kong, tradicionalmente considerado parte do território chinês, “representou um desvio na tendência das antigas colônias britânicas, como a Índia e a África do Sul, a buscar a independência e ter um governo autônomo após um regime colonial”.21 Assim como as Malvinas para o povo argentino, os chineses consideraram que “o retorno de Hong Kong foi uma questão de orgulho nacional e de direito 22 soberano”. Ocupado pela Grã Bretanha em 1841, após a Primeira Guerra do Ópio, Hong Kong foi formalmente cedido pela China no ano seguinte no Tratado de Nanquim. Em 1898, a Convenção de Pequim determinou seu arrendamento por um período de 99 anos. Durante as duas últimas décadas do século XX, ambos os países entabularam negociações para chegar a um acordo. No dia 19 de dezembro de 1984, foi firmada a Declaração Conjunta Sino-Britânica, por meio da qual se pactuou que todos os territórios cedidos seriam devolvidos à República Popular da China em 1° de julho 23 de 1997. Deste modo , previa-se uma transição política que respeitasse, ao mesmo tempo, o sistema econômico capitalista que o Reino Unido tinha estruturado naquele território. Em 1997, após o processo de descolonização, Hong Kong se 24 transformou numa Região Administrativa Especial da república asiática. Desta forma, por um período de cinquenta anos, também estipulado de antemão, “Hong Kong se configuraria como uma administração especial, com independência de seus poderes executivo, legislativo e judiciário em relação ao governo central da República Popular da China, ao passo que sua política exterior e sua defesa dependeriam do governo comunista”.25 Em outras palavras, o território gozaria de um alto grau de autonomia, tanto em assuntos políticos e 107 Carlos Sebastián Ciccone econômicos como no resguardo dos direitos humanos e do império da lei, graças à entrada em vigência de uma Lei Fundamental (documento análogo a uma Constituição) regida por três princípios fundamentais, a saber: “um país, dois sistemas”, “alto grau de autonomia para Hong Kong” e “Hong Kong a cargo dos cidadãos de Hong Kong”. Hoje, há mais de duas décadas desde sua promulgação, a legislação do Congresso Nacional da China Popular – a Lei Básica – se transformou no roteiro de longo prazo para o desenvolvimento democrático de Hong Kong. Assim, ela oferece segurança constitucional, dotando a excolônia de autonomia, direitos humanos e império da lei, ao passo que serve como garantia para outros Estados na realização de acordos internacionais. Vários anos após sua integração ao território chinês, Hong Kong se apresenta como “um dos núcleos mais importantes da economia 26 internacional”, superando todos os temores gerados pelo convívio de um sistema capitalista imerso num sistema comunista, por um lado, e pela desconfiança com relação a uma possível submissão da população da Região Administrativa Especial às leis e à cultura chinesa, por outro. Os indicadores a seguir nos permitem apreciar que sua incorporação ao Estado chinês não trouxe limitações para o progresso econômico de Hong Kong: Crescimento médio do PIB real de 8,5% de 1974 a 1984, e de 6,0% de 1984 a 1994; PIB per capita de aproximadamente 22.000 dólares em 1995, superior ao da Grã Bretanha, Austrália e Japão, o segundo mais alto da Ásia Oriental; Maior porto de contêineres em termos de tráfego, encontrando-se entre os principais centros financeiros do mundo em transações bancárias externas e capitalização do mercado de valores.27 Como bem expressa o Relatório da Comissão ao Conselho e ao Parlamento Europeu em 2008, “o princípio de um país, dois sistemas foi respeitado e funciona bem para os habitantes de Hong Kong. É importante que o governo da RAE de Hong Kong continue gozando de grande autonomia em matéria econômica, comercial, fiscal, financeira 108 Malvinas na UNIVERSIDADE Concurso de Ensaios 2012 e normativa”. 28 Considerações finais: “a República não esquece que num 29 pedaço de seu território não se hasteia a bandeira nacional” O que tentamos propor neste ensaio é a aplicação conjunta das três políticas já expostas, isto é, a de aproximação à população, a de elaboração de um projeto de integração baseado no caso de Hong Kong que reconheça a vigência no arquipélago de uma Constituição promovida pelo Reino Unido, e a de reforma da Constituição Argentina. A primeira das políticas recomendadas, isto é, a construção de laços com a comunidade kelper, foi uma das ferramentas que melhores resultados trouxe para o Estado argentino. Seria interessante conseguir, como nos primeiros anos da década de setenta, uma aproximação que possibilite aos habitantes insulares obter os benefícios que o território continental pode lhes oferecer, demonstrando-lhes, desta forma, o quão vantajosa pode ser uma relação fluida com a Argentina. Um claro exemplo disso é a proposta de criação de um programa de bolsas de estudo para jovens malvinenses que desejem fazer cursos de graduação, pós-graduação, licenciaturas ou cursos técnicos na Argentina. Com o tempo, surgirão muitas ideias como esta, tendentes a alcançar esta aproximação, esta troca mútua fundamental para a geração de consenso em ambas as populações.30 A segunda pode ser uma ferramenta útil para a diplomacia argentina. Trata-se de um projeto, elaborado de antemão, que estipule a incorporação das Malvinas como parte do território de soberania argentina, bem como a possibilidade de que a população kelper se integre à sociedade argentina com um marco legal que respeite suas leis e sua cultura. É fundamental salientar que as principais características da sociedade argentina, cujas fontes principais de integração populacional são a diversidade e a plurietnicidade, dão maior viabilidade para este tipo de projetos. 109 Carlos Sebastián Ciccone A incorporação de um território sem considerar que nele existe uma população é um descuido que deve ser evitado, um erro que a história argentina já experimentou e que gerou polêmica, tanto no âmbito interno como externo: referimo-nos especificamente à equivocamente chamada “Campanha do Deserto”, na qual “deserto deve ser entendido como sinônimo de barbárie ou, em outras palavras, como vazio de civilização”.31 Nesta campanha, como sua própria denominação demonstra, as comunidades que habitavam o solo patagônico não foram respeitadas; tampouco sua forma de organização política e econômica. Os militares, influenciados pela concepção ideológica hegemônica na época, o positivismo, empreenderam o massacre, a marginalização e a exclusão das comunidades indígenas com o objetivo de “ocupar” a Patagônia com população branca de origem europeia. Recuperar a soberania das Ilhas não significaria obrigar os habitantes a mudar sua forma de vida e muito menos impor-lhes uma cidadania, pois a soberania se exerce sobre um território, e não sobre uma população. Considerando que muitos argentinos possuem dupla cidadania, seria coerente a possibilidade de que os falklanders conservassem a cidadania britânica, podendo também ter acesso à argentina. A última estratégia proposta tem a ver com a Constituição argentina. Contraditoriamente à importância do assunto, a questão das Malvinas é tratada na Constituição somente numa das Disposições Transitórias, 32 mais exatamente, na primeira. Cumpre esclarecer que, conforme estabelecido na Constituição argentina, os malvinenses habitam um território que faz parte da província da Terra do Fogo e Ilhas do Atlântico Sul, sendo considerados sujeitos de direito como o resto dos habitantes da Argentina. Atualmente, aproveitando o amadurecimento que os argentinos alcançaram na esfera civil e política, é pertinente considerar, como ponto de partida, a ideia de se adaptar a Constituição nacional para que, agindo dentro dos marcos da lei, seja possível empreender um projeto de características similares às do elaborado pela China e a Grã 110 Malvinas na UNIVERSIDADE Concurso de Ensaios 2012 Bretanha para a integração de Hong Kong ao território da república comunista. Para isso, o artigo 31 da Constituição da República Popular da China pode servir como referência, pois é iminente incorporar a noção de Região Administrativa Especial. A proposta ora lançada tem vantagens sobre uma suposta incorporação das Ilhas com o status de “província”.33 Ser apenas mais uma divisão do território argentino pode ser interpretado pelos malvinenses como uma subjugação ao Estado argentino e, de certo modo, como uma “perda de liberdades” (algo que hoje eles não têm). Se o que se quer é terminar com o predomínio de uma potência europeia no continente americano, devemos abrir nosso horizonte de análise e considerar os acontecimentos e a história de todos os Estados; mais especificamente, como se deu a luta contra o imperialismo no resto do mundo. Por isso, é necessário começar a observar como a China, que dia após dia se reafirma como potência mundial, conseguiu superar essas adversidades. O contexto da atualidade pode ser propício para isto, já que a Argentina construiu boas relações com a potência asiática; no entanto, o Estado argentino não pode incorrer no erro de limitar essa relação à concreção de acordos econômicos e políticos, devendo, pelo contrário, ampliar a diplomacia aos âmbitos da educação e da cultura. A sociedade civil e política argentina deve deixar de lado uma das ideias que condicionou a política exterior argentina: depender da aceitação ou não do governo britânico para dialogar sobre a questão da soberania. Pensar que a participação da Grã Bretanha na solução do 34 conflito é indispensável significa uma leitura incompleta da realidade. O Estado argentino deve, de uma vez por todas, propor as regras do jogo com base em dois fatores fundamentais: o primeiro deles é ter conseguido fazer da problemática das Malvinas uma “causa nacional”, isto é, que os principais partidos políticos do país adotassem uma política unificada com relação à reclamação internacional de soberania sobre o arquipélago. As Ilhas Malvinas foram um dos pilares 111 Carlos Sebastián Ciccone fundamentais da identidade argentina, “o lugar onde, ao fim e ao cabo, os argentinos voltavam a se juntar como nação, isto é, independentemente das bandeiras ideológicas e políticas”,35por isso, hoje (em 2012) a sociedade civil e política argentina superou suas divergências. O segundo fator fundamental, por sua vez, é pela primeira vez na história ter obtido o apoio de todos os países da América do Sul (aliado a um dos países a caminho de se tornar uma potência: o Brasil). Assim como o doce de leite, as Malvinas são um dos símbolos de identidade mais importantes e representativos do povo argentino. Sua perpetuação como colônia britânica significa uma dívida pendente, uma ferida no orgulho não só de cada um dos habitantes do nosso país, mas também de cada latino-americano. Recuperar nossa querida 36 “irmãzinha perdida” e romper os laços do imperialismo só depende de nós. Notas 1 - Doutor em Ciências Naturais e pesquisador argentino falecido em 1982 sem ter podido estudar a fauna malvinense. 2 - Pablo CAMOGLI, Batallas de Malvinas. Todos los combates de la Guerra del Atlántico sur, Aguilar, 2007, p. 22. 3 - Pelo contrário, Londres, a capital do Reino Unido, encontra-se a uma distância considerável: 14.000 quilômetros. 4 - “O direito público europeu reconhecia no Sumo Pontífice a autoridade necessária para dispor dos territórios não sujeitos a príncipes cristãos e atribuí-los, em plena soberania, a quem neles pudesse difundir a relegião católica”, Dictamen de la Academia Nacional de la Historia: Los derechos argentinos sobre las Islas Malvinas, em Los derechos argentinos sobre las Islas Malvinas, Buenos Aires, 1964, págs. 6386. 5 - Mario Hernández SÁNCHEZ BARBA, “Las islas Malvinas en la órbita del Imperio británico”, Cuenta y razón, nº 7, Buenos Aires, 1982, págs. 111-118. 6 - Na historiografia, muito já se falou sobre um acordo secreto no qual se pactuava que, uma vez reparada a honra de Sua Majestade Britânica com a restituição de Port Egmont, os ingleses deveriam abandonar a ilha. Para mais informações, vide: Julius GOEBEL, La pugna por las Islas Malvinas. Un estudio de la historia legal y diplomática, Buenos Aires, 1951. 7 - Para mais informações sobre a “herança da Mãe Pátria”, vide: Ricardo ZORRAQUIN BECÚ, “Aspectos jurídicos y morales en la historia de las Malvinas”, em Los derechos 112 Malvinas na UNIVERSIDADE Concurso de Ensaios 2012 argentinos sobre las Islas Malvinas, Buenos Aires, 1964, págs. 47-60. 8 - A intervenção britânica em território sul-americano revelou vários aspectos da política internacional, entre eles o quão ambígua e relativa era a Doutrina Monroe, principalmente devido à não intervenção dos Estados Unidos. 9 - Tudo isso invalida a possibilidade de realização de um plebiscito para que os kelpers decidam entre a autodeterminação e o pertencimento ao Estado inglês ou ao Estado argentino. Conforme bem expressado pelo cientista político argentino Bruno Bologna em sua palestra “Malvinas: política de Estado”, ministrada nas “Primeiras jornadas interdisciplinarias sobre a questão das Malvinas na UNS”, realizadas de 4 a 8 de junho de 2012 na cidade de Bahia Blanca, “se a Argentina enviasse 3000 argentinos para viver nas ilhas, o plebiscito seria totalmente favorável ao nosso país”. 10 - Jornal Tiempo Argentino, “Mi posición es la opuesta”, entrevista com Ernesto Laclau, 25/02/2012. Endereço URL: http://tiempo.infonews.com/2012/02/25/argentina-68642-mi-posicion-es-laopuesta.php [Consulta realizada no dia 22 de julho de 2012]. 11 - Para mais informações sobre o status jurídico das ilhas, vide María Florencia CASIM, “El estatus jurídico de las Islas Malvinas según el ordenamiento jurídico británico”. Endereço URL: http://www.ara.mil.ar/archivos/Docs/79Florencia.pdf [Consulta realizada no dia 17 de julho de 2012]. 12 - “Artigo 73. Os Membros das Nações Unidas, que assumiram ou assumam responsabilidades pela administração de territórios cujos povos não tenham atingido a plena capacidade de se governarem a si mesmos, reconhecem o princípio de que os interesses dos habitantes desses territórios são da mais alta importância, e aceitam, como missão sagrada, a obrigação de promover no mais alto grau, dentro do sistema de paz e segurança internacionais estabelecido na presente Carta, o bem-estar dos habitantes desses territórios e, para tal fim, se obrigam a: a) assegurar, com o devido respeito à cultura dos povos interessados, o seu progresso político, econômico, social e educacional, o seu tratamento equitativo e a sua proteção contra todo abuso; b) desenvolver sua capacidade de governo próprio, tomar devida nota das aspirações políticas dos povos e auxiliá-los no desenvolvimento progressivo de suas instituições políticas livres, de acordo com as circunstâncias peculiares a cada território e seus habitantes e os diferentes graus de seu adiantamento; c) consolidar a paz e a segurança internacionais; d)promover medidas construtivas de desenvolvimento, estimular pesquisas, cooperar uns com os outros e, quando for o caso, com entidades internacionais especializadas, com vistas à realização prática dos propósitos de ordem social, econômica ou científica enumerados neste Artigo; e e)transmitir regularmente ao Secretário-Geral, para fins de informação, sujeitas às reservas impostas por considerações de segurança e de ordem constitucional, informações estatísticas ou de outro caráter técnico, relativas às condições econômicas, sociais e educacionais dos territórios pelos quais são respectivamente responsáveis e que não estejam compreendidos entre aqueles a que se referem os Capítulos XII e XIII da Carta. Endereço URL: http://www.un.org/spanish/aboutun/charter.htm#Cap11 [Consulta realizada no dia 17 de julho de 2012]. 13 - María Florencia CASIM, “El estatus jurídico de las Islas Malvinas según el 113 Carlos Sebastián Ciccone ordenamiento jurídico británico”, p. 87. 14 - Diccionario de la Lengua Española, Vigésimo segunda edição. Endereço URL: http://lema.rae.es/drae/?val=proyecto [Consulta realizada no dia 16 de julho de 2012]. 15 - É preciso descartar as políticas de aproximação que tendem a um contato superficial com os habitantes das Ilhas, como, por exemplo, a implantada por Menem e o chanceler Di Tella (baseada em presentes de Natal, livros, etc.): “Infelizmente, a consequência de todos estes esforços foi que não só não ajudaram a que os habitantes das Ilhas revissem sua posição sobre as relações com o continente e a possibilidade de que a Argentina se aproximasse de seu objetivo, mas, pelo contrário, fizeram aumentar a rejeição para com o ministro das Relações Exteriores, que (apesar de seu cargo) foi impedido de visitar as Ilhas, e para com o governo argentino em geral”, Sebastián GIL, Las islas Malvinas y la política exterior argentina durante los '90s: Acerca de su Fundamento Teórico y de la Concepción de una Política de Estado, Consejo Argentino para las Relaciones Internacionales, Serie de Documentos de Trabajo en Internet (DTI), DTI n°: 1, 1999, págs. 8-9. 16 - Os insulares têm esse apelido porque as ilhas são rodeadas por grandes algas marinhas chamadas kelp. 17 - Resolução 3160 das Nações Unidas. Endereço URL: www.dipublico.com.ar/instrumentos/136.pdf [Consulta: 17 de julho de 2012]. 18 - Mariano GRONDONA, “Malvinas, Hong Kong y Gibraltar”, La Nación, Buenos Aires, 5 de abril de 2012. 19 - María Victoria LÓPEZ LÓPEZ, “El estatuto jurídico-político de Hong Kong en la República Popular de China”, p. 293. 20 - O Brasil chamou o Atlântico Sul de “Amazonas azul”. 21 - Robert GAGE, “Hong Kong: una perspectiva de interconexión sobre la Región Administrativa Especial de China después de su primer aniversario”, Gestión y Política Pública, primeiro semestre, ano/volume X, n° 1, p. 127. 22 - Ibidem. 23 - “Em 19 de dezembro de 198, a primeira ministra inglesa Margaret Thatcher e seu homólogo chinês Zhao Ziyang firmaram a Declaração Conjunta, cujo propósito era o estabelecimento do marco jurídico dentro do qual seriam realizadas tanto a reversão de Hong Kong à soberania chinesa como o próprio governo dos territórios a partir de então”. Arturo SANTA CRUZ, “Un país, dos sistemas, ¿por cuánto tiempo?”, México y la Cuenca del Pacífico, vol. 5, núm.16, maio/agosto de 2002, p. 22. Endereço URL: http://148.202.18.157/sitios/publicacionesite/pperiod/pacifico/Revista16/04Arturo.pdf. 24 - Artigo 31 da Constituição da República Popular da China: “O Estado pode criar regiões administrativas especiais sempre que necessário. Os regimes a instituir nas regiões administrativas especiais deverão ser definidos por lei a decretar pelo Congresso Nacional Popular à luz das condições específicas existentes”. 25 - María Victoria LÓPEZ LÓPEZ, “El estatuto jurídico-político de Hong Kong en la República Popular de China”, p. 292. 26 - Ibidem. 27 - Juan Antonio CLEMENTE SOLER, “El proceso de descolonización de la Región Administrativa Especial de Hong Kong”, Anales de Derecho, Núm. 27, 2009, p. 278. 114 Malvinas na UNIVERSIDADE Concurso de Ensaios 2012 28 - Relatório da Comissão ao Conselho e ao Parlamento Europeu. Relatório Anual Hong Kong 2008. María Victoria LÓPEZ LÓPEZ, “El estatuto jurídico-político de Hong Kong en la República Popular de China”, p. 304. 29 - Ricardo CAILLET-BOIS, Una tierra argentina: las islas Malvinas, Buenos Aires, 1948. 30 - “Senado: Proponen implementar becas de estudio para jóvenes malvinenses”, Sur54.com. Endereço URL: http://sur54.com.ar/senado-proponen-implementar-becasde-estudio-para-jovenes-malvinenses. 31 - Susana BANDIERI, “Ampliando las fronteras: La ocupación de la Patagonia”, Nueva Historia Argentina. El progreso, la modernización y sus límites (1880-1916), tomo V, Buenos Aires, Sudamericana, 2000, p. 129. 32 - “A Nação Argentina retifica sua legítima e imprescritível soberania sobre as Ilhas Malvinas, Georgias do Sul e Sandwich do Sul e os espaços marítimos e insulares correspondentes, por serem parte integrante do território nacional. A recuperação de tais territórios e o exercício pleno da soberania, respeitando o modo de vida de seus habitantes, e conforme aos princípios do direito internacional, constituem um objetivo permanente e irrenunciável do povo argentino”. 33 - “Sobre cómo podría ser la incorporación legal de Malvinas a la Argentina”. Endereço URL: http://comunicacionpopular.com.ar/sobre-como-podria-ser-laincorporacion-legal-de-malvinas-a-la-argentina/. 34 - Atualmente, as numerosas resoluções da ONU que exigem que ambos os países retomem o diálogo para chegar a um acordo são passadas por alto, sendo consideradas como “letra morta”. 35 - Alejandro GRIMSON; Mirta AMATI e Kaori KODAMA, “La nación escenificada por el Estado. Una comparación de rituales patrios”, Pasiones nacionales. Política y cultura en Brasil y Argentina. Edhasa, 2007, p. 438. 36 - Forma como o cantor argentino Atahualpa Yupanqui chamou as ilhas. 115 116 Malvinas na UNIVERSIDADE Concurso de Ensaios 2012 Menção especial A FALKLANDS FORTRESS A construção da questão das Malvinas como questão latino-americana ante o paradigma neocolonial britânico no Atlântico Sul Federico Martín Gómez Federico Martín Gómez A FALKLANDS FORTRESS A construção da questão das Malvinas como questão latino-americana ante o paradigma neocolonial britânico no Atlântico Sul Federico Martín Gómez1 O fim da guerra no Atlântico Sul, em 14 de junho de 1982, fez nascer um sério debate sobre o futuro militar das Ilhas Malvinas no seio do governo britânico. Esta discussão se centrava em duas instâncias: por um lado, na situação de enfrentamento e de ameaça em função do conflito latente com a República Argentina, e por outro, na projeção das Ilhas como posição estratégica no tabuleiro da Guerra Fria. 1 Fernando Gómez é bacharel em Ciências Políticas e Relações Internacionais pela Universidade Católica Argentina (Regional La Plata) e atualmente cursa o mestrado em Relações Internacionais no Instituto de Relações Internacionais da Universidade Nacional de La Plata (UNLP). É secretário e membro pesquisador do Departamento das Ilhas Malvinas, Antártida e Ilhas do Atlântico Sul (IRI - UNLP). 118 Malvinas na UNIVERSIDADE Concurso de Ensaios 2012 Estas duas instâncias de caráter político-militar formaram o embasamento necessário para que o governo britânico de 1982, sob a liderança de Margaret Tatcher, tomasse a decisão de construir a maior base militar do hemisfério sul, fincada no Atlântico Sul, conhecida como Falklands Fortress. O objetivo deste trabalho é realizar uma aproximação sobre a origem e o desenvolvimento político-militar desta base a partir de uma dimensão histórico-diplomática, começando o estudo em meados da década de 1980 e advertindo sua potencialidade como fator político-militar, até chegar à posição construída pela Argentina com seu posicionamento estratégico de denúncia, bem como à solidariedade latino-americana contra este enclave colonial militar britânico no Atlântico Sul. O paradigma militar britânico no Atlântico Sul Com o fim da guerra no Atlântico Sul, em 14 de junho de 1982, o Governo britânico tomou a decisão de iniciar o fortalecimento militar defensivo das Ilhas Malvinas, Geórgia do Sul e Sandwich do Sul por meio da construção de uma base aérea com projeções em toda a região em conflito e, potencialmente, em todo o Atlântico Sul. A decisão do governo de Margaret Tatcher de dar início a essa construção seria baseada numa iniciativa para o desenvolvimento da economia das Ilhas, de acordo com as recomendações obtidas do Relatório Shackleton.1 No entanto, a potencialidade da base dentro do esquema da Guerra Fria haveria de trazer consigo uma nova variável: a projeção do conflito leste-oeste no Atlântico Sul. Assim, Rodolfo Terragno descreve a translação do conflito leste-oeste para o hemisfério sul, detalhando as características da nova base militar, que coordenaria esforços com outras bases militares do Reino Unido e da OTAN como a da Ilha de Ascensão. 119 Federico Martín Gómez Além disso, Terragno assinala que as variáveis operacionais desta base não se encontravam em outras instaladas pelo Reino Unido no resto do globo: A Grã Bretanha não tem outra base semelhante. Além das forças estacionadas na Alemanha Ocidental, somente em Hong Kong há um contingente militar britânico tão numeroso. Em relação ao número de habitantes, o das Malvinas é único: 7000 soldados cuidam de 1800 habitantes.2 Assim, tomada a decisão de construir esta nova base nas Ilhas, teria início um processo de concentração de forças militares de última geração, dando lugar a um novo paradigma de segurança e de presença imperial britânica no Atlântico Sul. Construção e características da base militar de Mount Pleasant (1982 a 1985) A política de segurança militar para os habitantes insulares adotada pelo Reino Unido, que criou uma instância física de defesa, foi concebida como uma necessidade imperiosa diante da situação de enfrentamento e da falta de declaração de cessar-fogo por parte da República Argentina, a qual só ocorreu nos anos noventa. A construção desta base exigiria a presença de pessoal acorde às diversas etapas de construção e às quantidades requeridas; é por isso que o contingente de pessoal durante sua construção nunca foi menor do que três mil soldados, sem contar os que estavam embarcados em navios que circundavam as águas das Ilhas. Desta maneira, o governo britânico estimou um investimento inicial de trezentos milhões de libras esterlinas para a construção da nova base área, índice da magnitude de seu esforço orçamentário final. Esta base substituiria o aeroporto próximo a Puerto Argentino, o qual, como consequência do conflito, finalizara suas operações após os bombardeios britânicos contra a presença de aeronaves e pessoal 120 Malvinas na UNIVERSIDADE Concurso de Ensaios 2012 militar argentino. A construção deste novo aeroporto, com arquitetura de uma base militar, teria duas projeções claras para as Ilhas e a população: a primeira delas era o contato entre os habitantes das ilhas e o Reino Unido, já que o aeroporto era apto para a aterrissagem de aeronaves de transporte; a segunda, por sua vez, referia-se a seu potencial como elemento de dissuasão para a Argentina. Com efeito, o próprio governo argentino, sob o comando do Dr. Raúl Alfonsín, planejou a estratégia de adotar “um estado de tensão suficientemente alto para que esta (a Grã 3 Bretanha) construísse uma base com alto custo de manutenção”. De acordo com a análise realizada por Gustafson (1988), a estratégia seguida pelo governo radical de Alfonsín foi abandonada no início de 1984, diante da atitude britânica de continuar com os investimentos para a construção e a finalização da base, demonstrando sua predisposição para enfrentar tais dispêndios. No processo de construção da base, a presença aeronaval nas Ilhas era exorbitante, chegando a cerca de doze navios, entre fragatas e destróieres, de um total de cinquenta embarcações em condições reais de enfrentar um conflito, além de cinco dos quatorze submarinos de propulsão pertencentes à marinha britânica. Com relação ao poder aéreo, contava-se com quatro interceptores F4 e entre quatro e seis Sea Harriers, além dos aviões de reabastecimento aéreo e de reconhecimento marítimo do tipo Hércules, bem como dos helicópteros Chinook, Sea King, Lynx, Scouts e Gazelles. As unidades antiaéreas eram compostas por unidades Rapier e Blowpipe e contavam, como apoio na identificação de objetos, com três estações de radares dispostos em linha, além de linhas de comunicação e de um sistema informático de alerta precoce. Em declarações realizadas para a imprensa britânica naquele momento, o subsecretário adjunto John Peters afirmou: […] embora o aeroporto atual seja adequado para os aviões da 121 Federico Martín Gómez guarnição, podendo servir como terminal de uma ponte aérea [...], é necessário dispor de pistas mais longas para o transporte estratégico às (e a partir das) ilhas.4 Com o objetivo principal de realizar sua pronta inauguração, como base estratégica das forças armadas britânicas, o governo de Margaret Tatcher prosseguiu a reestruturação financeira para arcar com os insumos necessários. Pouco antes da inauguração, o ministro das Relações Exteriores argentino Dante Caputo ideou uma estratégia de denúncias múltiplas em todos os organismos regionais e internacionais possíveis, bem como nos foros onde se pudesse denunciar a ameaça que, com o posicionamento do conflito leste-oeste nesse setor do hemisfério, a Fortaleza Falklands representava para a paz institucionalizada da região. Vários analistas interpretaram e refletiram sobre a questão em duas grandes dimensões: uns consideravam a presença de tropas de um país alheio à região como uma ameaça, outros, que a condição política do Reino Unido se devia a um condicionamento estabelecido pela Argentina, que lhe negava transporte e logística para dar seguimento ao desenvolvimento das Ilhas. Com a inauguração da base aérea e de suas instalações, seu potencial e sua projeção começavam a se revelar. A modificação do modo de proceder do governo argentino na esfera ictíica de negociações, bem como no gerenciamento do assunto, acarretou um endurecimento ante qualquer variável que introduzisse uma modificação no status da questão. Um exemplo disso, no qual são visíveis duas instâncias, uma militar e outra diplomática, foi o incidente com um navio pesqueiro de origem taiwanês que desconheceu a soberania argentina sobre as Ilhas e suas águas circundantes. Diante das negociações dilatadas por sua tripulação, ele foi afundado pela Guarda Costeira Argentina, 5 produzindo o falecimento de um de seus tripulantes; este incidente 122 Malvinas na UNIVERSIDADE Concurso de Ensaios 2012 acabou por derivar na instância militar e foi denunciado pelo governo inglês como “patrulhamento agressivo”. Com relação à instância diplomática, a criação de uma zona de exclusão unilateral chamada Zona Interina de Conservação e Administração Pesqueira (FICZ) compreenderia, se concretizada, uma área circundante às ilhas de 150 milhas. O protesto argentino não demoraria a chegar. A ação unilateral britânica foi consequência dos acordos de licenças de pesca realizados entre a Argentina e a URSS, que permitiam a esta ter acesso às zonas pesqueiras em conflito. Dali em diante, em vez de um continuum de negociações pacíficas, gerar-se-ia um impasse entre o governo de Raúl Alfonsín e os governos de Margaret Tatcher e de seu sucessor. O começo de uma consciência regional sobre a importância do Atlântico Sul. A Zona de Paz e Cooperação do Atlântico Sul A constituição da Zona de Paz e Cooperação do Atlântico Sul (ZPCAS), aprovada em 27 de outubro de 1986 pela resolução 42/16 das Nações Unidas, tinha em vista a busca de uma área livre de conflituosidade onde os materiais e armas nucleares fossem proibidos. A Argentina fez referência exata à potencial impossibilidade de existência dessa instância temporal-espacial devido à presença militar britânica no próprio Atlântico Sul, bem como às notícias e denúncias crescentes, realizadas por ONGs e cientistas da Europa – porém sem comprovação, 6 ao menos até aquela época –, sobre a existência de material nuclear nos navios que tinham sido afundados pelos ataques da Força Aérea Argentina e da aviação da Marinha argentina. Por ocasião da sexta reunião da ZPCAS, celebrada na cidade de Luanda (Angola) em 2007, os países membros da organização introduziram uma temática relacionada à questão nuclear, especificamente sobre seu uso militar. Entre seus pontos principais, a Declaração de Luanda 7 contém o seguinte item: Paz, estabilidade e segurança, inclusive na prevenção de 123 Federico Martín Gómez conflitos e na consolidação da paz na Zona. No documento final da reunião, observa-se um giro na percepção da questão nuclear: O direito inalienável de desenvolver a pesquisa, produção e utilização da energia nuclear com fins pacíficos foi afirmado. É claro que a não proliferação de armas de destruição em massa foi reforçada como objetivo comum. [...] A presença da energia nuclear com fins pacíficos no documento da reunião demonstra a vontade dos países de desenvolver esta tecnologia e utilizá-la em outros meios que não as armas.8 Esta declaração tem como antecedente a Declaração de Desnuclearização do Atlântico Sul. Como anexo ao documento final da reunião de Brasília (a terceira da ZPCAS), foi introduzido o seguinte conteúdo: - Avançar no processo de desarmamento das armas nucleares e de destruição em massa; - Necessidade de prevenção da proliferação de armas nucleares para provas, uso, fabricação, produção, aquisição, recepção, remontagem, instalação e posse. Desta maneira, o documento incentiva a criação de uma zona livre de armas nucleares no Atlântico Sul e lança um olhar sobre a presença nuclear britânica na região. A continuação das ações militares em Mount Pleasant Já entrado o ano de 1988, o Ministério da Defensa britânico formulou e divulgou a realização de um exercício militar de combate das três forças em conjunto, previsto para o mês de março. Adotando o nome de Fire Focus, o exercício envolveria o deslocamento de tropas e a implementação de um sistema defensivo moderno contra supostos 124 Malvinas na UNIVERSIDADE Concurso de Ensaios 2012 ataques armados provenientes de territórios próximos. Este foi o objetivo principal do Fire Focus: dissuadir toda e qualquer tentativa militar de uso da força, empregando, para isso, o potencial defensivo e de contra-ataque próprio da base, num exercício em que cada uma das três forças cumpriria sua função. Em números, a presença do Exército Real britânico se traduziu nas ações de mil homens da força, além dos aviões próprios da base, que empregavam as armas da Força Aérea e, completando a terceira arista do exercício militar, das embarcações envolvidas nas manobras, proporcionadas pela Marinha Real. Frente a esta intervenção e à modificação do status, contrários às resoluções das Nações Unidas, o Ministério das Relações Exteriores argentino iniciou, por ordem do Poder Executivo, um processo sistemático de denúncias nos organismos internacionais. A OEA e as Nações Unidas foram um âmbito propício para a reivindicação histórica argentina, tendo servido como canalizadores para a denúncia das ações britânicas. As posições adotadas pelos Estados latinoamericanos, embora divergentes, indicavam o início de uma tomada de consciência sobre a presença desta ameaça. O ministro das Relações Exteriores Dante Caputo apresentou tais denúncias, descrevendo que “a situação criada no Atlântico Sul pela decisão do governo do Reino Unido de realizar manobras militares nas 9 Malvinas (...)” representava uma fratura da vontade argentina de abrir o caminho do diálogo e da paz, proposta pelo governo de Alfonsín. Além disso, o governo argentino ordenou a mobilização de tropas em resposta à realização desses exercícios. Década de noventa: sedução e bilateralidade O início do governo de Carlos Menem e sua política exterior com relação à questão das Malvinas se caracterizam pela concreção dos acordos de Madri I (dezembro de 1989) e Madri II (fevereiro de 1990). Com eles, as relações diplomáticas com o Reino Unido foram reestabelecidas por meio da engenharia diplomática do “guarda-chuva de soberania”, isto 125 Federico Martín Gómez é, “a proteção dos direitos de cada parte no que concerne aos arquipélagos e espaços marítimos circundantes, mas, ao mesmo tempo, a retomada das relações diplomáticas, consulares e 10 econômicas”. Estes acordos gerariam instâncias de distensão na esfera militar, abrindo o caminho para os instrumentos diplomáticos e políticos, tais como o monitoramento e o aviso prévio sobre o trânsito de navios militares de ambos os Estados pela zona, entre outras medidas de coordenação e geração de confiança entre ambas as nações. A vinculação com os Estados Unidos por meio das “relações carnais” trouxe a melhora das relações com o Reino Unido e a busca de acordos e de cooperação, gerando uma instância temporal-espacial de concreção de acordos em matéria de hidrocarbonetos e de pesca. Somado a isso, a finalização do projeto Condor II, bem como a participação argentina como sócio extra-OTAN, gerariam vínculos de confiança mútua com o Reino Unido. A Declaração conjunta argentino-britânica de 1995, sobre a cooperação em atividades off-shore no Atlântico Sul-Ocidental, teve uma grande repercussão no âmbito nacional e foi duramente atacada pela oposição política, que denunciou os mínimos benefícios e os prejuízos que o acordo traria. A questão pesqueira foi abordada com a criação de uma comissão científica, a qual velaria pela proteção e o estudo dessa riqueza, com vistas a seu aproveitamento sustentável, por meio de missões conjuntas e de uma administração responsável na expedição de licenças para exploração. Com a Reforma Constitucional de 1994, incorporou-se, pela primeira vez, a questão das Malvinas ao texto constitucional. Assim, a Primeira Disposição Transitória é um mandato nacional que declara a soberania argentina sobre as Ilhas Malvinas, Geórgia do Sul e Sandwich do Sul e suas águas circundantes como legítima e imprescritível, posicionandoa como um objetivo permanente e irrenunciável do povo argentino. Na metade do segundo governo de Menem, a política de sedução dos 126 Malvinas na UNIVERSIDADE Concurso de Ensaios 2012 habitantes insulares começava a demonstrar claramente as características paupérrimas de abordagem da questão. Motivado por estas consequências, o governo escolheu dois caminhos: o reposicionamento da questão nos foros internacionais e a possibilidade concreta de iniciar a promoção do assunto por meio de ações judiciais e de indenizações aos kelpers; esta última opção logo se descartou por não ter nenhum sustento. No fim do governo de Menem, a concreção do acordo de voos de conexão e comunicação entre o continente e as Ilhas, celebrado em julho de 1999, foi não só resultado das negociações empreendidas pelo governo, mas também consequência de um acontecimento internacional: a detenção de Augusto Pinochet por parte do governo britânico, que causou a interrupção dos voos que saíam do Chile para as Ilhas. Assim, com a consecução deste acordo, os cidadãos argentinos poderiam voar novamente para as Ilhas se cumprissem certos requisitos, entre eles, a utilização de passaporte. O reposicionamento da base de Mount Pleasant na década de noventa Descrita, a modo de aproximação, a política exterior dos anos noventa com relação à questão das Malvinas, devemos interpretar a projeção que a Fortaleza Falklands adquire na nova ordem mundial pós União Soviética, em sua função de comunicação das Ilhas com o mundo. Quais deveriam ser sua projeção e desenvolvimento? Estes seriam os interrogantes, naqueles anos, do governo britânico no poder. A necessidade de reposicionar a base em função das necessidades de desenvolvimento econômico, social e político das Ilhas projetaria novas instâncias de formulação. Assim, como instrumento comunicacional dos habitantes das Ilhas com o continente e como ator estratégico, a base iniciaria um novo processo de composição interna, transformando-se numa estação itinerante de oficiais das Forças 127 Federico Martín Gómez Armadas britânicas, ponto nodal das comunicações das Ilhas e novo paradigma da presença militar estrangeira na América Latina. O próximo objetivo seriam os recursos naturais. A Alianza: diplomacia multilateral e instâncias de confiança mútua A construção de um arcabouço diplomático sobre a questão das Malvinas durante o governo da Alianza foi estruturada pelo Instituto Programático da Alianza. Constituído por grandes diplomatas, políticos, 11 acadêmicos e especialistas na questão, ele se tornou o think tank a partir do qual se gerariam as pulsões necessárias para a construção de uma abordagem sobre a questão das Malvinas. A decisão de recolocar o assunto na agenda internacional, tanto nos foros como nos âmbitos nos quais a questão seria tratada, contrapunha-se ao processo anterior, abandonando a sedução e impulsionando, mais uma vez, a histórica resolução 2065 das Nações Unidas. Com relação à construção de confiança entre ambos os governos, a crescente cooperação e diálogo foram traduzidos em vários gestos e ações simbólicas, bem como na retirada da guarnição militar britânica das Ilhas Géorgia, ativa desde o fim da guerra, num gesto que foi aplaudido pelo governo argentino. Somado a esta retirada militar, após duras negociações e diálogos, o levantamento do veto para que a Cidade de Buenos Aires se transformasse na sede do Tratado Antártico seria a culminação de anos de negociações sobre a questão. A cooperação para a realização do estudo de viabilidade da remoção das minas terrestres nas Ilhas Malvinas, estabelecida no Tratado de Ottawa de 1997, do qual ambos os Estados são parte, ficaria latente ante a convulsão interna que o governo argentino sofreria, com sua posterior queda, a crise e a eclosão nacional de dezembro de 2001. O início da evolução da Fortaleza Falklands: a segunda Ordem 128 Malvinas na UNIVERSIDADE Concurso de Ensaios 2012 Mundial pós 11 de setembro Os ataques realizados contra os Estados Unidos no dia 11 de setembro de 2001 e os ataques posteriores em Londres e em Madri, realizados por grupos islâmicos vinculados com a rede de Osama Bin Laden, produziriam uma evolução própria da base com a decisão do governo de Tony Blair de ser partícipe da cruzada contra o terrorismo islâmico internacional. Com o início do governo de Néstor Kirchner, as relações entre a Argentina e o Reino Unido se esfriariam drasticamente como consequência de diversas medidas adotadas por ambos os Estados. Em 2004, a decisão do governo britânico de reposicionar sua projeção no Atlântico Sul se materializou na concreção do translado do Comando Naval do Atlântico Sul, com sede até aquele momento no Reino Unido, para as instalações militares de Mare Harbour e Mount Pleasant. A reclamação de soberania nacional teria como porta-voz o ministro das Relações Exteriores Rafael Bielsa, que exerceu suas funções na XXIII Reunião da Comissão de Pesca do Atlântico Sul (2003) e também em foros internacionais, como o Comitê de Descolonização das Nações Unidas, a OEA e o Mercosul. A posição intransigente do governo britânico diante da recusa dos habitantes insulares a não admitir voos de bandeira argentina para as Ilhas levou à interrupção dos voos charters permitidos até aquele momento pela Argentina, ficando autorizados somente os voos estabelecidos no acordo de julho de 1999. No que tange à questão ictíica, o claro deterioramento do recurso devido à superexploração e às excessivas vendas de licenças pesqueiras, realizadas de maneira unilateral pelo governo das Ilhas, produziu atritos, prejudicando as negociações nessa matéria. Resultado disso seria a interrupção das reuniões da Comissão de Pesca do Atlântico Sul e do Subcomitê Científico para a Preservação do 129 Federico Martín Gómez Recurso. Na instancia de negociação humanitária, a construção do cenotáfio no cemitério, concluída em 2005, abriu uma nova instância de negociação para sua inauguração. Dentro da mesma esfera, o diálogo para a concreção do estudo de viabilidade da remoção das minas terrestres nas Ilhas apresentaria grandes avanços, em função das datas-limite impostas pelo Tratado de Ottawa aos Estados partes. Com a mudança de ministro das Relações Exteriores e a ascensão de Jorge Taiana à pasta, a continuidade da política exterior com relação às Malvinas, com suas características e variáveis, seria acrescentada. Em 2007, ano de comemoração do vigésimo quinto aniversário do fim do conflito do Atlântico Sul, a decisão de dar por encerrada a Declaração conjunta argentino-britânica de 1995, sobre a cooperação em atividades off-shore no Atlântico Sul-Ocidental, foi o reflexo da política exterior quanto à questão das Malvinas durante o governo de Néstor Kirchner. Naquele momento, o ministro Taiana declarou que “o Reino Unido não poderá mais pretender justificar, a partir da letra e do espírito do acordo, suas ações unilaterais ilegítimas em nossa plataforma continental, que levaram à paralisação, faz já sete anos, da 12 comissão bilateral criada pelo entendimento”. Esta decisão foi motivada pelas constantes ações unilaterais dos insulares que, com o apoio britânico, desenvolviam políticas tendentes à exploração dos potenciais recursos petrolíferos nas águas circundantes às Ilhas, provocando efeitos negativos para os interesses argentinos. Naquele momento, diversos meios de comunicação argentinos e britânicos, por ocasião do 25° aniversário do conflito de 1982, viajaram até as Ilhas e puderam contemplar a magnitude e a importância estratégica da base, bem como sua potencial projeção militar na América do Sul, no Atlântico Sul e sobre uma porção do continente antártico. Foi então que se apreciou o verdadeiro potencial da base. 130 Malvinas na UNIVERSIDADE Concurso de Ensaios 2012 Em diversas publicações e programas jornalísticos, fazia-se referência às instalações militares, que eram próprias de uma base da OTAN e muito mais avançadas do que as bases militares dos países latinoamericanos. O potencial da Fortaleza Malvinas no novo sistema internacional: sua projeção na região O governo de Cristina Fernández de Kirchner significou a continuação da política de governo que seu antecessor, Néstor Kirchner, havia estruturado, elaborado e executado no que se refere à questão das Malvinas, com a continuidade de uma agenda de exposição do assunto em diversos foros regionais e internacionais. Além disso, as diversas instâncias de encontros bilaterais com o primeiro-ministro britânico, Gordon Brown, foram propícias para destacar a reclamação argentina sobre as Ilhas e suas águas circundantes. Observando o sistema internacional e a realidade regional atual, a análise de uma instância não superior a dois anos nos permite constatar que a estrutura militar se projetou, enquanto que outras variáveis, como a economia, a diplomacia e a cooperação, mantiveramse no mesmo patamar ou diminuíram. A atual situação de complexidade referente a questões de segurança, desenvolvimento econômico estratégico, desenvolvimento energético potencial e exploração off shore de recursos próprios posicionou o Brasil como um ator, não já regional, senão continental. Este fato potencializa a visão que ele mesmo tem da projeção do Atlântico Sul em curto e médio prazo. A agenda atual da cooperação Sul-Sul, que cria novas instâncias de encontro, tais como a Zona de Paz e Cooperação do Atlântico Sul, revela-nos que o desenvolvimento de novas energias (como a nuclear para uso pacífico) e a cooperação para a conservação e o desenvolvimento dos recursos ictíicos não são concordantes com a 131 Federico Martín Gómez presença militar britânica no Atlântico Sul. Devemos analisar claramente o comportamento dos Estados Unidos nesta equação. Há dois anos, o governo norte-americano reativou a IV Frota – criada em 1943 com o objetivo de contra-arrestar a presença de navios do eixo nazifascista durante a Segunda Guerra Mundial –, alegando ter como propósito proporcionar assistência humanitária nas regiões do Hemisfério Sul que a requererem. A potencialidade real da IV Frota se relaciona com uma maior presença norte-americana na região para, deste modo, observar os fluxos navais dos Estados ribeirinhos do Atlântico. Em meados de maio de 2009, a Direção Geral de Políticas Externas da União Europeia, pertencente ao Parlamento Europeu, lançou um documento sobre questões de segurança e defesa da União Europeia. Embora ele seja uma sentença não reservada que ganhou difusão, suas páginas demonstram o real significado que as Ilhas Malvinas e a base de Mount Pleasant têm para a União Europeia e o Reino Unido. Este documento, intitulado “The Status and Location of the Military Installations of the Member States of the European Union and their Potential Role for the European Security and Defense Policy (ESDP)”, faz uma grande e explícita descrição das bases dos Estados-membros da União Europeia em todo o globo, destacando a necessidade de satisfazer e fortalecer a defesa e a segurança do bloco e, além disso, europeizando as bases, que em sua maioria são de domínio britânico e francês. O Ministério das Relações Exteriores argentino rejeitou categoricamente esta apresentação e o relatório, alegando que os Estados-membros da União Europeia são, antes, membros das Nações Unidas, devendo, portanto, respeitar as resoluções concernentes à existência de um conflito sobre a soberania das Ilhas. Uma passagem do mencionado relatório faz referência à necessidade desta conduta, já que “num mundo cada vez mais multipolar, dar um enfoque renovado para estas bases é uma prioridade premente para a Europa, 132 Malvinas na UNIVERSIDADE Concurso de Ensaios 2012 13 principalmente numa época de crescente competição geopolítica” . Este repúdio argentino se soma ao realizado em 2004, quando a Argentina protestou nas Nações Unidas contra a rehierarquização da base nas Ilhas, e às denúncias de ensaios de mísseis e de testes de mísseis em Puerto Enriqueta, realizadas em 2008 e 2009. A ameaça neocolonial no Atlântico Sul. Potencialidades e projeções das bases de Mount Pleasant e Mare Harbour Num sistema internacional de grande procura por recursos energéticos não renováveis (como é o caso do petróleo) e de busca de recursos essenciais para garantir a vida da população (alimentos e água), há uma corrida pelas fontes de recursos vitais e estratégicos para os Estados. As potências globais ou regionais demarcam e potenciam sua presença nos mares e oceanos do mundo (a IV Frota norte-americana, por exemplo), expressando sua vocação de exercer o poder global; enquanto isso, os Estados ribeirinhos têm a seu alcance ferramentas jurídicas como a petição às Nações Unidas para a expansão da soberania sobre cada mar em particular a 350 milhas. Além disso, as ações específicas de cada Estado, exercendo presença e poder sobre seus mares, são a ferramenta ideal. Um exemplo disso é a busca de recursos de hidrocarbonetos no Atlântico efetuada pelo Brasil, bem como seu desenvolvimento em curto prazo de submarinos (um deles, nuclear), em conjunto com a França, para se posicionar neste novo sistema internacional. A defesa das Ilhas e sua projeção no Atlântico Sul são tarefa da British Forces South Atlantic (BFSA). Sediada na Fortaleza Falklands, localizada em Mount Pleasant, hoje ela é uma realidade, e não uma potencialidade militar. O complexo, construído com o intuito de persuadir a Argentina, é, sem dúvida, o legado mais imponente da guerra.14 133 Federico Martín Gómez Localizada a 60 quilômetros de Puerto Argentino, ela tem uma significativa extensão de avenidas que comunicam cada uma das dependências da base, somada a uma rede de túneis que comunicam hangares, quartéis, centros de operações, centros logísticos e galpões. A base conta com duas pistas aéreas, uma de 2590 metros de longitude e outra, perpendicular à primeira, de 1525 metros de extensão, sendo ambas apropriadas para a aterrissagem de aviões de grande porte, bem como de aviões militares capazes de realizar voos transatlânticos. Além disso, tanto a pista como a base aérea pertencem a um grupo reduzido de bases aptas para a aterrissagem de naves espaciais, como o Endeavor. A OTAN destina 7% de seu orçamento à base de Mount Pleasant.15 A projeção regional da base no continente é manifesta, haja em vista sua potencialidade bélica. Entre suas aeronaves de combate, encontram-se quatro aviões Typhoon de última geração, enviados para substituir os Panthom que se encontravam nas Ilhas desde 1982. Somados a eles, encontramos aviões-tanque Hércules para reabastecimento em voo, além de aeronaves para transporte de tropas e de diversos helicópteros de ataque e transporte de tropas que completam o equipamento aéreo. Os sistemas de alerta precoce, materializados nos três radares instalados em 1984, são capazes de detectar aviões em voo a várias milhas para dentro do continente. Sistemas de comunicações de última geração completam o equipamento para aproximadamente 1500 tropas permanentes nas Ilhas e outras 1500 rotativas, já que o local serve como base de treinamento para o combate no Iraque e no Afeganistão. A capacidade antiaérea da base nas Ilhas é representada no sistema de mísseis antiaéreos como posições de artilharia antiaérea capazes de triangular o fogo e de dissuadir qualquer ataque. Na comemoração do 25º aniversário da Guerra das Malvinas, em função da presença de jornalistas e de meios de comunicação de massa nas Ilhas durante os meses de março e abril, as autoridades militares de Mount Pleasant decidiram permitir a realização de um tour na base 134 Malvinas na UNIVERSIDADE Concurso de Ensaios 2012 militar. Nele, os seis jornalistas argentinos autorizados tiveram a oportunidade de participar da vida cotidiana do local por algumas horas e observar o grau de avanço tecnológico da base, não só em questões da vida diária, mas também no quesito militar. O responsável de imprensa naquele momento, o capitão Lloyd Owen, além de explicar diversas facetas da base, levou os jornalistas a uma demonstração de armamento no fim do dia. Nessa demonstração, que contou com a presença do comandante da Marinha Real, Chris Moory, o discurso proferido por todos os interlocutores foi similar: alegaram que o objetivo da base e que sua missão eram “desterrar qualquer ameaça de agressão militar na zona” 16 e “prestar assistência aos movimentos econômicos na região”. À margem da demonstração tecnológica posterior, que contou com uma detecção de ameaça aérea, com o voo rasante de um Tornado F-3 (hoje substituído pelo Eurofighter Typhoon), detectado por uma bateria de mísseis Rapier, o essencial aqui foi a mensagem enviada. Ao permitir o acesso dos jornalistas argentinos à base britânica nas ilhas Malvinas, desejava-se demonstrar poderio militar de maneira objetiva, dando continuidade à mensagem dissuasiva. No entanto, as declarações vão um pouco além e se referem à “prestação de assistência aos movimentos econômicos na região”, ou seja, a uma projeção britânica no Atlântico Sul que não é somente de manutenção de uma posição defensiva, mas que, pelo contrário, adquire características claramente ofensivas. A vinculação com Mare Harbour, outra área militar de suma importância nas Ilhas, realiza-se através de estradas e túneis que conectam e mantém os acessos livres em casos de emergência. Mare Harbour é apta para a recepção de navios militares como o HMS Endurance ou o HMS Clyde, bem como de submarinos de estadia não permanente nas Ilhas – embora atualmente eles se encontrem ali, em resposta ao conflito ocasionado pelo envio de uma plataforma de exploração petrolífera. 135 Federico Martín Gómez A presença de submarinos nucleares se deve à necessidade britânica de realizar patrulhas não só nas águas circundantes das Malvinas, mas também das ilhas Geórgia e Sandwich do Sul. As instalações militares em Mare Harbour, de dimensões e equipamento similares às de Mount Pleasant, têm capacidade para receber grande quantidade de navios militares e de coordenar qualquer tipo de ação, defensiva ou ofensiva, contra ameaças externas às Ilhas. Além disso, nelas se realizam reparações navais, reequipagem e projeção naval do poder militar britânico no Atlântico Sul. Uma terceira instalação militar, especificamente de polígonos de tiro, é a que se encontra em Puerto Enriqueta, na Ilha Soledad. Nela, desenvolvem-se todos os testes e demonstrações de nova tecnologia missilística. É nesta base, que carece de denominação formal, onde se registrou o último conflito diplomático entre a República Argentina e o Reino Unido, quando da posta à prova dos mísseis terra-ar Rapier. No mês de fevereiro, a República Argentina realizou uma apresentação ao secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon, na qual demonstrou as constantes violações que o Reino Unido realiza no Atlântico Sul, não só das resoluções das Nações Unidas, mas de diversos acordos internacionais, entre eles o de Tlatelolco, bem como as contravenções às regulações ambientais e de segurança humana, criadas por organizações internacionais como a Organização Marítima Internacional (OMI). Conclusões Reflexão sobre o passado A capacidade militar da base nas Malvinas é uma questão que excede claramente esta análise, da mesma maneira como a abordagem necessária para representar a realidade de uma ação de dissuasão contra a Argentina ante uma tentativa manu militari desta de recuperar 136 Malvinas na UNIVERSIDADE Concurso de Ensaios 2012 a soberania das Ilhas e de suas águas circundantes. Nas declarações formuladas pelo oficial a cargo do exercício, Mayor Fieldhouse, responsável pelas operações e exercícios militares realizados no mês de dezembro de 2009, o objetivo fundamental do exercício é assim apresentado: “Estamos aqui em apoio à missão que as forças britânicas devem cumprir no Atlântico Sul, que é dissuadir de uma agressão 18 militar contra estas Ilhas”. A observação dos exercícios, no entanto, nos permite interpretar que sua configuração não era de defesa, mas de um desembarque similar ao produzido em maio de 1982 na baía de San Carlos. A potencialidade energética da região, tanto do Brasil, com suas descobertas na costa de novos núcleos de petróleo, como da Bolívia, com seus recursos de gás, e da Venezuela, somados ao potencial do próprio Atlântico Sul, representam o verdadeiro objetivo da presença militar britânica na região. A diversidade dos recursos naturais do subcontinente é o objetivo pontual da existência da Falklands Fortress, seja para sua acessibilidade e/ou para seu futuro resguardo. A base militar nas Malvinas representa, hoje, uma ameaça para a República Argentina e um grande desafio para a comunidade sulamericana, já que ela se encontra na esfera de projeção e está ao alcance das potencialidades militares da base. Conforme comentado por Juan Carlos Puig, ex-ministro das Relações Exteriores argentino, num artigo de 1985, “a Falkland Fortress se transformaria, dentro de um prazo (dois anos, aproximadamente), na 19 base aeronaval mais poderosa do Atlântico” . É preciso destacar esta frase, reconhecendo a existência da Ilha de Ascensão, ilha sob domínio britânico, alugada aos Estados Unidos como base aérea, a partir da qual, no conflito de 1982, os britânicos se reaprovisionavam e se preparavam para continuar sua viagem até o Atlântico Sul. Continuando seu artigo, o próprio Puig se pergunta se, decorrido um tempo desde as negociações, “será possível desandar o caminho e 137 Federico Martín Gómez desmantelá-la para chegar a uma solução”.20 Na conjuntura atual isso é impossível, tendo em vista o statu quo britânico, que se nega a dialogar com a República Argentina e dá continuidade às suas ações unilaterais. 21 Devemos somar a experiência da Ilha Diego Garcia como exemplo disto. Para concluir, trazemos à colação a reflexão do próprio Juan Carlos 22 Puig, que, tomando uma ideia do Dr. Pablo Tello, lança a seguinte advertência em forma de pergunta: A presença militar e militante das grandes potências ocidentais será admitida numa zona que, até agora, todos os governos latinoamericanos procuraram manter à margem das confrontações operativas interblocos? Esta é agora a questão, não se trata de debater sobre a soberania do arquipélago, mas de reorientar a política internacional da Argentina e, em geral, da América Latina.23 Interpretações sobre o presente A atual situação de confrontação devido à presença de plataformas de exploração e de prospecção petrolífera nas águas circundantes das Malvinas, bem como à realização de testes de mísseis terra-ar para a 24 defesa dos interesses britânicos no Atlântico Sul, permite-nos perceber o quão importantes são os territórios em questão para o Reino Unido e a União Europeia. Num sistema internacional no qual os recursos naturais não renováveis, sejam eles energéticos ou alimentícios, são os detonantes de conflitos regionais, a localização estratégica dos arquipélagos das Malvinas, Geórgia do Sul e Sandwich do Sul há de se configurar, em curtíssimo prazo, se é que já não o fez, numa área de posicionamento geoestratégico fundamental, tendo em vista a navegabilidade e a acessibilidade a tais recursos. Os processos de integração e de vinculação regional na esfera política na América Latina se transformarão nos âmbitos necessários de 138 Malvinas na UNIVERSIDADE Concurso de Ensaios 2012 posicionamento na agenda da ameaça que a presença britânica representa no Atlântico Sul, não só para a República Argentina, mas também para a região sul-americana e para seus interesses em curto prazo. A descoberta de novos poços na costa do Brasil, somados às outras fontes de riquezas naturais do país, tanto energéticas como alimentícias, vão posicionar o gigante sul-americano como um novo ator de relevância regional e internacional. No relatório oficial apresentado pela Comissão Nacional do Limite Exterior da Plataforma Continental (COPLA), organismo oficial criado para realizar o relevamento da totalidade da superfície territorial submersa, divulgou-se a cifra de 10.400.000 km2. Do total relevado, os territórios das ilhas Malvinas, Geórgia do Sul e Sandwich do Sul, bem como suas águas circundantes, equivaleriam a um total de 3.000.000 km2. A totalidade desse território se encontra sob domínio britânico, tanto político como militar; o que equivale a 30% do território relevado. Isto não é uma ameaça, mas a consumação de fatos e a sustentação ilegal de um status neocolonial já entrado o século XXI. A água potável é o recurso estratégico do século XXI e será causa 26 permanente de conflitos no futuro imediato. A Carta Mundial da Natureza, adotada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em outubro de 1982, convoca as nações do sistema internacional com uma advertência: “a disputa pela apropriação de recursos escassos é causa de conflitos”. Não há dúvidas de que a água é um bem e um recurso escasso. Somente 2,5% do total da água do mundo é consumível, o resto (isto é, 97,5%) se encontra nos mares e oceanos. Hoje, as ilhas Malvinas, Geórgia e Sandwich do Sul e suas águas circundantes são a porta de entrada para o reservatório bioalimentício da humanidade, a Antártida. Esta, com sua riqueza em águas, minerais e produtos biológicos, será uma área de conflito internacional. O 139 Federico Martín Gómez relatório das Nações Unidas sobre a situação dos recursos hídricos globais, apresentado em 2003 e ratificado em 2006, revelou que 20% dos recursos já foram contaminados ou afetados de alguma maneira. As cifras são alarmantes: para o período 2020/2030, com uma população global estimada de oito bilhões de seres humanos, 87% deles não terão acesso a fontes hídricas potáveis. A América Latina e o Caribe, que representam 11% do território e 6% da população mundial, possuem 27% da água doce do planeta e 40% de sua biodiversidade, isto é, de suas plantas, insetos e animais. Os Estados latino-americanos concentram 11% das reservas petrolíferas mundiais e produzem 15% do petróleo extraído, contando, além disso, com 6% das reservas globais de gás natural, bem como com grandes reservas de carvão, as quais fariam sustentável o consumo energético durante duzentos e cinquenta anos, e 20% do potencial 27 hidroenergético mundial. Uma última porcentagem nos proporcionará uma dimensão muito mais integral sobre a importância destes recursos: 7% do orçamento da 28 OTAN é destinado à manutenção da base de Mount Pleasant. Perspectivas sobre o futuro Em virtude de suas características polissêmicas, a questão das Malvinas comporta múltiplos interrogantes de natureza diversa. Alguns deles, por sua complexidade política, deixam-nos um campo de revisão permanente. A primeira perspectiva, a modo de introdução, é afirmar mais uma vez que é imprescindível manter uma estratégia como Estado-nação, em termos de uma política de Estado perdurável e sustentável no tempo. As Malvinas são um ponto de inflexão que eleva, em sua máxima expressão, a contradição entre liberdade/desenvolvimento e neocolonialismo/subdesenvolvimento. Os acontecimentos que a seu 140 Malvinas na UNIVERSIDADE Concurso de Ensaios 2012 respeito sucedem, tanto em sua cotidianidade como em sua perspectiva, fazem com que elas sejam de vital importância para os destinos não só do nosso país, mas da região do Cone Sul. Evidentemente, não se trata de uma reclamação caprichosa de um pequeno território de 11.700 km2 e de suas águas circundantes, mas de uma disputa que adquire maior transcendência dia após dia, dada sua intrínseca relação com o terceiro maior território do sistema internacional, entendendo como tal o conjunto de terra-água-ar que compõe nossa soberania. Expusemos algumas razões e, consequentemente, também nos vemos obrigados a expressar nossa visão sobre o que fazer diante do próprio conflito, o que fazer frente a esta realidade em que vivemos, até então desconhecida ou pouco conhecida. Acreditamos, pois, que o melhor seria ou deveria ser uma estratégia única, sendo este um dos problemas a resolver. Pensamos que esta estratégia só poderá ser possível se nossa democracia se consolidar dia após dia, crescendo em conteúdo e em discussão, incorporando esta temática na agenda dos grandes assuntos nacionais. Assim, cada um dos argentinos deverá poder participar, convencendo-se da legitimidade desta reivindicação e da importância deste acordo que todos nós devemos nos propor. Os diferentes governos que administrarem e conduzirem as políticas da União devem trabalhar para solidificar uma política de Estado capaz de modernizar e aprimorar seus argumentos com relação às reclamações argentinas sobre o Atlântico Sul e os territórios das Ilhas Malvinas, Géorgia e Sandwich do Sul. Se cada estamento do país e do continente, em todos os púlpitos acadêmicos, escolares, sociais, políticos ou pertencentes a representantes da sociedade civil, se propuser condenar as bases militares que o Reino Unido mantém nas Ilhas Malvinas, tanto a de Mount Pleasant como a de Mare Harbour, o debate e a discussão serão 141 Federico Martín Gómez enriquecedores. Se a comunidade regional, representada pela União de Nações SulAmericanas (Unasul), o Mercado Comum do Sul (Mercosul) ou a Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac), continuar a unir os vínculos dia a dia, condenando a presença neocolonial do Reino Unido na região, o aprofundamento do conhecimento internacional sobre a questão será potencialmente projetado. Se as Nações Unidas não só condenassem por meio de cada uma de suas resoluções, mas também impusessem limites mais precisos às ações unilaterais que o Reino Unido exerce a seu bel-prazer, ignorando todos os chamados da Assembleia Geral e do Comitê de Descolonização, expressados na resolução 2065, seria o início de uma nova instância temporal no sistema internacional. As Nações Unidas deveriam convencer e exigir do Reino Unido o cumprimento de um calendário de debate múltiplo que inclua a questão da soberania, bem como a dos recursos naturais, de acordo com os tempos que as democracias modernas estabelecem como forma de se relacionar para solucionar diferenças de qualquer tipo. Observamos uma maior compreensão desta problemática na Argentina, e em toda a região há suficientes demonstrações de solidariedade à questão, que goza de hierarquia constitucional. Mas, além disso, vemos que este é um caminho inesgotável de propostas e de ações que os argentinos e os latino-americanos devemos empreender para, deste modo, ser portadores de ideias e iniciativas que envolvam cada um de nós, em todas as formas nas quais nos sentimos representados e organizados. Diversas resoluções aprovadas pelo Mercosul, a Unasul, o Conselho Sul-Americano de Defesa e a Celac abordaram o processo de remilitarização iniciado pelo Reino Unido nos últimos anos. Nesse período, o Reino Unido enviou novos navios com tecnologia steel ou 142 Malvinas na UNIVERSIDADE Concurso de Ensaios 2012 capacidade nuclear, fez substituições e modificações em aeronaves, testou nova tecnologia missilística ou mesmo enviou um representante da coroa britânica para, simbolicamente, infundir seu poder na região. Devemos antepor a paz como condição essencial, básica e universal do respeito à vida, aos seres que habitam o planeta e aos ecossistemas. Devemos ser forjadores de um tempo novo que leve o planeta em consideração, respeite a soberania dos povos e condene o militarismo, que afeta o futuro de cada ser vivo com o pretexto de defender o interesse das corporações, as quais só priorizam a si mesmas em detrimento da vida dos povos. Entendemos também que não pode existir uma só conclusão sobre este tipo de trabalhos, embora tenhamos certeza de que devemos promover este debate. Em todo caso, ele é um convite para pensar que cada proposta sobre a existência de bases militares estrangeiras na região representa uma tensão que nos condiciona, levando-nos a tempos em que a humanidade padeceu guerras, perdas humanas, alterações climáticas, poluição dos recursos que garantem a existência dos seres vivos deste planeta. Este é o desafio e a proposta na busca pela abertura para o debate, a investigação, a discussão, a formulação de novas ideias e posições e, finalmente, para instâncias de reflexão que se dirijam à consecução da Disposição Transitória n° 1 da Constituição Argentina. Notas 1 - Também conhecido como Falklands Islands Economic Survey, é um documento elaborado a partir de uma pesquisa realizada em meados da década de 1970, em função da crise do petróleo que afetou o sistema internacional, a qual tinha em vista a busca de novas fontes de recursos petrolíferos. 2 - Rodolfo H. TERRAGNO “Des-militarizar”. Memorias del presente. Buenos Aires, Editorial Nueva Información, 1985, págs. 267-275. 3 - Historia General de las Relaciones Exteriores de la República Argentina. Capítulo 58: “Las relaciones anglo-argentinas después del conflicto de Malvinas. Julio de 1982 a julio de 1989”. Obra dirigida por Carlos Escudé e Andrés Cisneros. Grupo Editor 143 Federico Martín Gómez Latinoamericano. 2000. Endereço URL: http://www.argentinarree.com/home_nueva.htm [Consulta realizada entre os dias 2 e 28 de março de 2010]. 4 - Rodolfo H. TERRAGNO “Des-militarizar”. Memorias del presente. Buenos Aires, Editorial Nueva Información, 1985, págs. 269. 5 - O incidente é desenvolvido detalhadamente em Historia General de las Relaciones Exteriores de la República Argentina. Capítulo 58: “Las relaciones anglo-argentinas después del conflicto de Malvinas. Julio de 1982 a julio de 1989”. Obra dirigida Por Carlos Escudé e Andrés Cisneros. Grupo Editor Latinoamericano. 2000. Endereço URL: http://www.argentina-rree.com/home_nueva.htm [Consulta realizada entre os dias 2 e 28 de março de 2010]. 6 - Durante o governo do expresidente Néstor Kirchner, o Primeiro Ministro britânico reconheceu a existência e a potencial ameaça de armamento nuclear no Atlântico Sul. O reconhecimento britânico faz referência aos navios que estiveram dentro da zona de conflito, os quais estivavam cargas de profundidade não convencional. O reconhecimento foi feito por meio de um comunicado no dia 5 de dezembro de 2003. 7 - Documento final da VI Reunião da ZPCAS. Plano de Ação de Luanda, “INICIATIVA LUANDA”. Declaração Final de Luanda. A/61/1019, 7 de agosto de 2009. 8 - Ibidem (tradução nossa). 9 - Carta dirigida ao Presidente do Conselho de Segurança das Nações Unidas na semana de 11 a 18 de fevereiro de 1988. 10 - Entrevista ao Dr. Alejandro Simonoff, “Guerra de Malvinas. Veinticinco años después”, Cuadernos Argentinareciente, N.°4/ julho-agosto 2007, págs. 142-147. 11 - Alguns dos membros deste núcleo epistêmico da Alianza eram Raúl Alfonsín, Graciela Fernández Meijide, Carlos Álvarez, Rodolfo Terragno, Fernando De La Rúa, Horacio Jaunarena, José Luis Machinea, Lucio García del Solar, Oscar Shuberoff, Nilda Garré e Dante Caputo. 12 - Jorge TAIANA, “El diálogo como único camino posible”, Clarín, 1 de abril de 2007, p. 35. 13 - “Malvinas: el Parlamento europeo estudia 'europeizar' la base militar”. La Nación, 26 de maio de 2009. 14 - “Mount Pleasant: así es la principal base militar de la Isla”, El Observador. Perfil. 1º de abril de 2007, p. 6. 15 - “La OTAN y las Malvinas”. Publicação realizada pelo Movimento pela Paz, a soberania e a solidariedade entre os povos, março de 2009, p. 2. 16 - “Una fortaleza militar con aviones superveloces y helicópteros artillados", Malvinas, 25 años después, Clarín, 7 de abril de 2007, p. 10. 17 - Apresentação do governo argentino relativa à militarização do Atlântico Sul por parte do Reino Unido da Grã Bretanha e Irlanda do Norte. 18 - “Ejercicio militar británico de disuasión a las amenazas extranjeras”. Boletín n° 11, dezembro de 2009. Departamento das Ilhas Malvinas, Antártida e Ilhas do Atlântico Sul. IRI. UNLP. 19 - Juan Carlos PUIG, “Malvinas: tres años después”, Revista Nueva Sociedad, n° 77, maio-junho de 1985, págs. 13-20. 20 - Ibidem. 21 - Ibidem. 144 Malvinas na UNIVERSIDADE Concurso de Ensaios 2012 22 - Ángel TELLO, “L´Argentine et les iles Malouines”, Polítique Etrangére, n° 4, 1982. 23 - Juan Carlos PUIG, “Malvinas: tres años después”, Revista Nueva Sociedad, n° 77, maio-junho de 1985, págs. 13-20. 24 - O último foi realizado entre os dias 19 e 27 de julho deste ano. O Ministério das Relações Exteriores argentino emitiu um comunicado no qual denunciou e repudiou as ações britânicas. Endereço URL: http://www.mrecic.gov.ar/portal/ver_adjunto.php?id=4280. 25 - Tanto a informação como os dados foram proporcionados pelo ministro Guillermo Rossi, membro da Diretoria Geral das Malvinas, em sua exposição “La Cuestión de las Islas Malvinas, situación actual y Perspectivas”, no Fórum “Malvinas, Argentina hacia el Bicentenario”, realizado na cidade de Rio Grande, Terra do Fogo, nos dias 6 e 7 de novembro de 2010. 26 - Elsa BRUZZONE, Las guerras del agua. América del Sur, en la mira de las grandes potencias, Capital Intelectual, 2009. p. 17. 27 - Informação estatística obtida no documentário No Bases. Latinoamérica región de Paz, II Conferência Internacional pela Abolição das Bases Militares Estrangeiras, APDF, MOPASSOL, SERPAJ. 2010. 28 - Informação obtida em “La fortaleza militar de la OTAN en Malvinas (Base Aérea Mount Pleasant y Estación Naval Mare Harbour)”. Centro de Estudos e Documentação sobre Militarização. Mopassol. Buenos Aires. Outubro de 2009. Bibliografia Livros e artigos Barcelona, Eduardo e Julio Villalonga. “Las relaciones carnales”, La verdadera historia de la construcción y destrucción del misil CONDOR II. Planeta. 1992. Bruzzone, Elsa. Las guerras del Agua. América del Sur, en la mira de las grandes potencias. Buenos Aires. Capital Intelectual. 2009. Escudé, Carlos e Andrés Cisneros. Historia General de las Relaciones Exteriores de la República Argentina. Grupo Editor Latinoamericano. 2000. Endereço URL: http://www.argentina-rree.com/home_nueva.htm [Consulta realizada entre os dias 2 e 28 de março de 2010]. Gustafson, Lowell S. The Sovereignty Dispute over the Falkland (Malvinas) Islands. Oxford, Nova York, Oxford University Press. 1988. Movimiento pela paz, a soberania e a solidariedade entre os povos. “La OTAN y las Malvinas. Março de 2009, p. 2. Puig, Juan Carlos. “Malvinas: tres años después”. Revista Nueva Sociedad n° 77. MaioJunho. 1985, págs. 13-20. Simonoff, Alejandro. “Guerra de Malvinas. Veinticinco años después”. Cuadernos Argentina Reciente, n°4, julho-agosto 2007. Tello, Ángel Pablo. “L´Argentine et les iles Malouines” Polítique Etrangére, n° 4, 1982. Terragno, Rodolfo H. “Des-militarizar”. Memorias del presente. Editorial Nueva Información. 1985. 145 Federico Martín Gómez Documentos oficiais Apresentação do governo argentino relativa à militarização do Atlântico Sul por parte do Reino Unido da Grã Bretanha e Irlanda do Norte, 10 de fevereiro de 2012. www.mrcic.gov.ar Jornais e documentos visuais Gómez, Martín Federico, “Ejercicios militar británico de disuasión a las amenazas extranjeras”, Boletín n° 11, dezembro de 2009. Departamento das Ilhas Malvinas, Antártida e Ilhas do Atlântico Sul. IRI. UNLP. “La fortaleza militar de la OTAN en Malvinas (Base Aérea Mount Pleasant y Estación Naval Mare Harbour)”. Centro de Estudos e Documentação sobre Militarização. Mopassol. Buenos Aires. Outubro de 2009. “Malvinas: la Alianza quiere un rol activo en la política de Estado”. Clarín, 6 de fevereiro de 1999, p. 5. “Mount Pleasant: así es la principal base militar de la Isla”. El Observador. Perfil. 1º de abril de 2007, p. 6. “Malvinas: el Parlamento europeo estudia 'europeizar' la base militar”. La Nación, 26 de maio de 2009. “No Bases. Latinoamérica región de Paz”. Documentário II Conferência Internacional pela Abolição das Bases Militares Estrangeiras APDF, MOPPASOL, SERPAJ. 2010. “Una fortaleza militar con aviones superveloces y helicópteros artillados”. Malvinas, 25 años después. Clarín, 7 de abril de 2007, p. 10. 146 Malvinas na UNIVERSIDADE Concurso de Ensaios 2012 Menção especial A REATUALIZAÇÃO DOS SIGNIFICADOS HISTÓRICOS PARA A CONSOLIDAÇÃO DA SOBERANIA NO ATLÂNTICO SUL Marcelo E. Lascano Marcelo E. Lascano A REATUALIZAÇÃO DOS SIGNIFICADOS HISTÓRICOS PARA A CONSOLIDAÇÃO DA SOBERANIA NO ATLÂNTICO SUL Marcelo E. Lascano 1 Introdução A história vivida é fonte de pacífica soberania da Argentina no Atlântico Sul. Os historiadores nos trazem os fatos que definiram nossa chegada e estabelecimento permanente. Sua obra coloca à nossa disposição um produto organizado e sintético da informação que se encontra dispersa, confusa e incompleta em arquivos, documentos e outras fontes. Os livros de Ricardo Caillet Bois (1952), Ernesto Fitte (1960, 1966) e Juan 1 Marcelo Lascano é geógrafo pela Universidade de Buenos Aires e trabalha na Faculdade de Engenharia como professor do curso “Território e transporte”, ministrado pela Escola de PósGraduação em Engenharia Ferroviária. 148 Malvinas na UNIVERSIDADE Concurso de Ensaios 2012 Carlos Puig (1960) provavelmente sejam as contribuições melhor acabadas neste sentido. Eles formam um acervo insubstituível da história territorial argentina, tendo contribuído para a construção da identidade nacional. O passo seguinte à pesquisa e à síntese histórica é traçar o seu significado no presente. No caso do Atlântico Sul, a história é um insumo fundamental para o desenvolvimento do trabalho diplomático que dá sentido a esses significados. A ponte entre a história e a diplomacia deve ser transitada permanentemente, como um itinerário que, de tão repetido, nunca é redundante. Isto é particularmente relevante para o Atlântico Sul. O cenário internacional determinou a modificação ou substituição por completo de argumentos que vigoravam há algumas décadas. O objetivo deste trabalho é assinalar a renovada importância de alguns aspectos da história da Argentina no Atlântico Sul, bem como sua relação com o cenário diplomático atual. Revisando esta questão, aparecem dois fatores principais: o povoamento e a preservação dos recursos naturais. Estes são os dois assuntos que analisaremos aqui. Cumpre esclarecer que, embora por motivos diferentes, tanto na história mais profunda como no presente mais imediato há um caráter de unidade no Atlântico Sul. As ilhas Malvinas, as ilhas do Arco de Scotia (Aurora, Geórgia do Sul e Sandwich) e o Setor Antártico têm, em grande parte, antecedentes históricos comuns na etapa prévia a 1833. Já no presente, conforme veremos, a diplomacia caminha em direção à aplicação dos mesmos princípios em toda a área. Não analisaremos aqui os motivos pelos quais tais assuntos são conduzidos por canais internacionais diferentes. De qualquer forma, refletir sobre a história comum a ambos é, pelo menos, uma contribuição à coerência desses canais. Nossa identidade também se constrói a partir do território (Daus, 1957). O território é uma entidade integral, e nossa história se estende sobre todo o Atlântico Sul. Assim, Puig ressalta, de maneira acertada, o 149 Marcelo E. Lascano caráter integral do Atlântico Sul do ponto de vista histórico e jurídico. Em seu clássico livro, ele afirma: […] a República Argentina conserva, até os dias de hoje, os direitos de que foi privada por uma ocupação violenta. Sem dúvida, estes direitos não recaem somente sobre as Ilhas Malvinas, mas sobre todos os territórios que eram administrados por elas”.1 Partindo de uma vivência espontânea do território, a proximidade geográfica gerou uma massa crítica de antecedentes de soberania ao longo do tempo, de maneira que, em 1833, nosso país já tinha nele presença permanente. Esta apresentação tem como intuito aprofundar esta perspectiva, isto é, interpretar politicamente a história. Começaremos este trabalho considerando o povoamento das Malvinas. Após 1982, a restituição da soberania, incluindo a do Arco de Scotia, parece girar exclusivamente em torno deste assunto, interpretado sempre segundo o paradigma da insolubilidade. Primeiramente, mostraremos que o problema não é este, tarefa em que os significados Figura 1 150 Malvinas na UNIVERSIDADE Concurso de Ensaios 2012 da história serão um insumo fundamental. Na segunda parte, aprofundaremos a análise do passado para abordar o posicionamento do nosso país na diplomacia dos recursos naturais, que está cada vez mais vigente no Atlântico Sul. Por último, encerraremos o trabalho propondo algumas reflexões. Figura 1. Mapa bicontinental da Argentina. Esquerda: cronologias de permanência histórica em setores do Atlântico Sul. Direita: extensão da Zona Econômica Exclusiva e de sua ampliação sobre os recursos do leito e do subsolo. O assunto tratado nestas páginas mostra como a Lei Nº 26.651, de 2010, foi um acerto do Instituto Geográfico Nacional (ex-IGM). 1. A atualidade de 1833 O povoamento das Malvinas é um processo interrompido. Seus habitantes atuais pisam sobre as marcas de uma história cerceada. Há, necessariamente, dois planos paralelos no tempo: o da violência de 1833, que ecoa, inalterada, até os nossos dias, e o dos descendentes dos britânicos levados às Ilhas depois de 1842. Ambos os povoamentos, no entanto, têm nas Ilhas seu canto no mundo. Talvez fosse necessária a ajuda do cinema para retratar, com toda a densidade que o assunto merece, o significado da violência empregada pela Grã Bretanha nos primeiros dias de 1833. A autoridade política argentina é obrigada a se render, e pessoas que acordaram acreditando que aquele seria um dia como qualquer outro são forçadas a subir num barco, deixando lá seus pertences, inclusive suas moradias e seu gado. Não é a simples proximidade que explica a integração das Malvinas em nosso território. As Ilhas são argentinas porque o processo histórico da Espanha no Atlântico Sul chegou até elas, e porque houve argentinos que as escolheram como lugar para viver. Se a distância pesa hoje, ela é acompanhada pela história, acompanhada pelo tempo, e este é o primeiro significado que é preciso reatualizar. Neste ponto, as grandes obras de Fitte, Caillet-Bois e Destéfani revelam todo o seu valor. 151 Marcelo E. Lascano Cumpre fazer uma breve reflexão sobre a articulação do significado de 1982 com o resto da cronologia da região. No que se refere ao reforço do meio diplomático como canal para a recuperação da soberania, nossa proximidade no tempo à recuperação das ilhas influenciou na consciência histórica sobre o Atlântico Sul. A guerra de 1982 teve muitas facetas, tantas que basta o número (“1982”) para fazer nossa imaginação disparar em múltiplas direções, mas esta pode ser uma de suas facetas mais insuspeitas. Parece que 1982 transformou o sentido do tempo, não só relegando ao segundo plano a densidade que o entendimento histórico da questão das Malvinas vinha adquirindo com a contribuição dos investigadores mencionados, mas também, não podemos descartá-lo, substituindo 1833. Se não considerarmos a expulsão de argentinos que a Grã Bretanha efetuou naquele então, só vamos dispor de argumentos que esgotam a questão no presente. Isso seria um salto no vazio. Segundo Puig, em opinião que compartilhamos, se não partirmos de 1833 como o principal axioma a partir do qual elaboramos a reclamação de soberania, só nos restará nos apoiarmos em dois símbolos conceituais criados pela Grã Bretanha: o do pequeno encurralado pelo grande, a “colônia” com ou sem pretensões de autodeterminação; e o da proximidade geográfica ou geológica novecentista, desconectada da história, que há quase cento e oitenta anos parece não dissuadir o ocupante nem fazê-lo pensar numa retirada. Nada melhor do que 1982 para tornar realidade a analogia do gato e do rato fazendo com que o gato desapareça. Isto só é possível, é claro, se aceitarmos que, na disputa de soberania, a Grã Bretanha não estaria representando a si própria, mas somente cumprindo a função de advogada de um pequeno grupo de pessoas com as quais não tem um vínculo claramente definido. Aqui, pode-se reconhecer uma persistente ausência do representado. Quando a Argentina foi bloqueada durante a década de 1840, dos três países que participavam do jogo, dois eram as principais potências mundiais, dois gatos, e um estava em plena gestação política. Quem é o grande e quem é o pequeno? Quem tem 152 Malvinas na UNIVERSIDADE Concurso de Ensaios 2012 hoje poder de veto no Conselho de Segurança das Nações Unidas, bem como uma rede de bases em todo o mundo? É este o poder político presente nas Malvinas, sem fissuras nem parcializações. É ele quem financia os dois mil homens posicionados nas Ilhas depois de 1982. O objetivo desta despesa militar são as Ilhas como nodo, como posição no tabuleiro dos oceanos. A vida dos malvinenses na década de 1930 foi retratada por Juan Carlos Moreno. Hoje, as condições de vida melhoraram radicalmente. Os habitantes das ilhas se beneficiam com esta nova presença militar, que eles não geraram e cujos custos não podem cobrir. A história tornará evidente a seletividade com a qual se aplica a divisão de um todo em dois papéis, o do representante presente e atuante, e o do representado cuja falta de participação explícita parece se justificar pelo suposto benefício trazido pelo representante. Afinal de contas, não foi por um pedido dos malvinenses que a Grã Bretanha decidiu se lançar no Atlântico Sul em 1982, da mesma forma como ela não se fez presente em 1833 por um pedido dos habitantes das Ilhas naquele então. E 1982 não foi em honra à conservação do “modo de vida” de alguns britânicos, aos quais, até então, a Grã Bretanha negava qualquer tipo de cidadania. Com isto, passamos à segunda parte da questão. Até antes de meados da década de 1980, teria tido algum fundamento, mesmo que fraco, o reconhecimento legal da emergência de um matiz de identidade local, falklander, novo, surgido da substituição populacional que começou em 1842 e se completou nas décadas 2 posteriores. No entanto, hoje esta questão está encerrada: as Ilhas são 3 habitadas por cidadãos britânicos. Atualmente, caso esse matiz existisse, ele pertenceria ao plano cultural, ao meramente anedótico. Contudo, mesmo neste nível de análise, há sérias dúvidas sobre sua existência. Em primeiro lugar, do ponto de vista da continuidade temporal. Betts assinala que o modo vida que conheceu durante sua vida nas Malvinas desapareceu, observação que traz profundas consequências. Em segundo lugar, caso a emissão de passaportes não 153 Marcelo E. Lascano bastasse, o afã pelo isolamento em relação à Argentina, seja ele próprio ou provocado, produziu uma superatuação ou, melhor, uma superafirmação do apego à identidade britânica. Keep the Falklands British foi um dos lemas esgrimidos, hoje menos ressoante. Este tipo de síntese já é, por si mesma, o próprio veredito dos habitantes, mas podemos indagar em aspectos menos imediatos, porém igualmente essenciais. Se a distância, se o caráter de “isolamento” podem, com o tempo, favorecer a aparição de diferenciações em costumes e cultura, isso ocorre à base de espontaneidade, com um efeito acumulativo no tempo. Mas a ausência de espontaneidade tem sido, permanentemente, a nota característica das circunstâncias que permeiam estes e outros habitantes de fala inglesa das Ilhas. No entanto, a manutenção do status atual tem como principal objetivo anular o peso espontâneo da distância. Em seu livro, Moreno (1950) mostra costumes e trabalho, sem contar o idioma, dificilmente distinguíveis dos que existiam nas ilhas do norte de Escócia. Além disso, ele ressalta os fortes mecanismos de controle social exercidos pelo governador e a Falklands Is. Company, férreos representantes de Londres. O caso mais ilustrativo disso é o do kelper que, integrando o conselho local, reagiu contra uma arbitrariedade de Londres declarando que preferia uma administração argentina nas Ilhas. Ele foi imediatamente afastado do cargo. Este era, então, o alcance da autodeterminação. Não existem sintomas de que ela tenha aumentado. Atualmente, o afã de anular a distância continua. Num mundo onde o espanhol é cada vez mais estudado, os habitantes das Ilhas estão autoimpedidos de cultivar um eventual interesse pelo idioma devido ao repúdio à Argentina, alegado em foros políticos e sinalizado com uma das maiores bases militares do hemisfério Sul. Sim, pensando bem, este é o matiz que poderia separá-los de outros britânicos, dos britânicos do hemisfério Norte, que nascem, vivem e morrem sem ter notícias da existência da Argentina, exceto pelo futebol. O único traço que permite diferenciar os britânicos que habitam as Malvinas dos outros é o transcorrer de sua existência em permanente tensão com 154 Malvinas na UNIVERSIDADE Concurso de Ensaios 2012 nosso país. Para vários deles, deve ser um dilema ter uma das principais capitais do mundo a somente duas horas e meia de voo, inacessível por decisão própria. Um fim de semana em Buenos Aires. Possível, mas impossível. A identidade cultural local é, então, o resultado de um contexto em que o controle externo é a nota distintiva. Alexander Betts menciona a “sensacional” sensação de liberdade que experimenta morando na Argentina. A análise dos habitantes atuais também pode ser realizada do ponto de vista demográfico. O censo de 2006 indica um forte componente de migrantes temporários que engrossam o total da população. Portanto, os habitantes arraigados, para quem as Malvinas têm um significado afetivo, são muito menos de três mil: o anômalo predomínio de pessoas de entre 30 e 60 anos de idade, combinado com altas taxas de população masculina, mostra que uma porcentagem significativa do 4 total da população civil é forânea. Por outro lado, as Ilhas têm sido um território de permanente emigração da população, o que enfraquece, sem anular, o argumento das famílias de várias gerações. É provável que, se seguirmos o critério da “geracionalidade”, encontremos a maior parte dos nascidos nas Malvinas no resto do mundo. Em seu livro, Betts descreve, com propriedade, a antropologia do desterro e da emigração à qual as Ilhas estão sujeitas devido à sua insólita distância. Nessa contabilidade não deveriam entrar os “islenhos”, os de 1833, oposto inseparável da palavra “islenhos”, que a transforma em polissemia contraditória e anula por completo seu valor como fator para a análise 5 do status quo. Cumpre perguntar se os intelectuais argentinos que, em 2012, desconhecendo os dados mais básicos da história, afirmaram que os islenhos são sujeito de direito, também estavam se referindo aos islenhos. No Atlântico Sul, o significado das palavras é dado pela história. Ressaltar os direitos de alguns, nunca negados por nosso país, não pode implicar a negação dos direitos de outros no plano histórico. As pessoas que hoje habitam as Ilhas estão nelas arraigadas, e isto deve ser respeitado. A restituição da soberania as colocará numa situação nova que, como toda mudança, terá um custo. A Argentina 155 Marcelo E. Lascano terá a grande responsabilidade de canalizar uma transição. Mas, ao fim e ao cabo, será preciso resolver um problema que o país não criou. A Grã Bretanha, ao tomar pela força um grupo de ilhas localizado a doze mil quilômetros de Londres, instalando nelas sua população, é a criadora das tensões atuais. O agravo de 1833 e a expulsão dos habitantes não mudaram com a situação criada pela Grã Bretanha posteriormente. Neste quesito, também há uma transferência de significados. É improvável que a parte que gerou o povoamento em condições irregulares seja o melhor advogado da parte que as padece. Neste ponto, a tradição multicultural da Argentina mostra que o problema da identidade ou cultura dos britânicos das Ilhas deve ser dimensionado sem excessos. Apesar de nossas turbulências, vemos que migrantes de países considerados estáveis vêm morar em Buenos Aires. Este exemplo mostra que não é necessário se remeter à Argentina oitocentista dos anos 20 para comprovar o espontâneo cosmopolitismo, hoje intacto, que constitui nossa identidade. Portanto, com a restituição das ilhas, é necessário criar opções para os britânicos, sem com isso relegar o verdadeiro problema, que é a soberania no Atlântico Sul. A presença de população arraigada, concorrente com o problema da soberania, não é uma circunstância de impossível solução e, definitivamente, não é mais importante do que os fatos de 1833. O comportamento da Argentina com relação aos britânicos das Ilhas será necessariamente superior ao da Grã Bretanha em 1833. O problema não somos nós, os argentinos. O problema que subsiste é o comportamento da Grã Bretanha em dois de janeiro de 1833. E subsiste tanto para os argentinos como para os britânicos que vivem em meio a uma incômoda geopolítica. Eles também deverão ter a possibilidade de resolver esta herança com seu governo: permanecer na terra onde se arraigaram, num país diferente ao de sua origem, replicando hoje a vivência da imigração europeia do século XIX. Dar prioridade parcial ou uma prioridade absoluta à sua identidade britânica. Em algum sentido, 1833 também é um problema para os malvineses atuais: ter uma 156 Malvinas na UNIVERSIDADE Concurso de Ensaios 2012 identidade por fora do domínio geográfico de origem. O progressivo retorno ao contexto do século XVIII: a atual diplomacia dos recursos naturais no Atlântico Sul As obras sobre a diplomacia ou a história das Malvinas começam enumerando as circunstâncias que levaram ao descobrimento e, posteriormente, ao fortalecimento da presença espanhola a partir de 1767. Porém, depois disso, elas dão um salto até 1833. O que parece sugerir esta lacuna é que a Argentina precisa fortalecer sua vivência da própria história nas Malvinas. Isto implica reduzir uma espécie de tendência a compreender esta parte do nosso território em função da tensão com outro país. Entre 1767 e 1833, as Ilhas fizeram parte do território rio-platense de forma plena. Tempo suficiente para se dar um significado próprio às palavras “Malvinas” e “Atlântico Sul”. A partir do século XVIII, a história do Atlântico Sul se entrelaça com a da Argentina. Nossa presença se insere no processo de estruturação dos territórios estatais no continente americano: as fronteiras foram fixadas a partir do deslocamento espacial durante as etapas fundacionais.6 Esta origem, relacionada com as independências nacionais, contrasta fortemente com a alternância dos limites territoriais europeus, associados a conflitos bélicos e a irredentismos seculares. Na América, especialmente na América do Sul, as fronteiras foram fruto da paz e, se houve disputas, elas não tiveram um alcance maior do que as definições de limites locais ou de faixas periféricas, não existindo hoje reivindicações de um país sobre territórios inteiros em outro. 7 As obras mais significativas vão além dos marcos de 1767 e 1833, trazendo informações sobre como se desenvolvia a presença rioplatense. Sua leitura mostra que ela reveste uma importância bastante desproporcional. Em especial, chama muito a atenção o protagonismo quase imediato que o aproveitamento e a proteção dos recursos naturais ganharam. Podemos encontrar um relato dos principais episódios de detenção de navios na extensa nota que o governo 157 Marcelo E. Lascano argentino dirigiu, em 1887, ao governo dos Estados Unidos, o chamado Memorial de Quesada, reproduzido por Fitte. O documento é de difícil leitura, mas comprova, de forma incontrovertível, a continuidade da fiscalização da pesca sobre o terreno. Callet-Bois também assinala o trabalho das administrações bonaerenses neste sentido. No tratamento desta questão, o livro que mais se destaca é o de José Raed Lallemant (1987), que chamou a atenção para sua importância política capital para as Malvinas, quando o assunto parecia se relacionar somente com o território antártico. Segundo o critério de Puig, citado na introdução, é preciso superar este fracionamento da história. Com efeito, o controle e a fiscalização da pesca e da caça nas Malvinas foi um assunto recorrente desde o século XVIII. Este aspecto se alinha, mais de duzentos anos depois, com o atual crescimento de uma diplomacia dos recursos naturais no Atlântico Sul. Como se os rio-platenses fundadores tivessem intuído os tempos atuais, sua ação pioneira pela preservação dos recursos naturais é um antecedente inquestionável para o país e que, além disso, teve um custo político: a expulsão das Malvinas. Assim, a Argentina se posiciona como pioneira do que hoje é matéria de diálogo entre os Estados. Geralmente, a reclamação pelas Ilhas Malvinas, Geórgia e Sandwich do Sul não é associada com a proteção dos recursos subantárticos. No entanto, a diplomacia da preservação antártica e subantártica passou a ultrapassar os 60º S do Tratado Antártico. A ênfase nos recursos marítimos e a emergência do conceito de antartic convergence e southern ocean se projetam em vários graus de latitude no sentido do equador, sobretudo ao leste da Passagem de Hoces (Drake). Como no século XVIII, a diplomacia dos recursos naturais volta a ser o eixo condutor do diálogo entre os Estados nesta região do globo. Assim como o domínio do Rio da Prata chegou pacificamente até as Malvinas no século XVIII, é preciso considerar também o estabelecimento do nosso país nas Órcadas, em 1904. Num trabalho pouco conhecido, Laurío Destéfani enumera minuciosamente a trocas 8 de pessoal realizadas na base desde aquele ano. O trabalho exaustivo 158 Malvinas na UNIVERSIDADE Concurso de Ensaios 2012 do autor, que à primeira vista poderia parecer desnecessário, é fundamental. Ele permite vislumbrar, em todo o seu significado, a continuidade da presença argentina no tempo em sua faceta mais tangível. Assim, não resta dúvida de que, com as Órcadas, a Argentina volta ao mais profundo do Atlântico Sul, marcando o nascimento do Setor Antártico. Nosso país lá permaneceu como guardião solitário durante mais de quarenta anos. Somente depois da Segunda Guerra Mundial é que houve a chegada de um segundo país ao continente. Deste modo, a ressignificação da história se articula na linha do tempo, porém em dois planos: o dos recursos naturais e o da permanência no tempo. Atualmente, é improvável que nossa presença no Atlântico Sul enfrente agressões como as de 1833. Contudo, este território continua sendo visto com especial interesse em virtude de seus recursos naturais. No fim do século XVIII, as frotas de caça e pesca, que o governo do Rio da Prata tentou regulamentar, conduziram a uma exploração sem limites. Assim, o destino nos fez pioneiros na conservação. Hoje, a Argentina deve continuar defendendo os recursos naturais da região nas instâncias diplomáticas de forma integral. As diretrizes que a história deve continuar abordando estão presentes no plano da política internacional de proteção dos recursos naturais. Nosso país deve fazer uma leitura muito específica e própria deste cenário. Este também é um contexto fundamental no qual a questão do Atlântico Sul se insere. Trataremos dele de forma comparativa. Para isso, nos referiremos à aceleração dos processos de delimitação territorial que vêm ocorrendo no Ártico continental e oceânico durante a última década. Identificaremos os critérios adotados pela jurisdicionalização e pela preservação dos mares polares do hemisfério Norte, comparando-os com os que vigoram atualmente na zona polar do hemisfério sul. Aqui também veremos emergir o significado atual de nossa história territorial. Do Atlântico Sul ao Ártico: contrastes 159 Marcelo E. Lascano No final da década de 1990, as Nações Unidas definiram uma série de critérios para que cada país com costa marítima estendesse sua Zona Econômica Exclusiva (ZEE) sobre o leito e subsolo marinhos (isto é, excluindo a espessura de água suprajacente). Assim, cada país teve que analisar a extensão que a faixa adicional às duzentas milhas alcançava em sua costa. As apresentações podiam ser realizadas até 2009. A Rússia foi, em 2001, um dos primeiros países a apresentar seus resultados, ilustrados na figura 2. A apresentação russa deixou entrever a importância da história na construção dos limites internacionais, indo além dos critérios numéricos e geológicos das Nações Unidas. Nesta etapa da filosofia política mundial, na qual estamos acostumados a ver sempre os mesmos contornos da geografia política, o processo de definição de soberanias territoriais no Polo Norte é altamente significativo. A jurisdicionalização do Polo Norte alcançou a esfera pública massiva alguns anos depois, quando um submarino russo, com dois senadores a bordo, colocou uma bandeira de metal russa no fundo do Oceano Ártico a 90º N, a latitude do polo geográfico. A imagem de atores políticos pousando com uma bandeira no fundo do mar, com o simpático detalhe de terem navegado por debaixo da calota ártica, teve ampla difusão televisiva. Em pouco tempo, o Reino Unido anunciou que em breve faria uma apresentação na ONU para a extensão de suas ZEE. O ponto central para a Argentina foi a inclusão de uma reivindicação de direitos num setor de leito e subsolo oceânicos adjacente à Antártida. Isto aconteceu quando nosso país entrava numa etapa de grande efervescência, antes da eleição presidencial de 2007. Salvo a reação de alguns integrantes da Câmara dos Deputados, a apresentação inglesa não causou maior interesse público. A análise dos fatos recentes no Ártico, bem como uma breve recapitulação sobre a definição dos interesses dos Estados árticos na zona, podem servir para ampliar os argumentos e elementos com os 160 Malvinas na UNIVERSIDADE Concurso de Ensaios 2012 quais nosso país enfoca seus interesses no Atlântico Sul. A insistência sobre a individualidade dos britânicos das Malvinas poderia perder espaço ou se combinar com a carga conceitual dos recursos naturais marítimos e antárticos. O caráter territorial dos processos de soberania na região ártica A edição de março/abril de 2008 da revista Foreign Affaires incluiu um artigo sobre a questão ártica, escrito por um ex-chefe do que viria a ser 9 a Guarda Costeira dos Estados Unidos. Acreditamos que a filiação temática do autor não é casual e nos daremos o trabalho de analisá-la, pois ela ilustra os termos nos quais a questão do Ártico é explicada e apresentada ao público, seja ele especializado ou não. O autor do artigo começa seu relato fazendo referência à contração permanente da calota ártica, bem como ao significado deste fato para a Guarda Costeira dos Estados Unidos na região. Desta forma, o assunto é colocado no plano do que poderíamos chamar de “oceânico”. Em contraste com uma reclamação de terras emersas, uma reclamação jurisdicional sobre um oceano – e, além disso, restrita ao leito e ao subsolo – é, à primeira vista, menos absoluta: a navegação em principio é livre, como nas atuais ZEE, deixando a porta aberta (mesmo que simbólica) para os outros países ao acesso livre e irrestrito. Considerando a posição do Ártico, é duvidoso que outros países que não os vizinhos tenham necessidade de transitar sua eventual extensão oceânica (uma vez que a calota desapareça, o que não aconteceu). Nos atlas e enciclopédias antigos, os mapas indicam o Oceano Glacial Ártico. Mas o Ártico é um âmbito geográfico integral, definido pela influência que o clima, altamente restritivo, teve em sua ocupação. Esse âmbito corresponde às faixas territoriais ao norte do Canadá, aos Estados Unidos (Alaska), à Rússia, a toda a ilha da Groenlândia e uma série de ilhas, incluindo também o Oceano Glacial Ártico. A análise geográfica reconhece a diminuição, graças à tecnologia, da influência 161 Marcelo E. Lascano das condições ambientais para a instalação do homem e o desenvolvimento de suas atividades. No entanto, isso não aconteceu nos climas e ambientes extremos: o Saara e a Antártida continuam desabitados. A costa leste das Filipinas e de Madagascar, atingida frequentemente por ciclones e tornados, mostra também uma chamativa ausência do homem. A fim de evitar uma confusão frequente, salientamos que, embora desabitados, nem o Saara nem a Antártida estão fora da História, assunto que retomaremos mais adiante. Na Argentina, há um excelente estudo sobre o limite climático do Ártico, publicado pela Academia Nacional de Geografia em 10 1994. Acrescente-se que a definição do Ártico feita pelo Conselho do Ártico,11 embora imprecisa, inclui os âmbitos territoriais aqui mencionados. O Circumpolar Arctic Vegetation Map, que “representa a vegetação do Ártico inteiro”, publicado pelo serviço de pesca e vida silvestre dos Estados Unidos em 2003, prova que os ecossistemas 12 polares terrestres também são suscetíveis de soberania. Por último, a definição que consta do Merrian-Webster Geographical Dictionary, um dos mais completos de sua categoria, também inclui as zonas aqui mencionadas, coincidindo no duplo caráter continental e oceânico da região. Figura 2. Limite preliminar da ZEE estendida, proposto pela Rússia em 2001. Modificada a partir do mapa disponível no site da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar. Elaboração própria baseada na cartografia apresentada pela Rússia às Nações Unidas. Deste modo, a questão do Ártico é integramente territorial e começou nos confins da história europeia, com a expansão do povoamento para o norte dos países escandinavos. Posteriormente, houve etapas intermediárias, que repetem o mesmo processo na Groenlândia e no norte da América. E, hoje, entramos num momento de definição das linhas geodésicas que dividem juridicamente o setor marítimo. Portanto, a questão do Ártico não é somente oceânica e não começou no final do século XX, nem quando a Rússia colocou a bandeira no polo geográfico norte submarino e subglacial. Hoje o Ártico é, pois, cenário 162 Malvinas na UNIVERSIDADE Concurso de Ensaios 2012 Figura 2 do simples devir histórico que, em cada lugar e a partir de uma combinação singular de circunstâncias, tem desenhado os limites das soberanias territoriais em todo o mundo. Se tivermos uma concepção acumulativa da história, poderemos evitar cair no excepcionalismo do presente, erro mais do que frequente, pelo simples fato de sermos contemporâneos. Esta concepção acumulativa da história deve ser resgatada para o Atlântico Sul, onde a crença no excepcionalismo do presente, muitas vezes, aparece misturada com elementos ambientais, expressos em conceitos das ciências naturais e na assepsia da atividade científica. O Oceano Atlântico Sul e a Antártida são âmbitos da política mundial e da história na mesma medida que o Ártico, salvo que a compreensão política se situe exclusivamente no plano dos desejos. Um cientista disse acreditar que “na Antártida, as pessoas se comportam de outra maneira, há outra consciência”. Suas palavras traduzem generosidade, mas, tendo vista o que acontece no hemisfério norte, nada mais podem do que sofrer um decepcionante contraste com a realidade. E, sem querer, elas são funcionais a uma aparente indeterminação jurisdicional 163 Marcelo E. Lascano do Atlântico Sul. O aquecimento climático e a demanda de recursos naturais Continuando a análise do artigo da Foreign Affaires, pode-se também considerar o peso do aquecimento global na última etapa jurisdicional do Ártico. Borgersson aponta que a retração permanente da calota do oceano glacial amplia a área de patrulha, demandando maiores recursos da Guarda Costeira dos Estados Unidos. Esta ideia reflete um critério repetido em diversas fontes de informação acadêmicas e jornalísticas. Em outubro de 2007, a questão do Ártico é capa da Time, revista que, apesar de ter perdido certa importância, ainda conserva um lugar privilegiado em todas as bancas de revista do mundo desenvolvido e, portanto, pelo menos a manchete da capa é altamente visível para o público. O subtítulo diz: “à medida que o aquecimento global provoca o derretimento do gelo a níveis recorde, cresce a batalha global pelos recursos”.13 A ênfase no derretimento/retração do congelamento oceânico atribui suas causas à natureza, mesmo quando, na explicação do fenômeno, persiste o problema da contribuição posterior do homem para o aquecimento climático recente. Neste ponto, a compartimentação jurisdicional entre os Estados Árticos nada mais é do que uma reação iniludível da diplomacia diante de um fenômeno que se apresenta como exógeno, independentemente do status quo político já atingido. Aqui, poderia surgir a pergunta: a mudança climática é responsável pelo grande aumento do consumo de minerais e de combustível na Índia e na China? A avançada geopolítica sobre o Ártico não pode ser dissociada da sempre crescente valorização dos recursos naturais. O aquecimento global não é a origem nem da questão levantada pela Rússia em 2001, nem da reação que ela gerou em outros países. Mesmo que o derretimento permanente do gelo seja uma novidade que facilita a logística, ele é somente um fato concorrente. Nada indica que, se houvesse um ciclo de expansão da calota, os países do Ártico teriam adiado a compartimentação jurisdicional. 164 Malvinas na UNIVERSIDADE Concurso de Ensaios 2012 A questão da mudança climática naturaliza o tratamento do assunto, atribuindo à aleatoriedade do clima fatos e ações que são resultados de decisões políticas e, portanto, implicam em responsabilidade. No caso, trata-se de uma política de partilha jurídica de recursos naturais através da diplomacia. Foi o que expressou o ministro dinamarquês da Ciência e Tecnologia no mesmo artigo da Time, o qual declarou: “quando falamos de recursos [naturais], também falamos de política (politics)”. É interessante notar que as palavras são de um ministro da Ciência e Tecnologia. Aqui parece se confirmar o entrecruzamento entre a linguagem ascética das ciências naturais e a das relações internacionais. Em vez de um ministro das Relações Exteriores, é o ministro da Ciência quem explica os critérios de seu país. No hemisfério sul, este transbordamento da diplomacia é particularmente acentuado. Para a grande zona polar do sul, que inclui o Atlântico Sul, a presença da diplomacia no campo da linguagem científica e da cooperação foi assinalado precocemente por Quadri. As atividades de investigação, estritamente no campo das ciências naturais, transformam-se no canal de comunicação principal e se desenvolvem de forma não proporcional às vias tradicionais de vinculação entre os países. A diplomacia passa, assim, a se expressar em outro idioma. Também no que se refere ao hemisfério sul, esta característica vai além dos assuntos relacionados diretamente com a Antártida. Com efeito, o hiperdesenvolvimento da diplomacia dos recursos naturais tem levado à adoção progressiva do conceito de limite biológico circumpolar. As atividades científicas são, então, o código de comunicação também ao norte do perímetro antártico (60º S). O limite biológico selecionado como limite natural ou funcional da Antártida é chamado de antartic convergence, definindo-se como uma estreita faixa na qual há uma rápida mudança de temperatura na água no sentido norte-sul. Sua posição média no Atlântico Sul é mostrada na figura 3. O conceito de antartic convergence superou o seu campo de criação, as ciências naturais, e se transformou numa categoria jurídica. A partir de sua posição média anual, criou-se o limite norte para a aplicação da 165 Marcelo E. Lascano Convenção sobre a conservação dos recursos vivos marinhos antárticos, conhecida também como Camberra, concluída em 1980 e ratificada pela Argentina em 1983. Nela, vincula-se um limite de convenção jurídica com um limite ecológico ou definido pelas ciências 14 naturais, a antartic convergence. Como se observa na figura 3, ela inclui as ilhas Geórgia e Sandwich do Sul. É possível afirmar que este limite, estabelecido numa convenção sobre recursos antárticos, excede amplamente os 60º S. Assim, o regime da indeterminação jurisdicional está se projetando cada vez mais no Atlântico Sul. Aquilo que tinha sido criado Antártida começa a ir além do perímetro do continente, os 60º S, chegando agora até o Arco de Scotia. Nas Malvinas, a questão dos recursos naturais poderia se superpor à da identidade dos habitantes atuais. Mesmo se alcançasse só um segundo plano, ela poderia ser uma reserva argumentativa caso o primeiro se esgotasse. Mas as ilhas Geórgia e Sandwich do Sul, onde não vigora a semântica da identidade britanizante, os recursos naturais assumem plena vigência, sendo um flanco diplomático de múltiplos potenciais. Com efeito, estas ilhas do Atlântico Sul foram colocadas dentro do limite jurídico associado à antartic convergence. A diplomacia dos recursos naturais, surgida como ferramenta exclusivamente antártica, avança para o norte, englobando nossas ilhas sem limites conceituais. Enquanto, no hemisfério norte, os países rumam para uma delimitação jurisdicional precisa, no Atlântico Sul parece se aprofundar a tendência à aplicação de regimes legais indeterminados, mistos e de ambíguas implicâncias. A criação de um perímetro antártico expandido, em termos gerais, a partir de uma representação funcional específica da biologia marinha, traz como consequência um fortalecimento da diferenciação entre as porções oceânicas resultantes para o norte e para o sul. Com efeito, a adoção da antarctic convergence como objetividade, superpõe-se à delimitação aceita do Oceano Atlântico, que chega até a costa do continente antártico e atravessa seu setor sul. A literatura das ciências naturais, perseguindo sua tradicional meta de gerar conhecimento, por 166 Malvinas na UNIVERSIDADE Concurso de Ensaios 2012 fora de qualquer finalidade política, tem cunhado o conceito de southern ocean para individualizar o âmbito biológico ao sul da antarctic convergence. A posição, ou mesmo a presença ou ausência, estacional ou episódica, de um gradiente latitudinal de temperatura é uma das facetas do território. O caráter jurídico do território nasce do desenvolvimento reiterado e regular das atividades do homem e de sua presença. Foi com a expansão da presença europeia no Ártico que se estabeleceram os limites geográficos entre as unidades políticas. É importante considerar que este processo foi anterior à elaboração de um inventário dos recursos naturais. A extensão das ZEE no Oceano Glacial Ártico é um processo orientado pelos recursos existentes, mas eles são recursos supostos. É a atribuição jurídica de um tipo de soberania que levará à elaboração do inventário. No Ártico, os critérios para a extensão das ZEE são estáticos. Proporcionados pela geologia, eles se baseiam em dados obtidos de amostras de um fundo marinho fixo. Para a região polar sul, pretendese adotar um critério apresentado como funcional. Proporcionado pela biologia, ele se basearia em dados obtidos de amostras de um elemento móvel persistente, mas não necessariamente permanente. Deste modo, há uma diferença substancial com relação aos critérios geológicos. No Ártico, o perímetro médio estival da calota tem uma funcionalidade similar à da antarctic convergence. No Ártico, esta ideia serviria para a identificação de um meio biológico de relevância global e fragilidade biológica. Esta é uma das características mais atribuídas à Antártida, as quais fundam o paradigma da intangibilidade absoluta de seus recursos naturais. No polo norte, os critérios geológicos, mesmo sendo fruto de uma convenção, tornam objetivos os limites geográficos legais associados aos Estados historicamente presentes na área. Conforme exposto anteriormente, ao circunvalar a Antártida, a antarctic convergence atravessa o Oceano Atlântico de um lado até o outro. Quando sua posição média anual amostral é representada cartograficamente, a carga conceitual da objetividade que se atribui à funcionalidade biológica tem um efeito visual delimitador. Deste modo, 167 Marcelo E. Lascano sustentou-se a diferenciação de um novo espaço oceânico ao sul com a denominação de southern ocean. Questão relevante é a contração geográfica do Oceano Atlântico, que deixaria de existir ao sul da antarctic convergence. A extensão do Atlântico ficou estabelecida já na primeira edição do Atlas de limites de oceanos e mares, publicado em 1929 pela Organização Hidrográfica Internacional (OHI), quando seu uso internacional na navegação já estava consolidado há séculos. Na 15 última edição não houve mudanças a este respeito. Quadri descreve, com riqueza de detalhes, a acelerada transferência da diplomacia à linguagem das ciências naturais durante a década de 1970 e início dos anos 1980, principalmente no que se refere aos recursos do mar. Pouco depois, esta ativa “política da biologia” teve um de seus ecos mais fortes: foi no ano 2000, quando a OHI realizou uma consulta aos seus membros sobre a necessidade de se estabelecer oficialmente os limites do southern ocean. A Argentina, obviamente, se opôs à segadura do Atlântico. Devido à maior proximidade da Argentina com a zona, a proposta de um novo nome, no caso do nosso país, cerceia um espaço histórico que foi vivido com intensidade excepcional entre os países do hemisfério sul. A Austrália também apresentou reservas sobre o limite norte, que, segundo estima, deveria chegar até a costa sul de seu território (REF). Essa geometria, que é a mesma de que nosso país precisa, não criaria dois setores onde há um único espaço de vivência histórica, deixando completamente de lado a mudança da temperatura da água como critério absoluto. Neste plano, é preciso aprofundar os pontos de vista em comum com a Austrália, a modo de colaboração entre os dois países, que têm décadas de protagonismo na logística antártica. O antecedente do limite norte da Convenção de Camberra e a consulta da OHI reforçaram a concepção do Atlântico Sul como um espaço geográfico de significado somente biológico, excluindo de forma persistente os significados da história. Figura 3: Limite da área de aplicação da Convenção de Camberra sobre a conservação dos recursos vivos marinhos antárticos, setor 168 Malvinas na UNIVERSIDADE Concurso de Ensaios 2012 Atlântico Sul. Mapa oficial. Disponível em http://www.ccamlr.org/en/organisation/convention-area Figura 3 Conclusões Tentamos destacar, até aqui, a importância de nossa história territorial para nossas relações internacionais. Os dois assuntos tratados têm algo em comum: eles são eixos conceptuais que deixam de lado e substituem a história por completo. A identidade local e a linguagem científica funcionaram como universos que se esgotam em si próprios, sem conexão com o passado. A Argentina deve assegurar a vigência da história no Atlântico Sul. Somos o único país que pode alegar a mais sólida das fontes de soberania, isto é, a que se deriva do estabelecimento pacífico, a permanência tranquila e o racional uso histórico dos recursos naturais. 169 Marcelo E. Lascano O desenvolvimento de atividades científicas em todo o Atlântico Sul abriu novos canais de diálogo e possibilitou que a Argentina se transformasse num sócio fundamental na cooperação antártica, sendo fornecedora de logística e transportando equipes científicas de todo o mundo. No entanto, o significado da história deve ser totalmente incorporado no entendimento que nosso país tem de sua soberania. Neste sentido, é importante seguir de perto os acontecimentos no Ártico, pois eles dimensionam, de forma acessível, o significado atual de nossa história no Atlântico Sul: enquanto houver recursos naturais, ele será um âmbito da política e da história. É desejável que o Atlântico Sul tenha o mesmo cuidado da paisagem e dos sistemas ecológicos que o Ártico. Ao fim e ao cabo, é o cuidado desejável para qualquer região do mundo. A questão pode ser encarada de diversas maneiras, mas acreditamos que sempre será preferível enfrentá-la a evadi-la: o estabelecimento explícito de restrições absolutas ao uso dos recursos naturais no Atlântico Sul, em um mundo que presta cada vez mais atenção nos recursos naturais, cria um plano de tensão, e de tensão crescente com o tempo. Se o plano discursivo explícito exclui a história, a política não deixa de existir e de incidir em nenhum momento. A política dos recursos naturais passa, então, ao plano subterrâneo: será este o melhor cenário para uma utilização ordenada dos recursos antárticos? O que poderá surgir no Atlântico Sul quando as tensões subterrâneas acumuladas forem liberadas? No que se refere à segurança do país, isso pode levar à aparição de um foco de conflito no sul. Já o Reino Unido, com a autorização simbólica da repercussão das ações da Rússia, demonstrou um proceder inovador nas Nações Unidas. Ao mesmo tempo, a Noruega aumenta a produção de petróleo e gás nas Ilhas Svalbard, a 78º N, e a Rússia inaugurou, em 2008, um porto petrolífero no Mar de Barents, em pleno Ártico (68º 45’ N), com um investimento de quatro bilhões de dólares. Em sentido oposto, o limite jurídico que restringe a utilização dos recursos marinhos vem sendo ampliado no Atlântico Sul. É provável que a Noruega, em seus territórios a 78º N, e a Rússia, nos que se encontram a 68º N, conduzam investigações científicas. O interrogante é: que margem 170 Malvinas na UNIVERSIDADE Concurso de Ensaios 2012 resta à Argentina para que, em seu território de igual latitude, ela possa realizar outras atividades que não a investigação científica? Isso ocorreu em nosso passado territorial, aliás, com a introdução de medidas de preservação na área, que suscitaram a invasão de outros países. Assim sendo, cabe aos argentinos dar valor à sua própria história territorial. É positivo recordar, com sobriedade, as conquistas de nossos antepassados, evitando a pompa literária com que alguns países relatam sua história. Mas se a sobriedade é virtude, o esquecimento é irresponsabilidade. Os acontecimentos atuais no hemisfério norte nos oferecem, em nossa opinião, um dimensionamento adequado da questão do Atlântico Sul, recolocando-a no contexto mundial, do qual parece estar simbolicamente isolada pela aplicação de um regime jurídico ad hoc sem paralelo em todo o planeta. Deste modo, os acontecimentos recentes no Ártico nos explicam o que lá está acontecendo, mas também contextualizam o que está acontecendo no hemisfério sul. Embora o Conselho do Ártico não seja uma instância juridicamente vinculante,16 a Argentina se beneficiaria se participasse dele como observador. É interessante mencionar que, se assim o fizesse, seria em caráter de non-arctic state, categoria inexistente no sistema do Tratado Antártico, onde a designação dos países participantes generaliza muito mais sua associação geográfica e histórica com a Antártida. Se o Ártico nos parece longínquo e frio, podemos considerar o modo como o Brasil entendeu e respondeu às sugestões de internacionalização da Amazônia, região um tanto mais tropical. Esta questão, embora possamos compreender em parte sua lógica de sustentação, é desconhecida em nosso país. No entanto, dela muito se falou no hemisfério norte, nem tanto pelo assunto em si, mas a partir do consenso social alcançado sobre a questão das emissões de dióxido de carbono (CO2) e da hipótese de uma mudança climática antropogênica. A ideia de que o homem pode incidir no balanço atmosférico do CO2 está mais que instalada na Europa e nos Estados 171 Marcelo E. Lascano Unidos, e a selva Amazônica passa, desta maneira, a cumprir um papel funcional global. Deste ponto de vista, haveria motivos objetivos para cercear a soberania do Brasil: um país não deveria decidir sozinho o que fazer com a selva. Em 2000, quando inquirido sobre a questão por um estudante numa universidade dos Estados Unidos, um senador do Brasil afirmou que, se a Amazônia é importante para o mundo todo, também o petróleo o é, assim como o patrimônio do Louvre, e, portanto, eles também deveriam ser internacionalizados. Esta resposta do senador Cristovam Buarque, que foi mais longa e cujo conteúdo recomendamos, teve impacto mundial, sendo transformada num artigo 17 que saiu no jornal O Globo e mereceu a inclusão no livro Cem discursos históricos brasileiros. A ironia do senador deixou em evidência a impossibilidade da negação da história e destacou, além disso, a assimetria com que determinados critérios são aplicados na análise estratégica dos recursos naturais. Essa assimetria se deve a uma questão política. Esta é uma lição que a Argentina deve aprender para encarar, com renovado vigor, a gestão de seus interesses no Atlântico Sul. E a assimetria que para o Brasil existe com relação à selva Amazônica, para a Argentina se relaciona com o Atlântico Sul. A Argentina deve conhecer bem seus interesses e sua própria história. Assim como a reclamação pelas Malvinas e as Ilhas do Atlântico Sul se ampara no caráter coercitivo da expulsão em 1833, os interesses argentinos em todo o Atlântico Sul também fazem parte da história de nossos antepassados, que ali se instalaram pacificamente no século XVIII. Buenos Aires, 30 de junho de 2012. Notas 1 - Puig, J.(1960). La Antártida argentina ante el derecho. Depalma. Buenos Aires. 2 - Destéfani, L. (1982). Malvinas, Georgias y Sandwich del Sur ante el conflicto con Gran Bretaña. Edipress. Buenos Aires 3 - Segundo a British Overseas Territories Act 2002, eles têm um tipo de cidadania britânica que lhes confere o direito à requisição da cidadania plena – que será 172 Malvinas na UNIVERSIDADE Concurso de Ensaios 2012 concedida caso o governo considere adequado (sic) –, e a viver em qualquer lugar do Reino Unido. Esta restrição indica que a opção pela britaneidade, a autodeterminação, é restrita às Ilhas. Numa entrevista que concedeu em 2007, Alexander Betts confirmou o peso dessas restrições. 4 - Dados disponíveis na internet. Isto indica que o efeito demográfico do investimento militar é superior ao número do pessoal civil realmente vinculado à base. Isto sugere que, de outro modo, a população das Ilhas teria continuado numa lenta, porém persistente tendência negativa. 5 - Betts, A. (1987). La verdad sobre las Malvinas, mi tierra natal. Emecé. Buenos Aires. 6 - Daus, F. (1957). Geografía y unidad argentina. Nova. Buenos Aires. 7 - Domínguez, J. editor (2003) Conflictos territoriales y democracia en América latina. Siglo XXI Editores. Buenos Aires. 8 - Destéfani, L. (1981). Historia antártica. XVI Curso de temporada Antártida Argentina. Universidad Nacional de Córdoba. Córdoba. 9 - Borgersson, S. (2008). Arctic meltdown. The economic and security implications of global warming. Foreign Affaires March/April. Disponível em http://www.foreignaffairs.org/20080301faessay87206/scott-g-borgerson/arcticmeltdown.html [Consulta realizada no dia 15/5/08]. 10 - Bruniard, Enrique (1994). La discontinuidad climática ártica y el límite del bosque. Anales de la Academia Nacional de Geografía 18, 215-293. 11 - Foro integrado pelos Estados árticos (sic) de caráter não vinculante, conformado pelos países cujos territórios integram o âmbito ártico e do qual participam países e ONGs como observadores. Ver: Bloom, E. (1999). Establishment of the Arctic Council. The American Journal of International Law 93, no.3, 712-722. 12 - CAVM Team. (2003). Circumpolar Arctic Vegetation Map. (1:7,500,000 scale), Conservation of Arctic Flora and Fauna (CAFF) Map No. 1. U.S. Fish and Wildlife Service. 13 - Graff, J. (2007) “Fight for the top of the world” en Time 170, no 14, 28-36. 14 - Colacrai, M. (1988). La cuestión del medio ambiente antártico. Posiciones extremas desde fuera del sistema antártico. En Moneta, C. La Antártida en el sistema internacional del futuro. Grupo Editor Latinoamericano. Buenos Aires. 15 - Organización Hidrográfica Internacional (1953). Limites de oceanos e mares (em inglês). 3ra edição. Publicação especial nº 28. Mônaco. Disponível em http://www.iho.int/iho_pubs/standard/S-23/S23_1953.pdf [Consulta realizada no dia 25/7/12]. 16 - Bloom, E. (1999). Establishment of the Arctic Council. The American Journal of International Law 93, no.3, 712-722. 17 - Buarque, C. (2000) A internacionalização do mundo. Jornal “O Globo”,10/10/2000. Disponível em http://cristovam.org.br/index.php?option=com_content&task=view&id=546&Itemid= 2 [Consulta realizada no dia 20/7/12]. Também em Figueredo, E. (2002) 100 discursos históricos brasileiros. Leitura. Belo Horizonte. Referências 173 Marcelo E. Lascano Betts, A. (1987). La verdad sobre las Malvinas, mi tierra natal. Emecé. Buenos Aires. Betts, A (2007) “La historia del Malvinense que quiere ser intendente de un pueblo cordobés” , La Nación, suplemento Enfoques, 31/03/2007. Disponível em http://www.lanacion.com.ar/896138-la-historia-del-malvinense-que-quiere-serintendente-de-un-pueblo-cordobes. Bloom, E. (1999). Establishment of the Arctic Council. The American Journal of International Law 93, no.3, 712-722. Borgersson, S. (2008). Arctic meltdown. The economic and security implications of global warming. Foreign Affaires March/April. Disponível em http://www.foreignaffairs.org/20080301faessay87206/scott-g-borgerson/arcticmeltdown.html [Consulta realizada no dia 15/5/08]. 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La Antártida en la política internacional. Pleamar. Buenos Aires. Raed Lallemant, J. (1987). Malvinas. Norteamérica en guerra contra la Argentina. Avanzar. Buenos Aires. 175 176 Malvinas na UNIVERSIDADE Concurso de Ensaios 2012 Menção especial AS MALVINAS E SUA PROJEÇÃO CONTINENTAL A questão das Malvinas e das Ilhas do Atlântico Sul e sua projeção na Antártida sul-americana como problema continental María Pilar Llorens e Eduardo José Pintore María Pilar Llorens e Eduardo José Pintore AS MALVINAS E SUA PROJEÇÃO CONTINENTAL A questão das Malvinas e das Ilhas do Atlântico Sul e sua projeção na Antártida sul-americana como problema continental María Pilar Llorens e Eduardo José Pintore 1 Pode parecer provocativa a afirmação de que a Guerra das Malvinas, desencadeada em 1982, foi a primeira guerra travada pela Antártida. Não é nossa vontade pecar por provocadores, mas refletir sobre a projeção e a importância que o conflito de soberania sobre as Malvinas e Ilhas do Atlântico Sul tem não só para a Antártida argentina, mas para toda a Antártida sul-americana e, em geral, para as relações dos diversos Estados sobre o continente branco. Deste modo, as projeções 1 Eduardo José Pintore é doutor em Direito pela Universidade Nacional de Córdoba. María Pilar Llorens é advogada pela mesma Universidade. 178 Malvinas na UNIVERSIDADE Concurso de Ensaios 2012 da questão das Malvinas na Antártida afetam os direitos e interesses tanto de Estados do continente americano, especialmente de sua região meridional, como do continente europeu, considerando os interesses que a Grã Bretanha, em particular, e a União Europeia, no geral, têm sobre estes espaços. Nesta perspectiva, a questão das Malvinas irradia seus efeitos sobre três continentes, e sua solução dependerá, em grande medida, das relações que se estabelecerão entre eles. É a esta afecção tricontinental da questão das Malvinas que queremos dedicar os parágrafos seguintes para, assim, começar a avaliar e repensar a verdadeira importância desta questão para o futuro da Argentina e de toda a América Latina. Antes de entrar propriamente nesta análise, é necessário lembrar que a Antártida se encontra sujeita a um regime de direito peculiar conhecido como Sistema Antártico. Este nome é usado para designar um complexo de acordos, entre os que se destaca o Tratado Antártico de 1 1961, e de normas que têm como objetivo coordenar as relações entre os Estados no continente branco. O direito que rege na Antártida em virtude dessas normas jurídicas trata sobre a investigação, a conservação da flora e da fauna e a mineração, entre outros aspectos relevantes. Um dos pontos essenciais deste sistema é, não obstante, a regulação das reclamações de soberania que vinham realizando alguns Estados com anterioridade à firma do Tratado Antártico. Para deixar de lado os conflitos que estas reclamações de soberania geravam, optouse por uma solução drástica: o artigo IV do Tratado Antártico estabelece o que se conhece como “cláusula de congelamento” de todas as reclamações antárticas. Esta cláusula consagra um statu quo na Antártida, estipulando que nenhuma das disposições do Tratado Antártico (e também dos acordos posteriores) será interpretada como uma renúncia aos direitos de soberania territorial ou às reclamações territoriais que as partes no Tratado tivessem feito anteriormente e, da mesma maneira, que as atividades ou os atos por elas realizados no continente também não servirão de base para futuras reclamações 179 María Pilar Llorens e Eduardo José Pintore territoriais. De acordo com o Tratado Antártico, não haverá novas reclamações de soberania territorial nem ampliações das reclamações anteriores enquanto o instrumento estiver em vigência. O Tratado Antártico tem duração indefinida, mas não eterna. Levando em consideração os interesses concretos de diversos Estados na Antártida, consideramos que é útil e necessário, para os argentinos em particular e os latino-americanos em geral, repensar e avaliar as projeções da questão das Malvinas no continente branco. A importância das reservas de recursos naturais que existem em (e ao redor) da Antártida faz com que seja absolutamente pensável um cenário sem o Tratado Antártico, com grandes conflitos pela consecução e o asseguramento, por parte dos Estados, de setores de exploração desses recursos. Esclarecida esta questão, é preciso assinalar que o conflito de soberania das Malvinas e as Ilhas do Atlântico Sul tem projeções jurídicas, diplomáticas e estratégicas, entre outras. O plano jurídico se manifesta na teoria dos setores, nos princípios de contiguidade e continuidade, no princípio do uti possidetis iuris, de 1810, e nas projeções que a disputa jurídica sobre as Malvinas podem ter para as antigas Falkland Dependencies na posição britânica. Analisemos, pois, a projeção jurídica que a questão das Malvinas tem no continente branco. Ela se dá em diversos aspectos do conflito sobre as Malvinas, bem como nos títulos, princípios e teorias que sustentam os direitos a reclamações soberanas sobre a Antártida. Vejamos, a seguir, alguns deles. Adotando a teoria dos setores, a República Argentina reclama sua porção de território sobre a Antártida do Polo Sul até o paralelo 60º latitude sul, no espaço limitado a oeste pelo meridiano 74º O, que passa pelo extremo ocidental do território nacional nas proximidades do cordão Mariano Moreno, e a leste pelo meridiano 25º O, que corresponde à parte mais oriental do território argentino, passando pelo extremo oriental das Ilhas Sandwich do Sul. Como estas se encontram, conjuntamente com as Malvinas, sujeitas à disputa de 180 Malvinas na UNIVERSIDADE Concurso de Ensaios 2012 soberania com o Reino Unido, a perda destas ilhas significaria, de acordo com a teoria dos setores, sustentada por nosso país, uma perda de massa territorial projetável até a Antártida argentina. Em outras palavras, a perda das Ilhas do Atlântico Sul significaria uma correção automática para o oeste do limite leste da Antártida argentina, com a conseguinte perda de território no continente branco. Devido a este fato, o futuro da Argentina na Antártida está indissoluvelmente ligado à evolução do conflito pelas Malvinas e as Ilhas do Atlântico Sul. É claro que a República Argentina não fundamenta seus direitos soberanos sobre uma porção da Antártida somente na teoria dos setores – ela possui também outros títulos, derivados da geografia e da história, que serão mencionados a seguir. No entanto, a importância da teoria dos setores para fixar os limites do espaço argentino no continente branco é 2 indiscutível. A mesma teoria é seguida pela República do Chile para fixar os limites de seu setor entre os meridianos 53º O e 90º O. Esta teoria parece ser a seguida pelo Tratado Interamericano de Assistência Recíproca de 1947, embora ele não a declare abertamente. Este tratado, de caráter defensivo, estabelece no artigo 4º uma zona de segurança americana que inclui a porção da Antártida mais próxima à Argentina e ao Chile, isto é, a Antártida sul-americana. Este setor, considerado americano para efeitos da defesa continental, é fixado neste tratado pelos meridianos 24º O, em seu limite oriental, e 90º O, em seu limite ocidental. Outra projeção jurídica da questão das Malvinas e as Ilhas do Atlântico Sul na questão territorial da Antártida é o princípio da contiguidade, que, embora não seja capaz de constituir título sobre um território por si só, se coadjuva com os restantes títulos. Segundo este princípio, os territórios contíguos ao território de um Estado que não pertençam a nenhum Estado devem pertencer ao Estado do território mais próximo. Diz-se que tal princípio se baseia em ponderações de defesa nacional, já que tem por objetivo evitar a presença de um poder estrangeiro nas proximidades do território próprio. Pensemos, no caso das Malvinas, no perigo que representa a presença militar britânica a menos de quatrocentos quilômetros da costa argentina. Outro tipo de 181 María Pilar Llorens e Eduardo José Pintore ponderações são as de caráter econômico, já que o Estado mais próximo do território em discussão é o que se encontra melhor posicionado para mantê-lo e desenvolvê-lo. No caso das Malvinas, é possível observar a conveniência para o arquipélago de possuir comunicações de todo tipo com (e a partir de) o território argentino. Por isso, um dos fundamentos esgrimidos pela Argentina em sua disputa pelas Malvinas e as Ilhas do Atlântico Sul é a contiguidade destes arquipélagos com o território continental argentino. Pois bem, este argumento é também apresentado, conjuntamente com outros, tanto pela Argentina como pelo Chile com relação a seus territórios antárticos. Constata-se o embasamento na realidade deste argumento considerando a importância que os portos da América do Sul têm para a realização de diferentes atividades na Antártida. Referimo-nos, concretamente, aos portos de Ushuaia (Argentina) e de Punta Arenas (Chile), que são a “porta de entrada para o continente branco”. O princípio da contiguidade, por outro lado, é a base da teoria dos setores: somente os Estados que são contíguos ao continente branco têm o direito preferencial de projetar sua soberania sobre ele, de acordo com a projeção de seus pontos extremos a leste e a oeste. Tendo em vista a identidade de fundamentos entre a posição argentina com relação às Malvinas e as Ilhas do Atlântico Sul e a posição argentino-chilena sobre a Antártida sul-americana, ambas baseadas no princípio da contiguidade, o desconhecimento da vigência de tais fundamentos na questão das Malvinas faria com que sua força argumentativa se debilitasse nas reclamações argentino-chilenas sobre o território antártico. O mesmo raciocínio é válido com respeito ao princípio da contiguidade, também sustentado pela Argentina no caso das Malvinas. Assim como as Ilhas Malvinas e as Ilhas do Atlântico Sul nada mais são do que uma continuidade da massa continental argentina, a porção do território antártico reclamada pela Argentina e o Chile são, em grande medida, somente a continuidade do continente sul-americano. Isso ocorre por meio do Arco Antilhano Austral e da Península Antártica, que são uma prolongação da Cordilheira dos Andes. Do mesmo modo, o 182 Malvinas na UNIVERSIDADE Concurso de Ensaios 2012 desconhecimento do princípio da contiguidade na questão das Malvinas destruiria o valor argumentativo deste princípio na questão da Antártida sul-americana. É preciso salientar que os direitos soberanos sobre uma porção da Antártida, tanto os da Argentina como os do Chile, não se fundamentam somente na teoria dos setores nem no princípio da contiguidade e da continuidade. A par destes argumentos jurídicos de base geográfica, ambos os Estados têm argumentos jurídicos de base histórica. Trata-se dos direitos soberanos que a Espanha possuía sobre todos estes espaços, direitos que foram herdados pela Argentina e pelo Chile em face do princípio da sucessão de Estados. Assim, há uma conexão jurídica entre a questão das Malvinas e as disputas relacionadas com a Antártida, pois o argumento, em ambos os casos, funda-se no princípio do direito internacional do uti possidetis, de 1810. O uti possidetis iuris é reconhecido pela Corte Internacional de Justiça, 3 no caso relativo à disputa fronteiriça entre Burkina Faso e o Mali, como uma norma internacional de alcance geral. Segundo este princípio, os novos Estados emancipados se constituem com os limites administrativos que possuíam na época colonial. Em nosso hemisfério, portanto, todos os territórios que pertenciam à Coroa Espanhola foram transmitidos às repúblicas americanas emancipadas da metrópole de acordo com as divisões administrativas existentes na época colonial. Em virtude deste princípio jurídico, tanto a Argentina como o Chile sucederam à Coroa espanhola em seus direitos soberanos sobre os espaços do Atlântico e do Pacífico Sul, inclusive a terra australis. O reino da Espanha possuía direitos soberanos sobre as ilhas e terras do Sul, incluindo a Antártida, em virtude das Bulas Alexandrinas de 1493, do Tratado de Tordesilhas, celebrado em 1494 com o reino de Portugal, e de uma série de tratados internacionais sucessivos nos quais as outras potências europeias, entre elas a Grã Bretanha, haviam reconhecido o 4 domínio exclusivo da Espanha sobre todo este espaço. Como o princípio do uti possidetis iuris é a base jurídica fundamental das reclamações de soberania da Argentina sobre as Malvinas e as Ilhas do Atlântico Sul, um indeferimento deste princípio neste caso significaria, 183 María Pilar Llorens e Eduardo José Pintore implicitamente, sua denegação na questão da Antártida, afetando gravemente os direitos soberanos da Argentina e do Chile nesta região. Deste modo, o desconhecimento deste princípio jurídico na questão das Malvinas criaria um precedente jurídico nefasto para a defesa da Antártida sul-americana. Analisemos agora qual poderia ser, para a posição inglesa, a projeção jurídica da questão das “Falklands” no resto das Ilhas do Atlântico Sul e na porção da Antártida que constituía as Falkland Islands Dependencies. É de se notar de imediato que, devido à carência de títulos suficientes para sustentar juridicamente a ocupação militar das Ilhas Malvinas, a Grã Bretanha procura fracionar o espaço de soberania em disputa para evitar, justamente, a projeção de um resultado desfavorável na questão das Malvinas sobre as outras Ilhas do Atlântico Sul e suas pretensões na Antártida. Lembremos que a Grã Bretanha incorpora os grupos de ilhas conhecidas como Geórgia do Sul, Sandwich do Sul, Shetland do Sul, Orcadas do Sul e uma porção do continente antártico (Graham’s Land) à sua administração, ao menos 6 5 formalmente, através das Letters Patent de 1908 e 1917. As Letters Patent de 1908 7 e 1917 não incorporavam estes territórios à administração direta de Londres, mas à administração das Ilhas Malvinas, mais especificamente ao governador. Por esta razão, todos eles passaram a ser dependências das Ilhas Malvinas (Falkland Islands Dependencies), embora a Grã Bretanha se esmere em esclarecer, em sua apresentação na Corte Internacional de Justiça, que a vinculação entre as Malvinas e os outros territórios mencionados era meramente administrativa, sendo os títulos britânicos sobre cada um deles 8 separados e independentes uns dos outros. É claro que o pretenso exercício de soberania da Grã Bretanha sobre as Ilhas do Atlântico Sul e a porção da Antártida por ela reclamada era executado pela própria autoridade colonial, que exercia a soberania sobre as Malvinas. Deste modo, o exercício de soberania sobre as Falkland Islands Dependencies ficou indissoluvelmente vinculado à legalidade internacional da presença britânica nas Malvinas, bem como 184 Malvinas na UNIVERSIDADE Concurso de Ensaios 2012 da autoridade por ela estabelecida. Pois bem, se a dependência de todos esses arquipélagos e do território antártico em relação ao governo colonial britânico das Malvinas era somente administrativa, como defende a posição oficial britânica em sua apresentação na Corte Internacional de Justiça, o resultado incontestável da questão é que, caso essa presença seja categorizada como ilegal do ponto de vista internacional, os pretensos “atos de soberania” sobre os outros territórios – isto é, sobre as Falkland Islands Dependencies – que tiverem sido realizados pelo governo posto por essa presença ilegal seriam, no mínimo, questionáveis para o direito internacional, já que seu efeito como suposto exercício de soberania por parte da Grã Bretanha estaria viciado. Isso significa que, se um tribunal internacional determinar no futuro a ilicitude da administração britânica nas Malvinas, os atos realizados por essa administração nas Falkland Islands Dependencies terão sido executados por uma administração estabelecida em contravenção às normas do direito internacional. Neste caso, seria difícil afirmar que uma administração ilegal, qualificada como colonial pela Resolução 2065 (XXV) da Assembleia Geral das Nações Unidas, possa exercer legalmente a soberania sobre os territórios sob sua administração porque os títulos britânicos sobre esses territórios eram diversos e independentes uns dos outros. Como a ilicitude da presença britânica nas Malvinas se origina com a apropriação pela força do arquipélago, a expulsão de seus habitantes e a ocupação do espaço com população própria, é claro que ela começa em dois de janeiro de 1833. Em virtude disso, todos os atos realizados pela administração britânica das Malvinas sobre as terras e os mares do Atlântico Sul, inclusive antes das Letters Patent de 1908, padecem do vício de terem sido executados por um governo oriundo de uma ocupação ilícita para o direito internacional. É muito provável que, considerando toda esta situação anômala, a política de fragmentação do espaço em disputa tenha sido impulsionada por Londres para evitar a projeção nefasta que uma solução conforme a direito da questão das 185 María Pilar Llorens e Eduardo José Pintore Malvinas poderia ter para os interesses britânicos. Assim, o South 9 Georgia and South Sandwich Islands Order de 1985 retira esses arquipélagos – que, de acordo com as Letters Patent de 1908 e 1917, faziam parte das Falkland Islands Dependencies – da administração das Malvinas, outorgando-lhes uma administração autônoma que depende diretamente de Londres. O mesmo ocorreu com o British Antarctic Territory, que embora tenha sido criado em 1962, deixou de depender administrativamente das Malvinas em 1989, quando ganhou uma administração própria executada também a partir de Londres. Dando continuidade à análise proposta neste trabalho, analisaremos agora a projeção diplomática que a questão das Malvinas suscita na Antártida com relação a alguns Estados que, embora não tenham reclamado soberania antes da firma do Tratado Antártico de 1959, formularam reserva de direito em seu ato de adesão a este instrumento internacional, como é o caso da República Federativa do Brasil e da República Oriental do Uruguai. Com efeito, a amplitude das pretensões brasileira e uruguaia é determinada pela “teoria da defrontação”, isto é, pela projeção sobre a Antártida dos meridianos extremos leste e oeste das costas destes países, incluindo suas ilhas. Neste sentido, o Brasil formulou uma reserva de seus direitos sobre a Antártida ao se aderir ao Tratado Antártico.10 A República Federativa do Brasil sustenta que sua zona de interesse está localizada entre os meridianos 53º 22’ (Arroio Chuí) e 28º 48’ O (Ilha Martim Vaz), fazendo vértice no Polo Sul e tendo como limite norte o paralelo 60º S. Com isso, sua zona de interesse se encontra totalmente dentro do Setor Antártico Argentino e do pretendido pela Grã Bretanha. Consequentemente, para a solução do conflito sobre as Ilhas Malvinas e as Ilhas do Atlântico Sul, o Brasil deverá, num futuro próximo ou distante, ter a Argentina ou a Grã Bretanha, conjuntamente com a União Europeia, como principais negociadores sobre seus interesses na Antártida. Expliquemos brevemente esta problemática: a eventual perda dos direitos soberanos da Argentina sobre as Ilhas Malvinas e as Ilhas do Atlântico Sul implicaria, necessariamente, a perda de sua projeção Leste (25º O), conforme explicamos anteriormente. Neste caso, o Brasil teria que 186 Malvinas na UNIVERSIDADE Concurso de Ensaios 2012 negociar seus interesses territoriais na Antártida com a Grã Bretanha – 11 e, a partir do Tratado de Lisboa, com toda a União Europeia – no que se refere a seu limite leste e, ao mesmo tempo, com estes e a Argentina no que concerne a seu limite oeste. Se, pelo contrário, a República Argentina obtiver o reconhecimento definitivo de seus direitos soberanos sobre as Ilhas Malvinas e as Ilhas do Atlântico Sul, mantendo e fortalecendo sua projeção sobre o continente branco, a Argentina e o Brasil poderão, tal como vem sendo feito com o Chile, defender juntos uma Antártida sul-americana até o meridiano 25º O (pretensão argentina máxima a leste), deixando para futuras negociações bilaterais a questão da zona de interesse brasileiro na Antártida. É óbvio que esta situação seria muito mais favorável do que a primeira para o Brasil, já que se trataria de uma negociação entre iguais. O que foi dito aqui com relação à República Federativa do Brasil vale para a Antártida 12 uruguaia, pois, assim como o Brasil, o Uruguai formulou uma reserva de 13 direitos ao se aderir ao Tratado Antártico. Por último, a questão das Malvinas tem uma projeção estratégica na Antártida, a qual procuraremos esboçar nas seguintes linhas. Para a Grã Bretanha, as Malvinas não têm só o grande valor estratégico de estarem localizadas nas proximidades da única passagem natural entre o Atlântico e o Pacífico: se o Reino Unido perdesse a ocupação ilegal das Malvinas, perderia uma base territorial fundamental para a logística de uma futura exploração dos recursos naturais do continente branco. Se observarmos o mapa mundi, no extremo onde se encontra a Europa, no hemisfério norte, e dirigirmos o olhar para a Antártida, no hemisfério sul, notaremos que a rota obrigatória da Inglaterra de (e para) a Antártida é o Oceano Atlântico, passando necessariamente não só pela Ascension Island, dependência britânica localizada entre o Brasil e a África, mas também pelas Falkland Islands, porta que se abre nas bordas da convergência antártica. A projeção estratégica das Malvinas na Antártida, para a situação particular da Grã Bretanha como potência do hemisfério norte, pode ser 187 María Pilar Llorens e Eduardo José Pintore entrevista já nos primeiros documentos britânicos sobre o continente 14 branco. Com efeito, nas Letters Patent de 1908 e 1917, antes mencionadas, o Estado britânico batiza os territórios pretendidos na Antártida de The Falkland Islands Dependencies. Nas Letters Patent não se estabelece uma vinculação de títulos entre as Malvinas e os territórios pretendidos na Antártida, mas uma dependência administrativa que sujeitava estes últimos às posses nas Malvinas. A explicação para isso é lógica: as Malvinas eram o último assentamento britânico permanente no extremo sul de sua área de influência. É por isso que, para a Grã Bretanha, a ocupação ilegal do arquipélago representa uma base territorial permanente no Atlântico Sul. O território malvinense, base da presença britânica na região, vizinha da passagem natural entre o Atlântico e o Pacífico, constitui-se, assim, no trampolim necessário para lançar a exploração dos recursos naturais da Antártida. Deste ponto de vista, é possível afirmar, como o fizemos no começo destas reflexões, que a Guerra das Malvinas significou, ao menos para a Grã Bretanha, a primeira guerra pela Antártida. Talvez isto nunca tenha sido suficientemente analisado por nós, argentinos, mas é importante que consideremos a projeção estratégica das Falkland Islands no British Antarctic Territory para, assim, compreender o valor que a potência ocupante atribui às Ilhas Malvinas e Ilhas do Atlântico Sul, por ela ocupadas. É preciso lembrar que todos os assuntos de importância estratégica para a Grã Bretanha o são também para a União Europeia, o que explica a inclusão das Ilhas Malvinas e Ilhas do Atlântico Sul e do Território Britânico como territórios associados ao bloco, de acordo com o estabelecido no Anexo II do Tratado de Lisboa. A Europa, assim como o Japão, é um espaço muito desenvolvido tecnologicamente e com supercapacidade industrial, porém pobre em recursos naturais. A China acrescenta seus índices de produção, que se encontram muito acima dos recursos naturais próprios disponíveis, e os Estados Unidos, por sua vez, mantêm níveis de produção superiores às matérias primas que podem ser obtidas em seu próprio território. Assim, a característica comum dessas potências é que todas elas 188 Malvinas na UNIVERSIDADE Concurso de Ensaios 2012 precisam cada vez mais de recursos naturais, sobre tudo energéticos, que elas próprias não têm. Isso gerou um aumento progressivo dos preços dos recursos naturais em geral, que chegaram a níveis históricos. Para dar um exemplo, um barril de petróleo que não chegava a U$S 10 no começo da década de setenta, em 2003 custava U$S 30 e, hoje, ronda os U$S 100. Como consequência desta evolução, as reservas de recursos naturais que antes não eram rentáveis devido à sua constituição e localização, passaram a sê-lo hoje e serão ainda mais nos próximos anos. Numerosas dessas reservas se encontram na região dominada pelas Ilhas Malvinas, por outras Ilhas do Atlântico Sul e pela própria Antártida. Neste sentido, é possível observar que tanto a Ascension Island, incluída no Anexo II do Tratado de Lisboa como território britânico de ultramar associado à União Europeia, como as Falkland Islands são os pilares fundamentais da ponte logística para a conexão EuropaAntártida. Se a Europa perder as Falkland Islands, como chegará à Antártida se não for pela Argentina? A par da questão estratégica dos recursos naturais do Atlântico Sul, há outra relacionada com a vizinhança dos Estados americanos e os Estados europeus no sul do planeta: a questão das Malvinas determinará se os países da parte sul do continente americano se transformarão definitivamente em Estados contíguos à União Europeia, com a conseguinte presença militar da OTAN em todo o setor correspondente às Ilhas Malvinas e às Ilhas do Atlântico Sul. Com respeito à Antártida sul-americana, a questão das Malvinas determinará não só a própria vizinhança com a Europa – já que a leste da Antártida sul-americana, entre 25 º O e 20º O, existe um setor britânico remanescente, e a oeste dele está todo o setor reclamado pela Noruega –, mas a magnitude dessa vizinhança, isto é, o tamanho do espaço europeu no continente branco, que dependerá do meridiano no qual se traçará o limite entre cada uma das zonas de presença. Este meridiano, conforme já mencionado, é fixado no ponto extremo oriental da República Argentina nas Ilhas Sandwich do Sul. 189 María Pilar Llorens e Eduardo José Pintore Em virtude das reflexões realizadas, a questão das Malvinas afeta, do ponto de vista estratégico, três continentes: o americano, pois que em sua parte sul se encontram os Estados que possuem direitos soberanos e proximidade geográfica com a Antártida; o europeu, pelos interesses que a União Europeia tem nos recursos desta região; e o antártico, pela projeção do conflito das Ilhas Malvinas nas diferentes áreas aqui analisadas.15 A conclusão à qual chegamos após estas reflexões é que o conflito pelas Ilhas Malvinas e as Ilhas do Atlântico Sul rege o destino da Antártida argentina e de sua configuração. Da questão das Malvinas depende também o futuro de toda a Antártida sul-americana, o qual envolve não só a Argentina e o Chile, mas também o resto dos países da região. Além disso, a questão das Malvinas determinará, em grande medida, o tipo de presença que tanto a Grã Bretanha como a União Europeia vão ter nas próprias Ilhas do Atlântico Sul e no continente antártico. Com suas projeções na Antártida, a questão das Malvinas se encontra no ponto de ruptura entre os interesses de dois blocos regionais. A Grã Bretanha não está sozinha, a Argentina também não. Face ao exposto, a questão das Malvinas não pode ser pensada isoladamente da questão antártica. Da mesma forma, estas questões não podem ser pensadas individualmente – isto é, com uma visão meramente nacional– mas, pelo contrário, devem ser pensadas em termos regionais. Assim, a questão das Malvinas constitui um problema que repercute, necessariamente, no futuro dos países latinoamericanos no continente branco e de suas relações com a Europa. Notas 1 - O Tratado Antártico foi adotado em 1º de dezembro de 1959 e entrou em vigor em 23 de junho de 1961. 2 - Sobre a importância da teoria dos setores na Antártida sul-americana, vide Oscar PINOCHET De La BARRA, La Antártica Chilena, Santiago do Chile, 1955, p. 123 e ss. 3 - Case concerning the frontier dispute (Burkina Faso/Republic of Mali) ICJ Reports (1986), p. 554. 4 - Entre os tratados que podem ser mencionados, encontramos o Tratado de Paz de 190 Malvinas na UNIVERSIDADE Concurso de Ensaios 2012 1604 entre a Espanha e a Inglaterra, que põe fim à guerra anglo-espanhola e determina o retorno ao statu quo ante bellum, deixando sem efeito os direitos adquiridos com posterioridade à deflagração da guerra; o Tratado de Madri de 1670, por meio do qual a Espanha reconhece as posses inglesas na América do Norte e, em contrapartida, o Reino da Grã Bretanha se compromete a não navegar nem comerciar nos lugares que a Espanha possuía nas Índias Ocidentais; o Tratado de Madri de 1713, por meio do qual a Coroa Britânica se compromete a não deixar que seus navios ultrapassem nem comerciem nos mares do Sul, nem que trafiquem em nenhuma outra paragem das Índias espanholas, disposição ratificada no Tratado de Utrecht de 1713; e a Convenção de São Lourenço de 1790, através da qual se estabelece um statu quo com relação às zonas que já estavam ocupadas, impossibilitando, assim, a fundação de novas colônias na América. Para mais informações, é possível consultar o discurso pronunciado pelo representante argentino José María Ruda no Subcomitê III do Comitê Especial encarregado de examinar o estado de aplicação da Declaração sobre a concessão da independência aos países e povos coloniais, de 9 de setembro de 1964. Conhecido também como Alegato Ruda (“Arrazoado Ruda”), o documento está disponível em: http://constitucionweb.blogspot.com.ar/2012/03/alegato-ruda-1964.html [Consulta realizada no dia 24/06/2012]. 5 - Letters Patent of 21 July 1908, publicado em The Falkland Islands Gazette, de 1º de setembro de 1908, e no British and Foreign State Papers, 1907-08, Vol. 101 (London, 1912), págs. 76 e 77. 6 - Letters Patent of 28 March 1917, publicado em The Falkland Islands Gazette, de 2 de julho de, e no British and Foreign State Papers, 1917-18, Vol. 111 (London, 1912), págs. 16 e 17. 7 - Na Letters Patent de 1908, lê-se: “2. And we do hereby further declare that from and after such publication as aforesaid the Governor and Commander-in-Chief of our Colony of the Falkland Islands for the time being (hereinafter called the Governor) shall be the Governor of South Georgia, the South Orkneys, the south Shetlands, and the Sandwich Islands, and the territory of Graham´s Land (all of wich are hereinafter called the Dependencies); and we do hereby vest in him all such powers of government and legislation in and over the Dependencies as are from time to time vested in our said Governor in and over our Colony of the Falkland Islands”. 8 - Antarctica Cases (United Kingdom v. Argentina; United Kingdom v. Chile), ICJ, Pleadings, oral arguments, documents, 1956, p. 2, especialmente a nota de rodapé no 2 desse parágrafo. 9 - Vide The South Georgia and South Sandwich Islands Order 1985. Este documento pode ser encontrado em http://www.sgisland.gs/download/legislation/SGSSI%20Order%201985.pdf [Consulta realizada no dia 24/06/2012]. 10 - Ato de adesão do Brasil ao Tratado Antártico, realizado no dia 16 de maio de 1975. 11 - Isto se deve a que o Tratado de Lisboa (Tratado da União Europeia de 2007) inclui, em seu Anexo II, o “Território Antártico Britânico”. Assim como os outros 191 María Pilar Llorens e Eduardo José Pintore territórios mencionados no Anexo II, este território é “associado” à União Europeia com o intuito de estabelecer entre eles “estreitas relações econômicas” (vide o art. 198 do Tratado de Lisboa). 12 - Vide Julio C. MUSSO, Antártida Uruguaya, Documentos El País, Montevidéu, 1970. 13 - Ato de adesão do Uruguai ao Tratado Antártico, realizado no dia 11 de janeiro de 1980. 14 - Gough menciona, como causa de longo alcance deste documento, o desejo de controlar os assuntos comerciais das Malvinas e de suas dependências. Barry M. GOUGH, The Falkland Islands/Malvinas. The contest for empire in the South Atlantic, Londres, 1992, p. 147. 15 - Existem projeções da questão das Malvinas na Antártida a partir de outros pontos de vista, como, por exemplo, o econômico, o econômico-logístico e o do tráfego marinho na região da convergência antártica com o Pacífico, ao sudoeste da América do Sul, e com o Atlântico, ao sudeste, entre outros. Esta análise, no entanto, excederia em muito o marco e o objeto deste ensaio. 192 Malvinas na UNIVERSIDADE Concurso de Ensaios 2012 Menção especial A MORTE EM CONTEXTO: DIFERENTES FORMAS DE DAR SENTIDO À MORTE NA GUERRA DAS MALVINAS Laura Marina Panizo Laura Marina Panizo A MORTE EM CONTEXTO: DIFERENTES FORMAS DE DAR SENTIDO À MORTE NA GUERRA DAS MALVINAS Laura Marina Panizo 1 Introdução Embora toda sociedade ou comunidade possua formas específicas de se relacionar com a morte e com os mortos, de acordo com suas tradições culturais e religiosas, o sentido dado à morte de uma pessoa depende, também, do contexto histórico e das circunstâncias particulares desse acontecimento. Desta forma, as diferentes categorias de mortos e de seus próximos, propõem formas alternativas 1 María Laura Panizo é doutora em Ciências Antropológicas e pesquisadora do Instituto de Altos Estudos Sociais da Universidade Nacional de San Martín (IDAES-UNSAM). 194 Malvinas na UNIVERSIDADE Concurso de Ensaios 2012 de se aproximar ao falecido e diferentes formas de homenagem e rememoração. O caso da morte na guerra, por exemplo, pode produzir uma ruptura nas formas habituais de enfrentá-la, provocando mudanças significativas nas condutas rituais dos familiares e amigos do falecido. Por sua vez, os mortos têm diferentes tipos de pessoas próximas, já que eles não são apenas filhos, pais, irmãos e cônjuges, mas também companheiros de batalha dos sobreviventes. No caso dos familiares, em que há uma relação de parentesco estabelecida ao longo do tempo, a morte, resultado da guerra, produz uma ruptura repentina nas relações sociais da vida cotidiana. Pelo contrário, a relação estabelecida entre o tombado na guerra e seu companheiro de batalha se refere diretamente à experiência da guerra, como marca de identidade. Esta remete não só às experiências comuns em situações limite, mas também ao enfrentamento “cara a cara” que os ex-combatentes tiveram com a morte, ora por terem suas vidas ameaçadas durante o conflito, ora por terem presenciado a morte de seus companheiros, de quem em muitos casos tiveram que se despedir e enterrar. Neste sentido, o significado que os familiares ou companheiros de batalha dão às perdas de seus próximos vai depender, principalmente, do tipo de relação estabelecida, pois os diversos tipos de relações com os mortos podem envolver formas diferentes de significar e dramatizar 1 a morte. No caso da Guerra das Malvinas, é necessário salientar que ela ocorreu no contexto da última ditadura militar (1976-1982), momento no qual os direitos humanos foram sistematicamente violentados pelas Forças Armadas, responsáveis pela detenção clandestina, o desaparecimento e a morte de milhares de cidadãos. Assim, nasceram na Argentina diferentes organizações de direitos humanos que tinham como objetivo a busca da verdade e da justiça para os desaparecidos, apontados por elas como vítimas da ditadura militar. Neste sentido, a análise das várias formas de significação da morte na guerra não pode deixar de considerar as interpretações dos sujeitos sociais sobre o que ocorreu durante o terrorismo de Estado. 195 Laura Marina Panizo Assim, são vários os fatores que fazem com que os sujeitos sociais encontrem formas muito peculiares de evocar e lembrar seus mortos nas Malvinas. Neste texto, analisaremos dois grupos de pessoas próximas aos tombados na guerra: os familiares que integram a comissão Familiares dos Tombados nas Malvinas e nas Ilhas do Atlântico Sul, por um lado, e os ex-combatentes do Centro de ExCombatentes de La Plata (CECIM), por outro. Para poder entender as formas como os membros desses organismos enfrentam a problemática da morte na guerra, falaremos em marcos simbólicos de interpretação. Estes são repertórios simbólicos que, através de uma ideologia em particular, orientam a forma como os sujeitos sociais dão sentido à morte no contexto da guerra, bem como o modo como as práticas rituais devem ser realizadas, tanto no âmbito público como no privado. É por meio desses repertórios, mais ou menos hegemônicos, que os familiares e ex-combatentes entendem os fatos ocorridos na guerra, identificando-se entre si como membros deste grupo social determinado.2 Desta forma, a integração do indivíduo aos grupos possibilitou um processo de socialização, entendida por muitos sujeitos sociais como um processo de aprendizagem e negociação no que concerne à elaboração do sentido da morte na guerra. A seguir, descreveremos brevemente o marco simbólico de cada grupo e veremos como eles encontram formas muito diferentes de entender as mortes na guerra, no contexto da última ditadura militar na Argentina. Familiares de Tombados nas Malvinas e nas Ilhas do Atlântico Sul versus ex-combatentes do Centro de Ex-Combatentes de La Plata (CECIM) As denúncias de maus-tratos realizadas pelos ex-combatentes contra seus superiores, a par das duríssimas condições de vida sofridas por eles durante a guerra, fizeram com que os questionamentos aos militares se assimilassem aos relacionados com os direitos humanos. 196 Malvinas na UNIVERSIDADE Concurso de Ensaios 2012 Nesta lógica, a sociedade argentina começou a interpretar o conflito como de exclusiva responsabilidade das Forças Armadas, motivo pelo qual os ex-soldados foram identificados com os desaparecidos e vistos como vítimas da ditadura militar (Guber, 2004; Lorenz, 2006). Ao contrário dos ex-soldados, os tombados na guerra foram considerados pelos governos democráticos posteriores à ditadura como seres que sacrificaram sua vida pela pátria. Da mesma forma como nasceram as organizações de direitos humanos para reclamar pelos desaparecidos, foram criadas, com o fim da Guerra das Malvinas, diferentes organizações não governamentais, tanto civis como de ex-soldados. Elas foram se agrupando por regiões do país e, atualmente, também se diferenciam pelo tipo de ex-soldados que as integram. Assim, enquanto alguns centros convocam tanto exsoldados recrutas como de carreira, outros grupos aceitam apenas a participação dos ex-combatentes que participaram da guerra como recrutas. Da mesma maneira, cada organização tem sua própria forma de dar sentido à Guerra e, portanto, seus modos de agir na arena pública respondem aos marcos simbólicos de cada uma. Dentro da variedade destes grupos, trabalharemos aqui com os depoimentos de alguns ex-combatentes do Centro de Ex-Combatentes de La Plata (CECIM). Apesar de alguns familiares colaborarem ou participarem atualmente das organizações de ex-soldados ou de outras referidas à Guerra, a única comissão oficial que reúne familiares desde o pós-guerra até os dias de hoje é a Familiares dos Tombados nas Malvinas e nas Ilhas do Atlântico Sul. A organização nasce com um grupo de familiares que, com o fim da guerra, começa a se reunir devido à necessidade que cada um tinha de se encontrar com outras pessoas que também tinham perdido seus entes queridos no conflito e, além disso, movidos pela necessidade de honrar os mortos, de conhecer as Ilhas Malvinas e de construir um monumento no cemitério de Darwin, na Ilha Soledad. Assim, a 197 Laura Marina Panizo instituição é conformada principalmente por irmãos, pais e mães de tombados na guerra, sejam eles soldados recrutas ou de carreira das três forças (Exército, Marinha e Aeronáutica). O grupo adquire o caráter de comissão em 1994, na capital do país, com o intuito de honrar publicamente seus entes queridos mortos na Guerra, de reafirmar os direitos de soberania sobre as Ilhas Malvinas e de organizar atividades que, entre outras coisas, reafirmassem, em suas palavras, o “conceito de argentinidade” e “os valores culturais, espirituais e sociais que caracterizam o povo argentino”. Assim, dentro da trama simbólica da história argentina e dos símbolos associados à unificação da diversidade cultural – tais como os símbolos pátrios, os religiosos e as figuras dos próceres –, os familiares das Malvinas reivindicam o compromisso com a bandeira, reapropriam-se da imagem da Virgem de Luján (um forte símbolo da identidade nacional) e identificam seus familiares com os heróis nacionais consagrados pela história oficial. Como, nas representações associadas à história recente, a vitimização e a denúncia de violações dos direitos humanos são associadas ao desaparecimento de pessoas, a elaboração de sentidos para a morte dos tombados na guerra, inserida também no contexto da última ditadura militar, não foi sustentada pela denúncia social, mas recorrendo à ideia da unidade nacional. Deste modo, fazendo referência à mitologia heroica nacional oficial, este organismo ressalta a “argentinidade” como conceito que sintetiza uma nação unificada por valores, crenças e práticas religiosas católicas, que eles entendem como tradicionais e características do povo argentino. Da mesma forma, os familiares enfatizam a figura do herói, e não a da vítima, procurando abstrair a guerra do terrorismo de Estado e propondo a inclusão dos tombados na guerra no panteão dos grandes cidadãos nacionais. Assim, para eles, os heróis das Malvinas, a par de outros heróis nacionais, distinguem-se de outros mortos como os desaparecidos, já que estes não morreram em defesa de um território nacional ameaçado por forças estrangeiras: Além disso, a diferença que nós temos com a Hebe de Bonafini é que 198 Malvinas na UNIVERSIDADE Concurso de Ensaios 2012 seus filhos morreram lutando contra seus próprios irmãos. Meu irmão não foi morto por um militar, ele foi morto por uma bomba inglesa, e morreu defendendo os subversivos, os militares, os católicos, os judeus, todos aqueles que vivem nesta pátria. Esta é a grande diferença: que a morte deles tenha valido e que seja valiosa porque ela foi além da ditadura. (María Fernanda, 03/04/09). Morreram pela pátria, foram levados legalmente, não de forma oculta, essa é a diferença entre os desaparecidos e os nossos. Um povo aplaudiu, no dia dois de abril a praça ficou lotada. (Delmira, 03/09/09). Com a ideia de que os tombados deixaram seu sangue em território de todos por uma causa nacional, os familiares se valem de uma metáfora orgânica para entender a nação como uma comunidade moral que vai além de seus governantes. Essa associação simbólica corpo-nação, presente nas representações de todos os familiares, legitima a incorporação dos tombados nas Malvinas à linhagem dos ilustres cidadãos nacionais, já que seus entes queridos deram a vida pela pátria e foram, por sua vez, consagrados pelo Estado argentino como heróis 3 nacionais mediante a Lei nº 24.950. O objetivo principal da Familiares das Malvinas foi, desde o início, a preservação da memória dos tombados como heróis nacionais e a promoção de uma atitude social de homenagem pública a eles, como aconteceu com outros mortos ilustres que os antecederam. A categoria de herói remete, nestes casos, a vidas tragicamente interrompidas por uma causa nacional e que, portanto, são consideradas merecedoras de um peculiar reconhecimento social. Para os familiares, o ato heroico, inserido num marco simbólico que 4 podemos chamar de nacionalista, significa o sacrifício pela pátria e um ideal de valores que incluem a ideia de cumprimento da palavra dada. Desta forma, muitos familiares reivindicam o fato de os tombados terem cumprido com o juramento à bandeira no Serviço Militar: Ele se comprometeu com a situação. Por quê? Por causa de seus valores. Então, como ele voltaria com seus companheiros que tivessem morrido e tudo mais? Iria para uma sala de aula falar da 199 Laura Marina Panizo pátria, de San Martín e de Belgrano? (Delmira, 03/09/09). O que Delmira está querendo nos indicar, junto com outros familiares, são os valores de responsabilidade social que relacionam os princípios morais do soldado tombado nas Malvinas com os de San Martín e Belgrano, pais fundadores da Pátria. Ativando, assim, os símbolos que a história nacional oferece, os familiares constroem um novo panteão de heróis e uma memória sobre a guerra, que reclama “não esquecer” os atos heroicos dos soldados. Para isso, as passagens no campo de batalha os enaltecem como pessoas especiais, escolhidas: O soldado inglês reconhece o valor desse soldado, com sua tenra idade e falta de preparação, como eles se defenderam [...]. Eu sei que houve maus-tratos em Monte Longdon [...] houve estaqueamentos, houve sim. Paremos de revirar tanta sujeira, resgatemos a coragem desses garotos que, assim mesmo, não são vítimas, mas duplamente heróis, pois além de esperar pelo inimigo, eles conviviam com o inimigo ao lado; eu não os chamaria de vítimas, mas de duplamente heróis (María Fernanda, 26/06/07) [grifo meu]. O relato de Maria Fernanda sobre a experiência da guerra é relevante, pois esta forma “duplamente heroica” de entender o sofrimento dos maus-tratos e das más condições de vida durante o conflito transforma a violência sobre os corpos num sacrifício patriótico e num exercício simbólico de cidadania. É também bastante frequente que os familiares façam referência às condições sub-humanas que os seus parentes sofreram como próprias da situação. Essa violência sobre os corpos entendida como “cidadania heroica” pelos familiares é, no entanto, considerada como uma “violação dos direitos humanos” por muitos soldados, como veremos a seguir. É relevante apontar um contexto social no qual é indispensável diferenciar os tombados na guerra das vítimas da ditadura, cujos responsáveis pelos desaparecimentos e mortes estão ainda sendo ajuizados por seus crimes. Assim, para que a 5 Causa das Malvinas não ficasse desprestigiada pelas condutas condenáveis dos militares com relação aos desaparecidos, muitos familiares tentaram separar a guerra do fato de ela ter sido conduzida 200 Malvinas na UNIVERSIDADE Concurso de Ensaios 2012 por uma ditadura militar responsável pelo desaparecimento de pessoas e pela apropriação ilegal de bebês nascidos em cativeiro. Maria Fernanda, cujo irmão foi, assim como o filho de Delmira, um dos soldados mortos nas Malvinas, ressalta o papel de seu familiar que, enquanto cidadão, foi defender um território que “pertence a todos nós”, sem importar as diferenças partidárias próprias do momento. Assim, o tombado nas Malvinas unifica todos os argentinos contra o inimigo externo. Pelo contrário, os ex-combatentes do Centro de Ex-Combatentes de La Plata (CECIM) destacam, da experiência da guerra, não o inimigo externo, mas o interno, a condução militar. Assim, enquanto a Familiares das Malvinas não se constitui tendo por base as reclamações e protestos, uma das características do CECIM é seu permanente compromisso com a política de investigar as torturas e maus-tratos que os soldados sofreram por parte dos seus superiores durante a guerra (os estaqueamentos, a omissão de socorro, a morte por inanição, e a redução a condição análoga à de escravo, por exemplo): Uma das coisas que sempre fizemos é tentar mostrar todas as coisas que aconteceram durante a guerra. Isto foi muito difícil para o CECIM, mas ele defendeu sua marca, isto é, este é um Centro que foi crítico, contestatário, opositor à ditadura militar primeiro e, depois, à falta de políticas de atendimento ao setor (Rodolfo, 06/09/06 CECIM, La Plata). Desta forma, no Centro de Ex-Combatentes das Ilhas Malvinas de La Plata (CECIM), o pessoal de carreira – isto é, militares, ex-militares ou ex-soldados das Malvinas que foram militares antes da Guerra – não pode se associar. Esta política se deve não só ao repúdio pelo comportamento das forças armadas durante o conflito, mas também pela repressão ilegal que elas exerceram sobre a sociedade com o desaparecimento de pessoas. Neste sentido, eles têm um marco simbólico de interpretação da história argentina recente em que os excombatentes da Guerra são considerados vítimas da ditadura tanto quanto os desaparecidos. Assim, os ex-combatentes de La Plata, a 201 Laura Marina Panizo partir de um marco simbólico que enfatiza os direitos humanos, trabalham pela formação de uma memória da guerra que, dentre outras coisas, posicione aqueles que nela participaram como vítimas da ditadura militar: Para nós, membros do CECIM, as violações dos direitos dos soldados na guerra são um crime; e esse conceito, segundo entendemos, não é um problema de pouca relevância, uma vez que ele diz respeito à dignidade do combatente que defende sua Pátria. Nas Malvinas foram comprovados mais de cem atos de estaqueamento, maus-tratos e, também, vexações e assassinatos de soldados (Rodolfo, 03/07/10 CECIM, La Plata). A seguir, veremos como estes dois marcos simbólicos de interpretação – o nacionalista dos Familiares das Malvinas e o que enfatiza os direitos humanos dos ex-combatentes do CECIM – são dramatizados na mostra organizada pelo Ministério da Defesa em comemoração aos 25 anos da Guerra das Malvinas. Conflito de interpretações Um dos objetivos da mostra foi, segundo a ministra Nilda Garré, que os diversos atores sociais relacionados com a guerra pudessem apresentar suas diferentes perspectivas sobre ela. Portanto, o Ministério mostrou diferentes objetos utilizados pelas Forças Armadas durante a Guerra, dando espaço para que ex-combatentes e familiares, como os Familiares das Malvinas e o CECIM, pudessem expor sua visão sobre ela. Nesta performance, os ex-combatentes do CECIM apresentaram seu ícone de identidade principal: um boneco deitado, com as pernas e mãos abertas, representando um soldado estaqueado durante a guerra: O boneco foi um símbolo que expressou uma realidade oculta por muitos anos. Depois de 25 anos desde o fim da guerra, a política formal do Estado reconhecia, no próprio seio das Forças Armadas, que houve estaqueamento de soldados. Considero que este foi um passo adiante 202 Malvinas na UNIVERSIDADE Concurso de Ensaios 2012 para a democracia, o reconhecimento daquilo que, por muitos anos, os soldados de diferentes forças tinham denunciado (Rodolfo, 03/07/10, CECIM, La Plata). O boneco estaqueado é a representação mais evidente do que a ideologia dos militares levou às Malvinas, é colocar o preto no branco. (Ernesto, 05/07/10, CECIM, La Plata). O boneco estaqueado representa o conflito interno e a diversidade em face de outros símbolos identificadores dos Familiares como a Virgem de Luján, que se relaciona com a unidade e a fraternidade entre todos os argentinos, indo além das diferenças e desigualdades. Pelo contrário, a denúncia, a reflexão crítica, a oposição ao nacionalismo militar e à ditadura são essenciais no modelo interpretativo por meio do qual os ex-combatentes do CECIM dão sentido às experiências vividas durante a guerra. Neste sentido, é importante ressaltar que a Ministra faz parte de um governo cuja política de promoção dos direitos humanos se apresenta como a antítese da ditadura.7 Assim, o quadro interpretativo do governo sobre a história recente é coerente com as demandas do CECIM, dado que o boneco estaqueado mostra um tipo de tortura entre as várias sofridas por muitos ex-combatentes durante a guerra: Fala-se do estaqueamento como o caso mais claro de tortura dentro do funcionamento das forças armadas, mas também houve outros casos, outras situações, como quando pegavam os lábios dos garotos com pinças. Havia outros padecimentos, como fazer você tirar a roupa do torso ou ficar de camiseta, ou sem ela, ou fazer você ficar descalço e enfiar os pés numa poça, às três ou quatro da manhã, com uma sensação térmica de 15 graus abaixo de zero, tudo isso sempre na mira de um fuzil, não é? (Gastón, 06/09/06, CECIM, La Plata). Com o boneco estaqueado, dramatiza-se a construção da política de Estado com relação à violência sobre os corpos, corporificando os maus-tratos sofridos nas mãos dos superiores. A exposição do corpo “sofredor” do soldado, violentado na guerra pela ditadura militar, vem 203 Laura Marina Panizo ao encontro das demandas da organização Familiares de Desaparecidos e de outros organismos de direitos humanos, no que se refere à violência exercida também sobre os corpos dos desaparecidos pelo terrorismo de Estado. Neste sentido, as narrativas do CECIM se contrapõem ao marco simbólico de interpretação dos Familiares das Malvinas, já que eles propõem uma memória da guerra que faz ênfase na vitimização dos soldados: Nós assumimos o compromisso de reivindicar os tombados na guerra desde o primeiro dia em que voltamos para o continente. Eles morreram certamente por uma causa justa, que é a de defender a soberania. Seu uniforme foi manchado de sangue inimigo, o dos ingleses, não de compatriotas, como o uniforme de alguns militares. Por isso, as mortes das Malvinas, de jovens de 19, 20 anos, somam-se às dos jovens que morreram durante a ditadura” (Ernesto, 05/07/10, CECIM, La Plata). Desta forma, os desaparecidos são igualados aos ex-soldados como vítimas da ditadura. Neste sentido, é ilustrativo que o boletim oficial do CECIM se chame Anti-heróis, em referência, justamente, à posição do grupo sobre a heroicização dos soldados, ressaltando o fato de que os corpos que voltaram vivos são testemunhas dessa violência: “Para aqueles que, como eu, tiveram a sorte de sobreviver, seria contraproducente nos glorificar porque isso te desumaniza, você não tem mais sentimentos, nem necessidades, nem sofrimentos” (Ernesto, 05/07/10, CECIM, La Plata). Voltando à questão da mostra, os Familiares acharam incorreto que a ministra não mostrasse uma visão oficial, homogênea e, certamente, unilateral. Sentiram-se ofendidos com a performance do CECIM e se retiraram do evento. Para os Familiares das Malvinas, a experiência da guerra como ato patriótico faz com que essa pessoa deva ser considerada “honorável”. A recompensa esperada por eles pela conduta de seus entes queridos é a homenagem aos heróis por meio de demonstrações de respeito por parte da sociedade. Esta postura implica uma posição determinada sobre como lembrar a guerra, uma 204 Malvinas na UNIVERSIDADE Concurso de Ensaios 2012 vez que, para os familiares, ela deve ser lembrada e transmitida pelo reconhecimento dos atos heroicos dos soldados, e não pelas humilhantes situações vividas por eles, para não desonrar sua memória, da qual os familiares se sentem orgulhosos: O que diria hoje o meu irmão se estivesse sentado aqui? Vítima do quê, irmã? Eu fui dar a vida para defender a pátria. Vítimas são as do Cromagnón , vítimas foram os desaparecidos [...]. Mas o meu irmão foi morto pelo inimigo, pelos ingleses, não por um irmão, ele foi defender os seus irmãos, e essa é a diferença entre vítima e herói. Dói muito quando os nossos heróis são tratados como vítimas, e mais ainda como vítimas da ditadura (María Fernanda Araujo, 26/06/07, Familiares das Malvinas). Então, a forma que os Familiares têm de lembrar a guerra, como instituição, é a de resgatar a coragem dos soldados que foram à guerra para defender a Pátria, e não por meio da vitimização. Assim, num contexto histórico que muitos familiares percebem como de desmalvinização, diante da necessidade de legitimar socialmente a causa das Malvinas, a Familiares das Malvinas se empenha em reconhecer os atos heroicos de soldados e militares. Por isso, Mohamed Alí Seineldín foi considerado pela comissão como um militar exemplar na guerra: Assim como estamos falando da má condução que meu irmão teve, também houve outras boas. Eu lhe falava sobre Seineldín. Veja, quando Seineldín entrava na fila da comida com os meninos, ele fazia questão de ficar no último lugar. E eu explicava para ela a diferença entre os militares e os milicos (María Fernanda, 26/06/07, irmã de um tombado na guerra e membro da comissão Familiares das Malvinas). Quando o Héctor me disse “vem cá, que amanhã temos uma reunião com o Sr. Seineldín”. “Com esse?” – respondi, às vezes a gente erra sem conhecer a pessoa, e você não sabe que maravilha [...] O senhor Seineldín disse umas palavras, gostei de tudo, de tudo, de como ele falou, do seu discurso. Porque para muita gente ele era ruim (Lita 25/11/09). 205 Laura Marina Panizo No entanto, considerar exemplar a conduta de um militar que fez parte do aparato repressivo que funcionou durante a década de setenta, protagonizando levantamentos militares contra a democracia em 1988 8 e 1990, contrapõe-se à postura do CECIM, que busca formas antimilitaristas para formar a memória das Malvinas na arena pública. Assim, considerando que sua iniciativa não é uma desonra para seus companheiros, eles resolveram fazer uma mostra que focasse a atenção nas conflituosas situações vividas pelos combatentes durante o enfrentamento. Sua finalidade é, além disso, honrar os tombados por meio da reconstrução da experiência da guerra e de uma memória que revalorize, além do sacrifício de dar a vida, as situações limite vivenciadas: Os nossos companheiros tombados são honrados com a memória permanente, reconstruindo sua vida, revalorizando todos os momentos difíceis que vivemos com eles (ênfase minha), e é quase certo que se hoje estivessem vivos, teríamos os mesmos objetivos (Ernesto, 05/07/10, CECIM, La Plata). Tal como citei anteriormente, para os ex-combatentes de La Plata, falar das violações dos direitos humanos dos mortos implica dar-lhes a “dignidade” que merecem por ter dado a vida pela Pátria. Assim, onde a figura da vítima, e não a do herói, torna-se a identidade principal, o boneco estaqueado implica – paradoxalmente – honra, esclarecendo, evidenciando o conflito e, assim, contribuindo para a reconstrução da história de vida do falecido: Sabemos que, em muitos casos, várias das mortes de companheiros não aconteceram por motivos próprios do combate, como nos casos de congelamento, morte por inanição, assassinatos [...]. As forças armadas mentiram aos familiares com falsas certidões de óbito. Nós somos testemunhas, na maioria dos casos, de como morreu cada soldado nas Malvinas (Ernesto, 05/07/10, CECIM, La Plata) [grifo meu]. No entanto, para os Familiares das Malvinas, a figura do herói, e não a de vítima, é enaltecida como a identidade principal que constrói o 206 Malvinas na UNIVERSIDADE Concurso de Ensaios 2012 sentido da morte; o boneco estaqueado indica desonra, pois ele é associado à humilhação, à vitimização e à morbidez: Embora tenham existido, acho uma chacota para os familiares ensinar que seu filho talvez tenha sido estaqueado. A gente já sabe tudo o que pôde ter acontecido na guerra. Não é necessário que você ou um escolar vá ver um soldado estaqueado. Sabemos que isso talvez tenha acontecido, certamente. Sabemos pelos soldados, os veteranos, mas achamos isso mórbido, não é necessário, acho que não é necessário (Delmira, 03/09/09, Familiares das Malvinas). Deste modo, para os Familiares, os ex-combatentes estariam, com um gesto “desmalvinizador”, negando aos heróis a merecida honra. Então, a honra é uma noção que vai de mãos dadas com as práticas sociais que estabelecem relações específicas dos sujeitos sociais com a história e a ditadura. Para os Familiares, a homenagem aos tombados estabelece práticas de glorificação que relacionam os mortos com outros heróis nacionais e com a Pátria. Por sua vez, para os ex-combatentes do CECIM, a homenagem aos mortos estabelece práticas de vitimização que os relacionam com os desaparecidos da ditadura militar. Assim, diferentes formas de homenagem contrapõem familiares orgulhosos pelos atos heroicos, por um lado, a companheiros de batalha que se sentem na responsabilidade de denunciar a violência do Estado sobre os corpos, pelo outro. Desta forma, os marcos simbólicos de interpretação dos grupos moldaram a forma como se deve homenagear os heróis, expressando suas rivalidades. Então, neste conflito interpretativo, o modelo de vitimização dos soldados durante a guerra, que enfatiza a conjuntura histórica na qual foi conduzida, não exclui o modelo heroico dos tombados. No entanto, conforme o modelo interpretativo nacionalista, a lembrança do fato heroico exclui o olhar sobre as conflituosas situações vividas, focalizando a unidade nacional e procurando abstrair a guerra do seu contexto geral. Pelo contrário, o quadro interpretativo do CECIM faz ênfase nas violações dos direitos humanos cometidas durante a guerra, traçando uma continuidade entre elas e as práticas que levaram ao 207 Laura Marina Panizo desaparecimento de pessoas. Ao contrário do primeiro modelo interpretativo, este último ressalta, dentro da guerra, o inimigo interno (os militares argentinos), vindo a público com uma performance provocadora que leva à reflexão e pede pela verdade e a justiça. Dentro destes dois quadros interpretativos é que se discute a violência sobre os corpos, uma vez que, conforme mencionado, enquanto os Familiares das Malvinas a consideram um sacrifício patriótico e um exercício simbólico da cidadania, os ex-combatentes do CECIM a veem como uma conduta condenável que motiva suas reclamações de justiça para estes corpos violentados e negados pelo Estado. Voltando ao contexto da mostra, o que os Familiares questionam é o fato de a Ministra da Defesa não ter adotado a forma que eles consideram veraz: Não podemos deixar de lhe manifestar a nossa mais profunda tristeza e desagrado diante da mostra que vossa pasta organizou [...] Entendemos que podem existir muitos olhares sobre as Malvinas, nossa entidade não nega nenhum deles, embora tenhamos escolhido aquela que entendemos como a mais valiosa para construir o futuro da nossa Nação.9 O fato de a Ministra não ter legitimado essa visão sobre a guerra implica, para os familiares, uma ameaça ao trabalho que eles vêm desenvolvendo há vinte e sete anos: Desde que nasceu, a Comissão [...] vem lutando para enaltecer a memória de seus Heróis [...] a União, como expressão de conjunto, tem a obrigação de buscar uma síntese superadora desses diferentes olhares, já que sua finalidade é o bem comum. Não é um simples cenário para instalar contradições, mas para resolvê-las. Pelo contrário, vossa pasta – com a legalidade que o sistema de representação formal oferece – resolveu dar prioridade a uma visão profundamente desmalvinizadora [...] A mostra organizada pela senhora propicia a confusão, desonra a memória de nossos Heróis, reduz a complexidade a um olhar preconceituoso e afastado da 208 Malvinas na UNIVERSIDADE Concurso de Ensaios 2012 verdade dos fatos [...] Portanto, informamos-lhe que decidimos não participar do evento, apesar de nossa disposição inicial, fundada na esperança útil de encontrar nela um olhar compreensivo, prudente e inclusivo. Lamentamos comprovar o contrário [grifo meu].10 Todo o esforço realizado por esta instituição com cada um dos familiares para reconhecer não apenas o esforço de nossos entes queridos, mas também o daqueles que voltaram é jogado fora em quarenta minutos (Leandro 22/10/09, Familiares das Malvinas). O que pode ser ameaçante para os Familiares é que, devido ao grau de autoridade da Ministra e à legitimidade do Estado, sua postura possa acabar se arraigando na arena pública. Segundo eles, esta é uma posição “desmalvinizadora” que põe em jogo o marco simbólico de sua organização, visto que, nesta encenação de visões contraditórias sobre o conflito, a posição das autoridades fica clara. Então, para fazer frente ao quadro interpretativo da autoridade do Estado, os Familiares posicionaram as mães como o setor ofendido, já que, como foi mencionado, a morbidez e a ofensa da performance do CECIM se amplificaram por sua presença. Assim, três mães apresentaram um documento que explica a saída dos integrantes dos Familiares, apelando para o discurso da maternidade a fim de reclamar sobre o acontecido. A disputa sobre como a guerra deveria ser lembrada na mostra veio aparelhada, além disso, com outra discussão permanente entre os membros do CECIM e dos Familiares: a das exumações. De fato, vários familiares declararam, no contexto do conflito da mostra, que eles não concordavam com a exumação dos corpos que jazem no cemitério de Darwin. A possibilidade de que eles sejam exumados para futuras 11 identificações é um tópico que, segundo alguns interlocutores, surge como iniciativa dos ingleses, que tiveram várias intenções de “repatriar” os corpos à Argentina continental. No entanto, a par dessas iniciativas inglesas, os ex-combatentes do CECIM solicitam as exumações para reconhecer a identidade dos mortos: Os mortos das Malvinas são mortos da Pátria e estão num território 209 Laura Marina Panizo usurpado que é parte da nossa Pátria. Eles estão na Pátria e muitos, a maioria, ainda não foram identificados. [...] Nós, que fomos à guerra como soldados, tínhamos uma identidade, e a identidade faz parte do direito à verdade. Os mortos das Malvinas tinham pai, mãe, namorada, bairro, escola, amigos e sonhos de vida. É por tudo isso que não aceitamos que eles não tenham identificação, nem [...] que nos seja negado o direito à identidade de nossos companheiros (Rodolfo, 03/07/10, CECIM, La Plata) [grifo meu]. Membros dos Familiares interpretam esta perspectiva do CECIM como parte de uma política dos ingleses de tirar os corpos das Malvinas, isto é, de liberar de corpos argentinos essa terra em disputa: Com o pseudocomprometimento do direito humanista, eles pretendiam exumar os cadáveres de forma individual ou grupal, e nós entendemos que nossos mortos estão no lugar que lhes é devido. Aqueles que tomaram nas Malvinas e que lá estão sepultados, sabemos que há um campo santo de que ninguém mais do que nós deve tomar conta para que as coisas fiquem em ordem [...] Alguns mal intencionados [...] o único que estão fazendo é servir ao império, pois há um setor do Reino Unido que só quer remover qualquer vestígio do conflito de 1982, e nós não vamos cumprir com isso (Héctor, 25/05/09, Familiares das Malvinas) [grifo meu]. Pode até haver familiares que precisem da confirmação de que seus entes queridos estão lá, mas isso se condiz com um objetivo muito maior. Que são cúmplices, estes jovens, que é juntar os restos dos nossos entes queridos para trazê-los ao continente. E com esse objetivo [...] o assunto é que não há precisão, apenas a precisão daqueles que lá tombaram (Leandro, 22/10/09) [grifo meu]. No entanto, ex-combatentes do CECIM manifestam a importância das identificações como forma de exercer soberania sobre o território: Nós fomos para lá fazendo parte de um exército regular, identificado, sabendo em que lugar estava cada um. Nossos companheiros devem pertencer ao cemitério de Darwin, mas identificados. Devolver a identidade é exercer soberania (Ernesto, 05/07/10, CECIM, La Plata). 210 Malvinas na UNIVERSIDADE Concurso de Ensaios 2012 Nossa interpretação das práticas e narrativas é que quem tem legitimidade para dar sua opinião sobre os mortos, bem como sobre o tipo de homenagem que lhes deve ser feita, são os familiares, já que a linhagem de parentesco vem a se enaltecer como categoria principal: A verdade é que, neste sentido [...] estes jovens não têm nem direito a falar do assunto, pois não fazem a menor ideia do que a gente vive [...] porque, realmente, não analisaram nem perguntaram sobre esta circunstância a cada um dos familiares [...]. A manipulação deste tipo de coisas é, para os pais, insustentável [...] Olha só, eu posso fazer este tipo de trabalho se as ilhas estão sob jurisdição argentina, e quando todos estiverem mortos, no mínimo os pais, pois você não sabe o que isso provoca nos familiares. Então você pode propor isso quando não houver mais familiares diretos vivos (Leandro 22/10/09) [grifo meu]. Entretanto, os ex-combatentes do CECIM reclamam certos direitos em sua condição de companheiros de batalha dos mortos: Nós fomos testemunhas da morte de muitos companheiros e, em muitos casos, nós os sepultamos e os auxiliamos, e compartilhamos os últimos momentos com eles, temos direito a dar nossa opinião e a tomar posição (Ernesto, 05/07/10, CECIM, La Plata). Neste sentido, eles exigem participação na administração do cemitério, que depende dos Familiares das Malvinas, bem como na discussão sobre as identificações: Nosso entendimento é de que os mortos não são de propriedade de nenhuma ONG, por mais que ela use um nome afim, achar-se proprietário disto nos parece um ato mesquinho e, de certa forma, desmalvinizador (Rodolfo, 03/07/10, CECIM, La Plata). Embora, em entrevistas realizadas antes da mostra no Ministério da Defesa, alguns dos familiares tenham comentado sobre a necessidade de encontrar os corpos: Eles foram lá totalmente convictos e cheios de orgulho para defender 211 Laura Marina Panizo este pedaço de solo, e a gente acha que o mais sensato é que eles fiquem lá todos juntos [...], mas acho que [...] isso depende de cada família [...] mas, pessoalmente, sim [...] poder nem que seja dizer “está aqui”. Nem que seja só isso, o que eu te digo , um dedo 12 (26/06/07) [grifo meu]. Após o conflito produzido pelo boneco estaqueado, eles quiseram me reiterar sua posição sobre a questão das exumações, privilegiando as identidades grupais e as necessidades que eles consideram nacionais, acima das identidades individuais e privadas: O que deve ser feito para encontrá-lo? Escavar os túmulos, tirar os ossos. E o que a gente faz com esses ossos? Eles devem ser trazidos para o continente, pois nas Malvinas não há laboratórios de estudo de DNA. Você pensa que depois eles voltam às Malvinas. Tudo bem, sou egoísta, trago meu familiar para cá, inteiro, um dedo, a cabeça, veja só o que estou te dizendo, coloco ele no cemitério [...] onde estão todos os familiares. Vão lá minha mãe, meu pai. Eles vão morrer, depois eu é que vou visitar, meus filhos irão de vez em quando, nos primeiros anos, depois não vai mais ninguém [...]. O cemitério de lá desaparece, isto é, tudo o que fizemos e tudo o que eles fizeram por esse pedaço de solo, vai tudo para o beleléu. Não, eles vão ficar lá, no cemitério argentino, porque quem passar por lá vai se lembrar. Por quê? De que cultura 13 eles vêm? Quem enterra os corpos onde eles estiveram? (09/10/09). Desta forma, o conflito desencadeado pelo boneco estaqueado deixou em evidência a existência de contradições em alguns familiares: apesar de, no princípio, suas necessidades coincidirem com as demandas do CECIM, eles não quiseram ficar ligados publicamente a uma postura interpretativa que leva a práticas públicas que, segundo eles, “desonram os mortos”. Assim, eles tentam eliminar ou minimizar as diferenças dentro da instituição, salientando as divergências entre a comunidade dos Familiares e outros grupos sociais como o CECIM. Desde modo, as experiências e interesses pessoais relacionados com o sentido dado à morte e ao lugar do corpo morto são neutralizados por práticas corretivas, mediante um processo de homogeneização que fica evidenciado nas entrevistas. Neste sentido, muitos dos familiares que, 212 Malvinas na UNIVERSIDADE Concurso de Ensaios 2012 logo após a guerra, tiveram atitudes de protesto e repúdio à instituição responsável pelo conflito e pela morte de seus familiares, manifestaram que, com o passar do tempo e graças à comissão, entenderam que existia outra forma de dar sentido a essas mortes, conforme já mencionado. Voltando à questão das exumações, esta deixou de ser uma preocupação para os familiares a partir do momento em que a Lei nº 26.498 declarou o cemitério de guerra dos Tombados nas Malvinas e nas Ilhas do Atlântico Sul, localizado em Darwin, como lugar histórico: A Comissão de Familiares dos Tombados nas Malvinas e nas Ilhas do Atlântico Sul informa, com imensa alegria, que anteontem foi aprovada pelo Senado da Argentina a lei que declara O CEMITÉRIO DE GUERRA dos Tombados nas Malvinas e nas Ilhas do Atlântico Sul, localizado em Darwin, na ilha Soledad [...], como LUGAR HISTÓRICO. Desta forma, fica concluído o processo iniciado em dezembro de 2008 com a promulgação do Decreto Federal nº 2131. Ele foi o primeiro reconhecimento oficial dado ao trabalho realizado pelos Familiares dos 649 Heróis Nacionais, e permitirá preservar e proteger o Monumento aos Tombados nas Malvinas e nas Ilhas do Atlântico Sul, que hoje em dia faz parte do conjunto do Cemitério de Guerra de Darwin [...]. Segundo a lei, qualquer iniciativa que se pretenda desenvolver no Cemitério de Darwin no futuro terá de ser consultada com a Comissão de Familiares dos Tombados nas Malvinas, bem como com a Comissão Nacional de Museus, Monumentos e Lugares Históricos. Esta medida traz uma enorme tranquilidade para todos aqueles cujos entes queridos jazem sepultados no Cemitério de Darwin, uma vez que, ao longo de vinte e sete anos de pós-guerra, não faltaram setores ou indivíduos que tentaram profanar o bem hoje protegido legalmente, com argumentos pseudohumanitários como a proposta de identificar os cadáveres ou de colocar placas com seus nomes, etc.14[grifo meu]. A associação entre as exumações/identificações e a profanação faz referência, no nosso entender, à potestade da instituição Familiares das Malvinas sobre os mortos, uma vez que: 213 Laura Marina Panizo A Comissão Nacional de Museus e de Monumentos e Lugares Históricos, que depende da Secretaria da Cultura da Nação, instrumentará tudo o que se relaciona com o cumprimento desta lei e pactuará com a Comissão de Familiares dos Tombados nas Malvinas e nas Ilhas do Atlântico Sul as medidas pertinentes, com o intuito de assegurar a custódia, conservação, reparação e restauração do local histórico nacional declarado por esta lei.15 Por outro lado, a associação também faz referência à irrupção do exercício soberano dos tombados que, num espaço sagrado, em detrimento das identidades individuais, representam um cidadão nacional coletivo. Aquilo que, na perspectiva do CECIM, seria respeito pela “verdade”, a “identidade” e a “cidadania” em defesa dos direitos humanos, para os Familiares seria uma violação à “missão sagrada” dos tombados e à autoridade da instituição sobre os mortos, faculdade reconhecida oficialmente e conquistada após muitos anos de trabalho. Observamos, então, que os corpos dos mortos se transformam em símbolos políticos, condensando significados contraditórios segundo o marco simbólico no qual são significados. Vemos, então, duas formas de se construir a soberania sobre as Ilhas por meio dos mortos: uma por meio de um coletivo nacional, e outra reclamando a identidade individual como direito cidadão. Considerações finais Ao longo destas páginas, observamos que os significados que a morte de uma pessoa pode ter no seio da sociedade dependem dos contextos histórico-culturais, das circunstâncias do falecimento e dos marcos simbólicos dos grupos. Da mesma forma, no que respeita à Guerra das Malvinas, conforme as diferentes categorias de pessoas próximas dos falecidos – os familiares, por um lado, e os ex-companheiros de batalha, por outro –, há diferentes formas de interpretação da morte e diferentes práticas de homenagem aos mortos. Essas práticas evidenciam relações específicas entre os sujeitos sociais homenageantes e a ditadura. Apelando para o parentesco ou para a 214 Malvinas na UNIVERSIDADE Concurso de Ensaios 2012 camaradagem, associam-se aos corpos mortos ideias relativas à proteção, a soberania nacional, a reivindicação de posturas políticas e ideológicas, as lutas pelos direitos humanos, a prova de crimes, a denúncia ou a acusação. Em ambos os quadros interpretativos, os corpos mortos condensam diversos significado. Por este motivo, o modo de sua presença física e as práticas mortuárias que devem ser exercidas sobre eles e com eles são entendidos de acordo com as características sociais associadas com os mortos e com as pretensões de domínio, legitimação e autoridade dos grupos. Assim, as diferentes formas de dar significado aos mortos originam, também, diversas maneiras de entender as violências exercidas sobre os corpos. Desta forma, as discussões sobre as exumações e as práticas que deveriam ser exercidas sobre os corpos (tipo de ritual mortuário, etc.) são uma questão fundamental que se instala na arena pública como ponto de discussão, disputa e identidade. Neste sentido, as experiências aqui citadas propõem uma espécie de reflexão sobre o lugar que a morte na guerra deve ocupar na história, tanto recente quanto antiga. Uma história marcada pela violência e pelo terror, mas resignificada constantemente por meio de múltiplas e surpreendentes interpretações. Notas 1 - Daqui em diante, chamaremos de Guerra das Malvinas o conflito bélico entre a Argentina e a Grã Bretanha ocorrido entre os dias dois de abril e 14 de junho de 1982. 2 - Este conceito foi elaborado considerando as contribuições de María Julia Carozzi (1998),Michael Pollak (2006) e Elizabeth Jelin (2002). Para aprofundar sobre o assunto, ver Panizo (2011). 3 - A Lei n° 24.950, promulgada no dia 3 de abril de 1998, declara heróis nacionais os combatentes argentinos falecidos em defensa da soberania nacional sobre as Ilhas do Atlântico Sul no conflito de 1982. 4 - Embora eu não ignore a heterogeneidade de ideias acerca do que é nação e a diversidade de formas como diferentes grupos sociais podem ser entendidos como nacionalistas, considero esta forma de perceber a morte como nacionalista, pois eles dão ênfase à ideia da nação como uma comunidade que unifica os cidadãos por meio de diferentes símbolos e práticas culturais em escala nacional, fato que os diferencia dos estrangeiros. 215 Laura Marina Panizo 5 - Para os Familiares, a causa das Malvinas inclui a reivindicação dos ex-combatentes e dos tombados na guerra, bem como a reafirmação dos direitos soberanos argentinos sobre as Ilhas. 6 - Comunicado do Ministério da Defesa, comunicação de imprensa nº 112/07, Buenos Aires, 14 de maio de 2007, em http://www.mindef.gov.ar/info.asp?Id=1151&bus=3. 7 - O falecido presidente Néstor Kirchner, que governou o país entre 2003 e 2007, assumiu, como política de Estado, a condenação às violações dos diretos humanos ocorridas durante a última ditadura militar. Dando continuidade a essa política de Estado, o governo da atual presidenta, Cristina Fernández de Kirchner, sua esposa e sucessora, é caracterizado pelo apoio às demandas das organizações de direitos humanos na Argentina e por impulsionar políticas de memória com relação aos desaparecidos. Com este governo, que demonstra também seu comprometimento com a causa das Malvinas, alguns grupos de ex-combatentes se sentem representados, como é o caso do CECIM. 8 - Ações pelas quais foi exonerado do Exército, condenado a prisão perpétua e depois, no governo de Carlos Menem, indultado. 9 - Da nota que Delmira de Cao, Jorge Medina e Héctor Cisneros entregaram à ministra Nilda Garré em nome da Comissão, dando explicações pela saída do evento. 10 - Ibidem. 11 - Das 469 vítimas neste conflito, no Cemitério de Darwin há sepultadas apenas 238. 123 possuem lápidas com a inscrição "Soldado apenas conhecido por Deus" e 107 têm lápidas com nome e sobrenome dos sepultados. 12 - Preservamos a identidade deste familiar para não comprometer sua adesão à instituição. 13 - Idem. 14 - Parágrafos do comunicado divulgado pela Comissão de Familiares dos Tombados nas Malvinas e nas Ilhas do Atlântico Sul em maio de 2009. 15 - Artigo 2° da Lei n° 26.498. Bibliografia CAROZZI, María Julia (1998), “El concepto de marco interpretativo en el estudio de movimientos religiosos”, Sociedad y Religión 16/17, págs. 33-51. GUBER, Rosana (2004), De chicos a veteranos. Memorias argentinas de la guerra de Malvinas, Argentina, Antropofagia. JELIN, Elizabeth (2002), Los trabajos de la memoria, Madri, Siglo XXI. LORENZ, Federico (2006), Las guerras por Malvinas, Buenos Aires, Edhasa. PANIZO, Laura Marina (2011). “Donde están nuestros muertos: experiencias rituales de familiares de desaparecidos de la última dictadura militar en Argentina y familiares de caídos en la Guerra de Malvinas”, Tese de doutorado, Universidade de Buenos Aires, Faculdade de Filosofia e Letras. POLLAK, Michael (2006). Memoria, olvido, silencio, em Ludmila da Silva Catela (comp.), La Plata, AI Margen. 216 Malvinas na UNIVERSIDADE Concurso de Ensaios 2012 Menção especial MALVINAS: DECÁLOGO DE UMA ESPOLIAÇÃO Carlos Mariano Poó Carlos Mariano Poó MALVINAS: DECÁLOGO DE UMA ESPOLIAÇÃO Carlos Mariano Poó 1 Os povos precisam do território que os fizeram nascer para a vida política, assim como precisamos de ar para a livre expansão dos nossos pulmões. Absorver um pedaço de seu território é arrancar-lhes um direito, e esta injustiça representa um duplo atentado, pois não só é a espoliação de uma propriedade, mas também a ameaça de uma nova usurpação. O antecedente de injustiça é sempre o temor à injustiça, pois se a conformidade ou a indiferença do povo ofendido consolida a conquista da força, quem o defenderá amanhã contra uma nova tentativa de despojo, ou de usurpação? José Hernández, novembro de 1869. 1 Carlos Mariano Poó é professor de História na Universidade Nacional do Centro da Província de Buenos Aires e é coordenador, em Tandil, do Programa Nacional “Aprender ensinando”, do Ministério da Educação. 218 Malvinas na UNIVERSIDADE Concurso de Ensaios 2012 Introdução Quando decidi escrever um ensaio sobre as Malvinas, pareceu-me conveniente falar sobre a história do arquipélago. Um ensaio históricopolítico-jurídico no qual daria rédea solta a uma pena desejosa de plasmar uma pesquisa sobre o assunto. No entanto, depois de ter me atirado e submergido nas profundezas de tão extensa bibliografia, tive uma estranha sensação: não estar encarando o assunto da maneira que, mais por intuição do que por conhecimento, eu sentia que deveria fazer. De fato, a sensação de pesar por aquilo que eu percebia como um erro me travou. A impotência fez-se insuportável. A inconformidade com a tarefa realizada rebelou-se com potência. Sobretudo quando percebi que, diante dos meus olhos, ainda havia uma folha em branco depois de tanto procurar em prateleiras e estantes de bibliotecas; de ter lido diferentes autores; de ter analisado seus divergentes pontos de vista; de ter tentado ponderar os interesses em jogo em cada obra; e de ter escrito algumas páginas sobre a história das Malvinas. Naquele momento, senti que o projeto podia sucumbir. Naufragar como tantos navios que intrepidamente singraram, durante séculos, as intempestivas águas dos mares do sul. Pensei que tudo estivesse perdido. Entretanto, de repente e quase tateando, como aqueles navegantes espanhóis, holandeses, franceses e ingleses, vi o penhasco. Aquela pequena ilha – entre a densa bruma dos invernos austrais – que indicava a possível presença de terra firme para me colocar a salvo do naufrágio literário-investigativo. Não tive mais dúvidas: uma história das Malvinas devia ser a história de sua espoliação. Uma espoliação reiterada ao longo dos séculos. Realizada, ao menos nos últimos 179 anos, pelos ingleses, mas do qual não se abstiveram de 219 Carlos Mariano Poó participar governos de diversas nacionalidades. Uma espoliação que consistiu não só em tirar-nos nossas ilhas, arrancando-nos pela raiz um pedaço de nosso território e violentando nossa soberania, mas também, além disso, em se abater sobre a fauna e a flora austral: não escaparam de tamanha ação de rapina os anfíbios, as baleias, as algas, nem mesmo as raposas. Em síntese, atrevo-me a afirmar que a história das Malvinas é esta. A história de uma espoliação seguida por tantas outras ou, se o leitor assim o compreender, a de um roubo prolongado contra nossa pátria e nosso povo, realizado, inclusive, muito antes de que nós, argentinos, nascêssemos como povo e pátria soberanos. Jorge Luis Borges, em História universal da infâmia, recorreu a uma série de personagens atrozes e instáveis, assassinos e pistoleiros. Baseando-se em casos reais que nutriram ferozes crônicas distantes com tão singular regador de iniquidades. Realmente, uma ironia. Ou um despropósito. Nosso grande mestre das letras recorrendo a paragens tão distantes como o sinuoso rio Mississipi, as densas águas do Mar Amarelo ou a triste solidão do deserto do Turquestão para procurar aqueles bandidos que povoaram as páginas de sua inigualável obra. Logo ele, o mais britânico de todos os argentinos ou o mais argentino de todos os britânicos; dependendo do ponto de vista. Seja como for, não quero ser injusto com o autor de O homem da esquina rosada. Afinal, Borges nos legou um título que cabe tranquilamente em qualquer livro que narre a história de nossas Malvinas, Geórgias e Sandwich do Sul. Em outras palavras: o decálogo de uma espoliação que acabou sendo nada mais e nada menos do que a nossa. Situadas dentro da plataforma continental argentina, a distância mais curta que nos separa das Malvinas é de 346 quilômetros. Os que vão de Cabo Belgrano, localizado no extremo sudeste da Grande Malvina, até a 220 Malvinas na UNIVERSIDADE Concurso de Ensaios 2012 Ilha dos Estados (Destefani: 27). Uma distância menor à que separa Tandil, no centro bonaerense, de Buenos Aires ou Bahia Blanca. As Malvinas estão cravadas no fundo marinho que rodeia a costa argentina. Unidas inseparavelmente ao continente americano. No entanto, elas não são unidas apenas pela geografia. Com uma superfície de quase 12.000 quilômetros, sua geologia se parece à patagônica. A suave paisagem serrana, de formas pouco elevadas e coberta de grama, é apenas cortada por uma modesta hidrografia de riachos e arroios que dão para o mar. Não há grandes rios. Há sim muitas lagoas, além de uma curiosa e característica rede de rios de pedra formados por pequenos cascalhos e grandes blocos líticos. Antigos leitos que, em algumas ocasiões, alcançam um quilômetro e meio de largura. Terra estéril, privada de bosques. Nas Malvinas não crescem nem arbustos, apenas matagal, principalmente a grama tussock, que pode alcançar até dois metros de altura com uma espessa mata de bambus. A fauna malvinense é fundamentalmente anfíbia. O único animal terrestre foi o guará ou lobo-das-malvinas, extinto na metade do século XIX por disposição do invasor inglês. Extermínio decretado para a prosperidade dos produtores de lã, principalmente a do maior latifundiário das ilhas: a Falkland Islands Company. Com clima frio, úmido, um céu habitualmente nublado e ventos do oeste-nordeste que sopram geralmente, podemos afirmar que o rigor é outra de suas características. Há um consenso geral em atribuir a descoberta das Malvinas ao navegante holandês Sebald de Weert no dia 24 de janeiro de 1600, quando seu navio chamado Geloof se deparou com terra desconhecida a 50º40” de latitude sul e aproximadamente 60 léguas do continente. Ele e sua tripulação vislumbraram claramente três ilhas povoadas de 221 Carlos Mariano Poó focas e pinguins que se orientavam do nordeste para o sudeste. A tripulação não pôde descer do Geloof, porém este fato ficou registrado em seu diário de navegação. O arquipélago descoberto recebeu o nome de Iles de Sebald de Weert em homenagem ao capitão e, a partir de então, elas passaram a aparecer nas relações e cartas geográficas como Islas Sebaldes ou Sebaldinas (Groussac: 106).1 A sorte quis que os encarregados de confirmar a descoberta realizada por Sebald de Weert fossem os holandeses. No dia 18 de janeiro de 1616, a expedição a bordo do Eendracht, comandada por Wilhelm Schouten e Jacob Le Maire, avistou as Sebaldinas, registrou o fato em seu diário e fixou a posição. No entanto, as viagens ao Pacífico diminuiriam. Segundo Groussac, após as expedições holandesas, não há registros de que as Sebaldinas tenham sido frequentadas por naus que cobrissem aquela rota. Apenas no final do século XVII o tráfego foi retomado com maior frequência, principalmente graças aos marinheiros de Saint-Maló e a um corsário inglês: o capitão John Strong. No dia 27 de janeiro de 1960, o capitão Strong, no comando do Welfare, avista terra. Envia uma canoa que volta repleta de focas, pinguins e aves marinhas. Durante quatro dias, a nau esteve penetrando e sondando um canal de umas dezessete léguas de comprimento que foi batizado de Falkland Sound e que nós chamamos de estreito de San Carlos. Muitos anos mais tarde, Macbride, capitão inglês no comando da corveta Jason, chegaria às ilhas com ordens de fundar um assentamento em terras que a Inglaterra reconhecia como espanholas: o litigioso e conflituoso Port Egmont. Macbride começaria a profanação tirando o nome de Sebaldes e impondo em seu lugar o de Ilhas Jason. A visão etnocêntrica e europeizante dos conquistadores quase conseguiu apagar da história a possibilidade de que os primeiros a avistar e pisar o solo malvinense tenham sido os yamanas, povo 222 Malvinas na UNIVERSIDADE Concurso de Ensaios 2012 originário da Terra do Fogo, que teriam chegado até elas de canoa. Segundo Ian Strange, pesquisador inglês residente nas ilhas, o guará não seria um mamífero originário das Malvinas, mas, pelo contrário, teria sido introduzido pelos yamanas da Terra do Fogo (Solari Yrigoyen: 127). O certo é que os yamanas, presentes na região há seis mil anos, domesticaram um canino chamado cachorro fueguino. O guará recebeu esse nome dos gaúchos rio-platenses – provenientes de Buenos Aires e da Banda Oriental – estabelecidos nas Malvinas entre os séculos XVIII e XIX. Seu nome deriva do aguará guazú, que em guarani significa “raposa grande”. Uma pesquisa recente dirigida pelo cientista Graham J. Slater, da Universidade da Califórnia, estabeleceu um parentesco muito próximo entre ambos os canídeos. II Além de oficial do exército, Bougainville foi testemunha do desmoronamento do poder da França na América do Norte. Nele, as ideias sobre a importância dos mares do Sul – esgrimidas pelo almirante britânico Anson – tiveram repercussão singular. Embora as Malvinas não fossem o Canadá, Bougainville compreendeu que uma forma de compensar as perdas francesas era fundando uma colônia naquele arquipélago, já que sua posição estratégica na rota do Atlântico ao Pacífico daria à França o benefício e proveito mercantil correspondente. Ele logo comunicou seus planos ao governo da França. Este, advertindo que não poderia patrocinar tal expedição, não deixou de alentar o marinheiro. A ideia fascinava especialmente Choiseul, ministro da Corte de Luís XV que, logo após a firma do Tratado de Paris, começou a fortalecer e a 223 Carlos Mariano Poó estreitar vínculos com a Espanha. Seu objetivo: conseguir a revanche diante da gigantesca derrota que a Inglaterra havia propiciado às potências borbônicas. Bougainville chegou às Malvinas no dia 31 de janeiro de 1764, com escala prévia em Montevidéu. Cinco meses depois, voltou à França e informou sobre a tomada de posse do arquipélago. Cumprindo ordens, o conde de Fuentes, embaixador espanhol em Paris, solicitou precisões sobre o objetivo da viagem das naus francesas aos mares do sul. Choiseul garantiu a Fuentes que a expedição francesa havia partido com o objetivo de descobrir alguma ilha que facilitasse a passagem do cabo Horn e que haviam encontrado uma deserta perto da ilha de Tristán de Acuña. Sabendo a impressão que a notícia de um assentamento francês em terras de Carlos III causaria na Espanha, e conhecendo que se tratava das Malvinas, ele disse a Fuentes que a ilha descoberta por Bougainville era vizinha àquela. No entanto, Choiseus não parecia ser tão hábil em geografia como o era em diplomacia. O grosseiro deslize não contemplou que a proximidade aludida era de aproximadamente 3500 quilômetros, nem que os espanhóis suspeitariam de uma expedição que tinha como rota as adjacências da ilha de Tristán de Acuña e que terminou em Montevidéu devido a uma terrível travessia. Tal porto ficava muito por fora da rota referida. A Espanha não podia tolerar a presença francesa nas Malvinas. E menos ainda se, em seu lugar, a ocupante era a Inglaterra. Pois se assim fosse, os espanhóis podiam renunciar definitivamente ao controle dos mares austrais, ao comércio com as Filipinas, à pesca, etc. Ou pior ainda, Buenos Aires podia cair em mãos inimigas. A sempre latente ameaça terrestre portuguesa se somaria à não menos possível ameaça marítima inglesa estabelecida nas Malvinas. 224 Malvinas na UNIVERSIDADE Concurso de Ensaios 2012 A resposta espanhola não se fez esperar. Enquanto, na arena diplomática, ela se negou a consentir a fundação de uma colônia francesa com o argumento de que isso alimentaria expectativas inglesas, repudiando o proceder de Choiseul; ao mesmo tempo, enviava aos governantes na América uma ordem real em que manifestava a persistência de leis que proibiam às embarcações estrangeiras negociar ou ser admitidas em portos americanos, salvo em casos de força maior; advertindo a seus representantes que a aliança com a França não implicava, sob nenhum ponto de vista, uma exceção a favor dos súditos de Luís XV (Gil Munilla: 284 e 285). Diante de uma reclamação tão enérgica, a França não teve outro remédio do que ceder. E o fez em agosto de 1765, quando Bougainville retornou à sua pátria. Reconhecendo a soberania da Espanha. Carlos III delegou a tarefa de controle na capitania-geral de Buenos Aires, tentando fazer das Malvinas uma muralha impenetrável para os inimigos da Espanha e um refúgio para suas naus – comerciais e de guerra – nos confins do universo. Fato que constituiu, em geral, um antecedente relevante da progressiva importância dos domínios do Rio da Prata, e em particular, a concessão a Buenos Aires da custódia e guarda total dos territórios reais da vertente atlântica sul-americana. A Espanha só tomou posse das Malvinas no dia dois de abril de 1767. III No fim de maio de 1764, chegaram à Espanha notícias preocupantes. Uma expedição inglesa, rodeada de grandes preparativos e de um hermético segredo, tomou rumo não especificado sob o comando do capitão Byron, antigo companheiro do almirante Anson. Suas ordens eram precisas: dirigir-se às Malvinas e a Pepys, localizadas no Oceano Atlântico, perto do estreito de Magalhães, e fazer reconhecimentos, determinando lugares apropriados para um estabelecimento nelas. As suspeitas espanholas puseram proa aos mares do Sul, como os 225 Carlos Mariano Poó baixeis que estavam sob o comando do capitão Byron. Após procurar sem sucesso a ilusória ilha Pepys, em 23 de janeiro de 1765, ele chegou às Malvinas. Durante a travessia, topou-se com a embarcação de Boubainville. Byron enviou seus resultados com outro barco, que chegou a Londres no dia 21 de junho de 1765. Por sua vez, Bougainville alertou sobre a presença de ingleses na zona. Em setembro, a Inglaterra enviou às Malvinas uma nova expedição. Três barcos sob o comando do capitão Macbride deviam estabelecer uma missão colonizadora secreta. Os invasores chegaram em janeiro de 1766. A importância que o reconhecimento francês do direito de soberania espanhol teria sobre as Malvinas, implicando uma aceitação de seu pertencimento à Espanha, constituiu o antecedente fundamental que legitimaria, no futuro, a propriedade espanhola deste e outros arquipélagos não habitados ambicionados por outras nações. O retorno de Byron a Londres exatamente na mesma data do acordo franco-espanhol, além de rumores de todo tipo, motivaram as suspeitas do Príncipe de Masserano, embaixador espanhol na cidade, que protestou oficialmente perante os membros do gabinete inglês, limitando-se a dizer que seu governo não podia ver com indiferença as viagens britânicas ao mar do Sul (Gil Munilla: 292). Os ingleses não foram capazes de manter o segredo. Masserano fez tudo o possível para revelá-lo detalhadamente. Em julho, informou à Espanha sobre a chegada de vários navios ingleses às Malvinas, as características das embarcações e a posição astronômica do arquipélago. Dias mais tarde, especificava a natureza dos planos ingleses, de acordo com notícias que obtivera nas conferências realizadas pelo ministério inglês, bem como com a opinião do conde de Egmont, lorde maior da Almirantagem: os ingleses haviam afirmado o proveito de colonizar, sem demora, as Malvinas. Masserano havia 226 Malvinas na UNIVERSIDADE Concurso de Ensaios 2012 descoberto a essência dos planos britânicos de conquista (Gil Munilla: 293). Enquanto isso, as notícias eram confusas em Buenos Aires. No princípio de agosto de 1766, começou o preparo com urgência da esquadra que levaria o capitão Felipe Ruiz Puente até as Malvinas. O ministério inglês compreendeu as vantagens e as desvantagens que a decisão de colonizar as Malvinas traria. Isso provocou sérias discussões no seio dos Conselhos. Graffon, primeiro Ministro, sustentou que tal empreendimento deveria considerar uma provável guerra contra a Espanha e, inclusive, contra seus aliados. Por sua vez, o lorde maior da Almirantagem, Egmont, persistente impulsor da conquista e da colonização, diante dos obstáculos colocados, optou pela renúncia. Sua impaciência o levou a renunciar antes do tempo, antes de que a influente perspectiva de Pitt triunfasse sobre as resistências, e de que a esquadra inglesa destinada a iniciar uma firme colonização das Malvinas atravessasse os mares. A Espanha abandonou o terreno para a adoção definitiva de medidas eficazes contra os usurpadores das Malvinas, dispondo-se a reconvir os ingleses que estivessem instalados nos domínios espanhóis. Na Ordem Real de 25 de fevereiro de 1768, foram estabelecidas as pautas pelas quais se regeria Bucareli, o governador de Buenos Aires: a expulsão à força em virtude das Leis das Índias. Em novembro de 1769, uma nova exploração, comandada pelo Capitão Santos, deparou-se com uma fragata de guerra inglesa ancorada no estreito de San Carlos, e mais uma expedição foi enviada sob o comando do Tenente de Infantaria Mario Plata. Em 31 de dezembro de 1769, o governador das Malvinas, Ruiz Puente, enviou os primeiros detalhes sobre o estabelecimento britânico invasor de Port Egmont. Em 17 de fevereiro de 1769, a expedição espanhola conduzida por Rubalcava ancorou em Port Egmont. Ante a supremacia britânica, 227 Carlos Mariano Poó limitou-se a apresentar os protestos de rigor, observando as características do forte. Os ingleses desconheceram a soberania espanhola e se negaram a abandonar a posição. Os espoliadores sentiam-se impunes. A notícia com o resultado da expedição chegou a Buenos Aires. Com o fracasso dos protestos, era necessário usar a força. No dia 26 de março, Bucareli ordenou ao chefe da Esquadra do Rio da Prata, Madariaga, que “considerando o constante ânimo do Rei, bem explicado na ordem Real de 25 de fevereiro de 1768 […], disponha-se V. S.ª a despejar indefectivelmente os ingleses com as armas, caso as admoestações que V. S.ª deverá também fazer-lhes à sua chegada não sejam suficientes”. No dia 11 de maio, quatro fragatas, um chambequim e um bergantim zarparam de Montevidéu transportando mais de 1500 homens. No dia 10 de junho de 1769, após quatro dias de tentativas vãs de conseguir a evacuação voluntária, Madariaga abriu fogo conta Port Egmont na quantidade mínima necessária para que o comandante do posto pudesse afirmar que havia sido expulso. Em seguida, assinou-se a capitulação. Os invasores abandonaram as Malvinas, mas eles retornariam (Gil Munilla: 345 e 346). No dia 22 de janeiro de 1771, após árduas negociações entre espanhóis e britânicos para evitar a guerra, foi assinado um acordo no qual a Espanha se comprometeu a salvaguardar a honra do rei inglês e concedeu o reestabelecimento dos britânicos em Port Egmont, fazendo constar expressamente que não renunciava sua soberania nas ilhas. Este ponto não foi objetado pela Inglaterra, que reestabeleceria a colônia com a promessa de desocupá-la pacificamente, o que de fato ocorreu em 1774. IV 228 Malvinas na UNIVERSIDADE Concurso de Ensaios 2012 A pesca e a caça de anfíbios era realizada com regularidade por bandidos ingleses, que, na realidade, jamais se dignaram a respeitar soberania alguma: nem goda nem criolla. Com efeito, a exploração ilegal no litoral patagônico e nas Malvinas nunca foi freada adequadamente pelas autoridades, sejam as do vicereinado ou as dos governos emancipadores que sucederam os representantes da monarquia espanhola depois de 1810. Com milhares de quilômetros de praias e um litoral lotados de focas, lobos marinhos, pinguins e outras aves, bem como milhares de milhas marinhas repletas de baleias de diferentes tipos e tamanhos, a Patagônia e os mares do sul ofereciam o amparo de suas vastidões à rapina imperial inglesa, mas também proporcionava seus favores a norte-americanos e a franceses que não cediam em seu impulso saqueador, fosse ele em detrimento da agonizante colônia ou da nascente república. Este era o contexto no qual se inseria e do qual surgia a resolução do governo de Buenos Aires que, com data de 10 de junho de 1829, deu origem à Comandância Político-Militar das Ilhas Malvinas, função para a qual foi designado Luis Vernet. O novo comandante, que alternava a função pública com atividades privadas nas ilhas, decidiu terminar com a depredação. Os navios estrangeiros foram advertidos a respeito das disposições vigentes sobre caça e pesca de anfíbios, que haviam sido impostas pelas autoridades das Províncias Unidas do Rio da Prata. No entanto, diante de sua recusa recorrente a cumprir com tais normas, Vernet apresou a goleta norte-americana Harriett em 30 de julho de 1831. Dias depois, outras duas naus norte-americanas, Breakwater e Superior, tiveram o mesmo destino. Notificado sobre o acontecido, George W. Slacum, cônsul estadunidense em Buenos Aires, dirigiu um ofício ao ministro das 229 Carlos Mariano Poó Relações Exteriores rio-platense, Tomás Manuel de Anchorena. Sem nenhuma vergonha, com termos ofensivos e insultos à nossa soberania, Slacum desconheceu a autoridade do governo das Províncias Unidas do Rio da Prata e defendeu o saqueio empreendido por seus conterrâneos. No dia 3 de dezembro de 1831, nosso governo respondeu, conforme ao direito, o insolente e impulsivo ofício de Slacum, afirmando que “o governo dos Estados Unidos não tem direito algum às ilhas e costas mencionadas nem a exercer nelas a pesca, ao passo que o direito que 2 cabe a esta República é inquestionável” . Enquanto Slacum arremetia suas reclamações negando nossa soberania, o governo norte-americano enviou um barco de guerra, a corveta Lexington, sob o comando de Silas Duncan. Informado por Slacum e Davison – capitão do Harriett –, o não menos impulsivo marinheiro norte-americano exigiu que o governo rio-platense entregasse Vernet ou que o prendesse e castigasse conforme as leis de Buenos Aires. O governo negou-se, porém concedeu a liberação do infrator Davison. No dia 9 de dezembro de 1831, a Lexington partia de Buenos Aires tendo como rumo as Malvinas. Um novo saqueio começava a se gestar. Duncan chegou com sua nau às proximidades de Puerto Luís no dia 28 de dezembro. Flamejando ousadamente a bandeira francesa, entrou no porto três dias depois executando um covarde e atroz ataque às autoridades e à população malvinense. A colônia de Puerto Luís foi destruída e saqueada pelos ianques. A deplorável ação de Duncan e da tripulação da Lexington é um claro ato de agressão dos Estados Unidos para com as Províncias Unidas do Rio da Prata, com as quais não tinham nenhum motivo nem razão que fosse fonte de discórdia, salvo o incidente de pouca importância dos baleeiros detidos por Vernet. 230 Malvinas na UNIVERSIDADE Concurso de Ensaios 2012 Curiosamente, anos depois, produzida a invasão inglesa ao arquipélago, os norte-americanos tiveram um conflito de interesses com os invasores britânicos de características similares às que houve com as Províncias Unidas do Rio da Prata quando, fazendo uso da força, os britânicos tentaram frear os excessos provocados pelos baleeiros ianques. Naquela oportunidade, a diplomacia norte-americana reclamou da atitude britânica alegando que a soberania das Malvinas era matéria de discussão com os argentinos, que também a exigiam. Refutação que mostra os argumentos mentirosos usados pelo ministro das Relações Exteriores norte-americano, Martín van Buren, que, em seu afã de negar os direitos de nossas Províncias Unidas, considerou as Malvinas completamente livres para todas as nações, chegando ao extremo de reconhecer um suposto direito inglês. Argumentos mentirosos que o próprio presidente norte-americano Andrew Jackson expôs a seu parlamento em 1832. O brutal saqueio foi validado pelo governo dos Estados Unidos, e o braço executor desse gesto tão repudiável, Silas Duncan, nunca foi reprovado pela administração norte-americana. No entanto, a Corte Federal de Massachusetts emitiu um pronunciamento em desaprovação de sua conduta (Groussac: 45). V Como já vimos, a garra espoliadora do império britânico retirou sua avançada colonizadora de Port Egmont em 1774, cumprindo a promessa feita à monarquia espanhola. Contudo, embora os ingleses tenham mantido sua palavra por quase seis décadas, as pretensões colonialistas sobre esta parte do mundo nunca foram abandonadas. Nem mesmo dissimuladas. Em 1806 e em 1807, os britânicos tentaram apropriar-se sem sucesso de Buenos Aires e de Montevidéu. A firme resistência de seus 231 Carlos Mariano Poó habitantes derrubaria os planos do invasor e consistiria num dos fermentos principais das forças revolucionárias que, decididamente, abriram as comportas para a emancipação e a independência americanas. Tempos depois, a Inglaterra viria descobriria que o conflito entre as Províncias Unidas do Rio da Prata e os Estados Unidos da América poderia ser muito útil para seus objetivos expansionistas. Em 29 de novembro de 1829, Woodbine Parish, representante inglês em Buenos Aires, realizou um protesto contra a soberana decisão do governo liderado por Martin Rodriguez pela criação da Comandância Política e Militar para as Ilhas Malvinas. A agressão norte-americana e os intrigantes jogos da diplomacia britânica colocaram as autoridades rio-platenses em alerta. O governador de Buenos Aires, Juan Manuel de Rosas, dispôs a reforma da escuna Sarandí para que, comandada pelo capitão José María Pinedo, ela se dirigisse rapidamente ao arquipélago. Além disso, ordenou que a comandância civil e militar das Malvinas ficasse nas mãos do sargento-major Mestivier. Logo após ter tomado posse, Mestivier morre assassinado como consequência de uma revolta das tropas em Puerto Luís. Os revoltados foram dominados e capturados pelos peões da estância de Vernet, cujo capataz era Juan Simón. Eles contaram com a ajuda da tripulação de um navio francês ancorado perto de Puerto Luís. Nessas circunstâncias, a desorganização e a confusão imperavam nas Malvinas. Além da insubordinação da tropa, que fora sufocada, houve rivalidades entre Juan Simón e Enrique Metcalf, o novo encarregado dos negócios de Vernet. A escuna Sarandí teve de atracar novamente em Puerto Luís, e o capitão Pinedo incumbiu-se da crítica situação junto com seus homens. A paciência inglesa deu seus frutos e, diante dos excessos que 232 Malvinas na UNIVERSIDADE Concurso de Ensaios 2012 reinavam nas Malvinas, as tropas de sua majestade decidiram agir para consumar o saqueio. A mosca já estava na rede, e a aranha devia trabalhar com rapidez. Em dois de janeiro de 1883, o navio de guerra Clío, comandado pelo capitão Oslow, ancorou em frente a Puerto Luís brandindo o pavilhão inglês. Sua tripulação estava fortemente armada e disposta a empreender o ato de rapina. Estranho senso de glória e honra mostraram os oficiais a serviço de sua majestade britânica ao longo de toda esta história. No entanto, eles não seriam os únicos. Oslow se reuniu com Pinedo para informar-lhe que tomaria posse das Malvinas. As ordens de sua superioridade exigiam que assim fosse. Pinedo não pôde, não soube ou não quis defender a posição. O certo é que as tropas inglesas superavam as suas. Porém, após ter organizado e disposto a defesa de Puerto Luís, ordenou, de maneira repentina, o embarque na Sarandí e a partida rumo a Buenos Aires, deixando Juán Simón nas ilhas como comandante político e militar interino. A ordem que Rosas deu a Pinedo tinha sido bem clara: resistir até as últimas consequências a qualquer ataque inimigo. Sua atitude, pouco decorosa e renhida com a valentia, foi julgada pelo governo de Buenos Aires. No dia três de janeiro de 1833, os patifes de sua majestade britânica, liderados por Oslow, consumaram a ultrajante espoliação contra nossa soberania. Afronta que ainda mancha o orgulho e a honra nacional, submetendo a seu arbítrio e império uma parte de nosso querido território. Conforme assinalado certeiramente por Pablo José Hernández e Horacio Chitarroni, o proceder inglês “mostrou seu verdadeiro rosto imperialista, dissimulado por trás da cortesia de seus diplomatas. Pouco significado poderia ter, para o florescente império, a soberania de nações que ele já considerava suas semicolônias” (Hernández P. J. e Chitarroni H.: 44 e 45). VI 233 Carlos Mariano Poó As Geórgias do Sul são compostas por uma ilha grande e outras menores. Encontram-se a aproximadamente 1342 quilômetros das Malvinas e 1670 da ilha dos Estados. San Pedro, a maior, tem uma superfície de aproximadamente 6845 quilômetros quadrados e uma cadeia de serras chamada San Telmo. Em 28 de junho de 1756, a tripulação do navio mercante espanhol León avistou uma massa de terra. No dia seguinte pela manhã, encontraram uma ilha de umas 20 a 25 léguas. Eles a percorreram durante três dias. Depois, zarparam rumo às Canárias. (Destéfani: 77). Em 1775, um ano depois do abandono de Port Egmont, James Cook redescobre as Geórgias reconhecendo que a descoberta fora realizada pela tripulação do León. Com o tempo, as Geórgias se transformaram num centro de caça de baleias. De outras latitudes, barcos baleeiros de diferentes nacionalidades chegaram para empreender sua atividade. Os cetáceos austrais quase foram exterminados, materializando a nova forma que a espoliação contra nosso país assumia. Navios e tripulações inglesas, norte-americanas, russas, alemãs, norueguesas e japonesas usufruíram daquela riqueza da qual nosso país não pôde tirar melhor proveito. Em 16 de novembro de 1904, na baía de Cumberland, foi criada a primeira feitoria baleeira em terra, regida pelas leis argentinas, instalada pela Companhia Argentina de Pesca. O estabelecimento contava com dois veleiros e um baleeiro a vapor. Suas atividades começaram em dezembro. Entretanto, em 1906 os britânicos impõem seu poderio marítimo e exigem a todos os baleeiros o pagamento de impostos e direitos para caçar baleias nas Geórgias. A espoliação sobre os arquipélagos e mares austrais argentinos aumenta. A desmedida ambição inglesa se agiganta, enquanto sua vergonha desaparece em relação 234 Malvinas na UNIVERSIDADE Concurso de Ensaios 2012 inversamente proporcional. Em julho de 1908, a Inglaterra declara unilateralmente, por meio da Real Carta Patente, que “estão sob o seu domínio todas as terras e ilhas compreendidas em um setor que vai do meridiano 20º O ao meridiano 80º O e abaixo da latitude 50º S ao Polo […] nesse mesmo setor não só estavam as Geórgias, as Sandwich e as Malvinas, mas também um pedaço de Santa Cruz, a Terra do Fogo e a província chilena de Magalhães” (Destéfani: 78). Diante dos protestos do Chile e da Argentina, os britânicos só reduziram a área sujeita a sua monárquica espoliação. A superfície compreendida entre os meridianos 50º e 80º longitude oeste e os paralelos 58º e 80º latitude sul foi retida, e as fauces do voraz e leonino colonialismo anglosaxão viram reduzido seu apetitoso bocado meridional. Desde 1917, a Inglaterra reivindica essa zona como própria até o Polo Sul. Vale ressaltar que, enquanto sua majestade britânica aproveitava os frutos da espoliação, a Marinha Argentina deu apoio logístico e de comunicações por mais de duas décadas em Grytviken. Sua presença representou o interesse argentino, embora os ingleses tenham imposto um representante do governo desde 1906, oficializado dois anos depois. VII Situadas a aproximadamente 2500 quilômetros da ilha dos Estados, as Sandwich do Sul conformam o arquipélago mais oriental da geografia argentina. As ilhas têm os nomes de Zavodovski, Leskov, Visokoi, Candelaria, Vindicación, Saunders, Jorge Blanco e o pequeno arquipélago de Tule do Sul, composto pelas ilhas Cook, Bellingshausen e Morrell. 235 Carlos Mariano Poó A origem do arquipélago é vulcânica, sendo comum a atividade permanente e os tremores sísmicos. Não há temperaturas extremas, mas ele costuma ser alvo cotidiano de fortes temporais e tempestades. Normalmente, em uma semana, há bom tempo por um ou dois dias, momentos nos quais sua superfície é acariciada pelos fracos raios de um tênue sol. James Cook descobriu de Candelaria a Tule do Sul em 1775. As três ilhas do norte – Zavodovski, Leskov e Visokoi – foram encontradas pelo capitão de navio Fabián Bellingshausen, no comando de uma expedição russa em 1820. A Marinha Argentina garantiu a presença de nosso país nas Sandwich desde 1950, intensificando seus estudos e investigações no arquipélago. Em janeiro de 1956, o guarda-marinha Ricardo Hermelo foi desembarcado com os operadores de rádio civis Manuel Ahumada e Juan Villafañe. Os três permaneceram durante vários dias no refúgio naval Elizalde cumprindo tarefas científicas e de comunicações. Devido a uma erupção vulcânica, foram evacuados.3 Em 18 de março de 1977, a Marinha Argentina instalou a estação científica “Corbeta Uruguay” em Morrell. Com uma casa para alojamento, uma de emergência e outra de serviços, a estação forneceria informação meteorológica, geológica, de magnetismo, estado dos gelos, heliografia, fauna e flora. É naquelas paragens, consideradas pelo próprio James Cook como os confins das terras às quais a humanidade poderia pretender se aproximar, que seus ávidos compatriotas consumavam a espoliação. VIII As Malvinas ocuparam a atenção internacional em repetidas ocasiões. Já na origem do conflito anglo-espanhol do século XVIII, a questão quase empurrou duas nações a uma guerra de consideração e de alcance difíceis de medir. Mais ainda se considerarmos que o pacto de 236 Malvinas na UNIVERSIDADE Concurso de Ensaios 2012 família teria arrastado a intervenção francesa; e a neutralidade portuguesa – provocada pela diplomacia britânica –, que a Espanha tanto desejava, teria sido difícil de manter, o que faria com que os lusitanos tomassem partido pelos usurpadores das Malvinas, entrando para a disputa com seus vizinhos continentais borbônicos. Durante o século XIX, a diplomacia argentina teve que batalhar simultaneamente em duas frentes. Com a diplomacia norte-americana – após o ataque da Lexington às Malvinas – e com a diplomacia inglesa devido à invasão de janeiro de 1833. Já no século XX, vemos que a questão das Malvinas teve um tratamento leve, entre 1945 e 1960, no seio da Comissão para a Informação das Nações Unidas, na Quarta Comissão da Assembleia Geral e, inclusive, no Plenário da organização. Quanto aos relatórios realizados pelos representantes britânicos, suas reservas foram questionadas por delegados argentinos no momento de debater o conteúdo.4 Em 1946, quando a Grã Bretanha apresentou o detalhe dos territórios sobre os quais informaria de acordo com as disposições da Carta das Nações Unidas, a delegação argentina fez uma ressalva, não reconhecendo a soberania inglesa nas Malvinas. A Grã Bretanha respondeu objetando a nossa. A partir de 1964, as Malvinas serão, ano após ano, um dos assuntos a tratar pelas Nações Unidas em todos os órgãos encarregados da questão da descolonização, respondendo ao mandato da Assembleia Geral. A questão das Malvinas ganhou uma transcendência fora do comum. No quadro do processo de descolonização promovido pelas Nações Unidas, no dia 16 de dezembro de 1965, foi aprovada a Resolução 2065 (XX) da Assembleia Geral, reconhecendo a existência de um conflito de soberania entre a Argentina e a Grã Bretanha e convocando-as a negociar. 237 Carlos Mariano Poó Em 1967, os britânicos elaboraram uma proposta de referendum para Gibraltar. Piedosamente, eu o chamo de espoliação plebiscitária. Seu objetivo era consultar a população do território colonial se ela queria continuar dependendo de sua majestade ou declarar-se independente. A manobra foi interpretada como uma tentativa manipuladora da Resolução 1514 das Nações Unidas. A população de Gibraltar não podia ser considerada originária, pois havia sido implantada após a ocupação. Como nas Malvinas. A jogada deu errado, a ultrajante manobra foi bloqueada e, felizmente, recusada. No dia 12 de outubro de 1970, as Nações Unidas condenaram, com a Resolução 2621 (XXV), a continuidade do colonialismo em qualquer uma de suas formas ou manifestações por constituir um crime que infringe a Carta de dito organismo. Durante oito anos, a Argentina tentou negociar com os ingleses. Tudo era em vão. Além da clássica petulância inglesa, havia o efetivo poder lobbysta do maior latifundiário da ilha, a Falkland Islands Company, para impedi-lo. Em 1973, as Nações Unidas manifestaram, por meio da Resolução 3160, que se sentia gravemente preocupada ao ver que as negociações estavam paradas, reconhecendo os contínuos esforços do governo argentino de facilitar o processo de descolonização e incentivar o bemestar da população das ilhas. Faltava um termo à equação: a Grã Bretanha. Desta forma, o proceder dos filhos da emancipação e da independência americana era reconhecido. E os livres do mundo responderam: Ao grande povo argentino, saúde! IX No dia dois de abril de 1982, as Forças Armadas argentinas realizaram uma operação conjunta denominada “Operativo Rosario”, desembarcando nas Malvinas. 238 Malvinas na UNIVERSIDADE Concurso de Ensaios 2012 Após um enfrentamento, as tropas venceram a resistência dos Royal Marines. O governador inglês apresentou a rendição. Uma bemsucedida operação inicial quebrava cento e quarenta e nove anos de ocupação colonial britânica. As Malvinas eram recuperadas. A maior parte das tropas nacionais tomou posições sobre Puerto Argentino. Uma força de tarefas menor foi enviada para Darwin e Pradera del Ganso. A maior parte do povo argentino recebeu a notícia com euforia. Uma massiva manifestação lotou a Praça de Maio. O apoio popular à recuperação das Malvinas, Geórgias e Sándwuich del Sur era evidente. Vale ressaltar que tal expressão, a meu ver, não pode ser traduzida como um apoio à ditadura. Porque as Malvinas representam, para os argentinos, a questão nacional por excelência. O nível mais alto de completitude para gerações de mulheres e homens que nasceram sob este céu e este sol, com uma parte de seu território ocupado por uma potência estrangeira. O tumulto era mais do que justificado. O mesmo usurpador que, no começo da gesta emancipadora americana, tentou tomar Buenos Aires, sendo expulso pela heroica força mancomunada de criollos e espanhóis, novamente havia sido expulso do território nacional. Após setenta e quatro dias de uma luta épica – principalmente por terra e por ar – contra uma força militar muito superior em quase todos os âmbitos, no dia 13 de junho de 1982, nossas tropas foram rodeadas pelo inimigo em Puerto Argentino. No dia seguinte, numa manhã cinza e brumosa, com o fogo dos incêndios provocados pelos disparos da artilharia inimiga, que carregava ainda mais a já densa atmosfera da capital da ilha, as tropas nacionais se renderam ante o invasor inglês. Os heróis que voltaram contam que, abafado o rugir dos canhões, um silêncio comovedor foi tudo o que se seguiu. 239 Carlos Mariano Poó Foi a hora em que os sonhos de liberdade desfizeram-se, quebrando em mil pedaços a esperança de um povo inteiro. Foi a hora em que brotaram lágrimas dos bravos combatentes argentinos para continuar regando esse solo... O mais querido, o da Pátria na extensão. E a derrota teve, para nós, o sabor de uma fruta amarga. Uma que Homero Manzi nem mesmo imaginou. X No começo dos anos setenta, a crise petroleira internacional teve uma influência manifesta sobre as Malvinas. Em 1973, a economia capitalista ocidental foi duramente atingida pela escassez do petróleo, e o aumento do preço deste produto colocou em evidência as fortes contradições entre a produção e o consumo. Os países produtores do ouro negro introduziram medidas tendentes a proteger seu recurso diante da voraz demanda dos países industrializados, que se lançaram desesperadamente em busca de novas fontes. Conforme adverte Jorge Leal lá pelos idos de 1975, os poderosos países desenvolvidos “voltamse agora para zonas que, em seus calados planos, tinham disposto que fossem mantidas como reservas”. Será neste contexto que a Inglaterra concretiza uma nova batalha contra nossa soberania. Da corrida aos mares do sul com objetivo geopolítico, agora passava a ter prioridade a corrida pelo petróleo. Os estudos geológicos nos confins austrais atualizaram-se durante a primeira metade dos anos setenta, e seus resultados foram conclusivos: sedimentos dos períodos Cretáceo e Eoceno, com uma espessura que oscila entre 2000 e 8000 metros, comprovaram a existência de grandes bacias petrolíferas nas adjacências da nossa querida pérola austral. 240 Malvinas na UNIVERSIDADE Concurso de Ensaios 2012 A caríssima perfuração submarina deixou de ser onerosa. Poderíamos dizer que quase num passe de mágica, se não soubéssemos que não se tratava de mágica. Em 1974, constantes aumentos de preços no mercado multiplicaram o valor do petróleo em até sete vezes. A mágica deu lugar ao capitalismo e às suas regras. A perfuração submarina começou a ser lucrativa e a Inglaterra, junto com outros países europeus, empreendeu este tipo de extração no Mar do Norte. A espoliação começava a ser preparada. A Inglaterra decidiu enviar às Malvinas, em outubro de 1975, uma comissão com o objetivo de realizar um relevamento econômico. Os protestos argentinos não se fizeram esperar. No entanto, a legitimidade, o direito e a razão não foram barreira intransponível para os ingleses. A fleuma britânica, além de imperturbável, mostrava-se muito insolente. E em dezembro, a missão Shakleton foi enviada às Malvinas. Os progressos alcançados em negociações entre a Argentina e a Grã Bretanha, promovidas pela forte repúdio internacional ao crime colonialista, desvaneceram-se no ar. Os esforços e os recursos argentinos, investidos durante anos com o intuito de aplicar uma política integradora à tão isolada população malvinense, foram demolidos. Como quem derruba um castelo de baralho. As resoluções aprovadas pelas Nações Unidas sobre a existência de um conflito pela soberania nas Malvinas também não representaram um obstáculo para a sagacidade da fleumática e desmedida ambição britânica. Em 1976, enquanto a Argentina se afundava na escura noite que representou sua última ditadura militar, a Grã Bretanha decidiu suspender de forma unilateral as negociações sobre as Malvinas por considerá-las irrelevantes, provocando uma séria deterioração nas relações argentino-britânicas. Desta forma, a Inglaterra cuspiu sobre os avanços alcançados, inclusive sobre recomendações feitas pelas Nações Unidas, impedindo qualquer possibilidade de discussão sobre o problema de origem: a questão da soberania sobre as ilhas. 241 Carlos Mariano Poó Reafirmando, assim, sua tradicional posição de considerar as Malvinas como colônia britânica (Hernández e Chitarroni: 102). Após o último conflito armado, a Grã Bretanha conseguiu exercer um férreo controle sobre as ilhas e os mares adjacentes. Isso não pode ser considerado simplesmente fruto da derrota militar, uma vez que as graves concessões à Grã Bretanha realizadas pelo governo de Carlos Saúl Menem incidiram muito, sendo plasmadas nos chamados “Acordos” de Madri de outubro de 1989 e fevereiro de 1990. Compromissos que foram assinados por aquele governo, mas que não contaram com a devida e correspondente aprovação do Congresso da Nação Argentina, não gozando, portanto, da categoria de tratados. Assim, a continuidade da espoliação se materializa com a evidente recusa da Grã Bretanha a discutir a questão da restituição do território arrancado à força da República Argentina no dia três de janeiro de 1833, e novamente arrancado em 14 de junho de 1982, ampliando o exercício de seu domínio ilegal sob o amparo do chamado “guardachuva de soberania”, acentuando a militarização do arquipélago. Além de suas contínuas e manifestas pretensões sobre o Atlântico Sul e a Antártida, os ingleses exploraram nossos recursos pesqueiros com voracidade, avidez à qual agora acrescentam nosso petróleo, saciando a fome colonialista e continuando esta espoliação canalha em detrimento da Nação e do povo argentino. Conclusão Assim, chegamos ao final deste decálogo de uma espoliação. Tomara que ele tenha alcançado seu objetivo, pois espero que este trabalho sirva para os leitores entenderem hoje, um pouco mais, aquilo que não pudemos compreender em toda sua magnitude trinta anos atrás. Caso seja assim, poderei sentir a satisfação da tarefa cumprida. Porém, não quero me despedir sem antes manifestar uma profunda e 242 Malvinas na UNIVERSIDADE Concurso de Ensaios 2012 forte convicção: todos nós, argentinos, temos uma obrigação, uma conta pendente, ou como vocês queiram chamar, com a questão das Malvinas. Questão, aliás, motivadora, pois razões nos cabem e sobram. Ciente de que com queixas lastimosas não chegarei nem chegaremos a lugar nenhum, quero propor um exercício de reflexão: as Ilhas Malvinas, Geórgias e Sandwich do Sul são somente uma manifestação de desejo ou de nossa vontade? Francamente, não tenho resposta para este interrogante. Considero, isso sim, que se nossa Nação encontrar uma resposta, ela recuperará muito mais do que três arquipélagos perdidos nas imensuráveis e bravas águas do Atlântico Sul. Só tenho um indício para oferecer. Um que me proporciona um velho provérbio chinês: as grandes almas têm vontades: as fracas, só desejos. Talvez algum dia não muito longínquo, sejamos capazes de estabelecer as coordenadas precisas, exatas, que orientarão nosso rumo para resolver esta questão importantíssima. Essas mesmas coordenadas que hoje situam as Malvinas entre nossa vontade e nosso desejo. Notas 1 - Com relação a seu descobrimento, nunca foi possível comprovar, efetivamente, que Américo Vespúcio (1503) ou Fernão de Magalhães (1520) tenham sido os navegantes que descobriram as Malvinas. 2 - Coleção de documentos oficiais na qual o governo instrui o Corpo Legislativo da Província sobre a origem e o estado das questões pendentes com a república dos Estados Unidos sobre as Ilhas Malvinas. Citado por Mário TESLER, Malvinas: cómo EE. UU. provocó la usurpación inglesa, Buenos Aires, Editora Galerna, 1979, p. 18. 3 - O contra-almirante Destéfani registra que as Sandwich do Sul foram relevadas durante a campanha antártica anual de 1951/52 pelas fragatas Hércules e Sarandí, pertencentes à Marinha da República Argentina. Posteriormente, de 1954 a 1959, foram realizados trabalhos hidrográficos e observações científicas no arquipélago. 4 - Reserva realizada em 23/04/1945 durante a Conferência de São Francisco, que 243 Carlos Mariano Poó elaborou a Carta da Organização das Nações Unidas. Debate sobre o sistema de tutela. Bibliografia Alonso Piñeiro, Armando (dir.), Malvinas: los debates en la OEA, Buenos Aires, CAEME, 1982. Balza, Martín Antonio, Relatos de soldados, Buenos Aires, Círculo Militar, 1985. Conselho Argentino para as Relações Internacionais, Malvinas, Georgias y Sándwich del Sur. Diplomacia Argentina en Naciones Unidas 1945-1981, Tomo I, Buenos Aires, CARI, 1983. Conselho Argentino para as Relações Internacionais, Malvinas, Georgias y Sándwich del Sur. Diplomacia Argentina en Naciones Unidas 1945-1981, Tomo II, Buenos Aires, CARI, 1983. Conselho Argentino para as Relações Internacionais, Malvinas, Georgias y Sándwich del Sur. 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Woodward, Sandy, Los cien días, Buenos Aires, Sudamericana, 1992. 244 Malvinas na UNIVERSIDADE Concurso de Ensaios 2012 Menção especial A RECUPERAÇÃO DA MEMÓRIA DA GUERRA DAS MALVINAS EM GENERAL ROCA, PROVÍNCIA DO RIO NEGRO Helga Ticac Helga Ticac A RECUPERAÇÃO DA MEMÓRIA DA GUERRA DAS MALVINAS EM GENERAL ROCA, PROVÍNCIA DO RIO NEGRO Helga Ticac 1 1 - Introdução Neste ensaio, relato a situação em que se encontravam milhares de jovens argentinos – alguns deles, ainda adolescentes – quando, em abril de 1982, o governo militar de Leopoldo Galtieri impulsionou a guerra entre a Grã Bretanha e a Argentina no território das Ilhas Malvinas. 1 Helga Ticac é assistente social pela Universidade Nacional do Comahue. Atualmente, está trabalhando em seu doutorado em Psicologia na Universidade de Ciências Empresariais e Sociais em General Roca, na Província do Rio Negro. 246 Malvinas na UNIVERSIDADE Concurso de Ensaios 2012 O breve conflito bélico, que durou três meses, produziu centenas de mortos e milhares de feridos, os quais voltaram ao continente com diferentes tipos de sequelas. Em General Roca (Província do Rio Negro), os soldados que voltaram à cidade experimentaram o desconhecimento social nos âmbitos nos quais pretendiam se inserir, e os efeitos da guerra apareceram tanto no âmbito familiar como social. A situação psicossocial posterior à guerra provocou uma imensa quantidade de efeitos na vida cotidiana dos soldados, ocasionando dificuldades na comunicação interpessoal e na continuidade em algum emprego, por um lado, e estados de ânimo diversos e alguns sintomas típicos (por exemplo, o transtorno do estresse pós-traumático), por outro. A atualidade deste assunto ganha maior significância quando analisamos as estatísticas sobre suicídios, que ainda hoje continuam ocorrendo entre os ex-combatentes. Diferentes autores e pesquisadores analisaram o fenômeno de diversos ângulos. Aqui, trago à colação aqueles que se associam com a recuperação da memória como forma de superação das situações traumáticas e disruptivas. Neste trabalho, analiso como este grupo de ex-combatentes foi formando vínculos com a vida por meio da Agrupação de Veteranos de Guerra, encabeçando a Causa das Malvinas e propugnando a remalvinização. Os propósitos se baseiam em três pilares: a mobilização em prol de benefícios sociais e da reivindicação social, a solidariedade como máxima expressão da resiliência e a transmissão e divulgação socioeducativa da memória da Guerra das Malvinas com o apoio dos programas de voluntariado do Governo Federal, executados pelo Ministério da Educação e por outros apoios governamentais, a trinta 247 Helga Ticac anos da Guerra das Malvinas. 2. Desenvolvimento A população de ex-combatentes é caracterizada pela tarefa que realizou num momento particular de nossa história nacional. No ano de 1982, eles tinham entre 18 e 20 anos e se desempenharam, de uma ou outra forma, na Guerra das Malvinas. Hoje, são pessoas de entre 43 e 47 anos, e, de acordo com as funções e a implicação de cada um deles no conflito, são reconhecidos com diferentes denominações, como excombatentes, veteranos de guerra, recrutas, convocados e mobilizados 1 para o TOAS e o TOM 2. Os autoconvocados ou mobilizados são ex-soldados que realizaram tarefas durante o serviço militar obrigatório no continente sem chegar até as Ilhas Malvinas, defendendo as fronteiras em geral a fim de evitar o avanço de tropas para a Argentina. Como cada grupo tem características e implicações diferentes, optei por escolher o grupo de ex-combatentes que participou diretamente do combate no território das Ilhas Malvinas. Os dados sobre as sequelas que este fato deixou na população datam do ano de 1997 e foram coletados pela Comissão Nacional de Ex3 Combatentes das Malvinas em todo o território nacional. Em linhas gerais, foram contabilizados os seguintes dados: No Exército Argentino: População total: 7816 (7960 - 144 falecidos). Com incapacidade física maior a 66%: 156. Com incapacidade física menor a 66%: 145. Na Força Aérea: População total: 439 (444 - 5 falecidos). Sem sequelas visíveis: 414. Feridos e doentes com deficiências: 15. 248 Malvinas na UNIVERSIDADE Concurso de Ensaios 2012 Na Marinha Nacional: População total: 4039 (4180 - 141 falecidos). Sem sequelas visíveis: 3993. Feridos com deficiência maior a 65%: 14. Feridos com deficiência menor a 65%: 32. Embora esses dados não sejam atualizados, é possível inferir que, dada a falta de assistência sistemática do Estado para com esta população, as condições de referência das diversas patologias físicas foram evoluindo em maior ou menor medida. Estas sequelas deixam marcas nos corpos dos ex-combatentes, mas não há relatórios sobre as consequências psicológicas e sociais de sua participação na gesta das Malvinas. É possível mencionar algumas das situações às quais estas pessoas foram expostas. A isso, acrescenta-se que, no momento em que o fato aconteceu, elas eram jovens, muitas ainda adolescentes, o que potencializou o impacto na constituição de sua subjetividade. No relatório anteriormente mencionado, consta que de 70 a 100% dos entrevistados foram expostos às inclemências do tempo (vestimenta molhada, frio, hipotermia), longas jornadas sem descanso, falta de sono. Eles não tinham condições para se higienizar nem contavam com uma alimentação correta. Outras circunstâncias de ordem psicológica contribuíram para agravar as demais, como tensão nervosa, falta de instrução militar e capacitação, situações de estresse, estado permanente de atenção e alerta sem os devidos descansos, medo e temores. De 32 a 69% dos entrevistados foram expostos à linha de fogo, ingestão de alimentos em mal estado, falta de atendimento médico, isolamento, ordens confusas, sobrecarga de responsabilidades, castigos e maus-tratos, trabalhos de extrema pressão, falta de mando, falta de assistência religiosa ou espiritual. De 10 a 31% deles foram expostos a diferentes tipos de radiações, 249 Helga Ticac gases, solventes e outras substâncias perigosas. Sensações ao voltar das Malvinas: Alegria, alívio por voltar: 38%. Desilusão, frustração, sensação de inutilidade: 40%. Angústia, dor, descontentamento: 34%. Ódio, raiva, indignação: 29%. Pode-se inferir que os sentimentos negativos ocasionados pela situação vivida representam o total da enquete, uma vez que os positivos referem-se à volta. No ano de 1991, foi realizado um relevamento na Província do Rio Negro com a finalidade de iniciar os trâmites para a pensão vitalícia dos ex-combatentes. Este fato permitiu relevar algumas das situações expostas a seguir. De um total de 63 nativos, as principais problemáticas eram: falta de trabalho, impossibilidade ou dificuldades relacionadas com os preconceitos para consegui-lo, falta de moradia e necessidade de capacitação formal (alta incidência de ensino fundamental incompleto ou analfabetismo), quase nenhum deles contava com cobertura médica nem recebia assistência de nenhum tipo. A precarização das condições sociais deste grupo foi se agravando, deixando-os em situação de dependência da assistência social do Estado. O jornal La Nación,4 em sua edição do dia 28 de fevereiro de 2006, informa que “assim como no caso dos argentinos, há mais soldados do Reino Unido que tiraram a própria vida do que mortos no conflito”, em entrevista a Colin Waite, ex-combatente inglês e cofundador da Falklands Veterans Foundation (Fundação de Veteranos das Malvinas), uma associação que funciona desde abril de 1997 com o objetivo de “manter e promover um sentido de orgulho e companheirismo entre todos os veteranos da campanha do Atlântico Sul”. 250 Malvinas na UNIVERSIDADE Concurso de Ensaios 2012 Na entrevista, ele revelou que a quantidade de soldados britânicos que morreram em combate foi de 255. Já em 2002, 20 anos após o conflito, estimava-se em mais de 250 o número de suicídios desde o fim da guerra. Além disso, Waite compara os dados das tropas de seu país com aqueles que participaram da Guerra do Iraque. Na Argentina, a quantidade de suicídios de ex-combatentes da Guerra já ultrapassou o número dos que tombaram em combate. Na guerra, morreram 649 argentinos, 323 durante o afundamento do Cruzador General Belgrano e 326 no arquipélago. O Estado não conta com cifras oficiais, mas entre os veteranos haveria entre 350 e 454 casos. Segundo estatísticas oficiais do Ministério da Saúde do ano de 2004, a taxa anual de suicídios na Argentina é de 8,2 casos a cada 100.000 habitantes. Estima-se que há por volta de 14.000 sobreviventes do conflito bélico das Malvinas. De acordo com o Ministério do Interior, que considera verdadeira a quantidade de 350 casos estimados pelos próprios veteranos, há mais de 25.000. A taxa anual de suicídios seria de 108,7 a cada 100.000 habitantes, quase 14 vezes maior do que no resto da população. 5 Em 2004, o Ministério da Saúde da Província de Buenos Aires publicou dados estatísticos acerca dos ex-combatentes: 77,9% deles sofrem de transtornos do sono; 10% reconhecem ter padecido sintomas psicóticos tais como delírios, alucinações e manifestações paranoicas; 20% afirmam sofrer de algum tipo de fobia e 60% reclamam de transtornos da memória (esquecer permanentemente nomes, datas, situações, etc.); 32% declaram ter ideias obsessivas relacionadas com as Malvinas e sua relação com fatos posteriores; 28% dos excombatentes entrevistados têm ideias recorrentes de suicídio; 10% reconhecem ter tido tentativas de suicídio em uma ou mais oportunidades; 37% se reconhecem como violentos; 26% usam normalmente armas de fogo; 41% completaram o ensino fundamental; 60% não têm uma situação de trabalho estável; 36% padecem 251 Helga Ticac deficiência física ou psíquica. Embora 99% deles contem com plano de saúde, 72% não vão ao médico e 91% não recebem atendimento psiquiátrico e psicológico especificamente; 88% nunca compareceram a um centro de saúde. Entre 25 e 39% dos ex-combatentes (varia segundo a área de residência) sofrem de TEPT (transtorno do estresse pós-traumático). Os dados da pesquisa anterior foram retirados do artigo “Malvinas: uma ferida aberta”, de Edgardo Esteban. O autor do artigo, um excombatente da Guerra das Malvinas, manifesta que “o pós-guerra foi marcado pela indiferença de uma sociedade traumatizada por seu irrefletido apoio à ditadura e pelo silêncio e o esquecimento imposto pelos militares”. E afirma: “De alguma forma os ex-combatentes foram combatidos, pois viraram as costas para eles, obrigando-os à marginalização e sepultando-os no esquecimento, na indiferença... Resultado: até o momento, chegam a 400 os ex-combatentes que cometeram suicídio, muito mais do que os 267 mortos em combate. Aqueles que ainda vivem padecem de diferentes afecções, graves consequências incluídas na denominação “transtorno do estresse póstraumático”. Além disso, ressalta que “o final do conflito encerrou o capítulo da ditadura, sendo um fator decisivo para a reinstauração da democracia; mas, quanto à guerra, a sociedade não assumiu suas responsabilidades”. E continua: “As autoridades e a sociedade se comportavam como se os soldados fossem os responsáveis pela derrota. Houve um acordo tácito para esquecer a guerra, esconder aqueles que dela voltavam e apagar as experiências vividas. Para obter a baixa militar, os oficiais fizeram com que os soldados assinassem uma declaração jurada na qual se comprometiam calar e, portanto, a esquecer. Falar da guerra, do que nela tinha acontecido, foi o primeiro que nos foi proibido. Assim, a dor, as humilhações, a frustração, o desengano e a raiva ficaram dentro de cada um de nós até se tornar insuportável em muitos casos. É que falar, contar, era o primeiro passo necessário para exorcizar nosso inferno interior e começar a curar as feridas [...] Assim, a volta foi 252 Malvinas na UNIVERSIDADE Concurso de Ensaios 2012 cruel, em silêncio, às escondidas, como se fôssemos um grupo de covardes. As boas-vindas ficaram apenas para o lar [...]”. 6 Moty Benyakar indica que o maior fracasso em termos de resposta a desastres da Argentina contemporânea é o destino suicida dos excombatentes das Malvinas. Segundo ela, este é o caso de uma sociedade que não se responsabilizou por aqueles que suportaram um evento distruptivo. “A sociedade argentina, talvez por causa das situações de desastre que atravessou, não foi capaz de absorver essas pessoas que tinham ido lutar pela pátria. Quando a sociedade não reconhece a dor de uma pessoa que arriscou sua vida como combatente ou danificado por um desastre, essa dor pode levar ao suicídio. E este reconhecimento, claro, não pode se limitar a uma fórmula do tipo “coitados, vejam o que aconteceu com eles [...]”, mas, pelo contrário, exige políticas ativas de reinserção”. A situação disruptiva e de desvalimento de uma guerra é evidente e provoca um maior impacto no sujeito de acordo com a magnitude do fenômeno e do estado psíquico do receptor. No entanto, a força do estímulo da “situação bélica” tem, devido à sua magnitude, efeitos traumatizantes massivos nos envolvidos, independentemente das pecualiaridades de cada um. Segundo Benyakar, “todo evento disruptivo causa dor, sofrimento e raiva; mas não provoca necessariamente uma incapacidade de elaboração psíquica do que aconteceu: essa incapacidade é o trauma psíquico”. No contexto nacional, aconteciam os fatos mais aberrantes da história. Como produto e consequência da ditadura militar, trinta mil desaparecidos, um saldo de mais de trezentos mortos em combate e um número semelhante de suicídios de ex-combatentes após o conflito – e até hoje em dia – denotam a atualidade do assunto. As sequelas sociais do genocídio da ditadura e da Guerra das Malvinas ocasionaram sérias rupturas de laços comunitários e desconfiança nos 253 Helga Ticac governantes e na Justiça, provocando uma espécie de catástrofe coletiva. 7 R. Zukerfeld e R. Z. Zukerfeld (2006) definem “entorno disruptivo” como o contexto onde “o traumático” e “o ominoso” se superpõem, uma vez que “a fonte disruptiva coincide com a fonte de apoio: conforme já dito, não há pior ladrão do que um policial; não há pior abuso do que o incestuoso; não há pior terrorismo do que o do Estado”. A Guerra das Malvinas provocou crises em diferentes níveis e obrigou diferentes atores, tanto os soldados e militares envolvidos como todos os cidadãos argentinos, a rever os significados de “patriotismo”, “soberania” e “direitos”. A Guerra das Malvinas e outras guerras “silenciosas” anteriores, decorrentes da ditadura militar, quebraram códigos, principalmente a confiança nas instituições e a segurança da população. Maldavsky, no capítulo “Violência política e processos subjetivos”, do livro Sobre las ciencias de la subjetividad, afirma que quanto maior é a violência social exercida pelo poder, menor é o espaço para o vínculo com o diferente, para o desenvolvimento do subjetivo. A subjetividade implica nexos com a pulsão, com a realidade. Os acontecimentos traumáticos e catastróficos, que consistem em fatos concretos de curta duração e de grande intensidade, modificam o psiquismo da mesma maneira que os derivados de acontecimentos de menor intensidade e longa ou constante duração. O primeiro caso é aplicável à Guerra das Malvinas: os soldados foram expostos a situações potencialmente traumáticas durante um período de um a três meses, tempo intenso no qual foram colocadas em risco a vida e a integridade física e psíquica de jovens e adolescentes argentinos. Além disso, o processo de adolescência dos soldados em guerra foi interrompido por um evento desestruturador, haja em vista seu efeito disruptivo na vida de uma pessoa. 254 Malvinas na UNIVERSIDADE Concurso de Ensaios 2012 Ser o porta-voz de uma história insuportável para o grupo pode acabar sendo uma maneira de neutralizar a tentação de se deixar morrer, de acordo com Maldavsky. Enquanto isso, a falta de cadáveres das vítimas, os “mortos sem 8 sepultura”, eternizam a tragédia sem possibilidade de solução. Na medida em que todos estes casos podem gerar um clamor grupal em prol de algum tipo de reivindicação social, podemos conjeturar que esta também é uma forma de ligar o trauma, uma tentativa de dar uma voz, uma expressão, a uma economia pulsional intramitável não ligada a um universo simbólico e, ao mesmo tempo, um testemunho de conservação da eficácia de uma modalidade primigênia de conceber o próprio soma como parte de um corpo pulsional coletivo, não recortado de um conjunto (Maldavsky, D.: 1994, 239). O processamento das situações não elaboradas é transferido à seguinte geração, especialmente quando os protagonistas não 9 “elaboraram” os acontecimentos trágicos que padeceram, ou quando o fazem em forma de pesadelos ou perpetuando o trauma por meio de vícios, processos psicossomáticos, violência e conflitos familiares. Vicente Palermo, em seu livro Sal en las heridas, faz referência à causa das Malvinas e afirma que descuidamos dos ex-combatentes. “Eles são os sobreviventes de uma experiência terrível. Muitos veteranos não conseguem carregar sozinhos com o fardo de ter sobrevivido, de ter deixado seus companheiros e amigos mortos nas Ilhas. O passado não elaborado volta sempre e esmaga quem não pode aliviar seu peso com essa elaboração”. “Muitos veteranos não participam de nenhuma das organizações e não adotaram a retórica da causa, mas contaram com outros recursos para suportar o terrível fato de ter sobrevivido lá quando outros morreram, para realizar uma elaboração pessoal que lhes permita suportar essa experiência” (Palermo, 2007). 255 Helga Ticac Segundo M. Enriquez,10 em toda pessoa persiste um afã de rememoração e insistência em investigar o passado. “O esquecimento, o apagamento das marcas e a desinvestidura enquanto expressão do sono sem sonhos e do componente destrutivo da pulsão de morte são os piores inimigos da atividade de rememoração e de ligamento”. “A historicidade é um processo de rememoração compartilhado com outros. Para que o esforço da criação da história se mantenha, sua participação na rememoração é fundamental” (Enriquez, M.: 2004, 107). A atualidade deste assunto adquire maior significado com as estatísticas sobre os suicídios que continuam ocorrendo no grupo dos ex-combatentes. Além do fato real e concreto da existência de uma “campanha de desmalvinização” graças à qual os acontecimentos catastróficos da guerra foram mantidos em silêncio por mais de vinte anos, alguns dos direitos dos veteranos foram reconhecidos somente uma década após o enfrentamento. O assunto foi estudado por especialistas como o Dr. Enrique Stein, presidente do capítulo de Psicotraumatologia da Associação de Psiquiatras Argentinos (APSA). Segundo ele, o estresse pós-traumático dos veteranos de guerra é “exagerado”, e estudos demonstraram que o evento bélico no campo de batalha não foi tão estressante quanto o que aconteceu na volta para o continente. De acordo com o autor, as políticas de desmalvinização foram, para muitos veteranos, o maior dos danos e da dor, ou um sofrimento maior 11 do que o provocado pelo combate. Segundo ele, a “remalvinização, no sentido histórico da gesta, poderia ser parte de uma contribuição para evitar que continuemos a ler na crônica cotidiana os suicídios dos VGM (Veteranos de Guerra das Malvinas) como expressão última da dor não resolvida por muitos deles”. 256 Malvinas na UNIVERSIDADE Concurso de Ensaios 2012 Para Stein, quando o assunto é a saúde mental dos VGM, há uma tendência a se focalizar exclusivamente o TEPT (transtorno do estresse pós-traumático) em referência às consequências das experiências no campo de batalha. Além disso, segundo ele, a decisão políticogovernamental – apoiada por setores civis desmalvinizadores – era silenciar, desconhecer, esconder e ignorar os VGM. Assim, sua intenção era eliminar qualquer possibilidade de reconhecimento para, assim, retirar qualquer apoio social/grupal ao ex-combatente, afetando as possibilidades de recuperação plena das situações vivenciadas. O autor também indica que, à medida que o tempo passa e os excombatentes não obtém respostas para suas reclamações de pensão, assistência médica, etc., surgem fenômenos de violência indiscriminada, suicídios, destruição familiar, entre outros. Ele ressalta que, após a guerra do Iraque, os sintomas traumáticos pósguerra são menores quando atendidos de imediato, segundo o New York Times de 07/04/07. Assim, Stein afirma que “se no processo de conformação da subjetividade – aquilo que pensamos, sentimos e fazemos – de cada um de nós o apoio grupal/familiar/social – Enrique Pichón Rieviere – é importante, tanto mais deveria sê-lo para aqueles que acabavam de participar de um combate duríssimo contra o inimigo”. Assim, o autor reconhece que a recuperação dos VGM se deve, em grande parte, à ação de suas organizações de veteranos de guerra. “[...] Nem todos os VGM têm a constelação sintomática do TEPT, alguns levam a vida adaptados ativamente ao trabalho, ao estudo e à manutenção do grupo familiar. Também é verdade que a reinserção institucional funcionou, para muitos, como âmbito de apoio, o que não aconteceu com a maioria dos soldados abandonados criminalmente à sua sorte”. “As possibilidades de desenvolver TEPT reconhecem também histórias pessoais e familiares prévias à guerra que com ela eclodem. A possibilidade de pensar “junto com outro ou outros” no acontecer prévio, simultâneo e posterior à guerra vai favorecer a 257 Helga Ticac recuperação psicoemocional do VG”. Para Stein, o impacto real do TEPT na saúde mental dos veteranos de guerra foi exagerado. “De uma perspectiva psicossocial, existem provas que demonstram que a qualidade do apoio social, os acontecimentos familiares, as experiências durante a infância, os traços da personalidade e os transtornos mentais preexistentes podem influenciar no aparecimento do TEPT. Entretanto, ele pode surgir em indivíduos sem nenhum fator predisponente, sobre tudo quando o acontecimento for extremamente traumático”. Durante uma reunião de veteranos de guerra provenientes do sul do país que contou com a participação de Stein, realizada no dia 04/06/2010 numa sala da Faculdade de Direito e Ciências Sociais da Universidade Nacional do Comahue, eles expressaram suas vivências posteriores à guerra, disseram ter sentido uma grande angústia, tristeza, reações de violência, respondiam de mau humor, diziam que não se sentiam equilibrados: “temos que começar por reconhecer que temos um problema [...] reconhecer que a gente leva uma cruz e que vamos ter que levá-la pelo resto da vida”. A guerra criou neles um aspecto positivo (o sentimento patriótico comum) e algo negativo (a falta de reconhecimento social e a derrota), alguns dizem: “a derrota é minha cruz”. As declarações mais positivas foram sobre o fato de eles se sentirem orgulhosos de ser veteranos de guerra. Diante das expressões dos veteranos, tendo em vista os efeitos da política ativa de silenciamento (desmalvinização), que provocou um dano psíquico posterior maior do que o próprio conflito bélico, Stein ressalta a necessidade de reestabelecer as relações de confiança. Além disso, ele esclarece que muitas vezes o SEP (síndrome do estresse póstraumático) serviu para vitimizar e discriminar, pois não todas as guerras são iguais e nem sempre surgem neuroses de guerra. O encontro abriu um espaço de reflexão acerca da necessidade de divulgar os fatos acontecidos nas Malvinas durante e após a guerra e, além disso, possibilitar o conhecimento e o encontro com o outro, 258 Malvinas na UNIVERSIDADE Concurso de Ensaios 2012 permitindo a inclusão do veterano como cidadão na vida social. 3. Conclusões Neste ensaio, analisei a situação dos ex-combatentes das Malvinas e diversas informações relacionadas com a conceituação e os debates vigentes sobre os efeitos psicossociais da guerra nesta população. Com o intuito de contribuir para o desenvolvimento de mecanismos de superação da situação descrita com um grupo valioso de docentes, profissionais e estudantes, e associativamente com a Agrupação de Veteranos de Guerra das Malvinas de General Roca, realizamos as seguintes ações reivindicatórias, que promovem o reconhecimento histórico da gesta dos soldados argentinos nas Malvinas. No ano de 2007, apresentamos o projeto “Recuperando a História das Malvinas” na chamada do Programa de Voluntariado Universitário. O projeto, que foi aprovado, teve como objetivo principal reconhecer os soldados das Malvinas por meio da narração de suas histórias de vida antes, durante e logo após a guerra. O objetivo do Programa, desde sua criação pelo Ministério da Educação, é que os alunos voluntários aprendam a trabalhar em setores da comunidade, aplicando os conhecimentos de seus cursos; aprendendo a filmar, gravar e transmitir os textos das entrevistas; além de fazer desenhos, apresentações gráficas e audiovisuais, e organizar eventos relacionados com a temática. Isso possibilita, em todos os projetos, gerar recursos humanos e profissionais com temáticas atuais e diretamente focadas na satisfação das necessidades comunitárias. Com o projeto de Voluntariado Universitário “Recuperando a História das Malvinas”, chegamos a algumas conclusões preliminares e 12 dividimos nosso nível de análise em dois grandes aspectos: o desvalimento psicossocial e os direitos vulnerados. 259 Helga Ticac Desde a firma do documento de rendição de nosso país no conflito das Ilhas Malvinas e do Atlântico Sul, os sobreviventes voltaram para seus locais de origem, onde reiniciaram, com múltiplas carências, suas vidas como cidadãos. Em primeiro lugar, a necessidade básica mais importante a ser atendida se relaciona com o reconhecimento social de sua participação no conflito e de tudo o que eles vivenciaram. Neste sentido, a falta de informação histórico-social “oficial” sobre o fato e a coleta de dados individuais são duas problemáticas que se conjugam na falta de um espaço institucional disposto a atendê-las. Esta primeira experiência levou à publicação, no ano de 2012, de um livro homônimo (A 30 años de Malvinas) com uma compilação das entrevistas publicadas pela editora universitária Publifadecs. Em 2009, apresentamos e obtivemos a aprovação do projeto “Centro de Documentação para o resgate, a conservação e a recuperação da Memória da Guerra das Malvinas”, como forma de coletar e divulgar documentação e materiais que os próprios ex-combatentes começaram a entregar como contribuição cultural. Nas chamadas seguintes, apresentamos o projeto “Malvinas nas escolas” com o fim de divulgar a temática nos diferentes estabelecimentos educativos da região. Por último, cabe acrescentar que a exposição dos soldados a situações extremas de crise, como a Guerra das Malvinas, deixou-lhes sequelas que afetaram seus âmbitos familiar e social. No entanto, eles conseguiram desenvolver atitudes resilientes que lhes permitiram superar a situação de vulnerabilidade, visando à recuperação da memória e à rememoração das situações vividas. O pertencimento a um grupo fez com que os veteranos de guerra desenvolvessem mecanismos de contenção e apoio mútuo que possibilitaram uma elaboração da situação traumática e disruptiva experimentada. 260 Malvinas na UNIVERSIDADE Concurso de Ensaios 2012 Além disso, o apoio do Ministério da Educação contribuiu para a superação dessas situações, criando bases para novas vinculações sociais. Notas 1 - Teatro de Operações do Atlântico Sul: Jurisdição da Plataforma Continental (estendendo-se mar 12 a 200 milhas), Ilhas Malvinas, Geórgias e Sandwich do Sul e espaço aéreo e submarino correspondente. Vigência de 7 de abril a 14 de junho de 1982. 2 - Teatro de Operações das Malvinas: Jurisdição das Ilhas Malvinas, Geórgias e Sandwich do Sul. Vigência de 2 a 7 de abril de 1982. 3 - Ministério do Interior, Comissão Nacional de Ex-Combatentes das Malvinas (julho 1997). Situação Geral dos Ex-Combatentes das Malvinas. 4 - Fonte: Jornal La Nación, Caderno “Política”, terça-feira, 28 de fevereiro de 2006. “No cesan los suicidios de ex combatientes de Malvinas” e “El cuadro es similar entre los británicos”. Em: http://www.lanacion.com.ar/politica/nota.asp?nota_id=784519. 5 - Edgardo Esteban é escritor, jornalista, ex-combatente das Malvinas, autor do livro Iluminados por el Fuego e coautor do roteiro do filme homônimo. Malvinas: una herida abierta. Agência CTA, pp. 1-8, 6/2/2008. Em: http://www.agenciacta.org.ar/article7357.html. 6 - Catástrofe de Cromañón. Segundo Moty Benyakar, titular do caderno de desastres da World Psychiatric: “O atendimento deveria durar pelo menos três anos”. Entrevistada por Pedro Lipcovich. Publicado em TEA IMAGEN: http://www.gacemail.com.ar/Detalle.asp?NotaID=6560. Fonte: Jornal Página/12 (www.pagina12.com.ar). 7 - R. Zukerfeld, e R. Z. Zukerfeld, “Vicisitudes de lo traumático: vulnerabilidad y resiliencia”, em Lo Traumático. Clínica y paradoja, Tomo 2, M. Benyakar e A. Lezica, 2006. 8 - Comillado de Cesio, 1986 citado por D. Maldavsky (1994) em Pesadillas en Vigilia, p. 233. 9 - Trabalho psicológico em terapia ou por meio de fortes laços familiares, sociais e comunitários. 10 - M. Enriquez, “La envoltura de la memoria y sus huecos”, em D. Anzieu (ed.), Las envolturas psíquicas, 2004, p. 102. 11 - E. Stein, “Los veteranos de Malvinas fueron expuestos al lado oscuro de la vida”, Jornal La Mañana Neuquén, “Sociedad”, 19/04/10. 12 - I. Salerno, H. Ticac e M. Pérez, Projeto Voluntariado Universitário “Recuperando a História das Malvinas”, Ministério da Educação, Ciência e Tecnologia (2007). Bibliografia Anzieu, D. et al., Las envolturas psíquicas, Amorrortu, 2004. 261 Helga Ticac Beltran, M. e A. Bó de Besozzi, “Cuestiones sobre la especificidad de la asistencia en situaciones de catástrofes sociales”, em Intervenciones en Situaciones Críticas, Buenos Aires, Catálogos, 2002. Benyakar, M. Lo disruptivo. Amenazas individuales y colectivas: el psiquismo ante guerras, terrorismos y catástrofes sociales, Buenos Aires, Biblos, 2006. Benyakar, M. e A. Lezica, Lo Traumático. Clínica y paradoja, Tomo 2, Zukerfeld, R. e Zukerfeld, R. Z., Buenos Aires, 2006. Calafat, A.; H. Ticac e I. Salerno, “Una mirada interdisciplinaria a la Historia de Malvinas”, Projeto de Extensão da Universidade Nacional do Comahue, 2009-2011. Maldavsky, D., Sobre las ciencias de la subjetividad. Exploraciones y conjetura, Buenos Aires, Nueva Visión, 1997. Maldavsky, D. Pesadillas en vigilia, Buenos Aires, Amorrortu, 1994. Ministério do Interior, Comissão Nacional de Ex-Combatentes das Malvinas, “Situación General de los Ex Combatientes de Malvinas”, 1997. Palermo, Vicente, Sal en las heridas. 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Sileoni 5 PREFÁCIO Carlos Cansanello, Carlos Giordano, María Pía López e Enrique Manson 9 MALVINAS E A LIVRE DETERMINAÇÃO DOS POVOS Luciano Oscar Fino e Luciano Pezzano 15 AS MALVINAS E A PROVÍNCIA DE SANTA CRUZ: UMA RELAÇÃO HISTÓRICA CORTADA POR UMA GUERRA María de los Milagros Pierini e Pablo Gustavo Beecher 39 A “QUESTÃO DAS MALVINAS” A PARTIR DOS SÍMBOLOS: EXPERIÊNCIA, MEMÓRIA E SUBJETIVIDADE Romina Mariana Marcaletti 67 MALVINAS: “DOCE DE LEITE ESTILO COLONIAL” Carlos Sebastián Ciccone 95 A FALKLANDS FORTRESS - A construção da questão das Malvinas como questão latino-americana ante o paradigma neocolonial britânico no Atlântico Sul Federico Martín Gómez 117 A REATUALIZAÇÃO DOS SIGNIFICADOS HISTÓRICOS PARA A CONSOLIDAÇÃO DA SOBERANIA NO ATLÂNTICO SUL Marcelo E. Lascano 147 AS MALVINAS E SUA PROJEÇÃO CONTINENTAL - A questão das Malvinas e das Ilhas do Atlântico Sul e sua projeção na Antártida sul-americana como problema continental María Pilar Llorens e Eduardo José Pintore 177 A MORTE EM CONTEXTO: DIFERENTES FORMAS DE DAR SENTIDO À MORTE NA GUERRA DAS MALVINAS Laura Marina Panizo 193 MALVINAS: DECÁLOGO DE UMA ESPOLIAÇÃO Carlos Mariano Poó 217 A RECUPERAÇÃO DA MEMÓRIA DA GUERRA DAS MALVINAS EM GENERAL ROCA, PROVÍNCIA DO RIO NEGRO Helga Ticac 245