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Fragmentos...
A AVENTURA DA UNIVERSIDADE
Cristovam Buarque
São Paulo: Editora da UNESP; Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1994, 239p.
CRISE
HISTÓRIA
A Universidade surgiu como contemporânea de uma transição no
momento em que a Europa dos dogmas e do feudalismo iniciava
seu rumo ao renascimento do conhecimento e à racionalidade
científica, do feudalismo ao capitalismo. Redescobrindo nos
conventos, por obra de judeus e muçulmamos, o conhecimento
da filosofia clássica dos gregos, a universidade foi instrumento da
criação do novo saber que serviria ao novo mundo, que surgiu
entre o fim do feudalismo dogmático e a consolidação do
liberalismo capitalista.
De certa forma, a universidade retomava a experiência das
“academias” platônicas da Grécia clássica quando, a partir do
século VI a C., o pensamento começou a fazer uma transição do
pensamento mítico para a racionalidade (p.19)
INJUSTIÇA
O Brasil vive um raro momento em que o ensino superior estatal
é criticado em nome da justiça social. As universidades dos
estados são ocupadas, gratuitamente, pelos filhos das classes
média e alta; nas universidades particulares ficam os demais. (...)
A injustiça da universidade pública não reside no fato de que nela
só entram os filhos dos ricos — isso é injustiça social. A injustiça
da universidade está em que todos aqueles que dela saem
trabalhem apenas para os ricos, em decorrência da estrutura, do
currículo e dos métodos de trabalho. Formar e ser elite
intelectual não é erro, é obrigação. Errado é só servir à elite
econômica e social. (p.117)
A inquietação humanista que fez
surgir a lógica na Grécia e, quase
dois mil anos depois, o
racionalismo na Europa não é
suficiente para criar uma maneira
de pensar que responda às
exigências do momento. O final
do século apresenta à
humanidade o desafio de
imaginar utopias alternativas ou
de sacrificar valores consolidados
nos últimos séculos, como a
igualdade e a liberdade. A ciência
começa a manifestar dúvidas
sobre o caminho à certeza. As
artes perdem os alicerces dos
valores estéticos, sobretudo, a
técnica reconheceu a necessidade
da ética.
Todo o cenário se prepara para
viver a aventura, mas a
universidade, acomodada, reage
contra. Limita sua luta à
repetição, à defesa dos currículos,
ao monopólio do diploma, à
reivindicação de direitos e não
raros privilégios, ao cumprimento
de normas e planos de carreira. A
comunidade universitária esquece
que sua grande aventura está em
inventar-se outra vez para ser um
instrumento de ruptura, de
invenção de um pensamento para
conviver com o presente e
construir o futuro.” (p.17)
agosto, 1997
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QUALIDADE
MÉTODOS
A universidade ajudou a humanidade a dar um
dos maiores de seus passos, ao conseguir fazer
o pensamento sair dos dogmas da revelação
divina e descobrir a possibilidade da certeza das
descobertas científicas. Mas isso, graças à
dúvida em relação às explicações dogmáticas
das religiões e dos mitos. A certeza passou a
ser uma constante procura, atravessando as
teorias e sistemas descritos pela ciência, mas
sempre produzida por uma dúvida de passagem
entre um e outro momento.
O ensino universitário tem-se dado sobretudo
pela transmissão das certezas. As dúvidas
parecem ser desenvolvidas no exterior, e
penetram na universidade depois de
solucionadas em uma nova certeza que os
professores transmitem aos alunos, e estes
mostram ter aprendido, repetindo-a nas provas.
A transgressão exige um método novo. Só a
constante prática da dúvida permitirá o avanço
do conhecimento. É preciso contestar todas as
teorias, todas as formulações e premissas, na
busca de novos conhecimentos. E esta
contestação deve estar no método de pesquisa,
de ensino e de avaliação. (...)
No atual momento de crise, no lugar do
tradicional processo de transmissão das
certezas do conhecimento das teorias já
consagradas, o professor deve ser, sobretudo, o
provocador, o instigador, e deve se basear no
levantamento e difusão de dúvidas sobre o
conhecimento existente. (p.133)
HUMANISMO
O que ocorre na universidade, levando ao
sentimento de perda de qualidade, é a perda da
capacidade da academia responder o que dela
espera a sociedade. No momento de crise, a
sociedade cria problemas de dimensões tão
diferentes, em uma velocidade tão crescente, que a
universidade não consegue responder. A crise está
exigindo a formulação de novas perguntas,
enquanto a universidade continua se dedicando a
encontrar respostas velhas. Mas a comunidade tem
consciência destas limitações; não se contenta e
chama de perda de qualidade à perda de
funcionalidade do seu produto. (p.113)
A crise da universidade decorre, em muitos casos,
desta perda de capacidade para definir
corretamente os problemas aos quais a formação e
as pesquisas devem servir. Continua concentrada
no que se chama o problema-da-universidade, sem
observar quais deveriam ser os problemas-para-auniversidade. (p.225)
CAMINHOS
Se o papel de cada universitário é aventurarse na criação de novos conhecimentos, seu
compromisso diário deve ser com a aventura
de criar uma nova universidade. (...)
Em uma instituição de idéias, o ponto de
partida para sua reformulação está em ter
uma ou diversas idéias alternativas quanto ao
projeto, a forma, a estrutura, aos métodos de
universidades. O segundo passo é ter um
ambiente aberto para debater tais idéias.
(p.150)
Os caminhos percorridos pelo processo civilizatório nos últimos dois séculos levaram a humanidade a
identificar seu propósito com a utilização de técnicas, seu destino com o processo de crescimento
econômico, seu objetivo com o consumo.
Esta modificação aprisionou a universidade. Ela optou pelo conhecimento isolado, passou a organizar-se
em unidades eficientes na produção do saber, fechada em departamentos especializados. O universitário
perdeu a dimensão da humanidade, e o seu saber perdeu a globalidade do humanismo. O conhecimento
técnico passou a ser sobretudo meio para o desenvolvimento das técnicas. (p.201)
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FUNÇÃO SOCIAL
A universidade tem um papel permanente: gerar saber de
nível superior para viabilizar o funcionamento da
sociedade. Esse papel se manifesta de forma diferente,
conforme o tipo de sociedade que se deseja.
Nos Estados Unidos a universidade desempenhou uma
função-chave na construção da sociedade de consumo, na
defesa da potência econômica e militar norte-americana.
Na África do Sul, a universidade branca serviu
competentemente para viabilizar a elevação do nível de
vida dos brancos e manter o sistema do apartheid
funcionando. Em países da Europa, as universidades são
instrumentos de dinâmica da economia. Através do
mercado, elas conseguem oferecer mão-de-obra e pesquisas
para consumidores e empresas. Em Cuba, com prioridades
definidas pelo Estado, a universidade tem por papel
solucionar os problemas de educação e saúde das massas,
produzir conhecimento para uma nação acuada.
No Brasil, como certamente na Rússia de hoje, a
universidade não dispõe de um projeto, nem de
prioridades definidas pela sociedade. (p.217)
AUTONOMIA
Quando o sistema funciona eficientemente, cada universidade faz
parte de uma bem-definida infra-estrutura tecnológica e científica.
Não há razões especiais para se preocupar com a autonomia de
cada universidade. O mesmo não ocorre nos momentos de crise: as
receitas desaparecem e cada universidade deve descobrir qual a
melhor maneira de se lançar na aventura de encontrar novos
caminhos para si e, como instituição pensante, para o conjunto da
sociedade. (p.151)
Em uma sociedade em crise, onde nem o mercado nem o Estado
são capazes de definir as prioridades de suas instituições, só a
autonomia destas permite um funcionamento eficiente enquanto
se procura um novo caminho. Além disso, se esta instituição, como
é o caso da universidade, é uma geradora de saber, deve ser
autônoma no dia-a-dia da atividade acadêmica. A autonomia é
condição para o trabalho competente. (p.166)
A autonomia só se justifica como uma forma adicional de
comprometer — e não de isolar — a universidade com a sociedade.
(p.167)
INDISSOLUBILIDADE
A universidade, mais que a maior
parte das outras instituições,
consegue ficar prisioneira de suas
palavras, das quais uma é a
expressão “indissolubilidade do
ensino, pesquisa e extensão”, sem
incluir outros tipos de atividades
e sem definir corretamente os
conceitos. A idéia inicial é correta:
comprometer todo o ensino
superior com atividades de
pesquisa, retirando-o da simples
prática do ensino repetitivo, e, ao
mesmo tempo, forçar uma
aproximação do ensino e da
pesquisa com a realidade, através
da prática da extensão. O
resultado, porém, foi uma palavra
de ordem confusa, que tenta
impingir atividades indissolúveis a
cada universidade e a cada
professor. (...)
O fato é que o fundamental da
universidade, neste momento,
não está na indissolubilidade da
forma no trabalho, mas sim na
indissolubilidade do conteúdo no
trabalho. (p.202)
agosto, 1997
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LIVROS
UNIVERSALIDADE
As universidades de hoje são as mais
“provincianas” de todos os tempos porque
perderam a dimensão da globalidade
humanista. As universidades dos países-commaioria rica crêem que têm as respostas para
os problemas da humanidade, quando na
realidade têm apenas uma visão específica da
civilização industrial que se formou nos últimos
dois séculos. Esquecem a dinâmica civilizatória,
esquecem a riqueza da diversidade, esquecem o
valor de todas as dúvidas, esquecem sobretudo
os valores essenciais do homem e da estética do
saber.
As universidades dos países-com-maioria-pobre
são ainda mais “provincianas”. Não apenas
ficaram paradas no tempo, como ainda esse
tempo foi importado artificialmente dos países
ricos. Abandonaram suas culturas locais, os
aspectos específicos e essenciais de seus povos.
Imaginam que repetir livros e idéias do exterior
compõe em si uma universalidade. Caem no
complexo de inferioridade de achar que são
incapazes de fazer avançar o conhecimento
porque esta é a tarefa de seus modelos
estrangeiros e não há como encontrar dentro
de seus países novos objetos de estudo,
métodos e potencial criativo. Tornam-se
duplamente “provincianas”: pela limitação
hitórica e pela imitação. Assumem-se bárbaras
ao tentarem imitar os que consideram
desenvolvidos; tornam-se não-humanistas ao
identificarem desenvolvidos com civilizados.
(p.233)
Maria Lúcia Toralles-Pereira
Departamento de Educação, Instituto de Biociências,
UNESP - Botucatu
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