FORMAÇÃO DE PROFESSORES, SEGUNDO PROFESSORES DE
LICENCIATURAS: ANOTAÇÕES PARA UMA DISCUSSÃO A PARTIR DA
NOÇÃO DE CAMPO
Erika dos Reis Gusmão Andrade
Nilza Maria Cury Queiroz
Resumo:
O presente trabalho tem como objetivo discutir sobre as respostas dadas por professores
de cursos de licenciatura da Universidade Federal do Piauí à questão sobre o que é
formação de professores que lhes foi proposta no contexto de uma pesquisa mais
ampla, focada nos habitus e na representação social do objeto de trabalho desses
sujeitos, a formação de professores. Estamos propondo que esses profissionais tomem a
formação de professores como um campo, no sentido de Bourdieu, com toda sua
complexidade, de modo a superarem as dificuldades associadas às visões parciais e
lineares da questão, bem como que considerem as próprias representações e práticas
sobre formação de professores como estruturadas pelos habitus de que são portadores.
Résumé:
Ce document vise à examiner les réponses données par les enseignants des cours de
formation des enseingnants à l'Université Fédérale du Piauí à la question qu’est-ce que
c’est la formation des enseignants?, qui leur est proposé, au milieu d'une vaste étude,
en se concentrant sur l'habitus et la représentation sociale sur l'objet de travail de ces
sujets, la formation des enseignants. Nous proposons que les enseignants universitaires
prennent la formation des enseignants comme un champ, dans le sens bourdieusien,
avec toute sa complexité, afin de surmonter les difficultés associées avec des vues
partielles et linéaires de la question, et aussi qu’ils prennent leurs propres
répresentations et pratiques en éducation des enseignants comme structurées par les
habitus qui en sont porteurs.
Palavras-chave: Formação de professores – campo – habitus – licenciaturas
Excluído:
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FORMAÇÃO DE PROFESSORES, SEGUNDO PROFESSORES DE
LICENCIATURAS: ANOTAÇÕES PARA UMA DISCUSSÃO A PARTIR DA
NOÇÃO DE CAMPO
O que é formação de professores, para os professores de licenciaturas? Essa
pergunta foi dirigida a professores de licenciaturas específicas da Universidade Federal
do Piauí (UFPI), no campus de Teresina, no contexto de uma pesquisa que vem sendo aí
desenvolvida1. A aparente impertinência da pergunta tem suas razões de ser, primeiro,
porque a questão foi proposta como estratégia auxiliar para obtermos indícios da
procedência de algumas hipóteses importantes para o estudo acima referido, focado na
identificação dos habitus e da representação social dos professores universitários, de
licenciaturas, sobre o objeto formação de professores; segundo, porque a pergunta nos
oferece a oportunidade de problematizar um senso comum estabelecido sobre o tema
formação de professores, decorrente seja da naturalização do conceito, pelo excesso de
proximidade dos formadores com o objeto, seja da herança cientificista de nossa
formação.
A proposição da pesquisa acima referida deve-se, entre outras, à constatação de
que a reforma nacional da formação do professor nos cursos de licenciatura, que
mereceu legislação específica do Conselho Nacional de Educação, logo no início desta
década, acarretando reformas nos projetos político-pedagógicos dos cursos de
licenciatura. Embora tenha alterado a correlação de carga horária entre disciplinas
específicas e disciplinas pedagógicas, parece em nada mais ter influenciado a rotina dos
cursos e práticas de formação, pelo menos na UFPI. Permanecem nas licenciaturas os
mesmos problemas, denunciados há décadas como desafios a serem enfrentados, na
esfera da formação inicial do professor. Um deles é a fragmentação institucional e
1
A pesquisa “Habitus e representações sociais sobre formação de professores entre professores de licenciaturas da
Universidade Federal do Piauí”, teve executada sua parte empírica no segundo semestre de 2008 e primeiro de 2009,
e vincula-se ao curso de Doutorado em Educação, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Presentemente
estamos em processo de análise dos dados empíricos. A metodologia da pesquisa, de cunho quanti-qualitativo, utiliza
várias técnicas - questionário, Associação Livre de Palavras e Procedimento de Classificações Múltiplas -, com o
objetivo de acessar os conteúdos representacionais dos professores de licenciaturas da UFPI sobre o objeto formação
de professores. A pesquisa envolve 134 (cento e trinta e quatro) sujeitos, sendo 54 (cinqüenta e quatro) na primeira
fase e 80 (oitenta) na segunda. Essa quantidade de sujeitos significou 42,94% do total de 312 professores de
licenciaturas, atuando no Campus de Teresina, em julho de 2008. A participação dos sujeitos foi garantida por meio
de convite e nas duas etapas todas as licenciaturas específicas tiveram seus representantes. A pesquisa não envolve o
curso de Pedagogia.
4
acadêmica da base de formação profissional do professor (LÜDKE, 1994) submetida,
por um lado, aos processos históricos de especialização e diferenciação das ciências, por
outro, às disputas pela acumulação de capital simbólico no interior do campo
universitário (CUNHA, 1999). O certo é que a nova legislação nacional não trouxe
medidas de enfrentamento e superação do problema e a decorrente legislação da UFPI
institucionalizou a política de cisão da base da formação profissional, nas licenciaturas,
expressa na divisão do processo dessa formação em duas vertentes ou dimensões, na
prática, desarticuladas entre si - a formação pedagógica e a formação específica2. Isso
se deu com a criação meramente formal de núcleos de disciplinas que apenas
acomodam, sob novo rótulo, o que já existia, enquanto que, do ponto de vista estrutural,
nenhuma intervenção foi intentada, por exemplo, no funcionamento dos departamentos
e coordenações de curso, para citar os elementos mais óbvios.
A fragmentação da formação de professores na universidade brasileira é um
processo histórico de muitas faces, todavia, nosso interesse está no aspecto da dicotomia
entre a dimensão específica e a dimensão pedagógica da formação docente, pelas
conseqüências que acarreta na prática docente dos futuros licenciados.
Entendendo que nenhuma política governamental de formação de professores,
em nível superior, chegará a bom termo sem o decisivo concurso dos professores
universitários, responsáveis por essa formação inicial, e que, para obter algum consenso
que leve a mudanças significativas nessa esfera, é necessário incluir na equação da
política educacional a compreensão da cultura institucional da universidade e da cultura
do professor formador do professor. Com esse objetivo o presente artigo analisa as
respostas dos professores, sujeitos da pesquisa em foco, à questão “o que é formação de
professores?” e sugere, a partir de breve análise das respostas obtidas, uma direção que
parece mais fértil para a apreensão da questão, de tratarmos a formação de professores
em toda a sua complexidade, como um campo científico, no sentido dado por Bourdieu.
As respostas dos professores
Uma análise de conteúdo preliminar das respostas dos docentes forma um
quadro interessante e paradoxal, considerando que os sujeitos são formadores de futuros
2
A par da inadequação das denominações formação específica, formação pedagógica, no entanto, foi necessário
adotá-las na pesquisa em virtude de serem as mais conhecidas dos professores, de modo geral, o que facilitou a
comunicação. Registramos aqui, porém, que consideramos as disciplinas pedagógicas, também, como portadoras de
especificidade própria.
5
professores. Na pesquisa, distinguimos os docentes pelo seu pertencimento ao Campo
Específico ou ao Campo Pedagógico da formação do professor, nas licenciaturas.
A questão sobre o que é formação de professores resultou em respostas que
agrupamos em seis categorias, pelos sentidos dominantes dados pelos sujeitos. Antes de
expor esses sentidos, cabem duas observações quanto às respostas. A primeira, que,
com poucas exceções, refletindo a complexidade do tema proposto, não houve respostas
simples e diretas, embora tenha havido aquelas muito abstratas, difíceis de analisar-lhes
o sentido.
Formação de professores é conceituada quase sempre como isso mais
aquilo, como tipos de conteúdos a serem adquiridos, ou como isso, mas aquilo, com a
conjunção coordenada adversativa entre elementos constituintes da formação, como
veremos. Outra observação é que constatamos a diversidade de sentidos dados ao
objeto formação de professores, o que não surpreende, já que essa constatação tem
relação direta com o problema de pesquisa. Aqui é relevante lembrar com Franco (2007)
a diferença entre significado e sentido:
O significado do objeto pode ser absorvido, compreendido e generalizado a
partir de suas características definidoras [...]. Já o sentido implica a atribuição
de um significado pessoal e objetivado que se concretiza na prática social e que
se manifesta a partir das Representações Sociais [...], necessariamente
contextualizadas (FRANCO, 2007, p. 13).
As mensagens dos professores da UFPI sobre o sentido de formação de
professores, por dimensão da formação, foram assim categorizadas:
a) Respostas em que é afirmada a idéia da formação como atividade nobre e
necessária, mas desvalorizada pela sociedade, levando o sujeito entrevistado a
restabelecer o valor da profissão pela afirmação de uma crença no poder da
educação ou a destacar as altas exigências morais e técnicas da profissão
docente. Por exemplo:
“Formar profissionais cujo ofício é de suma importância para a sociedade em
desenvolvimento em que vivemos, sociedade cuja base política e econômica não
reconhece a importância deste ofício. Formar professores nesta realidade é
acima de tudo acreditar no poder transformador da educação e na capacidade do
ser humano.” (Docente do Campo Pedagógico);
6
“É um dos pilares do conhecimento humano. Embora seja fundamental, a sua
importância é relativamente diminuída porque uma parcela significativa da
sociedade subestima o papel formativo docente.” (Docente do Campo
Pedagógico).
b) Respostas em que se sobressai a idéia do processo de formação como causadora
de dor e prazer, dificuldade e satisfação, ressaltando, portanto, a dimensão
estética da formação (RIOS, 2003) como nas falas:
“Um processo ‘doloroso’ levando em consideração a realidade da escola pública
e o nível cada vez mais baixo dos alunos formados e, ao mesmo tempo,
prazeroso ao ver pessoas realizadas por alcançarem o almejado, embora seja
cada vez mais raro que isso aconteça.” (Docente do Campo Pedagógico);
“Um caminho árduo, penoso e longo. Mas no final [você] consegue fazer o que
você quer.” (Docente do Campo Específico).
c) Respostas que associam a formação a sua dimensão técnica (RIOS, 2001), ou
seja, à aquisição de determinados saberes, habilidades, qualidades e
virtudes necessários ao futuro professor, saberes que vão desde o conhecimento
didático até ter “vocação para perdoar”:
“Aquisição de conhecimentos e desenvolvimento de qualidades humanas
essenciais: ética, solidariedade, respeito e tolerância para com os outros.
Igualmente, desejo de partilhar, contribuir, enriquecer o outro e a si mesmo, em
constante processo de transformação pessoal positiva.” (Docente do Campo
Pedagógico);
“Saber transmitir o conteúdo teórico/prático necessário à formação do professor.
É ter consciência de que seu exemplo de ética, de honestidade, de amor e
disposição para o trabalho contribui para a formação geral do professor.
Conseguir incentivar o estudante para a prática do magistério (Docente do
Campo Específico);
“[É] Pesquisa e aprendizagem.” (Docente do Campo Específico).
Nesta categoria percebemos uma tímida subcategoria que denominamos
aprender a ensinar ou ensinar a autonomia e que alguns associam à qualidade do
ensino:
7
“Conseguir ensinar a transmissão do conhecimento, lutando para manter o
mesmo sempre dinâmico como o contexto que nos cerca.” (Docente do Campo
Específico);
“Conscientizar os candidatos a não se ater a um mimetismo de seus próprios
professores, seja intelectual ou pedagogicamente.” (Docente do Campo
Específico).
d) Respostas que definiram a formação como processo continuado de
desenvolvimento de si e do outro (este, menos lembrado), em múltiplas
dimensões e áreas, do tipo:
“Consciência e conscientização de que a formação é um processo permanente,
que demanda aperfeiçoamento e reflexão contínuos, além de um grande
interesse em ajudar os outros a desenvolverem suas potencialidades.” (Docente
do Campo Específico);
“Processo de mudanças como contribuição para a formação de um novo ser;
através do saber.” (Docente do Campo Específico).
e) Respostas que sobrelevam formação como compromisso social e compromisso
com o outro. Aqui os sujeitos remetem a formação de professores à formação
humana, política, responsabilidade social, cidadania, formação de “quadros”
para a sociedade e à exigência de explicitação das relações de poder que
reproduzem a sociedade onde se dá a formação.
“Trata-se de uma área que requer senso crítico e compromisso com a educação.
O professor não pode se limitar apenas a ser um mero instrumento de
transmissão de conhecimento. Sua função principal é ser educador. Formação de
professores não se expressa apenas por meio de uma grade curricular. É
imprescindível que esta tenha o poder de transcender um simples quadro onde se
encontram elencadas algumas disciplinas, posto que estas devam indicar
possibilidades de crescimento e contribuir para um processo maior: educar.”
(Docente do Campo Específico);
“Colocar as condições objetivas de reprodução da sociedade conforme os
interesses do poder constituinte da sociedade onde a formação se dá.” (Docente
do Campo Específico).
f) Respostas que tratam a formação de professores com uma política pública.
Neste caso, tal política deve ter prioridade máxima, dispor de recursos e oferecer
condições de o professor exercer uma docência qualificada:
8
“Política pública de caráter permanente que ofereça condições práticas e teóricas
qualificadas para o exercício da docência, sempre levando em consideração o
desenvolvimento de uma postura crítica e dialética sobre o fenômeno educativo
em quaisquer contextos.” (Docente do Campo Pedagógico);
“Uma educação de base que deveria ser assistida politicamente como prioridade
máxima e muito recurso.” (Docente do Campo Específico).
Ressaltamos que foram apenas os professores dos departamentos do Campo
Pedagógico que deram as respostas enquadradas na categoria descrita no item “a”
(profissão nobre x desvalorização pela sociedade). Essas respostas foram formuladas
como “isso, mas aquilo”, onde “aquilo” parece pesar mais, com valor negativo.
Considerando o grupo de docentes de disciplinas pedagógicas, em número de 30
(trinta), observamos uma subdivisão entre eles, com diferenças entre os que lidam com
disciplinas voltadas para o ensino, como didática, metodologias e práticas de pesquisa e
práticas de ensino, e os que ministram disciplinas de fundamentos, como filosofia,
história, sociologia e psicologia da educação. O primeiro subgrupo tende a correlacionar
formação de professores com a categoria identificada no item “c” – aquisição de
determinados saberes, habilidades e virtudes; o segundo subgrupo identifica-a mais com
a descrita no item “e” – compromisso social e compromisso com o outro.
Em relação aos 50 (cinqüenta) professores de disciplinas específicas, a
concentração acima se repete, ou seja, há uma maioria de respostas focadas ou na
formação como aquisição de saberes, habilidades, qualidades e virtudes ou na visão da
formação como compromisso social e compromisso com o outro. Buscando identificar
regularidades e distinções entre os dois grupos de sujeitos, identificamos nos conceitos
de formação de professores emitidos por este grupo um paradoxo: dos 21 que associam
formação de professores a saberes a adquirir, apenas 5 (cinco) docentes mencionam o
saber didático-pedagógico como um saber a adquirir, isto é, apenas 10% dos
pesquisados que atuam na dimensão específica da formação docente, lembram de citar
um conhecimento central do saber profissional do professor.
Aqui identificamos um indício, entre os formadores do Campo Específico, da
pouca consideração desses professores em relação às suas atividades de ensino, o que
nos faz interrogar se isso não estaria relacionado à política universitária que privilegia a
atividade de pesquisa em relação ao ensino, promovendo e premiando os que se
9
dedicam à primeira e relegando o segundo à condição de mera reprodução de
conhecimento, não sendo identificado como atividade científica, portanto, sem prestígio
e sem prêmios. Ironicamente, é no ensino que os professores universitários, de modo
geral, despendem mais seu tempo e suas energias.
A formação de professores como um campo
Essas constatações têm caráter preliminar e não podem ser tratadas isoladamente
do restante dos dados da pesquisa, mas apontam a direção mais fecunda da discussão,
ou seja, formação de professores pode ser reduzida a seus aspectos parciais, em uma
visão linear, que vimos em algumas declarações de professores, ou devemos buscar uma
visão mais ampla, multidimensional das relações que constituem o fenômeno assim
nomeado? O conceito de campo (Bourdieu 1983; 1994) parece preencher melhor esse
critério que contempla a complexidade do fenômeno social denominado formação de
professores. Bourdieu considera que o mundo social - portanto a ciência, a universidade
e as práticas que nelas ocorrem - é constituído por campos que possuem leis gerais,
comuns de funcionamento e leis particulares, específicas a cada campo, que elabora a
própria lógica de funcionamento, a qual não pode ser reduzida à lógica de
funcionamento de outros campos. Essa poderia ser uma interpretação, por exemplo, para
o empenho de teóricos da educação e da pedagogia em se interrogar sobre o estatuto de
cientificidade do campo educacional, já que, para alguns, as teorias educacionais
estariam fora da noção de cientificidade, como elaborada no contexto da evolução das
ciências da natureza (HENRIQUES, 1993).
O que faz um campo funcionar como campo é a existência, de um lado, de
objetos de disputa, de interesses que lhe são específicos, não percebidos pelos outros
campos, isto é, não valorizados por quem não domina as regras de funcionamento do
campo; de outro lado, de pessoas dispostas a disputar os objetos de interesse do campo.
Mas não é possível a qualquer um disputar esses objetos, ele deve preencher a condição
de ser portador de habitus que implicam conhecer e reconhecer as regras do campo, dos
objetos de interesse deste etc. (BOURDIEU, 1983, p. 89). Assim poderíamos entender
as várias lutas que se travaram nas duas últimas décadas entre o movimento de
professores, representado pela Associação Nacional pela Formação de Profissionais da
Educação (ANFOPE) e o Ministério da Educação (MEC), como também o Conselho
Nacional de Educação (CNE), em torno da política de formação de professores da
10
educação básica no ensino superior, quando cada entidade, por meio de seus
intelectuais, teóricos, funcionários, produtos e produtores das leis do campo, se
empenhou em influir nos rumos dessa política, conforme as concepções que defendiam
e as forças de que dispunham.
Acompanhando esse fenômeno específico das lutas entre a ANFOPE, o Governo
e o CNE, podemos perceber o que quer dizer Bourdieu ao descrever a estrutura do
campo como “um estado da relação de força entre os agentes ou as instituições
engajadas na luta ou, se preferirmos, da distribuição do capital específico que,
acumulado no curso das lutas anteriores, orienta as estratégias ulteriores” (1983, p. 90).
Para o autor, o campo é uma relação de forças em luta, cuja força depende dos capitais3
- cultural, econômico - que possuem e os distinguem. O objeto da luta “é o monopólio
da autoridade científica, definida de maneira inseparável como capacidade técnica e
poder social”, ou, de outra forma, “o monopólio da competência científica”, que
Bourdieu explica como, “capacidade de falar e agir legitimamente (isto é, de maneira
autorizada e com autoridade), que é socialmente outorgada a um agente determinado”
(BOURDIEU, 1994, p. 122-123). Esse raciocínio leva o autor a advertir contra as
ingenuidades da visão “irenista” da ciência e dos cientistas, pois cada campo tem sua
“forma específica de interesse”, não havendo práticas científicas “desinteressadas”, e de
tomar competência científica por capacidade técnica, uma vez que a primeira é “razão
social que se legitima apresentando-se como razão puramente técnica”, como ocorre nos
usos tecnocráticos da idéia de competência (1994, p. 123 – grifos do autor).
Gilson Pereira descreve o campo educacional como “... um espaço estruturado
de relações objetivas mediante as quais os agentes disputam os capitais específicos em
jogo”. Esse campo
[...] possui suas próprias normas, valores, interesses, instituições, hierarquias de
legitimidade, e critérios de divisão social. Está dotada de mecanismos internos
por meio dos quais, segundo uma lógica específica, os agentes a ele vinculados
obtêm lucros, embora não necessariamente econômicos, sofrem sanções,
recebem prêmios, lutam, concorrem, completam-se, coagem uns com os outros,
fazem e desfazem alianças e pactos. (PEREIRA, 2001, p. 1-2).
3
Capital, para Bourdieu, inclui o capital econômico, o cultural e o social, sintetizados no capital simbólico
(BOURDIEU, 1989).
11
Bourdieu indica outras propriedades do campo, cujo curso poderíamos
identificar no campo da formação de professores, como, por exemplo, a elaboração de
uma história do campo, o aparecimento de biografias, dicionários e enciclopédias, etc.,
contudo, nos limites deste artigo, deixamos de examiná-las, para voltar a atenção à
questão proposta aos docentes da UFPI. A compreensão da formação do professor como
campo escaparia à armadilha que consiste em acreditar que o problema se resolve pela
adição ou retirada de disciplinas e carga horária das grades curriculares das
licenciaturas, aquilo a que, efetivamente, se resumiu a reforma da formação do
professor na UFPI, ou seja, uma luta entre departamentos e coordenações de curso por
território curricular, o que é apenas uma pequena dimensão do campo, e de pouca
monta, que não significa avanços, quando relativizada frente a outras dimensões mais
decisivas, tanto internamente ao campo da formação do professor, quanto externamente,
na relação deste com os outros campos científicos no interior do campo acadêmico da
Universidade.
Outro elemento fundamental para a compreensão do campo são os habitus dos
docentes, já que o campo está entrelaçado com estes. O que dá vida a um campo são os
seus agentes, que podem ser individuais ou coletivos. Os agentes são detentores de
habitus, isto é, de um sistema de disposições não mecânicas, nem determinísticas, que
os levam a pensar, agir, sentir e fazer de certo modo, de acordo com as circunstâncias.
Essas disposições são duráveis, eles as adquirem sem perceber, pela interiorização das
estruturas sociais, que contêm sua história individual e coletiva, de modo que os agentes
expressam-nas no cotidiano como se fossem naturais. Os habitus também são princípios
de ação, têm capacidade estruturante, geram e organizam práticas e representações,
permitem a exteriorização da interioridade dos agentes, situando-os no mundo social
(BOURDIEU, 1989; WACQUANT, 2007).
A relevância dos habitus nos processos de educação do professor é notada por
Sacristán (2002), quando diz que este é um dos três pontos a considerar nos estudos
sobre formação de professores: um é manter um “racionalismo moderado”, porque o
autor ainda crê na modernidade; outro é educar a razão, “mas também o sentimento e a
vontade”, porque esta é transformadora, quando forte, bem enraizada e ajudada pela
inteligência; por último, o teórico recomenda “considerar o significado [...] do habitus,
como forma de integração entre o mundo das instituições e o mundo das pessoas”
(p.27). Para Sacristán, o habitus é uma das coisas esquecidas das políticas de formação
12
e que deveriam ser consideradas por estas, pois o modo de ser dos professores é uma
forma de comportamento cultural, não uma forma adquirida nos cursos de formação.
Daí a relevância de atentarmos para “as raízes culturais das quais se nutrem os
professores, para entender como atuam, por que atuam e como queremos que devam
atuar” (p.27). Esse raciocínio leva o autor a afirmar: “O habitus em educação é mais
importante do que a ciência e do que os motivos” (2005, p. 27).
Cremos, como Sacristán, que o que vale para a formação de professores, em
geral, vale para que o professor universitário compreenda as complexidades do campo
em que está “jogando” e o que está em jogo e se situe melhor no campo. Sobre isso,
sim, parece-nos, seria mais importante que os professores de licenciaturas se
debruçassem, buscando entender como, no interior da universidade, o processo de
relativização do campo da formação do professor e suas divisões internas frente aos
outros campos, repercutem nas suas representações e práticas de formação nas
licenciaturas.
Maria Isabel da Cunha (2005), ao seu modo, traduz a posição de
Sacristán, lembrando que a docência, como ação humana, é histórica e cultural, está
envolvida em uma teia de significados atribuídos pelos sujeitos. Os professores foram
alunos de outros professores e partilharam as mediações de valores e práticas
pedagógicas, que formaram e organizaram os esquemas cognitivos e afetivos que dão
suporte a sua docência. A intervenção nesse processo exige um esforço de reflexão
sobre si mesmo, para desconstruir a experiência e reconstruí-la adiante, em um processo
emancipatório. (CUNHA, 2005, p. 94-95).
Quando citamos Franco (2007, p. 13), acima, distinguindo significado de
sentido, vimos que a autora diz que o sentido se manifesta “a partir das Representações
Sociais [...] necessariamente contextualizadas”. A questão em foco no presente artigo,
proposta aos professores da UFPI, sozinha, não nos permite, evidentemente, identificar
a representação social sobre o objeto formação de professores construída por eles, mas
podemos sublinhar aqui a necessidade de considerarmos, como elemento da
compreensão do campo, a existência de uma possível relação entre os habitus do campo
acadêmico, do campo da formação do professor e aquele objeto de representação social,
conforme Silva, Domingos Sobrinho e Andrade (2007). Esses autores vêem, em alguns
estudos por eles analisados, uma relação “entre o objeto representacional e os elementos
estruturantes da identidade do grupo” (2007, p.139), ou seja, os habitus dos indivíduos
ou grupos “filtram”, ou “ressignificam”, a partir das posições que ocupam no campo, as
13
idéias, teorias, valores culturais que penetram esse campo, inclusive permitindo a
identificação de “obstáculos simbólicos à incorporação do conhecimento científico tão
ensejada pelos processos de formação” (2007, p. 139). As representações sociais seriam,
então, outro fator preponderante a ser levado em conta na compreensão do
funcionamento do campo da formação de professores, válido tanto para os professores
universitários quanto para os reformadores da formação docente.
A consideração de todos esses elementos de análise compreensiva do campo da
formação de professores por certo mudaria substancialmente a maioria das respostas dos
professores à questão que lhes foi proposta.
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