JORNAL LABORATÓRIO DO CURSO DE JORNALISMO
Faculdade de Filosofia, Comunicação, Letras e Artes – PUC-SP
ANO 14
N0 90 Fevereiro 2014
E
D
I
T
O
R
I
A
L
PUC
Pontifícia Universidade Católica
DE SÃO PAULO
PUC-SP
Personagens revelam as profundezas
de São Paulo
Reitor
Vice-Reitor
A cidade é o local de reprodução do capital, e por isso concentra todas as contradições, tensões
e impasses próprios do sistema. É na cidade que estão localizados o parque industrial, o setor de
serviços, as instituições do mercado financeiro. Por essa razão, a especulação imobiliária ganha
rédeas soltas: o preço do metro quadrado, que também se traduz no valor do aluguel, reflete
a voracidade do capital rentista. A cidade devora tudo com a mesma força com que “ergue e
destrói coisas belas”.
São Paulo é isso: é, por excelência, a via forçada do capitalismo brasileiro, com todas as suas
potencialidades, para o bem e para o mal. Capitalismo em sua forma mais selvagem, indisciplinado, imposto a ferro e fogo por uma elite patrimonialista, que, historicamente, habituou-se a
tratar o próprio estado como propriedade privada e não sujeita às leis.
A vida em São Paulo é brutal, selvagem, ameaçadora. Reflete, de um lado, a arrogância das
elites – que não reconhecem o primado da lei – e o embrutecimento das camadas mais pobres
– herdeiros do legado monstruoso do escravismo. Foi contra esse estado de coisas que eclodiram
as “jornadas de junho”. A rejeição ao aumento de 20 centavos apenas sintetizava a vontade de
aniquilar o monstro metrópole.
Ainda assim, São Paulo é humana. São as pessoas concretas, de carne e osso, que participaram
das jornadas e que transmitem ao espaço urbano a possibilidade de acolher a vida. Pessoas que
fazem de São Paulo um espaço reconhecível, ainda que marcado pela dor. A presente edição
é dedicada a algumas dessas pessoas: são ambulantes, cartomantes, prostitutas, intelectuais,
mães coragem.
Foram nomes escolhidos mais ou menos ao acaso, mas cujas trajetórias são representativas dos
desafios que aguardam qualquer um que viva na metrópole. Suas histórias são permeadas pelos
mesmos sonhos, esperanças e frustrações que marcam as vidas de todos – mudam as circunstâncias,
as personagens, o meio material em que os enredos se desenvolvem, mas, no fim, estão todos no
mesmo barco – ou melhor, na mesma cidade, que são muitas cidades dentro de uma.
Ao iluminarmos determinados aspectos da vida dessas pessoas, iluminamos também um pouco
do que é São Paulo. E reaprendemos que sob a superfície enrugada e aparentemente indiferente da vida na cidade, jaz um oceano absolutamente profundo, composto pelo cruzamento de
milhões de vidas.
São Paulo é também a profundeza abissal.
Pró-Reitora de Graduação
Pró-Reitor Comunitário
Faculdade de FILOSOFIA,
Comunicação, LETRAS e artes
faficla
Diretor
Márcio Alves da Fonseca
Diretora Adjunta
Regiane Miranda Nakagawa
Chefe do Departamento de Jornalismo
Valdir Mengardo
Suplente
Laís Guaraldo
Coordenador do Jornalismo
Milton Pelegrini
Vice-Coordenador do Jornalismo
Francisco Chagas Câmelo
EXPEDIENTE
C o n t r a ponto
Conselho Editorial
Hamilton Octavio de Souza, José Arbex Jr.,
José Salvador Faro, Marcos Cripa,
Pollyana Ferrari
Comitê Laboratorial
Luiz Carlos Ramos, Rachel Balsalobre,
Salomon Cytrynowicz, Wladyr Nader
Editor
José Arbex Jr.
Ombudsman
Anna Feldmann
Secretárias de redação
Lu Sudré e Carolina Piai
Secretária de produção
Jacqueline Elise
SUMÁRIO
Editora de fotografia
Bruna Bravo
Capa: Victoria Azevedo
Silmara Costa Mulher Coragem....................................................................................... pág. 3
Luiz Eduardo Alves Bezerra De segunda– a domingo– feira..................................................
pág. 8
Frei Betto Nem a fé pode absolver a política e nem a política pode (...)........ pág. 12
ensaio fotográfico Cultura e resistência na zona leste.................................................. pág. 16
mayara Maemura Acompanhante de luxo............................................................................ pág. 18
pedro liro Sinfonia e MPB nas calçadas de Sampa............................................. pág. 22
ensaio fotográfico (Um pedaço de) São Paulo....................................................................... pág. 26
luciana nahas Está tudo nas cartas............................................................................... pág. 28
Crônica Pulsações de São Paulo......................................................................... pág. 32
PUC
Simetria Design Gráfico – projeto/editoração
Wladimir Senise – Fone: 2309.6321
CONTRAPONTO é o jornal-laboratório
do curso de Jornalismo da PUC-SP.
Rua Monte Alegre 984 – Perdizes
CEP 05.014-901 – São Paulo – SP
Fone: 3670.8205
Número 90 – Fevereiro de 2014
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Fevereiro 2014
CONTRAPONTO
Silmara Costa
Mulher Coragem
Por Patricia Iglecio
Faxineira, mulher e mãe de nove filhos é exemplo de
superação e persistência
ilmara Costa tem 44 anos, nasceu no dia 11 de
outubro de 1969 em São Bernardo do Campo,
São Paulo. Entre Silvia, Silvana e Cesar, é a segunda
filha do casamento dos pais. Com cinco anos se
separou do irmão e foi morar com as irmãs e a mãe
na casa em que vive até hoje. Dona Adélia, sua
mãe, deixou o marido, Luiz Carlos Costa, por ser
um homem agressivo com ela e suas filhas. Logo
que se mudou, Adélia casou-se com Avelino, conhecido como Seu Barbosa, o homem que Silmara
considera seu verdadeiro pai, já falecido.
Luiz Carlos Costa, seu pai biológico, morreu
atropelado na Via Anchieta há dez anos. Depois
que sua mãe o deixou, Silmara quase não o viu
mas soube que ele virou morador de rua. Uma vez
sentiu que tinha visto o pai na rua, mas não quis
ficar olhando muito tempo. Ficou com medo.
Seu irmão, Cesar, foi assassinado aos 17
anos. Com lágrimas nos olhos, Silmara conta que
ele tinha abusado sexualmente de crianças, por
isso foram atrás dele. Até hoje sente muito pela
morte do irmão. Cesar cresceu com o pai e a
madrasta, que segundo Silmara, era uma mulher
muito má.
Dona Adélia conseguiu um terreno cedido
pelo governo, COHAB de mutirão, chamado Padre
Chico Falconi, onde criou as filhas e viveu ao lado
de Seu Barbosa. Silmara lembra com muito carinho
do pai de criação na cadeira de rodas, fazendo
seus trabalhos na bancada da sala, conta que
ele ensinou bons modos. Barbosa sofria de uma
doença que lhe fez perder as duas pernas. Confeccionava enfeites de natal para Silmara. Era um
homem elegante, educado, muito bonito. Nunca
gritava ou batia nas filhas diferente de sua mãe
que batia muito. Barbosa sempre tentava intervir
impedindo que ela não fizesse aquilo. Teve um
enfarte e morreu há 16 anos.
Depois do falecimento do marido, Adélia
foi viver em Goiás. Sua epilepsia e sua diabetes
diminuíram muito com a mudança. A casa que
deixou de herança para a filha e os netos fica no
Itaim Paulista, um Itaim muito diferente do Itaim
Bibi dos ricos de São Paulo; um bairro afastado da
região central – bem afastado, vindo do centro ao
descer na estação de metrô Corinthians-Itaquera,
onde está sendo construído o grande estádio
de futebol. É necessário pegar uma lotação que
realiza uma percurso de 40 minutos até chegar à
praça que fica ao lado da Rua Big Star, número
132. O horizonte é extenso de moradias simples,
comunidades que se multiplicam infinitamente
pelos declives do relevo.
Jenipher Laisa, 26; Tamara Laisa, 21; Rincon Ulises, 19; Kauara Laisa, 18; Licoln Ulises,
17; Cesar Clinton, 15; Jonab Ulises, 14; e Henri
Vicente, 9, são os oito filhos de Silmara. Todos
moram com ela.
Em um puxadinho, no quintal da frente,
moram Daniel e sua mãe Vanessa, sobrinha de
Silmara e filha da Silvia. Daniel tem 13 anos e
atualmente está internado em uma clínica. Com
12 anos, começou a se envolver com tráfico e
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S
Silmara, carinhosamente apelidada “a carequinha” é muito querida pela
vizinhança
roubo. Todos no bairro passaram a reclamar para
Silmara. Recentemente, ao roubar um carro, o
menino foi denunciado para polícia pela própria
mãe. Como não havia vaga na Fundação Casa,
Daniel foi levado para uma clínica. De quinze em
quinze dias, Vanessa, que tem problemas com o
álcool, vai visitar o filho. A irmã de Silmara, Silvia,
também é alcoólatra e mora em Itaquá, um bairro perto do Itaim Paulista. No começo de 2013
pediu para Silmara que Vanessa fosse morar com
o Daniel em sua casa.
No quintal dos fundos vive Claudinha e seus
três filhos, Gabriel, Rafael e Riquelme. Rodrigo,
que também é filho da Silvia, era casado com
Claudinha, mas abandonou as crianças e a esposa. Há oito anos ele conheceu uma nova moça e
desde então visita as crianças, revezando entre as
duas mulheres. Silmara e Silvia decidiram juntas
que Claudinha continuaria sendo abrigada por
Silmara, mesmo que o Rodrigo tenha saído de lá,
pois é ela quem cuida das crianças e também é
considerada sua sobrinha.
A casa não é grande, mas comporta muitas
pessoas. Começou apenas com o pequeno espaço
que hoje é a sala, a cozinha e um banheiro. Foram
construídos puxadinhos de acordo com a necessidade. O funk é proibido, mas o rap é o som mais
escutado, em especial os Racionais MC’s. Alegria
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também é permitida, e a casa, mesmo com todas
as dificuldades, tem grande energia.
Silmara e seus filhos dormem no andar de
cima da casa principal, a escada de madeira que
fica no quintal e leva até o quarto deles é um
pouco bamba, mas Silmara promete que não cai.
São três treliches e uma cama de casal, a grande
conquista de 2013 foi ter conseguido uma cama
para o filho, além de novos armários. Até então,
as crianças tinham que dividir camas. As meninas
têm muitos acessórios espalhados por todo quarto
e uma grande estante com livros, Silmara diz que
elas são mais estudiosas que os meninos.
Jenipher e Kauara estão cursando o ensino técnico profissionalizante para lecionar, em
Santana. Os meninos, por outro lado, têm certa
dificuldade com os estudos. Cesar é muito bom de
bola, mas ruim na escola. Também é líder do time
de futebol dos meninos do bairro, o Raposa, e tem
grande carisma. Este ano o time vai participar do
campeonato de futebol promovido pela prefeitura
de Suzano, e Silmara demonstra empolgação e
apoio pela conquista.
Licoln vai fazer pela terceira vez o segundo
colegial. Kauara também repetiu e vai fazer o
terceiro ano novamente. Silmara inscreveu Cesar
e Jonab para também cursarem o técnico, embora
os meninos não tenham grande empenho com os
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estudos. Kauara se casou no final de 2013 e é a
primeira filha a sair de casa. Silmara está muito
triste, chora há vários dias.
Rincoln adquiriu o hábito de fumar maconha. Isso preocupa muito Silmara, porque para
uma mãe da periferia, como conta ela, o maior
medo é que o filho se envolva com o tráfico. Ele
é um menino muito tranqüilo e Silmara conhece
todos os seus amigos, mas sente receio que eles
acabem se envolvendo com as pessoas erradas.
Esse ano ele fará pela terceira vez o terceiro colegial. Apesar das notas ruins, ele é empenhado
no trabalho. No começo desse ano foi para uma
construção no Mato Grosso junto com os amigos,
está dormindo em um alojamento e passará um
mês no trabalho. Silmara não sabe o que será de
seu futuro escolar.
Tamara fez o curso Projeto Criar de Luciano
Hulk e conseguiu um emprego. Comprou para a
mãe um tênis novo e um fogão de seis bocas. No
natal, todos foram presenteados com um tênis,
pela mãe ou pelos próprios irmãos, mas não houve festa porque Silmara estava triste e não tinha
motivos para comemorar, todos estão sem pais.
Faz seis meses que o pai das crianças foi embora.
E Rodrigo, pai dos sobrinhos-netos da Silmara,
continua no vai-e-vem, visita os filhos e Claudinha, mas depois sempre volta para a sua atual
mulher, de quem Silmara fala com desdém e não
tem vontade de conhecer. Diz que sua verdadeira
sobrinha é Claudinha.
A grande novidade do ano de 2013 foi
o bebê Guilherme: além dos oito filhos e de
todos os sobrinhos que Silmara dá conta, ela
adotou uma criança de dois anos. Xuxú, que
é como eles chamam a criança, é irmão da
namorada de Licoln. A mãe Rosa e o pai, viciado em crack, não tem estrutura para cuidar
do filho, então Silmara se sensibilizou com a
história de Guilherme e passou cuidar dele aos
finais de semana. Com o tempo, se apegou e
resolveu pedir a mãe a guarda da criança. A
promotora que cuidou do caso orientou a mãe
de Guilherme que não fizesse isso, pois poderia nunca mais ver seu filho. Silmara se sentiu
discriminada. Disse que a promotora não quis
que ela tivesse a guarda por ser negra, pobre
e já ter muitos filhos.
Mesmo com a guarda não formalizada,
Guilherme passa a semana toda com Silmara. As
meninas e os meninos cuidam dele durante a tarde
e à noite Silmara fica com a criança. Aos finais
de semana, Guilherme fica com os pais. Silmara
tornou-se, de certa forma, amiga de Rosa. Ela diz
que faz isso para garantir que não perca Xuxú, pois
não quer encrenca com a mãe dele. Elas moram
perto, o que facilita a troca de casas.
Silmara trabalha de segunda a sexta como
faxineira na prefeitura de Suzano. É um trabalho
duro e por isso presta o Enem desde 2002 para
cursar uma faculdade, mas ainda não teve a possibilidade. Faz cinco anos que Silmara deixou de
receber o auxílio do Bolsa Família, mas continua
lutando para voltar a ganhar. Acredita que o
dinheiro que ganha ainda não é suficiente para
sustentar toda a família.
Durante o período em que os mais novos
não estão na escola, ficam em uma ONG da prefeitura, perto do local onde moram, chamada
OZEM. Lá eles têm direito ao café da manhã,
almoço e brincam com outras crianças, além de
não ficarem sozinhos em casa enquanto Silmara
trabalha. O sonho da filha Tamara era debutar
e Silmara conseguiu que ela fizesse sua festa
na OZEM. Foi um momento muito emocionante
para toda a família.
Os meninos também têm um sonho: viajar
de avião. No começo de janeiro, Cesar e Rincon
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A pesar
disso , com muito
orgulho , a mulher
guerreira afirma que
nunca pediu a ajuda
Nem
devendo .
ficou
Silmara e seu nono filho “Xuxu”
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de ninguém .
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foram para Goiás visitar a avó. Divertiram-se muito, apesar da impaciência de dona Adélia. O fato
inédito é que viajaram de avião pela primeira vez,
mas Silmara diz que para isso teve que se endividar.
Ela já andou de avião uma vez quando foi visitar a
mãe, e queria que seus filhos pudessem realizar o
mesmo sonho. Diz que a mãe é chata, viciada em
limpeza, se incomoda com a bagunça das filhas e
dos netos, o que aborrece Silmara.
Depois de falar um pouco sobre a vida dos
que moram com Silmara, é finalmente possível
falar sobre ela. Ela é assim, uma mulher muito
preocupada com o bem daqueles que ama. Os
que estão ao seu redor estão sempre em primeiro
lugar.
Silmara é muito conhecida em seu bairro,
todos a cumprimentam e sabem que sua família
é do bem. Apesar de ser conhecida, ela diz que
não tem amigas, apenas uma: Cristiane. Elas se
conhecem há quinze anos. Para Silmara, não é
possível uma pessoa ter muito amigos e alguns
conhecidos; dentre os milhares de conhecido
elas tem uma melhor amiga que está sempre
com ela.
Durante 16 anos Silmara raspou sua cabeça.
Era sua marca, apesar disso afirma que havia uma
desvantagem: ser careca vinha acima de outras
características, mas gostava da aparência, se sentia bem assim. No final do ano passado decidiu
que queria ter cabelo e deixou crescer, ainda sim
muitos a chamam de “carequinha”.
Silmara passou por muitas dificuldades,
a começar pela quantidade de filhos. Seu exmarido, pai de todas as crianças, esteve preso
durante cinco anos por ter assaltado um banco.
Ela engravidou dos três últimos filhos em visitas na
cadeia. Nessa época Silmara não tinha emprego
fixo, trabalhava como faxineira em apartamentos
no centro da cidade.
Com muito aperto no coração, conta que
mal tinha o que dar de comer às crianças. Sua
irmã mais nova, Silvana, sempre teve uma condição de vida um pouco melhor, teve três filhos e
nenhum deu problema como os filhos de Silvia.
Silvana também mora perto, no Jardim Nazaré,
mas Silmara diz que nunca ofereceu muita ajuda. No máximo seu cunhado levava um balde
de frutas um pouco apodrecidas, que eles não
queriam comer. Silmara deixava o balde cheio
de água, depois cortava as partes mais podres
e fazia chá de frutas para os meninos. Diz que
não tinha condições de negar a ajuda, mesmo
que mínima.
Apesar disso, com muito orgulho, a mulher guerreira afirma que nunca pediu a ajuda
de ninguém. Nem ficou devendo. Cita uma
pessoa que nessa época de grande dificuldade
a ajudou, Eliane. Eliane mora em uma parte
um pouco mais privilegiada do bairro, foi dona
de locadora e tem até casa na praia. Silmara
trabalhou na limpeza de sua casa durante um
bom tempo. Recentemente elas foram juntas
à praia. O móvel de guardar louças da cozinha
foi um presente da amiga.
Durante alguns anos Silmara omitiu que
seu marido estava preso. Foi nessa época que ela
trabalhou na casa de Eliane. Sempre recusava os
convites da amiga para sair, mentindo que ia a
missa, mas na verdade ia visitar o pai das crianças na cadeia. Quando contou a verdade, Eliane
não a discriminou, foi compreensiva e manteve a
mesma relação.
Depois Silmara trabalhou como auxiliar sócio-educativa em um abrigo em Suzano, onde se
afeiçoou muito por Carina e seu filho, uma menina
que passava por grandes dificuldades e conseguiu
se superar depois da passagem pelo abrigo. Carina
tem grande carinho por Silmara e a considera uma
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mãe, sempre a visita e chama as meninas de irmãs.
Quando seu filho nasceu, convidou Silmara para
conhecê-lo, e ela foi.
Na OZEM também exerceu a função de
faxineira, mas decidiu continuar no mesmo cargo
na prefeitura de Suzano, por ser um emprego
com maior estabilidade. Atualmente está prestando curso para trabalhar no auxilio de meninos
da Fundação Casa e diz que tem grande apreço
por ouvir historias difíceis das crianças. Sente que
pode ajudá-las.
Acredita muito na educação que deu para
seus filhos. Recentemente um amiguinho de Cesar encontrou dinheiro escondido por traficantes
debaixo de uma pedra. Cesar não quis gastar o
dinheiro e devolveu para uma conhecida dos
donos do dinheiro, disse ao amigo que eles não
deveriam se meter com aquilo.
Quando se trata da sua própria diversão,
Silmara diz que não sobra muito tempo para si
mesma. Às vezes ela pensa nisso e sente que gostaria de sair mais. Frequentava bailes nostalgia e de
discotecagem, mas hoje em dia vai muito pouco.
Às vezes vai ao samba com Tamara e Claudinha,
o que deixa Rodrigo muito enciumado: ele diz que
Tamara é “muito baladeira” e influencia Claudinha
a ir com ela, o que deixa Silmara muito brava, pois
além de abandonar as crianças e a esposa, Rodrigo
quer controlá-la.
Silmara gosta muito de teatro, mas diz
que o ingresso custa muito caro e prefere gastar
o dinheiro com o lazer dos filhos. Muitas vezes
eles vão juntos ao SESC Itaquera, que fica à
uma hora da casa deles e são necessárias duas
conduções. Silmara não considera que seja longe, pois é o lugar mais perto de lazer da casa
deles. Em dias muito quentes eles montam uma
piscina, mas a conta de água sai muito cara, o
que acaba impedindo que montem sempre.
Quando se trata da sua própria diversão, Silmara diz que não
sobra muito tempo para si mesma. Às vezes ela pensa nisso e sente
que gostaria de sair mais. Frequentava bailes nostalgia e de
discotecagem, mas hoje em dia vai muito pouco.
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Fevereiro 2014
© Patricia Iglecio
As manifestações que aconteceram em todo país no mês de junho
são vistas de maneira ambígua por Silmara, apesar de apoiar a
reivindicações de direitos de cidadania, acredita que muitas coisas não
deveriam ser feitas. Queimar ônibus e depredar a cidade é vandalismo
para ela, assim como os recentes “rolezinhos”, pois acredita que não há
motivo para tais atitudes e que a população não deve destruir o próprio
transporte que vai utilizar.
Quase não existem programas do governo
federal e da prefeitura no bairro da Silmara. Além
da OZEM e da escola EMEF Padre Chico Falconi,
em que Silmara e todos os seus filhos estudaram,
não há mais nada. Por isso ela é totalmente desesperançosa quanto aos políticos e acredita que
nenhum deles pode fazer nada por ela, apenas
seu próprio esforço e trabalho foram capazes de
tirá-la da situação precária em que vivia e dar uma
condição de vida mais digna aos filhos.
Sobre o ex-presidente Lula, Silmara também
não o idolatra. Acha que ele é uma boa pessoa,
e por ser semianalfabeto e ter sido presidente do
país, ela acredita também ser capaz de alcançar
o que quiser.
As manifestações que aconteceram em
todo país no mês de junho são vistas de maneira
ambígua por Silmara, apesar de apoiar a reivindicações de direitos de cidadania, acredita que
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muitas coisas não deveriam ser feitas. Queimar
ônibus e depredar a cidade é vandalismo para ela,
assim como os recentes “rolezinhos”, pois acredita que não há motivo para tais atitudes e que a
população não deve destruir o próprio transporte
que vai utilizar. Recentemente, em seu bairro,
queimaram cinco ônibus e fizeram barricadas de
pneus em algumas ruas por conta do desaparecimento de duas crianças. Silmara acha que isso não
tem nada a ver com o governo e não há porque
vandalizar. Nenhum de seus filhos participou das
manifestações.
Lá, os “donos do morro” funcionam como
uma espécie de Estado. Há um tempo, quando
quase ninguém da comunidade tinha carro, era
necessário contatar os traficantes para casos de
emergência, pois não era permitido acionar a
polícia ou o corpo de bombeiros. Uma das vezes
em que Seu Barbosa passou mal, Silmara e sua
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mãe chamaram a polícia e isso foi lembrado. Em
uma segunda vez, quando Dona Adélia passou
mal, Silmara pediu ajuda dos donos do morro
e eles negaram, lembrando-a da vez em que
chamou a polícia. Muitas regiões alagam com a
chuva, e ela agradece muito por sua casa nunca
ter inundado.
Uma mulher muito trabalhadora, guerreira,
simpática, acolhedora e enérgica, a história de
Silmara é tocante. Sua simplicidade e intensidade
em contar, com mínimos detalhes, sua vida, emocionam. Sua visão ampla, personalidade forte e
olhos profundos também. A casa da Silmara está
sempre cheia.
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CONTRAPONTO
Luiz Eduardo Alves Bezerra
De segunda– a domingo– feira
Por Bruna Bravo, Thiago Munhoz
e Victoria Azevedo
A rotina de um apaixonado por frutas
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Aqui na feira é muito simples.
A laranja é o pré-primário; a
quinta série é a melancia, o
abacaxi e o mamão formoso.
A faculdade é quando se
deve trabalhar com o peso
© Victoria Azevedo
or volta das três horas da madrugada a rua já
está agitada. Caminhões vindos de diferentes
regiões estacionam e deles saem vários funcionários a postos para mais um dia de trabalho. Dentre
os automóveis que estacionam na rua vazia no frio
da madrugada, um tem escrito perto das rodas
“Não me inveje, trabalhe” e “Obrigado, Senhor,
por mais um dia”. Este é o de Luiz Eduardo Alves
Bezerra, mais conhecido como Luiz Gordinho, um
dos proprietários das tendas paulistanas mais bem
visto pelos companheiros feirantes.
Todo dia é a mesma rotina: o ônibus para
em uma rua quase deserta bem cedo e os funcionários começam a descarregar tudo que está
no caminhão até por volta das 9 horas. Não tem
tempo para moleza neste trabalho, todos se esforçam para conseguir montar a barraca e organizar
os produtos para quando a feira começar estarem
prontos para berrar suas ofertas.
“É jogo duro, meninos” disse Nelson, o
funcionário que trabalha com Luiz a mais tempo.
Desde pequeno o trabalhador presta serviços a ele,
hoje são 22 anos de união. “Não tem desavenças,
não tem inimizades. Aqui somos como uma família. Um momentinho.”
Nelson foi ajudar os mais cinco funcionários que descer do caminhão e descarregar a
tenda. Muitas vezes tentavam não fazer muito
ruído, mas os estrondos das caixas de madeira
e vigas sendo descarregadas eram inevitáveis
e violentos. Esse barulho que sustenta e cria a
barraca juntam-se as conversas de quem já está
na rua edificando a feira.
A rua Sampaio Viana nunca é tão barulhenta como aos domingos. Localizada no bairro
Paraíso, zona centro-sul da cidade de São Paulo,
desde madrugada começa a ter o clima de feira.
Todos se animam com a chegada das barracas. A
descontração começa desde cedo. “Eu fui olhar
o cheque duas vezes e ela nem me deu um real
da caixinha” – exclamou indignado o funcionário
mais novo da barraca de Luiz Gordinho, o filho
de 15 anos de Nelson. Todos se divertiam e riam
enquanto montavam os balcões. “E ainda me olha
com aquele olhar cínico!”, completou o garoto.
O silêncio completo era algo impossível para suas
disposições para mais um dia de trabalho.
Quando quase todas as peças de madeira
foram descarregadas, começaram a aparecer no
caminhão as frutas frescas prontas para serem
vendidas na feira. As fofocas sobre vizinhos se misturavam aos berros de quem descarregava as frutas
do automóvel e as dava a um segundo funcionário
que as empilhava em suas caixas no canto da rua.
“Melões!”. “Ela foi atrás! Tá com um garoto de
22 anos”. “Manga!”. “Ela gosta dos mais novos”.
“Abacaxi!”. “Mas o outro lá já estava de olho nela!
Vai dar treta...”. “Pêssego!”.
“Eu o admiro”, volta Nelson com um copinho cheio de café se referindo a Luiz. É preciso
tomar a bebida pra aguentar o dia todo, alega. A
garrafa térmica com o café é indispensável para
todos que trabalham nas tendas da feira. Em algum momento todos pegam um copo da bebida
© Bruna Bravo
P
para se manterem energizados até o fim do dia de
trabalho.
Luiz Gordinho, o dono da barraca, chegou
quando a tenda estava armada e ajudou a organizar as mercadorias nas bancadas. Ele gosta muito
de trabalhar com frutas. Afirma que é relaxante
e gratificante arruma-las e tem uma lógica para
tanto. As cores das frutas são importantes pra chamar a atenção dos fregueses, então ele as dispõe
nas bancadas de acordo com a coloração. “Se eu
colocar todas as uvas verdes juntas e as roxas em
outra parte é menos chamativo que colocar uma
verde e uma roxa, intercalando”.
Além desses detalhes, o que tanto o dono
como os funcionários frisam em seu trabalho é a
importância do comprometimento com o freguês.
“O que passa no comércio é a simpatia”, esse é uma
espécie de lema de todos que trabalham na tenda.
Os fregueses percebem essa receptividade por parte
dos funcionários da barraca. Muitos compram frutas a muitos anos de Luiz Gordinho, como Kunihiro
Tsuchiya, 72, que vai barraca há 18 anos.
Esses anos em que vem abastecendo a
casa de Kunihiro de frutas, Luiz foi o patrão de
seu próprio negocio na feira. Contudo, no início
de sua carreira, ele era um empregado da barraca
em que seu primo trabalhava, e antes disso passou
por vários outros trabalhos.
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das mercadorias
– uva,
pêssego e ameixa, pois precisa
trabalhar com o auxilio da
balança
O começo de Luiz Gordinho – Antes
de entrar na feira, ele fez “um pouquinho de
tudo”: vendeu rosas no farol da Rebouças
com a Avenida Brasil, foi verdureiro e depois
passou para as frutas. O motivo dessa escolha pelas frutas, conta ele, é porque é o que
sempre lhe atraiu, reforçando ainda que o que
gosta mesmo de fazer é de arrumar as frutas
colocando-as na barraca, participando de todo
o processo. “Eu sei ser patrão e sei ser líder.
Acho que você tem que ser ponderado nos dois
lados”, afirma.
Entrou na feira em 1977 com um objetivo
em sua cabeça: comprar um carro. Seu primo
trabalhava na feira e disse que se fosse trabalhar
com ele, em pouco tempo teria o dinheiro suficiente para comprar o que desejava. No começo,
vendia limão e maracujá e ficava encarregado
de arrumar a barraca, ao mesmo tempo em
que trabalhava no banco Comide. No entanto,
a certa altura, o banco faliu e Luis Gordinho
continuou indo à feira, porque tinha gostado do
que fazia – e conseguiu alcançar seu objetivo:
com seis meses de trabalho na feira comprou
um carro usado.
“Trabalhei durante 17 anos como empregado e hoje eu tenho a minha barraca, eu
sou o patrão”, diz Luis, com um sorriso no rosto
Fevereiro 2014
Trabalhei durante 17 anos como
empregado e hoje eu tenho a
© Victoria Azevedo
© Bruna Bravo
minha barraca, eu sou o patrão
de orgulho. Com a barraca, cinco famílias tiram
sua renda – contando as de seus funcionários.
Conseguiu criar um patrimônio que possibilitou
a formação de seus dois filhos – a menina, estudou em Dublin e menino continua no Brasil. Mas
tanto trabalho também tem seu lado ruim. “Vou
falar uma coisa agora que até dói o coração: eu
não vi eles crescerem, só vi quando eles estavam
grandes”, confessa Luis.
Luiz conheceu sua mulher, Tânia, na própria feira. Ele trabalhava em uma feira que era
perto da rua dela, e que sempre a via andando
com sua mãe fazia piadinhas do gênero “oi
sogrinha”, o que chamou a atenção da menina.
E isso acontecia com uma certa frequência,
até que depois de um tempo, eles começaram
a namorar e se casaram depois. Tânia ressalta
que na época que ele mexia com ela, tinha
catorze anos, e desde então, havia cativado
um carinho por Luis.
Hoje em dia, ela trabalha com seu marido. “Ela é meu braço direito, ela é pau pra
toda obra, e o que mais me deixa feliz é que
eu vejo que ela é feliz aqui na rua. Quando ela
trabalhava no escritório ela ficava estressada e
isso não lhe fazia bem. E aqui na feira, quando
a gente fica estressado a gente grita, tirando
ele da gente” diz ele.
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Rotina de Trabalho – Luis afirma que
dorme cedo, porque caso contrário, não consegue
aguentar o dia seguinte, porque a rotina de um
feirante é muito puxada e exige muito da condição física da pessoa. Ele faz dois períodos – “eu
sei que é errado, mas eu faço assim mesmo” diz
o feirante – chega em casa, almoça, toma banho
e dorme um pouco. Nove horas, ele acorda, e vai
para o mercado, o Mercadão da Cantareira. E
retorna para a sua casa, com o relógio já batendo
na casa da meia noite. Volta a dormir, e levanta
às cinco da manhã, que é o horário em que ele
vai para a feira.
Na segunda feira, ele vai para o Ceasa,
realiza algumas entregas de frutas e depois volta
para casa . E às quintas feiras ele vai mais uma
vez para o Ceasa, onde vai fazer as compras
para os próximos três dias. Para isso, vai para lá
as cinco da manhã e chega na sua casa às 13h.
Ele sempre abastece para os três próximos dias
e, de um dia para o outro, as frutas ficam no
próprio caminhão, mas ele também conta com
uma câmara frigorífica que ele possui – “ela é
pequena, mas ajuda, por conta dos produtos
perecíveis”, completa Luis.
Para Tânia, mulher de Luis e companheira
de trabalho na feira, o ponto negativo desse
trabalho como feirante é o fato de ser necessáFevereiro 2014
rio acordar cedo. No entanto ela diz que com o
tempo a pessoa se acostuma. Isso porque ela não
precisa acordar tão cedo, já que não participa da
montagem da barraca. O que ela mais gosta, por
outro lado, é do contato com o público, a troca de
experiências e de conhecer novas pessoas.
Tânia completa dizendo que tem muito
orgulho do marido, principalmente por ele ser
uma pessoa trabalhadora e batalhadora também
– não tem preguiça de trabalhar, de levantar cedo.
Também admira o poder de persuasão de Luis,
que consegue convencer o cliente a levar uma
determinada mercadoria, mas que, ao mesmo
tempo, reconhece quando alguma fruta não está
boa e diz isso para o cliente, para que ele não seja
prejudicado.
Isso não se encontra em qualquer barraca.
Existe a famosa a lenda de que feirantes colocam
adoçante na faca que usam para cortar as frutas,
pra quando os clientes forem experimentar, as
frutas estarem doces. Luis afirma nunca ter usado
esse truque. “Eu nunca trabalhei com isso, jamais.
Acho que tem que trabalhar com o doce da fruta”,
diz ele. O feirante conta sobre outras artimanhas
e confessa que há 30 anos, quando ainda era
jovem e inexperiente, usava a faca que cortava a
beterraba para cortar o melão, deixando-o mais
rosado, que era quando valia mais.
CO N T R A P O N TO
A existência de feiras nas cidades
– Luis conta que hoje é difícil a geração mais
jovem gostar de ir a feira, seja como quem
trabalha ou como um cliente. Para ele, a mão
de obra em si esta acabando, restando só os
mais velhos trabalhando nesse ramo. Afirma
que, diferente do que é comum, ele não veio de
uma geração de uma família com feirantes que
passavam seu negócio de pai pra filho – que é
o que prevalece hoje.
Existem famílias que passam seu negócio de
pai para filho há mais de quatro gerações, conta
ele. Em seu caso, seu filho não se interessa por
trabalhar na feira, porque acha um trabalho muito
estressante e exaustivo. Já a sua filha tem mais interesse porque ela gosta de lidar com o povo, com
a “muvuca” e agitação do dia a dia. Característica
que ele próprio estima de sua profissão. Mas acha
que a menina não vai entrar para o ramo, ela só
o ajuda quando ele precisa.
Reclamações sobre a feira – “Todo mundo gosta de feira, contanto que não seja na rua da
sua casa” diz Luis. Em seu caso, particularmente,
nunca teve problemas sérios com os moradores
das ruas reclamarem da existência das feiras de
rua, mas é sabido que muitas vezes isso chega a
ser uma questão tão grande que leva ao fechamento da feira.
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CO N T R A P O N TO
© Bruna Bravo
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A paixão pelas frutas – Luis diz que
sempre se sentiu atraído pelas frutas, e não sabe
explicar o porquê disso – “é uma coisa minha, por
isso não tem explicação, sabe?”. O que ele mais
gosta é de oferecer ao freguês para que ele prove
a fruta, pois é quando ele tem um maior contato
com o cliente, sem que seja exagerado ou forçado
– “não é um xaveco, eu digo quando a fruta está
boa e quando ela está ruim” continua ele.
Para ele, existe uma relação entre as frutas e
como as pessoas devem vendê-las: “Aqui na feira é
muito simples. A laranja é o pré-primário; a quinta
série é a melancia, o abacaxi e o mamão formoso.
A faculdade é quando se deve trabalhar com o
peso das mercadorias – uva, pêssego e ameixa,
pois precisa trabalhar com o auxilio da balança. E
a pera e a maçã são frutas sensíveis que você tem
que trabalhar com delicadeza. E tudo isso pode
ser comparado com a escola, existe um padrão de
escola. Doze laranjas em cada saquinho, por exemplo, é algo básico e que todos os feirantes devem
saber – é o pré-primário. Conforme a pessoa vai
se mostrando apta para vender as frutas, você diz
que o cara já está bom e que ele pode ir vender
abacaxi, o que já é mais difícil, por exemplo”.
Ressalta ainda, que com a balança digital o trabalho do feirante foi muito facilitado,
por que antes, para cuidar do peso das frutas
e do seu respectivo preço, deveria ser alguém
bom de matemática. Certa vez quando trabalhava na barraca de seu primo, um companheiro seu de trabalho tinha muita dificuldade de
pesar a mercadoria – principalmente as uvas,
que tinham três tipos diferentes, como por
exemplo, com ou sem semente. Seu companheiro, percebendo a destreza de Luis, pediu
que eles invertessem de papel, ele passaria a
vender as frutas e o outro iria pesa-las. “O
que eu fiz? Topei na hora, porque eu gostava
de aceitar desafios. Eu gosto desse trabalho”
completou Luis.
Pessoalmente não é diferente. Luis sempre
gostou de comer frutas e sua mulher garante que
nunca falta em casa. Suas favoritas? “Pêssego,
morango, lichia, cereja quando tá dura. Uma uva
sem semente também, do jeito que tá ali, crocante,
fresquinha que você coloca na boca e estoura;
adoro” diz ele.
Em uma das ruas em que trabalha, já teve
pequenos atritos com os moradores, pois antigamente ela era uma feira de quatro fileiras,
uma na própria calçada. Dessa forma, passaram
a ter várias ocorrências de assaltos e roubos
na região, pois a feira bloqueava a entrada e
saída dos prédios, já que os moradores estacionavam seus carros nas ruas próximas, sem
que houvesse a mesma segurança da garagem
de suas casas.
Hoje em dia, cortaram a feira, deixando-a
com duas fileiras, sem que fique bloqueadas as
entradas e saídas dos prédios. Entre as seis horas
da manhã e as duas horas da tarde, os moradores conseguem entrar e sair livremente, pois é
justamente o horário que o caminhão sai e chega
na rua. Dessa forma, deu para conciliar as duas
vontades, fazer uma fusão dos interesses dos
moradores e feirantes.
E essa ideia não partiu dos moradores, disse
Luis, mas justamente dele e de outros três feirantes,
o Fino, o Atílio e o Zé Tavares. Isso pois estavam
querendo extinguir a feira. “A gente estava até com
vontade de mandar fazer um mandato de segurança,
porque não pode extinguir uma feira de 50 anos
de um dia para o outro, sem que ao menos seja
estipulado um prazo para que os feirantes consigam
arranjar outro lugar para fazer a sua feira”.
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Todo mundo gosta de feira,
contanto que não seja na rua da
sua casa
O barulho também chega a ser uma questão de atrito entre feirantes e moradores da região, porque por mais que evita-se fazer barulho
na hora de descarregar a mercadoria e montar a
barraca, não conseguem extingui-lo por completo
– o barulho da madeira sendo empilhada, junto
com as vigas que dão a sustentação e os caixotes
ecoa pela rua durante a madrugada, horário em
que começa a montagem das barracas. “Chegar
aqui na rua com o som alto e todo mundo gritando e cantando, não acontece, nós tentamos
diminuir ao máximo possível os ruídos” diz o
feirante. Completa, falando que com o passar
do tempo os moradores se acostumam com os
barulhos e deixam de ligar, sendo poucos os que
ainda reclamam.
Luis já tem mais de trinta anos de feira e
diz que ainda têm chão até o dia em que for parar
de trabalhar. Sua expectativa de trabalho pesado,
do jeito como ele faz hoje em dia ele acredita ser
até os 60 anos. Hoje, ele tem 52 anos, ou seja,
acredita ter pela frente mais uns dez anos de trabalho para, a partir de então, diminuir sua carga
de trabalho, sem parar totalmente – trabalharia
três vezes por semana, deixando os dias restantes
para os seus funcionários cuidarem. Mas diz que
nunca pensou em parar totalmente o trabalho,
pois não conseguiria.
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Freguesia – Já ficou claro que o negócio
do Luis é a sinceridade. Os laços que mantem com
seus clientes se firmam nas bases da simpatia e da
honestidade. A maioria dos que compram com ele
são costumeiros, “já é clientela, já é freguesia. Um
ou outro que vê, se tá passando aqui e viu que a
mercadoria é boa, encosta”, diz ele. Para Tânia, o
diferencial da barraca é que eles cativam a amizade
com os clientes, que sendo bem tratados e recebidos, sempre voltam – ele tem clientes que há mais
de vinte anos compram com ele. “E você vê, as
vezes tem um casal que vem com o filho, e ai esse
filho daqui a pouco cresce, casa e ele volta com
a família dele pra nossa barraca na feira. A gente
já viu isso acontecer e é muito legal. A gente vê a
família crescer junto com a gente” diz ela.
Kunihiro Tsuchiya, de 72 anos, é freguês
de Luis há 18. Se referindo ao feirante, Kunihiro
brinca que começou a comprar com ele porque
“esse corintiano aqui é simpático, puxa saco
(risos)”. O senhor Kunihiro, na verdade, sempre
passava por aqui e achou que a barraca que tinha
os melhores preços com frutas selecionadas, era a
do Luis Gordinho. E garante que o diferencial da
barraca “é o tratamento. Aqui a gente, quando
uma coisa não ta boa, reclama e ele repõe. Então
é aquele fornecedor consciente que quer uma
freguesia seleta. Não temos nada que reclamar”,
diz o freguês.
Acostumado, seu Kunihiro vai religiosamente todo domingo na feira da Sampaio Viana
comprar na barraca do Luis. Quando eles entram
de férias “aí a gente pena pra comprar; a gente
fala assim ó: ruim com você, mas pior sem você
(risos)”, confessa o freguês, brincando com Luis.
É jogo duro, meninos
(Nelson, funcionário)
Lidando com os funcionários – Todos
que trabalham com Luis na barraca são funcionários de longa data. Tem os que estão com Luis
há 20 anos e o mais recente é o Haru, que entrou
pra família há quatro anos. Luis tenta criar de fato
uma relação familiar com seus empregados para
que todos se sintam à vontade e cuidem um do
outro. No entanto, nunca deixa de lado o profissionalismo, pois quer o melhor de todos seus funcionários. “Se ele é uma pessoa crua, a gente faz ele
virar um diamante porque a gente lapida ele. Eu
sou um que lapida: faz isso, faz aquilo, não ficou
legal, tenta arrumar desse jeito que fica melhor”,
comenta o feirante. Se der algum problema tudo
é resolvido pessoalmente. Gritos na feira são só
pra vender, as broncas são dadas discretamente.
“Quando tenho que chamar a atenção eu sempre
chamo funcionário de canto. Não grito pra todo
mundo ouvir”, completa ele.
A mulher de Luis também acredita no sucesso da barraca devido à relação criada entre os
funcionários e com eles. Afirma que eles se dão
muito bem, uma vez que ela sempre procurou
estabelecer um bom ambiente de trabalho, alegre,
sem pressão e que faz com que os funcionários
trabalhem com vontade, e sempre com um sorriso no rosto – tudo para que o cliente se sinta a
vontade e seja bem tratado.
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Quanto ao pagamento e oficialidade,
Luis responde respectivamente: “Por dia de
feira e não tem carteira assinada”. Ele explica
que somente dois funcionários tem registro,
porque esse é o mínimo necessário para a criação de uma microempresa. Mas garante que
as férias são regulares para seus funcionários.
“Eles tiram junto comigo que eu gosto de descansar 15 dias em julho e 20 dias em janeiro”.
Além disso, nessa época do ano, Luis também
dá uma caixinha que seria o décimo terceiro.
“Eu venho separando todo dia 50 reais, eu
faço um caixa dois, pra que quando chegar
em dezembro tenha um dinheiro pra dar pra
eles”, explica.
No mais, Luis só espera de seus funcionários
lealdade e honestidade. Durante todo seu percurso como patrão, viveu uma situação que explica
essa sua exigência. Em 96 montou um frutaria
para gerenciar em paralelo com a feira. Deixou
um funcionário que já estava com ele há 20 anos
para cuidar do estabelecimento, enquanto ele
ficava na feira. A conclusão foi que em seis meses
de loja, o funcionário roubou o dinheiro e Luis se
decepcionou muito, decidindo fechar a frutaria.
Hoje pode dizer contente: “Na rua eu nunca tive
decepção. Aqui na rua eu só tenho alegria, todo
mundo é amigo”.
Fevereiro 2014
Final de feira – “Meio dia, meio dia e
pouco é a hora que a gente começa a socar o
pau”. O famoso final de feira, ou hora da xepa, é
quando os preços abaixam e a gritaria aumenta.
Luis explica que é nesse momento que ele faz seu
lucro. Ele que é responsável por decidir quanto e
como baixar os preços de acordo com o dinheiro
que conseguiu até então. Perto do meio dia ele
conta quanto já fez; se já conseguiu cinco mil
reais ou perto disso, que é o seu custo com os
produtos e funcionários, desce o preço, pois tudo
que vier é lucro. No calor da gritaria e das ofertas
“não importa os vizinhos do lado, eles são meus
amigos e também vão fazer a mesma coisa que eu.
Tem a competição? Tem. Mas eu acho que quem
ganha nisso é o atendimento e a qualidade”, diz
Gordinho.
Nem por isso a relação com os demais
feirantes deixa de ser boa. Sendo o mais antigo
na feira da Sampaio Viana, Luis sempre foi reconhecido e respeitado pelos colegas de trabalho.
“Tudo que é feirante aqui me respeita, sabe quem
é o Luis Gordinho”, diz ele.
Mesmo após a xepa, nem toda mercadoria
é vendida e sobram algumas frutas que devem ser
guardadas para o dia seguinte. Luis diz que, em geral, o que sobra são produtos que não tem perigo
de estragar e, portanto, não carecem de cuidados
quanto sua preservação. Mesmo dispondo de uma
pequena câmara frigorífica, muitas frutas podem
ficar guardadas no próprio caminhão de um dia
para o outro. “Um melão pode ficar 20 dias fora
da geladeira e não vai estragar”, explica.
Com o fim das ofertas, o fim da gritaria. Os
caixotes e a tenda voltam para o caminhão, que
agora anda mais leve. Mas logo a madrugada trás
o dia seguinte e mais um dia de trabalho. Porque
todo dia é dia de feira.
CO N T R A P O N TO
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CONTRAPONTO
Frei Betto
Nem a fé pode absolver a política e nem a
política pode absolver (ou negar) a fé
Por Guilherme Almeida
e Lu Sudré
Escritor, religioso e militante, ajudou guerrilheiros na época da
ditadura, contribuiu com a fundação da CUT e diz que o PT trocou
o projeto de um país por um de poder
arlos Alberto Libânio Christo, ou apenas
Frei Betto, se diferencia entre os numerosos
religiosos dominicanos do nosso país. Filho de
jornalista, tornou-se um frade escritor, autor de 53
livros publicados no Brasil e no exterior. Religioso
adepto da teologia da libertação e militante de
movimentos pastorais, Frei Betto lida com religião,
política e com os movimentos sociais. Envolve-se
com tudo ao mesmo tempo, afinal, tais coisas
são exatamente assim, misturadas e associadas
culturalmente.
Mineiro, de Belho Horizonte, completará
sua sétima década de vida em 25 de agosto desse
ano e tem muitas histórias para contar sobre os 70
que já passaram. Talvez, ser filho de um jornalista
e de uma escritora culinarista, Antônio Carlos
Vieira Christo e Maria Stella Libanio Christo, possa
ter influenciado seu lado autor. Mas duas prisões
sob a ditadura militar também foram mais do que
bons motivos que o levaram a escrever livros que
retratam as árduas experiências ocasionadas pelos
anos de chumbo ao longo de suas páginas
Em 1964, foi preso pela primeira vez
durante 15 dias. A segunda vez foi mais longa,
de 1969 até 1973. Cartas da Prisão, Diário de
Fernando – nos cárceres da ditadura militar brasileira e Batismo de Sangue, são frutos desses
enclausuramentos. A participação dos frades
dominicanos na resistência à ditadura, a morte
do guerrilheiro Carlos Marighella e as torturas
sofridas por Frei Tito, torturado nos porões da
Operação Bandeirante (centro de informações
e investigações montado pelo exército brasileiro
em 1969 para coordenar e integrar as ações dos
órgãos de combate às organizações armadas de
esquerda), e as demais informações retratas em
Batismo de Sangue, contemplou Frei Betto com o
Prêmio Jabuti de Literatura em 1983. Esse é apenas
um, entre vários prêmios que recebera por conta
de sua atuação na luta pelos direitos humanos e
a favor dos movimentos sociais.
Segundo definição, a Teologia da Libertação é um movimento supra-denominacional e
apartidário, descrito por seus proponentes como
uma reinterpretação analítica e antropológica da
fé cristã relacionada com os problemas sociais. A
teologia da libertação inclui a teologia política e
considera diversas correntes de pensamento que
procuram compreender os ensinamentos de Jesus
Cristo pautando a libertação das condições econômicas, políticas e/ou sociais. Outros a classificam
como marxismo e materialismo cristianizado. De
todas as formas, a nível nacional, Frei Betto é um
expoente dessa teologia, que ao absorver crenças
das religiões orientais, umbanda, espiritismo, islamismo e xamanismo, tornou-se um movimento
internacional e interdenominacional.
Frei Betto, um analista político que fala de
assuntos complexos de forma tão branda quanto
um pároco do interior desenvolve seu sermão, re-
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CO N T R A P O N TO
© Rafael Stédile
C
Frei Betto pousa para foto em
convento dominicano, localizado na
rua Atibaia (São Paulo)
sume a Teologia da Libertação como uma corrente
que coloca todos seguidores de Jesus Cristo como
discípulos de um prisioneiro político e não alguém
que levasse apenas a mensagem da vida após a
morte. “Jesus não morreu de hepatite na cama e
nem em um desastre de camelo em uma esquina
de Jerusálem, ele foi preso e torturado, julgado
com dois presos políticos e condenado à pena de
morte dos romanos, que é a cruz”, dessa forma
simples e didática Frei Betto cobra coerência da
instituição católica em relação a história.
Reforma da Igreja – Há tempos a Igreja
Católica é alvo de comentários – e até mesmo
críticas – por estar perdendo seu histórico número de fiéis. “Eu não acho isso nem negativo,
nem positivo. Como católico eu faço autocrítica”,
diz Frei Betto, que acredita que tal “perda de
terreno” da Igreja Católica seja por conta de sua
incapacidade de adaptar-se aos tempos atuais; à
pós-modernidade. Frei Betto é questionador dos
caminhos que a Igreja constrói e gostaria que a
mensagem da teologia da libertação, do ponto
de vista cristão, tivesse muito mais incidência na
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sociedade. Para ele, quando a teologia da libertação e as comunidades eclesiais de base eram bem
vindas à Igreja Católica, havia um número muito
maior de adeptos à religião.
Já o pluralismo religioso, responsável por
colocar em cheque a Igreja Católica, é visto com
bons olhos por Frei Betto, que ressalta a inexistência
de uma postura de competição ou disputa de fiéis
entre as religiões. De acordo com suas palavras, “A
Igreja Católica está sendo questionada e levada e a
rever seus métodos de evangelização, o seu perfil
como instituição, o trabalho de seus ministros. Tudo
tem que ser profundamente revisto”.
Muitos argumentam que a renúncia de
Bento XVI é apenas uma evidência desse quadro.
“Há mais de 500 anos um papa não renunciava.
Ele deixou o cargo, deixando claras as razões. Ou
seja, ele disse: há um esquema de corrupção na
Igreja, esse esquema precisa ser combatido, mas,
eu não tenho forças pra isso”, afirma Frei Betto,
que avalia a eleição de Bergoglio, papa Francisco,
como uma grande novidade que representa uma
reforma da Igreja de cima pra baixo, correspondente à estrutura piramidal da Igreja Católica.
Fevereiro 2014
Jesus não morreu de hepatite
na cama e nem em um desastre
de camelo em uma esquina de
Jerusálem, ele foi preso e
torturado, julgado com dois
presos políticos e condenado
à pena de morte dos romanos,
que é a cruz
O preconceito sexual nasce
na Igreja por influência
neoplatônica, que culmina na
(falsa) justificativa de que
a lei natural associa sexo
e reprodução.
Daí o fato
de perdurar, ainda hoje, na
doutrina oficial da Igreja
Católica, a exigência de os
casais só terem relações
sexuais se houver intenção de
Até 1903, gestos de
© Rafael Stédile
procriar.
carinho entre casados eram
considerados pecados
No entendimento de Frei Betto, que não
esconde sua consideração pelo novo Papa, ao
abandonar uma série de símbolos que eram da
nobreza, a reforma começou pelo papado. Opina
que Francisco desloca o debate dentro da Igreja
da esfera pessoal para a social e abre precedentes
para uma nova teologia. Normalmente contido
quando o assunto é a capacidade da Igreja em se
renovar, Betto parece botar muita fé no atual Papa.
“Bergoglio era a possibilidade mais progressista
do conclave”. Uma afirmação que por um lado
demostra a confiança do Frei no argentino e por
outro escancara o conservadorismo dos cardeais
“candidatos” ao papado.
É nisso que Frei Betto mais se diferencia de
seus colegas indiretos da Igreja. Ele é um clérigo
disposto a mudar de posição, e principalmente
bater de frente com altos setores da instituição
por contradizer dogmas que encabrestam os ministros e os fiéis da religião. “A moral sexual, por
exemplo, é um assunto congelado na Igreja desde
o século XVI”, diz em tom de indignação. Defensor dos direitos das mulheres o frei é favorável
ao ordenamento independentemente do gênero.
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Atualmente são poucas as religiões que tem na
figura feminina algum tipo de centralidade.
Para o religioso um caminho plausível para
se desvencilhar das limitações que a moral sexual
em descompasso com os tempos atuais causa seria
uma revisão partindo do topo da hierarquia. Frei
Betto sempre ressalta que a estrutura piramidal da
Igreja sufoca quaisquer mudanças que tentem ser
feitas pelas bases. A começar, o primeiro ponto
a ser revisado seria o que ele chama de “heroica
virtude do celibato”. Frei Betto escreveu em sua
coluna publicada no jornal semanal Brasil de
Fato que o celibato obrigatório para sacerdotes
católicos não se justifica à luz da Bíblia. Pedro,
escolhido primeiro papa, era casado (Marcos 1,
30), e na Igreja primitiva homens casados eram
ordenados sacerdotes.
De acordo com a pesquisa de Betto, o
rechaço a aceitação de vida sexual vêm de associações ilógicas, repassadas como ensinamento na
formação de sacerdotes. “O preconceito sexual
nasce na Igreja por influência neoplatônica, que
culmina na (falsa) justificativa de que a lei natural
associa sexo e reprodução. Daí o fato de perdurar,
Fevereiro 2014
ainda hoje, na doutrina oficial da Igreja Católica,
a exigência de os casais só terem relações sexuais
se houver intenção de procriar. Até 1903 gestos
de carinho entre casados eram considerados pecados.”. Caso seja revista a necessidade de celibato
para que seja exercida a função de padre, só no
Brasil cerca de cinco mil homens poderiam retomar
suas funções como ordenadas. Imagine o quanto
o número de ministros ativos a Igreja católica teria
caso abrisse o sacramento da ordem também às
mulheres. “Nesse ponto a Igreja trabalha contra
ela mesma, se enfraquece frente ao mundo moderno”, avalia Frei Betto.
O frade escritor dá a entender no mesmo texto que o Papa Francisco deu os primeiro
passos no sentido da revisão da moral sexual ao
não demonizar as pessoas gays que busquem a
igreja, embora assuma que isso parece pouco. No
entanto, o principal ato que mostra que o Vaticano
está, no mínimo, ciente da sua atuação falha é pela
primeira vez em sua história no Comitê da ONU
para os Direitos da Criança, em Genebra, a 16 de
janeiro, crimes de abuso sexual como a pedofilia,
praticados por membros da Igreja Católica.
CO N T R A P O N TO
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uma remontagem romanceada dos quatro evangelhos atribuídos aos apóstolos Mateus, Marcos,
João e Lucas, somada a uma vasta pesquisa feita
em pessoa pelo autor nas terras da palestina. O
romance dá interpretações dos milagres executados pelo messias e também de passagens de sua
vida que são conhecidas até por quem não é religioso. O nascimento de Cristo é considerado por
muitos como a história mais famosa do mundo.
Um Homem Chamado Jesus apresenta uma versão
bem diferente e menos glamurizada da viagem de
José e Maria motivados pelo recenseamento do
Império Romano.
Como escrito no livro o casal foi rejeitado por onde passavam porque Maria estava
grávida mas, não era casada com José. Para dar
a luz os dois entraram em uma propriedade,
provavelmente sem o consentimento do dono,
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Jornal Laboratório do Curso de Jornalismo - PUC-SP
CO N T R A P O N TO
onde se criava animais, a pior das possibilidades. Frei Betto brinca que o “Estado de Belém”
deve ter dado a destaque à manchete: “Família
sem-terra invade celeiro”. Perguntado sobre o
que levou o natal a se transformar em uma festividade tão dispersa das origens religiosas Frei
Betto responde: “Como a data tem um sentido
religioso muito forte e como a data é muito
sedutora do ponto de vista de seu simbolismo
e significado o mercado procurou e procura
cada vez mais obscurecer a dimensão de Jesus
de Nazaré e impor o papai noel. Que aliás
tinha originalmente a cor verde. A Coca-Cola
que impôs a cor vermelha, literalmente, isso é
histórico. Então há uma “papainoelização” do
natal. Porque ai você tira do sentido religioso
e joga para o comercial, para o mercado. Quer
dizer vira uma festa de consumo.”
© Rafael Stédile
Frei Betto não faz a associação direta
entre a imposição de celibato e o alto número
de acusações de abusos sexuais contra crianças
na Igreja. Aliás, ele faz questão de lembrar que
a pedofilia é um problema de recorrentemente
ligado às instituições que lidam com menores, e
que ocorre também no interior do núcleo familiar.
Porém, sua prática deve ser severamente punida,
e não acobertada em uma Igreja que se propõe a
educar crianças segundo os valores do Evangelho.
Não a toa ele argumenta sobre os dois temas de
forma interligada.
É possível descobrir muito sobre uma
pessoa através de seu trabalho. No caso de uma
pessoa que escreve semanalmente como Frei Betto, os traços de personalidade são colocados no
papel em conjunto com as palavras. São raros os
momentos cômicos, mais raros ainda os lugares
comuns. Ligações diretas entre dois pontos chegando a uma conclusão previsível já no título, esse
não é o tipo de texto que você encontra assinado
“por: Frei Betto”. O teólogo é tão crítico das associações mal explicadas que a religião acaba por
transmitir que sempre faz questão de exemplificar
bem suas colocações. Melhor do que muito jornalista o teólogo busca fontes que simplifiquem e
preservem a complexidade dos temas retratados
em seus artigos e colunas.
Não nos entenda mal, nem sua escrita e
nem sua personalidade são frias. Vez ou outra se
nota traços de ironia e agulhadas mais críticas a
essa ou aquela figura. No entanto, é fácil notar
que mesmo quando fala ou ouve algo engraçado,
Frei Betto é estranhamente contido, quase como
se quisesse rir mais do que pode. Impossível saber
o quanto disso é espontâneo ou adquirido depois
de sofrer com violência e reclusão no período da
ditadura. Batismo de Sangue, livro que retrata esse
período talvez seja o que mais tenha a dizer sobre
o escritor. A linha entre romance e documentação
histórica é a mesma que traça seu percurso sempre
no limite das linguagens.
No limite, mas não encima do muro. Frei
Betto toma partido e sofre consequências com
isso. Batismo de Sangue é a história verídica do
apoio que os frades da Ordem dos Dominicanos
ofereciam ao grupo revolucionário comandado
por Carlos Marighella, a Aliança Libertadora Nacional. O livro é um documento que mostra como
o assassinato de Marighella foi minunciosamente
planejado para jogar os setores da esquerda da
época contra os religiosos. O aparelho repressor
conseguiu em uma só cartada enfraquecer a luta
de guerrilha e prender os freis Betto, Oswaldo,
Fernando, Ivo e Tito que foram injustamente
marcados como traidores. O livro foi reconhecido com o prêmio Jabuti de Literatura de 1983 e
mais tarde, em 2007, virou filme sob a direção
de Helvécio Ratton. Frei Betto foi vivido pelo ator
Daniel de Oliveira.
Frei Tito de Alencar Lima, querido amigo é
frequentemente lembrado por Betto nos debates
que participa nas universidade e junto a movimentos sociais. Sobre ele o companheiro de luta
escreveu Frei Tito, um relato do martírio sofrido
por ele após os eventos do final da década de
1960 (período de Batismo de Sangue). Liberado
pelo governo em troca do embaixador da Suíça
que havia sido sequestrado, Tito ficou exilado na
França e acabou se suicidando. Nessas duas obras
Frei Betto desenvolve a relação entre fé cristã e
ação politica revolucionária, num período no qual
isso era inconcebível. Isso porque o marxismo que
guiava a ação dos grupos de guerrilha no Brasil (e
no mundo) tinha inspirações ateístas.
Outro livro da série: “para entender Frei
Betto”, é Um Homem Chamado Jesus, lançado em
2009. Essa espécie de biografia de Jesus Cristo é
Como
a data tem um sentido religioso muito forte e como a
data é muito sedutora do ponto de vista de seu simbolismo
e significado o mercado procurou e procura cada vez mais
obscurecer a dimensão de
Q ue
J esus
de
Nazaré
aliás tinha originalmente a cor verde .
impôs a cor vermelha , literalmente , isso é
uma
e impor o papai noel .
“ papainoelização ”
A Coca -C ola que
histórico . E ntão há
do natal .
religioso e joga para o
Porque ai você tira do sentido
comercial , para o mercado . Q uer dizer
vira uma festa de consumo
Fevereiro 2014
Outro ponto polêmico do livro é a caracterização física de Cristo apresentada. De acordo
com os indícios, Jesus não se pareceu nada com a
figura europeia popularizada nos filmes e imagens
católicos. Frei Betto defende com veemência que
Jesus era um homem que se opunha às leis da
Roma e tinha seguidores mais por atos de caridade
e de solidariedade do que por seus milagres. Por
razões políticas Jesus foi perseguido e condenado a
morte, afinal ele era capaz de organizar multidões.
Esse livro pode ser considerado uma releitura da
bíblia com a ótica da teologia da libertação.
Teoria e Prática – Para se formar pastor na
Igreja Católica é necessário cursar ao menos quatro
anos de teologia e quatro anos de filosofia. Isso
pode direcionar os jovens aspirantes a padres em
teóricos menos ligados aos anseios da comunidade
Ele [R obert M ichels ]
ao fim da formação. Frei Betto é um exemplo de
que teoria e prática não estão assim tão longe um
do outro. Seja nas Pastorais, nas Comunidades
Eclesiais de Base e até mesmo no Governo Federal,
o intelectual orgânico da Ordem dos Domenicanos
foi sempre efetivo com suas ações e alinhado com
seus discursos.
“Projeto, se você tem um, deve ir a luta,
mesmo que se decepcione depois”, esse é o
conselho do religioso que já ajudou a abrigar
guerrilheiros na ditadura militar, fundar a Central
Única dos Trabalhadores (CUT) no início dos anos
1980 e coordenar o programa Fome Zero nos anos
2000. Poucos têm o reconhecimento e respeito de
um aspecto tão amplo da esquerda no Brasil. Ele
mesmo reconhece que num país onde os rachas
políticos são tantos e tão frequentes é difícil se
manter coerente.
diz que partidos de esquerda que disputam
espaço na legalidade burguesa acabam sendo cooptados pro ela .
Isso aconteceu na Europa recentemente e aconteceu no B rasil . O
PT o PC do B, por exemplo , são partidos que frente aos de oposição
têm muitos méritos , mas eles trocaram um projeto de B rasil por um
© Rafael Stédile
projeto de poder
Jornal Laboratório do Curso de Jornalismo - PUC-SP
Fevereiro 2014
Em uma análise sóbria e com certo distanciamento Frei Betto avalia os governos do
PT, que historicamente receberam seu apoio
e por vezes contaram com sua participação.
Em 2006 ele lança seu 54° livro: A Mosca Azul
– Reflexão sobre o Poder, que analisa a chegada
do Partido dos Trabalhadores à presidência da
republica a partir de sua experiência na coordenação do programa Fome Zero. O autor se
desligou do governo pouco tempo antes da
eclosão do que veio a ser chamado de escândalo do Mensalão.
“No meu livro (A Mosca Azul) eu analiso
bem esse processo baseado na tese do autor
de Sociologia dos Partidos Políticos, Robert
Michels. O que ele diz infelizmente tem se
comprovado histericamente, isso em 1911 na
Alemanha. Ele diz que partidos de esquerda
que disputam espaço na legalidade burguesa
acabam sendo cooptados pro ela. Isso aconteceu na Europa recentemente e aconteceu no
Brasil. O PT o PCdoB, por exemplo, são partidos
que frente aos de oposição têm muitos méritos,
mas eles trocaram um projeto de Brasil por
um projeto de poder. Eu até espero que eles
continuem no poder, mas hoje toda operação
politica deles é em função da preservação do
poder e não de uma alternativa para o Brasil.
O que eu lamento muito. Precisamos voltar
ao trabalho de base, valorizar e organizar os
movimentos sociais, fortalecer espaços de participação popular de educação popular. Sem
isso nós não vamos ter alternativa, vamos ficar
girando no samba de uma nota só.”
Política: Laicidade e Democracia
– Candomblecistas, umbandistas, budistas,
hinduístas, católicos, evangélicos, espíritas...
Entre tantas outras religiões, não há como negar que nosso país é culturalmente devoto. De
tempos em tempos nos deparamos com figuras
religiosas ligadas às instituições política, o que
por muitas vezes, questiona a concepção de
Estado Laico oficialmente adotada no Brasil.
Por muitas outras vezes, essa concepção permanece apenas no oficial. O Estado Laico, ou
Estado Secular, é aquele que não possui uma
religião oficial, mantendo-se neutro e imparcial
no que se refere aos temas religiosos.
Para Frei Betto, não há problema algum em
uma figura religiosa disputar espaços políticos. “O
que não pode é você não respeitar o pluralismo
religioso e querer transformar a sua concepção
religiosa em lei universal a ferro e fogo”, destaca
Frei Betto, exemplificando com o caso de Marcos
Feliciano, pastor evangélico eleito para a Comissão
de Direitos Humanos e Minorias da Câmara e dos
Deputados, que publicizou opiniões racistas e homofóbicas no âmbito político. O problema, então,
estaria em confessionalizar a política, negando seu
espaço laico.
“Tendo nas mãos o poder político, você
transforma sua doutrina em lei universal e a
impõe”, assegura Frei Betto, que supõe estarmos assistindo silenciosamente a um ascenso
de um projeto de confessionalização da política
e, portanto, dando um passo atrás em relação
a modernidade e as conquistas da autonomia
do Estado, do espaço político e da laicidade. A
imposição de doutrinas pelos fundamentalistas
ocorre pela persuasão, por meio da pregação
e da conversão. A questão é exatamente saber
discernir a fé da política. Para Frei Betto, elas
são complementares, mas nem a fé pode absolver a política e nem a política pode absolver
ou negar a fé.
CO N T R A P O N TO
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CONTRAPONTO
CONTRAPONTO
ensaio fotográfico
ensaiofotográfico
Cultura e resistência na zona
N
o dia 26 de outubro de 2013, um grupo de alunos do primeiro ano de jornalismo da PUC-SP acompanhado de um
professor da disciplina Introdução ao Jornalismo, realizou uma visita à comunidade Nossa Senhora Aparecida, zona
leste de São Paulo.
A comunidade, que já enfrentou grandes problemas em sua história, como por exemplo o alto nível de violência, sempre teve uma força de resistência incrível através das suas iniciativas culturais organizadas pelos seus moradores. Durante
dez anos foram realizados festivais de música e poesia, que contribuíram para a integração dos moradores da comunidade.
“Matadores” e famílias se reuniam para assistir aos espetáculos, deixando de lado desavenças e questões pessoais.
“O nosso maior parceiro aqui dentro são as famílias”, afirma Aragão, nome reconhecido na comunidade por organizar tais projetos, assim como o mais recente, o “Varre Vila”, que tem por objetivo a conscientização das pessoas sobre
o tratamento do lixo no local onde vivem.
© Fotos: Victoria Azevedo
Por Victoria Azevedo
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a leste
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CONTRAPONTO
Mayara Maemura
Acompanhante de luxo
Aos 32 anos, a profissional do sexo e modelo transgênero
conta sua trajetória de vida
Por Carolina Piai, Júlia Dolce
e Marcela Reis
Tá na rotina. Já fui agredida,
roubada, quase me mataram. Tô
viva por sorte
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CO N T R A P O N TO
Reprodução
m uma quitinete localizada entre os bairros da
Consolação e de Higienópolis, dividem espaço:
uma bicicleta profissional, patins decorados com
strass, um violão, um stéreo coberto por saltoaltos, massageadores, hidratantes e fotografias
eróticas. É o apartamento de Mayara Maemura,
acompanhante de luxo e modelo, que contou para
o Contraponto sua vida, ao nos receber com seus
1.80m de altura coberto por tatuagens coloridas,
em um ambiente íntimo – com música de fundo
tocada pelo rádio, que nos acompanhou durante
toda a entrevista – e histórias, no mínimo, interessantes.
Encontrar uma profissional do sexo que
ceda entrevista a um jornal já é uma tarefa difícil.
Através do Centro de Referência da Diversidade
(CRD), um pequeno espaço a poucos quarteirões
da casa de Mayara, conseguimos seu contato após
sermos informadas que a matéria dificilmente sairia, devido ao grande número de prostitutas que
desapareceram ou foram ameaçadas depois de
cederem entrevistas a veículos de comunicação.
Encontrar uma profissional de sexo, que seja transgênero, e aceite conversar com jornalistas é ainda
mais difícil. Apesar disso, Mayara não se sentiu incomodada em compartilhar histórias de violência,
morte e suas próprias experiências sexuais.
Mayara não precisa mais do auxílio do
CRD, frequenta o Centro para ajudar a aumentar
o número de usuários, participando de algumas
atividades, doando roupas, além de emprestar seu
violão para aulas. “Eu sei que eu não preciso, mas
tem muitas pessoas aí na rua que sim. Tem gente
na mesma condição que eu que não tá nem aí”.
Isso porque, hoje, ela se considera acompanhante
de luxo, tendo uma qualidade de vida melhor do
que a maior parte das profissionais do sexo, não
apenas financeiramente, mas em relação à sua
própria segurança: seleciona os clientes, não atende qualquer um depois da meia noite e trabalha
poucas horas ao dia.
Assim, a vida de Mayara não se limita à sua
profissão. Suas horas são dedicadas a diferentes
hobbies: pratica ciclismo, é patinadora, gosta de
cozinhar e de fotografar. Pretende inclusive ganhar
dinheiro com a fotografia, de modo que não precise mais se prostituir. “Não fiz aula, mas descobri
o talento recentemente, quero fazer um curso e
pegar um diploma bom, pra poder falar que sou
fotógrafa”. Quanto a voltar a estudar, Mayara
diz ter perdido a vontade, devido ao preconceito
que sofria enquanto frequentava a escola “Não
quero mais porque a sociedade não ajuda, não
tem como, só se a gente for bem preparada psicologicamente”. Essa relação com a discriminação
vem desde a infância.
© Júlia Dolce
E
A modelo em seu apartamento
Centro atende profissionais vulneráveis
O Centro de Referência da Diversidade (CRD) é um espaço dedicado ao atendimento de profissionais do sexo,
gays, travestis, transexuais, portadores de HIV/Aids em situação de vulnerabilidade e risco social, além de
moradores de rua. Localizado na Rua Major Sertório, 292/294, na Consolação, próximo ao bairro nobre de
Higienópolis − no qual foi organizado pela associação de moradores, em 2011, um baixo assinado para que
não fosse construída a estação de metrô da Linha 4-Amarela no local, pois isso atrairia ‘gente diferenciada’
− O CRD busca harmonizar a diversidade social e sexual, respeitando à autonomia dos usuários, oferecendo
acolhimento e escuta especializada, promovendo orientação e serviços de assistência jurídica e de saúde física
e psicológica.
Inaugurado em 2008 pela ONG Grupo Pela Vida/SP (pela Valorização, Integração e Dignidade do Doente
de Aids de São Paulo), o Centro tem sido mantido com recursos da Prefeitura e da União Europeia. Entre as
atividades desenvolvidas pelo CRD estão o atendimento social e psicossocial, oficinas com ações direcionadas
a geração de renda e emprego, inserção no mercado de trabalho, atendimento social nas ruas, participação
em fóruns de desenvolvimento local do centro, além de espaço próprio de convivência, onde são promovidos
eventos culturais e encontros comunitários.
Transexualidade e discriminação
“Para as pessoas transexuais, travestis e transgêneros, a visibilidade é compulsória a certa altura de sua
vida; isso porque, ao contrário da orientação sexual, que pode ser ocultada pela mentira, omissão ou pelo
armário, a identidade de gênero é experimentada, pelas pessoas trans, como um estigma que não se pode
ocultar, como a cor da pele para os negros e negras. Por isso, na maioria dos casos, mulheres e homens trans
são expulsos de casa, da escola, da família, do bairro, até da cidade. A visibilidade é obrigatória para aquele
cuja identidade sexual está inscrita no corpo como um estigma que não se pode ocultar sob qualquer disfarce.
E o preconceito e a violência que sofrem é muito maior.” – Jean Wyllys
Números recentes publicados pela ANTRA (Associação Nacional de Travestis e Transexuais), estimam que
90% das travestis e transexuais do Brasil estão no mercado da prostituição. A discriminação profissional fica
evidente no momento em que essas pessoas se candidatam a uma vaga. No dia 7 de novembro de 2013, uma
matéria publicada no Estadão mostrou a história de transexuais com cursos superiores que não conseguem
arrumar emprego devido ao preconceito com sua sexualidade. Dessa situação surgiu a iniciativa do site www.
transempregos.com.br, criado há pouco mais de um mês, por Daniela Andrade, Márcia Rocha e Paulo Bevilacqua. O site apresenta ofertas de emprego voltadas para pessoas trans, travestis e crosdressers cadastradas
no portal, oferecidas por empresas comprometidas com a diversidade sexual.
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Fevereiro 2014
© Júlia Dolce
© Júlia Dolce
Documentos
atualizados após a
alteração de nome na
Justiça
Procurei ficar bem longe por que sabia que ela tinha HIV, e tinha
medo do sangue contaminado. Mesmo depois que o chão foi limpo e
desinfetado, eu passava pulando pelo local, de tanto medo
Infância – “Eu sofri muito na escola, porque eu não sabia o que eu era, não sabia o que
era isso – se era doença, se era tratável.”
Ainda bebê, Mayara era o xodó das tias.
Brigavam para pegá-la no colo, ou até, quando já
estava um pouco mais velha, para ver quem brincaria de casinha com a criança. “Eu era a boneca
da família. Eu não sabia o que era homem, o que
era mulher”, comenta Mayara.
Foi criada sem o pai, e só descobriu sua
identidade recentemente. Isso aconteceu porque a mãe engravidou sem estarem casados.
Naquela época, Mayara explica: “As famílias
mudavam de cidade para uma não saber da
outra, já que teve filho fora do casamento”.
Portanto, apesar de ter nascido em Regente
Feijó, pequena cidade próxima à Presidente
Prudente, mudou-se, com poucos meses de
idade, para Presidente Venceslau, onde passou
a infância. “Minha mãe sempre me quis só pra
ela, não quis dividir com a família do meu pai.
Eu sofri, porque não tinha um pai”, diz. No
entanto, nesse contexto, não foi apenas essa
ausência que a abalou. “Em cidade pequena
você precisa dos dois nomes da família pra poder construir um nome, é assim que a sociedade
funciona”. Logo, a falta do nome do pai era
expressiva. De sua presença, também.
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Ainda pequena começou a usar as roupas
das tias escondido, enquanto trabalhavam. “Na
escola eu tive sérios problemas, as pessoas queriam
que eu fosse menino, mas eu tinha comportamento de menina”, afirma a modelo. Motivo de
piada, só era amiga de garotas. Para ir ao banheiro,
segurava até não ter ninguém no masculino. As
piadas, com o tempo, tornaram-se surras, pedradas. Da primeira vez que apanhou, não se esquece:
“O filho do prefeito e os amigos dele perceberam
minha transexualidade e se incomodaram, foi por
isso que levei a primeira coça na saída da escola.
E eles se gabavam por terem pais importantes, eu
nem sabia quem era o meu”.
Conforme Mayara descobria sua sexualidade, era mais e mais excluída. Certa vez, o
inspetor de sua escola a chamou para conversar,
queria entender porque andava tão amuada e
não realizava os exercícios propostos. A menina
respondeu: “Como eu vou conseguir fazer alguma
atividade com todo mundo na minha cabeça me
discriminando e com os meninos jogando pedra?
Me sinto como se fosse uma Jesus Crista, lá, crucificada”. A avó, preocupada com os conflitos da
escola e com a falta de colegas meninos, levou-a a
psicóloga. “Ela achava que o problema era eu. Mas
não, o problema nunca fui eu. O problema eram as
pessoas que se incomodavam comigo”, recorda.
Fevereiro 2014
Mesmo assim, lembra-se também de sentir culpa
por ser como era, na época não sabia sequer se
haviam pessoas como ela. Além disso, diz ter sido
assustador: “Era um filme de terror e eu sonhava
com um conto de fadas, em que eu seria aceita
pelas pessoas”. Passou então a se aproximar de
pessoas que a entendiam.
“Eu comecei a me revelar para o público,
o que acabou me revelando para mim”, explica
Mayara. Esse processo aconteceu conforme conversava com essas pessoas que a compreendiam.
Um enfermeiro particular que morava em uma
vila próxima foi fundamental em sua vida, pois
foi quem a ajudou na hormonização. Mentindo
para a mãe, passou a comprar hormônios com
prescrição desse amigo – dizia que os medicamentos eram antialérgicos. Naquele tempo, tinha 11
anos. “Meu peito começou a crescer, igual o de
menina. Minha preocupação maior na época era
essa. Quem tem peito participa”, conta.
Ao descobrir o processo de hormonização,
já que os seios da menina começaram a crescer,
sua mãe a rejeitara. Isso mudou, mas apenas com
o passar do tempo. Um grande problema em casa
eram dois tios: “Um que era muito machista, daqueles homens que não engole mesmo, e outro que é
gay, não assumia e tinha recalque de mim que era
assumida e mostrava para todo mundo”.
A hormonização, por si só, já era uma dificuldade tremenda. Os remédios causam efeitos
colaterais, como náusea, enjoo e problemas na
pele (furúnculos, por exemplo). Mayara ficara
também com a pele mais sensível. “Só de me
tocar, já me doía. O hormônio me doía tanto”,
comenta. Acrescenta ainda: “Era muito distúrbio.
Você tinha que estar preparada psicologicamente.
Essa época não favorecia, então eu sofri. Eu sofri.
Achava que eu ia morrer, que aquilo estava me
matando”.
Assim, com 12 anos, depois de muito sofrimento, a garota já estava com seios formados.
Quanto à mudança de sexo, explica: “Quando a
gente é novinha, acha que vai atrapalhar. Não,
é completamente o contrário, porque quando a
gente se aceita como é, operada ou não, as outras
pessoas te aceitam também”.
A partir daí sua vida profissional teve início,
ela seria modelo. “O Kiko, um amigo, chegou e
falou: ‘Ma, vai ter um evento na cidade e eu quero
que você participe, vai ser o seu primeiro desfile’”.
Para isso, pediram patrocínio para uma conhecida de Kiko, Solange M. No entanto, segundo
Mayara, ela era casada com seu pai e não queria
que a filha o conhecesse. Alegou, então, haver
sido sequestrada por Mayara. “Ela me incriminou
para a minha família, me marginalizou inventando
esse sequestro, que foi arquivado. Ela não tinha
nenhuma prova”, explica.
Com isso, a cidadezinha em que morava
foi se tornando insuportável para a jovem garota.
Apesar do arquivamento do processo, policiais,
seguindo ordens de Solange, enquadravam-na
injustamente. Mayara lamenta: “Batiam em mim,
eu era obrigada a ir para a delegacia assinar por
desacato. Como ia provar que era inocente? Com
12 anos? Sozinha?”.
Casa da Soraya – “É assim: quando a cafetina é boa, a gente chama de mãe, quando a cafetina é uó a gente chama pelo nome mesmo”.
Após as frustrações na carreira de modelo,
Mayara deu início a vida da prostituição na pequena cidade de Presidente Venceslau, no interior do
estado de São Paulo. Exatamente porque lá havia
sido criada, conhecendo pessoalmente o povo,
foi se tornando popular profissionalmente entre
o público das rádios, brincadeiras e festas, até que
se viu obrigada a mudar de cidade.
CO N T R A P O N TO
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Indianópolis – Após muita insistência das
meninas que passavam pela casa da Soraya – garantindo que o potencial financeiro de se trabalhar
em São Paulo era grande − Mayara resolveu se
mudar, superando o temor que tinha pela cidade.
O fato de ter morado com a conhecida cafetina de
Presidente Prudente a salvou de várias situações de
risco que correu quando chegou à capital, mas não
foi suficiente para poupá-la de ameaças. Começou
trabalhando na Avenida Indianópolis, ponto disputado pelas prostitutas paulistanas (principalmente
por ‘bonecas’, apelido dado às travestis e transexuais), onde a competição acirrada frequentemente
resultava em violência.
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CO N T R A P O N TO
Vida de Acompanhante – “Sou a Mayara
Maemura durante o dia e a noite eu sou a Mayara
profissional do sexo. Isso funciona melhor”.
A vida de prostituta e de acompanhante
de luxo é diferente. Para Mayara, que além de
acompanhante é modelo, os riscos que corre são
menores, não há tanto preconceito e o perfil dos
clientes não é o mesmo, os seus são “mais sofisticados e educados”. Além disso, ela consegue ter
sua vida pessoal separada da profissão, algo que
seu trabalho como acompanhante permite.
Ao fazer seu primeiro ensaio fotográfico
sensual, recebeu a proposta para participar de
um filme pornográfico, porém, não aceitou, pois
reconhece que a sociedade não vê com os mesmos
olhos uma cena de sexo na novela ou nu artístico
e a pornografia, que ainda é muito discriminada.
Mayara sempre temeu “sujar” seu nome, “e se
precisasse mudá-lo ou trocar de profissão no futuro?” Assim, decidiu não se envolver. Ela também
foi convidada pela diretora Cláudia Priscila para
protagonizar um nu artístico no filme “Desbunde”,
dirigido por Hilton Lacerda, conhecido pelo filme
“Tatuagem”, que estreou recentemente. Mayara
fez uma entrevista com Kiko Goifman para o SESC
TV sobre sexualidade, ele se interessou pelo trabalho dela e conversou com Cláudia, sua mulher. Cerca de três a seis meses antes de um
ensaio, o trabalho já começa, pois Mayara não
tem patrocinador, é autônoma. Gastou seis mil
reais em seu último ensaio fotográfico, com beleza, produção e equipamentos, como a câmera
profissional que teve que comprar. Ela tem que
investir muito para conseguir o retorno que cobrirá
suas despesas.
Normalmente ligam-se as trangêneros à
prostituição, como se todas desejassem se prostituir e como se elas só soubessem trabalhar com
Jornal Laboratório do Curso de Jornalismo - PUC-SP
Da onde meu dinheiro é sujo se
eu trabalho e pago as minhas
contas?
Reprodução
Segundo Mayara, quando a cafetina é mais
fraca e não se propõe a ajudar, suas meninas
sofrem mais. Aconteceu com ela, que veio morar
na casa de Leila Piaba, na Praça João Mendes.
Arranjava brigas nos pontos com frequência, “com
essas traveconas que não tem nada a perder, já
que eu convivia no meio delas”. A situação mais
marcante foi o desentendimento com a travesti Jurema, personagem que se tornou famosa na noite
de São Paulo. “Eu tava em Indianópolis, toda loira,
novinha, mestiça e bem produzida no salto alto,
quando essa Jurema veio descendo a rua de longe encrencando comigo, gritando ‘quem é você,
viado?’. Já sabia que iam levar minhas sandálias e
bolsa embora, além de cortar meu cabelo. Eu era
uma ameaça pra elas. Não tô generalizando, mas
sempre tem as bonecas barraqueiras”. Segundo
Mayara, as travestis se diferenciam das transexuais,
porque insistem em mostrar um comportamento
masculino, enquanto as trans procuram parecer
o mais “normal” possível.
Juízos à parte, Mayara afirma que realmente passava mais despercebida pelos policiais que
rondavam a Avenida. “Eles gritavam ‘a gente vai
bater e levar todas presas, vão subindo’, mas eu
saía da linha das putas, fazia a garota e isso mexia
com eles, então só me mandavam embora.” A vida
de uma profissional do sexo é bem mais arriscada
na rua, “Tá na rotina. Já fui agredida, roubada,
quase me mataram. Tô viva por sorte”.
Hoje em dia, Mayara acredita que sua vida
está muito melhor. Como acompanhante de luxo e
modelo, trabalhando apenas para os proprietários
dos sites onde suas fotos são divulgadas, a violência
a qual é sujeita é consideravelmente menor. “O
único risco agora é o de uma esposa preocupada
com o marido pegar meu cartãozinho no bolso dele
e me ligar. Já aconteceu várias vezes, eu me faço de
desentendida para não atrapalhar o cara”.
© Júlia Dolce
Mayara fugiu de casa aos 12 anos, devido
ao preconceito que sofria por parte da população
em geral e da própria família, em relação a transexualidade e as acusações de sequestro. Apanhou
da polícia, foi barrada e presa diversas vezes, mas
sua maior decepção foi não ter sido aceita pela
mãe a princípio, “porque o resto a gente se vira,
amigo você arruma, com o tempo vai mostrando
quem você é. Eu sofria preconceito até quando
queria visitar meus primos, e meus tios não deixavam porque não queriam gay e travesti na casa
deles”. Ela se mudou para Presidente Prudente, a
apenas uma hora de sua casa, mas a uma distância
gigantesca da vida que levava até então.
O município possui hoje uma população
cinco vezes maior do que a de Presidente Venceslau, o suficiente para desconstruir famas e mergulhar uma pessoa estigmatizada no anonimato.
Foi o que aconteceu com Mayara, que começou a
trabalhar no bordel de Soraya, onde foi batizada
com o nome pelo qual é chamada até hoje – pois
naquela época as cafetinas escolhiam os novos nomes das acompanhantes − formando aos poucos
sua identidade. “Soraya me orientava em tudo, foi
minha primeira mãe e primeira cafetina, eu a considero como uma madrinha que ajudou a gente,
que ensinou a me defender dos perigos”.
Presidente Prudente servia de passagem para
as profissionais do sexo que vinham de fora para
morar em São Paulo, pois a capital é considerada
o local de encontro de acompanhantes do Brasil
inteiro. Assim, Mayara conheceu meninas de diversos estados enquanto morava no interior, como a
paraense Indiara, que se tornou uma de suas melhores amigas. A índia de Belém era conhecida como
uma das transexuais mais bonitas do país, antes de
contrair HIV e falecer. Segundo Mayara, Indiara não
se cuidava, negava tratamento médico por teimosia,
mesmo nas recaídas. Na década de 90, os casos
fatais de AIDS explodiram descontroladamente, e
criaram em Mayara uma fobia pela doença.
Uma noite em que houve briga entre prostitutas na casa da cafetina, Indiara foi esfaqueada
e seu sangue jorrou pelo quarto que dividia com
Mayara. “Procurei ficar bem longe por que sabia
que ela tinha HIV, e tinha medo do sangue contaminado. Mesmo depois que o chão foi limpo e
desinfetado, eu passava pulando pelo local, de
tanto medo. Isso mexeu muito comigo, Indiara
foi uma amigona”.
As mortes por HIV hoje se equilibram com
o número de assassinatos de profissionais do sexo,
frequentemente cometidos pelos próprios clientes.
Dessa forma Mayara perdeu outra amiga, Francesca, que aos 19 anos foi morta por um homem
enquanto o atendia. “Ela deve ter se recusado a
fazer alguma coisa, porque a gente conhecia ela,
não aprontava. Enquanto não fizerem nada, vai
continuar, porque vai ser só mais uma travesti a
menos pra sociedade, ‘menos um viado pra dar
trabalho’”. Incomodada com as histórias fatais,
Mayara pede para mudar de assunto. Hoje, ela pode
contar nos dedos as amizades na profissão.
sexo. É claro que há diversos casos em que a prostituição é uma escolha, mas na maioria das vezes
é o único caminho que elas têm a seguir, pois não
têm oportunidades de trabalho. “Eu quero investir
mais num público artístico, porque eu não vou ficar
velha me prostituindo, não vou. É claro que certas
coisas não dá pra gente concluir na vida, mas se
a gente pensar em uma coisa que pode ser boa
pra você, porque não não tentar, justo? Eu gosto
muito de gastronomia, sei fazer comida japonesa,
italiana, brasileira, do modo mais simples e fica
aquela coisa maravilhosa. Meu público mesmo
fala: ‘Abre um bistrozinho, vai dar certo!’”.
Mayara morou sete anos na Europa, onde
era tratada como mulher, era respeitada e tinha
direitos. Ela foi para a Itália em 2000, pois sofria
muito preconceito aqui no Brasil, inclusive de seu
pai e da família. Queria mostrar que não desejava
dar trabalho para ninguém, só queria ser respeitada e amada como é, sendo mulher. Além disso,
algumas amigas chamavam-na para viajar, e ela
acabou seguindo o conselho. “Lá tem menos
risco, eles aprontam menos, tem menos morte,
claro que pode acontecer, mas a gente vai mais
pela onda das amigas, a gente vai e se sente mais
segura”. Em 2006, voltou para resolver problemas envolvendo a paternidade e seu sobrenome
e chegou até a recusar convites de agências de
Fevereiro 2014
Reprodução
© Júlia Dolce
Mayara Maemura
Batiam em mim, eu era obrigada a ir para a delegacia assinar por
desacato. Como ia provar que era inocente? Com 12 anos? Sozinha?
modelos. Está bem hoje no Brasil, e segundo ela,
só retornaria à Itália para visitar, não deseja voltar
a ser prostituta por lá, mesmo sendo um lugar
mais seguro e menos violento.
Casada não judicialmente há seis anos,
Mayara se considera esposa por estar junto do
marido há muito tempo, o que, para ela, conta
mais do que muitos casamentos efetivados, que
às vezes não passam de relações impostas por um
papel. Sua relação é secreta, pois ela não quer
prejudicar o marido em seu trabalho e não quer ser
atrapalhada na sua profissão. Os dois não moram
juntos e preferem que assim seja. No começo não
era fácil, ele tinha ciúmes por ela ser acompanhante de luxo e ter clientes bonitos e novos. Mas
aceitou e se acostumou com seu trabalho, pois
Mayara é fiel a seu marido e não confunde sua
vida pessoal com a profissional. “Ter uma relação
séria? É você dedicar todo aquele sonho de uma
verdadeira mulher naquele homem, você depositar
tudo nele, e ter seus clientes só como profissional
mesmo. Não confundir.”
Trabalhar como acompanhante de luxo é
rentável, Mayara cobra R$ 250,00 por uma hora
e meia, mas tem clientes que ficam por muitas
horas e às vezes ela ganha até R$ 5.000,00 por
serviço. Já chegou a receber R$ 15.000,00 de
um senador para passar a noite. Ela atende mais
Jornal Laboratório do Curso de Jornalismo - PUC-SP
homens, entre eles japoneses, turcos, árabes,
egípcios, italianos, americanos e brasileiros, esses
três últimos são os mais frequentes. O beijo na
boca é considerado muito íntimo e é algo que não
está estipulado no trabalho de Mayara, por mais
que alguns clientes peçam. Isso ilustra bem como
a profissional do sexo tem sim controle sobre o
seu próprio corpo e não está fadada a fazer o que
não quer. “Eu já deixo bem claro: “olha amor,
eu tenho namorado, eu beijo o meu namorado”.
Mas eu beijo cliente sim, não vou mentir, mas eu
seleciono muito bem”.
Ela já foi procurada por artistas, roqueiros
internacionais, jogadores de futebol e afirma:
“tenho muita sorte com senadores”. Mas guarda
segredo e não revela quem são para não perder
clientes. Já chegou a atender dez no mesmo dia,
mas geralmente não passa de dois ou três. Ela
prefere ter clientes fixos e de confiança a aceitar
o maior número possível. Não tem uma clientela
específica por ser transgênero e sente que ganha
de acordo com sua beleza e trabalho. Mayara
trabalha em sua própria casa e procura tratar os
clientes da melhor maneira possível. “Como vocês podem ver eu sou um pouco bagunceira com
acessórios, mas sou muito limpa com as minhas
coisas, o tratamento é ótimo, meus clientes percebem isso. Tem amigas minhas que são relaxadas,
Fevereiro 2014
às vezes não tem toalhas pro cliente se enxugar.
Eu conto com isso, meu atendimento é VIP, desde
a toalha até a massagem”.
Mesmo sendo acompanhante e selecionando os clientes, Mayara não está imune a correr
riscos. Há alguns meses atendeu um checo, que
desconhecia sua transexualidade e a agrediu
fisicamente devido à surpresa, deixando-a muito
machucada por cerca de um mês, o que prejudicou
seu trabalho. Mesmo em sua vida pessoal sofre
com a violência: foi ao dentista fazer um canal
e ele colocou cacos de resíduos velhos e até um
parafuso no seu dente. Marcelo, o dentista que
agora está sendo processado, disse que devolveria
os R$ 800,00 que Mayara gastou com o tratamento apenas após a polícia ser acionada por ela
para resolver o caso. Mas passado algum tempo,
ele disse que devolveria só metade do valor, pois
o dinheiro dela era sujo. “Da onde meu dinheiro
é sujo se eu trabalho e pago as minhas contas?
Se fosse com alguém da sociedade o cara já tava
na cadeia, mas como é com uma trans não.” Se
a prostituição fosse uma profissão regularizada,
Mayara não teria se prejudicado no mês que não
pôde trabalhar devido à agressão sofrida, pois
teria direitos trabalhistas. Ela paga R$ 400,00 por
mês para o “Vitrine”, site do “Malícia”, onde seu
perfil é exibido, além de gastar com os ensaios.
E quando não pode trabalhar não recebe nada e
continua tendo que pagar o valor ao site, pois não
tem carteira de trabalho.
Mayara sofreu com o preconceito inúmeras
vezes, já foi assediada e humilhada ao passar na
porta da Universidade Presbiteriana Mackenzie em
São Paulo, apesar de muitos alunos já terem ligado
para ela querendo marcar horário. “Agora se fosse
uma travesti e mexesse na porta com algum aluno,
não ia chegar polícia e levar presa?”.
Antes de conseguir mudar seu nome original pelo feminino, ela sofria com a constante
atribuição ao sexo masculino. No Hospital Santa
Cruz isso já ocorreu diversas vezes, sendo chamada de propósito por seu antigo nome masculino.
“Desde o passado a gente já tinha essa de colocar
entre aspas o nome que deseja ser chamado,
porque no momento que você paga imposto e
sofre preconceito com seu nome, é a mesma coisa
que uma pessoa da sociedade que se constrange
com o nome. Ela não tem direito de mudar? Tem.
Se não vai ficar passando constrangimento pelo
resto da vida. Esse povo deveria ter mais cuidado,
chegar mais preparado para lidar com a gente,
só é fácil pra quem não passa por isso, ouve e
deixa pra lá”.
Atualmente, é necessária intervenção do
judiciário para que os travestis, transexuais e
transgêneros possam alterar seus documentos. O
Projeto de Lei ‘’João W Nery’’ (em homenagem
ao primeiro transhomem brasilero), de autoria
do deputado Jean Wyllys, está em trâmite e, se
for aprovado, permitirá que a mudança de documentos seja efetivada em qualquer cartório.
Além disso, são exigidos laudos psicológicos para
alteração de sexo e de nome, o que submete a
pessoa a um longo processo de análise, para que
um médico a considere ou não transexual. O PL
também visa derrubar essa exigência, promovendo
a despatologização da identidade de gênero.
Felizmente, mesmo antes da aprovação do
PL, Mayara conseguiu trocar seus documentos.
Há pouco tempo fez a alteração do nome em
segredo de justiça com Douglas, advogado que
trabalhava no CRD, e passou a ser, de fato, legalmente considerada uma mulher em uma sociedade
heteronormativa e preconceituosa.
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CONTRAPONTO
Pedro Liro
Sinfonia e MPB nas calçadas de Sampa
Por Gabriel Collet
Músicos de rua oferecem perspectivas muito mais ricas do que
sugerem os estereótipos
E
Faço o que
gosto e
ainda ganho
dinheiro, vir
pra rua me
abriu vários
leques
© Fotos: Gabriel Collet
le acorda entre seis e sete horas da manhã em
Guaianazes, onde mora; faz Yoga; come bem
e depois vai para a Avenida Paulista lá pelas 10h
ou 11h. Começa seu trabalho na Consolação, vai
para o MASP e depois para a Avenida Brigadeiro
Luís Antônio; faz o que gosta e ainda ganha seu
dinheiro. Esse é Pedro Augusto Liro Silva, 29 anos
e atual músico de rua, mais especificamente da
Avenida Paulista, zona central de São Paulo. A
partir da história de vida de Pedro com a música,
assim como seu dia a dia, é possível perceber mensagens que os músicos tentam passar ao público,
que quando aprecia seu trabalho, joga moedas
em seus chapéus.
Era sábado à tarde quando esbarrei com
Pedro em frente à Livraria Cultura no Conjunto
Nacional, na Avenida Paulista. Vários músicos de
rua estavam dispersos pela calçada, mas ele estava
exatamente na sua hora de “repouso”, guardando
seus instrumentos e disposto a dar uma entrevista.
O músico toca no local há três anos e explica como
a atividade musical revolucionou sua vida, e o bem
que ela traz para ele assim como para qualquer
ser humano.
Pedro tem contato com a música desde
menino. Vindo de família cristã, seus pais foram
incentivadores desse processo. Tudo começou em
sua infância, quando viu seu pai tocando sentado
em uma cadeira embaixo do “baneneirão” – nome
dado à árvore da casa onde moravam em Minas
Gerais – e começou a estudar também, tendo o cavaquinho como seu primeiro instrumento. Depois
disso seu pai lhe deu uma guitarrinha de plástico,
e desde então não parou mais de tocar. Começou no conservatório Neuma Ansam Bler, em
Londrina (PR), onde estudou música antiga e se
apresentou em sua primeira orquestra com 13
anos na cidade.
Pedro Liro
toca em
frente ao
Conjunto
Nacional,
na Avenida
Paulista
De Londrina a São Paulo, de segurança
a músico – Pedro veio a São Paulo para ajudar sua
sogra que estava doente e faleceu. Logo depois se
separou de sua esposa e essa separação o fez escolher a música definitivamente como profissão. Em
São Paulo o atual músico foi de tudo: cozinheiro,
auxiliar de serviços gerais e até vigilante em aeroporto, seu último emprego. Para ele, a experiência
dessa radical mudança de vida foi ótima. “Faço o
que gosto e ainda ganho dinheiro, vir pra rua me
abriu vários leques”, diz.
Pedro conheceu muitas pessoas e graças
a essa expansão está inserido em dois grupos de
jazz atualmente: o Sahaja Jazz, liderado pelo americano conhecido pelas ruas de São Paulo como
Hahert, e o Improvise; além de estar participando
da gravação de dois CDs de blues e jazz, ainda
sem data para lançamento. Com um traje leve, solto, um chapéu simples
e frutas na mala, Pedro tenta ao máximo levar uma
vida saudável e limpa na metrópole. Mora com o irmão e parceiro nas ruas Sócrates, de 30 anos, músico
que toca sax e flauta, mas trabalha como apicultor.
Os dois formam a dupla Os Irmãos Sócrates e, quando podem, tocam juntos na rua.
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CO N T R A P O N TO
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Fevereiro 2014
Tocar na rua dá mais dinheiro
do que as pessoas pensam
© Fotos: Gabriel Collet
(Pedro Liro)
Do nascer do sol à lua, o dia é tocando
na rua – Em sua rotina o músico permanece no
Conjunto Nacional, pela manhã até às 16h, faz
uma pequena pausa, se alimenta sempre de frutas
e logo depois caminha para o Starbucks próximo
ao Parque Trianon. Seu último ponto do dia é o
Fran’s Café, esquina da Avenida Paulista com a
Rua Teixeira da Silva.
O músico prefere lugares com restaurantes
ou lanchonetes, pois as pessoas podem sentar,
comer e escutar sua música relaxadas, fora da
correria. A viagem de volta para Guaianazes é
feita por volta das 20h, e ao chegar em casa Pedro ainda da aula a oito alunos que conheceu na
rua. Algumas vezes vai à casa dos próprios alunos,
outros vão a sua.
Aos finais de semana Pedro só toca à
noite, mas confessa que o cachê é bem maior
do que durante os dias da semana. Em relação a
seu sustento e contas a pagar, Pedro afirma com
convicção que ganha tocando na rua o suficiente
para se sustentar, pagar suas contas, viajar e fazer
o que gosta. “Tocar na rua dá mais dinheiro do
que as pessoas pensam”.
Durante sua experiência, o saxofonista relembra que entre os séculos XII e XIII os músicos de
rua levavam não só a música, mas também poesia
Jornal Laboratório do Curso de Jornalismo - PUC-SP
para as pessoas. Quando nos pegamos pensando
o porquê de alguém se atrever a encostar-se às
calçadas e tocar um instrumento além da questão financeira, podemos perceber agora que o
“multimúsico” quer passar uma emoção para o
público, seja a emoção de um passado, de uma
sensação, de um país ou de alguém especial. A
música tem essa função: despertar esse sentimento
que, de acordo com Pedro, temos que cultivar
nas pessoas. Pedro define a Avenida Paulista como
“cosmopolita” por receber todas as etnias,
e que isso é ótimo, uma vez que as pessoas
de outras culturas observam e apreciam a
música brasileira. Acredita que o povo brasileiro tem referência e apego com a bossa nova
e acredita que a música brasileira é marcada
pelo violão e um banco, mas que infelizmente
hoje vem perdendo muitos valores, como a
poesia, a letra. Para ele, Garota de Ipanema marcou o
Brasil, a Bossa Nova e a MPB são referências
da chamada “boa música brasileira” para o
músico, pois trazem uma poesia de época, uma
letra de história, com essência e sentimento em
seus versos. As musicas favoritas do músico são
Carinhoso de Pixinguinha e A onda de Tom
Fevereiro 2014
Jobim. Seu maior ídolo chama-se Elimar Plínio
Machado, músico da Universidade Estadual de
Londrina.
Experiências de um músico de rua
– “Quem não é visto não é lembrado”. Para o músico, sua experiência na Consolação é incrível, pois
trouxe a ele a oportunidade de conhecer outras
pessoas também envolvidas com música de rua.
Ao conhecer essas pessoas entrou para esses dois
grupos de jazz e conheceu em contato com seus
atuais alunos.
Alaúde árabe, guitarra elétrica, violão,
flauta transversal, cavaquinho e gaita são os instrumentos que Pedro tem domínio no dia a dia.
Para ele, um músico deve escutar muito, estar
bem com ele mesmo antes de todos e passar o
que eles têm de bom para as pessoas através do
instrumento. Acredita que todos podem fazer o
que querem e o que gostam e que fazer o bem
com pequenas atitudes faz de você um ser humano melhor todo dia. Para ele a música é um ótimo
caminho para proporcionar essa mudança. Em
seus planos futuros o músico deseja fazer bases de
bossa nova e ter mais músicas próprias. Já deixou
oportunidades passarem. Quando perguntado
aonde ele quer chegar sendo músico de rua, Pedro
CO N T R A P O N TO
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Adesão do Público – Para o músico o
público é demais. As crianças principalmente:
elas param, olham com atenção, puxam os
pais e mesmo não sabendo qual a música que
esta tocando e do que ela se trata eles ficam
fascinados. Elas funcionam como um termômetro se você esta saindo bem ou não. Muitos
idosos param na avenida e começam a cantar
as músicas, com certeza lembrando seu tempo, suas histórias. “Essa sensação é proposital
dos músicos de rua aos pedestres”, afirma. Já
para os moradores de rua, suas músicas e as
de outros músicos funcionam como remédio,
afinal, música é um remédio para os próprios
artistas que a fazem, segundo Pedro. A música
acalma as pessoas.
Músico de rua ou pedinte? – Para muitos, a vida de um musico de rua é solitária. Para o
artista, o músico tenta encontrar no publico
uma falta dentro dele mesmo, mas não condiz
exatamente com a ausência da família. A música
é um remédio, faz um papel terapêutico com
os músicos, ela preenche um certo vazio no
qual você se descobre. Ela traz alegria, mas ao
mesmo tempo tristeza.
Para Pedro há um grande desinteresse do
governo nos músicos de rua. O ex-prefeito de São
Paulo, Gilberto Kassab, via os músicos de rua como
“pedintes”. Criou uma lei, na qual oficializa o perímetro nos locais públicos nos quais os músicos
podem trabalhar. Tocar nas estações de trem e
metrô, por exemplo, são um desafio: em alguns
metrôs os expulsam, “todos devem ficar atrás da
chamada faixa branca”.
© Fotos: Gabriel Collet
percebeu que adora dar aula e que tem grandes
objetivos nesse âmbito, principalmente dentro
do jazz. Também quer conhecer outros espaços.
A rua é um estudo. Do governo, os músicos e a arte – Pedro acredita que a política brasileira tem um
desinteresse em “arte geral”, pois a arte faz o
ser humano pensar e refletir, mas o governo não
quer essa reflexão. Sobre a questão da arte e o ser
humano, o músico faz referência a um psicólogo
que relaciona a arte estando presente nas revoluções da sociedade e do ser humano ao longo da
história. Pedro acha que o governo não quer que
a população dissemine o conhecimento, pois só
se importa com lucro, dinheiro e posse.
Ele também acredita que as grandes
gravadoras e a mídia condicionam as pessoas a
gostarem de músicas que não fazem bem a elas.
E que a falta de espaço para os músicos de rua,
que têm mais poesia na música, somada com o
desinteresse do governo torna-se um empecilho
para essa expansão.
Atualmente os músicos têm a Associação
dos Músicos de São Paulo, na qual defendem
rigorosamente seus direitos e o lançamento de
projetos, além de novos espaços para quem trabalha neste meio e maior divulgação nos eventos
dos mesmos.
Os irmãos
Sócrates:
Pedro e
Sócrates
tocando
juntos
O sindicato é na Av. Ipiranga, 324 bloco C no 6º andar. Pelo site www.sindmussp.
com.br é possível acompanhar as novas divulgações dos eventos. Já a dupla de nome Os
Irmãos Sócrates tem sua própria pagina no
facebook: www.facebook.com/irmaosliro.
silva, no qual divulgam suas estreias, alguns
trabalhos e parcerias.
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Fotos: Reprodução
Músico de rua ou pedinte? – Para muitos, a vida de um
músico de rua é solitária. Para o artista, o músico tenta
encontrar no público uma falta dentro dele mesmo, mas
não condiz exatamente com a ausência da família. A música
é um remédio, faz um papel terapêutico com os músicos,
ela preenche um certo vazio no qual você se descobre.
Ela traz alegria, mas ao mesmo tempo tristeza.
Artistas de rua
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CONTRAPONTO
CONTRAPONTO
ensaio fotográfico
ensaiofotográfico
(Um pedaço de) São Paulo
Reprodução
P
ensar na cara de São Paulo é difícil.
A cidade é muito mais do que a
Avenida Paulista, os pontos famosos
do Centro e os engarrafamentos. O
fato repetido à exaustão de que esta é
uma terra formada por todos os povos
está aí para mostrar que o número de
belezas em São Paulo é tão grande
quanto o de habitantes. Um passeio
com o olhar atento pelo Parque Ibirapuera ou a Avenida Paulista numa
tarde de domingo revela que paulistanos são muito mais do que pessoas
estressadas, eles querem se divertir. O
bairro do Bixiga, ocupado por cantinas
italianas e a feira de antiguidades, tem
muito a ensinar sobre simpatia, tesouros, relíquias e tradição.
Contudo, nada supera os detalhes
do centro da cidade. É comum ouvir
clichês como “Isso aqui está completamente abandonado” ao circular pelas
redondezas do Theatro Municipal, por
exemplo, quando na verdade o que se
mostra é um espaço em recuperação,
cada dia mais charmoso. Dos prédios
imensos que cercam o Viaduto Sta.
Ifigênia, passando pelos desenhos que
gritam nas paredes e os becos escondidos, até a estátua de Mãe Preta no
Largo do Paissandu, os detalhes do
Centro de São Paulo marcam a identidade da cidade, tão complexa e forte
quanto o povo que a construiu.
© Fotos: Isabella Amaral
Reprodução
Por Isabella Amaral
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© Fotos: Isabella Amaral
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CONTRAPONTO
Luciana Nahas
Está tudo nas cartas
Por Bia Avila*
Taróloga profissional conta sua trajetória no mundo esotérico
oucos oráculos são tão antigos e admirados
quanto o tarô. Sua origem é tão misteriosa
quanto seu funcionamento: as cartas mais antigas,
pintadas à mão, são do século XV. Acredita-se que
o tarô chegou à Europa no século anterior, levado pelos ciganos da Ásia Central. Entretanto, foi
apenas em 1781 que as cartas se tornaram parte
do mundo místico, a partir da publicação de um
estudo de Antoine Court Gébelin, pastor protestante suíço. Em “Monde primif, anlysé et comparé
avec le monde moderne” (O mundo primitivo, analisado e comparado ao mundo moderno), Gébelin
explicou o significado de cada Arcano e afirmou
que cada naipe das cartas representava os grupos
sociais. Com a falta de argumentos racionais para
sustentar suas teorias, principalmente a cerca da
origem do tarô, suas ideias foram consideradas
absurdas por historiadores e descartadas. Apesar
disso, Gébelin foi responsável por dar visibilidade
ao Tarô, visto como um mero “jogo divertido”
para a maioria da população. Sua obra foi requisitada pela família real francesa (que pediu
100 cópias), pelo enciclopedista Diderot e outras
figuras importantes como d’Alembert e Benjamin
Franklin. E, desde então, as cartas de tarô foram
associadas ao misticismo e à magia.
Os profissionais ligados à leitura de cartas, muitas vezes, são tão misteriosos quanto o
baralho. No imaginário popular, são mulheres,
com olhos fortemente maquiados, envoltas em
xales, turbantes, anéis e colares peculiares. Em
um quarto fracamente iluminado, e em frente
a uma bola de cristal, essa mulher será capaz de
lhe dizer tudo o que vai acontecer nas próximas
semanas, em uma simples jogada de cartas. São
fechadas, enigmáticas, e convivem com o eterno
estigma de charlatonas.
Luciana Milanov Nahas passa longe de tais
esteriótipos. Quando chegou ao café da livraria
Millenium, onde combinamos a entrevista, foi
extremamente simpática. “Desculpa a demora!”,
pediu, embora estivesse apenas alguns minutos
atrasada. De sorriso fácil, cabelos ruivos bem
cacheados e olhos verdes, Luciana inspirava confiança. Aberta, respondeu cada pergunta olhando
nos olhos. Mostrou seu lado prestativo quando o
meu gravador parou de funcionar. “Olha, eu gravo
aqui com o meu celular, se der problema de novo
eu te passo o áudio de algum jeito”, ofereceu.
Luciana não é casada e não tem filhos.
No tempo livre, gosta de fotografar, viajar, ler
e praticar yoga. Entre os livros preferidos, estão
“Mundo de Sofia”, de Jostein Gaarder, e “Oráculo
de Luna”, de Frédéric Lenoir. O segundo, para ela,
foi um “divisor de águas”. “O livro fala justamente
sobre livre arbítrio e destino, e é todo relacionado
a astrologia. Senti muita conexão com o tema”,
afirma. Escorpiana, acredita que puxou muitas
características do signo. “Ter intuição, perceber
o outro facilmente, captar coisas ocultas, ter
espírito investigativo. Além disso, a intensidade
e profundidade, gosto de mergulhar a fundo nas
minhas próprias questões. A capacidade de se
transformar, de começar do zero - como fiz com
a minha profissão - é algo muito escorpiônico
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CO N T R A P O N TO
© Bia Avila
P
Para a taróloga, o significado
das cartas é muito profundo.
“Usar o tarô somente como um
instrumento oracular é usar o
mínimo que ele pode te oferecer”
também”, conclui. Filha de um administrador de
empresas e de uma artista plástica, Luciana nasceu
em São Paulo e passou parte da adolescência em
Piracicaba. Fez três anos de Economia na Faap,
abandonou o curso e se formou em Hotelaria na
Faculdade Hebraica Renascença.
Bruxinha – “Sempre tive interesses em
questões místicas. Tinha uma intuição muito aguçada, tanto é que meus amigos me chamavam
bruxinha. Quando eu era mais nova, uma amiga
me deu um tarô e comecei a estudar, peguei livros emprestados e depois li para meus amigos”,
conta. Quando começou a ler a sorte para os
amigos, Luciana sentiu que estavam ficando muito
dependentes de suas consultas. “Amigas minhas
não saíam com algum cara sem que eu tirasse as
cartas”, relata, rindo. Sentindo-se sobrecarregada,
sem conseguir controlar o limite dos amigos, “ficou
de mal com o tarô” e prometeu a si mesma que
não ia mais abrir as cartas para ninguém. Após
trabalhar mais de 15 anos como como executiva
de gerência e marketing de hotéis de luxo, largou
a carreira de executiva no mundo corporativo para
montar uma loja virtual e se dedicar aos estudos de
astrologia e tarologia, adotando o nome Luna para
separar sua vida corporativa da esotérica. “Quando
para montei minha loja virtual, me vi autônoma e
com tempo para me dedicar mais profundamente
aos estudos astrológicos. O tarô veio de uma forma
muito natural, não houve uma interrupção de algo
Jornal Laboratório do Curso de Jornalismo - PUC-SP
Não adianta ocupar um cargo,
ter uma carreira e um nome se
você nao está fazendo o que a
sua alma pede
para se começar com isso. Sempre meus amigos
estimularam esse lado místico, foram justamente as
amigas que começaram a indicar clientes”, conta.
Apenas há alguns anos Luna retomou seus
estudos, agora com o objetivo de fazer cursos
profissionalizantes. “Ao longo da minha vida,
não ouvi minha alma desde sempre. Não adianta
ocupar um cargo, ter uma carreira e um nome se
você nao está fazendo o que a sua alma pede.
Para mim, foi muito sem querer, eu acho que eu já
vinha trabalhando a minha alma, não foi forçado,
pensado. Era um dom que eu já tinha. E não to
falando em vidência, e sim de uma tendência. Se
for ver, meu próprio mapa astral mostra um poder
de intuição maior, uma vontade de ajudar o outro
a tomar consciência de si próprio principalmente”,
explica.
Fez o curso do baralho de Marselha – o tarô
mais clássico – durante seis meses e também se
formou no baralho Mitológico, após um ano de
curso. Quando tinha terminado os cursos, uma
amiga, Marcela, avisou que tinha conseguido uma
cliente para ela atender por skype. “Eu sentia que
não estava preparada, mas essa amiga falou que
já era tarde, e que agora eu não podia fazer feio
e desmarcar… Então, fui praticamente ‘obrigada’
a começar minha carreira”, conta. Depois da primeira cliente, não teve tempo para pensar, pois
começou a receber indicações e, desde então,
não parou mais. Há um ano e meio, se dedica
integralmente à tarologia e à astrologia.
Fevereiro 2014
O meu intuito como
taróloga e astróloga é
levar um instrumento de
autoconhecimento para as
pessoas
© Bia Avila
Café da Livraria Millenium,
localizada em Moema, onde Luna
atende seus clientes
O Tarô Mitológico que Luna usa foi
presente de uma amiga
Para ler um tarô, não podemos
ter apenas intuição, tem que
ter técnica, conhecimento,
para saber o que você
© Bia Avila
está fazendo, seja esse
Para atender os clientes de tarô, Luna
usa a mandala astrológica, tiragem que permite conhecer vários campos da vida do cliente,
como profissional, espiritual, amoroso. São
tiradas 12 cartas do baralho, dispostas em uma
roda, e cada uma representará um assunto
em específico sobre aquela pessoa naquele
momento, dependendo do lugar que ocupar
nesse círculo. “Ela fala de todos os aspectos da
vida. A ideia é que a pessoa venha obter clareza
em suas questões porque o baralho sempre vai
dar respostas. Ele pode apontar um problema,
mas ele também vai dar uma solução. E a pessoa pode mudar a jogada inteira saindo dali
porque, se ela ouvir o conselho do tarô e agir,
ele deixa de ser um oráculo determinista. Ela
acaba usando o potencial do tarô para ajudá-la
a tomar decisões”, explica.
O oráculo auxiliou a cantora Amabile Barel, 24 anos, a tomar uma importante decisão.
“A primeira vez que tirei tarô estava um pouco
receosa, pois tinha medo de ouvir previsões que
não estivesse preparada. Talvez minha maior expectativa na consulta era saber se eu estava indo
pelo caminho certo nas minhas escolhas feitas
naquele momento”, explica. Na época, pensava
em mudar de carreira, mas ainda não tinha certeza de sua decisão. Quando as cartas apontaram
que aconteceriam grandes mudanças quanto a
profissão, a jovem ficou mais segura em relação
a suas escolhas.
Jornal Laboratório do Curso de Jornalismo - PUC-SP
A “Jornada de Autoconhecimento” foi
outro modo o qual Luna encontrou de ajudar seus
clientes. “Em um dos meus momentos de ócio
criativo, eu comecei a perceber que, em muitas
consultas, as pessoas estão deficientes em autoconhecimento e em desenvolver intuição. Na própria
jogada delas, o tarô pede para ouvir o guia interior
dela, para se conectar com algo superior, que não
seja necessariamente uma religião” explica. Os
arcanos maiores começam com a carta do Louco
(a carta 0) e terminam com a do Mundo. As cartas
do meio são a jornada que representa a evolução
desse processo, nosso amadurecimento: o Louco
seria o início de um ciclo, e o Mundo a realização
plena dentro daquele ciclo. Ao longo de nossa
vida, temos várias jornadas do Louco, se iniciamos
um trabalho novo, por exemplo.
“Essa jornada de autoconhecimento seria
um trabalho de quatro dias. Na primeira consulta
a pessoa tiraria a carta que representa o momento
da jornada dela - que não necessariamente vai
começar com o Louco e terminar com o Mundo. O
objetivo é ver em que processo da jornada ela está
e onde ela precisa chegar naquele momento. E, ao
longo disso, vamos trabalhando com os arcanos
que tem no meio. Eu sou apenas uma facilitadora
desse processo de autoconhecimento”, explica.
Outro instrumento de autoconhecimento
que Luna considera essencial é o mapa astral. Há
dois mapas que prepara: o natal e o previsional.
O mapa astral natal é o como um manual de
Fevereiro 2014
conhecimento de uma formação
ou de herança familiar
instruções: onde está seu sol é onde estão suas
maiores realizações, onde está sua lua são as coisas
que gosta de fazer e onde você obtém segurança,
por exemplo. “O seu mapa explica como você se
expressa, suas grandes dificuldades, limitações.
O mapa é um grande instrumento de autoconhecimento, porque não adianta você querer ser
uma pessoa diferente daquilo que você é. Você
vai melhorar suas limitações com as suas próprias
potencialidades, não tentando fazer com que as
limitações virem potencialidades”, explica.
Já o mapa astral previsional vai falar de uma
previsão de um ano exatamente, além de abordar um ano e meio atrás da consulta, captando
energias que a pessoa já vem vivendo há um ano
e meio. Este mapa fala dos trânsitos planetários
que estão indo de encontro com os planetas do
seu mapa, então ele fala de tendências que podem acontecer na sua vida. Com ele, é possível
administrar um pouco melhor as consequências
desses trânsitos. “Outro dia, eu tinha um cliente
pra atender mapa astral e previsional. Quando ele
chegou, falou: ‘eu preciso que você leia tudo em
uma hora, porque eu marquei um cliente e ainda
tenho que depois demitir um funcionário’. Depois
que começamos o previsional, perguntei: ‘tem
alguma ação trabalhista?’ ele disse que não. Falei
que era melhor avisar o cliente que ele ia atrasar
e não demitir o funcionário naquele dia, porque
o previsional apontava processos na justiça com
relação à ação trabalhista. Então, sabendo que
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fica livre dele”, explica. Quando não há recompensa material, a taróloga ou cartomante acaba
assumindo os problemas e o carma do cliente, ou
seja, se responsabilizando por aquilo que ele faz
ou deixa de fazer. “Quando a pessoa paga, sua
responsabilidade acabou, porque fica claro que
ela autorizou você a fazer esse movimento. isso
fez muito sentido para mim e pode ser que seja
uma das questões do limite, porque estabelece um
limite profissional mesmo”, conclui.
Luna também estabeleceu alguns limites
para ler para amigos e familiares. “Não leio para
a família, já li e me arrependi. É diferente como o
familiar lida com você, ele não está vê um profissional interpretando o que saiu na jogada, mas sim
um parente se metendo nos assuntos dele”, explica. Para alguns amigos muito íntimos, também não
marca consulta. “Se eu sei muito sobre as questões
íntimas daquele amigo e tenho opiniões pessoais,
prefiro não tirar as cartas, porque minha opinião
pessoal pode se misturar com aquela jogada”.
Para outros amigos, atende normalmente, com
hora marcada, nos mesmos lugares que costuma
atender e cobra os mesmos valores.
Para Luna, cada jogada nova é um novo
aprendizado. “Um tempo depois de cada consulta, já não me lembro o que falei em detalhes,
me lembro do tema de cada cliente, mas sem
aprofundamentos e isso é muito bom, pois o
profissional não pode se envolver com as questões
dos clientes. Muitos casos me marcam, pois em
algum momento de cada jogada, algo tem a ver
comigo. É como se alguma mensagem de algum
cliente também servisse para mim. Eu aprendo
com todas as jogadas um pouquinho mais sobre
mim. Deve ser por isso que não tenho necessidade
de abrir as cartas para mim mesma, pois todos os
dias eu tenho algumas respostas fragmentadas
para questões presentes”, responde. Às vezes
a taróloga tira as cartas para si para estudar e
avaliar novas jogadas, mas não faz isso de forma
oracular. Quando tem alguma questão de muito
envolvimento pessoal, procura outros profissionais
para ler as cartas. Quando me mostrei surpresa
com isso, respondeu: “é normal entre a gente.
Quando estou muito envolvida afetivamente, é
como se tivesse um bloqueio, e vou procurar meus
professores”.
Sobre algum caso que a marcou especificamente, Luna contou quando a amiga de uma
amiga dela teve sua cachorra roubada de um Pet
Shop. “Fiquei sabendo disso através das redes sociais. Me senti muito solidária e por alguma razão,
essa história mexeu comigo. Não resisti e tirei o
tarô, mesmo sem conhecer a menina”, confessa.
Nas cartas, apareceu que o animal estava bem,
sendo bem tratado, porém escondido e que pediriam o resgate. “Entrei em contato com a dona
para dizer isso. Quando estava escrevendo, achei
leviano de minha parte dar esse detalhe do resgate
Eu gosto de estar com as pessoas, de olhar para o outro, entender a
alma daquele que está na minha frente, ter uma conexão de alma com a
outra pessoa
“Sempre tive interesses em questões místicas. Tinha uma intuição muito aguçada,
tanto é que meus amigos me chamavam
bruxinha”
Reprodução
A carta do Louco marca o início de
um novo ciclo; a do Mundo, o fim
© Bia Avila
a pessoa ia processar, o melhor era não chegar
correndo e manda embora, mas sim esperar e
levantar a documentação dela, ver se estava tudo
em ordem com ela para as consequências serem
menos drásticas”, conta.
Agora que se dedica exclusivamente a isso,
Luna atende cerca de cinco clientes por semana.
Como não gosta de misturar energias na hora de
ler as cartas, prefere um ambiente neutro. “Atendo
na livraria Millenium, no Espaço Evoé e por Skype.
Se atendesse em minha casa, ia misturar muito as
energias, porque acabo trazendo para dentro de
minha casa as questões do meu cliente. Um lugar
neutro é sempre melhor”, opina. Para fazer a leitura de cartas, cobra R$152,00, e para os mapas
astrais R$180,00. “No ano que vem vou precisar
fazer um reajuste, porque estou cobrando abaixo
da média e meus amigos do meio estão brigando
comigo”, conta. Neste final de ano, está com a
agenda cheia: “é a época em que mais aparecem
clientes, todo mundo quer fazer um balanço e um
fechamento de 2013”.
Quanto às questões mais frequentes, Luna
aponta: trabalho e área afetiva. “Atendo mais
mulheres, mas tenho muitos clientes homens. E
tenho ficado surpresa, por incrível que pareça, os
homens também tem questões afetivas. Muitos
vão com esse intuito”, brinca. Seus clientes sempre
retornam, além de indicarem a taróloga para outras pessoas. “Por esse retorno, tenho certeza que
minha consulta já ajudou meus clientes. Muitos me
ligam, contando o que aconteceu. Outros chegam
na consulta muito ansiosos e, ao término, me
dizem o quanto foi bom e o quanto estão aliviados”, afirma. Amabile, que mês passado realizou
sua segunda consulta, afirmou que a profissional
a surpreendeu. “Como já a conhecia antes de me
consultar, já tinha excelente referência dela como
pessoa. Como taróloga, ela me impressionou
mais ainda, pois muitas coisas do que eu estava
passando saíram nas cartas, e fez com que eu
tivesse uma visão mais ampla de tudo que estava
acontecendo comigo”, conta.
E por que as pessoas querem tanto saber
sobre o futuro? “Então, acho que isso sempre
foi muito atraente, saber o futuro, conhecer a si
mesmo, em todas as idades. Todo mundo tem essa
curiosidade: sempre foi e sempre vai ser assim”,
Luna responde. A profissional, no entanto, aponta
uma mudança: “tenho ficado muito contente com
o fato que as pessoas estão buscando autoconhecimento. O meu intuito como taróloga e astróloga
é levar um instrumento de autoconhecimento para
as pessoas, autoconsciência. Pelos meus clientes,
vejo que eles tem muito essa vontade de ter essa
clareza e aprender mesmo do que simplesmente
saber o que vai acontecer no futuro”. Quando
percebe que o cliente quer fazer consultas muito
seguidas, Luna se recusa a atender. “Isso significa
que ele está usando o tarô como um instrumento
de apoio, uma muleta, o que ele não é. Não atendo
mesmo”, afirma.
Essa postura inclusive ajudou a profissional a trabalhar com as cartas sem provocar essa
dependência que seus amigos tinham quando
começou a estudar tarologia. “O significado dos
arcanos é muito profundo, se trata de arquétipos
muito profundos. Usar o tarô somente como um
instrumento oracular é usar o mínimo que ele pode
te oferecer”, explica. Outro fator que a ajudou a
estabelecer tais limites foi começar a cobrar por
consulta. “Um guru, amigo meu, falou que nesse
trabalho, onde você fala da vida de uma pessoa,
você está entrando no mundo dela, especificamente em uma parte que ela não consegue acessar
sozinha, no carma dessa pessoa. Quando ela te
recompensa materialmente, é como se ela estivesse dando aval para entrar nesse carma, e você
Jornada dos Loucos
O Tarô de Marselha é considerado um dos baralhos mais clássicos e conhecidos. Ele é um padrão, a partir do qual todos os outros tarôs derivam. De origem francesa, o baralho é dividido em dois grupos: são 22
Arcanos Maiores e 56 Menores, totalizando 78 cartas. Os Arcanos Menores são divididos em quatro naipes:
paus, espadas, copas, e ouros. Cada um dos naipes tem 13 cartas, que contam de Ás (1) ao 10, além das três
figuras da corte: Valete, Rainha e Rei, como o baralho comum. Já os Arcanos Maiores são 21 cartas numeradas e uma sem numeração, que é a carta do Louco. Esses arcanos contam a história de um ciclo de vida.
O Louco representa o início desse ciclo, o começo de uma nova jornada. A imagem da carta representa um
jovem caminhando, sempre olhando de forma despreocupada para frente. Ela representa espontaneidade,
impulsividade e, principalmente, a experiência de ultrapassar limites. O último Arcano Maior é o Mundo, a
carta XXI. Ela representa o êxito e a plenitude que se alcança no fim de um ciclo. A personagem da carta
normalmente está flutuando, e é rodeada por símbolos que representam o equilíbro entre o plano celeste,
o físico, e espiritual.
Jornal Laboratório do Curso de Jornalismo - PUC-SP
Fevereiro 2014
ter técnica, conhecimento, para saber o que você
está fazendo, seja esse conhecimento de uma
formação ou de herança familiar”, explica.
Ainda há espaço no mercado de trabalho,
mas apenas para os bons profissionais. “Os clientes
estão mais criteriosos com relação ao profissional,
porque hoje existe uma variedade de pessoas e
há a possibilidade de escolher e saber em quem
confiar”, explica. Por mais que a pessoa esteja ali
para buscar ajuda, para Luna, ela própria sabe se
aquilo que o tarólogo diz é verdade ou não, mesmo
que de forma inconsciente. “É interessante porque
atendo muitas pessoas que, depois do atendimento,
falam que consultaram outros profissionais e que
eles falaram coisas totalmente diferentes e acham
que eu é que tenho razão. Às vezes a pessoa não
consegue fazer o movimento que ela precisa, mas
ela sabe o que precisa fazer, no inconsciente”.
Arrependimentos? Luna não tem nenhum.
“Comecei a trabalhar tão de paraquedas, e a coisa
está fluindo tanto, que parece que eu sempre fiz
isso na vida. Não consigo lembrar de quando eu
trabalhava no mundo corporativo”, explica. “Para
mim, trabalhar é um prazer, é como se eu estivesse
brincando. Eu gosto de estar com as pessoas, de
olhar para o outro, entender a alma daquele que
está na minha frente, ter uma conexão de alma
com a outra pessoa. É bem interessante nesse
sentido, porque acho que tenho uma troca interessante com os clientes”.
© Bia Avila
para uma pessoa que está passando por isso e não
me pediu para olhar as cartas. Omiti essa parte”.
A dona da cachorra respondeu agradecendo, pois
estava perdendo a esperança. Alguns dias depois,
o animal foi recuperado, através de uma solicitação
de resgate.
O dia-a-dia de Luna é praticamente voltado
para o tarô. “A primeira coisa que eu faço quando
eu acordo é alimentar o Facebook com alguma
jogada de tarô. Depois, tenho que marcar as
consultas na agenda, fazer os mapas astrais antes
dos atendimentos, frequento aulas de astrologia
terças e quintas. Além disso,os amigos também
acabando sendo amigos desse meio... Estou imersa
nesse mundo o tempo todo”, conta.
Para aprimorar seu lado profissional, Luna
nunca para de estudar o tarô. Mesmo que não
faça cursos voltados para a área no momento,
sempre lê algum livro diferente, tenta fazer uma
abordagem diferente sobre as cartas. “É um
universo que não se acaba”. Para ser uma boa
profissional, além de estudo, é necessário ser
imparcial durante a consulta - ler exatamente o
que as cartas estão dizendo, sem mentir ou omitir
nada. “O importante é saber se colocar, falar o
que é preciso falar da melhor maneira possível”,
aconselha. “A gente tem que estar muito bem
sempre. Se eu tiver uma enxaqueca, por exemplo,
eu desmarco as consultas do meu dia. Para ler um
tarô, não podemos ter apenas intuição, tem que
A carta Mundo representa êxito,
plenitude e equilíbrio. “É o nosso
objetivo no mundo”, mostra a taróloga
Para atender os clientes de tarô, Luna
usa a mandala astrológica, tiragem que
permite conhecer vários campos da vida
do cliente, como profissional, espiritual,
amoroso
porque o racional só leva as
pessoas para a materialidade
Religião x Tarô – Católica, Luna vê um
conflito entre sua religião e sua profissão, embora
não o sinta. Quando eu decidi fazer astrologia,
ela estava ajudando no grupo de crisma da igreja
e um dos coordenadores, uma pessoa ligada ao
mundo místico, não falava de aspectos esotéricos
para o grupo, mas apenas com Luna. “Tínhamos
uma relação extra-grupo onde a gente conversava
sobre assuntos místicos, premonições, coisas que
a gente tinha em comum. Tais aspectos não eram
aceitos dentro da religião e, quando eu falei que
ia fazer astrologia, eu saí do grupo, porque senti
que não ia ter disponibilidade de horário e também
porque não queria ficar dando explicações sobre
a minha vida e meus caminhos. A minha fé é só
minha, minha conexão com Deus e como eu ouço
ele é pessoal - porque ser espiritual não é falar
com Deus, é ouvir Deus. Acredito, pela fé que eu
tenho, que o caminho que eu cheguei veio Dele,
e não de outro lugar”, explica. Quando saiu do
grupo, seu amigo não queria que ela falasse para
o grupo que ia fazer astrologia. Como achava que
não tinha nada o que esconder, Luna comentou
com outra pessoa da Igreja, um tempo depois,
que estava fazendo astrologia. “E aí essa pessoa
me perguntou, ‘mas voce acredita nisso?’ e eu
respondi que sim, e ela falou ‘tudo bem, eu sei
que você tem interesse, mas voce tem uma crença
nisso?’. Eu respondi ‘olha, a minha crença é em
Jesus Cristo. Astrologia é uma outra coisa, não
substitui minha fé, pelo contrário, me vem Dele’”,
conta. Se tivesse ficado no grupo, a taróloga acredita que haveria conflito.
Livre arbítrio: Para a taróloga, todos temos
um destino a cumprir, mas ao mesmo tempo possuímos o livre arbítrio, que nos permite mudar nosso caminho. “O livro de que eu te falei, ‘O oráculo
de Luna’, mostra bem isso. Na verdade, o destino
é uma coisa que não conhecemos, não podemos
saber se esse é o nosso destino ou não. Mas eu
acredito sim que a gente tem um destino. Se a
gente for pensar em mapa astral, nosso destino
está de algum modo marcado ali, mas o nosso livre
arbítrio pode mudar isso. Se você quiser mudar o
seu caminho, a qualquer momento você pode.
Então acho as duas coisas caminham juntas.
E qual seria a importância desse mundo
mais esotérico, principalmente em um universo
cada vez mais racional? “É, eu acho que o mundo
tem que parar de ser tão racional, porque o racional só leva as pessoas para a materialidade”, opina.
Para ela, o místico deveria ser mais valorizado
do que a razão: “e quando falo em místico, não
falo só de misticismo desvairado, de conversões
loucas, falo de ouvir sua própria intuição. Seus
pensamentos, sua razão vão conduzir sua alma
para esse lugar, e não o contrário”, responde.
Luna defende que a mente não pode dominar o
espírito, ou a intuição. “A fórmula deveria ser ao
contrário. Não é que a gente não tem que ouvir
a razão, ao contrário, a razão tem que trabalhar
em favor da alma. E acho que as pessoas estão
começando a entender esse processo”.
Reprodução
Acho que o mundo tem que
parar de ser tão racional,
Para o futuro, Luna pretende continuar
nessa área. O plano é trabalhar com foco em Astrologia voltada para criança e adolescente e sinastria
(compatibilidade de dois mapas astrais) dos pais,
“para que aprendam a lidar com as diferenças de
seus filhos e a estimular desde cedo suas capacidades e não exigir muito de suas limitações”. A
sinastria também ajuda como cada pai pode obter
melhores resultados com seus filhos em termos de
disciplina, criatividade, estudos, entre outros.
*Colaboração: Thiago Munhoz, Marcela Reis e Júlia Dolce
Jornal Laboratório do Curso de Jornalismo - PUC-SP
Fevereiro 2014
CO N T R A P O N TO
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Por Marcela Millan
© Flávia Kassinoff
CRÔNICA
Pulsações de São Paulo
S
entada em um mesmo banco, vejo inúmeras vidas passarem diante
de mim. A porta se abre e sou inundada por pessoas, que pulsam,
como a cidade. Alguns diriam que andar de metrô é um desafio, e quem sou
eu para negar? Os vagões são sempre lotados, às vezes quentes, quando não
se dá sorte de pegar o trem com ar condicionado – privilégio para poucos
– com poucas estações se comparado com o tamanho da cidade, que nos
impele em uma velocidade atordoante. São trens que parecem se moverem
sozinhos, sempre em frente, nos obrigando a acompanhá-los. Irrefreáveis.
Como nossas vidas. São Paulo corre.
Ali, no meu canto do metrô, observo. E talvez para fugir daquela sensação claustrofóbica do ambiente lotado, me proponho um jogo. Não faço ideia
de quando comecei a fazer isso, mas atualmente já me parece quase natural.
Envolvidas em bolhas particulares, as pessoas parecem deletar a existência de
umas as outras, quase como se buscando sua individualidade em um ambiente
coletivo. Observo. A moça com um fone de ouvido firma o livro – que lê tortuosamente – com as duas mãos, e mal percebe que, não muito longe de si,
um garoto lhe lança olhares. Eles provavelmente nunca se encontrarão, mas
em minha cabeça eu crio uma história.
Não sei se já repararam, mas cada rosto parece ter muito para contar.
Distraídos, olhando para o reflexo da janela ou fixos no celular, em que os
dedos dedilham nervosamente, as pessoas tornam-se introspectivas quando
estão no metrô. Esse é o melhor momento. E é por isso que jogo. Um jogo
simples, talvez idiota, de tentar adivinhar de onde a pessoa veio e para onde
ela vai. Criar-lhe uma vida. Sentado no canto, por exemplo. O garoto não
deve ter mais de seus treze anos, e o funk soa alto em seus fones, ecoando
para fora, incomodando alguns ali. Um funk com uma letra de denúncia, que
ele provavelmente não presta atenção, apesar de estar cansado de ver, na
televisão que sua mãe constantemente deixa ligada, a violência brutal que
acontece nas periferias. Perto de si, um calouro, o corpo todo pintado com as
tintas do trote que acabou de receber, marca no pé a batida da mesma música, que escuta forçadamente pelo som que escorre dos fones alheios. Seus
olhos estão perdidos e imagino que, por detrás daquele sorriso, existe uma
vontade de mudar o mundo. Com palavras. Sim, para mim ele tem cara de
jornalista, e anseia por novas manifestações – as de junho foram sua primeira
experiência, e reanimaram os ânimos daquele que, um dia, pensou que São
Paulo nunca sairia da letargia.
A mulher de saia jeans na altura dos joelhos parece a clássica trabalhadora doméstica. Naquele fim de tarde ela volta para casa pronta para encontrar
32
CO N T R A P O N TO
com os três filhos e conversa com uma amiga, que faz faxina no apartamento
vizinho do que ela é responsável. Ela é feliz, apesar da vida difícil. E sonha com
uma vida com mais oportunidades para seus garotos. Um já largou o ensino
público, não realmente por opção.
O trem se move. Acelera. Para. Alguns descem, outros continuam. E eu
observo. Agora uma freira embarca, e o mesmo garoto que antes escutava funk
se levanta, dando espaço para que ela possa se acomodar. Todos se movem,
e a cidade junto com eles. É, São Paulo nunca para.
A gorda se vê limitada por um espaço que não pensa nela. O negro
recebe olhares, mas finge que não nota. São Paulo oprime. Condena, mesmo sem motivos. Mas sempre segue adiante. Mais uma vez, as portas se
abrem, e dessa vez um vendedor parece estar dentre aqueles que entram,
os braços carregando duas grandes sacolas cheias de inúmeras garrafinhas
de água mineral. “Pra acabar, minha senhora!”. Avança, negocia, arrisca
um inglês cati-dogí ao ser chamado por um casal de turistas que, se antes
eram tão brancos que mais pareciam transparentes, agora tinham a pele
vermelha, castigada pelo sol e falta de protetor solar. Esses, penso, passaram o dia andando pela Paulista.
Meus olhos vagam pelas faces daquele trem, parando em uma ou outra.
Raramente cruzam com outros olhares. Encontram o sorriso de uma criança,
a roupa complicada e colorida de um cosplayer – definitivamente indo para a
Liberdade. Fixam-se em uma pasta, segurada por uma mão com um relógio
de pulso e depois escapam para a mochila cheia, quase explodindo, de uma
adolescente. O que será que tinha ali...? Antes que eu pudesse pensar, escuto. Minha estação chega e eu finalmente me levanto, saindo dali. Sigo em
frente, provavelmente sem que ninguém me note, e guardo para mim cada
uma das histórias.
Do lado de fora, apresso o passo, sabendo que estou minimamente
atrasada – como sempre todos parecem estar, na realidade, nessa cidade
que persegue o relógio. Passo correndo e vejo São Paulo. Os carros, postes, faixa, prédios, lojas. Trânsito. Em determinado momento, esbarro em
alguém, e no meio da desculpa atrapalhada, ergo meu olhar. Dessa vez,
eles cruzam com outros olhos, e eu sorrio largamente. Vejo São Paulo, e
ela é feita de pessoas.
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Fevereiro 2014
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