VIDA, PAIXÃO E GLORIFICAÇÃO DO CORDEIRO DE DEUS”
As Meditações de Anna Catharina Emmerich (1820-1823)
Aquele que deseja avançar de virtude em virtude, de graça em
graça, deve meditar continuamente na Paixão de Jesus...
Não há prática mais proveitosa para a inteira santificação da alma
do que a freqüente meditacão nos sofrimentos de Jesus Cristo.
São Boaventura
MIR EDITORA
São Paulo
2004
PREFÁCIO
As Emocionantes e admiráveis narrativas da Paixão e Morte de Jesus
Cristo, feitas pela Religiosa Agostiniana Anna Catharina
Emmerich, resultantes de suas profundas meditações quaresmais,
no decurso de 1820 e 1823, sem que conste discrepância alguma dos
respectivos textos evangélicos, constituem uma demonstração
plausível da realidade dessas visões sobrenaturais.
Não se trata de fatos extraordinários submetidos às investigações
científicas, mas sinceramente apreciados pela razão calma,
refletida, que se conduz pelas leis do raciocínio às provas de
sua veracidade. É verdade que a doutrina católica ordena e o bom
senso exige que não se devem aceitar as visões ou revelações de
ordem sobrenatural, sem primeiramente fazê-Ias passar pelo crivo
de uma análise sensata, escrupulosa, submetida ao juízo da
Igreja, evitando que se tomem suscetíveis de ser reduzidas às
proporções de fenômenos naturais.
Como é de esperar, deve ser esse o ponto de partida das
investigações sobre a realidade das extraordinárias visões de
Catharina Emmerich.
Ora, é critério fundamental desse estudo conhecer quais os sinais
característicos da origem das visões sobrenaturais.
Primeiramente, se deve notar que a alucinação se distingue da
sensação. Se estes dois fenômenos se confundem, como efeito
imediato e íntimo de uma modificação material dos órgãos dos
sentidos, entretanto, profunda é a sua distinção, porquanto a
alucinação se passa na imaginação e, portanto, é subjetiva, e a
sensação se dá no sentido e vem de um objeto exterior, é objetiva.
A sensação está intimamente ligada, em sua totalidade, à ação do
objeto, que é a causa. O objeto é a fonte essencial, é a medida.
Suprimindo o objeto, desaparece a sensação. A sensação e a ação
do objeto formam um conjunto perfeitamente unido: o objeto é o
sinete e a sensação a impressão. É com sinais contrários que se
reconhece a alucinação. Por não ter necessidade, para agir, das
vibrações que constituem a ação própria do objeto sobre o sentido,
conta apenas com a disposição puramente subjetiva dos tecidos
nervosos do organismo vivo.
É certo que os fenômenos do mundo sensível estão sujeitos às leis,
de que nenhum poder natural pode dispensá-Ios. Os fantasmas da
alucinação, ao contrário, estão sempre em oposição a estas leis
e de um modo ridículo, como se observa constantemente. É a
condição, o efeito próprio da alucinação, de que não se conhece
exceção entre todos os fatos rigorosamente constatados.
Escritores notáveis, Dirheimen, Schmoeger, que se ocuparam de
estudar, com imparcialidade, as visões de Catharina Emmerich.
Casales e Clemente Brentano, que traduziram a narração da vida
e das cenas dolorosas da Paixão do Salvador, mostraram-se
admirados e edificados da lealdade escrupulosa de Emmerich, que
não permitiu acrescentar nem modificar o que ela viu e contemplou
na integra, em obediência às suas revelações. Salientou-o ainda
mais a abnegação de todo e qualquer elogio que se lhe dirigia.
Na análise psicológica dos fatos visionários, os citados autores
mostram que as verdadeiras sensações do sobrenatural, em
Catharina Emmerich, se achavam inteiramente ligadas aos objetos
que nelas imprimiam as suas imagens, conservando os órgãos de
sensação uma certa independência, que facilitava a ação da
vontade na recusa da influência de qualquer agente sensível com
disposição anormal. Somente via, entendia e tocava o que lhe
parecia ver, entender e tocar em plena objetividade.
Ora, as alucinações não dependem igualmente de quem as
experimenta. Penetram profundamente no íntimo dos órgãos
sensórios apossam-se do sistema nervoso e da imaginação, sendo
incapaz todo o es forço da vítima de poder dissipá-Ias. São
verdadeiras obsessões.
A cultura do espírito e, principalmente, alguns dons superiores
da imaginação, podem manter certas regularidades nas concepções
ou cenas preparadas sob a forma regularizada imaginativa. Tais
fenômenos, porém, não podem ter lugar nos espíritos acanhados e
incultos.
Catharina Emmerich nasceu de pais pobres e camponeses. Aos vinte
oito anos de idade, foi admitida, paupérrima, na comunidade das
Agostinianas, no Convento de Duelmen.
Ao penetrar nos segredos da vida interior, foi assistida da graça
das visões celestiais. É de supor com que ardor espiritual, com
que pureza e santidade contemplou a Vida de Jesus e da SS. Virgem,
expressas em vestes maravilhosas! Como julgar que as cenas
dolorosas da Paixão de Jesus Cristo, que inspiradamente traçou
no quadro prodigioso de suas visões, sejam a criação artística
de uma pobre e ignorante camponesa? O gênio não é a mesma coisa
que a simplicidade, a ignorância e a ausência dos dons da
imaginação. Ora, Catharina Emmerich, que se saiba, jamais
procurou manifestar, como natural expansão de sua imaginação sem
cultura, as sublimidades da Divina Redenção nos sofrimentos de
Jesus sem uma intervenção sobrenatural. Prefaciando, embora
modestamente, quando outros o poderiam fazer melhor, este livro,
contendo as visões de Catharina Emmerich sobre a Paixão e Morte
de Jesus, o nosso único intuito não é apreciar o valor intrínseco
desse trabalho, que contém o produto sobrenatural de visões
divinas, já reconhecidas pelo testemunho consciente e pelo
critério judicioso, com as devidas reservas da Igreja.
Apenas nos limitamos, por considerar oportuno, à exposição de
diversas razões sobre o poder da imaginação, até onde será
suscetível de chegar o alcance do bom senso vulgar. Em todo o
correr da leitura deste livro, vê-se claramente que não pode ser
uma obra de exclusiva imaginação ou uma conseqüência de
alucinação, pois que se trata de representações sensíveis, que,
anteriormente, não foram percebidas pelos sentidos. Ou melhor,
não pode ser sintomática de alucinação toda a representação
sensível, perfeitamente ordenada, cujos elementos, e não o tipo,
foram percebidos pelos sentidos. A imaginação entregue a si mesma é condenada à desordem; não podia, precedentemente, combinar
esses elementos na calma e sob a direção da razão.
A representação sensível combinada dos fatos observados, as cenas descritas até então ignoradas, é injustificável que sejam
resultados de alucinações.
Não temos a pretensão de aplicar todos esses casos à série das
visões de Catharina Emmerich, podendo, entretanto, dizer que não
se teriam desprezado essas regras na crítica de tais revelações
sob o prisma do sobrenatural, porque seria faltar a ciência, a
mais elementar, não menos que o bom senso, em face da doutrina
católica.
Apesar deste livro não ter por objetivo doutrinar sobre um
assunto que ainda não conta com o assentimento pleno e definitivo
da Igreja, entretanto, não se lhe pode, negar que revela, com
novos raios de luz, a verdade da mística divina, que conduz a alma
cristã à sua união com Deus, na contemplação assídua do augusto
mistério da Redenção. Pelo que se torna recomendável o piedoso
livro à edificação dos fiéis.
Todo o exposto está subordinado ao juízo decisivo da suprema
Autoridade Eclesiástica.
M. N. CASTRO
INTRODUÇÃO
Quando os Apóstolos S. Pedro e S. João foram levados ao Grande
Conselho, por causa do milagre operado no paralítico de
nascimento, disse S. Pedro: "Este (Jesus) é a pedra que vós,
construtores, rejeitastes; ei-Io tornado a pedra angular. Não há
em nenhum outro salvação; pois nenhum outro nome foi dado aos
homens que os possa tornar felizes". (Atos. 4, 11-12).
Destas palavras se deduz o lugar importante que deve ocupar o
divino Salvador, nos corações daqueles que por Ele querem chegar
ao Pai celeste e à eterna bem-aventurança. Ao seu santíssimo amor
sejam, pois, dedicadas estas páginas. Tratarão d’Ele, da sua vida
santa, descrevendo-lhe principalmente a sagrada Paixão e Morte,
que aceitou por amor de nós, para fazer-nos justos e filhos do
Pai celeste, nós que eramos pecadores.
Os impressionantes eventos pelos quais foi realizada esta
dolorosa, mas também grandiosa obra da nossa salvação, estão
descritos em letras de ouro no Livro dos livros, a Bíblia Sagrada,
escrita por inspiração do Divino Espírito Santo, o Espírito da
verdade, que dirigiu o escritor, de modo que tudo o que escreveu,
com todo o direito é considerado e venerado como palavra de Deus.
Sentimo-nos obrigados a declará-Io, antes de apresentar ao
estimado leitor uma das obras póstumas de Clemente Brentamo, na
qual nos relata o que uma antiga religiosa, Anna Catharina
Emmerich, lhe tinha narrado da vida e morte de Nosso Senhor. A
Escritura Sagrada vale mais do que tudo e não há outro livro, ainda
que pareça vir de inspiração divina, que iguale o valor das
palavras da Escritura Sagrada, cujo autor Deus preservou de todo
e qualquer erro, o que não podemos afirmar dos que contaram mais
tarde visões celestiais ou dos que as escreveram.
Contudo, não somos dos que, por este motivo, desprezam as visões
das almas privilegiadas. Deste modo, cada um seguirá a opinião
que quiser. Pode examinar com toda a liberdade os motivos para
a credibilidade destas visões e aproveitá-Ias nas suas
meditações, ou pode deixar de dar-Ihes qualquer atenção. No
último caso não transgredirá nenhum mandamento de Deus e,
portanto, não pecará, mas renunciará deste modo, ao proveito
espiritual que poderia delas tirar. Deus e a Igreja deixam-nos
plena liberdade nestas coisas, contanto que creiamos o que a
santa Igreja nos manda crer e que é para todos nós o único caminho
da eterna bem-aventurança.
Grande número de homens doutíssimos examinaram as visões da
piedosa Anna Catharina Emmerich e reconheceram-lhe a
credibilidade, com palavras calorosas. Citamos apenas algumas
sentenças da opinião de Frederico Windischmann, professor tão
piedoso como douto, mais tarde Vigário geral do arcebispado de
Muenchen Freising:
"A Providencia Divina escolheu em Anna Catharina um Instrumento
que - preparado com os poucos conhecimentos da instrução rural,
familiarizada, como se achava, somente com livros de devoção
ordinários, não versada na Escritura Sagrada, privada até
propriamente de uma direção espiritual, - não podia apresentar
ao divino assunto um vaso humanamente tão bem formado como S.
Teresa, Maria de Agreda e outras; por isso mesmo era muito menos
capaz de fazer impostura, querendo imitar aqueles grandes
exemplos. Pelo contrário, para provar claramente a verdade do dom
divino, deviam as visões da jovem camponesa, despidas quase
inteiramente da parte subjetiva e mística, no sentido comum desta
palavra, referir-se somente ao objetivo da vida real de Jesus
Cristo. Mas, justamente por isso lhe foi dado um assunto, em que
não há lugar para fantasia puramente humana e para os sonhos de
falsa contemplação, os quais, se quisessem imiscuir-se-Ihe,
deveriam causar erros e enganos a cada passo; numa palavra: a
inimitável objetividade da visão, sem reflexões místicas da
vidente, é uma prova evidente da veracidade. Assim a descrição,
às vezes quase fatigante, de pessoas, do respectivo aspecto,
vestuário, costumes de vida; a enumeração de cidades e povoações,
de caminhos e viagens, de regiões, montanhas, rios e lagos: todos
estes detalhes arqueológicos tem o fim providencial: primeiro,
de provar a impossibilidade de invenção, por parte da vidente ou
do seu secretário; segundo, de dar à pessoa de Jesus, aparecendo
e agindo com verdade histórica, um fundo histórico, do mesmo modo
verdadeiro. Dissemos antes que nenhuma reflexão mística e
contemplação subjetiva da vidente escurecia a objetividade das
visões; mas isso não impede que, de vez em quando, resplandeça,
através das pessoas e dos acontecimentos, uma luz maravilhosa de
um mundo superior e que a vidente, como criança singela, nos deixe
contemplar os mistérios mais profundos da Escritura Sagrada e da
doutrina cristã.”
Na presente obra seguimos principalmente o livro "A Paixão de Jesus Cristo", escrito por Clemente Brentano, segundo as suas
anotações, e editado pela primeira vez em 1832. (Cap. 2 - 10).
Dividimos o texto em capítulos, dando-lhe mais títulos. Algumas
Informações de Anna Catharina Emmerich, que somente perturbam a
narração da Paixão de Jesus Cristo, foram eliminadas; outras, de
mais importância, encontrará o leitor no apêndice. Por outro
lado, parecia desejável dar primeiro algumas informações sobre
a família do Divino Salvador, a sua infância e vida pública, até
a instituição do SS. Sacramento, na noite de quinta feira da
Semana Santa. O 1º. capítulo dá um resumo de tudo que a Serva de
Deus viu, em muitos meses, dessa parte da vida de Jesus.
Como, porém, o Divino Salvador mereceu com sua Paixão a glória
da Ressurreição e Ascensão, a vinda do Espírito Santo e a
propagação da Igreja, assim a história completa da Paixão exige
também a narração dos fatos gloriosos da vida glorificada de
Cristo; pois o próprio Salvador disse, no domingo da Páscoa, aos
discípulos, no caminho de Emaús:
"Não era preciso que assim sofresse o Cristo, para depois entrar
na sua glória?" Narramos esses fatos gloriosos (Cap. 11 - 15),
em geral, segundo as visões de Anna Catharina Emmerich, citando-a
às vezes textualmente.
Estranhamos que a serva de Deus mencionasse apenas em
poucas palavras ou até calasse, muitas coisas que a Escritura
Sagrada narra detalhadamente, por exemplo, as belas Palavras que
o Arcanjo S. Gabriel e a SS. Virgem proferiram na Anunciação, como
também a despedida de Jesus na noite da Quinta-Feira Santa, o
sermão de S. Pedro no domingo de Pentecostes, a conversão e as
obras de S. Paulo, etc. Vemos nisso a direção da Sabedoria Divina,
que não faz coisa inútil. Mas para completar a narração,
intercalamos, onde nos parecia conveniente, partes da Escritura
Sagrada.
Deste modo, apresentamos ao leitor a história bastante
completa, apesar de curta, da Vida, Paixão e Glorificação de
Jesus e desejamos ardentemente que concorra para acender e
aumentar a chama de amor e gratidão ao nosso Divino Salvador.
Tendo indicado o fim que visa este livro, queremos na primeira
parte informar ligeiramente o leitor sobre a vida de Anna
Catharina Emmerich, afim de que possa examinar e então resolver,
se deve ou não dar fé às visões da Serva de Deus. Já Clemente
Brentano, para não escandalizar os incrédulos, editou "A Paixão
de Cristo" sob o título de "Meditações". Cada um tem assim a
liberdade de tomar as narrações dessa religiosa sob esse ponto
de vista ou de dar-Ihes fé mais ampla.
Formalmente declaramos, portanto, conforme o decreto de Urbano
VIII, que todos os fatos milagrosos contados neste livro, numa
palavra, tudo que não foi confirmado pela Escritura Sagrada ou
a Santa Igreja, exige somente credibilidade humana. Além disso,
não queremos, de ne nhum modo, antecipar a sentença da Igreja,
dando a alguém o titulo de "santo" ou "bem-aventurado", Damos a
este livro o título de "Vida, Paixão e Glorificação do Cordeiro
de Deus". Aproveitaram-se as seguintes obras:
1. A Dolorosa Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo, Muenchen.
2. Vida da SS. Virgem Maria, Muenchen, 1862.
3. Vida de Nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo. 3º. voI.
Ratisbona, 1858 e 1860.
4. A cópia das notas originais de Clemente Brentano, feita
pelo Revmo. Pe. João Janssen, de saudosa memória, no convento dos
Redentoristas de Gars.
Anna Catharina Emmerich
Resumo de sua vida
Anna Catharina Emmerich, filha de camponeses pobres, mas
piedosos, nasceu na aldeia de Flamske, perto de Coesfeld, na
Westfália, no dia 8 de Setembro de 1774 e foi batizada no mesmo
dia. Desde a primeira infância, não cessou de receber do céu uma
direção superior. Via frequentemente o Anjo da Guarda e brincava
com o Menino Jesus, nos prados e no jardim. A Mãe de Deus, a Rainha
do Céu, apresentava-se-lhe muitas vezes e também os Santos lhe
eram bons e afetuosos amigos. Quando era criança, falava com toda
a simplicidade dessas visões e fatos íntimos, pensando que as
outras crianças vissem e experimentassem o mesmo; vendo, porém,
que se admiravam das suas narrações, começou a guardar silêncio,
pensando que era contra a modéstia falar dessas coisas.
Anna Catharina tinha um gênio alegre e amável; andava, porém,
quase sempre calada e recolhida. Os pais, julgando que fosse por
teimosia, tratavam-na com bastante rigor. Ela conta mais tarde:
"Meus pais muitas vezes me censuravam, mas nunca me elogiavam;
como, porém, eu ouvisse outros pais louvarem os filhos,
julgava-me a pior criança do mundo". Era, contudo, de uma grande
delicadeza de consciência; a menor transgressão afligia-a tanto,
que lhe perturbava a saúde. Quando fez a primeira confissão,
sentia tanta contrição, que chorou alto e foi preciso levá-Ia para
fora do confessionário. Na Primeira Comunhão, cheia de ardente
amor, ofereceu-se de novo, sem reservas, ao seu Deus e Senhor.
No verdor da mocidade, dos 12 aos 15 anos, Catharina trabalhou,
como criada, em casa de um parente camponês, pastoreando
rebanhos; depois voltou à casa paterna. Certa vez, trabalhando
no campo, ouviu ao longe o toque lento e sonoro do sino do Convento
das Anunciadas, em Coesfeld. Contava então 16 anos apenas.
Sentiu-se tão fortemente enlevada com a voz daqueles sinos, que
lhe pareciam mensageiros do Céu, convidando-a para a vida
religiosa e tão grande lhe foi a comoção, que caiu desmaiada e
foi levada para casa, onde esteve, por muito tempo, adoentada.
Para conseguir mais facilmente admissão num convento, foi durante
três anos trabalhar em casa de uma costureira, em Coesfeld,
economizando assim 20 thalers (cerca de 3 libras Inglesas).
Depois se mudou para a casa do piedoso organista Soentgen,
esperando que, aprendendo a tocar órgão, se lhe facilitasse a
entrada para um Convento. Mas a pobreza da família de Soentgen
inspirou-lhe tanta compaixão, que, renunciando a tocar órgão,
trabalhava na casa como criada, dando até as suas economias para
aliviar a miséria do lar. "Deus deve ajudar agora", disse depois
à mãe, "dei-lhe tudo, Ele saberá socorrer-nos a todos.”
O bom Deus não deixou de ajudá-Ia, ainda que Anna Catharina só
com 29 anos visse realizado o seu desejo de entrar para um
convento. Quatro anos antes recebeu da bondade de Deus uma graça
especial. Estava de joelhos na igreja dos padres Jesuítas, em
Coesfeld, meditando e rezando diante de um crucifixo. "Então vi,
conta ela mesma, vindo do Tabernáculo, onde se guardava o SS.
Sacramento, o meu Esposo celeste em forma de um jovem
resplandecente. Na mão esquerda trazia uma grinalda de flores,
na direita uma coroa de espinhos; apresentou-mas, ambas, para eu
escolher. Tomei a coroa de espinhos, Ele a pôs na minha cabeça
e eu a apertei com ambas as mãos; depois desapareceu e voltei a
mim, sentindo uma dor veemente em torno da cabeça. No dia seguinte
a minha testa e as fontes, até as faces estavam muito inchadas
e sofria horrivelmente. Essas dores e a inflamação voltaram
muitas vezes. Não notei sangue em volta da cabeça, até que as
minhas companheiras me induziram a vestir outra touca, porque a
minha já estava cheia de manchas vermelhas, ferrugentas.
Como Anna Catharina não tinha mais dote, ficaram-lhe fechadas as
portas dos Conventos, segundo o pensamento dos homens. Mas Deus
ajudou-a, como esperava. Clara Soentgen, a filha do organista,
sendo também organista perfeita, foi de boa vontade recebida no
convento das Agostinhas, em Duelmen. Soentgen, porém declarou
então que deixava entrar a filha somente sob a condição de que
admitissem também Anna Catharina. Em conseqüência disso,
entraram as duas jovens para o Convento, em 18 de Setembro de
1802.
O tempo do noviciado foi para Anna Catharina uma verdadeira escola da cruz, porque ninguém lhe compreendia o estado d'alma.
Sofria, porém, tudo com paciência e amor, observando
conscienciosamente a regra da Ordem. No dia 13 de Novembro de
1803, um ano depois de começar o noviciado, fez os votos solenes,
tornando-se esposa de Jesus. O Esposo divino cumulou-a de novas
e abundantes graças. "Apesar de todas as dores e sofrimentos",
disse ela, "nunca estive tão rica no coração; minh'alma
transbordava de felicidade. Eu vivia em paz, com Deus e com todas
as criaturas. Quando trabalhava no jardim, vinham as avezinhas
pousar sobre minha cabeça e meus ombros e cantávamos juntas os
louvores de Deus. Via sempre o meu Anjo da Guarda ao meu lado e,
ainda que o mau espírito me assustasse e agredisse, não me podia
fazer mal. O meu desejo do SS. Sacramento era tão irresistível,
que muitas vezes deixava de noite a minha cela, para ir rezar na
igreja, quando estava aberta; se não, ficava ajoelhada diante da
porta ou perto do muro, mesmo no inverno ou prostrada no chão,
com os braços estendidos e em êxtase. Assim me encontrava o
capelão do convento, Abbé Lambert (sacerdote francês, exilado da
pátria, por não prestar juramento exigido pela constituição
atéia), que tinha a caridade de vir mais cedo, para dar-me a
sagrada Comunhão. Mas, logo que se aproximava para abrir a igreja,
eu voltava a mim, indo depressa à mesa da Comunhão, onde achava
o meu Deus e Senhor.”
Como tantos Conventos, no princípio do século 19, também o
Convento de Agnetenberg foi fechado a 3 de Dezembro de 1811. As
piedosas freiras foram obrigadas a abandonar, uma após outra, o
querido mosteiro. Anna Catharina, doente e pobre, ficou até a
primavera seguinte, quando se mudou para uma pequena casa em
Duelmen. No outono do mesmo ano (1812), lhe apareceu de novo o
Divino Salvador, como um jovem resplandecente e entregou-lhe um
crucifixo, que ela apertou com fervor de encontro ao coração.
Desde então lhe ficou gravado no peito um sinal da cruz, do tamanho
de cerca de três polegadas, o qual sangrava muito, a princípio
todas as quartas-feiras, depois nas sextas-feiras, mais tarde
menos freqüentemente. A estigmatização deu-se-lhe poucos dias
depois, a 29 de Dezembro. Nesse dia, às 3 horas da tarde, estava
deitada, com os braços estendidos, em êxtase, meditando na
Sagrada Paixão de Jesus. Viu então, numa luz brilhante, o Salvador
crucificado e sentiu um veemente desejo de sofrer com Ele.
Satisfez-se-Ihe esse desejo, pois saíram logo das mãos, dos pés
e do lado do Senhor raios luzidos cor de sangue, que penetraram
nas mãos, nos pés e no lado da Serva de Deus, surgindo logo gotas
de sangue nos lugares das chagas. Abbé Lambert e o confessor da
vidente, Pe. Limberg, viram-nas sangrar dois dias depois, mas com
sábio propósito fingiram não dar importância ao fato, na presença
da Serva de Deus. Ela mesma procurava esconder os sinais das
chagas, o que lhe era fácil, porque desde o dia 2 de Novembro de
1812 estava de cama, adoentada. Desde então não pôde mais tomar
alimento, a não ser água, misturada com um pouco de vinho, mais
tarde só água ou, raras vezes, o suco de uma cereja ou ameixa.
Assim vivia só da sagrada Comunhão. Esse estado e a
estigmatização tornaram-se públicos na cidade, em Março de 1813.
O Vigário de Duelmen, Pe. Rensing, encarregou dois médicos, os
Drs. Wesener e Krauthausen, como também o confessor, de fazerem
um exame das chagas, que freqüentemente sangravam. Os autos foram
mandados à autoridade diocesana de Muenster, a qual enviou o Rev.
Pe. Clemente Augusto de Droste Vischering, mais tarde Arcebispo
de Colônia, o deão Overberg e o conselheiro medicinal Dr. von
Drueffel a Duelmen, para fazerem outra investigação, que durou
três meses. O resultado foi a confirmação da verdade das chagas,
da virtude e também o reconhecimento do caráter sobrenatural do
estado da jovem religiosa.
Também a autoridade secular, querendo examinar e "desmascarar a
embusteira”, mandou, em 1819, uma comissão de médicos e
naturalistas; isolaram-na por isso em outra casa, rigorosamente
observada, do dia 7 a 29 de Agosto, o que lhe causou muita
humilhação e sofrimento; também o resultado desse exame lhe foi
favorável.
No ano anterior, viera visitá-Ia pela primeira vez o poeta
Clemente Brentano, recomendado pelo deão Overberg; a 17 de
Setembro ele a viu pela primeira vez. Ela, porém, já o tinha visto
muito antes, nas visões e recebido ordem do Céu para comunicar-lhe
tudo. "O Peregrino", como o chamava, ficou até Janeiro de 1819,
mas voltou de novo, para ficar com ela, no mês de maio. Foi para
Catharina um amigo fiel até a morte, mas fê-Ia sofrer também às
vezes, com seu gênio veemente. Reconheceu a tarefa que lhe fora
dada por Deus, de escrever as visões desta mártir privilegiada
e dedicou-se a isso com cuidado consciencioso. "O Peregrino"
escrevia durante as narrações, em tiras de papel, os pontos
principais, que imediatamente depois copiava, completando-os de
memória. A cópia, a limpo, lia à Serva de Deus, corrigindo,
acrescentando, riscando sob a direção de Catharina, não deixando
nada que não tivesse recebido a confirmação expressa de fiel
interpretação. Pode-se imaginar a grande facilidade que a
prática diária, através de alguns anos, trouxe ao "Peregrino"
para esse trabalho, dada a sua extraordinária inteligência e
perseverança, como também o fato de ver nesse serviço uma obra
santa, para a qual costumava preparar-se com orações e exercícios
piedosos; assim podemos confiar que não lhe tenha faltado aos
esforços o auxílio de Deus. O escrúpulo e a consciência com que
procedia nesse trabalho, nunca lhe permitiram, durante tantos
anos, resposta alguma aos que atribuíam grande parte das visões
à imaginação do poeta, o que equivale a dizer que, homem sério
que era, na tarde da vida se teria dado a esse incrível trabalho,
para enganar conscientemente a si mesmo e aos outros".
"Ela falava geralmente baixo-alemão, no êxtase, também o
idioma mais puro; a sua narração era, ora de grande singeleza,
ora cheia de elevação e entusiasmo. Tudo que ouvi e que, nas dadas
condições, só raras vezes e apenas em poucas palavras podia
anotar, escrevia eu mais extensamente em casa, imediatamente
depois. O Doador de todos os bens deu-me a memória, a aplicação
e elevação da alma acima dos sofri mentos, que tomaram possível
a obra, como está. O escritor fez tudo que era possível e pede,
nesta convicção, ao benévolo leitor a esmola da oração". Anna
Catharina deu também a este trabalho plena aprovação. Quando
estava num profundo êxtase, a 18 de Dezembro de 1819 e Brentano
lhe apresentou uma folha, com as anotações, disse ela: "Estes são
papéis de letras luminosas. O homem (isto é, o Peregrino) não
escreve de si mesmo; tem para isto a graça de Deus. Nenhum outro
pode fazê-lo; é como se ele mesmo visse".
Anna Catharina viu no êxtase toda a vida e paixão do Divino
Salvador e de sua Santíssima Mãe; viu os trabalhos dos Apóstolos
e a propagação da Santa Igreja, muitos fatos do Velho Testamento,
como também eventos futuros. Tocando em relíquias, geralmente
via a vida, as obras e os sofrimentos dos respectivos Santos. Com
certeza reconhecia e determinava as relíquias dos Santos,
distinguindo em geral facilmente objetos sagrados de profanos.
Adversários da Serva de Deus querem negar-lhe o caráter
sobrenatural das informações recebidas durante os êxtases,
alegando que Anna Catharina tirava a maior parte dos
conhecimentos de livros, que antes teria lido. Mas isso não está
de conformidade com o que Peregrino escreveu, em 8 de Maio de 1819
Ela me disse que nunca fora capaz de aproveitar coisas de livros
e que sempre pensava: - Ora, tal livro não há de fazer pecar.
Também não pôde guardar na memória coisas da Escritura Sagrada;
mas tem da vida do Senhor a graça de tal intuição, que a
consciência e certeza, que disso tenho, às vezes me fazem tremer,
por manter um trato tão familiar e simples com uma criatura de
Deus tão maravilhosa e privilegiada, como talvez não haja outra".
Em outra ocasião ela disse ao Peregrino: "Nunca tive lembrança
viva de histórias do Antigo Testamento ou dos Evangelhos, pois
vi tudo com os meus próprios olhos, durante a minha vida inteira;
o mesmo vejo cada ano de novo e nas mesmas circunstâncias, ainda
que às vezes em outras cenas. Umas vezes estive naqueles lugares,
no meio dos espectadores, assistindo aos acontecimentos,
acompanhando-os e mudando de lugar; mas não estive sempre no mesmo
lugar, pois às vezes fui levada para cima da cena, olhando deste
modo para baixo. Outras coisas, principalmente os mistérios,
vi-os mais com a vista interior da alma, outras em figuras
separadas da cena: em todos os casos se me apresentava tudo
transparente, de modo que nenhum corpo cobria o outro, nem havia
confusão".
Com todas estas grandes graças, Anna Catharina permanecia
humilde, simples e singela como uma criança. Mostrava-se sempre
obediente aos pais e às superioras religiosas, como também ao
confessor e diretor espiritual. Se lhe mandavam tomar remédio,
consentia, apesar de prever-lhe o mau efeito. Mesmo em êxtase,
obedecia imediatamente à chamada do confessor.
Era à dolorosa Paixão de Nosso Senhor que tinha uma devoção
especial e rezava por isso muitas vezes, enquanto lhe era
possível, a Via Sacra erigida ao longo de um caminho de quase duas
léguas, nos arredores de Coesfeld. Nos domingos fazia essa
devoção em companhia de algumas jovens piedosas, nos dias úteis
a fazia muitas vezes de noite. Clara Soentgen, sua amiga, conta:
"Muitas vezes ela se levantava de noite, saindo furtivamente de
casa e rezava descalça a Via Sacra. Se a porta da cidade estava
fechada, pulava os altos muros, para poder ir à Via Sacra; às vezes
caía dos muros abaixo, mas nunca se machucava".
Além dos muitos padecimentos que sofria com paciência e
perseverança, exercitava-se constantemente nas mortificações
voluntárias. Já na infância costumava privar-se de parte do sono
e da comida. Muitas horas da noite passava velando e rezando;
comia e bebia o que os outros recusavam, levando as comidas
melhores aos doentes e pobres, dos quais tinha muita compaixão.
O amor ao próximo impelia-a a pedir a Deus que, por favor, lhe
desse a sofrer as doenças e dores dos outros ou que a deixasse
cumprir os castigos merecidos pelos pecadores. Já o fizera na
infância e fazia-o depois de um modo muito mais intenso. "A tarefa
principal da sua vida, escreve Clemente Brentano, era sofrer pela
Igreja ou por alguns meP1bros da mesma, cuja necessidade lhe era
dada a conhecer em espírito ou que lhe pediam a intercessão". Anna
Catharina aceitava de boa vontade tais sofrimentos e trabalhos.
Muitas vezes, porém, Se tornavam estes tão grandes e pesados, que
parecia prestes a morrer. Quando um dia, quase sucumbindo ao peso
das dores, pediu ao Senhor que não a deixasse sofrer mais do que
podia suportar, apareceu-lhe o Esposo Celeste e disse:
"Coloquei-te no meu leito nupcial das dores, com as graças dos
sofrimentos, adornada com os tesouros da reconciliação e com as
jóias das boas ações. Deves sofrer. Não te abandono; estás
amarrada à videira, não perecerás".
Também as almas do purgatório se lhe dirigiam muitas vezes,
pedindo-lhe socorro; e ela provava de boa vontade sua compaixão
ativa. "Fiz um contrato com meu doce Esposo do Céu", conta ela,
que cada gota de sangue, cada pulsar do coração, toda a minha vida
e todos os meus atos devem sempre clamar: "Almas queridas do
purgatório, saúdo-vos pelo doce Coração de Jesus". Isso faz bem
a essas infelizes e alivia-as, pois são tão pacientes!”
Depois de muitos e indizíveis sofrimentos, chegou o dia da sua
morte a 9 de Fevereiro de 1824.
A 15 de Janeiro desse ano dissera a Serva de Deus: "Na festa de
Natal o Menino Jesus me trouxe muitos sofrimentos, hoje me deu
ainda maiores, dizendo: "Tu me pertences, és minha esposa: sofre
como eu sofri; não perguntes porque, é para a vida e para a morte".
Ela jaz com febre, com dores reumáticas e convulsões, escreve o
Peregrino, mas sempre em atividade espiritual, em prol da santa
Igreja e dos moribundos. O confessor pensa que ela em pouco
terminará, porque disse no êxtase, com grande serenidade "Não
posso aceitar outro trabalho, já estou próxima do fim". Ela
pronuncia, com voz de moribunda, só o nome de "Jesus".
A 27 de Janeiro recebeu a Extrema-Unção. Aumentaram-lhe as dores;
mas repetia de vez em quando: "Ai, meu Jesus, mil vezes vos agradeço toda a minha vida; não a minha vontade, mas a Vossa seja
feita". Na véspera da morte rezou: "Jesus, para Vós morro; Senhor,
dou-Vos graças, não ouço nem enxergo mais". Quiseram mudar-lhe
a posição, para aliviá-Ia, mas Anna Catharina disse: Estou
deitada na cruz; deixem-me, em pouco acabarei". Recebeu mais uma
vez a sagrada Comunhão, a 9 de Fevereiro. Suspirando pelo Divino
Esposo, rezou diversas vezes:
"Oh! Senhor, socorrei-me; vinde, meu Jesus". O confessor assistiu
à moribunda, dando-lhe muitas vezes o crucifixo para beijar e
rezando preces pelos moribundos. Ela ainda lhe disse: "Agora
estou tão sossegada; tenho tanta confiança, como se nunca tivesse
cometido pecado". Deram justamente 8 horas da noite, quando
exclamou três vezes, gemendo: "Oh! Senhor, socorrei-me, vinde,
oh! meu Senhor!" E a alma pura voou-lhe ao encontro do Esposo
Celeste, para permanecer, como esperamos confiadamente,
eternamente unida com Ele, na infinita felicidade do Céu.
Com grande concorrência do povo foi sepultado o corpo da Serva
de Deus, no cemitério de Duelmen, onde jaz ainda. Na noite de 21
a 22 de Março de 1824 foram abertos o sepulcro e o caixão, em
presença do prefeito da cidade e do delegado de polícia. Viu-se
que a decomposição ainda não tinha começado. Uma segunda abertura
do sepulcro foi feita, no dia 6 de Outubro de 1858, pela autoridade
eclesiástica.
Anna Catharina achou muitos veneradores na Alemanha e longe, além
das fronteiras, que se alegraram pela abertura do processo chamado de informação, feito pela autoridade diocesana de Muenster,
no ano de 1892. Encerrou-se esse processo no ano de 1899, sendo
os documentos enviados à Santa Sé em Roma, para pedir a
beatificação da piedosa sofredora. Oxalá que essa honra seja dada
pelo chefe da Igreja, para a glória de Deus, que é "admirável nos
seus Santos!”
1
Família, amigos, infância e mocidade de Jesus
1.
2.
3.
4.
5.
6.
7.
8.
9.
Nosso Divino Salvador, como plenitude e consumação dos tempos.
Da família altamente privilegiada de Nosso Senhor
Os discípulos do Senhor e outras pessoas bíblicas
Infância de Nossa Senhora e seu desposório com São José
Anunciação e Visitação de Nossa Senhora
A viagem a Belém e o nascimento de Nosso Senhor
Os ascendentes dos três Reis Magos e a viagem destes a Belém
Apresentação de Jesus no Templo e fuga para o Egito
Da mocidade de Jesus. Sua permanência em Jerusalém onde ensina
aos doutores da lei e é encontrado pelos pais no Templo
10. A vida do Senhor, até o começo de suas viagens apostólicas
11. As viagens apostólicas de Jesus, antes do seu Batismo no
Jordão .
12. Vida pública de João Batista
13. O Batismo de Jesus e o jejum de quarenta dias.
14. Eleição dos primeiros discípulos e o milagre de Caná
15. Resumo do primeiro ano da vida pública de Jesus.
16. Resumo do segundo ano da vida pública de Jesus
17. Resumo do terceiro ano da vida pública de Jesus
18. Notas gerais sobre a personalidade de Jesus e seu modo de
ensinar
19. Os milagres de Jesus
20. Judas, o traidor e seu procedimento na última refeição, em
Betânia
21. A Jerusalém antiga
Família, amigos, infância e mocidade de Jesus
1. Nosso Divino Salvador, como plenitude e consumação dos tempos
A Escritura Sagrada diz: "Quando veio a plenitude dos tempos,
enviou Deus o seu Filho, nascido de mulher, sujeito à lei, afim
de remir os que estavam debaixo da lei, para que recebêssemos a
adoção de filhos." (Gal. 4, 4-5).
Essas palavras nos ensinam que, com a vinda do Redentor a este
mundo, começou uma era nova, a qual a Escritura Sagrada chama a
plenitude e consumação de todos os tempos.
A era de-Jesus Cristo foi a plenitude dos tempos, porque nele se
cumpriram todas as predições dos profetas. Foi-o também, porque
em Jesus Cristo começou a última e perfeita era.
Quantos períodos já tinham passado antes de começar esta última
e mais sublime era! Segundo o que nos ensinam as ciências, tanto
as profanas como as sagradas, já a haviam precedido muitos e, em
parte, longos espaços de tempo. Assim a era sideral, em que foram
criados por Deus, os astros, com o respectivo movimento e
desenvolvimento; depois a era telúrica, em que a terra, até então
uma massa ígnea em fusão, começou a formar em si uma crista firme,
mais e mais espessa. Depois a era orgânica, em que Deus ornou e
encheu a terra de plantas e animais; afinal a era histórica, que
teve princípio com a criação dos primeiros homens. Mas esta última
teve ainda diversos períodos; pois no princípio ficaram os homens
sob o império da lei natural, que Deus lhes gravou em letras
indeléveis na consciência; com ela todos os homens conhecem o que
devem fazer ou deixar de fazer e por isso Deus exige a observação
dessa lei de todos os homens, mesmo dos pagãos que não o conhecem.
Mas Deus não se contentou com isso; quis entrar em relações com
os homens, pela graça e conduzir aqueles que lhe obedecessem, a
uma união mais íntima consigo.
Mas também nesse desígnio procedeu gradualmente. A primeira
aliança foi a que começou pela escolha de Abraão para ser pai do
povo de Israel e acabou com a promulgação da lei, no monte Sinai.
Em conseqüência dessa aliança, entrou o povo de Israel em relações
mais estreitas com Deus. Recebeu d’Ele um culto novo, novas leis
e a promessa consoladora de que do seu seio proviria o Salvador.
Para esse fim, serviam todas as leis especiais, cerimônias e
preceitos do Velho Testamento; até dos pecados e das desgraças
do povo israelita sabia o Senhor, pela sua Divina Providência,
dirigir os efeitos, de modo que lhe serviam aos divinos
desígnios. Sob esse ponto de vista encara a Serva de Deus
especialmente a formação daquela família, da qual devia nascer
o divino Salvador.
Quando o Redentor apareceu neste mundo, terminou a velha Aliança,
porque estava realizado o seu fim: os bons, entre os judeus e
também entre os gentios, reconheceram o seu estado pecaminoso e
a necessidade da salvação, anelando ansiosos pelo Messias.
Começou então uma segunda Aliança, abundante em graças, a qual
foi confirmada no monte Sião, em Jerusalém, pela vinda do Espírito
Santo, no dia de Pentecostes. Com essa Nova Aliança, que durará
até o fim do mundo, principiou a consumação dos tempos, na qual
foi proporcionada aos homens pecadores a salvação abundante em
Jesus Cristo e pela qual somos elevados do estado de servidão ao
estado de liberdade e à dignidade de filhos de Deus.
2. Da família altamente privilegiada de Nosso Senhor
O evangelista
segundo a sua
genealogia de
Reduz assim a
Israel. Jesus
tribo de Judá
S. Mateus começa a genealogia do Divino Salvador,
humanidade, com as seguintes palavras "Livro da
Jesus Cristo, filho de Davi, filho de Abraão.”
linhagem do Salvador a Abraão, o pai do povo de
descendeu dele por Judá e Davi; era, portanto, da
e da família real de Davi.
Catharina Emmerich narra a seguinte visão:
"Vi a linhagem do messias dividir-se em Davi em dois ramos. A
direita passou a linha através de Salomão, acabando em Jacó, pai
de José, esposo de Maria. Essa linha corria em direção mais alta;
partia em geral da boca e era inteiramente branca, sem cores. As
pessoas ao lado da linha eram todas mais altas do que as da linha
oposta. Todas seguravam na mão uma haste de flor, do tamanho de
um braço, com folhas semelhantes às da palmeira, que se
dependuravam em volta do ramo. Na ponta da haste havia uma flor
campanada, branca, com 5 estames amarelos, que espalhavam um pó
fino. Três membros desta linha, antes do meio, contados de cima,
estavam eliminados, enegrecidos e ressequidos. As flores
variavam em tamanho, beleza e vigor; a de José era de grande
pureza, com as pétalas frescas e brancas, era mais bela. Vi esta
linha unir-se pelo fim com a linha oposta, por um raio luzido;
a significação sobrenatural e misteriosa desse raio me foi
revelada: referia-se mais à alma e menos à carne; tinha algo da
significação de Salomão; não sei explicá-lo bem.
A linha da esquerda passou de Davi por Natan até Helí, que é o
verdadeiro nome de Joaquim, pois recebeu este nome só mais tarde,
como Abrão o de Abraão. Eu sabia o motivo desta troca e sabê-lo-ei
talvez de novo. José foi chamado muitas vezes nas minhas visões
"filho de HeIí”. Toda essa linha vi passar mais baixo; tinha
diversas cores e manchas cá e lá, mas saia depois mais clara. Era
vermelha, amarela e branca; não havia azul. As pessoas ao lado
eram menos altas do que as do lado oposto; tinham ramos mais
curtos, pendentes para o lado, com folhas verde-amarelas e
dentadas, os quais rematavam em um botão avermelhado, da cor da
rosa silvestre; em parte estavam vigorosos: em outra parte
murchos; o botão não era tanto um botão de flor, mas um ovário
e sempre fechado.
Sant' Ana descendeu, pelo pai, da tribo de Leví, pela mãe, da de
Benjamin. Vi alguns de seus avós carregarem a Arca da Aliança,
mui piedosos e devotos e notei que receberam nessa ocasião raios
do mistério, os quais se lhe referiam à descendência: Ana e Maria.
Vi sempre muitos sacerdotes freqüentarem a casa paterna de Ana,
como também a de Joaquim; dai o parentesco com Isabel e Zacarias.
No ramo de Salomão havia diversas lacunas; os frutos, estavam mais
separados, mas as figuras eram maiores e mais espirituais. As duas
linhas tocaram-se várias vezes; três ou quatro membros, talvez,
antes de Helí, se cruzaram, acabando afinal em cima, com a SS.
Virgem Maria. Creio que nesses cruzamentos já vi principiar o
sangue da SS. Virgem.”
Os membros eliminados significam provavelmente ascendentes
pecaminosos do Salvador. Se bem que Ele mesmo seja o "Santo dos
Santos" e também tenha por Mãe uma Virgem Imaculada e por pai
nutrício S. José, houve, todavia, pecadores e pecadoras entre os
seus antepassados, por exemplo, o rei Salomão, Asa, Joram, Achaz,
Manasses, Tamar e Betsabé; até duas pagãs: Racháb e Rut. Com
certeza Jesus assim o permitiu, para manifestar a sua
misericórdia e o seu amor para com os pecadores e também a intenção
que tinha, de fazer participar da Redenção os gentios e
conduzí-Ios à eterna bem-aventurança.
Segundo as narrações de Anna Catharina Emmerich, eram os avós de
Maria Santíssima piedosos Israelitas, que estavam em íntimas
relações com os Essenos, os quais formavam uma espécie de ordem
religiosa.
"Vi os avós da SS.Virgem, conta Anna Catharina, gente
extraordinariamente piedosa e simples, que alimentava
secretamente o vivo desejo da vinda do Messias prometido. Vi-os
levar uma vida mortificada; os casados muitas vezes fizeram a
promessa de mútua continência durante certo tempo. Eram tão
piedosos, tão cheios de amor a Deus, que os vi freqüentemente
sozinhos no campo deserto, de dia e também de noite, clamando por
Deus com um desejo tão veemente, que arrancavam as vestes do
peito, como para deixar que Deus entrasse pelos raios do sol, ou
como para saciar com o brilho da lua e das estrelas a sede que
os devorava, do cumprimento da promissão.”
Segundo Anna Catharina, chamava-se Emorun a avó de Sant'Ana e teve
do matrimônio com Stolanus três filhas, uma das quais Isméria,
foi mais tarde a mãe de Sant'Ana. Ana tinha uma irmã mais velha,
chamada Sobe e uma mais moça, com o nome de Maharha e uma terceira,
que era casada com um pastor.
O pai de Ana, de nome Eliud, era da tribo de Leví, ao passo que
a mãe pertencia à tribo de Benjamin. Ana nasceu em Belém, mas os
pais foram depois viver em Seforis, perto de Nazaré. Após a morte
de Isméria, Eliud morava no vale de Zabulon. Ali se encontraram
Ana e Joaquim e travaram conhecimento. O pai de Joaquim, Matthat,
era o segundo irmão de Jacó, pai de S. José. Joaquim, cujo nome
legitimo era Helí, e José eram descendentes, pelo lado paterno,
da estirpe real de Davi (1). Joaquim e Ana, depois de casados,
levaram uma vida piedosa e benfazeja, primeiro em casa do pai,
Eliud, depois em Nazaré.
A filha mais velha recebeu o nome de Maria Helí; conheceram,
porém, que esta não era a filha da promissão. Ana e Joaquim rezavam
muitas vezes com grande devoção e davam muitas esmolas. Assim
viveram 19 anos depois do nascimento da primeira filha, em
contínuo desejo da filha prometida e em crescente tristeza. Além
disso ainda eram insultados pelo povo. Quando um dia Joaquim quis
oferecer um sacrifício no Templo, recusou-o o sacerdote,
repreendendo-o por sua esterilidade.
Joaquim, muito abatido, não voltou a Nazaré, mas viveu cinco
semanas escondido, com os rebanhos, ao pé do monte Hermon.
Com isso aumentou ainda a tristeza de Ana, que chorou e rezou
muito. Um dia, quando rezava com grande aflição, eis que lhe
apareceu um Anjo, anunciando-lhe que Deus lhe ouvira a oração.
Mandou-a ir a Jerusalém, onde se encontraria com Joaquim na Porta
Áurea.
Na noite seguinte lhe apareceu de novo um Anjo, dizendo que
conceberia uma filha santa; e escreveu o nome de Maria na parede.
(1) José e Joaquim tinham a mesma avó. Depois da morte do primeiro
marido. Matan, pai de Jacó, ela se casou com Leví. Dessa união
nasceu Matthat, pai de Joaquim.
Joaquim teve também a aparição de um Anjo; foi por isso ao Templo,
ofereceu um sacrifício e recebeu nessa ocasião a bênção da
promissão ou o santo da Arca da Aliança. (2)
Ana e Joaquim encontraram-se na Porta Áurea, transbordando de
alegria e felicidade. Ali, diz Catharina Emmerich, lhes veio
aquela abundância da divina graça, pela qual Maria recebeu a
existência, somente pela santa obediência e pelo puro amor de
Deus, sem qualquer impureza dos pais.”
Desse modo, após muitos anos de oração fervorosa, alcançou esse
santo casal, Joaquim e Ana, aquela pureza e santidade, que os
tomou aptos para receberem, sem o fomento da concupiscência, a
santa filha, que foi escolhida por Deus para ser a Mãe do Redentor.
3. Os discípulos do Senhor e outras pessoas bíblicas
Para facilitar a leitura e a compreensão do livro, damos algumas
informações sobre os discípulos de Jesus e outras pessoas
mencionadas freqüentemente durante a narração, informações
colhidas das comunicações de Anna Catharina Emmerich.
(2) Dessa bênção da promissão conta Anna Catharina o seguinte:
Quando Eva foi formada. vi que Deus deu uma coisa a Adão: era como
se torrentes de luz emanassem de Deus. aparecendo-lhe em forma
humana, da fronte, da boca, do peito e das mãos e se unissem numa
esfera de luz, que entrou no lado direito de Adão, do qual Eva
foi tirada. Somente Adão o recebeu. Era este o germe da bênção
de Deus. Por ter comido do fruto proibido. foi tirada a Adão essa
bênção de geração pura e santa em Deus. Vi a segunda Pessoa divina
descer com algo em forma de cutelo na mão e tirar a bênção a Adão.
antes deste consentir no pecado.
Abraão recebeu depois a bênção da promissão, quando o Anjo o
abençoou; após ele, também Moisés. do qual veio a Arca da Aliança.
Vi este Mistério ou a bênção numa espécie de invólucro, como um
conteúdo, um ser ou uma força. Era pão e vinho, carne e sangue;
era o germe da bênção antes do primeiro pecado; era a existência
sacramental da geração antes do pecado, conservada aos homens
pela religião, que lhes possibilitou, pela piedade, uma estirpe
mais e mais purificada, que finalmente terminou em Maria, que
concebeu pelo Espírito Santo o Messias, há tanto tempo anelado.
Vi diversas vezes o Sumo Pontífice, estando no Santo dos Santos,
empregar a bênção da promissão, como uma arma ou uma força,
movendo-a de um lado para outro, para conseguir proteção ou
bênção, concessão de uma graça pedida. um benefício ou um castigo.
Não a tocava com as mãos nuas. Mergulhava-a também na água, para
fins santos, a qual se dava a beber, como bênção Isméria, mãe de
Sant’Ana. bebeu também dessa água e foi assim disposta para a
conceição de Ana. Esta não bebeu da água sagrada; pois a bênção
já estava com ela".
Zacarias e Isabel, os santos pais de S. João Batista, moravam em
Juta, perto de Hebron. Por sua conhecida virtude e descendência
reta de Aarão, gozavam ambos de alta estima do povo; Zacarias
figurava como chefe de todos os sacerdotes que moravam em Juta.
Isabel era filha de Emerenciana, irmã de Isméria, que era
a mãe de Sant'Ana. Por isso chama a Escritura Sagrada a Isabel
prima de Maria.
Maria, Mãe de Jesus, tinha uma irmã mais velha, de nome Maria
Helí, cujos filhos eram Tiago, Sadah e Heliachim.
Uma filha de Maria Helí era chamada pelo nome do pai - Maria
Cleophas, que quer dizer Maria filha de Cleophas. Esta teve do
primeiro marido, Alfeu, três filhos: Judas Tadeu, Simão e Tiago
o Menor e uma filha, Suzana. Alfeu, que era viúvo, trouxe para
esse matrimônio um filho, de nome Mateus, antes chamado Leví, que
mais tarde tinha uma aduana perto de Betsaida, no lago Genezaré.
Do segundo matrimônio, com Sabás, teve Maria Cleophas um filho,
de nome José Barsabas, chamado na Escritura Sagrada "Joseph".
Depois da ascensão de Jesus, foi ele, junto com Matias, escolhido
para um deles ocupar entre os Apóstolos o lugar de Judas; a sorte
designou Matias. Do terceiro matrimônio de Maria Cleophas, com
Jonas, irmão mais moço do sogro de São Pedro, nasceu Simeão, que,
depois do martírio de seu irmão Tiago o Menor, lhe sucedeu na
cadeira de Bispo de Jerusalém.
Todos esses filhos de Maria Helí e Maria Cleophas se tornaram
discípulos de Jesus, alguns até Apóstolos (Judas, Simão, Tiago
e Mateus). Quatro filhos de Maria Cleophas são chamados no
Evangelho "irmãos (isto é, parentes) de Jesus". (Mat. 13,55)
Pedro e André eram irmãos germanos; eram filhos de Jonas. Ambos
viviam de pescaria e moravam no lago Genezaré; Pedro em Cafarnaum,
André em Betsaida. Pedro casou com a viúva de um pescador, a qual
lhe trouxe do primeiro matrimônio dois filhos e uma filha; esta
será provavelmente a Santa Petronila, muitas vezes mencionada
como filha de S. Pedro. Pedro, porém, não teve filhos; tinha quase
a idade de Judas Tadeu, cinco anos mais que Jesus. André tinha
dois anos mais do que Pedro. Era pai de dois filhos e duas filhas;
depois da sua vocação ao apostolado, viveu em perfeita
continência.
Tiago o Maior e S. João Evangelista eram também irmãos, filhos
de Zebedeu; a mãe chamava-se Maria Salomé e era filha de Sobe,
irmã de Sant' Ana e, portanto, tia da Mãe de Deus. Foi ela que
um dia apresentou os filhos ao Salvador, pedindo-lhe que os
colocasse um à sua direita e o outro à sua esquerda, no reino do
céu. S. Tiago tomou-se o Apóstolo da Espanha; seu sepulcro, em
Compostela, é um lugar célebre de romaria. São João pregou em
Éfeso, na Ásia Menor, onde morreu, na idade de mais de 100 anos,
sendo o único dos Apóstolos que teve morte natural. Era o
discípulo predileto do Salvador, não somente por sua fidelidade,
singeleza e amor, mas também por causa de sua vida casta e pura.
O Apóstolo S. Filipe morava em Betsaida e foi conduzido a
Jesus por André.
Bartolomeu era Esseno. O pai, Tolmai, era descendente do rei
Tolmai de Gessur, cuja filha era casada com o rei Davi. Como
escrivão, Bartolomeu era conhecido de Tomé, que tinha a mesma
profissão e vivia em Arimatéia.
De Judas Iscariotes falaremos por extenso no número 20 deste
capítulo.
O santo Apóstolo Matias era natural de Belém e pregou o
Evangelho na Palestina.
O Apóstolo S. Paulo pertencia à tribo de Benjamin e era natural
de Gischala, a três léguas do monte Tabor. Os pais mudaram-se mais
tarde para Tarso. Em Jerusalém teve Paulo como mestre o célebre
e douto Gamaliel. Antes da conversão era partidário zeloso da lei
de Moisés e por isso adversário encarniçado dos cristãos.
O santo evangelista Marcos era pescador perto de Betsaida e
tornou-se um dos primeiros discípulos de Jesus.
S. Lucas Evangelista era natural de Antioquia; estudou pintura
na Grécia e depois medicina e astronomia numa cidade do Egito.
Durante a vida de Jesus, não se lhe associou, nem aos Apóstolos,
ficando muito tempo indeciso, até que foi confirmado na fé pelo
próprio Senhor, no domingo da Páscoa, em Emaús.
Cleophas, que junto com Lucas foi favorecido com a aparição
de Jesus, era neto do tio paterno de Maria Cleophae.
José de Arimatéia (assim chamado porque era natural de Arimatéia)
e Nicodemos eram escultores. Ambos moravam em Jerusalém e eram
membros do Conselho do Templo. Mais pormenores veja no apêndice
no. 10.
Menção especial merece-nos a família de Lázaro, que tinha
íntimas relações com Jesus e sua SS. Mãe. Vindo Jesus a Betânia,
onde morava Lázaro, ou a Jerusalém, hospedava-se geralmente em
casa de Lázaro, um edifício em forma de castelo, rodeado de
jardins e plantações. A irmã de Lázaro, Marta, tinha dois anos
menos e Madalena nove anos menos do que ele. Uma terceira irmã,
chamada Maria, a silenciosa, que era considerada como mentecapta,
não é mencionada nos Evangelhos. Depois da morte dos pais coube
a Madalena por sorte o castelo de Magdala, na banda oriental do
lago Genezaré. Na idade de onze anos ali se instalou com grande
pompa e começou a levar uma vida suntuosa. Ainda muito moça,
deixou-se arrastar a aventuras amorosas, tornando-se assim um
escândalo para os irmãos, que viviam muito simples e recolhidos
em Betânia.
No começo do segundo ano da vida pública de Jesus,
Madalena assistiu a um dos sermões do Divino Mestre e ficou
inteiramente pertur bada e arrependida; pouco depois ungiu os pés
do Salvador, em casa de Simão Zabulon e recebeu nessa ocasião a
consoladora certeza de que os pecados lhe foram perdoados. Mas
pouco tempo depois recaiu nos mesmos vícios. Pelos insistentes
rogos de Marta, deixou-se levar a assistir mais uma vez à pregação
de Jesus. Enquanto o Salvador falava, saíram os maus espíritos
de Madalena que, muito contrita, se juntou às santas mulheres.
Lázaro recebeu uma prova especial do amor de Jesus na
milagrosa ressurreição, depois do corpo já lhe haver estado
quatro dias no sepul cro. Outros pormenores sobre Lázaro, Marta
e Madalena se encontram nos números 14 e 15 deste capítulo.
O Evangelho e também a vidente mencionam muitas vezes as "santas
mulheres"; além das já conhecidas, Maria Helí, Maria
Cleophae, Marta, Madalena, Maria Salomé, mulher de Zebedeu e
Suzana, filha de Alfeu, pertenciam ao grupo das santas mulheres
ainda as seguintes:
1. Verônica, (propriamente: Seráfia) prima de São João Batista
e cujo marido, de nome Sirach, era membro do Conselho do Templo.
Veja apêndice, no. 4.
2. Maria Marcos, mãe de João Marcos, que morava fora dos muros
de Jerusalém, defronte do monte das Oliveiras.
3. Joana Chusa, viúva sem filhos, natural de Jerusalém.
4. Salomé, também viúva; morava em casa de Marta, em Betânia; era
parenta da família por um irmão de José.
5. Suzana, de Jerusalém, filha do irmão mais velho de José,
Cleophas e
deste modo parente da família, como Salomé.
6. Dina, a Samaritana, que falara com Jesus no poço de Jacó e que
se
juntara às santas mulheres, depois da conversão.
7. Maroni, a viúva de Naim, cujo filho, Martialis, Jesus
ressuscitara dos
mortos.
8. Maria Sufanitis, Moabita, que Jesus livrara de um mau espírito.
4. Infância de Nossa Senhora e seu desposório com São José
Maria tinha três anos e três meses, quando fez o voto de
associar-se às virgens santas, que se dedicavam ao serviço do
Templo. Antes da partida, fizeram na casa paterna uma grande
festa, à qual estiveram presentes cinco sacerdotes, que
sujeitaram Maria a uma espécie de exame, para ver se já chegara
à idade de juízo e madureza de espírito, para, ser admitida no
Templo. Disseram-lhe que os pais tinham feito por ela o voto, que
não devia beber vinho ou vinagre, nem comer uvas ou figos. Maria
ainda acrescentou que não comeria nem peixe, nem especiarias, nem
frutas, senão uma espécie de pequenas bagas amarelas, que não
beberia leite, dormiria na terra e se levantaria três vezes
durante a noite para rezar.
Os pais de Maria ficaram muito comovidos com estas palavras.
Joaquim abraçou a filha, exclamando, entre lágrimas: "Oh, minha
querida filha, isto é duro demais; se assim queres viver, teu
velho pai não te verá mais." - Foi um momento de profunda comoção.
Os sacerdotes, porém, disseram que se devia levantar só uma vez
para a oração, como as outras virgens, juntando ainda outras
circunstâncias atenuantes, como, por exemplo, que devia comer
peixe nas grandes festas.”
Maria ofereceu-se também para lavar as vestes dos sacerdotes e
outras roupas grossas.
"No fim da solenidade, vi que Maria foi abençoada pelos
sacerdotes. Ela estava em pé, num pequeno trono, entre dois
sacerdotes; aquele que a abençoou, estava-lhe em frente, os
outros atrás. Os sacerdotes rezaram alternadamente, em rolos de
pergaminho e o primeiro abençoou-a, estendendo as mãos sobre ela.
Tive nessa ocasião uma maravilhosa visão do estado íntimo da santa
Menina. Vi-a como que iluminada e transparente pela bênção do
sacerdote e sob seu Coração, em glória indizível, vi a mesma
imagem que na contemplação do santo Mistério na Arca da Aliança.
Numa forma luminosa, igual à do cálice de Melquisedec, vi figuras
brilhantes, indescritíveis, da bênção da promissão. Era como
trigo e vinho, carne e sangue, que tendiam a unir-se. Vi, ao mesmo
tempo, que sobre essa aparição o Coração da Virgem se abriu, como
a porta de um templo e o mistério da promissão, cercado como de
um dossel, guarnecido de misteriosas pedras preciosas, lhe entrou
no Coração aberto; era como se a Arca da Aliança entrasse no
templo. Depois disso, encerrava o coração da Virgem o maior bem
que naquele tempo havia no mundo. Desaparecendo essa imagem, vi
apenas a santa Menina cheia de ardente devoção e amor. Vi-a como
que extasiada e elevada acima da terra".
Joaquim e Ana viajaram com Maria para Jerusalém. Em procissão
solene foi a Menina introduzida no Templo; depois de oferecido
um sacrifício, erigiu-se um altar por baixo de um portal. Maria
ajoelhou-se nos degraus, enquanto Joaquim e Ana lhe puseram as
mãos na cabeça, proferindo orações de oferecimento. Um sacerdote
cortou-lhe então um anel do cabelo, queimou-o num braseiro e
vestiu-a de um véu pardo. Dois sacerdotes conduziram Maria muitos
degraus para cima, à parede divisória que separa o Santo do resto
do Templo e colocaram-na num nicho, do qual se via o Templo, em
baixo. Depois um sacerdote ofereceu incenso no altar próprio.
"Vi brilhar sob o Coração de Maria uma auréola de glória e soube
que continha a promissão, a bênção santíssima de Deus. Essa
auréola aparecia como que cercada pela arca de Noé, de modo que
a cabeça da Santíssima Virgem sobressaia acima da Arca. Depois
vi a figura da arca de Noé transformar-se na da Arca da Aliança,
cercada pela aparição do Templo. Então vi desaparecer essas
formas e sair da auréola brilhante a figura do cálice da última
ceia, diante do peito de Maria. aparecendo-lhe diante da boca um
pão assinalado com uma cruz. Dos lados lhe emanavam numerosos
raios de luz, em cujas extremidades apareciam muitos mistérios
e símbolos da SS. Virgem, como, por exemplo, os nomes da Ladainha
de N. Senhora, em figuras. Do ombro direito e do esquerdo
cruzavam-se dois ramos de oliveira e cipreste sobre uma palmeira
pequena, que vi aparecer atrás de Maria. Entre esses ramos vi as
formas de todos os instrumentos da paixão de Jesus. O Espírito
Santo, com asas luminosas, parecendo mais figura de homem do que
de pomba, pairou sobre a aparição. No alto vi o céu aberto, com
a Jerusalém celeste no centro, com todos os palácios, jardins e
habitações dos futuros Santos; tudo estava cheio de Anjos; também
a auréola de glória que cercava Maria, estava cheia de cabeças
de Anjos.
Então desapareceu a visão gradualmente, como aparecera. Por fim
vi somente o esplendor sob o Coração de Maria e luzir nele a bênção
da promissão. Depois desapareceu também essa visão e vi apenas
a Santa Menina, consagrada ao Templo, guarneci da de seus adornos,
sozinha entre os sacerdotes.”
Maria despediu-se dos pais e foi entregue às mestras: Noemi, Irmã
da mãe de Lázaro e a profetisa Ana, outra matrona.
"Então vi uma festa das virgens do Templo. Maria tinha de
perguntar às mestras e às meninas, uma a uma, se queriam deixá-Ia
ficar junto delas. Era o costume adotado. Depois fizeram uma
refeição e no fim houve uma dança; estavam umas em frente às
outras, duas a duas e
dançando formavam figuras: cruzes, etc.
De noite Noemi conduziu Maria ao seu quartinho, de onde se podia
ver o interior do Templo. O quarto não formava um quadrângulo
regular; as paredes estavam marchetadas de triângulos, que
formavam várias figuras. Havia no quarto um banquinho, mezinha
e estantes nos cantos, com diversos repartimentos para guardar
objetos. Diante desse quartinho havia um quarto de dormir e um
guarda-roupa, como também a cela de Noemi.
As virgens do Templo usavam vestido branco, comprido e largo, com
cinta e mangas muito largas, que arregaçavam para o trabalho.
Estavam sempre veladas.
Maria, era, para sua idade, muito hábil; vi-a trabalhar, fazendo
já pequenos lenços brancos, para o serviço do Templo.
Vi a Santa Virgem passar o tempo parte na morada das matronas (com
as outras meninas), parte na solidão do quarto, em estudo, oração
e trabalho. Trabalhava em ponto de malha e tecia, sobre varas
compridas, panos estreitos, para o serviço do Templo. Lavava as
toalhas e limpava os vasos do Templo. Vi-a muitas vezes em oração
e meditação.
Além das orações prescritas no Templo, Maria SS. tinha como devoção especial o desejo contínuo da Redenção, que lhe constituía
uma ininterrupta oração da alma. Guardava esse desejo como um
segredo e fazia as devoções às escondidas. Quando todas dormiam,
levantava-se do leito, para orar a Deus. Vi-a muitas vezes se
desfazer em lágrimas e rodeada de celestial esplendor, durante
a oração.
A alma da Virgem parecia não estar na terra e gozava muitas vezes
de consolações celestes. Tinha um desejo indizível da vinda do
Messias e na sua humildade, apenas se atrevia a desejar ser a serva
mais humilde da Mãe do Salvador.
Tendo as virgens do Templo alcançado certa idade, casavam-se e
deixavam o serviço do mesmo. Quando chegou, porém, o tempo de
Maria, ela não quis deixar o Templo; mas disseram-lhe que devia
casar.”
"Eu vi, conta Catharina Emmerich, que um sacerdote muito idoso,
que não podia mais andar (provavelmente o Sumo Sacerdote), foi
transportado por alguns outros, numa cadeira, para diante do
Santíssimo e rezou, lendo num rolo de pergaminho que lhe estava
em frente, sobre uma estante, enquanto se queimava um sacrifício
de incenso. Extasiado em espírito, teve uma aparição, sendo-lhe
a mão colocada sobre o rolo, onde o dedo indicador mostrava a
palavra do Profeta Isaías: E sairá uma vara do tronco de Jessé
o uma flor brotar-Ihe-á da raiz. (Is. 11, 1). Quando o ancião
voltou a si, leu esse verso e conheceu-lhe a significação ensinada
na visão.
Enviaram, portanto, mensageiros por todo o país, convocando todos
os homens solteiros da estirpe de Davi ao Templo. Reuniram-se
muitos deles no Templo, em vestes de gala, e foi-Ihes apresentada
a Virgem Santíssima. Vi ali um jovem muito piedoso da região de
Belém; tinha também implorado sempre, com ardente devoção, a
vinda do Salvador prometido e vi-lhe no coração o grande desejo
de ser o esposo de Maria. Esta, porém, se recolheu à cela,
derramando lágrimas abundantes e não podia conformar-se com o
pensamento de ter de renunciar à virgindade. Então vi que o Sumo
Sacerdote (segundo a inspiração recebida do Céu) distribuiu ramos
a todos os homens presentes, com ordem de marcar cada um o seu
ramo com o respectivo nome e segurá-Io nas mãos, durante a oração
e o sacrifício. Feito Isso, todos entregaram os seus ramos, que
foram colocados sobre um altar, diante do Santíssimo;
anunciou-Ihes o Sumo Sacerdote que aquele cujo ramo florescesse,
seria destinado por Deus a desposar a Virgem Maria de Nazaré.
Enquanto os ramos estavam diante do Santíssimo, continuaram os
homens a oferecer sacrifícios, a rezar; vi que aquele jovem
clamava instantemente a Deus, com os braços estendidos, num dos
átrios do Templo e rompeu em lágrimas, quando todos receberam os
seus ramos e foram informados que nenhum florescera e, portanto,
nenhum dentre os presentes fora destinado a ser o esposo dessa
Virgem.
Vi depois que os sacerdotes do Templo procuraram de novo, nos
registros das gerações, se havia ainda um descendente de Davi,
que antes tivessem saltado. Como, porém, fossem marcados seis
irmãos de Belém, de um dos quais já há muito tempo não havia
notícias, procuraram o domicílio de José e acharam-no, num lugar
não muito longe de Samaria, situado num ribeiro, onde morava
sozinho, perto do ribeiro, trabalhando em serviço de outros
mestres. Estaria talvez na Idade de 33 anos. (3)
(3) "José era o terceiro, entre seis irmãos. Os pais, já
falecidos, tinham habitado um vasto edifício fora de Belém, o
antigo solar de Davi, cujo pai, Isai ou Jessé, já o possuíra.
Restavam, porém, no tempo de José, apenas os muros do edifício
principal. Nos quartos de cima moravam José e os innãos, com o
mestre, um velho judeu. Vi-os brincar nos quartos, lá em cima.
Vi também o mestre Ihes dar muitas lições estranhas que não
entendi bem. Os pais não cuidavam muito dos filhos; pareciam ser
nem bons nem maus. José tinha um gênio muito diferente dos irmãos.
Era inteligente e aprendia com facilidade; era, porém, simples,
recolhido, piedoso e sem ambição. Os irmãos pregavam-lhe muitas
peças, davam-lhe empurrões e causavam-lhe muitos desgostos. Os
pais também não estavam muito satisfeitos com José; desejavam
que, com os talentos de que era dotado, aspirasse a qualquer
posição elevada no mundo; mas o rapaz não tinha inclinações para
isso. Achavam-no muito simples e humilde demais; rezar e exercer
pacatamente uma profissão era a única aspiração do jovem. Para
evitar as contínuas provocações dos irmãos, vi-o ir muitas vezes
do outro lado de Belém, em companhia de algumas mulheres piedosas
e rezar com elas. Tinha então cerca de 19 anos. Vi-o também passar
algum tempo em grutas, uma das quais veio a ser depois o lugar
do nascimento de Nosso Senhor. Ali rezava e fazia pequenos
trabalhos em madeira, pois perto havia a oficina de um velho
carpinteiro; José ajudava-o nos trabalhos e aprendeu assim, pouco
a pouco, a profissão.
A hostilidade dos imlãos aumentou a tal ponto, que lhe foi
impossível ficar mais tempo na casa paterna. Vi-o, numa noite,
fugir disfarçado de casa, para ganhar o sustento pelo trabalho
de carpinteiro. Estava na idade de 18 a 20 anos. Primeiro o
vi trabalhar na oficina de um carpinteiro em Libonah, onde
aprendeu a profissão completamente. José era piedoso, bom e
singelo; todos o estimavam. Vi como prestava humildemente muitos
pequenos serviços ao mestre; vi-o apanhar as aparas, juntar lenha
e conduzí-Ia às costas. Depois trabalhou em Tanath, perto do
Megiddo, mais tarde Tibérias; teria então cerca de 33 anos. José
pedia e anelava muito pela vinda do Messias.”
À ordem do Sumo Sacerdote, veio José com o seu melhor traje ao
Templo de Jerusalém. Teve também de segurar um ramo, durante o
sacrifício e as orações; quando quis pô-Io sobre o altar, diante
do Santíssimo, brotou uma flor branca, como uma açucena, na ponta
do ramo e vi descer sobre ele uma aparição luminosa, como o
Espírito Santo. Então reconheceram José como esposo de Maria,
escolhido por Deus e apresentaram-no a Maria, em presença de sua
mãe e dos sacerdotes. Maria, conformada com a vontade de Deus,
aceitou-o humildemente por noivo.
As núpcias foram celebradas em Jerusalém. Depois seguiu Maria com
a mãe para Nazaré; José, porém, foi primeiro a Belém, a negócios
de família. À sua chegada em Nazaré, fizeram uma festa. Na casa
que Ana montara para eles, tinha José um quarto separado, na
frente. Ambos estavam muito acanhados. Viviam em oração e muito
recolhidos.”
5. Anunciação e Visitação de Nossa Senhora
Depois do casamento de Maria SS. com S. José, estavam preparadas
pela Divina Providência todas as condições, de modo que o
santíssimo e eternamente adorável mistério da Encarnação podia
realizar-se. Deuse esse fato numa noite santa, na silenciosa casa
de Nazaré. Inspirada pelo Espírito Santo, que queria operar nela
o grandioso milagre, velou Maria toda a noite em ardente oração.
Então sucedeu que, pela meia noite, entrou na casa de Nazaré um
dos mais augustos Anjos do Céu, como mensageiro de Deus e, pelo
consentimento da SS. Virgem, revestiu-se nela o Filho Unigênito
de Deus da natureza humana. Assim se uniu a eternamente adorável
Divindade, por um misterioso matrimônio e amor santo, com a
humanidade pecaminosa, a qual o Pai de misericórdia quis elevar
de novo pelo Homem-Deus, para estabelecer a nova Aliança de graça
e amor.
Ouçamos a singela descrição desse mistério pela vidente
privilegiada de Dülmen:
"Vi a Santíssima Virgem, pouco depois do casamento, em casa de
José, em Nazaré. José saíra da cidade, com dois jumentos, para
buscar alguma coisa; parecia estar voltando. Além da SS. Virgem
e duas moças da mesma idade, vi ainda Sant'Ana e aquela parenta
viúva, que lhe servia de criada. Pela noite rezaram, comendo
depois alguma hortaliça. Maria recolheu-se então ao quarto de
dormir e preparou-se para a oração, pondo um vestido comprido,
de lã branca, com cinto largo e cobrindo a cabeça com um véu
branco-amarelo. Tirou uma mezinha baixa encostada na parede e
colocou-a no meio do quarto; tendo posto ainda uma almofada diante
dessa mezinha, pôs-se de joelhos e cruzou os braços. Assim a vi
rezar muito tempo, em ardente súplica, elevados os olhos ao céu,
pedindo a redenção e a vinda do Rei prometido.”
Então se derramou do teto do quarto uma torrente de luz sobre o
lugar à direita de Maria; nessa luz vi um jovem resplandecente
descer para junto dela: era o Arcanjo S. Gabriel, que lhe disse:
"Ave, cheia de graça. O Senhor é convosco, bendita sois entre as
mulheres." Ao ouvir estas palavras, a Virgem perturbou-se e
cogitava das razões daquela saudação. Mas o Anjo observou-lhe:
"Não vos perturbeis, Maria, porque merecestes graça diante de
Deus; pois concebereis e dareis à luz um filho, ao qual poreis
o nome de Jesus. Ele será grande e chamar-se-á o Filho do
Altíssimo; e Deus Nosso senhor dar-lhe-á o trono de Davi, seu pai,
e reinará eternamente sobre a casa de Jacó e o seu reino não terá
fim." (Luc. 1,28-33).
Vi-lhe sair as palavras da boca como letras. Maria virou um pouco
a cabeça velada para o lado direito, mas, cheia de temor, não
levantou os olhos. O Anjo, porém, continuou a falar e Maria
levantou um pouco o
véu e respondeu:
"Como se fará isso, pois não conheço homem?" (Luc. 1,34)
E o Anjo disse: "O Espírito Santo virá sobre Vós e a virtude
do Altíssimo cobrir-vos-á com sua sombra. E por isso o Santo que
nascerá de Vós, será chamado Filho de Deus. Já vossa prima Isabel
concebeu um filho na velhice e este é o sexto mês da que se diz
estéril; pois nada para Deus é impossível".
Maria levantou o véu e, olhando para o Anjo, respondeu as santas
palavras: "Eis aqui a serva do Senhor; faça-se em mim segundo a
vossa palavra." A Santíssima Virgem estava em profundo êxtase.
O quarto estava cheio de luz, o Céu parecia aberto e um rasto
luminoso permitiame ver por cima do Anjo, no fim da torrente de
luz, a Santíssima Trindade. Quando Maria disse: "Faça-se em mim
segundo a vossa palavra", vi a aparição do Espírito Santo; do
peito e das mãos derramaram-se-Ihe três raios de luz para o lado
direito da Santíssima Virgem, unindo-se-Ihe. Maria estava nesse
momento toda luminosa e como transparente.
Vi depois o Anjo desaparecer e do rasto luminoso que se retirava
para o Céu, caíram sobre a Santíssima Virgem muitas rosas brancas
fechadas, todas com uma folhinha verde. Nesse momento vi também
uma serpente asquerosa arrastar-se pela casa e pelos degraus
acima. O Anjo, ao sair do quarto da SS. Virgem, pisou diante da
porta a cabeça desse monstro, que uivou tão horrivelmente, que
tremi de medo. Apareceram, porém, três espíritos e expulsaram o
monstro a pontapés e pancadas, para fora de casa. A Virgem
Santíssima, toda absorta em extática contemplação, reconheceu e
viu em si o Filho de Deus, feito homem, como uma pequena forma
humana luminosa, com todos os membros já desenvolvidos, até os
dedinhos e humildemente o adorou. Foi pela meia noite, que vi esse
mistério. Depois de algum tempo, Maria se levantou, colocou-se
diante do pequeno altar de oração e rezou em pé. Foi pela manhãque
se deitou para dormir. Ana teve, por uma revelação de Deus, conhecimento de tudo.”
Para a preparação completa da vida pública e das obras de Jesus
era preciso também a santificação e a ação pública do Precursor.
Esta devia efetuar-se, segundo a vontade de Deus, pela
aproximação de Maria e de seu Filho milagrosamente concebido, da
mãe do precursor. Por isso inspirou o Espírito Santo à Virgem
Santíssima o desejo de visitar a prima Isabel. Esta morava em
Hebron, no sul do país, Maria em Nazaré, no norte; mas essa
distância não desanimou Maria. Pôs-se a caminho, em contínua
adoração e contemplação do Filho de Deus, que trazia sob o
Coração, acompanhada por S. José, evitando, quanto era possível,
as cidades e vilas tumultuosas. Anna Catharina Emmerich narra:
"Isabel (a prima de Maria e esposa de Zacarias) soube, por uma
visão, que uma virgem da sua tribo se tornara mãe, do Messias
prometido. Tinha pensado, durante essa visão, em Maria, com
grande saudade e vira-a em espírito, em caminho para sua casa.
Mas Zacarias deu-lhe a entender ser inverossímil que a
recém-casada fizesse tal viagem. Isabel, porém, cheia de saudade,
foi-lhe ao encontro. Maria Santíssima, vendo Isabel de longe e
reconhecendo-a correu adiante de José, ao encontro dela.
Cumprimentaram-se afetuosamente com um aperto de mão. Nisto vi
um esplendor em Maria e um raio de luz passando dela para Isabel,
que se sentiu milagrosamente comovida. Abraçando-se,
atravessaram, o pátio em direção à porta da casa. José entrou,
por uma porta lateral, no átrio da casa, onde humildemente
cumprimentou o velho sacerdote venerável; este o abraçou
cordialmente e expandiu-se com ele, escrevendo numa lousa, pois
ficara mudo desde a aparição do Anjo no Templo.
Maria e Isabel entraram pela porta da casa no átrio. Ali se cumprimentaram de novo muito afetuosamente, pondo as mãos nos braços
uma da outra e encostando face a face. Nisso vi de novo como que
um esplendor em Maria, radiando para Isabel, pelo que esta ficou
toda luminosa, comovida por uma alegria santa. Recuando com as
mãos levantadas, exclamou, cheia de humildade, alegria e
entusiasmo: "Bendita sois entre as mulheres e bendito é o fruto
do vosso ventre! Donde me vem a felicidade de ser visitada pela
Mãe do meu Senhor? Porque assim que chegou a voz da saudação aos
meus ouvidos, logo o menino deu um salto de prazer no meu ventre.”
Então conduziu Maria ao quartinho preparado para ela. Maria, porém, na elevação da sua alma, proferiu o cântico do "Magnificat":
Minha alma engrandece o Senhor, etc.
Depois de alguns dias, voltou José a Nazaré, acompanhado, parte
do caminho, por Zacarias. Maria Santíssima, porém, ficou três
meses com Isabel, até o nascimento de João e já antes da
circuncisão do menino voltou para Nazaré. José veio-lhe ao
encontro até meio caminho e foi então que notou que estava
grávida. Não tendo conhecimento da anunciação do Anjo à SS.
Virgem, foi acometido de dúvidas e desassossego. Maria guardara
consigo o mistério, por humildade e modéstia. José nada disse,
mas lutou em silêncio com as dúvidas que lhe torturavam o coração. Em Nazaré lhe cresceu o desassossego, a ponto de resolver
abandoná-Ia e fugir secretamente. Então lhe apareceu um Anjo em
sonho e consolou-o".
Nas últimas linhas, que não fazem mais que repetir o que já consta
da Escritura Sagrada, se revela a profunda humildade de Maria
Santíssima. Ela compreendia que José devia saber o que se tinha
passado. Sentiu profundamente a dor do piedoso esposo, mas, por
modéstia, não teve a coragem de revelar-lhe o santo mistério e
o extraordinário privilégio, que lhe fora dado. Humildemente
confiou que Deus a ajudasse e foi-lhe recompensada essa confiança
e ouvida a piedosa oração. Quanto tempo teve de pedir, não
sabemos; em todo caso, porém, vemos que Deus não atende
imediatamente às súplicas nem das pessoas mais santas, mas só
quando chega o tempo previamente determinado pela divina
sabedoria.
6. A viagem a Belém e o nascimento de Nosso Senhor (4)
"Vi a Santíssima Virgem, com sua mãe Sant'Ana, fazendo trabalhos
de malha, preparando tapetes, ligaduras e panos, conta Anna
Catharina. José estava a caminho, voltando de Jerusalém, para
onde tinha levado animais para o sacrifício. Passando pela meia
noite pelo campo de Chirnki, a seis léguas de Nazaré, apareceu-lhe
um Anjo, com o aviso de partir imediatamente com Maria para Belém,
pois era ali que ela devia dar à luz o filho. Ordenou-lhe também
que levasse, além do jumento, em que Maria devia viajar, uma
jumentinha de um ano; que deixasse esta correr livre e seguisse
o caminho que ela tomasse.
José comunicou a Maria e Ana o que lhe fora dito; então se
prepararam para a partida imediata. Ana ficou muito aflita. A
Virgem Santíssima, porém, já sabia antes que devia dar à luz o
filho em Belém, mas na sua humildade calara-se.”
A vida dos filhos de Deus é uma mistura de alegria e de dor. Maria
Santíssima tinha-o experimentado já em Nazaré; verificou-o por
toda a vida e também então, na viagem ao lugar abençoado, onde
o Filho de Deus ia descer à terra. A piedosa Emmerich narra:
"Vi José e Maria partirem, acompanhados por Ana, Maria Cleophae
e alguns criados, até o campo de Ginim, onde se separaram,
despedindose comovidos.
Vi a Sagrada Família continuar a viagem, subindo a serra de
Gilboa. Na noite seguinte passaram por um vale muito frio,
dirigindo-se a um monte. Caíra geada. Maria, sentindo frio,
disse: "Devemos descansar, não posso ir mais adiante." José
arranjou-lhe um assento, debaixo de um terebinto; ela, porém,
pediu instantemente a Deus que não a deixasse sofrer qualquer mal,
por causa do frio. Então a penetrou tanto calor, que ela deu as
mãos a José, para aquecer as dele. José falou-lhe muito
carinhosamente; ele era tão bom e sentia tanto que a viagem fosse
tão penosa! Falou também da boa recepção que esperava achar em
Belém.
Celebraram o Sábado numa estalagem. Na manhã seguinte continuaram
o caminho, passando por Samaria. A Santíssima Virgem andava a pé;
às vezes paravam em lugares convenientes e descansavam.
(4) Jesus Cristo nasceu, segundo as visões de Anna Catharina,
ainda no ano de 3997, por conseguinte 8 anos antes da nossa
cronologia, que se começa a contar no ano de 4004.
A verdadeira data do nascimento também se lhe apresenta
diferente: quatro semanas antes, portanto: a anunciação de Nossa
Senhora nos fins de Fevereiro e o Natal pelos fins de Novembro.
A jumenta ora ficava atrás, ora corria muito para a frente; mas
onde os caminhos divergiam, apresentava-se e tomava o caminho bom
e onde deviam descansar, parava.
A primeira coisa que S. José fazia, em cada lugar de descanso e
em cada estalagem, era arranjar um lugar cômodo para a Santíssima
Virgem sentar-se e descansar.
Quando a sagrada família chegou a dez léguas de Jerusalém,
encontrou de noite uma casa solitária. José bateu à porta, pedindo
agasalho para a noite; mas o dono da casa tratou-os grosseiramente
e negou-lhes o abrigo. Então andaram um pouco adiante e, entrando
num rancho, encontraram ali a jumenta esperando.
Abandonaram esse abrigo já antes de amanhecer. Em outra casa foram
também tratados asperamente. José tomou pousada mais vezes pelo
fim da viagem, pois esta se tornava cada vez mais penosa para a
SS. Virgem. Seguindo sempre a jumenta, fizeram deste modo uma
volta de quase um dia e meio, para leste de Jerusalém. Rodeando
Belém, passaram pelo norte da cidade e aproximaram-se pelo lado
oeste. Pararam e pousaram afastados do caminho, sob uma árvore.
Maria apeou-se e concertou o vestido. Depois José a conduziu a
um grande edifício, que estava a alguns minutos fora de Belém;
era a casa paterna de José, o antigo solar de Davi, mas naquele
tempo servia de recebedoria do imposto romano. José entrou na
casa; os amanuenses perguntaram quem era e depois lhe leram a
genealogia, como também a de Maria. Aparentemente, ele não sabia
que Maria descendia também por Joaquim, em linha direta, de Davi.
Maria foi também chamada perante os escrivões.
José entrou então com ela em Belém, procurando em vão pousada logo
nas primeiras casas; pois havia muitos forasteiros na cidade.
Continuaram assim, indo de rua em rua. Chegando à entrada de uma
rua, Maria esperava com os jumentos, enquanto José ia de casa em
casa, pedindo agasalho, mas em vão. Maria tinha de esperá-lo às
vezes muito e sempre com o mesmo resultado; tudo já ocupado, não
havia mais lugar para eles. Então disse José a Maria que era melhor
ir à outra parte de Belém; mas também lá procurou em vão.
Conduziu-a então e ao jumento, para debaixo de uma árvore grande,
afim de descansar, enquanto ele ia à procura de hospedagem. Muita
gente passou pela árvore, olhando para Maria. Julgo que alguns
também se lhe dirigiram, perguntando quem era. Maria era tão
paciente, tão humilde e ainda tinha esperança. Mas, depois de
esperar muito, voltou José triste e abatido, pois nada arranjara. Os amigos, dos quais tinha falado à SS. Virgem, não
quiseram reconhecê-lo. Lamentou-o com lágrimas nos olhos, mas
Maria consolou-o. Mais uma vez começou ele a procurar de casa em
casa, voltando finalmente tão abatido, que só se aproximou
hesitante. Disse que conhecia um lugar fora da cidade pertencente
aos pastores; ali, com certeza, achariam abrigo.
Assim saíram de Belém, para uma colina situada no lado oriental
da cidade, na qual havia uma gruta ou adega. A jumentinha, que
já da casa paterna de José tinha corrido para lá, fazendo a volta
da cidade, veio-lhes ao encontro, pulando e brincando alegremente
em roda. Então disse a SS. Virgem a José: "Vê, de certo é vontade
de Deus que aqui fiquemos.”
José acendeu uma luz e, entrando na caverna, tirou algumas coisas
de lá, afim de arranjar um lugar de descanso para a SS.Virgem.
Depois a levou para dentro e ela se assentou no leito feito de
mantas e fardéis de viagem. José pediu-lhe humildemente desculpa
pela pobre hospedagem; mas Maria, cheia de piedosa esperança e
amor, estava contente e feliz.
José buscou água num odre e da cidade trouxe pratinhos, algumas
frutas e feixes de lenha miúda; buscou também brasas, para acender
fogo e preparar a refeição. Depois de ter comido e feito as
orações, deitou-se Maria no leito; José, porém, arranjou o seu
leito à entrada da gruta.
Maria Santíssima passou o dia seguinte, o Sábado, na gruta,
rezando e meditando com grande devoção. De tarde José a levou,
através do vale, à gruta que servira de sepulcro a Marabá, ama
de Abraão. Depois, terminado o Sábado, veio reconduzí-la à
primeira gruta. Maria disse a S. José que à meia noite desse dia
chegaria a hora do nascimento de seu Filho, pois teriam passado
nove meses desde a anunciação pelo Anjo: José ofereceu-se para
chamar algumas mulheres piedosas de Belém para assistí-la, mas
Maria recusou.
Desse modo chegaram os santos Pais de Jesus, guiados pela Divina
Providência, ao lugar determinado pelo Pai Eterno, em união com
o Filho Unigênito e o Espírito Santo, para o nascimento daquele
divino Menino, cheio de graça, que havia de tirar da terra a
maldição, abrir o Céu e criar um novo Éden de Deus cá na terra.
Lúcifer e os seus sequazes perderam o reino do Céu pelo orgulho,
querendo ser iguais a Deus e assim perderam os primeiros homens
também o paraíso, porque o mesmo sedutor os enganou com vãos
desejos de serem iguais a Deus. Por isso, a santa humildade havia
de abrir de novo o caminho do Céu. O Filho de Deus veio a este
mundo ensinar, pelo exemplo, essa e todas as outras virtudes. Eis
porque Ele, o Rei da eternidade, quis nascer homem num lugar onde
os animais se abrigavam. Para primeiro berço escolheu uma miserável manjedoura, na qual o gado costumava comer. Assim não lhe
faltou nada da pobreza humana, mas uniu-se-lhe o esplendor da
majestade divina. - A piedosa vidente continua:
"Quando Maria disse ao esposo que o tempo estava próximo e que
a deixasse e fosse orar, José saiu, recolhendo-se ao leito, para
rezar. Ao sair, voltou-se mais uma vez, para fitar a SS. Virgem
e viu-a como rodeada de chamas; toda a gruta estava iluminada como
por uma luz sobrenatural. Então entrou com santo respeito na sua
cela e prostrou-se por terra, para orar.
Vi o esplendor em volta da SS. Virgem crescer mais e mais. Ela
estava de joelhos, coberta de um vestido largo, estendido em
redor, sem cinto. A meia noite ficou extasiada e levantada acima
do solo; tinha os braços cruzados sobre o peito. Não vi mais o
teto da gruta; uma estrada de luz abria-se-Ihe por cima, até o
mais alto Céu, com crescente esplendor.
Maria, porém, levantada da terra em êxtase, olhava para baixo,
adorando o seu Deus, cuja Mãe se tornara e que jazia deitado por
terra, diante dela, qual criancinha nova e desamparada. Vi o nosso
Salvador qual criancinha pequenina, resplandecente, cujo brilho
excedia a toda a luz na gruta, deitado no tapete, diante dos
joelhos de Maria. Parecia-me que era muito pequeno e crescia cada
vez mais, diante dos meus olhos.
Depois de algum tempo vi o Menino Jesus mover-se e ouvi-o chorar.
Então foi que Maria voltou a si. Tomou a criancinha e, cobrindo-a
com um pano, apertou-a ao peito. Assim se sentou, envolvendo-se,
com o Filhinho, no véu. Então vi em redor Anjos em forma humana,
prostrados em adoração diante do Menino.
Cerca de uma hora após o nascimento, Maria chamou S. José, que
ainda estava rezando. Chegando-se-Ihe perto, prostrou-se-Ihe o
esposo em frente, em adoração, cheio de humildade e alegria. Só
depois que Maria lhe pediu que apertasse de encontro ao coração
o santo dom de Deus, foi que se levantou, recebendo o Menino Jesus
nos braços e louvando a Deus, com lágrimas de alegria.
A SS. Virgem envolveu então o Menino em panos e deitou-o na
manjedoura, cheio de junco e ervas finas e coberta com uma manta.
A manjedoura estava ao lado direito, na entrada da gruta. Os
santos Pais, tendo deitado o menino no presepe, ficaram-lhe ao
lado, cantando salmos.”
O tempo chegara à consumação: O Verbo fizera-se carne, - o Verbo
Eterno e Divino do Pai Celestial Todo-Poderoso. A profecia de
Isaías cumprira-se: A Virgem concebera e dera à luz um filho, cujo
nome é Emanuel, "Deus Conosco". (Is. 7, 14). Apareceu entre nós
o Messias, prometido já no paraíso e por todos os povos tão
ardentemente anelado. Está deitado numa manjedoura, qual criança
pobre e desamparada. Será reconhecido em tão humildes condições?
A quem se revelará pri meiro o Rei da glória? Não aos grandes e
soberbos da terra! Pastores, pobres e simples, são os primeiros
convidados por mensageiros celestiais à manjedoura, para adorar
o Menino divino. Conta Catharina Emmerich:
"Vi três pastores, que estavam juntos, diante do rancho,
admirando a maravilhosa noite; no céu vi uma nuvem luminosa,
descendo para eles. Ouvi um doce canto. A principio se assustaram
os pastores, mas de repente Ihes surgiu um Anjo, dizendo: "Não
temais, anuncio-vos uma grande alegria, que é dada a todo o povo,
pois nasceu hoje, na cidade de Davi, o Salvador, que é Cristo,
nosso Senhor... Eis o sinal para conhecê-Io: achareis uma criança
envolta em panos e deitada num pre sépio." Enquanto o Anjo assim
falava, aumentava o esplendor em redor e vi então cinco ou sete
Anjos, grandes, luminosos e graciosos, diante dos pastores;
seguravam nas mãos uma fita, como de papel, na qual estava escrita
uma coisa, em letras do tamanho de um palmo: ouvi-os louvar a Deus
e cantar: "Glória a Deus nas alturas e paz na terra aos homens
de boa vontade".
Os pastores na torre de vigia tiveram a mesma aparição, apenas
um pouco depois. Do mesmo modo apareceram os Anjos a um terceiro
grupo de pastores, perto de uma fonte, a três léguas de Belém,
a leste da torre dos pastores. Vi que os pastores não foram
imediatamente à gruta; para lá chegar os três pastores tinham um
caminho de uma hora e meia e os da torre o dobro. Vi também que
deliberaram sobre o que deviam levar, como presente, ao Messias
recém-nascido; depois buscaram as dádivas o mais depressa
possível.
Ao crepúsculo da manhã chegaram os pastores, com os presentes,
à gruta. Contaram a S. José o que Ihes anunciara o Anjo e que vinham
para adorar o Messias. José aceitou os presentes, com humildes
agradecimentos e conduziu os pastores à SS. Virgem. que estava
sentada ao pédo presépio, com o Filho ao colo. Os recém-chegados
prostraram-se de joelhos diante de Jesus, segurando os cajados
nos braços; choraram de alegria e permaneceram assim muito tempo,
sentindo grande felicidade e doçura. Quando se despediram,
deu-Ihes a SS. Virgem o Menino a abraçar. De tarde vieram outros
pastores, com mulheres e crianças, trazendo presentes.
Alguns dias depois do nascimento de Jesus, estando José e Maria
ao lado do presépio e olhando com grande e íntima felicidade para
o divino Menino, aproximou-se de súbito o jumento, e, caindo de
joelhos, baixou a cabeça até o chão. Maria e José derramaram
lágrimas à vista disso.
Depois do Sábado, José chamou três sacerdotes de Belém, para a
circuncisão do Menino. Estes trouxeram a cadeira da circuncisão
e uma laje de pedra octogonal, na qual se encontravam os
instrumentos necessários. Ao nascer do dia teve lugar a
circuncisão. Oito dias depois do nascimento do Senhor, vi que um
anjo apareceu ao sacerdote, apresentando-lhe o nome de Jesus,
escrito numa lousa. O Menino Jesus chorou alto, depois da santa
cerimônia. José recebeu-o do sacerdote e depositou-o nos braços
da SS. Virgem.
Na tarde do dia seguinte, chegou Isabel, com um velho criado, à
gruta. Houve grande regozijo. Isabel apertou o Menino ao coração.
Veio também Ana, com o segundo marido e Maria Helí. Maria pôs o
Menino nos braços da velha mãe, que estava muito comovida. Maria
contou-lhe também, cheia de íntima felicidade, todas as
circunstâncias do nascimento. Ana chorou com Maria, acariciando
durante todo o tempo o Menino Jesus.”
7. Os ascendentes dos três Reis Magos e a viagem destes a Belém
Um dos fatos mais maravilhosos da vida do Divino Salvador é a vinda
dos três Reis Magos ao presépio. Surge a pergunta: Como foi
possível que três homens de alta posição, com numerosa comitiva,
vindos de terras longínquas, chegassem guiados por uma estrela
ao presépio de Belém?
Para explicação cita-se geralmente o trecho do livro Números 24,
17; "Uma estrela sai de Jacó, um cetro levanta-se de Israel, que
esmagará os príncipes de Moab." Certamente é este trecho de
importância e sem dúvida o conheceram os pontífices dos judeus,
melhor do que os chefes das tribos longínquas dos gentios.
Contudo, não vieram aqueles ao presépio, mas estes últimos. Logo,
não bastava só a estrela, para levá-los lá, faziam-se precisas
outras previdências divinas, milagrosas. Quais foram estas,
conta-nos a pobre camponesa de Flamske:
"Os antepassados dos três Reis Magos descendiam de Jó, que outrora
vivera no Cáucaso. Um discípulo de Balaão anunciara ali a profecia
deste, de que apareceria uma estrela de Jató. Essa profecia achou
larga aceitação. Construiu-se uma torre alta, numa montanha.
Muitos sábios e astrônomos viveram ali altemadamente; tudo que
notavam nos astros, escreviam e ensinavam a todos.
Os chefes de uma tribo da terra de Jó, numa viagem ao Egito, na
região de Heliopoli, receberam por um Anjo a revelação de que o
Salvador nasceria de uma Virgem e seria adorado pelos seus
descendentes. Eles mesmos deviam voltar e estudar os astros.
Esses Médos começaram então a observar as estrelas. Diversas
vezes, porém, caiu esse estudo em esquecimento, por causa de
vários acontecimentos. Depois começou o abominável abuso de
sacrificarem crianças, para que a criança prometida viesse mais
depressa.
Cerca de 500 anos antes do nascimento de Jesus, estava esse estudo
dos astros também em decadência. Existia porém, a descendência
daqueles chefes, constituída por três irmãos, que viviam
separados, cada um com sua tribo. Tiveram três filhas, às quais
Deus deu o dom de profecia, de modo que ao mesmo tempo percorreram
o país e as três tribos, profetizando e ensinando sobre a estrela
de Jacó. Então se renovou nessas três tribos o estudo das estrelas
e renasceu o desejo da vinda do Menino prometido. Desses três
irmãos descenderam os Reis Magos em linha direta, por 15 gerações,
após 500 anos; mas, pela mistura com outras raças, eram de cores
diferentes. Desde o princípio desses 500 anos, ficavam sempre
alguns dos antepassados dos Reis num edifício comum, para
estudarem os astros; conforme as diversas revelações que
recebiam, mudavam certas coisas nos templos e no culto divino.
Infelizmente continuou ainda entre eles, por muito tempo, o
sacrifício de homens e crianças. Todas as épocas que se referiam
à vinda do Messias, conheciam-nas em visões milagrosas, ao
observar as estrelas. Desde a Conceição de Nossa Senhora,
portanto há 15 anos, essas visões mostravam, cada vez mais
distintamente, a vinda da criança. Por fim viram até muitas coisas
que se referiam à paixão de Jesus.
Podiam calcular bem o tempo da estrela de Jacó, que Balaão predissera. (Núm. 24, 17); pois viram a escada de Jacó e, segundo o
número dos degraus e a sucessão das imagens que nestes apareciam,
podiam calcular, como num calendário, a proximidade da Salvação;
pois o cume da escada deixava ver a estrela ou a estrela era a
última imagem dela. Viam a escada de Jacó como um tronco, que tinha
três séries de escalões cravados em roda; nestes aparecia uma
série de imagens, que viam também nas estrelas, no tempo da sua
realização. Dessa maneira sabiam exatamente que a imagem havia
de aparecer e conheciam, pelos intervalos, quanto tempo haviam
de esperá-Ia.
Lembro-me de ter visto, na noite do nascimento de Jesus, dois dos
Reis na torre. O terceiro, que vivia a leste do Mar Cáspio, não
estava com eles; viu, porém, a mesma visão, à mesma hora, na sua
terra.
A imagem que reconheceram, apareceu em diversas variações; não
foi numa estrela que a viram, mas numa figura composta de um certo
número de estrelas. Divisaram, porém, sobre a lua um arco-iris,
sobre o qual estava sentada uma virgem; à esquerda desta, aparecia
no arco uma videira, à direita um molho de espigas de trigo.
Vi aparecer diante da Virgem a figura de um cálice ou, melhor,
subir ou sair-lhe do esplendor; saindo desse cálice, apareceu uma
criancinha e, sobre esta, um disco luminoso, como um ostensório
vazio, do qual emanavam raios semelhantes a espigas. Tive nisso
a impressão do SS. Sacramento.
Do lado direito da criancinha, que subia do cálice, brotou um
ramo, no qual desabrochou, como uma flor, uma igreja octogonal,
que tinha um portão grande e duas portas laterais. A Virgem moveu
com a mão o cálice, a criança e a hóstia para cima, colocando-as
dentro da Igreja e a torre da Igreja levantou-se-Ihe por cima e
tomou-se por fim uma cidade brilhante, assim como representamos
a Jerusalém celeste. Vi nessa imagem muitas coisas, como
procedendo e desenvolvendo-se umas das outras.
Os Reis viram Belém como um belo palácio, como uma casa na qual
se junta e se distribui muita bênção. Lá viram a Virgem SS., com
o Menino, rodeada de muito esplendor e muitos reis se inclinarem
diante dele, oferecendo-lhe sacrifícios. Tomaram tudo como
realidade, pensando que o rei tinha nascido em tal esplendor e
que todos os povos se lhe haviam submetido; por isso foram também
lhe oferecer os seus dons. Havia um grande número de imagens
naquela escada de Jacó. Vi-as todas aparecer nas estrelas, no
tempo do seu cumprimento. Naquelas três noites, os três Reis Magos
viram continuamente essas imagens. O mais nobre entre eles mandou
então mensageiros aos outros e, quando viram a imagem dos reis
que ofereceram presentes ao Rei recém-nascido, puseram-se também
a caminho, com riquíssimas dádivas, para não serem os últimos.
Todas as tribos dos astrônomos viram a estrela, mas s6 aqueles
a seguiram.
Alguns dias depois da partida dos reis, vi Theokenos, com o seu
séquito, juntar-se aos grupos de Mensor e Sair; Theokenos não
tinha estado antes com estes últimos. Cada um dos Reis tinha no
séquito quatro parentes próximos da tribo, como companheiros. A
tribo de Mensor era de cor agradável, pardacenta; a de Sair parda
e a de Theokenos de cor amarela, brilhante.
Mensor era Caldeu; depois da morte de Jesus, foi batizado por S.
Tomé e recebeu o nome de Leandro. Sair teve o batismo de desejo;
não vivia mais, quando Jesus foi à terra dos Reis Magos. Theokenos
veio da Média e era o mais rico; foi batizado e chamado Leão por
S. Tomé. Deram-se aos Reis Magos os nomes de Gaspar, Melchior e
Baltasar, porque estes nomes lhes designam o caráter: Gaspar Vai com amor. Me1chior - Aproxima-se humildemente. Baltasar - Age
prontamente, conformando a sua vontade com a de Deus.
O caminho para Belém era de mais de 700 léguas: fizeram-no em 33
dias, viajando muitas vezes dia e noite. A estrela que os guiava,
era como um globo brilhante. Um jorro de luz emanava dela sobre
a terra. Vi finalmente chegarem os Reis à primeira vila judaica.
Ficaram, porém, muito acabrunhados, porque ninguém sabia coisa
alguma do Rei recém-nascido.
Quanto mais se aproximavam de Jerusalém, tanto mais tristes
ficavam, pois a estrela se tornava muito menos clara e brilhante
e na Judéia a viram raras vezes. Quando pararam, fora de
Jerusalém, desaparecera totalmente. Falaram da estrela e da
criança recém-nascida, ninguém quis compreendê-Ios; por isso,
tomaram-se ainda mais tristes, pensando que se tinham enganado".
Anna Catharina descreve ainda a admiração e sensação que a caravana dos Reis Magos causou na cidade; como Herodes, alta noite,
mandou chamar Theokenos ao palácio e convidou os Reis a virem
apre sentar-se na manhã seguinte. Herodes enviou alguns criados
a chama rem os sacerdotes e escribas, que se esforçaram por
sossegá-Io. Ao nascer do dia, se apresentaram os Reis a Herodes
e perguntaram-lhe onde estava o novo rei dos judeus, cuja estrela
tinham visto e ao qual tinham vindo adorar. Herodes ficou muito
inquieto, informou-se mais sobre a estrela e disse-Ihes que a
profecia se referia a Belém Ephrata; aconselhou-os a irem
silenciosamente a Belém e voltarem depois a informar-lhe, pois
que também queria adorar o Menino.
Vi sair de Jerusalém a caravana dos Reis. Vendo de novo a estrela,
deram um grito de alegria. Ao cair da noite, chegaram a Belém;
então desapareceu a estrela. Muito tempp ficaram diante das
portas, duvidando e hesitando, até que viram uma luz brilhante,
ao lado de Belém. Então tomaram o caminho para o vale da gruta,
onde acamparam. No entanto, apareceu a estrela por cima do
outeiro da gruta e uma torrente de luz caiu verticalmente sobre
este. De repente se lhes encheram os corações de grande alegria,
pois viram na estrela a figura luminosa da criança. Os três Reis
Magos aproximaram-se da colina; abrindo a porta da gruta, Mensor
viu-a cheia de luz celeste e a Virgem sentada lá dentro, com a
criança, como a tinham visto nas visões. Anunciou-o aos outros
dois.
S. José saiu-Ihes ao encontro, cumprimentando-os e dando-Ihes as
boas vindas. Então se prepararam para o ato solene que queriam
fazer e seguiram S. José. Dois jovens estenderam primeiro um
tapete de pano no chão, até a manjedoura. Mensor e os companheiros
entraram, caíram de joelhos e Mensor colocou aos pés de Maria e
José os presentes; com a cabeça inclinada e os braços cruzados,
proferiu palavras comoventes de adoração. Depois tirou do bolso
uma mão cheia de barras do tamanho de um dedo, grossas e pesadas
com um brilho de ouro e pô-Ias ao lado da criança, nas vestes de
Maria. Tendo se retirado, com os companheiros, entrou Sair com
os seus, prostrando-se, com profunda humildade, com os dois
joelhos por terra. Ofereceu com palavras tocantes os presentes,
colocando diante do Menino Jesus uma naveta de incenso, feita de
ouro puro, cheia de pequenos grãos esverdeados de incenso. Ficou
muito tempo de joelhos, com grande devoção e amor. Depois dele
se aproximou Theokenos, o mais velho. Ficando em pé, inclinou-se
profundamente e apresentou um vaso de ouro cheio de uma erva
verde; ofereceu mirra e ficou muito tempo diante do Menino Jesus,
em profunda comoção.
Os Reis Magos estavam encantados e repassados de amor e humilde
adoração. Lágrimas de alegria caiam-lhes dos olhos; também Maria
e José derramaram lágrimas de felicidade. Aceitaram tudo,
humildes e gratos; finalmente dirigiu Maria a cada um algumas
palavras afáveis.
Após os Reis, entraram também os criados, aproximando-se, cinco
a cinco, do presépio; ajoelharam-se em roda do Menino e
adoraram-no em silêncio; finalmente entraram também os pajens.
Os Reis Magos voltaram mais uma vez ao presépio, vestidos de
amplos mantos, trazendo turíbulos nas mãos; incensaram o Menino,
Maria e José e toda a gruta, retirando-se depois, com profunda
inclinação. Era esta a cerimônia de adoração entre aqueles povos.
No outro dia visitaram os Reis mais uma vez o Menino e de noite
vieram despedir-se. Mensor entrou primeiro. Maria pôs-lhe o
Menino nos braços; ele chorou, radiante de alegria. Depois vieram
também os outros. Maria deu-Ihes o seu véu de presente.
Pela meia noite viram no sono a aparição de um Anjo, avisando-lhes
que partissem imediatamente, não tomando o caminho de Jerusalém,
mas o do Mar Morto. Com incrível rapidez desapareceram as tendas;
e, enquanto os Reis Magos se despediam de S. José, já o séquito
estava caminhando a toda a pressa, em três turmas, para leste,
com rumo ao deserto de Engadi, ao longo do Mar Morto. Vi o Anjo
com eles na campina, mostrando-lhes a direção do caminho; de
súbito não se avistaram mais.
O Anjo tinha avisado os Reis bem a tempo; pois a autoridade de
Belém, não sei se por ordem de Herodes ou por próprio zelo, tinha
a intenção de prender os Reis, que dormiam na estalagem,
fechá-los, sob a sinagoga, onde havia adegas profundas e
acusá-los perante o rei Herodes de desordens públicas. Mas de
manhã, quando se soube da partida dos Magos, estes já estavam
perto de Engaddi, e o vale onde haviam acampado estava quieto e
deserto como dantes, nada restando do acampamento, fora algumas
estacas de tendas e os rastos do capim pisado" .
Em memória da visita dos três Reis Magos ao presépio é que
se celebra, todos os anos, a festa de Reis. A Escritura Sagrada
chama-os apenas os "Magos", mas o povo deu-lhes, desde os
primeiros tempos, o título de "Reis", talvez induzido pela
profecia de Davi: "Os reis de Tharsis e das ilhas oferecer-Lhe-ão
dons; os reis da Arábia e de Sabá trar-Lhe-ão presentes". (S. 71,
10). A festa de Reis é uma das mais anti gas da Igreja cristã,
mais antiga do que a de Natal. É prova de que esse acontecimento
fez grande impressão aos amigos de Jesus. Em verdade era um fato
maravilhosíssimo virem três príncipes do Oriente, com nu meroso
séquito, guiados por uma estrela, prestar adoração ao
Menino Jesus no presépio, ao passo que Israel não conheceu o seu
Senhor. Só Deus pode criar estrelas e sobretudo uma estrela que
guia homens e pára por cima do presépio: é um milagre grandioso,
que só Deus, o Senhor da natureza, pode operar. Foi, pois, esse
acontecimento uma prova de que tinha chegado verdadeiramente o
cumprimento dos tempos e de que Jesus era mais do que um homem
comum.
A vinda dessa caravana numerosa e estranha devia dirigir os
olhares de todo o povo para Belém; tinha todo o cabimento a
pergunta: Então chegou o tempo em que deve vir o Messias? Desse
modo foram preparadas todas as almas que amavam a Deus, ao
reconhecimento de Jesus como Messias; os infiéis, porém,
tomaram-se mais culpados.
8. Apresentação de Jesus no Templo e fuga para o Egito
A santa vontade de Deus exigia a apresentação de Jesus no Templo,
tanto mais necessária, quanto é certo que o nosso Divino
Salvador tinha a vocação de oferecer-se ao Pai celeste como
sacrifício de expia ção pelos pecados dos homens. Sacrificou-se
em espírito, desde o começo da vida, como lemos na Escritura
Sagrada. Mas esse oferecimento havia de fazer-se também
publicamente, tanto por seus santos pais, como por ele mesmo, ao
ser apresentado no Templo.
"Na madrugada do dia seguinte, conta a Serva de Deus, vi a
Sagrada Família dirigir-se ao Templo. Entraram num pátio do
Templo, que era cercado de muros. Maria, com o Menino, foi
recebida por uma matrona idosa, que a conduziu por um corredor
ao Templo. Nesse corredor veio o velho Simeão, cheio de santa
esperança, ao encontro da SS. Virgem. Ele vira, no dia anterior,
um Anjo que lhe aparecera e avisara de que prestasse atenção ao
Menino que no dia seguinte seria apresentado em primeiro lugar:
era o Messias. Simeão dirigiu algumas palavras a Maria, cheio de
júbilo e, tomando o Menino nos braços, apertou-o ao coração. A
SS. Virgem foi depois conduzida aos átrios do Templo, onde a
receberam Ana, que também tivera uma visão e Noemi, sua antiga
mestra.
Simeão levou Maria à mesa do Sacrifício, sobre a qual ela colocou
o Menino Jesus, num bercinho de vime. Nesse momento, vi que o
Templo se encheu de uma luz inefável. Vi que Deus estava nessa
luz e, por cima do Menino, vi o céu aberto, até ao trono da SS.
Trindade. Simeão reconduziu então Maria ao lugar das mulheres.
Ele e três outros sacerdotes tomaram as vestes sacerdotais. Um
deles colocou-se atrás e outro diante da mesa do sacrifício; os
outros dois, nos lados estreitos da mesa, orando sobre o Menino.
Maria, conduzida de novo à mesa do sacrifício, ofereceu frutas,
algumas moedas e um par de rolas. O sacerdote, porém; de trás da
mesa, tomando o Menino nos braços, levantouo e moveu-o para
diversos lados do Templo, orando por muito tempo. Entregou depois
o Infante a Simeão, que o depositou nos braços de Maria, orando
sobre esta e o Menino. A SS. Virgem retirou-se depois ao lugar
das mulheres, ao qual, entretanto, cerca de vinte mães já
haviam chegado, com os primogênitos para os apresentar. José
ficou mais para trás, no lugar dos homens.
Então começaram os sacerdotes diante do altar uma cerimônia com
incenso e orações. Tendo acabado esse ato, dirigiu-se Simeão a
Nossa Senhora, e, tendo recebido a criança nos braços, falou muito
a respeito do Menino, com entusiasmo, alegria e em alta voz.
Louvando a Deus, por ter cumprido a sua promessa, exclamou:
"Agora, Senhor, deixai partir o vosso servo em paz, conforme Vossa
palavra. Pois meus olhos viram a Vossa salvação, que preparastes
diante dos olhos das nações: luz para aclarar os gentios e glória
de Israel, vosso povo.”
José aproximara-se depois do sacrifício, escutando
respeitosamente, juntamente com Maria, as palavras entusiasmadas
de Simeão, que abençoou a ambos, dizendo depois a Maria: "Este
menino veio ao mundo para a ruína e ressurreição de muitos em
Israel e para ser um sinal de contradição. Vós mesma tereis a alma
varada por uma aguda espada e assim serão patenteados os corações
de muitos".
Tendo Simeão acabado de falar, começou também a profetisa Ana,
inspirada pelo Espírito Santo, a glorificar o Menino Jesus,
felicitando à SS. Virgem. Esta luzia, como uma rosa celeste.
Oferecera o sacrifício mais pobre, exteriormente; mas José deu
secretamente a Simeão e a Ana muitas barras pequenas amarelas,
para serem empregadas em beneficio das Virgens pobres do Templo.
Depois do sacrifício, partiu a Sagrada Família, seguindo logo,
através de Jerusalém, para Nazaré.
Maria, a Virgem Puríssima, Imaculada, sujeitou-se humildemente
à lei da purificação, escondendo deste modo também o seu alto
privilégio. Apesar de tão belo ato de humildade, devia o gládio
da dor atravessarlhe a alma. Dor e sofrimento, considerados à luz
da fé, não são males, mas uma fonte de bênção e graça. A profecia
de Simeão atravessou dolorosamente o brando Coração materno de
Maria, mas em pouco, esse Coração havia de sofrer uma nova dor
veemente, quando se viu forçada a fugir de Nazaré para o Egito,
afim de salvar o Menino Jesus das garras dos assassinos, enviados
por Herodes. Ouçamos o que Anna Catharina nos narra a respeito:
"Vi um jovem resplandecente aproximar-se da cama de José e falarlhe. José acendeu uma luz e, batendo à porta do quarto de Maria,
pediu licença para entrar. Vi-o entrar e falar-lhe. Depois, foi
à estrebaria dos jumentos e a um quarto. Aprontou tudo para a
viagem. Maria vestiu-se imediatamente para a fuga e foi à casa
de sua mãe, Sant'Ana, anunciando-lhe a ordem de Deus. Ana abraçou
à SS. Virgem diversas vezes, chorando. Maria Helí prostrou-se no
chão, desfazendo-se em lágrimas. Ambas apertaram, mais uma vez,
o Menino Jesus de encontro ao cora ção. Ainda não era meia noite,
quando abandonaram a casa. Maria levava o Menino Jesus, em uma
faixa, diante de si; vestia um manto largo, que a envolvia e ao
Menino.
Vi a Sagrada Família passar, ainda de noite, por alguns lugarejos
e descansar, pela manhã, em um rancho. Só três vezes acharam,
durante a fuga, uma estalagem para pernoitar. Nos outros dias,
com os freqüentes e penosos desvios, dormiam sempre em barrancos,
cavernas e lugares desertos, longe da estrada. Viajavam sempre
à distância de uma milha da estrada real, sofrendo falta de tudo.
Vi-os chegar cansados e abatidos a uma gruta, perto de Efraim.
Mas, para os refrescar, brotou uma fonte da terra e
aproximou-se-Ihes uma cabra selvagem, que deixou ordenhar-se por
eles; apareceu-Ihes também um Anjo, que os consolou.
Tendo passado o território de Herodes e entrado num vasto
deserto arenoso, não viram mais caminho, nem sabiam a direção;
diante de si, viram serras inviáveis. A Sagrada Família estava
muito angustiada; ajoelharam-se, pedindo a Deus socorro. Então
vieram algumas feras enormes, que olharam para as serras,
correram para a frente e voltaram para trás, como cães que querem
conduzir alguém a certo caminho. A Família Sagrada seguiu
finalmente às feras, atravessou a montanha (Séir?) e entrou numa
região deserta e inóspita. Vi-a cercada por uma quadrilha de
salteadores: o chefe, com cinco ou seis homens. A princípio estes
se mostraram malévolos; mas à vista do Menino Jesus, tocou um raio
de graça o coração do chefe, que proibiu à sua gente fazer mal
aos viajantes. Conduziu a santa Família à sua cabana, na qual a
mulher Ihes ofereceu alimentos; trouxe também uma gamela com
água, para que Maria nela banhasse a Jesus. Nossa Senhora
aconselhou-lhe que banhasse na mesma água o filho morfético. Esse
menino estava cheio de lepra, mas, apenas mergulhado na água,
caíram-lhe as crostas da enfermidade e tornou-se são e limpo. A
mulher ficou fora de si, de alegria. Tive uma visão, na qual
conheci que o menino curado se tornou, mais tarde, o bom ladrão.
Pela madrugada, a Sagrada Família continuou a viagem pelo deserto
e, tendo perdido de novo o rumo, vieram animais rasteiros
mostrar-lhe o caminho. Mais tarde, viam sempre brotar uma rosa
de Jericó, ao alcance da vista.
Havendo chegado já às terras do Egito, vi a Família Sagrada
lânguida de sede, passar por um mato, em cuja orla havia uma
tamareira. As frutas pendiam do alto da árvore. Maria
aproximou-se com o Menino Jesus e, levantando-o, rezou; então se
inclinou a tamareira com a copa, de modo que lhe puderam colher
todos os frutos.
A Sagrada Família tomou o caminho de Heliópolis, cidade do Egito.
Em frente às portas dessa cidade havia um grande ídolo, uma cabeça
de touro sobre uma coluna, como pedestal. Sentaram-se os
viajantes não longe dela, debaixo de uma árvore, para descansar.
Pouco tempo depois se deu um abalo da terra; o ídolo vacilou e
caiu do pedestal. Houve por isso na cidade grande alvoroço entre
o povo.
A Sagrada Família entrou pela cidade e foi morar sob um baixo
alpen dre. José construiu, diante dessa morada, uma sacada, de
madeira. Vi-o trabalhar muito em casa, como também fora e vi a
Virgem Santíssima tecendo tapetes ou fazendo outros trabalhos.
Moraram perto de ano e meio em Heliópolis; tiveram, porém, de
sofrer muitas perseguições, depois de terem caído ainda outros
ídolos, num templo vizinho. Pouco antes de deixar a cidade, teve
a Santíssima Virgem, por um amigo, notícias da matança das
crianças de Belém, Maria e José ficaram muito tristes; o Menino
Jesus, que já podia andar, chorou durante todo o dia.
Por causa da perseguição e por falta de trabalho, saiu a
Sagrada Família de Heliópolis e, indo ao interior do país, em
direção a Mênfis, veio para Mataréia, onde José executou muitos
trabalhos de construção. À chegada, caiu também o ídolo de um
pequeno templo e, mais tarde, todos os ídolos.
Vi como o Menino Jesus, pela primeira vez, buscou água da fonte
para sua Mãe. Maria estava rezando, quando o Menino Jesus, saindo
furtivamente, foi ao poço com um odre, para buscar água. Maria
ficou muito comovida quando Jesus voltou e pediu-lhe de joelhos
que não o fizesse mais, com medo de que caísse no poço. Jesus,
porém, disse-lhe que teria muito cuidado e queria sempre ir buscar
água, quando ela precisasse. Ainda pequenino, Nosso Senhor
prestava muitos serviços aos pais, era muito atencioso e
ajuizado: notava tudo. Ía também comprar pão no próximo bairro
dos judeus, em troca dos trabalhos de Maria. Quando o Menino Jesus
foi lá pela primeira vez tinha seis ou sete anos. Vestiu, também
pela primeira vez, aquela túnica parda, tecida pela Virgem
Santíssima e bordada em baixo com florões amarelos. No caminho,
lhe apareceram dois anjos, que lhe anunciaram a morte de Herodes,
o Grande.
Vi que S. José estava muito abatido uma noite; não lhe pagaram
o salário e, assim, não pôde trazer nada para casa, onde tanto
precisavam. Cheio de angústia, ajoelhou-se no campo deserto,
queixando a Deus sua mágoa. Na noite seguinte lhe apareceu um
Anjo, que lhe trouxe a ordem de partir do Egito e voltar à sua
terra, pela estrada real.
A viagem correu sem maior perigo para a Santa Família. Mas Maria
Santíssima muitas vezes ficou aflita por causa de Jesus, que
sofreu muito com a caminhada através da areia quente. José quis
ir primeiro a Belém e não para Nazaré; estava, porém, indeciso.
Finalmente lhe apareceu um Anjo, que lhe ordenou voltar para
Nazaré, o que fez imediatamente. Ana ainda estava viva. Jesus
tinha oito anos, menos três semanas.”
9. Da mocidade de Jesus. Sua permanência em Jerusalém onde ensina
aos doutores da lei e é encontrado pelos pais no Templo (5)
Visto que a Escritura Sagrada pouco relata da infância de Jesus,
deve ser de grande interesse para nós o que Anna Catharina
Emmerich nos conta dessa época, descrevendo como o nosso Divino
Salvador passou a infância e mocidade.
"Vi a Sagrada Família, constituída pelas três pessoas Jesus,
Maria e José, desde o décimo até o vigésimo ano de Jesus, morar
duas vezes em casa alugada, com outras famílias; do vigésimo ao
trigésimo ano de Cristo, vi-a morar sozinha numa casa.
Havia na casa três quartos separados: o da Mãe de Deus era o mais
espaçoso e agradável e nesse se reuniam também os três membros
da Família para a oração; fora disso, raramente os vi juntos.
Durante a oração ficavam em pé, as mãos cruzadas sobre o peito;
pareciam rezar alto. Vi-os rezar muitas vezes de noite, à luz do
candeeiro. Todos dormiam separados nos respectivos quartos.
Jesus passava a maior parte do tempo no seu quarto. José
carpintejava no seu; vi-o talhar varas e ripas, polir peças de
madeira ou, de vez em quando, trazer uma viga. Jesus ajudava-o
no trabalho. Maria ocupava-se muito com trabalhos de costura ou
certa espécie de ponto de malha, com varinhas. Vi Jesus cada vez
mais recolhido, entregue à meditação, à proporção que se lhe aproximava o tempo da vida pública.
Até os dez anos prestava aos pais todos os serviços que podia;
era também amável, serviçal e obsequiador para com todos na rua
e onde quer que se lhe ofereeesse ocasião. Como menino, era modelo
para todas as crianças de Nazaré. Amavam-no e receavam
desagradar-lhe. Os pais dos companheiros, censurando os maus
costumes e as faltas dos filhos, costumavam dizer-Ihes: "Que dirá
o filho de José, se lhe contar isso? Como ficará triste!" Às vezes
se Lhe queixavam dos filhos, na presença destes, pedindo:
"Dize-lhe que não façam mais isso ou aquilo!" E Jesus aceitava-o
de maneira infantil, como brincadeira, ro gando aos amigos
carinhosamente que procedessem de tal ou tal modo; rezava também
com eles pedindo ao Pai Celeste força para se
corrigirem, persuadia-os a confessarem sem demora as faltas e a
pedirem perdão.
Jesus tinha figura esbelta e delicada, rosto oval e alegre, a tez
sadia, mas pálida. O cabelo liso, de um louro arruivado,
repartido no alto da cabeça, pendia-lhe da testa, franca e alta,
sobre os ombros. Vestia uma túnica comprida, de cor parda
acinzentada, inteiramente tecida, que lhe chegava até os pés; as
mangas eram um pouco mais largas nas mãos.
Aos oito anos foi Jesus pela primeira vez a Jerusalém, para a festa
da Páscoa e depois ia todos os anos.
Quando Ele veio a Jerusalém, na idade de doze anos, possuía já
muitos conhecidos na cidade. Os progenitores costumavam andar com
os conterrâneos nessas viagens e, como fosse já a quinta romaria
de Jesus, sabiam que sempre andava em companhia dos jovens de
Nazaré. Desta vez, porém, na volta, se separara dos companheiros,
perto do monte das Oliveiras, pensando estes que fosse juntar-se
aos pais. Mas, quando chegaram a Gophna, notaram Maria e José a
ausência de Jesus e tornaram-se muito inquietos. Voltaram
imediatamente, procurando-o pelo caminho e em Jerusalém; mas não
o acharam logo.
Nosso Senhor se havia dirigido, com alguns rapazes, a duas escolas
da cidade; no primeiro dia, a uma; no segundo, a outra. No terceiro
dia, fora de manhã a uma terceira escola, e de tarde ao Templo,
onde o acharam os pais. Jesus pôs os doutores e rabinos de todas
as escolas, em tal estado de admiração e de embaraço, pelas suas
perguntas e respostas, que resolveram humilhar o Menino, por
intermédio dos rabinos mais doutos, na tarde do terceiro dia, em
auditório público, interrogando-o sobre diversas matérias. Vi
Jesus sentado numa cadeira grande, rodeado de numerosos judeus
velhos, vestidos como sacerdotes. Escutavam atentamente e
parecia estarem furiosos. Como o Senhor houvesse alegado, nas
escolas, muitos exemplos da natureza, das artes e ciências, para
demonstrar as suas respostas, reuniram-se conhecedores de todas
essas matérias. Começando estes, pois, a discutir com Jesus,
entrando em pormenores, objetou-Ihes que tais coisas não se
deviam discutir no Templo; queria, porém, lhes responder por ser
isso vontade de Deus. Falou então sobre medicina, descrevendo
todo o corpo humano, como ainda não o conheciam os sábios;
discorreu sobre astronomia, arquitetura, agricultura,
geometria, matemática, jurisprudência e sobre tudo que lhe foi
proposto. Deduziu tudo isso tão claramente da Lei e da promissão,
das profecias do Templo, dos mistérios do culto e dos sacrifícios,
que uns não se fartavam de admirar e outros ficavam, ora
envergonhados, ora zangados e afinal todos se tornaram furiosos,
porque lhes dissera Nosso Senhor coisas de que nunca haviam tido
conhecimento, nem tão clara compreensão.
Já havia ensinado desse modo algumas horas, quando José e Maria
chegaram ao Templo, para se informarem, com Levitas conhecidos,
à respeito do Filho.
(5) Não se deve supor que Jesus acompanhasse os pais pela primeira
vez a Jerusalém, quando tinha 12 anos. O santo Evangelista Lucas
diz apenas: E os pais iam todos os anos a Jerusalém, no dia solene
da Páscoa. E quando Jesus tinha doze anos, subiram a Jerusalém,
segundo o costume do dia de festa. E, acabados os dias que esta
durava, quando voltaram para casa, ficou o Menino Jesus em
Jerusalém, sem que os pais o advenissem. (Luc. 2,41-43). S. Lucas
não diz, portanto, de nenhum modo, que era a primeira vez que
Jesus acompanhava os pais a Jerusalém. Não haveria ele cenamente
mencionado nem essa viagem, nem as dos outros anos, se não
houvessem acontecido coisas importantes, que era, desejável
transmitir à posteridade.
Que o Menino Jesus fizesse essa viagem de Nazaré a Jerusalém a
pé, com oito anos, não se pode estranhar, pois que os meninos do
Oriente, como, em geral, os dos países cálidos, se desenvolvem
mais cedo, corporal e espiritualmente, do que nos países frios.
Jesus já fizera nessa idade a viagem do Egito a Nazaré, viagem
muito mais longa e penosa. Devia ser até estranho e inexplicável
que o Menino Jesus não houvesse tomado parte nas romarias anuais
a Jerusalém, dos oito aos doze anos. Pelo contrário, explica-se
fácil e satisfatoriamente a confiança de Maria e José para com o
Menino de doze anos, se este fazia aquela viagem, não pela
primeira, mas pela quinta vez.
Então souberam que se achava com os doutores da lei no auditório.
Como fosse um lugar em que não Ihes era permitido entrar, mandaram
um dos levitas chamar Jesus. Este, porém, Ihes mandou dizer que
primeiro queria acabar o trabalho. Magoou muito a Maria o não vir
Ele logo. Era a primeira vez que fazia saber aos pais que as ordens
destes não eram as únicas que tinha a cumprir. Ensinou ainda uma
boa hora e, só depois de todos estarem refutados, envergonhados
e em parte zangados, foi que saiu do auditório e se dirigiu ao
átrio de Israel e das mulheres, para se encontrar com os
progenitores. José, retraído e admirado, nada disse; Maria,
porém, encaminhou-se para Ele, dizendo: "Filho, porque nos
fizeste isso? Olha que teu pai e eu te andávamos procurando,
cheios de aflição." Mas Jesus, ainda muito sério, disse: Por
que me procuráveis? Não sabeis que me devo ocupar das coisas de
meu Pai?" Eles, porém, não compreenderam essas palavras e
partiram com Ele, sem demora, de volta a Nazaré.
A doutrina de Jesus produziu grande sensação entre os doutores
da lei; mas estes guardaram silêncio sobre o acontecimento,
falando só de um menino presunçoso, a quem haviam repreendido,
que possuía bom talento, mas precisava ainda ser educado e
polido.”
Jesus, ficando em Jerusalém, não teve nenhuma intenção de
afligir os pais; teve em mira só a vontade do Pai Celeste, que
lhe inspirou ficar, para revelar a divina sabedoria. Por isso,
mostrou nas escolas e no Templo um saber maior que o natural. Como
menino de doze anos, ainda não freqüentara nenhuma escola, mas
já se apresentava como mestre dos doutores. Oxalá tivessem ouvido
e recebido a doutrina com coração suscetível! Mas, vaidosos de
seu saber, não queriam ser ensinados; antes quiseram humilhá-Io,
propondo-Lhe perguntas difíceis, às quais, como supunham, não
poderia responder. Mas foram eles mesmos que ficaram humilhados
pelas sábias respostas de Jesus e por isso se enraiveceram contra
Ele. Recusaram-se a ver a luz que os iluminava.
Uma estrela milagrosa anunciara o nascimento do Messias; mas o
povo escolhido não se importara com tal fato, nem recebera o
Salvador. O Menino Jesus fez brilhar a sua luz no Templo; mas as
autoridades do povo, os sacerdotes e doutores fecharam
propositadamente os olhos a essa luz. Por isso Ihes será tirada:
cada ano, voltará o Salvador ao Templo; mas não ensinará mais
publicamente, até que, chegado à idade madura, percorrerá todas
as regiões da Palestina, pregando sua doutrina divina a todo o
povo. Então se apresentará de novo no Templo, exclamando, em alta
voz: "Eu sou a luz do mundo." Jerusalém, se ao menos nesse dia
o conhecesses!
10. A vida do Senhor, até o começo de suas viagens apostólicas
Depois de voltar de Jerusalém, viveu Jesus, até a idade de trinta
anos, com Maria e José, em paz e recolhimento, na pequena casa
de Nazaré. Nem a Escritura Sagrada, nem a tradição nos transmitem
pormenores dessa época; o Evangelho diz apenas: "E era-Ihes (aos
pais) submisso." (Luc. 2, 51). Também Anna Catharina Emmerich
conta pouco dessa fase da vida de Jesus. Ouçamos os fatos
principais:
"Depois de Jesus ter voltado a Nazaré, vi preparar-se uma festa,
em casa de Sant' Ana, onde todos os moços e moças, parentes, e
amigos de Jesus, se reuniram. Nosso Senhor era a pessoa principal
dessa festa, à qual estiveram presentes 33 meninos, todos futuros
discípulos do Salvador. Ele os ensinou e contou-Ihes uma
belíssima parábola de núpcias nas quais a água seria mudada em
vinho e os convidados indiferentes em amigos fiéis; depois Ihes
falou de outras bodas, nas quais o vinho seria mudado em sangue
e o pão em carne; e esta boda permaneceria. com os convidados,
até o fim do mundo, como consolação e conforto e como vínculo vivo
de união. Disse também a Natanael, jovem parente seu: "Estarei
presente às tuas bodas.”
Desde esse tempo, Jesus sempre foi como que o mestre dos companheiros. Sentava-se-Ihes no meio, contando ou ensinando, ou
passeava com eles pelos campos.
Aos 18 anos, começou a ajudar a S. José na profissão. Dos vinte
aos trinta anos, teve muito que sofrer, por secretas intrigas dos
judeus. Estes não podiam suportá-Io, dizendo, com inveja, que o
filho do carpinteiro queria saber tudo melhor.
Na época em que começou a vida pública, tornou-se cada vez mais
solitário e meditativo. Quando Jesus se aproximava dos trinta
anos, tornou-se José cada vez mais fraco. Vi Jesus e Maria mais
vezes em companhia dele. Maria sentava-se-Ihe ao lado do leito,
de quando em quando. Quando José morreu, estava Maria sentada à
cabeceira da cama, segurando-o nos braços; Jesus se achava em
frente, junto ao peito do moribundo. Vi o quarto cheio de luz e
de Anjos. O corpo de José foi envolvido num largo pano branco,
com as mãos postas abaixo do peito, deitado num caixão estreito
e depositado numa bela gruta sepulcral, perto de Nazaré, gruta
a qual recebera como doação de um homem bom. Além de Jesus e Maria,
foram poucos os que acompanharam o caixão; vi-o, porém,
acompanhado de Anjos e rodeado de luz. O corpo de José foi levado
mais tarde pelos cristãos para um sepulcro perto de Belém. Julgo
vê-Io jazer ali, ainda hoje, em estado Incorrupto.
José teve de morrer antes de Jesus, pois, sendo muito fraco e
amoroso, não lhe teria sobrevivido à crucificação. Já sentira
profundamente as perseguições que o Salvador teve de sofrer, dos
vinte aos trinta anos, pelas repetidas maldades secretas dos
judeus. Também Maria havia sofrido muito com essas perseguições.
É indizível com que amor o jovem Jesus suportava as tribulações
e intrigas dos judeus.
Depois da morte de José, Jesus e Maria se mudaram para uma aldeia
situada entre Cafamaum e Betsaida, em que um homem chamado Leví
ofereceu uma casa a Jesus. Maria Cleophae, que, com o terceiro
marido, vivia na casa de Sant'Ana, perto de Nazaré, mudou-se para
a casa de Maria, em Nazaré. Vi Jesus e Maria irem de Cafarnaum
para lá e creio que Maria ficou ali, pois havia acompanhado Jesus
a Cafarnaum.
Entre os moços de Nazaré Jesus já tinha muitos adeptos; mas sempre
o abandonavam de novo. Andava com eles pelas regiões marginais
do lago e também em Jerusalém, pelas festas. A família de Lázaro,
em Betânia, era também já conhecida de Jesus.”
11. As viagens apostólicas de Jesus, antes do seu Batismo no
Jordão
Segundo as narrações de Anna Catharina Emmerich, o Divino Salvador já fizera, antes do seu Batismo, diversas viagens longas
através da Palestina começando a pregar em público sua doutrina.
Essas viagens tinham um fim preparativo. Por toda parte exortava
os homens a que recebessem o Batismo de João, em espírito de
penitência e ensinava que o Messias devia aparecer por aqueles
dias. Que Ele mesmo era o Messias, não o dizia por enquanto.
Admiravam-no como homem sábio e por suas qualidades espirituais
e corporais; ficavam surpreendidos pelos seus feitos
milagrosos... mas não chegavam a conhecer-lhe a divindade, pois
os judeus tinham opinião muito errada, a respeito do Messias e
do seu reino. Julgavam-no um rei vitorioso, que fundaria um
poderoso reino; Jesus, porém, aos seus olhos, era apenas o "filho
do carpinteiro.”
Anna Catharina viu Jesus primeiro indo de Cafarnaum a
Hebron, por Nazaré e Betânia, onde se hospedou em casa de Lázaro.
Visitou o deserto, onde Isabel escondera o menino João e, voltando
a Hebron, começou a visitar os enfermos, consolando-os e
aliviando-os. Os possessos tornavam-se sossegados perto dele.
De Hebron, foi Jesus à foz do Jordão, no Mar Morto, atravessou-o,
para a outra banda, dirigindo-se à Galiléia. Passou por Dathaim,
cerca de quatro léguas distante de Samaria, onde, numa casa
grande, vi viam muitos possessos, que ficaram furiosos à
aproximação de Nosso Senhor; quando, porém, Ihes falou,
tornaram-se inteiramente calmos e voltaram para a sua terra.
Em Nazaré, Jesus visitou os conhecidos de seus pais mas foi, em
toda parte, recebido com frieza e, querendo ensinar na sinagoga,
não Lho permitiram. Falou, porém, na praça pública, diante de
grande multidão de povo, sobre o Messias e João Batista. Depois
foi com Maria a Cafarnaum e dali novamente, de aldeia em aldeia,
passando pelas sinagogas, para ensinar, consolando e socorrendo
os enfermos. Esteve em Caná, depois à beira do Mar da Galiléia,
onde expulsou o demônio de um possesso. Pedro pescava ali, Jesus
falou com André e outros. Partindo do lago, com seis a doze
companheiros, tomou o caminho de Sidônia, à beira-mar, passando
pela montanha do Líbano; nessa cidade deixou os companheiros e
foi a Sarepta e ensinou as crianças e muitas vezes se retirava
a uma pequena floresta, perto da cidade, para rezar sozinho.
Depois de voltar a Nazaré, ensinou também na sinagoga: como,
porém, surgisse descontentamento e murmuração contra Ele,
declarou aos amigos que ia a Betsaida. Ali ensinou e, do mesmo
modo, em Cafarnaum, percorrendo assim toda a Baixa-Galiléia. Em
Séforis, curou cerca de cinqüenta lunáticos e possessos; por
causa disso se deu um tumulto na cidade, de maneira que Jesus teve
de fugir, escondendo-se numa casa para abandonar a cidade de
noite. Maria que com outras piedosas mulheres, estava presente,
afligiu-se muito vendo-O, pela primeira vez, perseguido à viva
força.
Em Betúlia, Jesus foi recebido e tratado amistosamente, como
também em Kedes e Kision. Celebrou o Sábado em Jezrael, com os
Nazarenos, que faziam votos e viviam uma vida de mortificações
e austeridades. Tendo depois exortado os publicanos de um lugar,
na estrada real de Nazaré, a que não exigissem mais do que os
direitos justos, ensinou em Kisloth, ao pé do monte Tabor, sobre
o Batismo de João. Os fariseus deram-lhe um banquete, para
espiá-Io e examinar-lhe a doutrina. Havia, porém, na cidade um
costume e direito antigo, segundo o qual os pobres deviam ser
convidados aos banquetes que fossem oferecidos a forasteiros.
Sentando-se, pois, à mesa, Jesus perguntou logo aos fariseus onde
estavam os pobres e mandou os discípulos chamá-I os, pelo que
ficaram os fariseus muito zangados. Ainda na mesma noite partiu
de Kisloth e chegou, pela tarde do dia seguinte, a Kimki, aldeia
de pastores. Quando ensinou na sinagoga, levantaram-se contra Ele
os fariseus, provocando um tumulto, Jesus continuou seu caminho,
de noite, indo pela estrada real, até um lugarejo perto de Nazaré,
habitado por pastores. Ali curou dois leprosos, mandando-os
lavar-se com a água na qual Ele havia banhado os pés.
Cerca de um quarto de légua antes de chegar a Nazaré, entrou Jesus
na casa de um Esseno, chamado Eliud, com o qual rezou e conversou
com grande intimidade, sobre a sua missão e o mistério da Arca
da Aliança. Explicou-lhe como aceitara um corpo humano do germe
da bênção, que Deus tirara de Adão, antes do primeiro pecado; que
viera para salvar os homens, os quais se lhe mostrariam muito
ingratos.
A Virgem Santíssima veio com Maria Cleophae a Jesus, suplicandolhe que não fosse a Nazaré, pois o povo estava irritado. Ele
respondeu que esperaria só os companheiros que com Ele queriam
ir a João Batista e depois passaria por Nazaré. Maria voltou a
Cafarnaum. Jesus, porém, encaminhou-se com Eliud, pelo vale de
Esdrelon, à cidade de Endor, pregando aí na praça pública sobre
o Batismo de João e sobre o Messias. Os habitantes de Endor não
eram propriamente judeus, mas antes escravos refugiados. Na tarde
do terceiro dia voltou com Eliud e foi a Nazaré, onde ensinou na
escola e sinagoga, falando de Moisés e explicando profecias sobre
o Messias. Mas, como falasse de tal modo que os fariseus puderam
concluir que se referia a eles mesmos, enraiveceram-se contra
Ele, censurando-lhe as relações com publicanos e pecadores, como
também o fato de abençoar muitas crianças, a pedido das mães. Na
escola, lhe propuseram muitas perguntas intrincadas, mas Jesus
reduziu todos os doutores ao silêncio. Ao legisperito respondeu
com a lei de Moisés; ao médico, falou das doenças e do corpo
humano, revelando conhecimentos por aquele inteiramente
ignorados; aos astrônomos, ensinou o curso dos astros; discorreu
também sobre comércio e indústria. Três jovens ricos pediram para
ser recebidos como discípulos, Ele, porém, os recusou com
tristeza, porque não pediram com intenção sincera.
O Senhor enviou os discípulos, que então eram nove, a João, a quem
mandou anunciar a sua vinda. Ele próprio, porém, acompanhado por
Eliud, foi de Nazaré primeiro a Chim, curou ai um morfético e
continuou depois o caminho pelo vale de Esdrelon. Nessa noite,
no caminho, Jesus se mostrou a Eliud em gloriosa transfiguração
e na manhã seguinte, o Senhor o mandou voltar para casa.
Jesus continuou o caminho; passando ao pé do monte Garizim, perto
de Samaria, chegou à cidade de Gofna, onde o receoeram com
respeito. Entrando na sinagoga, explicou o livro de um profeta
e provou que o tempo do Messias devia haver chegado. Depois veio
a uma aldeia de pastores e lhe falaram do matrimônio ilícito de
Herodes; Jesus censurou severamente o procedimento do rei, com
o mesmo rigor condenou, em geral, os pecados da vida matrimonial.
Repreendeu, também alguns em particular, pela vida de adultério
que levavam; a muitos disse os pecados mais ocultos, de modo que
prometeram, com profunda contrição, fazer penitência.
De noite chegou Jesus a Betânia e hospedou-se em casa de Lázaro,
onde Nicodemos, João, Marcos, Verônica e outros estavam reunidos.
Durante a refeição, disse Jesus que lhe ia chegar um tempo muito
sério; que Ele estava para entrar em um caminho cheio de
contrariedades e perseguições; que lhe ficassem fiéis, se queriam
ser-lhe verdadeiros amigos. No dia seguinte, Marta apresentou
Jesus à irmã, chamada Maria Silenciosa. Jesus falou-lhe;
conversaram sobre coisas divinas, Marta falou-lhe também, com
grande tristeza, a respeito de Madalena; Jesus consolou-a.
A Mãe de Nosso Senhor veio também a Betânia, com algumas das santas
mulheres. O divino Mestre falou-lhe carinhoso e sério, dizendo-
lhe que ia agora procurar João, para ser batizado e que depois
teria de cumprir a sua missão; havia de amá-Ia como sempre, mas,
daquele tempo em diante, devia viver e trabalhar para todos os
homens.
Jesus seguiu então com Lázaro em direção a Jericó, para
serem batizados; andou descalço pelo caminho pedregoso; até o
lugar do Batismo, contavam-se cerca de nove léguas.
12. Vida pública de João Batista
Antes do Salvador começar a pregar publicamente a sua doutrina,
enviou a divina Providência um homem que, pelo aspecto
extraordinário e pelas exortações à penitência e ao Batismo,
devia atrair a atenção de todo o povo. Era João, filho de Zacarias
e Isabel, de Hebron. Para salvar o mesmo dos sicários de Herodes,
por ocasião da carnificina das inocentes crianças de Belém, a mãe
levara-o para o deserto, em que permaneceu até o princípio da sua
vida pública. A tarefa de João Batista, como o último e maior
profeta do Velho Testamento, era preparar o caminho do Salvador
e, estando já no limiar do Novo Testamento, apresentar Jesus, o
Cordeiro de Deus que, carregado dos pecados de todo o mundo, devia
realizar a salvação do gênero humano, por seu amor e Paixão. Como
João cumpriu essa difícil tarefa, conta-nos intuitivamente a
religiosa de Dülmen:
"Pouco antes de deixar o deserto do Líbano, teve João uma
revelação a respeito do Batismo. Voltou depois do deserto para
junto dos homens, produzindo em todos uma impressão maravilhosa.
Alto, ema grecido pelo jejum e pelas mortificações, mas forte,
era uma figura extraordinariamente nobre, pura, simples e
dominante. Pelo meio do corpo, trazia cingido um pano, que lhe
caia até aos joelhos. Vestia um manto áspero, pardo; braços e
peito descobertos.
Vindo do deserto, começou a construir uma ponte sobre um ribeiro.
Falava só de penitência e da próxima vinda do Senhor. Tinha a voz
aguda como uma espada, forte e severa; mas sempre agradável.
Passava, por toda a parte, em caminho reto; vi-o correndo, através
de matos e desertos, tirando pedras e árvores do caminho,
preparando lugares de descanso, reunindo os homens que o
admiravam, buscando-os até nas cabanas, para auxiliá-lo.
Caminhou ao longo do Mar de Galiléia e, seguindo o vale do rio
Jordão, passou perto de Jerusalém, para a qual olhou com tristeza;
de lá foi à sua terra e a Betsaida. Nos três meses antes de começar
o batismo, percorreu duas vezes o país, anunciando Aquele que
havia de vir. Em lugares onde não havia nada que fazer, vi-o correr
de campo em campo. Entrava pelas casas e escolas; para ensinar,
reunia o povo em redor de si, nas ruas e praças públicas.
Muitas vezes o vi indicar a região onde Jesus naquele momento se
achava.
João batizou em diversos lugares: primeiro, perto de Ainon, na
região de Salem; depois em On, à margem ocidental do Jordão, não
muito longe de Jericó; em seguida, a leste do Jordão, algumas
léguas mais para o norte do segundo lugar; por fim voltou a Ainon.
A água de que João usava ali em Ainon, para batizar, era de uma
lagoazinha, separada de um braço do Jordão por um pequeno dique.
A pessoa que se batizava, ficava entre duas línguas de terra, com
a água até à cintura; punha-se São João numa dessas línguas,
tirando água com uma taça e derraman do~a spbre a cabeça do
neófito; na outra, se achava um homem já batizado, que colocava
a mão sobre o ombro do que estava sendo batizado; ao primeiro,
João mesmo impusera a mão.
Tendo-se João tornado afamado, no correr de algumas semanas,
pela sua doutrina e pelo batismo, Herodes enviou-lhe um
mensageiro, com a ordem de apresentar-se-Ihe. João, porém,
respondeu que tinha muito que fazer e se Herodes quisesse
falar-lhe podia vir pessoalmente. Herodes veio, de fato, a um
lugar cerca de cinco léguas distante de Ainon. Chegando, lá,
falou-lhe João longamente, em tom muito sério e severo.
Vi que Simão, Tiago o Menor, Tadeu e também André, Filipe e Levi,
chamado depois Mateus, foram batizados por João.
De Nazaré, Jerusalém e Hebron mandaram grupos inteiros de
fariseus e chefes das sinagogas como mensageiros a João, para
interrogá-Io a respeito de sua missão. Vieram também cerca de
trinta soldados a João, que os repreendeu severamente, por não
terem a intenção de arrepender-se. A multidão dos homens era
enorme; centenas achavam-se sentados por ali e outras centenas
chegavam continuamente, para ouvir-lhe a doutrina e receber o
Batismo.
Em Jerusalém houve uma grande sessão do Sinédrio por causa de
João. Por três autoridades foram enviados nove homens, entre os
quais José de Arimatéia. Deviam perguntar a João quem era ele e
mandá-Io vir e ordenar que viesse a Jerusalém, pois se a sua missão
fosse justa e legal, ter-se-ia apresentado primeiro no Templo.
João deu apenas uma resposta curta e áspera. José de Arimatéia
recebeu o Batismo.
Vi João atravessar o Jordão e batizar enfermos; depois voltou à
banda oriental do rio, a Ainon. Ali apareceu um Anjo, que o mandou
ir para o outro lado do Jordão, a um lugar perto de Jericó, pois
que se aproximava Aquele que havia de vir. Então levantaram João
e os discípulos as tendas e cabanas do lugar de Batismo em Ainon
e atravessaram o rio; o segundo lugar de Batismo dista cerca de
cinco léguas de Jerusalém. Vieram de novo, duas vezes, emissários
do Templo, fariseus, saduceus e sacerdotes a João. Disse-Ihes que
se levantaria entre eles um homem, o qual não conheciam, que
esperassem, pois em pouco viria Aquele que o mandara.
"Eu, na verdade, vos batizo em água, mas virá outro, mais forte
do que eu, a quem não sou digno de desatar a correia dos sapatos;
Ele vos batizará na virtude do Espírito Santo e no fogo." (Luc.
3, 16).
O lugar onde João pregava, era situado à distância de menos de
meia légua, do lugar do Batismo. Ali estava ensinando, quando
Herodes veio, pela segunda vez; João não se incomodou. Herodes
tinha o desejo ilícito de casar-se com a mulher de seu irmão.
Propusera, em vão, ao Sinédrio declarar lícito esse matrimônio;
temendo também a voz pública, quis apaziguá-Ia por uma sentença
de João. Este ensinou, diante dos discípulos, com grande
franqueza, sobre o assunto a respeito do qual Herodes queria
informar-se. Este mandou entregar-lhe um rolo, que continha
escrita a sua causa. O rolo foi posto aos pés de João, pois este
não quis contaminar-se, tocando-o com a mão com que batizava.
Então vi Herodes, indignado, deixar o lugar com o séquito.
João ensinou sobre o próximo Batismo do Messias e disse que nunca
o tinha visto, mas acrescentou: "Para vos dar testemunho d’Ele
mostrar-vos-ei o lugar onde será batizado. Eis que as águas do
Jordão se dividirão e surgirá uma ilha." No mesmo instante vi que
as ondas do rio se dividiram e avistou-se uma iIhota branca. Era
esse o lugar onde os filhos de Israel atravessaram o Jordão, com
a Arca da Aliança. João e os discípulos fizeram uma ponte, até
à ilhota. Ao lado esquerdo desta, havia uma fossa, da qual subia
água clara. Alguns degraus conduziam para baixo e, perto da
superfície d'água, jazia uma pedra sobre a qual Jesus devia
permanecer durante o seu batismo.
Mais uma vez vi chegar uma comissão de cerca de vinte pessoas,
enviadas pelas autoridades de Jerusalém, para pedir contas a
João. Respondeu-Ihes como dantes, apelando para Aquele, que viria
em pouco, para ser batizado.
Depois vi Herodes chegar até perto do lugar de Batismo; discutiu
com João, que o tinha excomungado.
Vieram então a João também os discípulos que Jesus despedira em
Nazaré; falaram-lhe de Jesus. Ao batizá-Ios, João teve a íntima
certeza de que Jesus estava perto, pois o viu também numa visão.
Desde então, ficou João cheio de indescritível alegria e com
saudade de Jesus.”
13. O Batismo de Jesus e o jejum de quarenta dias.
Os homens caíram pela soberba; pela humildade quis o Salvador
levantá-Ios. Por isso, já no começo de sua tarefa difícil de
ganhar os homens para o reino de Deus, pelo exemplo e pela Paixão,
submeteu-se a uma profunda humilhação, deixando-se batizar por
João. Assim exortou o povo, pelo exemplo, a imitá-Io,
ensinando-nos também ao mesmo tempo a implorar, em espírito de
humildade e penitência, a bênção de Deus para nós e para os nossos
trabalhos. Pois a penitência e humildade nos tornam dignos da
bênção e do agrado de Deus. Por isso, era tão meritória a
humilhação voluntária do Filho de Deus, recebendo o Batismo de
João; mereceu a santificação da água e os efeitos sacramentais
do santo Batismo. Catharina Emmerich narra assim o batismo de
Jesus:
"Estava reunida uma extraordinária multidão de povo e João falou
com grande alento sobre a próxima vinda do Messias e sobre a
penitência; disse também que teria de desaparecer, para dar lugar
Àquele. Jesus estava no meio do apinhado auditório. João, que O
viu bem, ficou extremamente satisfeito e fervoroso. Já tinha
batizado a muitos, quando Jesus, por sua vez, desceu ao tanque
do Batismo. Então disse João, inclinando-se diante d’Ele: "Sou
eu que devo ser batizado por Vós e vindes a mim!" Jesus
respondeu-lhe: "Deixa fazer por ora; convém que assim cumpramos
toda a justiça, que me batizes e que eu seja batizado por ti".
Também lhe disse: "Receberás o Batismo do Espírito Santo e de
sangue.”
O Salvador dirigiu-se então por cima da ponte, à ilhota,
acompanhado por João o pelos discípulos André e Saturnino.
Entrando numa tenda, despiu as vestes e veio para fora, coberto
de uma túnica de um tecido pardo; desceu à margem do tanque, onde
despiu também a túnica, tirando-a pela cabeça. Cingiu os rins com
uma faixa, que lhe envolvia as pernas, até abaixo dos joelhos.
Assim entrou na fonte. João estava de lado, ao sul do tanque; tinha
na mão uma taça com aba larga e três biqueiras. Abaixando-se,
tirou água, com a taça e derramou-a, pelas três biqueiras, sobre
a cabeça do Senhor, dizendo mais ou menos as seguintes palavras:
"Javé derrame a sua bênção sobre ti, pelos Querubins e Serafins,
com sabedoria, inteligência e fortaleza." Jesus subiu então e
André e Saturnino cobriram-no com um pano, com o qual se enxugou;
vestindo-o depois de uma comprida túnica branca de batismo,
impuseram-Lhe as mãos aos ombros, enquanto João lhe pós a mão na
cabeça.
Ouviu-se então um grande bramido, vindo do céu, como um trovão
e todos que estavam presentes, olharam para cima, estremecendo.
Desceu uma nuvem branca e luminosa e vi uma figura lúcida, com
asas, pairar por cima de Jesus, derramando sobre Ele uma torrente
de luz; vi também a aparição do Pai Celestial e ouvi as palavras:
"Eis meu Filho muito amado em quem ponho minha afeição." (Mal.
3,17)
Jesus, porém, subiu os degraus, vestiu a túnica e dirigiu-se,
cercado dos discípulos, ao largo da ilha. João falou com grande
alegria ao povo, dando testemunho de que Jesus era o Messias
prometido. Citou as promissões dos patriarcas e profetas, que
nesse momento foram cumpridas; contou o que tinha visto e que era
a voz de Deus, que todos tinham ouvido. Disse também que, daí a
pouco, se retiraria, logo que Jesus voltasse. Exortou todos a
seguirem Jesus.
Jesus confirmou simplesmente o que João dissera. Disse também.
que se retiraria por algum tempo; mas depois viessem a Ele todos
os enfermos e aflitos, pois que Ihes daria consolação e socorro.
Depois de batizado, Jesus partiu com os companheiros,
primeiro para Belém, seguindo daí para o sul do Mar morto, pelo
mesmo caminho que a Sagrada Família tomara, na fuga para o Egito.
De lá, voltando, foi conduzido pelo Espírito Santo ao deserto,
para jejuar quarenta dias. Começou o jejum na montanha de Jericó,
onde subiu ao monte deserto e íngreme de Quarantania e rezou numa
gruta. Descendo do monte, atravessou, numa embarcação, o rio
Jordão e veio a uma montanha muito íngreme, distante cerca de nove
léguas do Jordão. Jesus rezava numa gruta, ora prostrado por
terra, ora de joelhos, ora em pé. Não comia nem bebia, mas era
confortado pelos Anjos.
"Cada dia, conta Anna Catharina Emmerich, a obra da oração de
Jesus é diferente; cada dia nos alcança outras graças. Sem essa
obra, não podia ser meritória a nossa resistência às tentações.
Outro dia o vi prostrado com o rosto em terra, quando vieram
numerosos Anjos, que o adoraram e lhe perguntaram se podiam
apresentar lhe a sua missão e se ainda era a sua vontade sofrer
como homem, para os homens. Tendo Jesus de novo confirmado sua
vontade de aceitar os sofrimentos, erigiram-Ihe em frente uma
Cruz alta.
Três Anjos trouxeram uma escada, outro uma cesta, com cordas e
ferramentas; outros, a lança, a haste de hissopo, varas,
chicotes, coroa de espinhos, pregos, tudo o que depois se empregou
na Sagrada Paixão. A Cruz, porém, parecia oca; podia abrir-se,
como um armário e estava cheia de inúmeros e diversíssimos
instrumentos de tortura. Todas as partes e lugares da cruz eram
de cores diferentes, pelas quais se podia conhecer que tortura
teria de sofrer. Havia também na Cruz muitas fitas de diversas
cores, como que relatórios de muitas contrariedades e trabalhos
que Jesus teria de suportar na sua vida e Paixão da parte dos
discípulos e de outros homens. Quando, desse modo, toda a Paixão
estava posta diante dele, vi que Jesus e os Anjos choravam.
Satanás não sabia que Jesus era Deus, tomou-o por um profeta. Uma
vez o vi à entrada da gruta, sob a figura de certo jovem, a quem
Jesus muito amava. Fez barulho, pensando que Jesus se zangasse;
mas este nem olhou para ele. Depois, enviou o demônio sete ou nove
aparições de discípulos à gruta; disseram-lhe que o tinham
procurado ansiosamente; não devia arruinar-se lá em cima e
abandoná-Ios. Jesus disse somente: "Afasta-te, Satanás, ainda
não é tempo". Então desapareceram todos. Num dos dias seguintes
vi Satanás querendo afigurar-se Anjo, trajando vestes
resplandecentes. Chegou voando à entrada da gruta e disse: "Fui
enviado por vosso Pai, para vos confortar." O Senhor, porém, não
olhou para ele.
Jesus sofreu fome e sede. Ao cair da noite, Satanás, sob a forma
de um homem alto e forte, subiu ao monte. Levava duas pedras que
tirara em baixo, dando-Ihes a forma de pães. Disse a Jesus: "Se
sois o Filho de Deus, fazei que estas pedras se mudem em pão."
Ouvi Jesus apenas dizer: "O homem não vive de pão." Satanás ficou
furioso e desapareceu.
Ao cair da tarde do dia seguinte, vi Satanás aproximar-se de
Jesus, em forma de um Anjo poderoso. Vangloriando-se, disse-lhe:
"Mostrar-vos-ei quem sou e o que posso. Eis aí Jerusalém e o
Templo. Vou colocar-vos no mais alto pináculo; mostrai então o
vosso poder." Satanás segurou-o pelos ombros e, levando-o pelos
ares a Jerusalém, colocou-o no cimo de uma torre. Depois voou para
baixo, à terra e disse: "Se sois o Filho de Deus, mostrai o vosso
poder e atirai-vos à terra; pois está escrito: Ele mandará os seus
Anjos, que vos sustentarão com as mãos, afim de que não machuqueis
os pés de encontro às pedras." Jesus respondeu: "Também está
escrito: Não tentarás o Senhor teu Deus.”
Então voltou Satanás, cheio de raiva e Jesus lhe disse: "Usa do
teu poder, do poder que te foi dado." Satanás, furioso, segurou-o
de novo pelos ombros, e, levando-o por cima do deserto, em direção
a Jericó, colocou-o no mesmo monte onde Jesus começara o jejum.
Era o ponto mais alto do monte, no qual o tinha posto; mostrou
em redor de si e viram-se os mais maravilhosos panoramas, em todas
as direções do mundo. Então disse Satanás a Jesus: "Sei que
quereis propagar agora a vossa doutrina. Eis ai todas essas terras
magníficas, esses povos poderosos e aqui a pequena Judéia. Ide
lá! Dar-vos-ei todas essas terras, se, prostrado a meus pés, me
adorardes". Jesus disse: "Adorarás o Senhor teu Deus e a Ele
servirás. Afasta-te, Satanás!" Então vi Satanás, numa forma
indescritivelmente hedionda, lançar-se para baixo e desaparecer.
Logo depois, vi um grupo de Anjos aproximar-se de Jesus e levá-Io
à gruta, onde começara o jejum. Eram doze esses Anjos e
numerosos outros, para o servirem. Celebrou-se, então, na gruta,
uma festa em ação de graças e de júbilo e depois houve um
banquete.”
Jesus desceu do monte e veio ao Jordão, perto do lugar onde João
estava batizando. Este se voltou logo para o Mestre, exclamando:
"Eis o Cordeiro de Deus, que tira os pecados do mundo". Podia-se
perguntar: Por que fez Jesus um jejum tão rigoroso? Por que se
sujeitou àquelas tentações?
Jesus está para começar sua vida pública; quer percorrer
abertamente o país, repreender os pecadores, convidá-Ios a
converter-se e fazer penitência; na sua doutrina, terá de fazer
frente, muitas vezes, a opiniões errôneas a respeito da fé e da
moral; terá de apresentar-se ao povo como o Messias prometido,
como o Filho de Deus e de exigir humilde aceitação de sua doutrina.
É uma tarefa dificílima, que traz consigo muitos trabalhos
penosos, mortificações, sofrimentos, inimizades e perseguições.
Por isso se prepara o Salvador para essa obra com jejum e meditação, na solidão do deserto.
Ali, no retiro absoluto, deixa tentar-se por Satanás, que parece
não lhe conhecer a divindade. Por causa da inseparável união de
sua alma com o Verbo Divino, não podia a tentação nascer-lhe da
própria natureza, mas podia só provir do exterior.
O homem tentado, pela tríplice concupiscência, é logo inclinado
a ceder à tentação e, desse modo, inúmeros homens caem na ruína
temporal e eterna. Jesus, porém, quer salvar os homens dessa maior
desgraça; por isso, oferece também o jejum e as tentações
sofridas, como expiação dos pecados. Assim nos mostra como
devemos vencer a tentação; pela vitória sobre a mesma nos merece
a graça de vencê-Ia também. Em tudo se tomou igual a nós, com
exceção do pecado.
14. Eleição dos primeiros discípulos e o milagre de Caná
A figura majestosa de Jesus, o seu trato sério, mas sempre amável
e delicado, a força da sua palavra, juntamente com os prodígios
extraordinários que operava, deviam fazer profunda impressão em
todos. Uns, cheios de boa vontade, creram-lhe humildemente na
doutrina e nos milagres; outros, malignos, invejosos e de coração
endurecido, encheramse de ódio contra Ele. Quem não se lembra,
à vista desses fatos, da profecia do velho Simeão: "Este Menino
está posto para a ruína e salvação de muitos, em Israel?”
Do número ainda pequeno dos aderentes só poucos se lhe tinham
juntado, acompanhando-o nas viagens apostólicas. Quando, porém,
saiu do deserto, depois do jejum de quarenta dias, aumentou o
número dos discípulos; entre estes era André um dos primeiros.
Ouvira, com Saturnino, João indicar a Jesus, dizendo: "Eis aí o
Cordeiro de Deus, que tira os pecados do mundo." Ambos se reuniram
a Jesus. André conduziu o irmão Simão ao Salvador, que lhe disse:
"Tu és Simão, filho de Jonas; no futuro serás chamado Kephas
(latim: Petrus)." Jesus encontrou-se depois com Filipe e
convidou-o para discípulo, dizendo-lhe: "Segue-me". Filipe falou
a Natanael do Messias; mas só o saber sobrenatural de Jesus o
induziu a seguí-Io.
Com os discípulos e parentes, dirigiu-se Jesus a Caná, para
assistir às bodas a que Ele e sua Mãe tinham sido convidados. O
noivo chamava-se Natanael e tinha certo parentesco com Jesus;
pois era sobrinho da filha de Sobe, a qual já conhecemos como irmã
de Sant' Ana. Conta-nos Anna Catharina Emmerich o seguinte:
Estavam reunidos mais de cem convidados. Jesus dirigia a festa,
presidia aos divertimentos, temperando-os com palavras de
sabedoria. Foi também quem organizou todo o programa da festa.
Vi os convidados, homens e mulheres, divertirem-se separados num
jardim, conversando ou brincando. Jesus também tomou parte num
jogo de frutas, com amável seriedade. Dizia, às vezes, sorrindo,
algumas palavras sábias, que todos admiravam ou escutavam
comovidos. Nesses dias falou Jesus muito em particular com
aqueles discípulos que, mais tarde, se lhe tomaram Apóstolos.
Quis revelar-se, nessa festa a todos os parentes e amigos e
desejou que todos até então por Ele eleitos se conhecessem uns
aos outros, naquela reunião, em que havia maior franqueza.
No terceiro dia depois da chegada de Jesus, foi celebrada a
cerimônia do casamento. Noivo e noiva foram conduzidos da casa
da festa à sinagoga. No cortejo havia seis meninos e seis meninas,
que levavam grinaldas; depois seguiam seis moços e moças, com
flautas e outros instrumentos. Além desses, doze donzelas
acompanhavam a noiva, como paraninfas e o noivo, doze mancebos.
A cerimônia do casamento foi feita pelos sacerdotes, diante
da sinagoga. Os anéis que trocaram, foram um presente de Maria
Santíssima e tinham sido bentos antes por Jesus.
Para o banquete nupcial reuniram-se todos de novo, no jardim. Vi
um jogo preparado por Jesus mesmo, para os homens: a sorte que
caía a cada um dos jogadores, indicava-lhe as, qualidades, os
defeitos e virtudes. Jesus interpretava a sorte de cada um,
conforme a combinação das frutas que ganhavam. O noivo ganhou
para si e a esposa duas frutas estranhas, num só pé, como já vi
antes, no paraíso. Todos se admiravam muito e Jesus falou do
matrimônio e do cêntuplo fruto da castidade. Depois dos noivos
terem comido a fruta, vi que uma sombra escura deles se afastava.
A fruta tinha relação com a castidade e a sombra que se apartava,
era a concupiscência da carne.
Ao jogo no jardim seguiu-se o banquete nupcial. A sala estava
dividida em três partes; na do meio estava Jesus sentado à
cabeceira da mesa. A mesma mesa sentaram-se também Israel, o pai
da noiva, os parentes masculinos de Jesus e da noiva e também
Lázaro. As outras mesas laterais sentaram-se os outros
convidados e os discípulos. O noivo serviu as mesas dos homens
e a noiva as das mulheres.
Jesus encarregara-se das despesas do segundo prato do banquete.
(Lazaro pagou as despesas, mas só Jesus e Maria o sabiam).
Tudo estava bem arranjado pela Santíssima Virgem e Marta. Jesus
lhes tinha dito que forneceria o vinho para esse prato. Depois
de ter sido servido às mesas laterais o segundo prato, que
constava de aves, peixe, iguarias de mel, frutas e uma espécie
de pastéis, que Seráfia (Verônica) trouxera, Jesus aproximou-se
e repartiu todas as iguarias; depois se sentou de novo à mesa.
Serviram-se as iguarias, mas faltou o vinho. Jesus, porém, estava
ensinando. Esta parte do banquete ficou aos cuidados da Santíssima Virgem e, como notasse que faltava vinho, aproximou-se de
Jesus, lembrando-lhe ansiosamente essa falta, porque Ele tinha
dito que o forneceria.
Jesus, que falava do Pai Celestial, disse-lhe então: "Mulher, não
vos apoquenteis. Deixai de inquietar-vos e a mim, minha hora
ainda não chegou." Assim falando, não manifestava falta de
respeito a sua Mãe. Disse mulher e não mãe, porque quis nesse
momento, como Messias e Filho de Deus, realizar uma ação
misteriosa diante dos seus discípulos e parentes, mostrando que
ali estava, presente na sua missão divina. Maria não se inquietou
mais; disse aos criados: "Fazei tudo que Ele vos mandar.”
Depois de algum tempo, mandou Jesus aos criados trazerem as
ânforas vazias e virarem-nas. Trouxeram-nas; eram três ânforas
de água e três de vinho. Os criados mostraram que estavam vazias,
virando-as por cima de uma bacia. Jesus mandou que enchessem todas
com água. As ânforas eram grandes e pesadas; eram precisos dois
homens para transportarem cada uma. Depois de estarem cheias de
água, e postas ao lado do aparador, Jesus aproximou-se, benzeu
as ânforas e, tendo-se sentado de novo à mesa. disse: "Enchei os
cálices e levai um ao despenseiro." Este, tendo provado o vinho,
aproximou-se do noivo e disse-lhe que sempre fora costume dar
primeiro o bom vinho e depois dos convidados terem bebido bastante
oferecer o vinho inferior, mas que ele tinha dado o melhor no fim.
Então beberam também o noivo e o pai da noiva, ficando ambos
pasmos; os criados protestaram que haviam enchido de água as
ânforas e tirado delas para encher os cálices e copos das mesas.
Então beberam todos. Não houve, porém, nenhum barulho por causa
do milagre, mas reinava silêncio respeitoso em toda a reunião e
Jesus ensinou muito, a respeito do que se passara. Todos os
discípulos, parentes e convidados estavam agora convencidos do
poder de Jesus e de sua dignidade e missão. Desse modo esteve Jesus
a primeira vez na sua comunidade e foi o primeiro prodígio que
nela e para ela operou, para confirmar-lhe a fé. Por isso é
relatado na história da sua vida como o primeiro milagre e a última
Ceia como o último milagre, quando já era firme a fé dos apóstolos.
Ao fim do banquete veio o noivo sozinho a Jesus e declarou-lhe,
com muita humildade, que sentia extinta em si toda a
concupiscência da carne e que desejava viver em santidade com a
esposa, se ela consentisse. Também a noiva veio a Jesus, sozinha,
dizendo-lhe o mesmo. Chamou-os então Jesus a ambos e falou-Ihes
do matrimônio, da castidade, tão agradável a Deus e do fruto
cêntuplo do espírito. Citou muitos profetas e santos, que viveram
castos, sacrificando a carne, por amor do Pai Celestial, que
tiveram como filhos espirituais muitos homens perdidos,
reconduzindo-os ao caminho da virtude e que assim tinham grande
e santa descendência. Os noivos fizeram então voto de continência
e de viverem como irmãos durante três anos. Ajoelharam-se diante
de Jesus, que os abençoou.
15. Resumo do primeiro ano da vida pública de Jesus.
O primeiro ano de pregação de Nosso Senhor compreende o tempo da
primeira viagem, antes do Batismo, até a primeira Páscoa em
Jerusalém. Nesse tempo, tiveram lugar o Batismo de Jesus por João
Batista, sua estadia por quarenta dias no deserto e seu primeiro
milagre público, relatado pelas Escrituras Sagradas, - o das
bodas de Caná.
Pouco tempo depois de voltar do deserto, Jesus mandou André e
Satumino batizarem perto de Betabara. Quando Jesus, vindo de Caná
e passando por Cafarnaum, ao longo do Lago Genezaré, foi a Jericó,
ao lugar onde João batizava, já este não batizava quase ninguém,
mas mandava todos a Jesus. Partindo Jesus da região de Jericó,
caminhou por um desvio para Nebo, onde instruiu os neófitos, como
também em outros lugares, mandando-os batizar pelos discípulos.
De lá, foi a Jezrael, ao sul da Galiléia, onde os discípulos da
Galiléia se lhe juntaram; Madalena deixara-se persuadir por
Lázaro e Marta a ir também lá. Viu Jesus passar pelas ruas e o
Salvador olhou-a tão sério, que ficou toda arrependida e
envergonhada da vida pecaminosa que levava.
Jesus encaminhou-se depois para Cafarnaum e, passando por Betúlia
e Kistoth, no monte Tabor, voltou a JezraeI. Em todo o país já
se lhe tomara conhecida a doutrina e os milagres; por isso
concorria o povo aos lugares onde o Mestre pregava.
Tendo ido de novo a Cafarnaum, visitou sua Mãe, ensinou na
sinagoga e curou enfermos; saiu da Galiléia e viajou por Dothain,
Seforis, através da Samaria, até Betânia, na Judéia, onde se
hospedou em casa de Lázaro. Todos os dias ia a Jerusalém, para
rezar no Templo e ensinar. Num desses dias mandou, muito amável
e delicadamente, aos numerosos negociantes que se retirassem do
átrio dos orantes para o átrio dos gentios. Encontrando-se ali
de novo, procedeu com maior severidade, avisando-Ihes de que duas
vezes os exortava por bem e que da terceira vez empregaria
violência.
Como a Páscoa estivesse perto, chegara já muita gente a Jerusalém.
Jesus comeu o Cordeiro pascal, em casa de Lázaro, no monte Sião,
junto com os discípulos e parentes. A maior parte da noite passou
em oração. Ao amanhecer, se dirigiu ao Templo, onde os negociantes
se encontravam de novo no átrio dos orantes. Quando, à ordem que
lhes deu de se retirarem, queriam resistir, pegou num cabo e,
derrubando as mesas, empurrou os renitentes para fora; os
discípulos também empurraram e forçaram todos a sair. Grande
número de sacerdotes acorreram e perguntaram-lhe quem lhe dera
o direito de fazer isso, ao que Ele respondeu que o Templo era
ainda um lugar sagrado, apesar do Santo tê-lo abandonado e não
devia tomar-se lugar de usura e comércio. Em outro dia Jesus curou
no átrio do Templo, cerca de dez paralíticos e mudos, o que causou
grande sensação.
16. Resumo do segundo ano da vida pública de Jesus
Três semanas depois da Páscoa, partiu Jesus da Betânia e foi ao
lugar de Batismo, perto de Ono. Ali o procurou um mensageiro do
Rei Abgar de Edessa, que estava doente e pediu para ser curado.
Enquanto Jesus ensinava, pintou-lhe esse homem o rosto, num
pequeno quadro branco, esforçou-se por muito tempo, mas não
conseguiu fixá-lo bem, pois cada vez que olhava para Jesus,
parecia estar admirado do seu rosto, julgando que devia começar
de novo. Acabada a pregação de Jesus, ajoelhou-se o mensageiro
diante d’Ele e entregou-lhe uma carta do rei. Jesus leu-a e
escreveu nela algumas palavras. Depois apertou a parte mole do
invólucro de encontro ao rosto e devolveu a carta ao mensageiro;
este a apertou também sobre o desenho que fizera, que depois
mostrou perfeita semelhança com o rosto de Jesus. Também no pano
em que Jesus tocara, lhe ficou gravado o retrato.
Por causa do grande concurso de povo, no lugar onde Jesus
batizava, mandaram os fariseus invejosos mensageiros, com
cartas, a todas as sinagogas do país, com a ordem de prendê-lo,
entregá-lo e de prender e repreender-lhe os discípulos. Jesus
mandou por isso aos discípulos que se dispersassem, enquanto Ele,
com poucos companheiros, fez a longa viagem para Tiro e Sidônia,
onde pregou a doutrina e curou enfermos. Entretanto, foram
chamados os discípulos a Jerusalém e Genabris, para responderem
acerca da doutrina de Jesus e das relações que tinham com Ele.
Pedro, André e João foram também citados e presos. Mas rasgaram
os laços com um leve esforço, como por milagre e foram soltos.
Jesus, porém, voltou furtivamente a Cafarnaum, onde consolou sua
Mãe e os discípulos, retirando-se depois novamente para Tiro. Ali
foi a Sichor, Libnath e Adama. Neste último lugar, contou a
parábola do administrador infiel. Um velho Judeu dessa cidade,
que obstinadamente falou contra a doutrina de Jesus e por um
milagre ficou com o corpo curvado, converteu-se e foi curado por
outro milagre. De Adama, dirigiu-se Jesus ao monte do Sermão,
perto de Berota, a seis léguas de Adama e lá pregou a alguns
milhares de homens, das dez horas da manhã até à noite. Quando
chegou a Cafarnaum, vieram os discípulos de João dar-lhe a notícia
da prisão do mestre. Jesus continuou a viagem, encaminhando-se
para Betãnia, onde permaneceu alguns dias. De noite se retirou
para a gruta do Monte das Oliveiras, para rezar na solidão e também
porque Adão e Eva, expulsos do Paraíso, pisaram pela primeira vez
a terra ali, no Monte das Oliveiras. Lázaro e as piedosas mulheres
ofereceram-se para edificar hospedarias para Jesus e os
discípulos e assim resolveram que se construíssem quinze
hospedarias, distribuídas por todo o país. Jesus contou a
parábola da pedra preciosa, aplicando-a a Madalena, que, como
tal, se tinha perdido. Depois partiu para Bethoron, Kibzaim,
passando por Gabaa e Najoth, falando em toda parte do último tempo
da graça e da justiça que se lhe seguiria. Contou também a parábola
do dono da vinha, que afinal havia enviado o filho e proferiu os
"Ais" sobre Jerusalém. Continuando o caminho pela Samaria, veio
ao poço de Jacó, perto de Sichar, onde conversou com a Samaritana
Dina e se lhe deu a conhecer como o Messias prometido. Depois tomou
o caminho da Galiléia, por Atharot e Engannim, onde curou cerca
de quarenta coxos, cegos, mudos, etc., seguindo depois, por Naim
e Caná, para o Lago de Genezaré. Em Caná lhe veio ao encontro o
mensageiro do tribuno de Cafarnaum, cujo filho moribundo curou.
Dirigiu-se então a Cafarnaum, ensinou ali alguns dias, curando
muitos enfermos. Tendo visitado Betsaida, veio também a Nazaré
e, entrando na sinagoga, interpretou como referente a Ele mesmo
o trecho do profeta Isaías: (61, 1). "O Espírito do Senhor
repousou sobre mim, porque o Senhor me encheu de sua unção;
mandou-me evangelizar os pobres, curar os contritos de coração,
pregar remissão aos cativos e liberdade aos encarcerados, etc.".
Repreendeu também severamente a injustiça dos fariseus, que por
isso se enraiveceram e o levaram a um monte, para lançá-lo de um
rochedo ao abismo. Jesus, porém, passou despercebido pela
multidão apinhada e escapou.
Perto de Trariquéia, à margem austral do Lago Genezaré, curou
Jesus cinco leprosos; depois veio a Galaad, atravessando o lago
e visitou a casa de Pedro. Num dia curou cerca de cem enfermos;
no dia seguinte, outros tantos em Cafarnaum, entre estes a sogra
de Pedro.
Então percorreu diversas povoações, entre Caná e o lago, como
Betúlia, Jotapata, Dothaim, Genabris e, algumas léguas para o
sul, Abelmehola e Bezech; atravessando o Jordão, ensinou em Ainon
Ramoth-Galaad, Azo, Ephron e Betharamphta-Julias, dirigindo-se
depois mais para o norte, a Abila e Gadara, onde curou grande
número de doentes e possessos; de lá voltou, ao longo do Jordão,
por Dion e Jogbeha, a Ainon, onde contou a parábola do filho
pródigo e celebrou a festa dos Tabemáculos. Atravessando de novo
o Jordão, foi a Acrabis, Siloé Coréia, na província de Samaria;
depois ao norte, a Salem, AserMichmethath e, ao oeste, a Meroz,
onde Judas Iscariotes se juntou a Jesus; ali curou também as duas
filhas possessas do demônio, de uma viúva chamada Lais de Naim.
Em Dothaim, curou um homem hidrópico, de nome Issachar e recebeu
Tomé no número dos discípulos. Em Endor, livrou um rapaz pagão
de um demônio mudo. Em Gischala curou o filho coxo e mudo do
tribuno daquele lugar.
Quando Jesus ensinou num monte, perto de Gabara, estava também
presente Madalena, obedecendo a um convite de Marta e das santas
mulheres. Ficou comovida com as palavras de Jesus e, seguindo-o
à casa de Simão, onde Ele se sentara à mesa, derramou-lhe sobre
a cabeça um frasco de óleo aromático e recebeu o perdão dos
pecados. Converteu-se, mas recaiu pouco depois na antiga vida de
pecados.
Jesus curou o servo do tribuno de Cafarnaum e depois um
leproso, pronunciando apenas estas palavras: "Quero. Fica são.”
Enquanto ensinava na sinagoga, entrou por ela precipitadamente
um endemoninhado; Jesus livrou-o, dizendo ao demônio: "Cala-te!
E sai deste homem!”
Em Naim, ressuscitou Jesus o filho da viúva Maroni. Quando estava
curando em Megido, vieram discípulos de João, dizendo: "João
manda perguntar-vos: - Sois aquele que há de vir ou devemos
esperar por outro?" Jesus respondeu: "Ide, anunciai a João o que
tendes ouvido e visto: cegos enxergam, coxos andam, surdos ouvem,
leprosos ficam sãos, mortos ressuscitam. O que é torto, fica
direito e feliz de quem não se escandalizar de mim." Depois falou
de João, chamando-o o maior dos profetas.
Em Cafarnaum, ressuscitou a filha do chefe da sinagoga, Jairo.
Nesse tempo chamou Mateus; no dia seguinte, disse a Pedro
e André:
"Segui-me; far-vos-ei pescadores de homens." Também Tiago e João,
filhos de Zebedeu, foram convidados a seguí-Io. Atravessando na
mesma noite o mar de Galiléia, na barca de Pedro, com os doze
Apóstolos, apaziguou a tempestade com sua palavra. Alguns dias
depois se realizaram a pesca milagrosa e o sermão da montanha.
Em Cafarnaum, Jesus curou um paralítico, que fizeram descer pelo
teto e colocaram diante do Senhor. A filha do chefe da sinagoga
recaiu e faleceu de novo. Jesus foi, a pedido de Jairo, à casa
deste. No caminho se deu a cura da mulher que padecia de fluxo
de sangue, só pelo contacto com as vestes do Salvador. A filha
de Jairo ressuscitou segunda vez, pelo poder divino de Jesus.
Os fariseus de Cafarnaum, desde muito inimigos de Jesus,
murmuraram contra Ele e propuseram-lhe muitas perguntas
ardilosas. Jesus operou muitos milagres, à vista deles, curando
aí também o homem que tinha uma das mãos secas.
Depois foi à terra dos Gerasenos, onde encontrou dois possessos.
Os demônios pediram-lhe que os deixasse entrar numa manada de
porcos, que estavam perto. Jesus permitiu-lhes. Então se lançou
a manada num lago vizinho. Os dois homens, porém, ficaram livres
dos demônios.
Jesus mandou os discípulos atravessarem o lago antes d’Ele e
seguiu-os mais tarde, andando sobre a água. Salvou então Pedro,
que ia afundar-se, por falta de fé.
Jesus celebrou a festa da Dedicação do Templo em Cafarnaum e
depois enviou os Apóstolos e discípulos a diversas regiões, para
ensinarem, batizarem e curarem. Com os restantes discípulos
percorreu a região ao norte do lago Genesaré. Na vila de Azanoth,
situada mais para o sul, pregou um sermão longo e severo, ao qual,
às insistências de Marta, também Madalena assistiu. Durante o
sermão, teve esta diversos ataques como convulsões e o demônio
saiu-lhe do corpo em forma escura. Ela chorou e recebeu do Senhor
o perdão dos pecados, permanecendo depois no estado de graça.
Jesus viajou então para Betânia e Hebron, onde visitou a casa
paterna de João Batista, dando aos parentes a notícia da
decapitação do Precursor. Em Jerusalém, curou o homem que por
trinta e oito anos estivera doente, ensinando em seguida no
Templo. Chegando a Tirza, remiu um certo número de presos e
dirigiu-se de novo a Cafarnaum, onde ensinou e explicou o "Pai
nosso''; ali escolheu os Apóstolos, subordinando-lhes os 72
discípulos.
Com cinco pães e dois peixes saciou cinco mil homens, que por isso
queriam fazê-lo rei. Atravessou, porém, o lago e deu em Cafarnaum
a promessa da SS. Eucaristia. Pouco depois fartou, com sete pães
e sete peixes, a quatro mil homens. Esse milagre, assim como a
primeira multiplicação de pães, operou-o Jesus numa montanha,
entre Betsaida e Chorozaim, à margem setentrional do lago
Genezaré.
Dirigiu-se depois para o norte, à região de Cesaréia Filipe. Foi
ali que interrogou os doze Apóstolos: "Por quem toma o povo o Filho
do homem?" Pedro respondeu com entusiasmo: "Vós sois o Cristo,
o Filho de Deus vivo." Como recompensa, recebeu Pedro a promissão
do poder das chaves: "Tu és Pedro e sobre esta (pedra) edificarei
minha Igreja e as portas do inferno não prevalecerão contra ela.
Dar te-ei as chaves do reino dos céus: Tudo que ligares na terra,
será ligado no Céu; e tudo que desligares na terra, será
desligado, no Céu". Dali viajou Jesus para Betânia, para celebrar
a Páscoa.
17. Resumo do terceiro ano da vida pública de Jesus
Jesus comeu o cordeiro pascal, em casa de Lázaro; diariamente ia
ao Templo, para ensinar; contou também a parábola do homem rico
e do pobre Lázaro. Partindo depois da festa, Jesus viajou para
o monte Tabor e, subindo ao monte com Pedro, João e Tiago o Maior,
transfigurou-se diante deles. Ouviram a voz do Pai Celestial:
"Eis O meu Filho muito amado, em quem pus toda minha afeição:
ouvi-O.!" De volta, curou Jesus, ao pé do monte, um rapaz lunático
e endemoninhado; depois se dirigiu a Cafarnaum e pregou dois dias
diante de uma grande multidão de povo, sobre um monte, perto de
Gabara, algumas léguas a oeste do lago; de lá tomou o caminho de
Tiro, para embarcar e navegar pelo Mar Mediterrâneo, para a ilha
de Chipre.
Jesus desembarcou na cidade de Salamis, onde foi bem recebido:
pregou e curou ali, assim como em outras vilas da ilha, na qual
também celebrou a festa de Pentecostes. Tendo ali convertido ao
todo 570 judeus e pagãos e voltou à Palestina. Desembarcou, com
os companheiros, na baía do Monte Carmelo, encaminhou-se para
Cafamaum, onde visitou sua Mãe; os Apóstolos, de volta da missão,
relataram-lhe os trabalhos e receberam novas instruções.
Depois tomou o caminho de além do Jordão a Betabara, perto da
foz deste rio, no Mar Morto. Continuando a viagem, curou dez
leprosos, mandando-Ihes que se apresentassem aos sacerdotes; só
um voltou, para agradecer-lhe.
Ao entrar em Jericó, viu Jesus a Zaqueu na figueira, foi à casa
deste e converteu-o. Marta e Madalena enviaram mensagem,
convidando-O a vir a Betânia, porque Lázaro estava muito doente.
Perto de Jericó, Jesus ressuscitou uma menina, que estava morta,
havia já quatro dias. Ao aproximar-se de Samaria, trouxeram-lhe
a notícia da morte de Lázaro. Foi logo a Betânia: ao chegar, havia
já oito dias justos que Lázaro morrera e quatro dias que fora
sepultado. Jesus fez-se conduzir ao sepulcro, mandou tirar a
pedra do túmulo e a tampa do caixão e exclamou: "Lázaro, vem para
fora, sai." No mesmo instante se levantou este, indo depois para
casa, com o Senhor e aqueles que estavam presentes.
A ressurreição de Lázaro excitou em Betânia, assim como em
Jerusa lém, um grande tumulto; por esse motivo fugiu Jesus, com
Mateus e João, para além do Jordão, fazendo dali uma viagem à terra
dos Reis Magos, acompanhado apenas por três jovens: o rei Sair
já tinha falecido; Mensor, porém, e Theokenos estavam ainda
vivos, esperando que Jesus os visitasse. Nessa viagem, Jesus
pregou e curou muitos, na cidade de Kedar e ressuscitou também
um homem rico dos arredores, de nome Nazor, proprietário de
grandes rebanhos.
Jesus foi recebido pelos Reis Magos, com grande alegria e
solenidade. Ensinou-Ihes e ao povo, exortando-os a abandonarem
a idolatria; o povo tirou logo todos os ídolos dos templos. Jesus
disse também que o rei Sair recebeu o Batismo, de desejo. A
despedida, Mensor chorou como uma criança.
Passando pela Caldéia, Jesus operou diversos milagres e ensinou
em várias vilas pagãs. Repreendeu severamente os habitantes por
causa da idolatria, lembrando-Ihes que se Ihes tinham quebrado
todos os ídolos na noite em que aparecera a estrela aos Reis Magos;
assim, em verdade, acontecera. Jesus continuou o caminho, em
marcha forçada, até o Egito, para visitar ali os lugares onde
vivera a Sagrada Família. Ensinou também aos judeus dessas
terras, revelou-se-Ihes como o Messias e falou-Ihes da sua morte
próxima.
Depois de uma ausência de três meses, voltou à Judéia, tomando
o caminho de Sichar, Ephron e Jericó. Na primeira cidade lhe
vieram Pedro e João ao encontro, em Jericó o esperavam sua Mãe
e as santas mulheres. Dirigiu-se dali a Cafamaum e Nazaré,
voltando depois a Betânia, de onde fez diversas visitas aos
arredores.
Em seguida, ia diariamente com os Apóstolos ao Templo, para
ensinar. Anunciou à Virgem SS. que o tempo da Páscoa, se
aproximava. Instruiu também os Apóstolos a respeito e deu-Ihes
instruções sobre os lugares para onde deviam ir, depois da sua
morte. No fim de um grande sermão, ao sair do Templo, quiseram
lapidá-Io os fariseus; mas Jesus escapou-se e deixou de ir ao
Templo por três dias. Quando ensinou a última vez, antes do
domingo de Ramos, estava o Templo cheio de povo. Disse que dentro
em pouco seria abandonado pelos seus; mas antes disso entraria
triunfante no Templo e ficaria ainda quinze dias com eles. Por
causa dessas palavras reuniram-se os fariseus e escribas num conselho, em casa de Caifás, proibindo depois publicamente que se
recebessem Jesus e os discípulos em casa.
No dia anterior ao domingo de Ramos, anunciou Jesus que na manhã
seguinte faria a sua entrada triunfante em Jerusalém e mandou
convocar os discípulos a Betânia. De manhã mandou dois Apóstolos
trazerem a jumenta, com o jumentinho. Dirigiu-se com os doze e
os discípulos a caminho de Bethphagé. Maria e as mulheres piedosas
seguiram-no. Chegado a Bethphagé, montou na jumenta. Os Apóstolos
caminhavam à frente, dois a dois, levando nas mãos ramos de
palmeira; atrás de Jesus seguiam os discípulos, aos quais se
juntavam as santas mulheres.
À notícia da entrada triunfante de Jesus em Jerusalém, o povo
começou a enfeitar as ruas. Inumeráveis forasteiros, que estavam
em Jerusalém, para celebrarem a próxima festa, vieram com o povo
ao encontro de Jesus. Muitos arrancaram ramos das árvores,
cobrindo com eles o caminho; outros estenderam os mantos na
estrada diante d’Ele, cantando e aclamando Jesus jubilosamente.
O Mestre, porém, chorou e choraram também os Apóstolos, quando
disse que muitos daqueles que então o aclamavam, cheios de
alegria, daí a poucos dias o escarneceriam; que um deles o trairia
e que a cidade seria destruída. No caminho curou alguns e, chegado
ao Templo, ensinou até à noite, quando estavam de novo abertas
as porta; da cidade, que antes tinham sido fechadas pelos inimigos
de Jesus.
Nos três dias seguintes Jesus continuou a ensinar no Templo; entre
outras coisas, contou também a parábola do dono da vinha e da pedra
angular rejeitada. No quarto dia, ficou com os apóstolos e as
piedosas mulheres, em casa de Lázaro, ensinando-os e exortando-os
até alta noite. No quinto dia se sentou em frente à caixa de
esmolas do Templo, ensinando aos Apóstolos sobre a esmola da viúva
pobre, que dera mais do que os outros. De volta disse Jesus que
do Templo não ficaria pedra sobre pedra. No sexto dia depois do
domingo de Ramos, ensinou de novo no Templo e assim no sétimo dia,
falando claramente da sua próxima Paixão.
O oitavo dia passou na vizinhança de Betânia, consolando os
discípulos. Nos dois dias seguintes, ensinou novamente no Templo,
sem ser incomodado, despedindo-se enfim do santuário com
lágrimas.
18. Notas gerais sobre a personalidade de Jesus e seu modo de
ensinar
Prescindindo dos últimos grandes dias da Paixão, era a vida
pública do Senhor a parte mais importante e mais salutar da sua
vida. Aproveitou-a do melhor modo possível. Foi incansável em
percorrer diversas vezes toda a Palestina e em todas as direções,
aquém e além do Jordão, passando além das fronteiras do norte e
indo até o Líbano. Visitou os judeus na ilha de Chipre e no Egito
e mesmo os astrólogos pagãos, na terra dos Reis Magos. Fazia as
viagens penosas sempre a pé, às vezes até descalço. Em todos os
lugares a que chegava ou por que passava, ensinava ao povo e curava
os enfermos. Nesses trabalhos nem ao gozo do descanso se
entregava; renunciava até, não raras vezes, à comida e bebida,
porque tinha fome e sede de almas, para cuja salvação viera.
A personalidade do Divino Salvador, que queremos descrever
segundo as informações da piedosa freira Agostiniana, tinha em
si algo de majestoso, para o que muito lhe contribuíam a figura
e o olhar sério. Anna Catharina conta o seguinte, sobre a
personalidade de Jesus:
"Vi de súbito diante de mim o Senhor, como viveu na terra. Era
uma figura alta, esbelta e viril, tinha o rosto comprido, de uma
alvura puríssima, a fronte alta, de um branco sem mescla e o nariz
bem formado e oblongo. O cabelo, repartido no alto da cabeça,
caia-lhe de ambos os lados do rosto, até os ombros; vestia uma
longa túnica, de cor cinzenta, semelhante a uma camisa,
terminando em simples pregas e cingida debaixo do peito. As mangas
eram bem largas, as mãos cruzadas sobre o peito. O Senhor tinha
algo de imóvel, reto, comovedor, sério e amável. Era infinitamente nobre, simples e bom.”
Em outra ocasião diz a piedosa vidente: "Jesus era mais alto do
que os apóstolos; onde iam ou estavam, sempre parecia
sobressair-lhe a fronte branca e séria. Tinha o andar sempre
ereto e direito; não era magro nem corpulento, mas de aparência
absolutamente sadia e nobre, com peito e ombros largos. Tinha
músculos bem exercitados pelas viagens e exercícios, mas não
mostravam sinais de trabalho pesado. As palavras, o som da voz
do Mestre eram como raios vivos, penetrantes. Falava sem defeito
de pronúncia, calmo e forte, nunca muito depressa, a não ser
algumas vezes aos fariseus, mas então as palavras eram como
flechas agudas e o som da voz mais severo. A voz era barítono
agradável, puríssima, sem igual. Ouvia-se-Ihe a voz entre todas
as outras vozes, numa multidão, sem que Ele gritasse.
Era um aspecto comovedor o de Jesus indo pelas ruas de
Cafarnaum, ora com as vestes compridas, ora arregaçadas, sem
muito movimento, mas também sem rapidez, tão calmo, quase sem
tocar a terra, mais simples e mais poderoso do que os outros
homens. Nada de excêntrico, nada de vacilante ou de afetação; tudo
n’Ele era natural no ardor, no olhar e no falar.
Os amigos de Lázaro, Nicodemos, o filho de Simeão, João Marcos,
tinham falado com Jesus e todos ficaram cheios de admiração pela
atitude, pela sabedoria, pelas qualidades humanas e até corporais
do Mestre e sempre que Este estava ausente, diziam uns aos outros:
"Que homem extraordinário! Tal não houve nem haverá; tão sério,
tão amável, tão sábio e perspicaz e ao mesmo tempo tão simples.
Não compreendo tudo que diz, mas vejo-me obrigado a crer, de tal
modo fala. A gente não o pode olhar de frente; Ele parece ler todos
os pensamentos e sentimentos do coração. Que figura, que porte
sublime! Que rapidez, sem lhe notar precipitação! Quem pode andar
com Ele? Caminha com tanta velocidade; chega, sem mostrar cansaço
e, após uma hora, já está novamente a caminho. Que homem excelente
se tornou!" Mas ninguém imaginava que era do Filho de Deus que
falavam. Achavam-no o maior de todos, veneravam-no com certo
temor, mas sempre o tomavam por homem, apesar de maravilhoso.”
"Onde quer que Jesus chegasse, relata a vidente, à respeito da
sua estadia em Kisloth, sempre havia grande movimento.
Aclamavam-no, prostravam-se-Lhe aos pés, apinhavam-se-Lhe ao
redor para tocá-Lo e era para evitar a multidão que Jesus ia e
vinha inesperadamente. Muitas vezes se separava dos discípulos
pelo caminho, mandando-os a outros lugares e caminhando
"'sozinho. Nas vilas era às vezes preciso abrir-lhe caminho,
através das multidões. A muitos, porém, permitia que se lhe
aproximassem e o tocassem e parte destes se sentiam por isso
comovidos e convertiam-se ou saravam.
Andava (em Jerusalém) sem medo, vestia, na maior parte das vezes,
uma longa túnica, de pano branco; era a túnica dos profetas. As
vezes se apresentava como qualquer indivíduo, sem chamar a
atenção e passava facilmente desapercebido, mas outras vezes
fazia uma impressão extraordinária: o rosto resplandecia-Lhe com
um brilho sobrenatural. A entrada de Jesus no Templo costumava
causar uma singular comoção entre os judeus. O que deve admirar,
é que todos ocultassem os sentimentos e que nenhum ousasse falar
aos outros da impressão que lhe fazia o aspecto do Mestre. Era
uma providência divina, para prolongar a ação pública de Jesus,
pois, se falassem uns aos outros, crescer-Ihes-ia ainda mais o
furor. Mas assim lutava em muitos o ódio e o furor com uma santa
comoção; em outros nascia um fraco desejo de conhecê-lo e todos
se esforçavam para entrar, por intermédio de outros, em relação
com Ele.
Como era incansável o Senhor! Como obrigava também os Apóstolos
a fazerem uso de todas as suas forças! A principio, muitas vezes,
estavam cansadíssimos. Durante a marcha, cumpria aos discípulos
ir ao encontro do povo, ensiná-Io e chamá-Io à doutrina de Jesus.
Os discípulos tinham muito que agüentar e às vezes lhes era
bem desagradável a missão. Aonde quer que fossem, anunciando o
Senhor, ouviam freqüentemente palavras de escárnio, como, por
exemplo: "Então lá vem o homem de novo? O que quer? Donde vem?
Não lhe foi proibido?" Riam-se deles, apupavam-nos, vaiavam-nos.
É verdade que alguns se mostravam satisfeitos de sua vinda; mas
estes não eram numerosos.
A dirigir-se a Jesus mesmo, diretamente, aquela gente não se
atrevia; mas justamente onde Ele ensinava, estando os discípulos
ao redor ou seguindo-o pelas ruas, todos aqueles vozeadores se
lhes dirigiam, fazendo-os parar, interrogando-os, alegando terem
entendido mal as palavras de Jesus ou pedindo. uma explicação.
Às vezes eram interrompidos por gritos de júbilo: Jesus tinha de
novo curado a alguém; isso os vexava e retiravam-se. Desse modo
continuava o trabalho até à noite, durante a marcha penosa e
distante, sem refrigério ou descanso.
"Vi o Senhor conversar com diversas famílias (em Seforis), tão
indizivelmente amável e afetuoso, que não posso descrevê-Io. Os
modos caridosos do Mestre comoveram-me até as lágrimas.”
Chegando Jesus a uma cidade, entrava quase sempre na sinagoga,
subia ao púlpito, mandava trazer os rolos da Escritura, dos quais
lia um trecho aos presentes e em conexão com o trecho, começava
a ensinar. Geralmente o sermão tinha por assunto a necessidade
de penitência e verdadeira conversão de coração ou a prova de que
o reino de Deus já tinha chegado e que o Messias já devia ter
vindo. Interpretava tudo como se referindo à sua pessoa, mas, na
maioria das vezes, sem afirmar abertamente que Ele era o Messias
ou Deus; contudo, falava distintamente do Pai do Céu, que o tinha
mandado, para que assim se apresentasse e curasse os enfermos.
"Jesus ensinou novamente (em Cafarnaum), com muito fervor, sobre
o profeta Isaías, interpretando tudo com referência ao seu tempo
e à sua pessoa; disse que o tempo tinha chegado e que estava
próximo o reino de Deus; que sempre tinham desejado o cumprimento
das profecias e anelado pelo Profeta, o Messias, que lhes tirasse
o pesado fardo, mas que quando Ele chegasse, não o aceitariam,
porque não se lhes conformariam com as opiniões errôneas.
Enumerou então os sinais, pelos quais se conheceria o Profeta,
cujo aparecimento tanto desejavam, que aprendiam nas escolas,
nos rolos da Escritura e suplicantes imploravam a Deus que lhes
permitisse ver com os próprios olhos; demonstrou-Ihes que de fato
esses sinais já tinham aparecido. Disse-Ihes: "Os coxos andarão,
os cegos enxergarão, ouvirão os surdos." Por acaso não é o que
acontece? Por que assistem os pagãos à exposição da doutrina? Por
que gritam os possessos? Por que são expulsos os demônios? Por
que louvam a Deus os curados? Não o perseguem, porventura, os
sanguinários inimigos? Não o rodeiam os espiões? Expulsarão e
matarão o filho do dono da vinha, mas que lhes sucederá? Se não
quiserdes aceitar a salvação, esta não se perderá por isso, nem
podereis vedá-Ia aos pobres, enfermos, pecadores,
publicanos, penitentes e até aos gentios, aos quais se dirigirá,
retirando-se de vós.” Tais eram os assuntos dos sermões. Dizia
também: "Reconheceis João como profeta, a quem agora tendes
preso. Ide a ele, na cadeia e perguntai-lhe para quem preparou
o caminho, de quem dá testemunho?" - Enquanto assim ensinava,
crescia mais e mais o furor dos fariseus, que murmuravam e
cochichavam uns com os outros.
Quando Jesus estava para ensinar em Adama, levantou primeiro os
olhos ao céu, rezou alto ao Pai, de quem tudo vem, pedindo que
a doutrina encontrasse corações contritos e sinceros e mandando
ao povo que lhe repetisse as palavras; e assim fizeram. O sermão
durou das nove horas da manhã até às quatro da tarde; uma vez houve
um intervalo e ofereceram-lhe um cálice de bebida refrigerante
e um pouco de alimento, para restaurar-se. Os ouvintes iam e
voltavam, conforme os negócios que tinham na cidade. Ele ensinou
sobre a penitência, sobre a purificação e sobre a lavagem com
água; falou também de Moisés, das tábuas da Lei quebradas, do
bezerro de ouro, do trovão e dos relâmpagos no monte Sinai.”
O Redentor dava as explicações de suas palavras com
extraordinária doçura, amor e paciência, respondendo também às
dúvidas e perguntas que propunham. Aos fariseus hostis, que lhe
faziam muitas perguntas ardilosas e dificuldades maliciosas,
respondia com calma, mas severamente; do mesmo modo flagelava,
com rigor e sem indulgência, a hipocrisia dos fariseus, que
impunham ao povo carga tão pesada, que eles mesmos não podiam
suportar; como também a dureza de coração, com que afligiam os
pobres e humildes. Em tais ocasiões falava tão severamente e sabia
refutar todas as dificuldades tão claramente, que os inimigos se
retiravam envergonhados, mas cheios de raiva e ódio contra ele.
Não se deixava confundir nem por ameaças, nem por perseguições,
mas falava sempre com toda franqueza. Muitas vezes a Virgem
Santíssima lhe suplicava, com lágrimas, que moderasse as palavras
severas ou não fosse a um lugar, onde o ameaçava a perseguição,
por exemplo, a Nazaré e Cafarnaum. Jesus consolava-a
carinhosamente, mas dizia-lhe decididamente que iria ou falaria
de tal modo, porque devia realizar a obra para a qual o Pai celeste
o enviara e para cuja realização ela se tomara sua Mãe.
De um sermão impetuoso que pregou no monte de Gabara,
relata Anna Catharina o seguinte:
"Jesus chegou ao cimo, com os discípulos, perto das dez horas;
os fariseus, herodianos e saduceus seguiram-no também. O Senhor
subiu ao lugar que servia de púlpito, os discípulos ficaram de
um lado, os fariseus do outro, formando desse modo um círculo.
Jesus fez alguns intervalos, em meio do sermão, durante os quais
o povo se mudou, saindo uns, entrando outros; diversos pontos da
doutrina foram explicados de novo. Nas pausas tomava o povo um
refresco, dando também uma vez a Jesus um pouco de comer e de
beber.
O sermão que o Mestre fez, foi um dos mais severos e veementes
que jamais proferiu. Logo ao princípio, antes de rezar, disse que
não se deviam escandalizar de chamar a Deus seu Pai; pois quem
fizesse a vontade do Pai do Céu, seria filho d’Este e então provou
que Ele cumpria a vontade do Pai. Depois rezou alto ao Pai celeste
e começou uma exortação severa à penitência, a modo dos profetas.
Resumiu tudo que acontecera, desde o tempo da promissão, citou
as ameaças dos profetas e o respectivo cumprimento, símbolo desse
tempo e do futuro próximo.
Provou a vinda do Messias, pelo cumprimento das profecias. Falou
de João, o precursor, que lhe preparou o caminho e como realizou
tão conscienciosamente a obra da preparação e que eles com tudo
ficaram endurecidos. Acusou-os dos vícios, da hipocrisia,
idolatria, da carne pecaminosa. Descreveu, com franqueza e
severidade, os fariseus, herodianos e saduceus, falou com grande
zelo da ira de Deus, do juízo futuro, da destruição de Jerusalém,
do Templo e da devastação do país. Citou muitos trechos do profeta
Malaquias, interpretando-os e explicando-os, sobre o precursor
do Messias, a oblação pura, nova, pela qual entendi claramente
o sacrifício da Missa, - os judeus não o compreenderam, - o juízo
sobre os ímpios, a volta do Messias no novíssimo dia, a confiança
e consolação dos piedosos. Dirigiu-se aos discípulos, exortando-os à fidelidade e perseverança: disse-Ihes que os enviaria
a todos os homens, para pregarem a salvação. Avisou-Ihes de que
não se associassem aos fariseus, nem tão pouco aos herodianos ou
saduceus, dos quais deu uma pública descrição, ilustrando-a com
boas comparações, quase os indicando abertamente. Isso os
aborreceu tanto mais, quanto não queriam ser conhecidos como
herodianos, a cuja seita pertenciam só secretamente.
Jesus falou, nesse sermão, quase só dos profetas. Numa ocasião
disse que, se não aceitassem a salvação, teriam sorte pior do que
Sodoma e Gomorra. Os fariseus pensaram que com isso lhe podiam
fazer uma dificuldade e numa pausa perguntaram logo se aquela
montanha, a cidade e todo o país, com todos eles, deviam
afundar-se? E como podia haver sorte ainda pior? Jesus replicou:
que em Sodoma e Gomorra se afundaram as pedras, mas não as almas,
porque não conheciam a promissão, nem tinham a Lei, nem os
profetas; disse ainda algumas palavras, de que concluí que se
referia à sua ida ao Limbo e à salvação de muitos; os judeus não
o entenderam; eu, porém, me regozijei como criança, por saber que
aqueles homens não estavam todos perdidos. - Dos judeus do seu
tempo, porém, disse Jesus que lhes foi dado tudo:
foram escolhidos para povo de Deus, receberam todas as exortações
e repre ensões, a promessa e o respectivo cumprimento; se o
recusassem, persistindo na incredulidade, as almas e os corações,
duros como pedras, ser-Ihes-iam devorados pelo abismo, mas não
as pedras e montanhas, que obedeciam ao Senhor. Assim a sorte Ihes
seria pior do que a de Sodoma e Gomorra.
Tendo Jesus chamado tão severamente os discípulos à penitência
e tão claramente delineado os castigos dos ímpios, tornou-se
novamente carinhoso, convidando os pecadores a virem a Ele e
derramando até lágrimas de amor. Rezando, suplicou ao Pai que
movesse os corações, ainda que só um grupo de alguns homens ou
um só viesse a Ele carrega do de pecados, pois se pudesse salvar
uma só alma, repartiria tudo, sacrificaria tudo por ela, até
pagaria com a vida para remí-Ia. Estendeu as mãos a todos,
exclamando: "Vinde a mim todos que estais cansados e carregados,
vinde, ó pecadores, fazei penitência, crede e participai comigo
do reino de Deus." Estendeu as mãos também aos fariseus e aos
inimigos, que pelo menos viesse um, que se, por suas palavras,
caísse apenas uma faísca de penitência, contrição, amor, fé e
esperança num coração perdido e este desse fruto, ser-lhe-ia
recompensado, havia de viver e crescer, Ele próprio o nutriria,
educaria e reconduziria ao Pai.”
"No entanto, eram cerca de seis horas da tarde; o sol já tinha
baixado atrás da montanha; Jesus olhava, durante o sermão, para
o ocidente, pois do ponto em que pregava, para lá se estendia o
horizonte; atrás dele não havia ninguém. Rezou, abençoou e
dêspediu a multidão do povo.”
Cuidado especial dedicou Jesus à instrução dos Apóstolos e
discípulos. Assim conta Anna Catharina Emmerich que Ihes ensinou
o "Pai Nosso" e os instruiu sobre a eficácia da oração com vários
exemplos:
"Ensinava a todos os discípulos o mesmo e repetia-o muitas vezes,
com paciência e assiduidade comovedora, para que pudessem
ensiná-Io por toda a parte. Procedeu como no ensino às crianças,
interrogando ora um ora outro sobre as explicações dadas,
corrigindo-os e explicando de novo o que tinham entendido mal.
Jesus ensinava aos discípulos durante todo o caminho. Ensinava
só em parábolas e comparações, tomadas de todas as classes e
ofícios, de cada arbusto, pedra, planta e lugar, que se lhe
apresentava à vista, no caminho (a Galaad).”
Jesus dedicava tanto tempo e esforço à instrução dos Apóstolos
e discípulos, porque queria encarregá-Ios da propagação da sua
doutrina e continuar por meio deles a obra da salvação.
Preparava-os gradualmente para essa importante tarefa,
tirando-Ihes pouco a pouco a suposição de que tivesse vindo ao
mundo para fundar um reino terrestre; introduzia-os cada vez mais
profundamente no conhecimento dos mistérios da sua doutrina e
falava cada vez mais claro da sua Paixão e da necessidade desta,
para a redenção da humanidade pecadora.
Jesus ensinava muito e com profunda sabedoria, em parábolas e
comparações; falava às vezes tão intuitivamente, como se o fato
se lhe passasse diante dos olhos. As parábolas eram na maioria
das vezes, bem compreensíveis; freqüentemente explicava a todos,
outras vezes só aos Apóstolos; mas, quando as parábolas se Lhe
referiam à própria pessoa e os fariseus espiavam, para poder
acusá-Io, não as explicava a ninguém. Os fariseus fechavam
propositalmente os olhos à luz e por isso não podiam ver. Com tanto
mais gosto falava Jesus à gente humilde e sempre simples, que
recebia e compreendia a doutrina de boa vontade e com fé humilde.
Muito gostava Jesus de ensinar às crianças e abençoava-as, sempre
que as mães lhas traziam ou se lhe aproximavam dele no caminho.
"Vi muitas mães, vindo com grupos de crianças, como em procissões:
eram crianças de todas as idades, até crianças de peito traziam
ao colo. Vieram a uma rua larga da vila, quando Jesus, dobrando
uma esquina, entrou nessa mesma rua, os discípulos, que iam à
frente, quiseram repelir um pouco asperamente as mulheres e
crianças; Jesus, porém, mandou que as deixassem; colocaram-nas
por isso, em certa ordem. Num lado da rua formaram cinco fileiras
compridas de crianças, de diferentes idades e sexos, meninos
separados de meninas; estas eram muito mais numerosas. As mães,
porém, com as crianças de peito, ficaram atrás da quinta fileira.
No outro lado da rua havia, em grande quantidade, outra gente,
que alternadamente se adiantava. O Senhor passou devagar ao longo
da primeira fileira, falou às crianças e, impondo-Ihes as mãos
sobre as cabeças, abençoou-as. A algumas passou uma das mãos na
cabeça, outra no peito; outras apertou ao coração, outras ainda
apresentou a todos como modelos e assim passou, ensinando,
exortando, animando e abençoando.
Chegado ao fim da fileira, voltou pelo outro lado da rua, ao longo
dos adultos, exortando-os, ensinando-os e apresentando-Ihes
também uma ou outra criança; depois passou por outra fileira de
crianças, voltando de novo pelo lado dos adultos, onde,
entretanto, entraram outros no lugar da frente. Assim continuou,
até que finalmente fez esse ato de caridade também às crianças
de peito. Foi-me revelado que todas as crianças abençoadas por
Ele receberam uma graça especial e se tornaram mais tarde cristãs.
Eram cerca de mil as crianças apresentadas a Jesus, pois me parece
que a afluência continuou por vários dias.
Muito me comoveu ver, no jardim, Jesus ensinando aos filhos do
dono da casa: ora os tinha diante de si, ora ao colo, ora abraçando
os dois menores juntos. Ensinou-Ihes a obedecer aos pais e
respeitar os mais velhos. O Pai do Céu tinha-Ihesdado aquele pai
e, como respeitassem os pais terrenos, assim respeitariam o Pai
Celestial. Falou dos filhos de Jacó e de Israel, os quais, por
terem murmurado, não entraram na terra prometida, que era tão
linda. Então Ihes mostrou as belas árvores e frutos do jardim e
falou do reino dos céus, que também nos é prometido, se guardarmos
os mandamentos de Deus e que é um país muito mais belo que a terra,
a qual, em comparação com ele, é apenas um deserto. Portanto,
deviam obedecer a Deus e suportar o que Ele Ihes mandasse. Que
se guardassem de murmurar, para alcançar o Céu e nunca duvidassem da beleza deste, como os israelitas duvidaram no deserto;
deviam pensar que o Céu é muito melhor do que a terra, mais belo
que tudo, dessa verdade deviam lembrar-se sempre e pensar em
merecer o Céu, por todos os esforços e trabalhos,”
Num passeio que Jesus fez com os meninos da escola de Abelmehola,
ensinou-lhes, com belas comparações da natureza, que tomou de
diversíssimos objetos: de árvores, frutas, flores, abelhas e
aves, do sol, da lua, da terra, da água, dos rebanhos e da lavoura.
Assim ensinou aos meninos, de uma maneira indizivelmente
atraente.
Em Bezech, proferiu Jesus uma tocante exortação aos meninos e às
meninas. Admoestou os meninos a serem pacientes uns com os outros;
se alguém Ihes batesse ou Ihes jogasse uma pedra, não se
vingassem, mas sofressem com paciência e se retirassem, perdoando
aos inimigos. Não deviam responder palavra alguma, mas amar ainda
mais e praticar atos de caridade até para com os inimigos. Não
cobiçassem o bem alheio e, se outros meninos lhes tirassem
utensílios de escrever, os brinquedos e frutas, deviam dar-lhes
ainda mais do que cobiçavam e satisfazer-Ihes a avidez, se lhes
fosse permitido dar essas coisas, pois só os pacientes, os que
praticam a caridade e liberalidade, podem receber um lugar no
reino celeste. Descreveu esse lugar de maneira infantil, como
belíssimo trono.
Falou dos bens da terra, que se devem abandonar, para alcançar
os bens do céu. Dirigindo-se às meninas, exortou-as, entre outras
coisas, a que não se invejassem umas às outras, por causa de
preferências ou de belos vestidos, mas que praticassem a
obediência, amor filial, caridade e temor de Deus.
No fim dessa instrução pública, dirigiu-se aos discípulos,
consolando-os com infinito carinho e exortando-os a sofrerem tudo
com Ele e a não se deixarem vencer pelos cuidados deste mundo.
19. Os milagres de Jesus
Nos santos Evangelhos se relatam três ressurreições e grande
número de outros milagres que o Salvador operou; mas mencionam-se
na Escritura Sagrada apenas os mais importantes. S.João
Evangelista dá a entendê-lo na frase final de seu Evangelho:
"Muitas outras coisas, porém, fez Jesus, as quais, se se
escrevessem uma por uma, creio que no mundo todo não poderiam
caber os livros que delas se houvessem de escrever". (S. João 21,
25).
Em conformidade com essas palavras, narra a estigmatizada da
Westfália, a qual nas suas visões acompanhou o Divino Salvador
nas viagens, ouviu-lhe os sermões, viu os milagres que Ele operou,
milagres sem interrupção, principalmente depois do seu Batismo.
Em grande número vinham os doentes a Ele ou eram transportados
por outros e Ele os curava a todos, a não ser aqueles que eram
endurecidos de coração. Muitas vezes até não esperava que se Lhe
aproximassem, mas procurava-os, para os curar. Não curava, porém,
a todos indistintamente.
Jesus pode curar todos, diz a serva de Deus, mas cura só os que
crêem e fazem penitência; e muitas vezes Ihes avisa para não
recaírem. Ele não veio a este mundo para dar a saúde do corpo e
deixá-Ios de novo pecar, mas quer curar o corpo, para remir a alma
e salvá-Ia.”
Jesus curou muitos homens acometidos de diversíssimas
enfermidades: cegos, surdos, mudos, coxos, paralíticos,
hidrópicos, epiléticos, doentes de febre, morféticos ou leprosos
e muitos possessos de maus espíritos.
De grande interesse é o que a vidente nos conta do modo por que
Jesus operava as curas milagrosas.
"Jesus curava de vários modos: a uns de longe, com um olhar ou
com uma palavra, a outros tocando-Ihes, a outros impondo-Ihes as
mãos, a outros soprava ou benzia-os, a outros aplicava saliva nos
olhos. Muitos o tocavam e ficavam curados; a outros fez sarar,
sem que se virasse para eles.
Curava cada um, conforme o mal, a fé ou à natureza, como ainda,
agora de modo diferente, corrige e converte os pecadores. Jesus
não rompia a ordem da natureza, mas apenas lhe anulava as leis;
não cortava os nós, mas desatava-os e sabia desatar todos. Tinha
todas as chaves e, sendo Homem-Deus, operava de modos humanos,
santificando-os.
Não cura sempre do mesmo modo: ora ordena, ora impõe as mãos;
às vezes se inclina sobre os doentes, outras vezes os manda
lavar-se, amassa barro com saliva e aplica-Ihes nos olhos. A
alguns admoesta, a ou tros diz os pecados, poucos são os que se
recusa curar.
Cada modo de curar tinha uma misteriosa significação própria;
todos se referiam à causa oculta e significação da doença e à
necessidade espiritual do homem. Assim recebiam, por exemplo, os
ungidos com óleo uma certa força espiritual, de que era sinal o
óleo. Nenhuma dessas ações de certo era sem significação e
intenção.
Jesus não curava todos do mesmo modo. Também não curava de modo
diferente dos Apóstolos, Santos e sacerdotes até do nosso tempo.
Impunha as mãos e rezava com os enfermos; mas fazia-o mais
depressa do que os Apóstolos. Fazia os milagres e as curas também
como modelos, para os seus sucessores e discípulos. Sempre
procedia como convinha ao mal e à necessidade: tocava os coxos
e os músculos recobravam força e eles se levantavam. Nos membros
quebrados, tocava na fratura e as partes reuniam-se. Quanto aos
leprosos, vi que, quando os tocava, as chagas se Ihes fechavam,
caindo-Ihes as crostas secas imediatamente; mas ficavam manchas
vermelhas, que desapareciam pouco a pouco, porém, mais depressa
do que de costume e segundo o grau de merecimento dos doentes.
Nunca vi que um corcunda se tivesse tornado direito num instante,
ou um osso torto em osso reto. Não porque Jesus não pudesse
fazê-Io, mas porque não queria que os seus milagres fossem
espetáculos, mas, sim, obras de misericórdia; eram símbolos
da sua missão de desligar, reconciliar, ensinar, desenvolver,
educar e resgatar. E, como exige a cooperação dos homens, para
participarem da salvação, assim haviam de manifestar-se nas
curas: fé, esperança, caridade, contrição e reforma dos homens,
como cooperação nas mesmas. Cada estado do enfermo tinha
tratamento próprio e desse modo se tornava cada doente e o
respectivo tratamento o símbolo duma doença espiritual, perdão
e correção. Só entre os gentios vi que alguns dos milagres eram
mais estranhos e notórios. Os milagres dos Apóstolos e dos Santos, mais tarde, davam muito mais na vista e eram mais contrários
à ordem geral da natureza, pois os pagãos precisavam de um abalo
espiritual, de uma forte comoção; os judeus, porém, careciam
apenas que se Ihes desvendassem os olhos espirituais e assim por
diante. Curava muitas vezes pela oração, à distância,
principalmente mulheres que sofriam de fluxo de sangue, pois
estas não ousavam aproximar-se, nem podiam, sendo proibido pelas
leis judaicas. Jesus observava geralmente as leis que tinham uma
significação sobrenatural e misteriosa, as outras não.
"Vi novamente, conta Catharina Emmerich na outra passagem, a
grande diferença nos modos de curar e que Jesus provavelmente
curava de tão diversos modos, para ensinar aos discípulos como
eles mesmos, e depois a Igreja, em todos os séculos, deviam
proceder. Em todo o seu agir e sofrer, revelava sempre modos e
formas humanas, nada se lhe revestia de um cunho mágico ou se
transformava instantaneamente. Vi em todas as curas uma certa
transição, conforme a espécie da doença ou do pecado. Vi que em
todos sobre os quais orava ou pousava as mãos, se efetuava uma
momentânea calma e recolhimento e os doentes levantavam-se
curados, como de um desmaio. Paralíticos levantavam-se
vagarosamente e, sentindo-se curados, prostravam-se-Ihe aos pés;
mas a força interior e a agilidade dos membros voltavam só depois
de certo tempo: em alguns depois de horas; em outros após alguns
dias, etc. Vi hidrópicos que puderam achegar-se-Ihe, cambaleando
de fraqueza, outros que era preciso serem transportados. Ele
pousava geralmente a mão sobre a cabeça e o estômago dos enfermos;
logo após as palavras do Mestre, podiam levantar-se, sentiam-se
leves e a água saía-Ihes pelo suor. Os leprosos perdiam, logo
depois da cura, as crostas das chagas, mas ficavam-Ihes manchas
vermelhas, onde antes houvera lepra. Aqueles que recuperavam a
vista ou o ouvido ou o uso da língua, sentiam ainda a princípio
a falta de desembaraço nesses sentidos. Vi paralíticos curados,
que não sentiam mais dores e podiam caminhar; a inchação não
desaparecia imediatamente, mas em pouco tempo. Epiléticos ficavam curados no mesmo instante; quanto ás febres, cessavam logo,
mas os doentes não ficavam fortes e sãos no mesmo momento, mas
restabeleciam-se como uma planta murcha, depois da chuva. Os
possessos caiam geralmente num curto desmaio, levantando-se
depois livres do demônio, e sossegados, mas ainda fatigados. Tudo
se fazia com calma e ordem, somente para os infiéis e adversários,
tinham os milagres de Jesus algo de terrível.
Em Genabris rezou Jesus em silêncio sobre os doentes, que na maior
parte tinham braços aleijados; tocou-Ihes os braços, passando a
mão levemente, de cima para baixo; depois mandou que se retirassem
e louvassem a Deus: estavam curados.
Em frente da sinagoga de Bezech, estava reunido grande número de
enfermos. Jesus, acompanhado pelos discípulos, passou de um a
outro, curando-os. Entre estes havia alguns endemoninhados, que,
enraivecidos, gritavam contra ele; o Mestre livrou-os e mandou
que se calassem. Havia ali paralíticos, tísicos, hidrópicos, com
úlceras no pescoço, com glândulas intumescidas, surdos e mudos;
curou-os todos, impondo as mãos a cada um, mas o modo de tocá-Ios
era diferente; alguns dos doentes ficaram imediatamente curados;
outros sentiram-se aliviados e a cura completa efetuou-se-Ihes
em pouco tempo, conforme a espécie do mal e estado da alma. Os
curados afastaram-se, cantando um salmo de Davi. Havia, porém,
tantos doentes, que Jesus não pôde chegar a todos; os discípulos
ajudaram-no, levantando e livrando os enfermos. Jesus passou as
mãos na cabeça de André, João e Judas Barabás, to mou-lhes depois
as mãos nas suas, mandando que fizessem a uma parte dos enfermos
o que Ele fazia aos outros. Os Apóstolos cumpriram a ordem e
curaram a muitos.
Em Hukok curou Jesus a um cego, que sofria de catarata; Jesus
mandou-o lavar o rosto na fonte; depois de feito isso, untou-lhe
os olhos com óleo e, quebrando um pequeno ramo de arbusto,
mostrou lho, perguntando-lhe se enxergava. O homem disse: "Sim,
vejo uma árvore grande." Então lhe untou Jesus de novo os olhos,
e ao pergun tar-lhe outra vez se via, o homem lançou-se-lhe feliz
aos pés, exclamando: "Oh! Senhor, vejo montanhas, árvores,
homens, vejo tudo!" Então reinou grande alegria na multidão de
povo e conduziram o homem à cidade.
Só pela sua presença, Jesus expulsava dos possessos os
demônios, que se retiravam visivelmente, em forma de vapor, que
depois formava uma sombra de horrível figura humana e fugia. O
povo admirava-se e assustava-se; os libertos empalideciam e
desmaiavam. Jesus, porém, lhes falava e, tomando-Ihes as mãos,
mandava-os levantar-se; então voltavam a si, como de um sonho e
caindo de joelhos, agradeciam-lhe; eram homens inteiramente
mudados. Jesus exortava-os e dizia-lhes as faltas de que se deviam
corrigir.
Entre todos que foram curados por Jesus, nunca vi dementes,
como os chamam; foram todos curados como endemoninhados e
possessos.”
Os milagres de Jesus não eram só curas de doentes. Ele operava
também muitos outros prodígios, como a multiplicação dos pães,
a pesca milagrosa, a bonança do mar, produzida por suas palavras,
o cami nhar sobre as ondas do mar. Outros milagres realizou,
profetizando, tornando-se invisível aos perseguidores e
mostrando conhecer os pensamentos ocultos.
Essas curas milagrosas e os prodígios, cujo caráter
sobrenatural devia dar na vista de todos os homens sinceros e
amigos da verdade, davam testemunho da divina missão de Jesus e,
como operasse os milagres não em outro nome, mas no seu próprio,
ninguém podia negar-Lhe o poder divino; em outras palavras: todos
eram obrigados a crer-lhe na divindade. Com mais força ainda nos
levam a esta fé as ressurreições operadas por ele, pois só há um
Senhor da vida e da morte - Deus.
Jesus manifestou-se desse modo o Taumaturgo prenunciado pelos
profetas. Expulsando os demônios, curando os enfermos e
ressuscitando os mortos, revelou-se como Redentor do pecado e das
respectivas conseqüências: doença e morte. Ao mesmo tempo
manifestou o Salvador, pelas curas, o amor e a benignidade do seu
coração misericordioso, que, com profunda compaixão da miséria
e dos muitos males humanos, os socorria e ajudava em toda parte,
que, morrendo na Cruz pelos pecados dos homens, quis salvar-Ihes
e santificar-Ihes corpo e alma. Daí a bela palavra da piedosa
Catharina Emmerich:
"Ele veio para curar os muitos e diferentes males de muitos e
diferentes modos, para expiar os pecados de todos os fiéis, pela
morte na Cruz, que contém todos os tormentos e sofrimentos,
penitências e satisfações. Abriu primeiro os grilhões e as
algemas da miséria e do castigo temporal, com, as chaves do amor;
ensinou, curou e socorreu os homens de todos os modos e depois
abriu a porta do céu e do Limbo, que é a expiação, com a chave
principal: a morte da Cruz.”
20. Judas, o traidor e seu procedimento na última refeição,
em Betânia
Judas, com o apelido de lscariote, por terem os pais vivido algum
tempo naquele lugar (Cariot), foi recomendado por Bartolomeu e
Simão a Nosso Senhor, quando este, no segundo ano de sua vida
pública, veio a Meroz; disseram-lhe que Judas era um homem
instruído, distinto e obsequioso; que muito desejava ser
discípulo. Jesus suspirou e parecia triste, sem dizer o motivo.
Judas, então na idade de 25 anos, linha certa erudição e
dedicara-se também ao comércio. Gostava de dar ares de
importância e mostrava-se indiscreto e intrometido, onde não o
conheciam. Também era ambicioso e cobiçoso de dinheiro e sempre
tinha andado à procura da riqueza. A personalidade de Jesus
atraía-o muito e por isso tinha grande desejo de ser chamado seu
discípulo e participar-lhe da glória.
Bartolomeu e Simão, que o tinham recomendado, apresentaram-no a
Jesus, que o olhou muito amavelmente, mas com indizível tristeza.
Judas pediu que o deixasse tomar parte no ensino, ao que Jesus
respondeu profeticamente que podia, a não ser que quisesse
deixá-Io a outrem.
"Judas era baixo e forte, muito serviçal, ágil e loquaz; não era
feio, apresentava até um rosto amável e contudo repugnante e
ignóbil. Os pais não eram bons: o pai natural tinha ainda algumas
boas qualidades e o que havia de bom em Judas, fora herdado do
pai. A mãe separara-se do marido; quando Judas voltou mais tarde
à casa materna, esta teve, por causa dele, um desentendimento com
o marido e cheia de ira amaldiçoou o filho. A infeliz vivia de
impostura e fraude, pois ela e o marido eram prestidigitadores.
Os discípulos gostavam de Judas a princípio, pois era muito
obsequioso, até Ihes limpava as sandálias. Era um excelente
andador e fez ao começo muitas e longas caminhadas a serviço da
comunidade. Estava, porém, sempre cheio de ciúme e inveja e pelo
fim da vida de Jesus, se aborreceu das viagens apostólicas, da
obediência e do mistério que envolvia a pessoa do Divino Mestre
e que não compreendia.”
Como um dos doze Apóstolos, Judas tornou-se íntimo de Jesus. Ainda
não era mau e talvez não chegasse a sê-Io, se se tivesse vencido
nas pequenas coisas. A SS. Virgem exortou-o muitas vezes. Como
ele esperasse um reino terrestre do Messias e essa esperança
diminuísse, começou a ajuntar dinheiro. Na última festa dos
Tabernáculos se deixou arrastar inteiramente ao mau caminho; já
no domingo de Ramos andou com a traição no coração, tendo já falado
com os fariseus.
Quando Madalena, nas vésperas do domingo de Ramos, derramou óleo
aromático sobre a cabeça de Jesus, o apóstolo infiel murmurou;
onze dias depois, teve outra ocasião de protestar contra igual
"desperdício", como dizia.
Foi quando por ordem de Jesus, se realizou em casa de Simão, na
Betânia, um banquete no qual ele tomou parte, em companhia dos
doze Apóstolos e das santas mulheres. Durante esse banquete, veio
Madalena com ungüento, que comprara na cidade, prostrou-se diante
de Jesus, untando-lhe os pés e enxugando-os com os sedosos
cabelos. Depois derramou também água aromática sobre a cabeça do
Mestre, de modo que o perfume encheu toda a sala. Judas,
indignado, falou então do desperdício, dizendo que o dinheiro se
podia ter dado aos pobres. Jesus, porém, afirmou que Madalena o
ungira para a morte e onde fosse pregado o Evangelho, se
anunciaria também essa ação.
Findo esse banquete, Judas correu, cheio de ira e avareza,
a Jerusalém, oferecendo-se aos fariseus para entregar-Ihes Jesus
e perguntando quanto lhe dariam por isso. Satisfeitíssimos,
ofereceram-lhe trinta dinheiros.
21. A Jerusalém antiga
Aproximava-se a hora em que Cristo, nosso divino Salvador, havia
de ir a Jerusalém, para ser escarnecido, açoitado e condenado à
morte. Para ter uma compreensão melhor e mais clara dos
acontecimentos em conexão com as localidades, apresentamos ao
leitor uma descrição mais detalhada da antiga cidade de
Jerusalém. Juntaremos a descrição da presente situação de
Jerusalém com as diversas informações de Anna Catharina Emmerich
e os resultados dos estudos arqueológicos.
A cidade de Jerusalém foi fundada e existe ainda hoje, assentada
sobre três montes principais: monte Sião, monte Moriá e monte
Acra. Podemos mencionar também o monte de Ophel, que, em verdade,
é apenas o primeiro degrau do monte das Oliveiras, sobre o qual
passa o caminho de Jerusalém a Betânia, mas não no ponto mais
elevado. O monte das Oliveiras tem 60 metros mais de altura do
que o monte Sião, que também de sua parte supera os montes Moriá
e Acra. Do monte das Oliveiras, que é separado da cidade pelo vale
do ribeiro Cedron, chama do vale de Josafá, se avista, além deste
vale, primeiro o monte Moriá, com os vastos edifícios do Templo.
Como este monte, no cume, não desse bastante lugar para o Templo,
com todos os respectivos átrios, o rei Salomão já o tinha feito
cercar de um muro colossal, que em parte era construído de imensas
pedras, pelos lados de SO., S. e SE.. Os espaços formados por essa
muralha, mandou em parte encher de terra, a outra parte mandou
abobadar sobre uma rede de pilastras, até à altura do monte do
Templo. Dessa obra ficaram até em nossos dias alguns restos da
muralha, que formam, nas partes mais acessíveis, o "muro
das lamentações", ao qual os judeus costumam ir às sextas-feiras
para chorar a destruição da cidade e do Templo.
O vale de Josafá estende-se do N. ao S. do monte das Oliveiras
se vê, portanto, além desse vale, o monte Moriá, com o Templo,
ao fundo e mais alto o Monte Sião, em cujo cume se achava o
Cenáculo, casa da última ceia. Naquele tempo estava ainda dentro
da cidade, agora, porém, está fora dos muros. De Sião para o S.
se via o profundo vale de Hinom, que separa aquele monte santo
do monte do Mau Conselho. Do fundo desse vale se avistavam, no
alto, o monte Sião, o monte Moriá e o monte das Oliveiras. No vale
de Hinom se entregaram os Israelitas, sob vários reis maus, ao
culto do falso deus Moloch, o qual consistia em sacrifícios cruéis
de crianças; ali se achava a estátua de Moloch, feita de bronze
e oca no interior; para pôr-se fogo havia uma abertura no peito
da estátua, dentro da qual deixavam cair as criancinhas nas
chamas do interior, para se queimarem, como sacrifícios ao ídolo.
Foi nesse vale que Judas se enforcou.
Entre os montes Sião e Moriá há um vale profundo, chamado agora
vale de Tiropeon, que termina ao S., no vale de Hinom; ao N.,
porém, subia gradualmente até o monte Acra, que está situado ao
N. do monte Moriá. Nesse vale se achava, segundo as informações
de Anna Catharina Emmerich, a piscina de Betsaida, cujas águas
de tempo em tempo efervesciam; ali curou Jesus o homem que estava
paralítico havia 38 anos; depois da vinda do Espírito Santo, se
administrava ali o santo Batismo e mais tarde foi ali construída
uma Igreja que, não contando o Cenáculo, foi a primeira Igreja
cristã.
No vale de Tiropeon havia uma ponte, pela qual se podia ir do
monte Moriá a Sião, subindo o caminho suavemente até ao cume deste
último.
Nosso divino Salvador, tendo sido preso no horto de Getsemani,
que se acha na encosta ocidental do monte das Oliveiras, foi
conduzido para baixo desse monte, sobre a ponte do Cedron e pelo
vale de Josafá. Subiu pelo Monte Ophel, no lado ocidental do
Templo, ao monte Sião, em cujo cume, não muito longe do Cenáculo,
se achava o tribunal de Anás e Caifás.
Depois de condenado, levaram Jesus ao tribunal de Pilatos, que
ficava ao norte do monte do Templo, entre o Moriá e o Acra. Ali
se achava também a cidadela Antônia, construída pelos Romanos,
para dali manterem o povo, no Templo e nos outros bairros da
cidade, sob o jugo de Roma. Do tribunal de Pilatos ao palácio de
Herodes, no monte Acra, não havia grande distância. Depois de
escarnecido por Herodes, Jesus foi reconduzido a Pilatos, onde
O açoitaram, O coroaram de espinhos e, finalmente, O condenaram
à morte. O caminho do Gólgota dirigia-se do palácio de Pilatos
para oeste, entre Sião e Acra, até à porta da cidade. Esta era
uma das mais importantes de Jerusalém; por ela saia não só quem
viajava para Jope, por mar, mas também quem queria ir a Belém,
ao sul. Pois o vale de Hinom, ao sul da cidade, impedia o caminho
e era preciso portanto, sair peia porta ocidental; pouco além da
cidade, se dirigia o caminho para o sul, ao oeste para Belém e
Hebron. Próximo dessa porta ocidental, ao sul, se achava também
a colossal torre de Davi. Os arredores do Gólgota pertencem ainda
ao Monte Sião, e assim se pode dizer que no monte Sião foi fundada
a Nova Aliança.
Da porta ocidental se estendia o muro da cidade para o norte;
cercando grande parte do monte Acra, dirigia-se então para o leste
e depois para o sul, até chegar ao muro que encerra o lado oriental
do monte Moriá.
A Serva de Deus descreve detalhadamente algumas partes da Jerusalém antiga, com as seguintes palavras:
"A primeira porta de Jerusalém, ao lado oriental da cidade,
contado da esquina do Templo, de SE. em direção ao sul, era a que
dava para o bairro de Ofel; a porta, porém, que ficava mais perto
da esquina do NE. do Templo e dava para o norte, era a porta das
"Ovelhas". Entre essas duas portas fora construída outra, não
havia muito tempo, (antes da crucifixão), a qual conduzia a duas
ruas, que subiam uma acima da outra, do lado oriental do monte
do Templo e que na maior parte eram habitadas por pedreiros e
outros operários. As casas encostavam-se nos alicerces do Templo.
Quase todas as casas dessas duas ruas eram propriedade de
Nicodemos, que as mandara construir. Os pedreiros que nelas
moravam, pagavam aluguel em dinheiro ou em trabalho, pois estavam
sempre em relações com Nicodemos e seu amigo José de Arimatéia.
Este possuía grandes pedreiras em suas terras e negociava em
pedras. Nicodemos construiu, pois, uma bela porta nova para essas
ruas. Chamavam-na agora porta Moriá. Depois de terminada, Jesus
foi o primeiro a entrar por ela, no domingo de Ramos.
Entrou, portanto, pela porta nova de Nicodemos, pela qual ninguém
entrara ainda e foi sepultado no sepulcro novo de José de
Arimatéia, no qual antes ninguém fora sepultado. Aquela porta foi
mais tarde fechada com alvenaria e formou-se a lenda de que por
ela os cristãos haviam de entrar de novo. Hoje ainda há naquele
lugar uma porta fechada com um muro, à qual os turcos chamam porta
Áurea, ou Porta de Ouro.
O caminho reto da porta das Ovelhas a oeste, se se pudesse passar
por todos os muros, seguiria entre o Gólgota e o extremo noroeste
do monte Sião. Da porta até o Gólgota, em linha reta, havia um
caminho de 3/4 de hora; do palácio de Pilatos ao Gólgota, em linha
reta, talvez 5/8 de uma hora. A cidadela Antônia estava situada
ao lado NO. do monte do Templo, sobre um rochedo saliente; quem
se dirigisse do palácio de Pilatos a oeste, pelas arcadas da
esquerda tinha a cidadela ao lado esquerdo. Sobre os muros dessa
cidadela havia um largo aberto, do qual se avistava parte do foro.
Daí fazia Pilatos muitas proclamações ao povo, como por exemplo,
das novas leis.
Na via sacra, dentro da cidade, teve Jesus o Calvário algumas
vezes à direita. (O caminho de Jesus deve ter se dirigido em parte
a SO.). Jesus foi conduzido pela porta do muro interior da cidade,
que dava para Sião, bairro que estava situado muito alto. Fora
desse muro, para oeste, havia uma parte da cidade que tinha mais
hortas e jardins do que casas; perto do muro exterior da cidade,
havia também belos sepulcros, com entradas de alvenaria,
artisticamente talhadas na rocha, e em cima, às vezes lindos
jardins. Nesse bairro também se achava a casa que Lázaro possuía
em Jerusalém, com belos jardins, perto da porta da esquina, onde
o muro externo, a oeste da cidade, se dirigia para o S.. Parece-me
que uma pequena porta própria conduzia, através desse muro, aos
jardins, não longe da porta das Ovelhas, Jesus e os seus entravam
e saiam por ali de vez em quando, com licença de Lázaro. A porta,
na esquina de NO., dava para o caminho de Betsur, situado mais
para o N. do que Emaús e Jope. Ao norte do muro exterior da cidade
se encontravam vários mausoléus reais. Essa parte ocidental da
cidade era a mais baixa: descia um pouco em direção ao muro, mas
perto deste subia um pouco e nessa encosta havia belas hortas e
também vinhas. Atrás destas passava um caminho largo de
alvenaria, ao longo do muro, o qual, em algumas partes, era
transitável e tinha subidas para cima do muro e para as torres,
as quais não tinham escadas no interior, como as das fortalezas
de hoje. Além do muro, fora da cidade, havia uma descida para o
vale, de modo que o muro, nessa parte baixa da cidade, ficava como
sobre um elevado baluarte. Na encosta fora do muro, havia também
hortas e vinhas. O caminho de Jesus para o Calvário não passou
por essas hortas e vinhas, mas essa parte da cidade lhe ficou à
direita, ao norte, pelo fim do caminho. Simão de Cirene, porém,
veio desse bairro, entrando no caminho de Jesus. A porta pela qual
Jesus foi conduzido para fora, não dava diretamente para oeste,
mas na direção do sol às 4 horas da tarde (SO.). Ao sair da porta,
se via que o muro, à esquerda, um pouco para o sul, fazia uma curva
para oeste e ia depois de novo para o sul, rodeando o monte Sião.
Nesse mesmo lado esquerdo, ao sair da porta, havia, na direção
de Sião, uma poderosa torre, como uma cidadela. Perto da porta,
à esquerda, outra porta; eram essas as portas da cidade que mais
se aproximavam. Esta última dava para oeste, no vale, onde o
caminho se dirigia à esquerda, isto é, para o sul e conduzia a
Belém. O caminho de Jesus, pouco além da porta, se dirigia à
direita, para o Monte Calvário, que, ao lado oriental, que dá para
a cidade, é íngreme, mas na parte ocidental forma uma encosta
branda. Além do monte, a oeste, se vê uma parte do caminho de
Emaús, ao lado do qual havia um prado, onde vi S. Lucas colhendo
ervas; foi depois da ressurreição, quando ele, junto com Cleofas,
iam a Emaús e se encontraram com Jesus.
Pendente da Cruz, Nosso Senhor olhava na direção do sol às dez
horas da noite, entre oeste e norte; virando a cabeça um pouco
à direita, podia ver uma parte da cidadela Antônia. Ao longo do
muro da cidade, a leste e ao norte do Cal vário, havia também
hortas, vinhas e sepulcros. A NE., ao pé do Calvário, foi
enterrada a Cruz. Do outro lado desse lugar, para NE., havia belas
vinhas na encosta do monte. Do lugar da crucificação o sul, caia
a vista sobre a casa de Caifás, ficando a torre de Davi mais ao
alto.
2
A última Ceia
1.
2.
3.
4.
5.
6.
7.
8.
9.
Preparativos para a ceia pascal
O cenáculo ou casa da Ceia
Disposições para a refeição pascal
Jesus vai a Jerusalém
A ultima ceia pascal
O Lava-pés
Instituição da Sagrada Eucaristia
Instruções secretas e consagrações
Oração solene de despedida de Jesus
A última Ceia
1. Preparativos para a ceia pascal:
(Quinta-feira Santa, 13 de Nisan ou 29 de Março; Jesus na idade
de 33 anos, 18 semanas menos 1 dia)
Foi ontem à noite que se efetuou em Betânia a última e grande
refeição de Nosso Senhor e dos seus amigos, em casa de Simão,
curado da lepra por Jesus e durante a qual Maria Madalena ungiu
Jesus pela última vez. Judas, indignado com isso, correu a
Jerusalém, onde negociou ainda uma vez com os príncipes dos
sacerdotes, para entregar-lhes Jesus. Depois da refeição, voltou
Jesus à casa de Lázaro e uma parte dos discípulos dirigiram-se
à albergaria, situada fora de Betânia. Nicodemos veio ainda cre
noite à casa de Lázaro, onde teve longa conversa com o Senhor;
voltou a Jerusalém antes do amanhecer, acompanhado numa parte do
caminho por Lázaro.
Os discípulos já tinham perguntado a Jesus onde queria comer o
cordeiro pascal. Hoje, antes da madrugada, Nosso Senhor mandou
vir Pedro e João e falou-lhes muito de tudo que deviam comprar
e preparar em Jerusalém; disse-lhes que, subindo o monte Sião,
encontrariam um homem com umjarro de água. (Eles já conheciam esse
homem, pois fora quem já na última Páscoa, em Betânia, preparara
a ceia de Jesus; por isso diz S. Mateus: um certo homem). Deviam
seguí-lo até à casa em que morava e dizer-lhe: "O Mestre manda
avisar-te que seu tempo está perto e que quer celebrar a Páscoa
em tua casa". Deviam pedir que lhes mostrasse o Cenáculo, que já
estaria preparado e fazer-lhe depois todos os preparativos
necessários.
Vi os dois Apóstolos subirem a Jerusalém, seguindo um barranco
ao Sul do Templo e subirem ao monte Sião pelo lado setentrional.
Ao lado Sul do monte do Templo havia algumas fileiras de casas;
seguiram um caminho que passava em frente destas casas, ao longo
de um ribeiro, que corria no fundo do barranco e os separava das
casas. Tendo chegado à altura de Sião, que é mais alto do que o
monte do Templo, dirigiramse a um largo um pouco em declive, na
vizinhança de um velho edifício, cercado de pátios; ali, no largo,
encontraram o homem que lhes fora indicado, seguiram-no e perto
da casa lhe disseram o que Jesus lhes ordenara. Ele se regozijou
muito de os ver e, ouvindo o recado, respondeu-lhes que a refeição
já lhe tinha sido encomendada (provavelmente por Nicodemos), sem
que soubesse para quem era, mas que muito lhe agradava saber que
era para Jesus. Esse homem era Elí, cunhado de Zacarias de Hebron,
o mesmo em cuja casa Jesus anunciara, no ano anterior, em Hebron,
a morte de S. João Batista. Tinha só um filho, que era Levita e
amigo de Lucas, antes deste se juntar a Jesus, e além desse, também
5 filhas solteiras. Todos os anos ia com os criados à festa e,
alugando uma sala, preparava a Páscoa para as pessoas que não
tinham casa em Jerusalém. Nesse ano tinha alugado um cenáculo,
pertencente a Nicodemos e José de Arimatéia. Mostrou aos dois
Apóstolos a sala e o arranjo interior.
2. O cenáculo ou casa da Ceia
Ao lado sul do monte Sião, perto do castelo abandonado de Davi
e do mercado situado na subida, à leste desse castelo, se acha
um velho e sólido edifício, entre duas fileiras de árvores copadas
e no meio de um pátio espaçoso, cercado de muros fortes. A direita
e à esquerda da entrada há ainda outras construções encostadas
ao muro: à direita a habitação do mordomo e, perto desta, outra,
à qual Nossa Senhora e as santas mulheres às vezes se retiravam,
depois da morte de Nosso Senhor. O Cenáculo, antigamente mais
espaçoso, servira de morada aos bravos capitães de Davi, que ali
se exercitavam no manejo das armas; também estivera ali por algum
tempo a Arca da Aliança antes da construção do Templo e ainda há
indícios da sua estada num subterrâneo da casa. Vi também uma vez
o profeta Malaquias escondido nos mesmos subterrâneos, onde
escreveu as profecias acerca da sagrada Eucaristia e do
sacrifício do Novo Testamento. Salomão tinha também esta casa em
muito respeito, por certa relação simbólica, a qual, porém,
esqueci. Quando grande parte de Jerusalém foi destruída pelos
Babilônios, ficou salva essa casa, a respeito da qual tenho visto
muitas outras coisas, mas lembro-me só do que acabo de contar.
O edifício estava meio arruinado, quando se tornou propriedade
de Nicodemos e José de Arimatéia, que restauraram a casa principal
e acomodaram-na bem, para a celebração da festa da Páscoa, fim
para o qual costumavam alugá-Ia a forasteiros, como fizeram
também na última Páscoa do Senhor. Além disso, serviam-Ihes a casa
e os pátios de armazém para monumentos sepulcrais e pedras de
construção, como também de oficina para os operários, pois José
de Arimatéia possuía excelentes pedreiras nas suas terras e
negociava em pedras sepulcrais e variadíssimas colunas e
capitéis, esculpidos sob sua direção. Nicodemos trabalhava muito
como construtor e, nas horas vagas, gostava de ocupar-se também
com a escultura; fora da época das festas, esculpia estátuas e
monumentos de pedra, na sala ou no subterrâneo debaixo desta. Essa
arte pusera-o em contato com José de Arimatéia; tornaram-se
amigos e muitas vezes se associaram também nas empresas.
Nessa manhã, enquanto Pedro e João, enviados de Betânia por Jesus,
conversavam com o homem que tinha alugado o Cenáculo para aquele
ano, vi Nicodemos indo para além e para aquém das casas à esquerda
do pátio, para onde tinham sido transportadas muitas pedras, que
impediam as entradas da sala do Cenáculo. Havia uma semana, eu
vira algumas pessoas ocupadas em pôr as pedras ao lado, em limpar
o pátio e preparar o Cenáculo para a celebração da Páscoa; julgo
até ter visto, entre outros, alguns discípulos de Jesus, talvez
Aram e Temeni, sobrinhos de José de Arimatéia.
A casa principal, o Cenáculo propriamente dito, está quase no
meio do pátio, um pouco para o fundo. É um quadrilátero comprido,
cercado por uma arcada menos alta de colunas, a qual, afastados
os biombos entre os pilares, pode ser unida à grande sala
interior; pois todo o edifí cio é aberto de lado a lado e pousa
sobre colunas e pilares; apenas estão as passagens fechadas
ordinariamente por biombos. A luz entra por aberturas existentes
no alto das paredes. Na parte estreita da frente, há um vestíbulo,
ao qual conduzem três entradas; depois se entra na grande sala
interior, alta e com bom soalho lajeado; do teto pendem diversas
lâmpadas; as paredes estão ornadas para a festa, até meia altura,
com belas esteiras e tapetes e no teto há uma abertura coberta
com um tecido brilhante, transparente, semelhante à gaze azul.
O fundo da sala está separado do resto por uma cortina igual.
Essa divisão do Cenáculo em três partes dá-lhe uma semelhança com
o Templo; há também um adro, o santo e o santo dos santos. Nesta
última parte é que são guardados, à direita e à esquerda, as
vestimentas e vários utensílios. No meio há uma espécie de altar.
Sai da parede, um banco de .pedra com a ponta cortada no meio das
duas faces laterais; deve ser a parte superior do forno, no qual
o cordeiro pascal é assado; pois hoje, durante a refeição, estavam
os degraus em roda muito quentes. Ao lado dessa parte do Cenáculo,
há uma porta, que dá para o alpendre que fica atrás da pedra
saliente; de lá é que se desce ao lugar onde se acende o fogo no
forno; há ali ainda outros subterrâneos e adegas, debaixo da
grande sala. Naquela pedra ou altar saliente da parede há várias
divisões, semelhantes a caixas ou gavetas, que se podem tirar;
em cima há também aberturas como de uma grelha, uma
abertura também para fazer fogo e outra para apagá-Io. Não sei
mais descrever exatamente tudo que ali vi, parece ter sido um
forno para cozer o pão ázimo da Páscoa e outros bolos ou também
para queimar incenso ou certos restos das refeições da festa; é
como uma cozinha pascaI. Por cima desse forno ou altar há uma caixa
de madeira, saliente, semelhante a um nicho, que tem em cima uma
abertura, com uma válvula, provavelmente para deixar sair a
fumaça. Diante desse nicho ou pendente por cima dele, vi a figura
de um cordeiro pascal; tinha cravado na garganta uma faca e o
sangue parecia cair gota a gota sobre o altar; não sei mais
exatamente como era feito. Dentro do nicho da parede há três
armários de diversas cores, os quais se fazem girar como os nossos
tabernáculos, para se abrirem e fecharem. Neles vi todas as
espécies de vasos para a Páscoa, taças e mais tarde também o SS.
Sacramento.
Nas salas laterais do Cenáculo há assentos ou leitos em plano
inclinado, feitos de alvenaria, sobre os quais se acham mantas
grossas enroladas; são leitos de dormir. Debaixo de todo o
edifício há belas adegas; antigamente esteve ali no fundo a Arca
da Aliança, onde, em seguida, foi construído o forno pascaI.
Debaixo da casa há cinco esgotos, que levam todas as águas e
imundícies monte abaixo, pois a casa está situada no alto. Já
antes vi Jesus curar e ensinar aqui; às vezes passavam alguns
discípulos a noite nas salas laterais.
3. Disposições para a refeição pascal
Tendo os Apóstolos falado com Helí de Hebron, voltou este pelo
pátio à casa; eles, porém, se dirigiram para a direita, a Sião,
desceram pelo lado norte, passaram uma ponte e, seguindo por
veredas ladeadas de sebes verdejantes, foram pelo outro lado do
barranco, até às fileiras de casas ao sul do Templo. Ali era a
casa do velho Simeão, que morrera depois da apresentação de Jesus
no Templo. Moravam então lá os filhos do venerando ancião; alguns
eram secretamente discípulos de Jesus. Os Apóstolos falaram a um
deles, que era empregado no Templo; era homem alto e muito moreno.
Ele desceu com os Apóstolos, passando a leste do Templo, por
aquela parte de Ophel pela qual Jesus entrara triunfalmente em
Jerusalém, no domingo de Ramos; assim foram pela cidade, ao norte
do Templo, até o Mercado de gado. Vi na parte meridional do mercado
pequenos recintos, onde belos cordeiros saltavam como em pequenos
jardins.
Na entrada triunfal de Jesus pensei que isso fora feito para
abrilhantar a festa; mas eram cordeiros pascais, que se vendiam
ali. Vi o filho de Simeão entrar num desses recintos; os cordeiros
seguiram-no, saltando, e empurravam-no com as cabeças, como se
o conhecessem. Ele escolheu quatro, que foram levados ao
Cenáculo. Vi-o também de tarde no Cenáculo, ajudando na
preparação do cordeiro pascaI.
Vi como Pedro e João deram ainda vários recados na cidade,
encomendando muitas coisas. Vi-os também fora de uma porta, ao
norte do monte Cal vário e a NO da cidade; entraram numa estalagem,
onde ficaram nesses dias muitos discípulos. Era a estalagem
construída em Jerusalém para os discípulos, a qual estava sob a
administração de Seráfia, (conhecida pelo nome de Verônica).
Pedro e João mandaram alguns discípulos de lá ao Cenáculo, para
dar alguns recados, dos quais me esqueci.
Foram também à casa de Seráfia, à qual tinham de pedir diversas
coisas; o marido desta, membro do conselho, estava a maior parte
do tempo fora de casa, em negócios e, mesmo quando estava em casa,
ela o via pouco. Seráfia era uma mulher quase da idade da SS.
Virgem e há tempo estava em relações com a Sagrada Família; pois
quando o Menino Jesus, depois da festa, ficara atrás, em
Jerusalém, comera em casa dela.
Os dois Apóstolos receberam ali diversos objetos, em cestos
cobertos, que foram levados ao Cenáculo, em parte pelos
discípulos. Foi também ali que receberam o cálice de que Nosso
Senhor se serviu, na instituição da sagrada Eucaristia.
4. Jesus vai a Jerusalém
Na manhã em que os dois Apóstolos andaram por Jerusalém, ocupados
com os preparativos da Páscoa, Jesus se despediu muito comovido
das santas mulheres, de Lázaro e de sua Mãe em Betânia, dando-Ihes
ainda algumas instruções e exortações.
Vi o Senhor conversar com a Virgem SS. separadamente; disse-lhe,
entre outras coisas, que tinha mandado a Pedro, o representante
da fé, e João, o representante do amor, para prepararem a Páscoa
em Jerusalém. De Madalena, que estava desvairada de dor e
tristeza, disse o Mestre que o seu amor era indizível, mas ainda
arraigado na carne e que por isso ficava desatinada de dor. Falou
também das intenções traiçoeiras de Judas e a Santíssima Virgem
pediu por este.
Judas tinha ido novamente de Betânia a Jerusalém, sob pretexto
de fazer várias compras e pagamentos. De manhã interrogou Jesus
os nove Apóstolos a respeito, apesar de saber perfeitamente o que
Judas estava fazendo. Este correu todo o dia pelas casas dos
fariseus, combinando tudo com estes; mostraram-lhe até os
soldados que deviam apoderar-se de Jesus. O traidor premeditou
todos os passos que carecia dar, para que pudesse sempre explicar
a sua ausência; não voltou para junto de Nosso Senhor, senão pouco
antes de comerem o cordeiro pascal. Vi-lhe todas as conspirações
e os pensamentos. Quando Jesus falou a Maria acerca de Judas, vi
muitas coisas em relação ao caráter deste; era ativo e atencioso,
mas cheio de avareza, ambição e inveja e não lutava contra as
paixões. Fizera também milagres e curara doentes na ausência de
Jesus.
Quando Nosso Senhor comunicou à SS. Virgem o que havia de suceder, pediu ela de modo tocante que a deixasse morrer com Ele. Mas
Jesus exortou-a a que mostrasse mais calma na dor do que as outras
mulheres; disse-lhe também que ressuscitaria e lhe indicou o
lugar onde lhe, apareceria. A Mãe SS. então não chorou muito, mas
ficou tão profundamente triste e séria, que impressionou a todos.
Nosso Senhor, como Filho piedoso, agradeceu-lhe todo o amor que
lhe tinha mostrado; abraçou-a com o braço direito e apertou-a ao
coração; disse-lhe também que faria a ceia com ela
espiritualmente, indicando-lhe a hora em que a receberia. Ainda
se despediu de todos, muito comovido, e instruiu-os sobre muitas
coisas.
Cerca de meio dia partiu Jesus de Betânia, com os nove Apóstolos,
tomando o caminho de Jerusalém; seguiram-no sete discípulos que,
com exceção de Natanael e Silas, eram naturais de Jerusalém e
arredores. Lembro-me que entre estes estavam João Marcos e o filho
da viúva pobre, que na quinta-feira antecedente oferecera o
denário no Templo, enquanto Jesus ensinava. Havia poucos dias
Jesus admitira o último como discípulo. As santas mulheres
seguiram mais tarde.
Jesus e a comitiva andaram por aqui e por ali, por diversos
caminhos ao redor do monte das Oliveiras, no vale de Josafá e até
o monte Cal vário; durante todo o caminho, continuou a
ensinar-lhes. Disse aos Apóstolos, entre outras coisas, que até
agora lhes dera pão e vinho, mas hoje queria dar-lhes seu corpo
e sangue, que lhes daria e deixaria tudo que tinha. Nosso Senhor
disse-o de uma maneira tão tocante, que toda a alma parecia
fundir-se-Lhe e languir de amor, com o desejo de se lhes dar. Os
discípulos não O compreenderam, julgaram que falava do cordeiro
pascal. Não se pode exprimir quanto havia de amor e resignação
nos últimos discursos que fez em Betânia e aqui. As santas
mulheres foram mais tarde à casa de Maria, mãe de Marcos.
Os sete discípulos que seguiram Nosso Senhor a Jerusalém, não O
acompanharam no caminho, mas levaram as vestimentas da cerimônia
da Páscoa ao Cenáculo, puseram-nas no vestíbulo, voltando depois
à casa de Maria, mãe de Marcos. Quando Pedro e João vieram com
o cálice da casa de Seráfia ao Cenáculo, já encontraram todo o
vestuário da cerimônia no vestíbulo, onde os discípulos e alguns
outros o tinham colocado; também tinham coberto as paredes da
sala com tapeçaria, desprendido as aberturas do teto e aprontado
três candeeiros de suspensão. Pedro e João foram então ao vale
de Josafá, para chamar a Jesus e aos nove Apóstolos. Os discípulos
e amigos que comeram com eles o cordeiro pascal, vieram mais
tarde.
5. A última ceia pascal
Jesus e os seus comeram o cordeiro pascal no Cenáculo, divididos
em três grupos de doze, dos quais cada um era presidido por um
chefe, que fazia às vezes de pai de família. Jesus tomou a refeição
com os doze Apóstolos, na sala do Cenáculo. Natanael presidiu a
outra mesa, numa das salas laterais e outros doze tinham como pai
de família Eliaquim, filho de Cleofas e Maria Heli, irmão de Maria
Cleofas e que fora antes discípulo de João Batista.
Três cordeiros tinham sido imolados para eles no Templo, com as
cerimônias do costume. Mas havia lá um quarto cordeiro, que foi
imolado no Cenáculo; foi o que Jesus comeu com os doze Apóstolos.
Judas ignorava essa circunstância, pois estava ocupado com
diversos negócios e com a traição e ainda não estava de volta,
por ocasião da imolação do cordeiro; veio alguns instantes antes
da refeição pascal. A imolação do cordeiro destinado a Jesus e
aos Apóstolos foi uma cerimônia singularmente tocante;
realizou-se no vestíbulo do Cenáculo; Simeão, que era levita,
ajudou. Os Apóstolos e os discípulos estavam também presentes,
cantando o salmo 118. Jesus falou então de uma nova época, que
começava; (veja n. 1 do primeiro capítulo) disse que então se
devia cumprir o sacrifício de Moisés e a significação do cordeiro
pascal simbólico; o cordeiro devia por isso ser imolado do mesmo
modo que o do Egito, do qual só então o povo de Israel sairia
verdadeiramente liberto.
Os vasos e tudo o que era mais precioso, estavam prontos;
trouxeram um belo cordeirinho, ornado de uma grinalda, que foi
tirada e enviada à SS. Virgem, que ficara com as santas mulheres
em outra sala. O cordeiro foi amarrado pelo meio do corpo numa
tábua, o que recordou Jesus preso à coluna da flagelação. O filho
de Simeão segurou a cabeça do cordeiro para cima; Jesus cravou-lhe
a faca no pescoço, entregando-a depois ao filho de Simeão, que
continuou a preparação do cordeiro. Jesus parecia sentir dor e
repugnância em ferí-lo. Fê-lo rapidamente, mas com muita
gravidade. O sangue foi colhido numa bacia; trouxeram um ramo de
hissopo, que Jesus molhou no sangue. Em seguida avançou para a
porta, tingiu com o sangue os dois portais e a fechadura, fixando
depois em cima da porta, o ramo tinto de sangue. Durante esse ato,
lhes ensinou solenemente e disse, entre outras coisas, que o Anjo
exterminador passaria ali; que fizessem, porém, a adoração
naquele lugar, sem medo e inquietação, depois dele, o verdadeiro
Cordeiro pascal, ter sido imolado; começaria um tempo e um
sacrifício novo, que duraria até o fim do mundo.
Dirigiram-se então ao fogão, no fundo da sala, onde outrora
estivera a Arca da Aliança; já estava aceso o fogo. Jesus aspergiu
o forno com o sangue e consagrou-o como altar; o resto do sangue
e a gordura vazaram-nos no fogo, debaixo do altar. Todas as portas
estavam fechadas durante essa cerimônia.
Entretanto, o filho de Simeão acabara de preparar o cordeiro
pascal. Pusera-o numa estaca, as pernas dianteiras fixadas num
pau transversal, as traseiras na estaca. Ai! parecia tanto com
Jesus pregado na Cruz! Em seguida foi posto no forno, para ser
assado, junto com os outros três, trazidos do Templo.
Os cordeiros pascais dos judeus eram todos imolados no átrio do
Templo, em três lugares diversos: para as pessoas de distinção,
para a gente pobre e para os forasteiros. O cordeiro pascal de
Jesus não foi imolado no Templo, mas todo o resto da cerimônia
foi feita rigorosamente conforme a lei. Jesus falou mais tarde
a esse respeito; disse que o cordeiro era simplesmente um símbolo;
que Ele mesmo, na manhã seguinte, devia ser o verdadeiro Cordeiro
pascal. Não sei mais tudo quanto ensinou nessa ocasião.
Desse modo instruiu Jesus os Apóstolos sobre o cordeiro pascal
e sua significação. Por fim veio também Judas. Tendo então chegado
a hora, prepararam-se as mesas. Os convivas vestiram as vestes
da cerimônia, que se achavam no vestíbulo; outro calçado, uma
veste branca, à maneira de túnica ou camisa e por cima um manto,
curto na frente e comprido atrás; arregaçaram as vestes com o
cinto, sendo também as mangas largas arregaçadas. Era o traje de
viagem, prescrito pela Lei mosaica. Assim se dirigiu cada grupo
à respectiva mesa; os dois grupos de discípulos para as salas
laterais, o Senhor e os Apóstolos à sala do Cenáculo. Tomando
todos um bastão na mão, caminharam, dois a ,dois, para a mesa,
onde ficaram em pé diante dos respectivos lugares, os bastões
encostados nos braços e as mãos levantadas. Jesus, que estava no
meio da mesa, recebera do mordomo dois pequenos bastões, um pouco
recurvados em cima, semelhantes a cajados curtos de pastores.
Tinham em cima uma forqueta, a maneira de ramo cortado. Jesus
pô-Ios à altura da cintura, em forma de cruz, diante do peito e
durante a oração colocou os braços estendidos sobre as forquetas.
Nessa atitude tinham os movimentos do Mestre algo de
singularmente tocante e parecia servir-lhe de apoio a cruz, que
em pouco devia pesar-lhe sobre os ombros. Nessa posição cantaram:
"Bendito seja o Senhor, Deus de Israel" e "Louvado seja o Senhor,
etc.". Terminada a oração, Jesus deu um dos bastões a Pedro e o
outro a João. Puseram-nos de lado ou fizeram-nos passar de mão
a mão, entre os outros discípulos; já não me lembro mais
exatamente.
A mesa era estreita e tão alta, que passava meio pé acima dos
joelhos de um homem; tinha a forma de um segmento de círculo. Em
frente de Jesus, na parte interior do semicírculo, havia um lugar
livre, para servir os pratos. Se bem me lembro, estavam à direita
de Jesus: João, Tiago o Maior e Tiago o Menor; no lado estreito,
à direita, Bartolomeu; em seguida, no semicírculo interior, Tomé
e Judas Iscariotes; à esquerda, Simeão e perto deste, no lado
interior, Mateus e Filipe.
No meio da mesa, numa travessa, estava o cordeiro pascal. A cabeça
repousava-lhe sobre os pés dianteiros, postos em forma de cruz,
as pernas traseiras estavam estendidas; a margem da travessa, em
roda do cordeiro, estava coberta de alho. Havia mais uma travessa
com o assado da Páscoa, a cada lado desta um prato com ervas
verdes, dispostas umas contra as outras, em pé e mais outro prato
com tufos de ervas amargas, semelhantes a erva de bálsamo. Diante
de Jesus havia um prato com ervas de cor verde-amarelada e outro
com molho escuro. Pães redondos serviam de pratos para os
convivas, que usavam facas de osso.
Depois da oração, o mordomo pôs na mesa, diante de Jesus, a faca
para trinchar o cordeiro. Pós também diante de Nosso Senhor um
copo de vinho e encheu de um jarro seis copos, cada um para dois
discípulos. Jesus benzeu o vinho e bebeu, os Apóstolos beberam,
dois a dois em cada copo. O Senhor trinchou o cordeiro; os
Apóstolos apresentaram cada um com o seu bolo redondo, com uma
espécie de gancho, recebendo cada um a sua parte. Comeram-na
apressadamente, separando a carne dos ossos com as facas de osso.
Os ossos descarnados foram depois queimados. Comeram também às
pressas do alho e da verdura, que ensoparam no molho. Comeram o
cordeiro pascal em pé, reclinados ape nas um pouco aos encostos
dos assentos. Jesus partiu também um dos pães ázimos, recobrindo
uma parte; o resto distribuiu. Comeram todos então os respectivos
bolos. Trouxeram ainda um cálice de vinho, mas Jesus não bebeu
mais. Disse: Tomai este vinho e reparti-o entre vós, pois não
beberei mais vinho, até chegar o reino de Deus. Tendo bebido dois
a dois, cantaram e em seguida Jesus ainda rezou e ensinou;
finalmente todos lavaram as mãos. Só então se deitaram nos
assentos. Tudo que precedeu, foi feito muito depressa, ficando
os convivas em pé; somente ao fim se encostaram um pouco aos
assentos.
O Senhor trinchara também outro cordeiro, que foi depois levado
para as santas mulheres, a um dos edifícios laterais do pátio,
onde tomaram a ceia. Comeram ainda ervas e alface com molho. Jesus
estava extraordinariamente amável e sereno; nunca o tinha visto
assim. Disse também aos Apóstolos que esquecessem tudo que os
pudesse angustiar. A SS. Virgem, à mesa das mulheres, estava
também muito serena. Comoveu-me profundamente ver como se virava
com tanta simplicidade, quando as outras mulheres se lhe
aproximavam, puxando-a pelo véu, para lhe falarem.
A princípio Jesus conversou muito amavelmente com os Apóstolos,
enquanto ceavam; mas depois se tornou mais sério e triste. "Um
de vós me atraiçoará, disse, cuja mão está comigo à mesma mesa."
Jesus serviu alface, de que havia só um prato, àqueles que lhe
estavam ao lado; encarregou a Judas, que lhe ficava quase em
frente, de distribuí-Ia pelo outro lado. Os Apóstolos
assustaram-se muito, quando Jesus falou do traidor, dizendo: "Um
que está comigo à mesma mesa", ou "que mete a mão no mesmo prato
comigo", o que quer dizer: "Um dos doze que comigo comem e bebem,
um daqueles com os quais parto o meu pão." Com essas palavras não
indicou Judas aos outros; pois - "meter a mão no mesmo prato" era uma alocução geral, indicando relações da maior intimidade.
Contudo, quis também dar um aviso a Judas, que no mesmo momento
de fato meteu com o Salvador a mão no mesmo prato, para distribuir
alface. Jesus disse ainda: "O Filho do Homem vai certamente para
a morte, como está escrito a respeito dele, mas ai do homem por
quem será traído! Melhor fora nunca haver nascido.”
Os Apóstolos ficaram muito perturbados e perguntaram um após
outro: "Senhor, sou eu?" pois todos bem sabiam que nenhum compreendera o sentido daquelas palavras. Pedro inclinou-se para João,
por detrás de Jesus e fez-lhe um sinal, para perguntar ao Senhor
quem era; pois tendo sido censurado tantas vezes por Jesus,
receava que se referisse a ele. Ora, João estava deitado à direita
do Senhor e, como todos comiam com a mão direita, encostando-se
sobre o braço esquerdo, estava ele com a cabeça perto do peito
de Jesus. Aproximou mais a cabeça do peito do Mestre e
perguntou-lhe: Senhor, quem é? Então lhe foi revelado que o Senhor
se referia a Judas. Não vi Jesus pronunciar as palavras: "É aquele
a quem dou o bocado de pão molhado"; não sei se o disse muito baixo
a João; este, porém, o percebeu, quando Jesus molhou o pão
envolvido em alface e afetuosamente o ofereceu a Judas, que
justamente nesse momento perguntava também: "Senhor, sou eu?"
Jesus olhou-o com muito amor e deu-lhe uma resposta concebida em
termos gerais. Era entre os Judeus sinal de amizade e intimidade;
Jesus fê-Io muito afetuosamente, para exortá-Io, sem o
comprometer perante os outros. Judas, porém, estava com o coração
cheio de raiva. Vi, durante toda a ceia, uma pequena figura
hedionda sentada aos seus pés, a qual algumas vezes lhe subiu até
o coração. Não percebi se João repetiu a Pedro o que ouvira de
Jesus; mas vi que o sossegou com um olhar.
6. O Lava-pés
Levantaram-se da mesa e, enquanto mudavam e arranjavam as vestes,
como costumavam fazer antes da oração solene, entrou o mordomo,
com dois criados, para levar a mesa, tirá-Ia do meio dos assentos
que a cercavam e pô-Ia ao lado. Tendo feito isso, recebeu ordem
de Jesus para trazer água ao vestíbulo e saiu da sala, com os dois
criados. Jesus, em pé no meio dos Apóstolos, falou-Ihes muito
tempo em tom solene. Mas tenho até agora visto e ouvido tantas
coisas, que não é possível relatar com exatidão a matéria de todos
os discursos. Lembro-me que falou do seu reino, de sua ida para
o Pai, prometendo deixar-Ihes tudo o que possuía, etc. Também
pregou sobre a penitência, exame e confissão das faltas,
arrependimento e purificação. Tive a impressão de que essa
instrução se relacionava com o lava-pés e vi também que todos
conheceram os seus pecados e se arrependeram, com exceção de
Judas. Esse discurso foi longo e solene. Tendo terminado, Jesus
mandou João e Tiago o Menor trazerem a água do vestíbulo,
ordenando aos Apóstolos que colocassem os assentos em
semicírculo, Ele próprio foi ao vestíbulo, despiu o manto e
arregaçando a túnica, cingiu-se com um pano de linho, cuja
extremidade mais longa pendia para baixo.
Durante esse tempo tiveram os Apóstolos uma discussão, sobre qual
deles devia ter o primeiro lugar; como o Senhor lhes anunciara
claramente que os ia deixar e que o seu reino estava perto, surgiu
de novo entre eles a opinião de que Jesus tinha aspirações
secretas, um triunfo terrestre, que se realizaria no último
momento.
Jesus, que estava no vestíbulo, deu ordem a João para tomar uma
bacia e a Tiago o Menor para trazer um odre cheio de água,
transportando-o diante do peito, de modo que o bocal pendesse
sobre o braço. Depois de ter derramado água do odre na bacia,
mandou que os dois O seguissem à sala, onde o mordomo tinha posto
no meio outra bacia maior, vazia.
Entrando pela porta da sala, de forma humilde, Jesus censurou os
Apóstolos em poucas palavras, por causa da discussão havida antes
entre eles, dizendo, entre outras coisas, que Ele mesmo queria
servirlhes de criado, que tomassem os assentos, para que lhes
lavasse os pés. Então se sentaram, na mesma ordem em que foram
colocados à mesa, tendo sido os assentos dispostos em
semicírculo. Jesus, indo de um a outro, derramou-Ihes sobre os
pés água da bacia, que João sucessivamente colocava sob os pés
de cada um. Depois tomava o Mestre a extremidade da toalha de
linho, com que estava cingido e enxugava-lhes os pés com ambas
as mãos. Em seguida se aproximava, com Tiago, do Apóstolo
seguinte. João esvaziava de cada vez a água usada, na grande bacia
que estava no meio da sala e Jesus enchia de novo a bacia, com
água do odre que Tiago segurava, derramando-a sobre os pés do
Apóstolo e enxugando-lhos.
O Senhor, que durante toda a ceia pascal se mostrara singularmente
afetuoso, desempenhou-se também desta humilde função com o mais
tocante amor. Não o fazia como uma cerimônia, mas como ato santo
de caridade, exprimindo nele todo o seu amor.
Quando chegou a Pedro, este quis recusar, dizendo: "Senhor, Vós
me quereis lavar os pés?". Disse, porém, o Senhor: "Agora não
entendes o que faço, mas entendê-lo-ás no futuro." Pareceu-me que
lhe disse em particular: "Simão, tens merecido aprender de meu
Pai quem sou eu, donde venho e para onde vou; só tu o tens conhecido
e confessado; por isso, construirei sobre ti a minha Igreja, e
as portas do inferno não prevalecerão contra ela. O meu poder há
de ficar também com os teus sucessores, até o fim do mundo." Jesus
indicou-o aos outros, dizendolhes que Pedro devia substituí-Io
na administração e no governo da Igreja, quando Ele tivesse saído
deste mundo. Pedro, porém, disse: "Vós não me lavareis jamais os
pés." O Senhor respondeu-lhe: "Se eu não tos lavar, não terás
parte em mim." Então lhe disse Pedro: "Senhor, não me lavareis
somente os pés, mas também as mãos e a cabeça." Jesus respondeu:
"Quem foi lavado, é puro no mais; não é preciso lavar senão os pés.
Vós também estais limpos, mas não todos." Com estas palavras
referiu-se a Judas.
Jesus, ensinando sobre o lava-pés, disse que era uma purificação
das faltas quotidianas, porque os pés, caminhando
descuidosamente na terra, se sujavam continuamente.
Esse banho dos pés era espiritual e uma espécie de absolvição.
Pedro, porém, viu nele apenas uma humilhação muito grande para
o Mestre; não sabia que Jesus, para salvá-lo e aos outros homens,
se humilharia na manhã seguinte até à morte ignominiosa da Cruz.
Quando Jesus lavou os pés de Judas, mostrou-lhe uma afeição
comovedora; aproximou o rosto dos pés do Apóstolo infiel,
disse-lhe muito baixo que se arrependesse, pois que já por um ano
pensava em tornar-se infiel e traidor. Judas, porém, parecia não
querer perceber e falava com João. Pedro irritou-se com isso e
disse-lhe: "Judas, o Mestre fala-te." Então disse Judas algumas
palavras vagas e evasivas a Jesus, como: "Senhor, tal coisa nunca
farei.”
Os outros não perceberam as palavras que Jesus dissera a Judas,
pois falara baixo e eles não prestaram atenção; estavam ocupados
em calçar as sandálias. Nada, em toda a Paixão, afligiu tão
profundamente o Senhor como a traição de Judas. Jesus lavou depois
ainda os pés de João e Tiago. Primeiro, se sentou Tiago e Pedro
segurou o odre de água, depois se sentou João e Tiago segurou a
bacia.
Jesus ensinou ainda sobre a humildade, dizendo que aquele que
servia aos outros, era o maior de todos e que dali em diante deviam
lavar humildemente os pés uns aos outros; tocou ainda na discussão
sobre qual deles havia de ser o maior, dizendo muitas coisas que
se encontram também no Evangelho.
"Sabeis o que vos fiz? Vós me chamais Mestre e Senhor e dizeis
bem, porque o sou. Se eu, sendo vosso Senhor'e Mestre, vos lavei
os pés, logo deveis também lavar os pés uns aos outros. Porque
eu vos dei o exemplo, para que, como eu fiz, assim façais vós
também. Em verdade, em verdade, vos digo: não é o servo maior do
que o seu Senhor, nem o enviado é maior do que aquele que o enviou.
Se sabeis estas coisas, bem-aventurados sereis se também as
praticardes. Não digo isto de todos vós; sei os que tenho
escolhido; mas é necessário que se cumpra o que diz a Escritura:
"O que come o pão comigo, levantará contra mim o calcanhar." Desde
agora vos digo, antes que suceda; para que, quando suceder,
creiais que sou eu. Em verdade, em verdade vos digo: O que recebe
aquele que eu enviar, a mim me recebe; e o que me recebe a mim,
recebe Aquele que me enviou." (Jo. 13, 12 - 20).
Jesus vestiu de novo as vestes. Os Apóstolos desenrolaram também
as vestes, que antes tinham arregaçado, para comer o cordeiro
pascal.
7. Instituição da Sagrada Eucaristia
Por ordem do Senhor, o mordomo pusera novamente a mesa e
colocara-a um pouco mais alto e no meio, coberto de um tapete,
sobre o qual estendera uma toalha vermelha e em cima desta, outra
branca, bordada a crivo. Por baixo da mesa pôs um jarro de água
e outro de vinho.
Pedro e João, indo à parte da sala onde era o fomo do Cordeiro
pascal, buscaram o cálice que haviam trazido da casa de Seráfia.
Transportaram-no solenemente, dentro do invólucro; eu tinha a
impressão de que carregavam um Tabernáculo. Colocaram-no sobre
a mesa, diante de Jesus. Havia também um prato. oval, com três
pães ázimos, brancos e delgados, marcados com sulcos regulares;
eram por estes divididos em três partes, no sentido da largura
e no duplo de partes da largura, no sentido do comprimento. Os
pães estavam cobertos. Jesus já Ihes fizera ligeiras incisões,
durante a ceia pascal, para partí-Ios mais facilmente e pusera
por baixo da toalha a metade do pão partido no banquete pascal.
Estavam também sobre a mesa um cântaro de água e outro de vinho,
como também três vasos, um com óleo grosso, outro com azeite, o
terceiro vazio e mais uma espátula.
Desde os antigos tempos reinava o costume de partir o pão e
beber do mesmo cálice no fim do banquete; era sinal de fratemidade
e amor, usado por ocasião de boa vinda e despedida. Creio que há
alguma coisa a este respeito também na Escritura Sagrada. Jesus,
porém, elevou esse uso à dignidade do Santíssimo Sacramento. Até
então tinha sido somente um rito simbólico e figurativo. Pela
traição de Judas foi levado ao tribunal também a acusação de ter
Jesus juntado alguma coisa nova às cerimônias da Páscoa;
Nicodemos, porém, provou com trechos da Escritura Sagrada, que
esse uso de despedida era muito antigo.
O lugar de Jesus era entre Pedro e João. As portas estavam
fechadas; tudb se fez com solenidade misteriosa. Depois de se
haver tirado do cálice o invólucro e levado à parte separada da
sala, rezou Jesus, falando num tom solene. Vi que Ihes explicava
todas as santas cerimônias da última ceia; era como se um
sacerdote ensinasse aos outros a santa Missa.
Em seguida tirou da bandeja em que estavam os vasos, um tabuleiro
corrediço, tomou o pano de linho que cobria o cálice e estendeu-o
sobre o tabuleiro. Depois o vi tirar do cálice uma patena redonda
e pô-Ia sobre o tabuleiro coberto. Tirou então os pães que estavam
ao lado, num prato coberto com um pano de linho e colocou-os na
patena, diante de si. Os pães, que tinham a forma de um
quadrilátero oblongo, excediam dos dois lados a patena, cuja
borda, porém, permanecia visível na largu ra. Em seguida puxou
para si o cálice, tirou dele um copinho, colocando também os seis
copos pequenos à direita e esquerda do cálice. Depois benzeu o
pão ázimo e, creio, também os óleos, que estavam ao lado, levantou
a patena, em que estavam os pães ázimos, com ambas as mãos, olhou
para o céu, rezou e ofereceu-o a Deus, pôs a patena no tabuleiro
e cobriu-a. Depois tomou o cálice, mandou Pedro derramar vinho
e João derramar água, que antes benzera e juntou ainda um pouco
de água, que colheu com a colherzinha. Benzeu o cálice,
levantou-o, ofereceu-o, rezando e colocou-o no tabuleiro.
Mandou a Pedro e João derramarem-Lhe água sobre as mãos, por cima
do prato em que anteriormente foram postos o pães ázimos e, tirando a colherzinha do pé do cálice, apanhou um pouco da água que
lhe correra sobre as mãos e espargiu-a sobre as mãos dos dois
Apóstolos. Depois passou o prato em redor da mesa e todos lavaram
nele as mãos. Não me lembro bem se foi essa a ordem exata das
cerimônias; mas tudo isso, que me lembrou muito o santo Sacrifício
da Missa, comoveu-me profundamente.
Durante esse santo ato tomou-se Jesus cada vez mais afetuoso;
disse-Ihes que agora queria dar-Ihes tudo que tinha: sua própria
pessoa. Era como se derramasse sobre eles todo o seu amor e vi-O
tomar-se transparente; parecia uma sombra luminosa.
Orando com esse amor, partiu o pão nas partes marcadas, as quais
amontoou sobre a patena, em forma de pirâmide. Do primeiro bocado
quebrou um pedacinho com a ponta dos dedos e deixou-o cair no
cálice.
No momento em que o fez, tive a impressão de que a SS. Virgem
recebeu o Santo Sacramento espiritualmente, apesar de não estar
ali presente. Não sei agora como o vi; mas pensei vê-Ia entrar
pela porta, sem tocar no chão e aproximar-se de Jesus, do lado
desocupado da mesa e receber o santo Sacramento em frente d'Ele;
depois não a vi mais. Jesus dissera-lhe de manhã, em Betânia, que
celebraria a Páscoa junto com ela, marcando-lhe a hora em que,
recolhida em oração, devia recebê-Ia espiritualmente.
O Senhor rezou ainda e ensinou; todas as palavras lhe saíram da
boca como fogo e luz e entraram nos Apóstolos, com exceção de
Judas. Depois tomou a patena com os bocados de pão (não sei, mais
se a tinha posto sobre o cálice) e disse: "Tomai e comei, isto
é o meu corpo, que será entregue por vós." Nisso estendeu a mão
direita como para benzer e, enquanto assim fazia, saiu d’Ele um
esplendor, suas palavras eram luminosas e também o era o pão que
se precipitou na boca dos Apóstolos, como um corpo
resplandecente; era como se Ele mesmo entrasse neles. Vi-os todos
penetrados de luz; só Judas vi escuro. O Senhor deu o Sacramento
primeiro a Pedro, depois a João; em seguida fez sinal a Judas para
aproximar-se; foi o terceiro, a quem deu o SS. Sacramento. Mas
a palavra do Cristo parecia recuar da boca do traidor. Fiquei
tão horrorizada, que não posso exprimir o que senti nesse
momento. Jesus, porém, disse-lhe: "Faze já o que queres fazer"
e continuou a dar o Santo Sacramento aos Apóstolos, que se
aproximaram dois a dois, segurando alternadamente, em frente um
do outro, um pequeno pano engomado, bordado nos lados, o qual
cobria o cálice.
Jesus levantou o cálice pelas duas argolas até a altura do rosto
e pronunciou as palavras da consagração sobre ele. Nesse ato ficou
transfigurado e como transparente, parecendo passar tudo o que
Ihes deu. Fez Pedro e João beberem do cálice, que segurava nas
mãos, colocando-o depois na mesa; João passou com a colherzinha
o SS. Sangue do cálice para os copinhos, que Pedro ofereceu aos
Apóstolos, os quais beberam dois a dois de um copo. Creio, mas
não tenho absoluta certeza, que Judas também participou do
cálice; não voltou, porém, ao seu lugar mas saiu imediatamente
do Cenáculo. Como Jesus lhe tivesse feito um sinal, pensaram os
outros que o tivesse encarregado de algum negócio. Retirou-se sem
ter rezado e feito a ação de graças, por onde se vê como é mau
retirar-se sem ação de graças, depois de tomar o pão quotidiano
ou o Pão Eterno. Durante toda a refeição, eu tinha visto ao pé
de Judas a figura de um pequeno monstro vermelho e hediondo, cujo
pé era como um osso descarnado e que às vezes lhe subia até o
coração. Quando saiu da casa, vi três demônios cercarem-no: um
entrou-lhe na boca, outro empurrou-o para a frente e o terceiro
correu-lhe à frente. Era noite e eles pareciam alumiá-lo; Judas
corria como um louco.
O Senhor deitou o resto do Santíssimo Sangue, que ainda ficara
no fundo do cálice, no copinho que antes estivera dentro do
cálice; pondo depois os dedos por cima do cálice, mandou Pedro
e João derramarem água e vinho sobre eles. Feito isso, fê-los
beber ambos do cálice e o resto vazou-os nos outros copinhos,
distribuindo-os pelos outros Apóstolos. Em seguida Jesus enxugou
o cálice, meteu nele o pequeno copo, contendo o resto do
Santíssimo Sangue, colocou em cima a patena, com os restantes pães
ázimos consagrados pôs a tampa e cobriu o cálice de novo com o
pano, colocando-o depois sobre a bandeja, entre os seis copinhos.
Vi os Apóstolos comungarem dos restos do Santíssimo Sacramento,
depois da ressurreição de Jesus.
Não me lembro de ter visto o Senhor comer as espécies consagradas,
a não ser que eu não reparasse. Dando o Santíssimo Sacramento,
deu-se de modo que parecia sair de si mesmo e derramar-se nos
Apóstolos, numa efusão de amor misericordioso. Não sei como posso
exprimí-lo.
Também não vi Melquisedec, quando ofereceu pão e vinho, comê-lo
e bebê-lo. Soube também porque os sacerdotes o consomem, apesar
de Jesus não o ter feito.
Dizendo isso, Catharina Emmerich virou de repente a cabeça,
como para escutar; recebeu uma explicação sobre esse ponto, da
qual pôde comunicar somente o seguinte: "Se fosse administrado
pelos Anjos, estes não o teriam recebido; se, porém, os sacerdotes
não o recebes sem, já se teria perdido há muito; por isso é que
se conserva.”
Todas as cerimônias, durante a instituição do SS. Sacramento,
foram feitas por Jesus com muita calma e solenidade, para ao mesmo
tempo ensinar e instruir os Apóstolos, os quais vi depois tomarem
notas de certas coisas, nos pequenos rolos que tinham consigo.
Todos os movi mentos de Jesus, para a direita e para a esquerda,
eram solenes, como sempre que estava rezando. Tudo mostrava em
geral o santo Sacrifício da Missa. Durante a cerimônia e em outras
ocasiões, vi também os Apóstolos se inclinarem uns diante dos
outros ao aproximarem-se, como ainda fazem os sacerdotes de hoje.
8. Instruções secretas e consagrações
Jesus deu ainda instruções secretas. Disse aos Apóstolos que
continuassem a consagrar e administrar o SS. Sacramento, até o
fim do mundo. Ensinou-Ihes as formas essenciais da administração
e do uso do Sacramento e de que modo deviam gradualmente ensinar
e publicar esse mistério; explicou-Ihes quando deviam receber o
resto das espécies consagradas e dá-Io à SS. Virgem e que deviam
consagrar também o SS. Sacramento, depois de Ihes ter enviado o
Divino Consolador.
Instruiu-os em seguida sobre o sacerdócio, sobre a preparação
do Crisma e dos santos óleos e sobre a unção. Estavam ao lado do
cálice três umas, duas das quais continham misturas de bálsamo
e diversos óleos e algodão; as umas podiam ser postas uma em cima
da outra. Jesus ensinou-lhes muitos mistérios, como se devia
preparar o santo Crisma, a que partes do corpo se devia aplicar
e em que ocasiões. Lembro-me, entre outras coisas, que mencionou
um caso em que a sagrada Eucaristia não podia mais ser recebida;
talvez se tenha referido à Extrema-Unção: mas as minhas
lembranças a tal respeito não são muito cla ras. Falou ainda de
diversas unções, inclusive a dos reis e disse que os reis sagrados
com o Crisma, mesmo os injustos, possuíam uma força interna
misteriosa, que não era dada aos outros. Derramou, pois, ungüento
e óleo na uma vazia e misturou-os; não sei mais positivamente se
foi nesse momento ou já por ocasião da consagração dos pães, que
benzeu o óleo.
Vi depois Jesus ungir a Pedro e João; já por ocasião da instituição
do SS. Sacramento lhes derramara sobre as mãos a água que sobre
as suas lhe correra e os fizera também beber do cálice que Ele
mesmo segurava.
Saindo do meio da mesa, um pouco para o lado, pousou as mãos
primeiro sobre os ombros e depois sobre a cabeça de Pedro e João.
Em seguida mandou que ficassem de mãos postas e colocassem os
polegares em forma de cruz. Inclinaram-se os dois Apóstolos
profundamente diante do Mestre (não sei ai estavam de joelhos).
O Senhor ungiu-Ihes os polegares e indicadores com ungüento e
fez-lhes com o mesmo também o sinal da cruz na cabeça. Disse-Ihes
também que essa unção devia permanecer com eles até o fim do mundo.
Tiago o Menor, André, Tiago o Maior e Bartolomeu receberam também
ordens. Vi também o Senhor ajustar em forma de cruz, sobre o peito
de Pedro, a faixa estreita de pano, que todos traziam ao pescoço;
aos outros, porém, do ombro direito para debaixo do braço
esquerdo. Não sei mais com certeza se isso se fez já por ocasião
da instituição do SS. Sacramento ou só na hora da unção.
Vi, porém, que Jesus lhes comunicou com essa unção uma coisa real
e também sobrenatural, não sei como exprimí-Io em palavras.
Disse-Ihes mais que, depois de terem recebido o Espírito Santo,
deviam também consagrar pão e vinho e dar a unção aos outros
Apóstolos. Nesse momento tive uma visão sobre Pedro e João que,
no dia de Pentecostes, antes do grande batismo, impuseram as mãos
aos outros Apóstolos, o que também fizeram, uma semana depois,
a alguns outros discípulos. Vi também João, depois da
ressurreição de Jesus, dar pela primeira vez o SS. Sacramento a
Nossa Senhora. Esse acontecimento foi celebrado pelos Apóstolos
com grande solenidade; a Igreja militante não tem mais essa festa,
mas vejo-a celebrada ainda na Igreja triunfante. Nos primeiros
dias depois de Pentecostes vi só Pedro e João consagrarem a santa
Eucaristia, mais tarde a consagraram também os outros.
O Senhor benzeu-Ihes também fogo, num vaso de bronze; esse fogo
desde então ardeu sempre, até depois de longas ausências era
guardado junto ao lugar onde se conservava o SS. Sacramento, numa
parte do antigo fogão pascal; ali sempre o buscavam para as
cerimônias religiosas.
Tudo que Jesus fez por ocasião da instituição da sagrada
Eucaristia e da unção dos Apóstolos, foi debaixo de grande segredo
e era também ensinado só secretamente e tem se conservado, na sua
essência, pela Igreja até os nossos tempos, aumentado, porém, sob
a inspiração do Espírito Santo, conforme as necessidades.
Os Apóstolos ajudaram na preparação e bênção do santo
Crisma; quando Jesus os ungiu e lhes impôs as mãos, fez tudo com
grande solenidade.
Terminadas as santas cerimônias, o cálice, perto do qual estavam
também os santos óleos, foi coberto com a capa e Pedro e João
levaram assim o SS. Sacramento para o fundo da sala, separado do
resto por uma cortina e ali era desde então o Santuário. O SS.
Sacramento estava por cima do fogão pascal, não muito alto. José
de Arimatéia e Nicodemos cuidavam do Santuário e do Cenáculo, na
ausência dos Apóstolos.
Jesus ensinou ainda por muito tempo e disse algumas orações com
grande fervor. Parecia às vezes conversar com o Pai celeste, cheio
de entusiasmo e amor. Os Apóstolos também ficaram penetrados de
zelo e ardor e fizeram-lhe várias perguntas, às quais respondeu.
Creio que tudo isso está escrito em grande parte na Escritura
Sagrada. Durante esses discursos, disse Jesus algumas coisas a
Pedro e João separadamente, as quais estes depois deviam
comunicar aos outros Apóstolos, como complemento de instruções
anteriores e estes aos outros discípulos e às santas mulheres,
quando chegassem ao tempo de receberem tais conhecimentos. Pedro
e João estavam sentados perto de Jesus. O Senhor teve também uma
conversa particular com João, da qual me lembro agora apenas o
prognóstico de que a vida deste Apóstolo seria mais longa que a
dos outros; falou-lhe também de sete Igrejas, de coroas, Anjos
e outras figuras simbólicas, com as quais designava, como me
parece, certas épocas. Os outros Apóstolos sentiram, diante dessa
confiança particular, um leve movimento de inveja.
O Mestre falou também diversas vezes do traidor, dizendo o que
naquela hora este estava fazendo; vi sempre Judas fazer o que o
Senhor dizia. Como Pedro lhe afirmasse, com grande ardor, que
havia de permanecer fiel, disse-lhe Jesus: "Simão, Simão, eis que
Satanás vos reclama com instância, para vos joeirar como o trigo;
mas eu roguei por ti, afim de que tua fé não desfaleça; e tu enfim,
depois de convertido, confirma na fé teus irmãos." Como, porém,
Jesus dissesse que onde iria, não poderiam seguí-Io, exclamou
Pedro que o seguiria até a morte. Replicou Jesus: "Em verdade,
antes que o galo cante duas vezes, tu me negarás três vezes,"
Quando lhes anunciou os tempos duros que viriam, per guntou-Ihes:
"Quando vos enviei sem alforje, sem sapatos, faltou-Ihes
porventura alguma coisa?" Responderam: "Não." Disse, porém, que
daquela hora em diante, quem tivesse bolsa, a tomasse e também
alforje e o que nada tivesse, vendesse a túnica e comprasse
espada, pois que se devia cumprir a palavra: "E foi reputado por
um dos iníquos". Tudo que fora escrito sobre Ele, devia cumprir-se
então.
Os Apóstolos entenderam-no no sentido natural e Pedro
mostrou Lhe duas espadas curtas e largas, como cutelos.
Jesus disse: "Basta, vamo-nos daqui." Rezaram então um
cântico; a mesa foi posta ao lado e dirigiram-se todos ao
vestíbulo.
Ali se aproximaram a mãe de Jesus, Maria de Cleofas e Madalena,
que lhe pediram instantemente que não fosse ao monte das
Oliveiras; pois se propagara o boato de que queriam apoderar-se
dEle. Mas Jesus consolou-as com poucas palavras, continuando
apressadamente o caminho; eram cerca de 9 horas da noite. Descendo
a grandes passos pelo caminho pelo qual Pedro e João tinham vindo
ao Cenáculo, dirigiram-se ao monte das Oliveiras.
9. Oração solene de despedida de Jesus
Não podemos deixar de inserir aqui as últimas palavras e
ensinamentos tão profundos, que Jesus, no fim da ceia, dirigiu
aos Apóstolos, com tanto amor e carinho e que nos foram
transmitidos por S. João no seu Evangelho, caps 14 a 17. Jesus
disse:
"Não se perturbe o vosso coração. Credes em Deus, crede também
em mim. Na casa de meu Pai há muitas moradas; se assim não fora,
eu vo-lo teria dito: pois vou a aparelhar-vos o lugar. E depois
que eu for e vos aparelhar o lugar, virei outra vez, e tomar-vos-ei
comigo, para que onde eu estiver, estejais vós também, para onde
eu vou, sabeis vós e sabeis também o caminho." Disse-lhe Tomé:
"Senhor, não sabemos para onde vais, e como podemos saber o
caminho?" Respondeu-lhe Jesus: "Eu sou o caminho, a verdade e a
vida; ninguém vai ao Pai senão por mim. Se me conhecêsseis a mim,
também certamente havíeis de conhecer meu Pai; mas conhecê-Lo-eis
bem cedo e já o tendes visto." Disse-lhe Filipe: "Senhor,
mostrai-nos o Pai e isso nos basta." Respondeu-lhe Jesus: "Há
tanto tempo que estou convosco e ainda não me tendes conhecido?
Filipe, quem vê a mim, vê também ao Pai. Como dizes logo:
"Mostra-nos o Pai?" Não credes que estou no Pai e que o Pai está
em mim? As palavras que vos digo, não as digo de mim mesmo, mas
o Pai, que está em mim, é que faz as obras. Não credes que estou
no Pai e que o Pai está em mim? Crede ao menos por causa das mesmas
obras. Em verdade, em verdade vos digo que aquele que crê em mim,
fará também as obras que faço e fará outras ainda maiores; porque
vou para o Pai. E tudo o que pedirdes ao Pai em meu nome, eu vo-lo
farei, para que o Pai seja glorificado no Filho.
Se me amais, guardai os meus mandamentos. E rogai ao Pai e Ele
vos dará outro Consolador, para que fique eternamente convosco,
o Espírito da verdade, a quem o mundo não pode receber, porque
não o vê, nem o conhece; mas vós o conheceis, porque Ele ficará
convosco e estará em vós. Não vos deixarei órfãos; virei a vós.
Resta ainda um pouco, depois já o mundo não me verá; mas ver-me-eis
vós, porque eu vivo e vós vivereis. Naquele dia conhecereis que
estou em meu Pai e vós em mim e eu em vós. Aquele que tem os meus
mandamentos e que os guarda, esse é o que me ama. E aquele que
me ama, será amado de meu Pai e eu o amarei também e me manifestarei
a ele.”
Disse-lhe Judas, não o Iscariotes: "Senhor, donde procede que te
hás de manifestar a nós e não ao mundo?" Respondeu-lhe Jesus: "Se
alguém me ama, guardará a minha palavra e meu Pai o amará e viremos
a ele e faremos nele morada. O que não me ama, não guarda as minhas
palavras. E a palavra que tendes ouvido, não é minha, mas, sim,
do Pai que me enviou. Eu vos disse estas coisas, permanecendo
convosco; mas o Consolador, que é o Espírito Santo, a quem o Pai
enviará em meu nome, vos ensinará todas as coisas e vos fará
lembrar tudo o que vos tenho dito. A paz vos deixo, a minha paz
vos dou; eu não vo-la dou como a dá o mundo. Não se turbe o vosso
coração, nem fique sobressaltado. Já tendes ouvido que eu vos
disse: Eu vou e venho a vós. Se me amardes, certamente haveis de
alegrar-vos, que vou para junto do Pai, porque o Pai é maior do
que Eu. Eu vo-lo disse agora, antes que suceda, para que, quando
suceder, o creiais. Já não falarei muito convosco, porque vem o
príncipe deste mundo e ele não tem em mim coisa alguma. Mas, para
que o mundo conheça que amo o Pai e que faço como me ordena.
Levantai-vos, vamo-nos daqui.
Eu sou a verdadeira videira e meu Pai é o agricultor. Todo ramo
que não der fruto em mim, Ele o cortará e todos os que derem fruto,
limpá-los-á, para que o dêem mais abundante. Vós já estais puros,
em virtude da palavra que eu vos disse. Permanecei em mim e eu
permanecerei em vós. Como o ramo da videira não pode de si mesmo
dar fruto, se não permanecer na videira, assim nem vós podereis
dar, se não permanecerdes em mim. Eu sou a videira, vós sois os
ramos; o que permanece em mim e em quem eu permaneço, dá muito
fruto; porque vós sem mim não podeis fazer nada. Se alguém não
permanecer em mim, será lançado fora como o ramo e secará e
enfeixá-Io-ão e lançá-Io-ão ao fogo e ali arderá. Se
permanecerdes em mim e as minhas palavras permanecerem em
vós, pedireis tudo o que quiserdes e ser-vos-á feito. Nisso é
glorificado meu Pai, em que vós deis muito fruto e em que sejais
meus discípulos. Como meu Pai me amou, assim vos amei. Permanecei
no meu amor. Se guardardes os meus preceitos, permanecereis no
meu amor, assim como também eu guardei os preceitos de meu Pai
e permaneço no seu amor. Disse-vos estas coisas, para que o minha
alegria esteja em vós e que a vossa alegria seja completa. O meu
preceito é este: que vos ameis uns aos outros, como eu vos amei.
Ninguém tem maior amor do que este de dar a própria vida pelos
amigos. Vós sereis meus amigos, se fizerdes o que vos mando. Já
vos não chamarei servos; porque o servo não sabe o que faz o seu
senhor. Mas chamei-vos amigos, porque vos revelei tudo quanto
ouvi de meu Pai. Não fostes vós que me escolhestes a mim, mas fui
eu que vos escolhi a vós e vos constitui, para que vades e deis
fruto e para que o vosso fruto permaneça, para que tudo quanto
pedirdes a meu Pai, em meu nome, Ele vo-lo conceda. O que eu vos
mando, é que vos ameis uns aos outros. Se o mundo vos odeia, sabei
que primeiro do que a vós, me odiou a mim. Se fôsseis do mundo,
o mundo vos amaria como sendo seus; mas porque não sois do mundo,
mas do mundo que vos escolhi, por isso é que o mundo vos odeia.
Lembrai-vos da minha palavra que eu vos disse: Não é o servo maior
do que o seu senhor. Se me perseguiram a mim, também vos hão de
perseguir a vós. Se guardaram a minha palavra, também hão de
guardar a vossa. Mas vos farão tudo isto por causa de meu nome,
porque não conhecem aquele que me enviou. Se eu não viesse e não
Ihes tivesse falado, não teriam pecado; mas agora não há desculpa
para o seu peca do. Aquele que me odeia, odeia também a meu Pai.
Se eu não tivesse feito entre eles tais obras, como nenhum outro
fez, não haveria da parte deles pecado; mas agora não somente as
viram, mas ainda me odiaram, tanto a mim como a meu Pai. Mas é
para se cumprir a palavra que está escrita na lei (Sal. 34,19;
68,5): "Eles me odiaram sem motivo". Quando, porém, vier o
Consolador, o Espírito da verdade, que procede do Pai, que eu vos
enviarei da parte do Pai, Ele dará testemunho de mim; e também
vós dareis testemunho, porque estais comigo desde o princípio.
Eu vos disse estas coisas, para que não vos escandalizeis. Eles
vos lançarão fora das sinagogas e está a chegar o tempo em que
todo o que vos matar, julgará que nisso faz serviço a Deus. E assim
vos tratarão, porque não conhecem o Pai, nem a mim. Ora, eu vos
disse estas coisas, para que, quando chegar esse tempo, vos
lembreis de que eu vo-las disse. Não vo-las disse, porém, desde
o princípio, porque estava convosco. E agora vou para aquele que
me enviou; e nenhum de vós pergunta: Para onde vais? Antes, porque
eu vos disse estas coisas, se apoderou do vosso coração a
tristeza. Mas eu vos digo a verdade; a vós vos convém que eu vá
porque, se eu não for, não virá a vós o Consolador; mas, se eu
for, vo-Lo enviarei. E Ele, quando vier, convencerá o mundo do
pecado, da justiça e do juízo. Sim, do pecado, porque não creram
em mim. E dajustiça, porque vou para o Pai e não me vereis mais.
E do juízo, enfim, porque o príncipe deste mundo já está julgado
e condenado. Tenho ainda muitas coisas a vos dizer, mas não as
podeis suportar agora. Quando vier, porém, o Espírito da verdade,
Ele vos ensinará todas as verdades, porque não falará de si mesmo,
mas dirá tudo que tiver ouvido e anunciar-vos-á as coisas que
estão para vir. Ele me glorificará, porque há de receber do que
é meu e vo-lo há de anunciar. Um pouco e já me não vereis; e outra
vez um pouco e verme-eis; porque vou para o Pai".
Disseram então alguns discípulos uns para os outros. "Que vem a
ser isto que Ele nos diz: "Um pouco e já me não vereis e outra
vez um pouco e ver-me-eis, porque vou para o Pai?" E diziam: "Que
vem a ser isto, que Ele nos diz: um pouco... Não sabemos o que
quer dizer." E entendeu Jesus que lho queriam perguntar e
disse-lhes: "Vós perguntais uns aos outros o que é que vos quis
significar, quando disse: Um pouco e já me não vereis e outra vez
um pouco e ver-me-eis. Em verdade, em verdade vos digo que haveis
de chorar e gemer e que o mundo se há de alegrar e que haveis de
estar tristes, mas que a vossa tristeza se há de converter em gozo.
Quando uma mulher dá à luz, está em tristeza, porque é chegada
a sua hora; mas, depois que lhe nasceu um filho, já se não lembra
do aperto, pelo gozo que tem, de haver nascido ao mundo um homem.
Assim também vós outros sem dúvida estais agora tristes, mas hei
de ver-vos de novo e o vosso coração ficará cheio de alegria e
esta ninguém vo-la tirará.
E naquele dia nada mais me perguntareis. Em verdade, em verdade
vos digo: se pedirdes ao meu Pai alguma coisa em meu nome, Ele
vo-la há de dar. Até agora não pedistes nada em meu nome. Pedi
e recebereis, para que a vossa alegria seja completa. Tenho vos
dito estas coisas debaixo de parábolas. Está chegado o tempo, em
que já não vos hei de falar por parábolas, mas abertamente vos
falarei do Pai. Naquele dia pedireis em meu nome e não vos digo
que hei de rogar ao Pai por vós. Porque o mesmo Pai vos ama, porque
vós me amastes e, crestes que saí de Deus. Eu saí do Pai e vim
ao mundo; outra vez deixo o mundo e torno para o Pai". Disseram-lhe
os discípulos: "Eis que agora nos falas abertamente e não usas
de parábola alguma; agora conhecemos que sabeis tudo e que não
é necessário fazer-te perguntas; nisto, cremos que saíste de
Deus." Respondeu-Ihes Jesus: "Credes agora? Eis que aí vem e já
é chegada a hora em que sejais espalhados, cada um para seu lado
e que me deixeis só; mas não estou só, porque o Pai está comigo.
Tenho vos dito estas coisas, para que tenhais paz em mim. Haveis
de ter aflições no mundo; mas tende confiança, eu venci o mundo.”
Assim falou Jesus e, levantando os olhos ao céu, disse: -"Pai,
é chegada a hora, glorifica a teu Filho, para que teu Filho te
glorifique a ti; assim como tu lhe deste poder sobre todos os
homens, afim de que Ele dê a vida eterna a todos que lhe deste.
A vida eterna, porém, consiste em que conheçam por um só
verdadeiro Deus a ti e a Jesus Cristo, que enviaste.
Glorifiquei-te sobre a terra; acabei a obra de que me
encarregaste. Tu, pois, agora, Pai, me glorifica a mim em ti
mesmo, com aquela glória que tive em ti, antes que houvesse mundo.
Manifestei o teu nome aos homens que me deste do mundo. Eles eram
teus e mos deste e eles guardaram a tua palavra. Agora conheceram
eles que todas as coisas que me deste, vêm de ti. Porque Ihes dei
as palavras que me deste; e eles as receberam e conheceram
verdadeiramente que saí de ti e creram que me enviaste. Por eles
é que rogo; não rogo pelo mundo, mas por aqueles que me deste,
porque são teus e todas as minhas coisas são tuas e todas as tuas
coisas são minhas; e neles sou glorificado. E não estou mais no
mundo, mas eles estão no mundo e eu vou para junto de ti. Pai santo,
guarda em teu nome aqueles que me deste, para que sejam um, assim
como também nós. Quando eu estava com eles, guardava-os em teu
nome. Conservei os que me deste e nenhum destes se perdeu, mas
somente o que era filho da perdição, para se cumprir a Escritura.
Mas agora vou para junto de ti e digo estas coisas, estando ainda
no mundo, para que eles tenham em si mesmos a plenitude da minha
alegria. Dei-Ihes a tua palavra mas o mundo os odeia, porque não
são do mundo, como também eu não sou do mundo. Não peço que os
tires do mundo, mas, sim, que os guardes do mal. Eles não são do
mundo, como eu também não sou do mundo. Santifica-os na verdade.
A tua palavra é a verdade. Assim como me enviaste ao mundo, também
eu os enviei ao mundo. E santifico-me a mim por eles, para que
também sejam santificados pela verdade. E não rogo somente por
eles, mas rogo também por aqueles que hão de crer em mim por meio
das suas palavras; para que sejam todos um, como tu, Pai, o és
em mim e eu em ti, para que também eles sejam um em nós e creia
o mundo que me enviaste. Dei-Ihes a glória que me havias dado,
para que sejam um, como nós também somos um. Eu estou neles e tu
estás em mim, para que eles sejam consumados na unidade e para
que o mundo conheça que me enviaste e que os amaste, como amaste
também a mim. Pai, a minha vontade é que, onde eu estiver, estejam
também comigo aqueles que me deste, para verem a minha glória,
que me deste; porque me amaste antes da criação do mundo. Pai
justo, o mundo não te conheceu, mas eu te conheci e estes
conheceram que me enviaste. E eu Ihes fiz conhecer o teu nome e
lho farei ainda conhecer, afim de que o mesmo amor com que me
amaste; esteja neles e eu neles.”
3
Jesus no Monte das Oliveiras
1. Jesus, com os Apóstolos, a caminho do horto de Getsêmani
2. Jesus atribulado pelos horrores do pecado
3. Tentações da parte de Satanás
4. Jesus volta para junto dos três, Apóstolos
5. Anjos mostram a Jesus a enormidade dos seus sofrimentos
e consolam-nO
6. Mais imagens de pecados que atormentam o Senhor
7. Visões consoladoras; Anjos confortam Jesus
8. Judas e sua tropa
9. A prisão do Senhor
Jesus no Monte das Oliveiras
1. Jesus, com os Apóstolos, a caminho do horto de Getsêmani
Quando Jesus, depois da instituição do SS. Sacramento, saiu do
Cenáculo com os onze Apóstolos, já tinha a alma oprimida de
aflição e crescente tristeza. Conduziu os onze, por um desvio,
ao vale de Josafá, dirigindo-se ao monte das Oliveiras. Ao
chegarem ao portão, vi a lua, ainda não inteiramente cheia,
levantar-se por cima da montanha. Andando com os Apóstolos pelo
vale, disse-Ihes o Senhor que lá voltaria um dia, para julgar o
mundo, mas não pobre e sem poder como hoje, e que então muitos,
com grande medo, exclamariam: "Montes, cobri-nos." Os discípulos
não O compreenderam, pensando, como muitas vezes nessa noite, que
a fraqueza e o esgotamento os faziam delirar. Ora andavam, ora
paravam, conversando com o Mestre. Disse-lhes também Jesus: "Vós
todos haveis de escandalizar-vos em mim esta noite; pois está
escrito: ''Tirarei o pastor, e as ovelhas serão dispersas. - Mas,
quando tiver ressuscitado, preceder-vos-ei na Galiléia".
Os Apóstolos estavam ainda cheios de entusiasmo e amor, pela
recepção do SS. Sacramento e pelas palavras solenes e afetuosas
de Jesus. Comprimiam-se-Lhe em tomo, exprimindo-Lhe de vários
modos o seu amor e protestando que não O abandonariam nunca. Mas,
como Jesus continuasse a falar no mesmo sentido, disse-lhe Pedro:
"E, se todos se escandalizarem por vossa causa, eu nunca me
escandalizarei." Respondeu-lhe o Senhor: "Em verdade te digo, tu
mesmo três vezes me negarás esta noite, antes do galo cantar."
Pedro, porém, não quis conformar-se de modo algum e disse: "Mesmo
que tivesse de morrer convosco, não vos havia de negar." Assim
falaram também todos os outros. Continuavam andando e parando
altemadamente e a tristeza de Jesus aumentava cada vez mais.
Queriam os Apóstolos consolá-Lo de modo inteiramente humano,
assegurando-lhe que não aconteceria tal. Nesses vãos esforços se
cansaram, começaram a duvidar e veio-Ihes a tentação.
Atravessaram a torrente Cedron, não pela ponte, sobre a qual
Jesus foi depois conduzido preso, mas por outra, porque tinham
tomado um desvio. Getsêmani, situado no monte das Oliveiras, para
onde se dirigiram, fica a meia hora certa do Cenáculo, pois do
Cenáculo à porta que dápara o vale de Josafá,-se leva um quarto
de hora e dali a Getsêmani outro tanto. Este lugar, no qual Jesus
ensinou algumas vezes aos discípulos, passando ali a noite com
eles nos últimos dias, consta de algumas casas de pousada, abertas
e desocupadas e de um largo jardim, cercado de sebe, no qual há
somente plantas ornamentais e árvores frutíferas. Os Apóstolos
e diversas outras pessoas tinham a chave desse jardim, que era
um lugar de recreio e de oração. Gente que não tinha jardim
próprio, fazia às vezes festas e banquetes ali. Havia também
vários caramanchões de folhagem espessa, num dos quais ficaram
naquele dia oito Apóstolos e alguns outros discípulos, que se lhes
juntaram mais tarde. O horto das Oliveiras é separado do Jardim
de Getsêmani por um caminho e estendese mais para o alto do monte.
É aberto, cercado apenas de um aterro e menor do que Getsêmani,
um canto cheio de grutas e recantos, em que por toda a parte se
vêem oliveiras. Um lado era mais bem tratado; havia nele assentos,
bancos de relva bem cuidados e grutas espaçosas e sombrias. Quem
quisesse, podia ali facilmente achar um lugar próprio para a
oração e meditação. Era à parte mais sem cuidados que Jesus ia
rezar.
2. Jesus atribulado pelos horrores do pecado
Eram quase 9 horas da noite, quando Jesus chegou, com os
discípulos, a Getsêmani. Ainda reinava a escuridão na terra, mas
no céu a lua jáespargia a luz prateada. Jesus estava muito triste
e anunciou-Ihes a aproximação do perigo. Os discípulos
assustaram-se e Ele disse a oito dos companheiros que ficassem
no Jardim de Getsêmani, num lugar onde havia um caramanchão.
"Ficai aqui, disse, enquanto vou ao meu lugar rezar". Tomando
consigo Pedro, João e Tiago o Maior, subiu mais para o alto e,
cruzando um caminho, avançara, numa distância de alguns minutos,
do horto das Oliveiras ao pé do monte. Ele estava numa indizível
tristeza; pressentia a tribulação e tentação, que se aproximavam.
João perguntou-lhe como podia agora estar tão abatido, quando
sempre os tinha consolado. Então Jesus disse: "Minha alma está
triste até a morte" e, olhando em redor de si, viu de todos os
lados se aproximarem angústias e tentações, como nuvens cheias
de figuras assustadoras. Foi nessa ocasião que disse aos
Apóstolos: "Ficai aqui e vigiai comigo; orai, para não serdes
surpreendidos pela tentação." Eles ficaram então ali; Jesus,
porém, adiantou-se ainda mais; mas as horrorosas visões
assaltavam-no de tal modo, que, cheio de angústia, desceu um pouco
à esquerda dos três Apóstolos, escondendo-se debaixo de um grande
rochedo, numa gruta de talvez 7 pés de profundidade; os Apóstolos
ficaram em cima desse rochedo, numa espécie de cavidade. O chão
da gruta era suavemente inclinado e as plantas pendentes do
rochedo, que sobressaía em frente, formavam uma cortina diante
da entrada, de maneira que quem estivesse dentro da gruta, não
podia ser visto de fora.
Quando Jesus se afastou dos discípulos, vi em redor dele um largo
circulo de imagens horríveis, o qual se apertava mais e mais.
Cresceu-lhe a tristeza e a tribulação e retirou-se tremendo para
dentro da gruta, semelhante ao homem que, fugindo de uma repentina
tempestade, procura abrigo para rezar, vi, porém, que as imagens
assustadoras o perseguiram lá dentro da gruta, tomando-se cada
vez mais distintas. A estreita caverna parecia encerrar o
horrível espetáculo de todos os pecados cometidos, desde a
primeira queda do homem, até ao fim dos séculos, como também todos
os castigos. Foi ali, no monte das Oliveiras, que Adão e Eva,
expulsos do Paraíso, pisaram primeiro a terra e foi nessa caverna
que choraram e gemeram. Tive a clara impressão de que Jesus,
entregando-se às dores da Paixão, que ia começar e
sacrificando-se à justiça divina, em satisfação de todos os
pecados do mundo, de certo modo retirou a sua divindade para o
seio da SS. Trindade; impelido por amor infinito, quis
entregar-se à fúria de todos os sofrimentos e angústias, na sua
humanidade puríssima e inocente, verdadeira e profundamente
sensível, para expiação dos pecados do mundo, armado somente do
amor do seu coração humano. Querendo satisfazer pela raiz e por
todas as excrescências do pecado e da má concupiscência, tomou
o misericordiosíssimo Jesus no coração a raiz de toda a expiação
purificadora e de toda a dor santificante, por amor de nós,
pecadores e, para satisfazer pelos pecados inumeráveis, deixou
esse sofrimento infinito estender-se, como uma árvore de dores
e penetrar-lhe com mil ramos todos os membros do corpo sagrado,
todas as faculdades da alma santa. Entregue assim inteiramente
à sua humanidade, implorando a Deus com tristeza e angústia
indizíveis, prostrou-se por terra. Viu em inumeráveis imagens
todos os pecados do mundo, com toda a sua atrocidade, tomou todos
sobre si e ofereceu-se na sua oração, para dar satisfação à
justiça do Pai Celestial, pagando com os sofrimentos toda essa
dívida da humanidade para com Deus. Satanás, porém, que se movia
no meio de todos os horrores, em figura terrível e com um riso
furioso, enraivecia-se cada vez mais contra Jesus e, fazendo
passar-lhe diante da alma visões sempre mais horrorosas, gritou
diversas vezes à humanidade de Jesus: "Que? Tomarás também isto
sobre ti? Sofrerás também castigo por este crime? Como podes
satisfazer por tudo isto?”
Veio, porém, um estreito feixe de luz, da região onde o sol está
entre as dez e onze horas, descendo sobre Jesus e nela vi surgir
uma fileira de Anjos, que Lhe transmitiram força e ânimo. A outra
parte da gruta estava cheia de visões horrorosas dos nossos
pecados e de maus espíritos, que O insultavam e agrediam; Jesus
aceitou tudo; o seu Coração, O único que amava perfeitamente a
Deus e aos homens, nesse deserto cheio de horrores, sentia com
dilacerante tristeza e terror a atrocidade e o peso de todos esses
pecados. Ai! vi tantas coisas ali! Nem um ano chegaria para
contá-Ias!
3. Tentações da parte de Satanás
Quando essa multidão de culpas e pecados acabou de passar diante
da alma de Jesus, como um mar de horrores e após se haver ele
oferecido, como sacrifício de expiação por tudo e chamado sobre
si toda a onda de penas e castigos, suscitou-lhe Satanás
inumeráveis tentações, como outrora no deserto; apresentou até
numerosas acusações contra o puóssimo Salvador. "Que!" disse ele,
"Queres tomar tudo isto sobre ti e não és puro? Vê isto e aquilo
e mais isto!" E então desenrolou, diante dos olhos imaculados da
Divina Vítima, com impertinência infernal, uma multidão de
acusações inventadas. Acusou-O das faltas dos discípulos, dos
escândalos que tinham dado, das perturbações que Ele trouxe ao
mundo, renunciando aos costumes antigos. Satanás procedeu como
o mais hábil e astuto fariseu. Acusou-O de ter sido a causa da
matança dos inocentes por Herodes, dos perigos e sofrimentos de
seus pais no Egito; acusou-O de não ter salvado da morte a João
Batista, de ter desunido famílias, protegido pessoas de má fama,
de não ter curado certos doentes, de ter causado prejuízo aos
habitantes de Gergesa, porque permitiu aos possessos que
entornassem a sua doma de bebidas e porque causou a morte da manada
de porcos no lago. Imputou-Lhe as faltas de Maria Madalena, por
não lhe ter impedido a recaída no pecado; acusou-O de ter
abandonado a família e de ter dissipado o bem alheio; numa
palavra, tudo de que Satanás podia ter acusado, na hora da morte,
um homem comum, que tivesse feito tais ações externas, sem motivos
sobrenaturais: tudo apresentou o tentador à alma abatida de
Jesus, para amedrontá-Ia e desanimá-Ia; pois ignorava que Jesus
era o Filho de Deus e tentou-O somente como ao mais justo dos
homens. Nosso Salvador deixou predominar a sua humanidade de tal
modo, que quis sofrer também aquelas tentações, que assaltam
mesmo os homens que têm uma morte santa, pondo em dúvida o valor
interno das suas obras boas. Jesus permitiu, para esvaziar todo
o cálice da agonia, que o tentador, ignorando-Lhe a divindade,
Lhe apresentasse todas as suas obras de caridade como outras
tantas dívidas, ainda não pagas, à graça divina. O tentador
censurou-O de querer expiar as culpas de outros, Ele, que
não tinha méritos e que tinha ainda de satisfazer à justiça
divina, pelas graças de tantas obras que considerava boas. A
divindade de Jesus permitiu que o inimigo lhe tentasse a
humanidade, como podia tentar um homem que quisesse atribuir às
suas obras um valor próprio, além daquele único que podem ter,
da união com os méritos da morte redentora de nosso Senhor e
Salvador. O tentador apresentou-Lhe assim todas as suas obras de
amor como atos privados de todo mérito, que antes O constituíam
devedor de Deus, porque, segundo o acusador, o seu valor provinha
antecipadamente, por assim dizer, dos méritos da Paixão, ainda
não consumada e cujo valor infinito Satanás ainda não conhecia;
portanto, não teria Jesus ainda satisfeito, na opinião do
tentador, pelas graças recebidas para essas obras.
Apresentou-lhe títulos de dívida por todas essas boas obras e
disse, aludindo a estas: "Ainda deves por esta obra e por aquela".
Finalmente desenrolou mais um título de dívida diante de Jesus,
afirmando que tinha recebido e gasto o preço da venda da
propriedade de Maria Madalena em Magdalum; disse a Jesus: "Como
ousaste desperdiçar o bem alheio, prejudicando assim aquela
família?" Vi a apresentação de tudo a cuja expiação Jesus se
oferecera e senti com Ele todo o peso das numerosas acusações que
o tentador levantou contra Ele; pois, entre os pecados do mundo
que o Salvador tomou sobre si, vi também os meus inumeráveis
pecados e do circulo das tentações veio também a mim, um como rio
de acusações, nas quais se me patentearam todos os meus pecados
de atos e omissões. Eu, porém, olhava sempre para o meu Esposo
celeste, durante essa apresentação dos pecados, gemendo e rezando
com Ele e virava-me também com Ele para os Anjos consoladores.
Ai! O Senhor torcia-se como um verme, sob o peso da dor e das
angústias!
Durante todas essas acusações de Satanás contra o puríssimo Salvador, somente com grande esforço consegui conter-me; mas,
quando levantou a acusação da venda da propriedade de Madalena,
não pude mais me conter e gritei-lhe: "Como podes chamar dívida
o preço da venda dessa propriedade? Eu mesma vi o Senhor, com essa
quantia, que lhe foi entregue por Lázaro, para obras de
misericórdia, remir 27 pobres desamparados dos cárceres de Tirza
(6).”
(6) Essas palavras referem-se a uma visão, na qual viu Jesus remir
27 devedores insolventes, detidos numa cadeia que tinha uma
guarnição romana.
A princípio estava Jesus de joelhos, rezando tranqüilamente; mais
tarde, porém, se lhe assustou a alma, à vista da atrocidade dos
inumeráveis crimes e da ingratidão dos homens para com Deus;
assaltaram-no angústia e dor tão veementes, que suplicou
tremendo: "Meu Pai, se for possível, passe este cálice longe de
mim. Meu Pai, tudo vos é possível: afastai este cálice de mim".
Depois sossegou e disse: "Não se faça, porém, a minha vontade,
mas a vossa". A sua vontade e a do Pai eram uma só; mas entregue
à fragilidade da natureza humana, por amor, Jesus tremia à vista
da morte.
4. Jesus volta para junto dos três, Apóstolos
Vi a caverna rodeada de formas assustadoras; todos os pecados,
toda a iniqüidade, todos os vícios, todos os tormentos, toda a
ingratidão, que o angustiavam; vi os terrores da morte, o horror
que sentia, como homem, diante do imenso sofrimento expiatório,
assaltando-O e oprimindo-O, sob as formas de espectros hediondos.
Ele caiu por terra, torcendo as mãos; cobria-O o suor da angústia;
tremia e estremecia. Levantou-se, mas os joelhos trementes quase
não O suportavam; estava inteiramente desfigurado e
irreconhecível, os lábios pálidos, o cabelo eriçado. Eram cerca
de dez horas e meia, quando se levantou e se arrastou para junto
dos três Apóstolos, cambaleando, caindo a cada passo, banhado num
suor frio. Subiu à esquerda da caverna, e, passando por cima
desta, chegou a um aterro, onde os discípulos estavam adormecidos, encostados um ao outro, abatidos pela fadiga, tristeza,
inquietação e tentação. Jesus aproximou-se-Ihes, como um homem
angustiado a quem o terror impele para junto dos amigos e como
um bom pastor que, transtornado profundamente, vai para junto do
rebanho, que sabe, ameaçado de um perigo próximo; pois não
ignorava que também eles se achavam em angústia e tentação. Vi
as horrorosas visões cercarem-no também nesse curto caminho.
Encontrando os Apóstolos a dormir, torceu as mãos e caiu por terra
ao lado deles, cheio de tristeza e fraqueza, dizendo: "Simão,
dormes?" Então acordaram e levantaram-se; e Ele dis se, no seu
desamparo: "Então não pudestes velar uma hora comigo?". Quando
o viram tão assustado e desfigurado, pálido, cambaleando, banhado
em suor, tremendo e estremecendo, quando O ouviram queixar-se com
voz quase extinta, não sabiam mais o que pensar; se não Ihes tivesse aparecido cercado de certa luz que bem conheciam, não o teriam
reconhecido. Disse-lhe João: "Mestre, que tendes? Quereis que
chame os outros Apóstolos? Devemos fugir?" Jesus, porém,
respondeu: "Ainda que vivesse mais 33 anos, ensinando e curando
enfermos, não chegaria ao que tenho de cumprir até amanhã. Não
chames os oito; deixaios ali, porque não poderiam ver-me nesta
aflição, sem escandalizar-se; cairiam em tentação,
esquecer-se-iam de muitas coisas e duvidariam de mim. - Vós,
porém, que vistes o Filho do homem transfigurado, podeis vê-Io
também no seu desamparo; mas vigiai e orai para não cairdes em
tentação. O espírito é pronto, mas a carne é fraca".
Disse-o, referindo-se a eles e a si mesmo. Quis induzí-Ios, com
essas palavras, à perseverança e dar-Ihes a saber a luta da sua
natureza humana contra a morte e a causa daquela fraqueza.
Falou-Ihes ainda sobre outras coisas, sempre abismado naquela
tristeza e ficou cerca de um quarto de hora com eles. Em angústia
mais e mais crescente voltou à gruta; eles, porém, estenderam para
Ele as mãos chorando e caíram uns nos braços dos outros,
perguntando: "Que é isto? Que lhe aconteceu? Está tão desolado'"
Começaram a rezar, com as cabeças cobertas, cheios de tristeza.
Tudo que acabo de contar, deu-se em mais ou menos uma hora e meia,
depois que entraram no horto das Oliveiras. É verdade que Jesus
disse, segundo o Evangelho: "Não podeis velar uma hora comigo?"
Mas não se o pode entender ao pé da letra, segundo o nosso modo
de falar, os três Apóstolos, que vieram com Jesus, tinham rezado
no começo; mas depois adormeceram; conversando entre si com pouca
confiança, caíram em tentação. Os oito Apóstolos, porém, que
ficaram na entrada do horto, não dormiram. A angústia que se
mostrara nessa noite em todos os discursos de Jesus, tornou-os
muito perturbados e inquietos; erravam pelas vizinhanças do monte
das Oliveiras para procurar um lugar de refúgio, em caso de
perigo.
Em Jerusalém houve nessa noite pouco movimento; os judeus estavam
nas suas casas, ocupados com os preparativos para a festa. Os
acampamentos dos forasteiros que tinham vindo para a festa, não
estavam nas vizinhanças do monte das Oliveiras. Enquanto eu ia
e voltava nesses caminhos, vi discípulos e amigos de Jesus,
andando e conversando; pareciam inquietos, à espera de qualquer
desgraça. A Mãe do Senhor, com Madalena, Marta, Maria, mulher de
Cleofas, Maria Salomé e Salomé, assustadas por boatos, foram com
amigas para fora da cidade, afim de ter notícias de Jesus. Ali
as encontraram Lázaro, Nicodemos, José de Arimatéia e alguns
parentes de Hebron e procuraram sossegáIas; pois, tendo eles
mesmos conhecimento, pelos discípulos, dos tris tes discursos
feitos por Jesus no Cenáculo, foram pedir informações a alguns
fariseus conhecidos e destes souberam que não constava nada sobre
tentativas imediatas contra o Senhor. Disseram por isso às mulheres que o perigo não podia ser grande, que tão próximo da festa
não poriam as mãos em Jesus. É que não sabiam da traição de Judas.
Maria, porém, contou-Ihes o estado perturbado deste nos últimos
dias ao sair do Cenáculo e advertiu-os de que com certeza fora
trair ao Senhor, apesar das repreensões, pois era um filho da
perdição. Depois voltaram as santas mulheres à casa de Maria, mãe
de Marcos.
5. Anjos mostram a Jesus a enormidade dos seus sofrimentos
e consolam-nO
Voltando à gruta, com toda a tristeza que o acabrunhava, Jesus
prostrou-se por terra, com os braços estendidos e rezou ao Pai
Celeste. Mas passou-lhe na alma nova luta, que durou três quartos
de hora. Anjos vieram apresentar-Lhe em grande número de visões,
tudo o que devia aceitar de sofrimentos, para expiar o pecado.
Mostraram-lhe a beleza do homem antes do primeiro pecado, como
imagem de Deus e quanto o pecado o tinha rebaixado e desfigurado.
Mostraram-lhe como o primeiro pecado fora a origem de todos os
pecados, a significação e essência da concupiscência e seus
terríveis efeitos sobre as faculdades da alma e do corpo do homem,
como também a essência e a significação de todas as penas
contrárias à concupiscência. Mostraram-lhe os seus sofrimentos
expiatórios primeiramente como sofrimentos de corpo e alma,
suficientes para cumprir todas as penas impostas pela justiça
divina à humanidade inteira, por toda a má concupiscência; e
depois como sofrimento, que, para dar verdadeira satisfação,
castigou os pecados de todos os homens na única natureza humana
que era inocente: na humanidade do Filho de Deus, O qual, para
tomar sobre si, por amor, a culpa e o castigo da humanidade
inteira, devia também combater e vencer a repugnância humana
contra o sofrimento e a morte. Tudo isto lhe mostraram os Anjos,
ora em coros inteiros, com séries de imagens, ora separados, com
as imagens principais; vi as figuras dos Anjos mostrando com o
dedo elevado as imagens e percebi o que disseram, mas sem lhes
ouvir as vozes.
Não há língua que possa descrever o horror e a dor que invadiram
a alma de Jesus, ao ver esta terrível expiação; pois não viu
somente a significação das penas expiatórias contrárias à
concupiscência pecaminosa, mas também a significação de todos os
instrumentos do martírio, de modo que O horrorizou, não só a dor
causada pelos instrumentos, mas também o furor pecaminoso
daqueles que os inventaram, a malícia dos que os usavam e a
impaciência daqueles que com eles tinham sido atormentados, pois
pesavam sobre Ele todos os pecados do mundo. O horror desta visão
foi tal, que lhe saiu do corpo um suor de sangue.
Enquanto a humanidade de Jesus sofria e tremia, sob esta terrível
multidão de sofrimentos, notei um movimento de compaixão nos
Anjos; houve uma pequena pausa: parecia-me que desejavam
ardentemente consolá-Io e que apresentavam as súplicas diante do
trono de Deus. Era como se houvesse uma luta instantânea entre
a misericórdia e a justiça de Deus e o amor que se estava
sacrificando. Foi-me mostrada uma imagem de Deus, não como em
outras ocasiões, num trono, mas numa forma luminosa menos
determinada; vi a pessoa do Filho retirar-se na pessoa do Pai,
como que lhe entrando no peito; a pessoa do Espírito Santo saindo
do Pai e do Filho e estando entre Eles; e todos eram um só Deus.
Quem poderá descrever exatamente uma tal visão? Não tive tanto
uma visão com figuras humanas, como uma percepção interna, na qual
me foi mostrado, por imagem, que a vontade divina de Jesus Cristo
se retirava mais para o Pai, para deixar pesar sobre a sua
humanidade todos os sofrimentos, que esta pedia ao Pai que
afastasse; de modo que a vontade divina de Jesus, unida ao Pai,
impunha à sua humanidade todos os sofrimentos que a vontade
humana, pelas súplicas, queria afastar. Vi-O no momento da
compaixão dos Anjos, quando estes desejavam consolar Jesus que,
com efeito, teve neste instante um certo alívio. Depois
desapareceu tudo e os Anjos, com sua compaixão consoladora,
abandonaram o Senhor, cuja alma entrou em novas angústias.
6. Mais imagens de pecados que atormentam o Senhor
Quando o Redentor, no monte das Oliveiras, se entregou, como homem
verdadeiro e real, ao horror humano, à dor e à morte, quando se
incumbiu de vencer esta repugnância de sofrer, que faz parte de
todo o sofrimento, foi permitido ao tentador que lhe fizesse tudo
o que costuma fazer a todo homem que quer sacrificar-se por uma
causa santa. Na primeira agonia Satanás mostrara a Nosso Senhor,
com raivosa zombaria, a enormidade da culpa do pecado, que quisera
tomar a si e levou a audácia ao ponto de afirmar que a vida do
mesmo Redentor não era livre de pecados. Na segunda agonia viu
Jesus a imensidade da Paixão expiatória, em toda a sua realidade
e amargura. Esta apresentação, foi feita pelos Anjos; pois não
compete a Satanás mostrar a possibilidade da expiação, nem convém
que o pai da mentira e do desespero mostre as obras da misericórdia
divina. Tendo, porém, Jesus resistido a todas essas tentações,
pelo abandono completo à vontade do Pai Celeste, foi-Lhe
apresentada à alma uma nova série terrível de visões
assustadoras; a dúvida e inquietação que no coração do homem
precedem a todo o sacrifício, a pergunta amarga: Qual será o
resultado, o proveito deste sacrifício? A visão de um futuro
assustador atormentou-Lhe então o Coração amoroso.
Deus mergulhou o primeiro homem, Adão, num profundo sono, abriulhe o lado, tomou-lhe uma das costelas, formou dela Eva, a mulher,
a mãe de todos os vivos e apresentou-a a Adão. Então disse este:
"Este é o osso dos meus ossos e a carne da minha carne; o homem
deixará pai e mãe, para aderir à sua mulher e serão dois numa só
carne." Do matrimônio foi escrito: "Este sacramento é grande,
digo, porém, em Jesus Cristo e na Igreja;" Pois Jesus Cristo, o
novo Adão, quis também se submeter a um sono, o sono da morte na
Cruz; quis também deixar que lhe abrissem o lado, para que deste
fosse feita a nova Eva, sua esposa imaculada, a Igreja, mãe de
todos os vivos; quis dar-lhe o sangue da redenção, a água da
purificação e o Espírito Santo: os três que dão testemunho na
terra; quis dar-lhe os santos Sacramentos, para que fosse uma
esposa pura, santa e imaculada; quis ser-lhe a cabeça e nós
devíamos ser-lhe os membros, sujeitos à cabeça, devíamos ser os
ossos dos seus ossos, carne da sua carne. Aceitando a natureza
humana, para sofrer a morte por nós, tinha Jesus abandonado pai
e mãe e unira-se a sua esposa, à Igreja; tornou-se uma carne com
ela, alimentando-a com o santíssimo Sacramento do Altar, no qual
se une a nós dia após dia; quis permanecer presente na terra com
sua esposa, a Igreja, até nos unirmos todos a Ele no Céu e disse:
"As portas do inferno não prevalecerão contra ela." Para praticar
esse incomensurável amor para com os pecadores, tornarase homem
e irmão dos pecadores, tomando sobre si a pena de toda a culpa.
Tinha visto com grande tristeza a imensidade desta culpa e da
paixão expiatória e contudo entregara-se voluntariamente à
vontade do Pai celeste, como vítima expiatória. Neste momento,
porém, viu Jesus os sofrimentos, as perseguições, as feridas da
futura Igreja, sua esposa, que estava para remir tão caro, com
o seu próprio sangue: viu a ingratidãq dos homens.
Apresentaram-se-Lhe diante da alma todos os futuros sofrimentos
dos Apóstolos, discípulos e amigos, a Igreja primitiva, tão pouco
numerosa, depois também as heresias e cismas, que nasceram à
medida que a Igreja crescia, repetindo a primeira queda do homem
pelo orgulho e desobediência, pelas diversas formas de vaidade
e falsa justiça. Viu a tibieza, a corrupção e malícia de um número
infinito de cristãos, as mentiras e a esperteza enganadora dos
mestres orgulhosos, os crimes sacrílegos de todos os sacerdotes
viciosos e todas as horríveis conseqüências: A abominação e
desolação do reino de Deus sobre a terra, neste santuário da
humanidade ingrata, o qual estava: para fundar e remir com
indizíveis sofrimentos, pelo preço de seu sangue e sua vida.
Vi passar diante da alma do nosso pobre Jesus, em séries imensas
de visões, os escândalos de todos os séculos, até o nosso tempo
e mesmo até o fim do mundo, em todas as formas do erro doentio,
da intriga orgulhosa, do fanatismo furioso, dos falsos profetas,
da obstinação e malícia herética. Todos os apóstatas, os
heresiarcas, os reformadores de aparência santa, os sedutores e
os seduzidos insultavam e torturavam-na, como se não tivesse
sofrido bastante, nem sido bem crucificado a seu ver e conforme
o desejo orgulhoso e presunção vaidosa de cada um; rasgavam e
partiam, disputando, a túnica sem costuras da Igreja; cada um
queria tê-Lo como Redentor de modo diferente do que se tinha
mostrado no seu amor. Muitos O maltratavam, insultavam, negavam-nO. Viu inúmeros alçarem os ombros e sacudirem a cabeça,
afastando-se dos braços que Ihes estendia para salvá-Ios e
precipitar-se no abismo, que os tragou.
Viu um número infinito de outros, que não ousavam negá-Ia em alta
voz, mas que se afastavam, por desgosto das aflições da Igreja,
como o levita que se afastou do pobre viajante que caíra nas mãos
dos salteadores. Viu-os separar-se de sua esposa ferida, como
filhos covardes e infiéis abandonam as mães de noite, quando a
casa é assaltada por ladrões e assassinos, aos quais por descuido
abriram a porta. Viu-os seguirem os despojos levados ao deserto,
os vasos de ouro e os colares quebrados. Viu-os separados da
videira verdadeira, pousarem sob as videiras silvestres; viu-os
como ovelhas extraviadas, abandonadas aos lobos, conduzidas a mau
pasto por mercenários e não querendo entrar no aprisco do bom
Pastor, que deu a vida por suas ovelhas. Viu-os errarem, sem
pátria, no deserto, não querendo ver a sua cidade, colocada sobre
o monte e que não pode ficar escondida. Viu-os em discórdia,
agitados pelo vento para lá e para cá, nas areias do deserto, mas
sem querer ver a casa de sua esposa, a Igreja fundada sobre a
pedra, com a qual prometeu ficar até o fim do mundo e contra a
qual as portas do inferno não prevalecerão. Não queriam entrar
pela porta estreita, para não baixar a cabeça. Viu-os seguir a
outros, que não entraram no aprisco pela porta verdadeira.
Construíram, sobre a areia, cabanas mudáveis e diferentes umas
das outras, que não tinham nem altar nem sacrifício, porém
cata-ventos nos tetos e suas doutrinas mudavam-nas com os ventos;
contradiziam-se uns aos outros, não se entendiam, nem tinham
estadia permanente. Viu-os destruírem muitas vezes as cabanas,
lançando os destroços contra a pedra angular da Igreja, que ficou
inabalável. Viu muitos que, apesar da escuridão nas suas moradas,
não queriam aproximar-se da luz, posta no candelabro, na casa da
esposa, mas erravam, com os olhos cerrados, em redor do jardim
cercado da Igreja, de cujos perfumes ainda viviam. Estendiam as
mãos a imagens nebulosas e seguiam astros errantes, que os
conduziam a poços sem água e mesmo na margem das fossas, não davam
ouvido à voz do Esposo que os chamava e esfomeados riam-se ainda,
com orgulho arrogante, dos servos e mensageiros, que os
convidavam para o banquete nupcial. Não queriam entrar no jardim,
por temerem os espinhos da cerca-viva. Viu-os o Senhor,
inebriados de amor próprio, morrer de fome, por não ter trigo e
de sede, por não ter vinho; cegos pela sua própria luz, chamavam
de invisível a Igreja do Verbo encarnado. Jesus viu-os todos com
tristeza; quis sofrer por todos que não queriam seguí-Io,
carregando a cruz da Igreja, sua esposa, à, qual se deu no SS.
Sacramento, na sua cidade colocada no cimo do monte, que não pode
ficar escondida, na sua Igreja, fundada sobre a pedra e contra
a qual as portas do inferno não prevalecerão.
Todas estas inumeráveis visões da ingratidão dos homens, do abuso feito da morte expiatória de meu Esposo Celeste, vi-as passar
diante da alma contristada do Senhor, ora variando, ora em
dolorosa repetição; vi Satanás, em diversas figuras
assustadoras, arrancando e estrangulando, diante dos olhos de
Jesus, os homens remidos pelo seu sangue e até mesmo homens
ungidos com o seu santo Sacramento. O Salvador viu com grande
amargura toda a ingratidão, toda a corrupção, tanto dos primeiros
cristãos, como dos que se lhe seguiram, dos presentes e dos
futuros. Entre estas aparições dizia o tentador continuamente à
humanidade do Cristo: "Eis aí, por tal ingratidão queres sofrer?"
Estas imagens passaram, em contínua repetição diante do Senhor
e com tanta impetuosidade, com tanto horror e escárnio pesaram
sobre Jesus, que angústia indizível lhe oprimia a natureza
humana. Jesus Cristo, o Filho do Homem, estendia e torcia as mãos,
caindo como que oprimido e pôs-se de novo de joelhos. A vontade
humana do Redentor travava uma luta tão terrível contra a
repugnância de sofrer tanto por uma raça tão ingrata, que o sangue
lhe saiu do corpo, em grossas gotas de suor e correu em torrentes sobre a terra. Naquela aflição olhou em redor de si como para
pedir socorro e parecia chamar o céu, a terra e os astros do
firmamento por testemunhas de seu sofrimento. Parecia-me ouví-Io
exclamar: "É possível suportar tal ingratidão? Sois testemunhas
do que sofro.”
Então foi como se a lua e as estrelas se aproximassem num instante;
senti nesse momento que se tornava mais claro. Observei então a
lua, o que antes não fizera, e pareceu-me de todo diferente: ainda
não era toda cheia e parecia maior do que em nossa terra. No meio
vi uma mancha escura, semelhante a um disco posto diante dela e
no meio havia uma abertura, pela qual brilhava a luz para o lado
onde a lua ainda não estava cheia. A mancha escura era como um
monte e em redor da lua havia ainda um círculo luminoso, como um
arco-íris.
Jesus, na sua aflição, levantou a voz por alguns momentos, em alto
pranto. Vi os Apóstolos levantarem-se assustados, com as mãos
postas erguidas, escutarem e querendo correr para junto do
Mestre. Mas Pedro reteve a João e Tiago, dizendo: "Ficai, eu vou
lá." Vi-o correr e entrar na gruta. "Mestre, disse ele, que
tendes?", e parou, tremendo, ao vê-Io todo ensangüentado e
angustiado. Jesus, porém, não lhe respondeu e pareceu não lhe
notar a presença. Então voltou Pedro para junto dos outros dois
e suspirava. Por isso Ihes aumentou ainda a tristeza; sentaram-se, velando as cabeças e rezaram entre lágrimas.
Eu, porém, voltei a meu Esposo Celeste, em sua dolorosa agonia.
As imagens hediondas da ingratidão e dos abusos dos homens
futuros, cuja culpa tomara sobre si, a cuja pena se entregara,
arremessaram-se contra Ele, cada vez mais terríveis e impetuosas.
De novo lutou contra a repugnância da natureza humana de sofrer;
diversas vezes o ouvi exclamar: "Meu Pai, é possível sofrer por
todos estes? Pai, se este cálice não pode ser afastado de mim,
seja feita a vossa vontade.”
No meio de todas estas visões de pecados contra a divina
misericórdia, vi Satanás em diversas formas hediondas, conforme
a espécie dos pecados. Ora aparecia como homem alto e negro, ora
sob a figura de tigre, ora como raposa ou lobo, como dragão ou
serpente; não eram, porém, as figuras naturais desses animais,
mas apenas as feições salientes da respectiva natureza,
misturadas com outras formas horríveis. Não havia nada ali que
representasse figura completa de uma criatura, eram somente
símbolos de decadência, de abominação, de horror, da contradição
e do pecado: símbolos do demônio. Essas figuras diabólicas
empurravam, arrastavam, despedaçavam e estrangulavam, à vista de
Je sus, inumeráveis multidões de homens, por cujo resgate, das
garras de Satanás, o Salvador entrara no doloroso caminho da Cruz.
No princípio não vi tão freqüentemente a serpente, mas no fim a
vi gigantesca, com uma coroa na cabeça, arremessar-se com força
terrível contra Jesus e com ela, de todos os lados, exércitos de
todas as gerações e classes. Armados de todos os meios de
destruição, instrumentos de martírio e armas, lutavam ora uns
contra os outros, ora com terrível raiva contra Jesus. Era um
espetáculo horrível. Carregavam-nO de insultos, maldições e
imundícies, cuspiam-Lhe, batiam-Lhe, traspassavam-nO. As suas
armas, espadas e lanças, iam e vinham, como os manguais dos
debulhadores numa imensa eira; todos desencadeavam a sua fúria
so bre o grão de trigo celeste, caído na terra para nela morrer
e depois alimentar eternamente todos os homens com o pão da vida,
com fruto imensurável.
Vi Jesus no meio destas coortes furiosas, entre as quais me
parecia haver muitos cegos; estava tão alterado, como se
realmente sentisse os golpes dos agressores. Vi-O cambalear de
um lado para o outro; ora caia, ora de novo se levantava. Vi a
.serpente no meio de todos esses exércitos, instigando-os
continuamente; batia ora aqui, ora ali, com a cauda,
estrangulando, despedaçando e devorando todos que com ela
derrubava.
Tive a explicação de que a multidão dos exércitos que lutavam
contra Nosso Senhor, era o número imenso daqueles que maltrataram
de muitíssimos modos a Jesus Cristo, seu Redentor, real e
substancialmente presente no Santíssimo Sacramento, com
divindade e humanidade, com corpo e alma, com carne e sangue,
debaixo das espécies de pão e vinho. Avistei entre esses inimigos
de Jesus todas as espécies de profanadores do SS. Sacramento,
penhor vivo de sua contínua presença pessoal na Igreja Católica.
Vi com horror todos esses ultrajes, desde o descuido,
irreverência, abandono, até o desprezo, abuso e sacrilégios os
mais horrorosos, o culto dos ídolos deste mundo, orgulho e falsa
ciência e por outro lado, heresia e descrença, fanatismo, ódio
e sangrenta perse guição. Vi entre esses inimigos de Jesus todas
as espécies de homens: até cegos e aleijados, surdos e mudos e
mesmo crianças; cegos, que não queriam ver a verdade; coxos, que
por preguiça não queriam seguí-IO; surdos, ,que não queriam
ouvir-Lhe as exortações e advertências; mu dos, que não queriam
lutar por Ele nem com a palavra; crianças, desviadas na companhia
dos pais e mestres mundanos e esquecidos de Deus, nutridos pela
concupiscência, ébrias de ciência falsa, sem gosto das coisas
divinas ou já perdidas por falta delas, para sempre.
Entre as crianças, cujo aspecto me afligiu particularmente,
porque Jesus amava tanto as crianças, vi também muitos meninos
ajudantes da Santa Missa, pouco instruídos, mal educados e
desrespeitosos, que nem respeitavam a Jesus Cristo na mais santa
cerimônia. Em parte eram culpados os mestres e os reitores das
Igrejas. Vi com espanto que também muitos sacerdotes, de todas
as hierarquias contribuíam para o desrespeito de Jesus no SS.
Sacramento, até alguns que se tinham por crentes e piedosos. Quero
mencionar, entre estes infelizes, apenas uma classe: vi ali
muitos que acreditavam, adoravam e ensinavam a presença de Deus
vivo no SS. Sacramento, mas na sua conduta não Lhe manifestavam
fé e respeito: pois descuidavam-se do palácio, do trono, da
tenda, da residência, dos ornamentos do Rei do Céu e da Terra,
isto é, não cuidavam da Igreja, do altar, do tabernáculo, do
cálice, do ostensório de Deus vivo e dos vasos, utensílios,
ornamentos, vestes para uso e enfeite da casa do Senhor. Tudo
estava abandonado e se desfazia em poeira, mofo e imundície de
muitos anos; o culto divino era celebrado com pressa e descuido
e se não profanado internamente, pelo menos degradado
exteriormente. Tudo isso, porém, não era conseqüência de verdadeira pobreza, mas de indiferença, preguiça, negligência,
preocupação com interesses vãos deste mundo, muitas vezes também
de egoísmo e morte espiritual, pois vi tal descuido também em
Igrejas ricas e abastadas; vi muitos até, nas quais o luxo mundano
e inconveniente e sem gosto substituíra os magníficos e
veneráveis monumentos de uma época mais piedosa, para esconder,
sob aparências mentirosas e cobrir com um disfarce brilhante o
descuido, a imundície, a desolação e o desperdício. O que faziam
os ricos, por vaidosa ostentação, logo imitaram estupidamente os
pobres, por falta de simplicidade. Não pude deixar de
pensar nesta ocasião na Igreja do nosso pobre convento, cujo belo
altar antigo, esculpido artisticamente em pedra, tinham também
coberto com uma construção de madeira e pintura tosca, imitando
mármore, o que sempre me fez muita pena.
Todas essas ofensas feitas a Jesus no SS. Sacramento, vi-as aumentadas por numerosos reitores das Igrejas, que não tinham esse
sentimento de justiça de repartir pelo menos o que possuíam com
o Salvador, presente sobre o Altar, que se entregou por eles à
morte e se Ihes deu todo inteiro no SS. Sacramento. Em verdade,
mesmo os mais pobres estavam muitas vezes melhor instalados nas
suas casas do que o Senhor nas Igrejas. Ai! Como esta falta de
hospitalidade entristecia Jesus, que se Ihes tinha dado como
alimento espiritual! Pois não é preciso ser rico para hospedar
aquele que recompensa ao cêntuplo o copo de água oferecido a quem
tem sede. Oh! Quanta sede tem ele de nós! Não terá acaso motivo
de queixar-se de nós, se o copo estiver sujo e a água também? Por
tais negligências vi os fracos escandalizados, o SS. Sacramento
profanado, as Igrejas abandonadas, os sacerdotes desprezados e
em pouco tempo passou essa negligência também às almas dos fiéis
daquelas paróquias: não guardavam mais puro o tabernáculo do
coração, para receber nele o Deus vivo, do que o tabernáculo dos
altares. Para agradar e adular os príncipes e grandes deste mundo,
para satisfazer-Ihes os caprichos e desejos mundanos, vi tais
administradores de Igrejas fazer todos os esforços e sacrifícios;
mas o Rei do Céu e da Terra estava deitado, como o pobre Lázaro,
diante da porta, desejando em vão as migalhas de caridade que
ninguém lhe dava. Tinha apenas as chagas que nós lhe fizemos e
que lhe lambiam os cães, isto é, os pecadores reincidentes, que,
semelhantes a cães, vomitam e depois voltam para comer o vômito.
Se falasse um ano inteiro, não podia contar todas as afrontas
feitas a Jesus e que deste modo conheci. Vi os autores dessas
afrontas agredirem a Nosso Senhor com diferentes armas, conforme
a espécie de seus pecados. Vi clérigos irreverentes, de todos os
séculos, sacerdotes levianos, em pecado, sacrílegos celebrando
o Santo Sacrifício e distribuindo a sagrada Eucaristia; vi
multidões de comungantes tíbios e indignos. Vi homens numerosos
para os quais a fonte de toda a bênção, o mistério de Deus vivo,
se tornara uma palavra de maldição, fórmula de maldição;
guerreiros furiosos e servidores do demônio, profanando os vasos
sagrados e jogando fora as hóstias sagradas ou maltratando-as
horrivelmente e até abusando do Sumo Bem, por uma hedionda e
diabólica idolatria. Ao lado destes brutais e violentos, vi
inúmeras outras impiedades, menos grosseiras, mas do mesmo modo
abomináveis. Vi muitas pessoas, seduzidas por mau exemplo e
ensino pérfido, perderem a fé na presença real de Jesus na
Eucaristia e deixarem de adorar nela humildemente seu Salvador.
Vi nestas multidões grande número de professores indignos, que
se tornaram heresiarcas; lutavam a princípio uns contra os outros
e depois se uniam, para atacar furiosamente a Jesus no SS.
Sacramento, na sua Igreja. Vi um grupo numeroso destes
heresiarcas negar e insultar o sacerdócio da Igreja, contestar
e negar a presença de Jesus Cristo neste mistério do SS.
Sacramento, negar também ter Ele entregue este mistério à Igreja
e havê-Io esta guardado fielmente; pela sedução Lhe arrancaram
do coração um número imenso de homens, pelos quais tinha derramado
o seu sangue. Ai! Era um aspecto horrível: pois vi a Igreja como
éorpo de Jesus, que reunira, pela dolorosa Paixão, os membros
separados e dispersos; vi todas aquelas comunidades e famílias
e todos os seus descendentes, separados da Igreja, serem arrancados, como grandes pedaços de carne, do corpo vivo de Jesus,
ferindo e despedaçando-O dolorosamente.
Ai! Ele os seguia com olhares tão tristes, lastimando-Ihes a
perdição. Ele, que no SS. Sacramento se nos tinha dado como
alimento, para unir ao corpo da Igreja, sua Esposa, os homens
separados e dispersos, viuse despedaçado e dividido nesse mesmo
corpo de sua Esposa, pelos maus frutos da árvore da discórdia.
A mesa da união no SS. Sacramento, sua mais sublime obra de amor,
na qual quis ficar eternamente com os homens, tornara-se, pela
malícia dos falsos doutores, fonte de separação. No lugar mais
conveniente e salutar para união de muitos, na mesa sagrada, onde
o próprio Deus vivo é o alimento das almas, deviam os seus filhos
separar-se dos infiéis e hereges, para não se tornarem réus de
pecado alheio. Vi que deste modo povos inteiros se Lhe arrancaram
do coração, privando-se do tesouro de todas as graças, que Ele
deixara à Igreja. Era horrível vê-Ios separarem-se, só poucos no
princípio, mas esses se voltaram como povos grandes, em
hostilidade uns contra os outros, por estarem separados no
Santíssimo. Por fim vi todos que estavam separados da Igreja,
embrutecidos e enfurecidos, em descrença, superstição, heresia,
orgulho e falsa filosofia mundana, unidos em grandes exércitos,
atacando e devastando a Igreja e no meio deles, a serpente,
instigando e estrangulando-os. Ai! Era como se Jesus se visse e
sentisse despedaçado em inúmeras fibras, das mais delicadas. O
Senhor viu e sentiu nessas angústias toda a árvore venenosa do
cisma, com todos os respectivos ramos e frutos, que continuam a
dividir-se até o fim do mundo, quando o trigo será recolhido ao
celeiro e a palha será lançada ao fogo.
Esta horrorosa visão era tão terrível e hedionda, que meu Esposo
celeste me apareceu e, colocando a mão misericordiosa sobre o meu
peito, disse: "Ninguém viu isto ainda e o teu coração se
despedaçaria de dor, se eu não o sustentasse.”
Vi então o sangue rolando, em largas e escuras gotas, sobre o
pálido semblante do Senhor; o seu cabelo, em geral liso e
repartido no meio da cabeça, estava conglutinado com o sangue,
eriçado e desgrenhado, a barba ensangüentada e em desordem. Foi
depois da última visão, na qual os exércitos inimigos O
despedaçaram, que saiu da caverna, quase fugindo e voltou para
junto dos discípulos. Mas não tinha o andar firme; andava como
um homem coberto de feridas e curvado sob um fardo pesado, como
quem tropeça a cada passo. Chegando junto dos três Apóstolos, viu
que não se tinham deitado para dormir, como da primeira vez;
estavam sentados, as cabeças veladas e apoiadas sobre os joelhos,
posição em que vejo muitas vezes o povo daquele país, quando estão
de luto ou querem rezar. Adormeceram vencidos pela tristeza, medo
e fadiga. Quando Jesus se aproximou, tremendo e gemendo,
acordaram, mas ao vê-Io diante de si, na claridade do luar, com
o peito encolhido, o semblante pálido e ensangüentado, o cabelo
desgrenhado, fitando-os com olhar triste, não O reconheceram por
alguns momentos, com a vista fatigada, pois estava indizivelmente
desfigurado. Jesus, porém, estendeu os braços; então se
levantaram depressa e, segurando-O sob os braços, ampararam-nO
carinhosamente. Disse-Ihes que no dia seguinte os inimigos O
matariam; dai a uma hora O prenderiam, conduziriam ao tribunal,
seria maltratado, insultado, açoitado e finalmente entregue à
morte mais cruel. Com grande tristeza lhes disse tudo o que teria
de sofrer até a tarde do dia seguinte e pediu-Ihes que consolassem
sua Mãe e Madalena. Esteve assim diante deles por alguns minutos,
falando-lhes; mas não responderam, porque não sabiam o que dizer,
de tal modo as palavras e o aspecto do Mestre os tinha assustado;
pensavam até que estivesse em delírio. Quando, porém, quis voltar
à gruta, não tinha mais força para andar; vi que João e Tiago O
conduziram e, depois de ter entrado na gruta, voltaram. Eram cerca
de onze horas e um quarto.
Durante essas angústias de Jesus, vi a SS. Virgem também cheia
de tristeza e angústia, em casa de Maria, mãe de Marcos. Estava
com Madalena e a mãe de Marcos, num jardim ao lado da casa;
prostrara-se de joelhos, sobre uma pedra. Diversas vezes perdeu
os sentidos exteriormente, pois viu grande parte dos tormentos
de Jesus. Já enviara mensageiros a Jesus, para ter notícias, mas
não podendo, na sua ânsia, esperar-lhes a volta, saiu com Madalena
e Salomé para o vale de Josafá. Ela andava velada e estendia muitas
vezes as mãos para o monte das Oliveiras, porque via em espírito,
Jesus banhado em suor de sangue e ela parecia, com as mãos
estendidas, querer enxugar-lhe o rosto. Vi Jesus, comovido por
esses caridosos impulsos da alma de sua Mãe, olhar para a direção
em que Maria se achava, como para pedir socorro. Vi esses
movimentos de compaixão em forma de raios luminosos, que emanavam
de um para o outro. O Senhor pensou também em Madalena,
percebeu-lhe comovido a dor e olhou também para ela; por isso
mandou também aos discípulos que a consolassem, pois sabia que,
depois do amor de sua Mãe, o de Madalena era o mais forte e tinha
também visto o que ela teria de sofrer por Ele e que nunca mais
O ofenderia pelo pecado.
Neste momento, cerca de 11 horas e 15 minutos, voltaram os oito
Apóstolos à cabana de folhagem, no horto de Getsêmani; ali
conversaram ainda e finalmente adormeceram. Estavam muito.
assustados e desanimados, em veementes tentações. Cada um tinha
procurado um lugar para esconder-se e perguntaram uns aos outros
inquietamente: "Que faremos, se o matarem? Abandonamos tudo
quanto tínhamos e ficamos pobres e expostos ao escárnio do mundo.
Fiamo-nos inteiramente n’Ele e ei-Lo agora tão impotente e
abatido, que não podemos mais procurar n’Ele consolação." Os
outros discípulos, porém, erraram no princípio de um lado para
outro e depois de terem ouvido várias notícias das últimas
palavras assustadoras de Jesus, retiraram-se, pela maior parte,
para Betfagé.
7. Visões consoladoras; Anjos confortam Jesus
Vi Jesus rezando ainda na gruta e lutando contra a repugnância
da natureza humana ao sofrimento. Estava exausto de fadiga e
abatido e disse: "Meu Pai, se é a vossa vontade, afastai de mim
este cálice. Mas faça-se a vossa vontade e não a minha.”
Então se abriu o abismo diante d’Ele e apareceram-Lhe os primeiros
degraus do Limbo, como na extremidade de uma vista luminosa. Viu
Adão e Eva, os patriarcas, os profetas, os justos, os parentes
de sua Mãe e João Batista, esperando-Lhe a vinda, no mundo
inferior, com um desejo tão violento, que essa vista Lhe
fortificou e reanimou o coração amoroso. Pela sua morte devia
abrir o Céu a esses cativos; devia tirá-Ios da cadeia onde
languesciam à espera.
Tendo visto, com profunda emoção, esses Santos dos tempos
antigos, apresentaram-Lhe os Anjos, todas as multidões de
bem-aventurados do futuro que, juntando seus combates aos méritos
da Paixão do Cristo, deviam unir-se por Ele ao Pai Celeste. Era
uma visão indizivelmente bela e consoladora. Todos agrupados,
segundo a época, classe e dignidade, passaram diante do Senhor,
vestidos dos seus sofrimentos e obras. Viu a salvação e
santificação sair, em ondas inesgotáveis, da fonte da Redenção,
aberta pela sua morte. Os Apóstolos, os discípulos, as virgens
e santas mulheres, todos os mártires, confessores e eremitas, papas e bispos, grupos numerosos de religiosos, em uma palavra: um
exército inteiro de bem-aventurados apresentou-se-Lhe à vista.
Todos traziam na cabeça coroas triunfais e as coroas variavam de
forma, de cor, de perfume e de virtude, conforme a diferença dos
respectivos sofrimentos, combates e vitórias que Ihes tinham
proporcionado a glória eterna. Toda a vida e todos os atos, todos
os méritos e toda força, assim como toda glória e todo o triunfo
dos Santos provinham unicamente de sua união aos méritos de Jesus
Cristo.
A ação e influência recíproca que todos estes Santos exerciam uns
sobre os outros, a maneira por que hauriam a graça de uma única
fonte, do santo Sacramento e da Paixão do Senhor, apresentava um
espetáculo singularmente tocante e maravilhoso. Nada parecia
casual neles; as obras, o martírio, as vitórias, a aparência e
os vestuários: tudo, apesar de bem diferente, se fundia numa
harmonia e unidade infinitas; e essa unidade na variedade era
produzida pelos raios de um único sol, pela Paixão de Nosso
Senhor, do Verbo feito carne, o qual era a vida, a luz dos homens,
que ilumina as trevas, as quais não a compreenderam.
Foi a comunidade dos futuros Santos que passou diante da alma do
Salvador, que se achava colocado entre o desejo dos patriarcas
e o cortejo triunfal dos bem-aventurados futuros; esses dois
grupos unindo-se e completando-se de certo modo, cercavam o
coração do Redentor, cheio de amor, como uma coroa de vitória.
Essa visão, inexprimivelmente tocante, deu à alma de Jesus um
pouco de consolação e força. Ah! Ele amava tanto seus irmãos e
suas criaturas, que teria aceito de boa vontade todos os
sofrimentos, aos quais se entregaria pela redenção até de uma só
alma. Como essas visões se referissem ao futuro, pairavam em certa
altura.
Mas essas imagens consoladoras desapareceram e os Anjos
mostraram-lhe a Paixão, mais perto da terra, porque já estava
próxima. Estes Anjos eram muito numerosos. Vi todas as cenas
apresentadas muito distintamente diante dele, desde o beijo de
Judas, até à última palavra na Cruz; vi lá tudo o que vejo nas
minhas meditações da Paixão, a traição de Judas, a fuga dos
discípulos, os insultos perante Anás e Caifás, a negação de Pedro,
o tribunal de Pilatos, a decisão diante de Herodes, a flagelação,
a coroação de espinhos, a condenação à morte, o transporte da
cruz, o encontro com a Virgem SS. no caminho do Calvário, o desmaio, os insultos de que os carrascos O cobriram, o véu de
Verônica, a crucifixão, o escárnio dos fariseus, as dores de
Maria, de Madalena e João, a lançada no lado, em uma palavra, tudo
passou diante da alma de Jesus, com as menores circunstâncias.
Vi como o Senhor, na sua angústia, percebia todos os gestos,
entendia todas as palavras, percebia tudo que se passava nas
almas. Aceitou tudo voluntariamente, sujeitou-se a tudo por amor
dos homens. O que mais O entristecia era ver-se pregado na Cruz
num estado de nudez completa, para expiar a impudicícia dos
homens: implorava com instância a graça de livrar-se daquele
opróbrio e que pelo menos Lhe fosse concedido um pano para cingir
os rins; e vi ser atendido, não pelos carrascos, mas por um homem
compassivo. Jesus viu e sentiu profundamente a dor da Virgem SS.,
que pela união interior aos sofrimentos do seu Divino Filho, caíra
sem sentidos nos braços das amigas, no Vale de Josafá.
No fim das visões da Paixão, Jesus caiu por terra, como um
moribundo; os Anjos e as visões da Paixão desapareceram; o suor
de sangue brotava mais abundante; vi-O escoar-se através da veste
amarela encostado ao corpo. A mais profunda escuridão reinava na
caverna. Vi então um Anjo descendo para junto de Jesus: era maior,
mais distinto e mais semelhante ao homem do que os que eu vira
antes. Estava vestido como um sacerdote, de uma longa veste
flutuante, ornada de franjas e trazia na mão, diante de si, um
pequeno vaso, da forma do cálice da última Ceia. Na abertura deste
cálice se via um pequeno corpo oval, do tamanho de uma fava, que
espargia uma luz avermelhada. O Anjo estendeu-Lhe a mão direita
e pairando diante de Jesus, levantou-se; pôs-lhe na boca aquele
alimento misterioso e fê-Lo beber do pequeno cálice luminoso.
Depois desapareceu.
Tendo aceitado o cálice dos sofrimentos e recebido nova força,
Jesus ficou ainda alguns minutos na gruta, mergulhado em
meditação tranqüila e dando graças ao Pai Celeste. Estava ainda
aflito, mas confortado de modo sobrenatural, a ponto de poder
andar para junto dos discípulos sem cambalear e sem se curvar sob
o peso da dor. Estava ainda pálido e desfigurado, mas o passo era
firme e decidido. Enxugara o rosto com um sudário e pusera em ordem
os cabelos, que lhe pendiam sobre os ombros, úmidos de suor e
conglutinados de sangue.
Quando saiu da gruta, vi a lua como dantes, com a mancha singular
que formava o centro e a esfera que a cercava, mas a claridade
dela e das estrelas era diferente da que tinham dantes, por
ocasião das grandes angústias do Senhor. A luz era agora mais
natural. Quando Jesus chegou junto aos discípulos, estavam estes
deitados, como na primeira vez, encostados ao muro do aterro, com
a cabeça velada e dormiam. O Senhor disse-lhes que não era tempo
de dormir, mas que deviam velar e orar. "Esta é a hora em que o
Filho do homem será entregue nas mãos dos pecadores, disse,
levantai-vos e vamos: o traidor está perto; melhor lhe seria que
não tivesse nascido." Os Apóstolos levantaram-se assustados e
olharam em roda de si inquietos. Depois de um pouco tranqüilo,
Pedro disse calorosamente: "Mestre, vou chamar os outros, para
vos defendermos." Mas Jesus mostrou-Ihes a alguma distância, no
vale, do outro lado da torrente de Cedron, uma tropa de homens
armados que se aproximavam com archotes e disse-Ihes que um deles
O tinha traído. Os Apóstolos julgavam-no impossível. O Mestre
falou-lhes ainda com calma, recomendando-Ihes de novo que
consolassem a Virgem SS. e disse: "Vamos ao encontro deles. Vou
entregar-me sem resistência nas mãos dos meus inimigos." Então
saiu do horto das Oliveiras, com os três Apóstolos e foi ao
encontro dos soldados, no caminho que ficava entre o jardim e o
horto de Getsêmani.
Quando a SS. Virgem voltou a si, nos braços de Madalena e Salomé,
alguns discípulos, que viram aproximar-se os soldados, vieram a
ela e reconduziram-na à casa de Maria, mãe de Marcos. Os soldados
tomaram um caminho mais curto do que o que Jesus tinha seguido,
vindo do Cenáculo.
A gruta onde Jesus tinha rezado nessa noite, não era aquela na
qual estava acostumado a rezar, no monte das Oliveiras. Ia
geralmente a uma caverna mais afastada, onde, depois de ter
maldito a figueira infrutífera, rezara numa grande aflição, com
os braços estendido e apoiados sobre um rochedo.
Os traços do corpo e das mãos ficaram-Lhe impressos na pedra e
foram mais tarde venerados; mas não se sabia então em que ocasião
o prodígio fora feito. Vi diversas vezes semelhantes impressões
feitas em pedras, seja por profetas do Velho Testamento, seja por
Jesus, Maria ou algum dos Apóstolos; vi também as do corpo de Santa
Catarina de Alexandria, no monte Sinai. Essas impressões não
parecem profundas, mas semelhantes às que ficam, pondo-se a mão
sobre uma massa consistente.
8. Judas e sua tropa
Judas não esperava que a traição tivesse as conseqüências que se
lhe seguiram. Queria ganhar a recompensa prometida e mostrar-se
agradável aos fariseus, entregando-Ihes Jesus, mas não pensara
no resultado, na condenação e crucifixão do Mestre; não ia tão
longe em seus desígnios. Era só o dinheiro que lhe preocupava o
espírito e já havia muito tempo travara relações com alguns
fariseus e Saduceus astutos que, com lisonjas, o incitavam à
traição. Estava aborrecido da vida fatigante, errante e
perseguida, que levavam os Apóstolos. Nos últimos meses furtara
continuamente as esmolas, de que era depositário e a cobiça,
irritada pela liberalidade de Madalena quando derramou perfumes
sobre Jesus, impeliu-o finalmente ao crime. Tinha sempre esperado
um reino temporal de Jesus e uma posição brilhante e lucrativa
nesse reino; como, porém, não o visse aparecer, procurava
amontoar fortuna. Via crescerem as fadigas e perseguições e
pretendia manter boas relações com os poderosos inimigos de
Jesus, antes de chegar o fim; pois via que Jesus não se tornaria
rei, enquanto que a dignidade do Sumo Sacerdote e a importância
dos seus confidentes lhe produziam viva impressão no espírito.
Aproximava-se cada vez mais dos agentes fariseus, que o
lisonjeavam incessantemente, dizendo-lhe, num tom de grande
certeza, que dentro de pouco tempo dariam cabo de Jesus. Ainda
recentemente tinham vindo procurá-Io diversas vezes em Betânia.
O infeliz entregava-se cada vez mais a esses pensamentos
criminosos e multiplicava nos últimos dias as diligências para
que os príncipes dos sacerdotes se decidissem a agir. Estes ainda
não queriam começar e tratavam-no com visível desprezo. Diziam
que não havia tempo suficiente antes da festa e que qualquer
tentativa causaria apenas desordem e tumulto durante a festa.
Somente o sinédrio deu atenção às propostas do traidor. Depois
da recepção sacrílega do SS. Sacramento, Satanás apoderou-se
totalmente de Judas, que saiu decidido a praticar o crime.
Primeiro procurou os negociadores, que sempre o tinham lisonjeado
até ali e que o receberam ainda com amizade fingida. Foi ter com
outros, entre os quais Caifás e Anás; este último, porém, usou
para com ele de um tom altivo e sarcástico. Estavam hesitantes,
não contavam com o êxito, porque não tinham confiança em Judas.
Vi o império infernal dividido: Satanás queria o crime dos
Judeus, desejava a morte de Jesus, do santo Mestre que fizera
tantas conver sões, do Justo a quem tanto odiava; mas sentia
também não sei que medo interno da morte dessa inocente vítima,
que não queria subtrair-se aos perseguidores; invejava-O por
sofrer inocentemente. Vi-O assim excitar de um lado o ódio e furor
dos inimigos de Jesus e de outro lado insinuar a alguns destes
que Judas era um patife, um miserável, que não se podia fazer o
julgamento antes da festa, nem reunir número suficiente de
testemunhas contra Jesus.
No sinédrio houve longa discussão sobre o que se devia fazer
e, entre outras coisas, perguntaram a Judas: "Podemos prendê-Lo?
Não terá homens armados consigo?" E o traidor respondeu:, "Não,
está só com os onze discípulos; está desanimado e os onze são
homens medrosos". Também Ihes disse que era preciso apoderar-se
de Jesus nessa ocasião ou nunca, que não podia esperar mais tempo
para entregá-Lo, porque não voltaria para junto do Mestre, pois,
alguns dias antes, os outros discípulos e Jesus mesmo haviam
evidentemente suspeitado dele; pareciam pressentir-lhe os ardis
e sem dúvida o matariam, se voltasse para o meio deles. Disse-Ihes
ainda que, se não O prendessem agora, escaparia, voltando com um
exército de partidários, para fazer proclamar-se rei. Essas
ameaças de Judas fizeram efeito. Deram-lhe ouvido ao conselho
maldoso e ele recebeu o preço da traição, os trinta dinheiros.
Essas moedas tinham a forma de uma língua, estavam furadas na
parte arredondada e enfiadas, por meio de argolas, numa espécie
tle córrente; traziam certos cunhos.
Judas, ofendido pelo contínuo desprezo e a desconfiança que lhe
manifestavam, sentiu-se impelido pelo orgulho a restituir-Ihes
esse dinheiro ou oferecê-Io ao Templo, para que o tomassem por
um homem justo e desinteressado. Mas recusaram-no, porque era
preço de sangue, que não se podia oferecer ao Templo. Judas viu
quanto o desprezavam e sentiu-o profundamente. Não tinha esperado
provar os frutos amargos da traição já antes de a ter cometido;
mas de tal modo que se havia comprometido com aqueles homens, que
estava nas suas mãos e não podia mais se livrar deles.
Observavam-no de muito perto e não o deixariam sair antes de ter
explicado o caminho a seguir, para apoderar-se de Jesus. Três
fariseus acompanhavam-no, quando desceu a uma sala, onde se
achavam guardas do Templo, que não eram todos judeus, mas gente
de todas as nações. Quando tudo estava combinado e reunido o
número de soldados necessários, Judas correu primeiro ao
Cenáculo, acompanhado de um servo dos fariseus, para Ihes dar
noticia, se Jesus ainda estava ali, por causa da facilidade de
prendê-Io lá, ocupando as portas; devia mandar avisar-lhe por um
mensageiro.
Um pouco antes de Judas receber o prêmio da traição, um dos
fariseus saíra, para mandar sete escravos buscar madeira, para
preparar a Cruz de Cristo, no caso que fosse condenado, porque
no dia seguinte não teriam mais tempo, pois começava a festa da
Páscoa. Andaram cerca de um quarto de hora, para chegar ao lugar
onde queriam buscar o madeiro da cruz; estava ali ao longo de um
muro alto e comprido, junto com muitas outras madeiras,
destinadas a construções do Templo; carregaram-no para um lugar
atrás do tribunal de Caifás, afim de prepará-Io. A árvore da cruz
crescera antigamente perto da torrente Cedron, no vale, de
Josafá; mais tarde caíra através do ribeiro e servia de ponte.
Quando Neemias escondeu o fogo santo e os vasos sagrados na
piscina Betesda, empregou também este tronco para cobri-Ios,
junto com outra madeira; tirando-o depois de novo, jogaram-no
para o lado, com outra madeira de construção. Em parte foi para
zombar de Jesus, em parte aparentemente por acaso, mas em verdade
unicamente por disposição da Divina Providência, que a Cruz foi
construída de uma forma especial. Sem contar a tábua do título,
a cruz foi feita de cinco diferentes espécies de madeiras. Tenho
visto muitas coisas a respeito da cruz, diversos acontecimentos
e significações, mas tenho esquecido tudo, fora o que acabo de
contar.
Judas, no entanto, voltou e disse que Jesus não estava mais no
Cenáculo, mas havia de estar certamente no monte das Oliveiras,
num lugar onde costumava rezar. Insistiu então que mandassem com
eles somente uma pequena tropa, para que os discípulos, que
espiavam por toda a parte, não suspeitassem e provocassem uma
insurreição. Trezentos soldados deviam ocupar as portas e ruas
de Ofel, bairro ao sul do Templo e o vale Milo, até a casa de Anás,
no monte de Sião, para poder mandar reforço à tropa na volta, caso
o pedisse; pois em Ophel todo o povo baixo aderia a Jesus. O
indigno traidor disse-Ihes ainda que tomassem muito cuidado, para
Jesus não Ihes escapar, mencionando que este já muitas vezes se
tinha tomado invisível, por meio de artifícios misteriosos,
fugindo assim aos companheiros na montanha. Fez-Ihes também a
proposta de amarrá-Io com uma corrente e servir-se de certas
práticas mágicas, para que Jesus não rompesse as correntes. Os
Judeus, porém, recusaram desdenhosamente esse conselho, dizendo:
"Não nos podes impor nada; uma vez que esteja em nossas mãos, está
seguro.”
Judas combinou com a tropa entrar ele primeiro no horto, para
beijar e saudar Jesus, como se voltasse do negócio, como amigo
e discípulo; depois deviam entrar os soldados, para prender o
Mestre. Procederia como se os soldados tivessem chegado na mesma
hora, só por acaso; fugiria depois, como os outros discípulos,
fingindo não saber de nada. Talvez pensasse também que houvesse
um tumulto, no qual os Apóstolos se defenderiam e Jesus fugiria,
como fizerajá diversas vezes. Assim pensava nos momentos de
raiva, sentindo-se ofendido pelo desprezo e desconfiança dos
inimigos de Jesus, mas não porque se arrependesse da negra ação
ou por ter compaixão de Jesus; pois tinha-se entregue
inteiramente a Satanás. Também não queria consentir que os
soldados, entrando depois, trouxessem algemas e cordas, nem que
o acompanhassem, homens de má reputação. Satisfizeram-lhe
aparentemente os desejos, mas procederam como julgavam dever
proceder com um traidor em quem não se pode fiar e que se joga
fora, depois de ter feito o serviço. Foram dadas ordens expressas
aos soldados de vigiar bem Judas e não o deixar afastar-se antes
de ter prendido e amarrado Jesus; pois, como já tivesse recebido
a remuneração, era de recear-se que o patife fugisse com o
dinheiro e assim não poderiam prender Jesus de noite ou prenderiam outro em seu lugar, de modo que resultariam desta empresa
apenas tumultos e desordens, no dia da Páscoa.
A tropa escolhida para prender Jesus compunha-se de vinte
soldados, alguns da guarda do Templo, os outros soldados de Anás
e Caifás. Estavam vestidos quase da mesma forma que os soldados
romanos; usavam capacetes e do gibão lhes pendiam correias em
redor da cintura, como tinham também os soldados romanos.
Distinguiam.se desses principalmente pela barba, pois os romanos
em Jerusalém usavam só suíças, os lábios e queixo tinham imberbes.
Todos os vinte soldados estavam armados de espadas, alguns tinham
apenas lanças. Levavam consigo tochas e braseiras que, fixas
sobre paus, serviam de lanternas; mas ao chegar, traziam acesa
só uma das lanternas. Os judeus queriam mandar antes uma tropa
mais numerosa com Judas, mas abandonaram esse plano, concordando
com ele, objeção do traidor, de que do monte das Oliveiras se podia
ver todo o vale e desse modo uma tropa maior não poderia deixar
de ser vista. Ficou, portanto, a maior parte em Ophel; mandaram
também sentinelas a vários atalhos e diversos lugares da cidade,
para impedir tumultos ou tentativas de salvar Jesus.
Judas marchou à frente dos vinte soldados; mandaram, porém,
seguí-lo a certa distância quatro soldados de má reputação, gente
ordinária, que levavam cordas e algemas. Alguns passos atrás
desses, seguiam aqueles seis agentes, com os quais Judas travara
relações há muito tempo. Havia entre eles um sacerdote de alta
posição e confidente de Anás, outro de Caifás; além desses havia
dois agentes fariseus e dois saduceus, que eram também
herodianos. Todos, porém, eram espiões, hipócritas, aduladores
interesseiros de Anás e Caifás e inimigos ocultos de Jesus, dos
mais maliciosos.
Os vinte soldados seguiram ao lado de Judas, até chegarem ao lugar
onde o caminho passa entre Getsêmani e o horto das Oliveiras; aí
não quiseram deixá-Io avançar sozinho e começaram a discutir com
ele, num tom grosseiro e impertinente.
9. A prisão do Senhor
Quando Jesus saiu do horto, no caminho entre Getsêmani e o horto
das Oliveiras, apareceu na entrada desse caminho, à distância de
vinte passos, Judas com os soldados, que ainda estavam
discutindo. Pois Judas queria, separado dos soldados,
aproximar-se de Jesus, como amigo; eles deviam depois entrar como
por acaso, aparentemente sem Ele saber; mas os soldados
seguraram-no, dizendo: "Assim não camarada, não nos fugirás antes
de termos preso o Galileu." Avistando depois os oito Apóstolos,
que ao ouvir, o barulho se aproximaram, chamaram os quatro
soldados para reforçar-se. Judas, porém, não consentiu que esses
o acompanhassem e discutiu veementemente com eles. Quando Jesus
e os três Apóstolos viram, à luz da lanterna, esse tropel ruidoso,
com as armas nas mãos, Pedro quis atacá-Ios à força e disse:
"Senhor, os oito de Getsêmani estão também lá adiante: Vamos
atacar esses soldados". Jesus, porém, mandou-o ficar quieto e
retirou-se alguns passos para além do caminho, onde havia um lugar
coberto de relva. Judas, vendo o seu plano transtornado,
enraiveceu-se. Quatro dos discípulos saíram do horto Getsêmani,
perguntando o que havia acontecido. Judas começou a conversar,
querendo sair do embaraço por meio de mentiras, mas os soldados
não o deixaram afastar-se. Aqueles quatro eram Tiago, o Menor,
Filipe, Tomé e Natanael; este e um dos filhos do velho Simeão e
alguns outros tinham vindo para junto dos oito Apóstolos, em
Getsêmani, uns enviados pelos amigos de Jesus, para ter notícias
d’Ele, outros impelidos pela inquietação e curiosidade. Além
desses quatro, andavam também os outros discípulos pelas
vizinhanças, espiando de longe e sempre prontos a fugir.
Jesus, porém, aproximou-se alguns passos da tropa e disse em voz
alta e clara: "A quem estais procurando?" Os chefes dos soldados
responderam: "Jesus de Nazaré." E Jesus disse: "Sou eu." Apenas
tinha dito estas palavras, caíram os soldados uns sobre os outros,
como que atacados de convulsões. Judas, que estava perto, ficou
ainda mais desconcertado no seu plano; e pareceu querer
aproximar-se de Jesus, mas o Senhor levantou a mão, dizendo:
"Amigo, para que vieste?" Judas disse, cheio de confusão, alguma
coisa sobre negócio realizado. Jesus, porém, disse-lhe mais ou
menos as seguintes palavras: "Oh! Melhor te fora não ter nascido."
Mas não me lembro mais das palavras exatas. No entretanto
tinham-se levantado os soldados e aproximaram-se de Jesus e dos
seus, esperando o sinal do traidor: que beijasse a Jesus. Pedro,
porém, e os outros discípulos, cercaram Judas com ameaças,
chamandoo de ladrão e traidor. O infeliz quis livrar-se deles por
meio de mentiras, mas não conseguiu justificar-se, pois os
soldados defenderam-no contra os discípulos, dando assim
testemunho contra ele.
Jesus, porém, disse mais uma vez: "A quem procurais?" Virando se
para Ele, responderam de novo: "Jesus de Nazaré." Então disse:
"Sou eu; já vos tenho dito que sou eu; se, pois, procurais a mim,
deixai aqueles." A palavra "sou eu", caíram os soldados de novo
com convulsões e contorções, como as têm os epiléticos e Judas
foi de novo cercado pelos Apóstolos, que estavam extremamente
furiosos contra ele. Jesus disse aos soldados: "Levantai-vos."
Levantaram-se assustados e como os Apóstolos ainda discutissem
com Judas e também se dirigissem contra os soldados, estes
atacaram os Apóstolos, livrando-Ihes Judas das mãos e impelindo-o
com ameaças a dar o sinal combinado, pois tinham ordem de prender
só aquele a quem beijasse. Judas aproximou-se então de Jesus,
abraçou e beijou-O, dizendo, "Deus te salve, Mestre." E Jesus
disse: "Judas, écom um beijo que atraiçoas o Filho do Homem?"
Então os soldados cercaram Jesus e os soldados, avançando,
puseram mãos em Nosso Senhor. Judas quis fugir, mas os Apóstolos
detiveram-no e atacaram os soldados, gritando: "Mestre,
feriremos com as espadas?" Pedro, porém, mais excitado e zeloso,
puxou da espada e golpeou Malcho, criado do Sumo Sacerdote, que
o quis repelir e cortou-lhe um pedaço da orelha, de modo que
Malcho caiu por terra, aumentando deste modo ainda a confusão.
.
A situação nesse momento do veemente ataque de Pedro era a
seguinte: Jesus preso pelos soldados, que O queriam amarrar;
cercavam-na, num largo círculo, os soldados, um dos quais,
MaIcho, foi prostrado por Pedro. Outros soldados estavam ocupados
em repelir os discípulos, que se aproximaram ou em perseguir
outros que fugiram. Quatro dos discípulos andavam pelo lado do
monte e só se avistavam de vez em quando, a grande distância. Os
soldados estavam em parte um pouco desanimados pelas quedas, em
parte não ousavam perseguir seriamente os discípulos, para não
enfraquecerem demasiadamente a tropa que cercava Jesus. Judas,
que quis fugir logo depois do beijo traidor, foi detido a certa
distância por alguns discípulos, que o cobriram de injúrias. Mas
os seis agentes, que só então se aproximaram, livraram-no das mãos
dos cristãos indignados. Os quatro soldados, em roda de Jesus,
estavam ocupados com as cordas e algemas, seguravam-na e iam
amarrá-Ia.
Tal era a situação, quando Pedro golpeou Malcho e Jesus ao mesmo
tempo disse: "Pedro! Embainha a tua espada, pois quem se serve
da espada, perecerá pela espada. Ou pensas que eu não podia pedir
a meu Pai que me mandasse mais de doze legiões de Anjos? Então
não devo beber o cálice que meu Pai me apresentou? Como se
cumpririam as Escrituras, se assim não ,se fizesse?" Disse aos
soldados: "Deixai-me curar este homem". Aproximou-se de MaIcho,
tocou-lhe na orelha, rezando e ficou sã. Estavam, porém, em roda
os esbirros, os soldados e os seis agentes, que O insultaram,
dizendo aos soldados: "Ele tem contrato com o demônio; a orelha
por feitiço parecia ferida e por feitiço sarou.”
Então Ihes disse Jesus: "Viestes a mim, armados de espadas e
paus, a prender-me como um assassino. Todos os dias tenho
ensinado no Templo, no meio de vós e não ousastes pôr a mão em
mim; mas esta é a vossa hora, a hora das trevas." Eles, porém,
mandaram amarrá-Ia e insultaram-nO, dizendo:. "A nós não nos
pudeste jogar por terra com teu feitiço." Do mesmo modo falaram
os soldados: "Acabaremos com as tuas práticas de feiticeiro,
etc." Jesus respondeu ainda algumas palavras, mas não sei mais
o que foi; os discípulos, porém, fugiram para todos os lados. Os
quatro soldados e os seis fariseus não tinham caído e portanto
também não se tinham levantado, o que sucedeu, como me foi
revelado, porque estavam inteiramente nas redes de Satanás, do
mesmo modo que Judas, que também não caíra, apesar de estar no
meio dos soldados; todos os que caíram e se levantaram,
converteram-se depois e tornaram-se cristãos. O cair e levantar
era símbolo da conver são. Esses soldados não puseram a mão em
Jesus, mas apenas O cercaram; MaIcho converteu-se logo depois da
cura, de modo que só por causa da disciplina continuou o serviço;
já nas horas seguintes, durante a Paixão de Jesus, fazia o papel
de mensageiro entre Maria e os outros amigos de Jesus, para dar
notícias do que se passava.
Os soldados amarraram Jesus com grande barbaridade e com a brutalidade de carrascos, por entre contínuos insultos e escárnios
dos fariseus. Eram pagãos da classe mais baixa e vil; tinham o
peito, os braços e joelhos nus; na cintura usavam uma faixa de
pano e na parte superior do corpo, gibão sem mangas, ligado nos
lados com correias. Eram de estatura baixa, mas fortes e muito
ágeis, de cor parda-ruiva, como a dos escravos do Egito.
Amarraram Jesus de uma maneira cruel, com as mãos sobre o peito,
prendendo sem compaixão o pulso da mão direita por baixo do
cotovelo do braço esquerdo e o pulso da mão esquerda por baixo
do cotovelo do braço direito, com cordas novas e duras que lhe
cortavam a carne. Passaram-lhe em redor do corpo um cinturão
largo, no qual havia pontas de ferro e argolas de fibra ou vime,
nas quais amarraram-Lhe uma espécie de colar, no qual havia pontas
e outros corpos pontiagudos, para ferir; desse colar saiam, como
uma estola, duas correias cruzadas sobre o peito até o cinturão,
ao qual foram fortemente apertadas e ligadas. Fixaram ainda, em
diversos pontos do cinturão, quatro cordas compridas, pelas quais
podiam arrastar Jesus para lá e para cá, conforme lhes ditava a
maldade. Todas essas cordas e correias eram novas e pareciam
preparadas de propósito, desde que começaram a pensar em prender
Jesus.
4
Jesus conduzido a Anás e Caifás
1.
2.
3.
4.
Maus tratos que sofreu a caminho da cidade
Lamentações dos habitantes de Ofel
Preparativos dos inimigos de Jesus
Uma vista geral sobre a Situação em Jerusalém àquela hora
5. Jesus diante de Anás
6. Jesus é conduzido de Anás a Caifás
7. O Tribunal de Caifás
8. Jesus diante de Caifás
9. Jesus é escarnecido e maltratado em casa de Caifás
10. A negação de Pedro
11. Maria no tribunal de Caifás
12. Jesus no cárcere
13. Judas aproxima-se da casa do tribunal
14. O julgamento de Jesus na madrugada
15. Desespero de Judas
Jesus conduzido a Anás e Caifás
1. Maus tratos que sofreu a caminho da cidade
Depois de acesas algumas lanternas, o cortejo se pôs em marcha.
A frente marchavam dez soldados; depois seguiam os esbirros,
arrastando Jesus pelas cordas, atrás vinham, insultando-O e
escarnecendo-O, os fariseus e no fim os restantes 10 soldados,
que formavam a retaguarda. Os discípulos andavam ainda pelas
vizinhanças, como fora de si; João, porém, seguia a pouca
distância os últimos soldados e os fariseus mandaram prendê-lo.
Voltaram por isso alguns soldados, correndo, para segurá-Io, mas
ele pôs-se a fugir e, como o segurassem pelo sudário que tinha
em volta do pescoço, abandonou-o nas mãos dos soldados e escapou.
Já tinha despido o manto antes, vestindo só uma túnica arregaçada
e sem mangas, para poder fugir mais ligeiramente. O pescoço,
cabeça e braços tinha-os envolvido numa faixa estreita de pano,
como os Judeus costumam usar.
Os soldados arrastavam e maltratavam Jesus da maneira mais cruel
e praticavam muitas maldades, só para agradar e adular desse modo
baixo aos seis agentes farisaicos, que eram cheios de ódio e
maldade contra Jesus. Conduziram-nO pelo caminho incômodo, por
todos os sulcos, sobre as pedras e pela lama. Puxavam as cordas
compridas com força, escolhendo para si o melhor caminho; assim
Jesus tinha de seguir onde as cordas o arrastavam. Tinham nas mãos
pedaços de cordas nodosas, com que batiam e impeliam Nosso Senhor
para frente, como costumam fazer os carniceiros, levando o gado
ao matadouro; tudo isso faziam entre escárnios e insultos tão
grosseiros, que seria contra a decência repetir-Ihes as palavras.
Jesus ia descalço; além da roupa do corpo, vestia uma túnica de
lã, tecida sem costura e um manto. Os discípulos, como os judeus
em geral, usavam no corpo, sobre as costas e o peito, um
escapulário, constando de duas peças de pano, unidas sobre os
ombros por correias, deixando deste modo descobertos os lados;
cingiam-se com um cinto, do qual pendiam quatro faixas de pano,
as quais, enrolando as coxas, formavam uma espécie de calça. Devo
acrescentar ainda que não vi os soldados apresentarem uma ordem
escrita ou documento de prisão; procederam como se Jesus
estivesse fora da lei e sem direitos.
O cortejo marchou a passo rápido e tendo saído do caminho que passa
entre o horto de Getsêmani e o das Oliveiras, caminhou algum tempo
ao longo do lado oriental de Getsêmani, dirigindo-se a uma
ponte que ali atravessa a torrente Cedron. Jesus, indo com os
Apóstolos ao monte das Oliveiras, não passara por esta ponte, mas
atravessara o Cedron por outra ponte, mais para o sul, tomando
um atalho pelo vale de Josafá. A ponte sobre a qual foi conduzido
pelos soldados, era muito comprida, porque não se estendia
somente sobre o leito do Cedron, que ali passa perto do monte,
mas também a alguma distância, sobre os terrenos desiguais do
vale, formando uma estrada calçada, transitável.
Antes do cortejo chegar à ponte, vi Jesus cair duas vezes por
terra, pelos arrancos cruéis que os soldados davam nas cordas.
Chegando, porém, no meio da ponte, praticaram ainda maior
crueldade. Empurraram o pobre Jesus amarrado, a quem seguravam
pelas cordas, da ponte, que ali tinha a altura de um homem, ao
leito do Cedron e insultaram-nO ainda, dizendo que aí bebesse à
vontade. Foi só por proteção divina que o Redentor não se feriu
mortalmente. Caiu sobre os joelhos e depois sobre o rosto, que
se teria machucado gravemente no leito, que tinha pouca água, se
Ele não o tivesse protegido, estendendo as mãos ligadas. Essas
não estavam mais amarradas no cinto; não sei se foi por
assistência divina ou se os soldados mesmos lhas desamarraram.
As marcas dos joelhos, pés, cotovelos e dedos do Salvador
imprimiram-se, pela vontade de Deus, no lugar em que tocaram, no
fundo rochoso; mais tarde eram veneradas pelos cristãos. Hoje não
se crê mais em tais efeitos; mas vi muitas vezes, em visões
históricas, tais impressões feitas em rochas pelos pés, joelhos
e mãos de patriarcas e profetas, de Jesus, da SS. Virgem e de
outros santos. As rochas eram menos duras e mais crentes do que
os corações dos homens e deram, em tais momentos, testemunho da
impressão que a verdade sobre elas fez.
Eu não tinha visto Jesus beber durante as graves angústias no monte das Oliveiras, apesar da veemente sede; depois, porém, quando
o empurraram no Cedron, eu O vi beber penosamente e recitar a:
passagem profética do salmo que fala em "beber do ribeiro ao lado
do caminho." (Sal. 109,7).
Os soldados que ficaram na ponte, seguravam Jesus sempre pelas
cordas e porque Ihes era demasiadamente dificultoso puxá-Lo para
cima e como a muralha na outra banda impedia que Jesus
atravessasse o ribeiro, voltaram para trás, para o começo da
ponte, arrastando Jesus através do Cedron; ali desceram à margem
e puxaram-nO de costas, pela ribanceira acima. Esses miseráveis
empurraram então ao pobre Jesus pela segunda vez, sobre a longa
ponte, arrastando e arrancando-O para frente, cobrindo-O de
insultos e maldições, empurrões e pancadas. A longa túnica de lã,
ensopada de água, caia-Lhe pesada sobre os ombros; movia-se com
dificuldade e no outro lado da ponte caiu ,de novo por terra.
Levantaram-nO aos arrancos, batendo-Lhe com as cordas nodosas,
arregaçaram-Lhe no cinto o vestido molhado, entre vis escárnios
e insultos; falaram, por exemplo, de arregaçar a veste, para matar
o cordeiro pascal e zombarias semelhantes.
Ainda não era meia noite, quando vi Jesus caminhar, empurrado desumanamente pelos soldados, entre pragas e pancadas, sobre o
pedregulho cortante e pedaços de rochas, através de cardos e
espinheiros. O caminho passava para o outro lado do Cedron; era
estreito e já muito estragado e havia atalhos paralelos a ele,
ora mais acima, ora mais abaixo. Os seis malvados fariseus ficavam
onde o caminho o permitia, sempre perto de Jesus; cada um tinha
na mão um instrumento de tortura, uma vara curta, com ponta aguda,
com a qual Lhe batiam ou, empurrando-O, picavam. Nos lugares por
onde Jesus andava, com os pés descalços e sangrentos, sobre as
pedras cortantes, por urtigas e espinheiros, arrastado pelos
soldados, que andavam nas veredas mais cômodas do lado, o coração
terno do pobre Jesus ainda era ferido pelo malicioso escárnio dos
seis fariseus, que diziam, por exemplo: "Aqui o teu precursor,
João Batista, não te preparou um bom caminho." ou: Aqui não se
cumpre a palavra do profeta Malaquias: "Eis aí mando o meu Anjo
e ele preparará o caminho diante de ti"; ou: "Porque não
ressuscita Ele a João Batista, para preparar-Lhe o caminho?" Tais
palavras escarnecedoras daqueles miseráveis, acompanhadas de
risadas impertinentes dos outros, instigavam também os soldados
a afligirem Jesus com novas crueldades.
Tendo arrastado o Senhor por algum tempo, notaram que diversos
homens se avistavam ao longe, seguindo o cortejo, pois, à notícia
da prisão de Jesus, vieram muitos discípulos de Betfagé e de
outros esconderijos, para ver o que sucedia ao Mestre. À vista
disso, começaram os inimigos de Jesus a recear que aqueles homens
pudessem agredí-los e libertar o preso; fizeram por isso sinais
na direção do arrabalde de Ofel, gritando que Ihes mandassem
reforço, como antes tinham combinado.
O cortejo tinha ainda um caminho de alguns minutos até a porta
que, mais ao sul do Templo, conduzia, através de um arrabalde
pequeno, ao monte Sião, onde moravam Anás e Caifás, quando vi sair
dessa porta um pelotão de 50 soldados, para reforçar a guarda de
Jesus. Marchavam em três grupos: o primeiro de dez, o último de
quinze homens; esses contei, o do meio tinha, portanto, 25.
Traziam diversas lanternas e avançavam muito barulhentos e
impertinentes, dando gritos altos, como para anunciar a sua vinda
aos soldados do cortejo e dar-Ihes os parabéns pela vitória.
Aproximaram-se com grande vozeria. No momento em que o primeiro
grupo se juntou ao cortejo de Jesus, vi Malcho e alguns outros
da retaguarda aproveitarem a desordem, para se afastarem
furtivamente, dirigindo-se de novo ao monte das Oliveiras.
Quando esse destacamento saiu ao encontro do outro cortejo, à luz
das lanternas e com grande gritaria, dispersaram-se os discípulos
que tinham aparecido nos arredores. Vi, porém, a SS. Virgem e nove
mulheres, impelidas pelo medo, virem de novo ao vale de Josafá.
Estavam com ela, Marta, Madalena, Maria, filha de Cleofas, Maria
Salomé, Maria Marcos, Suzana, Joana Chusa, Verônica e Salomé.
Estavam ao sul de Getsêmani, defronte daquela parte do monte das
Oliveiras, onde há outra gruta, na qual Jesus, em outras ocasiões,
costumava rezar. Vi com elas também Lázaro, João Marcos, como
também o filho de Verônica e de Simeão. Esse estivera também com
os oito Apóstolos em Getsêmani e passara no meio dos soldados em
tumulto. Trouxeram a notícia às santas mulheres. Nesse momento
ouviram a gritaria e avistaram as lanternas das duas tropas, que
se encontravam. A SS. Virgem perdeu então os sentidos, caindo nos
braços das companheiras, que se retiraram com ela a certa
distância, para, depois de passado o cortejo, levá-Ia à casa de
Maria Marcos.
2. Lamentações dos habitantes de Ofel
Os cinqüenta soldados faziam parte de uma tropa de 300 homens,
que haviam ocupado de improviso as portas e ruas de Ofel e
arredores; pois Judas, o traidor, prevenira o Sumo Sacerdote que
os habitantes de Ofel, na maior parte pobres operários,
jornaleiros, carregadores de água e lenha, a serviço do Templo,
eram os partidários mais convictos de Jesus e que era para recear
que fizessem tentativas de livrá-Lo, ao ser conduzido por lá. O
traidor bem sabia que Jesus tinha ali muitas vezes ensinado,
consolado, socorrido e curado muitos dos pobres obreiros. Foi
também ali que Jesus se demorou, por ocasião da viagem de Betânia
a Hebron, depois da morte de S. João Batista, para consolar os
amigos deste; nessa estadia em Ofel, Jesus curara muitos
operários e jornaleiros, feridos no desabamento do aqueduto e da
grande torre de Silo. A maior parte dessa pobre gente reuniu-se,
depois da vinda do Espírito Santo, à primeira comunidade cristã;
quando depois os cristãos se separaram dos judeus e fundaram
várias colônias da comunidade, erigiramse tendas e cabanas dali
por todo o vale, até o monte das Oliveiras. Naquele tempo era
também ali o campo de ação de Estevão. Ofel é uma colina cercada
de muralhas, situada ao sul do Templo e habitada na maior parte
por jornaleiros pobres; parece-me que não é muito menor do que
Dülmen.
Os habitantes de Ofel foram acordados do sono pelo barulho da
tropa, que ocupou o bairro. Saíram das casas a correr,
apinharam-se nas ruas e diante da porta onde estavam os soldados
e perguntaram o que sucedia; mas foram repelidos para suas casas
com zombarias e rudes insultos pelos soldados, que eram na maior
parte escravos de índole baixa e impertinente. Quando, porém,
tiveram a informação dada por alguns soldados: "trazem preso o
falso profeta, Jesus, o malfeitor; o Sumo Sacerdote quer
acabar-Lhe com as práticas; provavelmente morrerá na cruz",
levantou-se alto pranto e lamentação em toda a vila, acordada do
sono noturno. Essa pobre gente, homens e mulheres, correram pelas
ruas, chorando ou caindo de joelhos, com os braços
estendidos, clamando ao céu ou lembrando em alta voz os
benefícios que Jesus Ihes havia feito. Mas os soldados
fizeram-nos voltar para as casas, empurrando-os e batendo-Ihes;
insultaram também a Jesus, dizendo: "Eis aqui uma prova evidente
de que é um agitador do povo. Não conseguiram, porém, sossegar
inteiramente o povo, temendo também que, com maio res violências,
ficasse ainda mais excitado; contentaram-se, pois, em retê-Io
fora da rua pela qual Jesus devia ser conduzido.
Entretanto aproximava-se cada vez mais da porta de Ofel o cortejo
desumano, que trazia Jesus preso. Nosso Senhor já caíra diversas
vezes e parecia não poder sustentar-se mais em pé. Um soldado
compadecido aproveitou essa ocasião e disse: "Vós mesmos vedes
que Ele não pode mais andar: Se O quiserdes levar vivo à presença
do Sumo Pontífice, soltai-Lhe um pouco as cordas que Lhe prendem
as mãos, para que, caindo, possa apoiar-se. Enquanto o cortejo
parava e os soldados Lhe desligavam um pouco as mãos, outro
soldado misericordioso trouxe Lhe água para beber, de um poço que
se achava na vizinhança. Haurira a água com um saquinho de
cortiça, que os soldados e viajantes nesse país costumam usar
para beber. Jesus disse-Lhe algumas palavras de agradecimento,
citando um trecho de um profeta, sobre "beber água viva" ou
"fontes de água viva", não sei mais exatamente; os fariseus
zombaram e insultaram-nO por isso.
Acusaram-nO de vangloriar-se e de blasfemar, disseram-Lhr que
deixasse tais palavras vaidosas; que não daria mais a beber nem
a um animal, muito menos a um homem. Foi-me, porém, revelado que
aqueles dois homens: um que fez desligar as mãos de Jesus e o outro
que lhe deu a beber, tiveram a graça de uma iluminação interna.
Converteram-se já antes da morte de Jesus e uniram-se, como
discípulos, à comunidade cristã. Eu lhes sabia os nomes e também
os nomes que receberam como discípulos e todas as circunstâncias
da sua conversão; mas é impossível guardar tudo na memória: é uma
imensidade de coisas.
O cortejo continuou então o caminho, maltratando o Senhor; subindo por uma encosta, entrou pela porta de Ofel, onde foi recebido
pelos lamentos pungentes dos habitantes, que tinham por Jesus
grande afeto e gratidão. Só à força podiam os soldados reter a
multidão de homens e mulheres, que se acercaram de todos os lados.
Vinham correndo, prostravam-se de joelhos, estendendo os braços
e exclamando, "Soltai este homem, soltai este homem. Quem nos há
de socorrer, quem nos há de curar e consolar? Entregai-nos este
homem." Era um espetáculo que dilacerava o coração: Jesus,
pálido, desfigurado, ferido, o cabelo em desordem, o vestido
molhado, sujo, mal arregaçado, puxado pelas cordas, empurrado a
pauladas, impelido pelos soldados impertinentes, meio nus, como
se conduz um animal meio morto ao sacrifício; vê-Io arrastado pela
soldadesca arrogante, através da multidão dos habitantes de Ofel,
cheios de gratidão e compaixão, que Lhe estendiam os braços, que
curara de paralisia, que o aclamavam com as línguas a que
restituíra a voz, que olhavam e choravam com os olhos a que dera
a vista.
Já no vale do Cedron se juntara à tropa muita gente de classe
baixa, agitada pelos soldados e provocada pelos agentes de Anás
e Caifás e outros inimigos de Jesus; insultavam e injuriavam a
Jesus e ajudavam também a ultrajar e afrontar o bom povo de OfeI.
Este lugar está situado numa colina; vi o ponto mais alto, no meio
da vila, um largo onde estava empilhada muita madeira de
construção, como no pátio de uma carpintaria. Descendo dali, o
cortejo dirigiu-se a uma porta do muro, pela qual saiu do
arrabalde.
Depois do cortejo ter saído de Ofel, os soldados impediram o povo
de seguí-Io, O cortejo desceu ainda um pouco no vale, deixando
à direita um edifício vasto, restos, se me lembro bem, de obras
de Salomão e à esquerda, o tanque de Betesda. Assim marcharam,
descendo sempre o caminho do vale chamado Milo, depois se
dirigiram um pouco para o sul, subindo as altas escadarias do
monte Sião, para a casa de Anás. Em todo esse caminho continuavam
a insultar e maltratar Jesus e o povo baixo que vindo da cidade
se juntara ao cortejo, instigava os infames soldados a repetirem
as crueldades. Do monte das Oliveiras até a casa de Anás caiu Jesus
sete vezes.
Os habitantes de Ofel ainda estavam cheios de susto e tristeza,
quando outro incidente lhes renovou a compaixão: a Mãe de Jesus,
conduzida pelas santas mulheres e pelos amigos de Jesus, vindo
do vale de Cedron, passou por Ofel, indo à casa de Maria Marcos,
situada ao pé do monte Sião. Quando a boa gente de Ofel a
reconheceu, começou de novo a chorar compadecida; apinhava-se de
tal modo em roda de Maria e dos companheiros, que a Mãe de Jesus
foi quase transportada pela multidão.
Maria, muda de dor, não falava, nem depois de chegar à casa de
Maria Marcos, senão quando chegou mais tarde João; então começou
a perguntar com grande tristeza e João contou-lhe tudo o que vira,
desde a saída do Cenáculo, até aquela hora. Mais tarde levaram
a SS. Virgem à casa de Marta, a leste da cidade, ao pé do palácio
de Lázaro. Conduziram-na novamente por desvios, evitando os
caminhos pelos quais Jesus fora conduzido, para não lhe aumentar
demais a tristeza e dor.
Pedro e João que, a certa distância, tinham seguido o cortejo,
quando este entrou na cidade, recorreram depressa a alguns
conhecidos que João tinha entre os empregados do Sumo Pontífice,
para acharem uma oportunidade de entrar na sala do tribunal, para
onde o Mestre devia ser levado. Esses conhecidos de João eram uma
espécie de mensageiros do tribunal, que naquela hora receberam
ordem de percorrer a cidade, para acordar os anciãos de várias
classes e mais outras pessoas e convocálos para a sessão do
tribunal. Desejavam mostrar-se obsequiosos aos dois Apóstolos,
mas não acharam outro meio senão o de fazer João e Pedro
vestirem-se dos mantos de mensageiros e ajudá-Ios a convocar os
anciãos e revestidos desses mantos, entrarem depois no tribunal
de Caifás; pois ali estava reunido somente gente de classe baixa,
todos subornados, soldados e falsas testemunhas; todos os outros
eram expulsos. Como, porém, José de Arimatéia e Nicodemos e outras
pessoas bem intencionadas também fossem membros do Sinédrio, aos
quais os fariseus talvez deixassem de avisar de propósito, foram
Pedro e João convidar todos esses amigos de Jesus. Judas, no
entanto, como um criminoso desvairado, que a seu lado vê o
demônio, andava vagando pelas encostas íngremes ao sul de
Jerusalém, para onde se jogavam o lixo e todas as imundícies.
3. Preparativos dos inimigos de Jesus
Anás e Caifás tinham imediatamente recebido notícia da prisão de
Jesus. Em suas casas estava tudo em pleno movimento. As salas dos
tribunais estavam iluminadas e todas as respectivas entradas e
passagens guardadas; os mensageiros percorriam a cidade, para
convocar os membros do Conselho, os escribas e todos quantos
tinham voto no tribunal. Muitos, porém, já estavam reunidos com
Caifás, desde a hora da traição de Judas, para esperar o
resultado. Foram também chamados os anciãos das três classes de
cidadãos. Como os fariseus, saduceus e herodianos de todas as
partes do país, tinham chegado para a festa a Jerusalém, já havia
alguns dias e tendo sido combinado havia muito tempo, entre eles
e o Sinédrio, a prisão de Jesus, foram chamados também entre eles
os mais ferozes inimigos do Salvador (Caifás tinha uma lista com
os nomes de todos); receberam a ordem de juntar, cada um no seu
meio, todas as provas e testemunhas contra o Senhor e de trazê-Ias
ao tribunal. Estavam, porém, reunidos em Jerusalém todos os
fariseus e saduceus e outra gente malvada de Nazaré, Cafamaum,
Tirza, Gabara, Jotapata, Silo e outros de lugares, aos quais Jesus
tinha dito tantas vezes a verdade crua, cobrindo-os de vergonha
e confusão, diante de todo o povo; estavam todos cheios de ódio
e raiva e cada um foi então procurar alguns patifes, entre os
peregrinos conterrâneos, que moravam em acampamentos separados,
conforme as várias regiões; subornaram-nos com dinheiro, para
agitarem contra Jesus e O acusarem. Mas, fora algumas evidentes
mentiras e calúnias, não sabiam proferir senão' aquelas
acusações, a respeito das quais Jesus os reduzira inumeráveis
vezes ao silêncio nas sinagogas.
Todos esses homens reuniram-se pouco a pouco no tribunal de Caifás
e mais toda a multidão de inimigos de Jesus, entre os orgulhosos
fariseus e escribas e toda a escória mentirosa de seus partidários
em Jerusalém. Haviajá alguns dos mercadores, furiosos porque
Jesus os expulsara do Templo; muitos doutores vaidosos que Ele
fizera emudecer no Templo, diante do povo e talvez ainda houvesse
alguns que não Lhe podiam perdoar tê-los convencido de erros
quando, menino de doze anos, ensinara pela primeira vez no Templo.
Entre os inimigos de Jesus ali reunidos havia pecadores
impenitentes, que Ele não quisera curar da doença, pecadores
reincidentes, que depois da cura, de novo adoeceram; jovens
vaidosos, que o Mestre não aceitara como discípulos; caçadores
de heranças, furiosos por Ele ter dividido entre os pobres tantos
bens que esperavam possuir; criminosos, cujos camaradas
convertera; libertinos e adúlteros, cujas amantes reconduzira ao
caminho da virtude; homens que já se rejubilavam de herdar
riquezas, cujos proprietários foram por Ele curados da doença;
e muitos vis aduladores, capazes de toda a maldade, muitos
instrumentos de Satanás, cujos corações odiavam tudo quanto era
santo e, portanto, mais ainda, o Santo dos santos. Essa escória
de uma grande parte do povo judaico, reunida para a festa, foi
posta em movimento, excitada pelos inimigos principais de Jesus
e afluía de todos os lados ao palácio de Caifás, para acusar
falsamente de todos os crimes ao verdadeiro Cordeiro pascal de
Deus, que tomara sobre si os pecados do mundo; vinham manchá-Lo
com os efeitos dos pecados que tomara sobre si, suportando e
expiando-os.
Enquanto esse lodo do povo judaico se agitava, para enlamear o
Salvador Imaculado, aproximavam-se também muitas pessoas
piedosas e amigos de Jesus, acordados pelo tumulto e
entristecidos pela terrível notícia; não estavam iniciados nas
intenções secretas dos inimigos, e quando ouviam e choravam, eram
enxotados, quando se calavam, olhavam-nos de canto. Outros, mais
fracos, bem intencionados e outros meio convencidos, se
escandalizavam ou caiam em tentações, duvidando de Jesus. O
número dos que ficaram firmes na fé, não era grande; aconteceu
como ainda acontece hoje, que muitos querem ser bons cristãos,
enquanto lhes convém, mas que se envergonham da cruz onde ela não
é bem vista. Já no principio, porém, muitos se retiraram abatidos
e calados; pois estavam enojados do processo injusto, da acusação
infundada, dos insultos e ultrajes vis e revoltantes e também
comovidos pela paciência resignada do Salvador.
4. Uma vista geral sobre a Situação em Jerusalém àquela hora
Terminadas as numerosas cerimônias e orações, tanto públicas como
particulares, acabados os preparativos para a festa, a vasta
cidade populosa e os extensos acampamentos dos peregrinos
pascais, nos arredores, estavam mergulhados em profundo sono e
descanso, quando veio a notícia da prisão de Jesus, excitando
tanto inimigos como amigos do Senhor. De todos os pontos da cidade
se põem em movimento os convocados pelos mensageiros do Sumo
Sacerdote. Correm, aqui ao claro luar, acolá à luz de lanternas,
pelas ruas de Jerusalém, as quais de noite, pela maior parte,
estão escuras e desertas; pois em geral se passa a vida das
famílias nos pátios interiores, para onde também dão as janelas.
Todos aqueles homens caminham para Sião, de cuja eminência brilha a luz das lanternas e ressoa grande vozeria. Ouve-se ainda,
cá e lá, bater às portas dos vestíbulos para acordar os dormentes.
Em muitas partes da cidade há tumulto, barulho e gritaria;
abrem-se as portas aos que batem, pergunta-se o que há e
obedece-se à ordem de ir a Sião. Curiosos e criados seguem, para
trazer depois notícias dos acontecimentos aos que ficam em casa.
Ouve-se o fechar de portas e o puxar barulhento de ferrolhos e
trancas. O povo é medroso e receia uma agitação. Cá e lá saem
pessoas das casas, pedindo informações a conhecidos que passam
ou esses entram apressadamente em casa de amigos; ouvem-se aí
muitas conversas maliciosas, como em semelhantes ocasiões,
também hoje em dia, são bastante comuns, dizem, por exemplo:
"Agora Lázaro e a irmã vão ver com quem travaram amizade. Joana
Chusa, Suzana, Maria, mãe de João Marcos e Salomé
arrepender-se-ão do procedimento que tiveram. Como deve agora
Seráfia se humilhar diante do marido, Sirach, que tantas vezes
a tem censurado por causa das relações com o Galileu! Todo o bando
dos partidários deste agitador fanático olhava com compaixão para
os que não os acompanhavam, mas agora muitos não saberão onde se
esconder. Agora não se apresenta ninguém que lhe estenda mantos
e véus ou ramos de palmeira sob os pés do jumento. Esses
hipócritas, que sempre querem ser melhores do que os outros, bem
merecem cair agora na suspeita, pois todos estão implicados na
causa do Galileu. Isto tem raízes mais longas do que se pensa.
Eu queria saber como Nicodemos e José de Arimatéia se hão de haver;
há muito que se desconfia deles, dão-se muito com Lázaro, mas são
uns espertos. Agora há de esclarecer-se tudo, etc. Desse modo se
ouve falar muita gente, que tem ódio contra certas famílias,
especialmente contra aquelas mulheres que creram em Jesus e desde
então lhe manifestaram publicamente a fé.
Em outras partes o povo recebe as notícias de maneira mais digna;
alguns se assustam e outros choram sozinhos ou procuram
ocultamente um amigo que pense como eles, para desafogar o
coração. Poucos, porém, se atrevem a manifestar compaixão franca
e resolutamente.
Não é, porém, em toda a cidade que reina a excitação, mas apenas
onde os mensageiros levam a chamada para o tribunal, onde os
fariseus procuram as falsas testemunhas e especialmente no
entroncamento das ruas que conduzem a Sião. É como se em
diferentes partes de Jerusalém se alumiassem faíscas de fúria e
raiva que, correndo pelas ruas, se tinissem a outras que
encontrassem e, cada vez mais fortes e densas, se derramassem
finalmente, como um rio lúgubre de fogo, no tribunal de Caifás
sobre Sião. Em algumas partes da cidade reina ainda silêncio, mas
também ali já começa a pouco o alarme.
Os soldados romanos não tomam parte; mas os guardas estão
reforçados e as tropas reunidas; observam atentamente o que
acontece. Nos dias da Páscoa estão sempre muito quietos, por causa
do grande concurso do povo, mas ao mesmo tempo sempre prontos e
de sobreaviso. O povo que percorre as ruas, evita os pontos onde
estão os guardas; pois contraria muito aos judeus farisaicos ter
de responder ao grito da sentinela. Os Sumos Sacerdotes
certamente informaram antes a Pilatos o motivo porque ocuparam
Ofel e uma parte de Sião com os seus soldados; mas eles desconfiam
uns dos outros. Pilatos também não dorme; recebe informações e
dá ordens. A esposa está deitada no leito, dormindo
profundamente, mas está inquieta, geme e chora, como opressa por
pesadelos; dorme, mas aprende muitas coisas, mais do que Pilatos.
Em nenhuma parte da cidade se manifesta tanta compaixão como em
Ofel, entre os pobres escravos do Templo e os jornaleiros que
habitam essa colina. A dolorosa nova surpreendeu-os tão
repentinamente, no meio da noite silenciosa; a crueldade
despertou-os do sono: aí passara o santo Mestre, o benfeitor que
os curara e consolara, passara como uma horrível visão noturna,
ferido e maltratado; depois se Ihes concentrou novamente a
compaixão na Mãe dolorosa de Jesus, passando pelo meio deles, com
as companheiras. Ai! Que espetáculo triste, a Mãe dilacerada pela
dor e as amigas de Jesus, obrigadas a percorrer as ruas, inquietas
e tímidas, à hora insólita da meia noite, refugiando-se de uma
casa amiga à outra! Diversas vezes se vêm obrigadas a esconder-se
num canto das casas, para deixar passar um grupo de impertinentes;
outras vezes são insultadas como mulheres notívagas;
freqüentemente ouvem ditos maliciosos dos transeuntes, raras
vezes uma palavra de compaixão para com Jesus. Chegadas afinal
ao abrigo, caem abatidas por terra, chorando e torcendo as mãos,
todas igualmente desconsoladas e sem forças; sustentam ou abraçam
umas as outras, ou sentam-se, em dor silenciosa, apoiando sobre
os joelhos a cabeça velada. Batem à porta, todas escutam em
silêncio e medo; batem devagar e timidamente: não é um inimigo;
abrem com receio: é um amigo ou um criado de um amigo de seu Senhor
e Mestre; rodeiam-no, pedindo notícias e ouvem falar de novos
sofrimentos; a compaixão não as deixa ficar em casa, saem de novo
à rua, para se informar, mas voltam sempre com crescente tristeza.
A maior parte dos Apóstolos e discípulos andam vagando medrosos
pelos vales em redor de Jerusalém e escondem-se nas caver nas do
monte das Oliveiras. Cada um se assusta à aproximação do outro;
pedem notícias em voz baixa e cada ruído de passos lhes
interrompem as tímidas conversas. Mudam freqüentemente de
paradeiro e separadamente se aproximam de novo da cidade. Outros
procuram, furtivamente, conhecidos entre os conterrâneos
peregrinos, nos acampamentos, para pedir informações ou
mandam-nos à cidade, para trazerem notícias. Outros sobem ao
monte das Oliveiras, espiando inquietos o movimento das lanternas
e escutando o barulho em Sião, interpretam tudo de mil diferentes
modos e descem de novo ao vale, para ter qualquer informação
certa.
O silêncio da noite é cada vez mais interrompido pelo barulho em
torno do tribunal de Caifás. Essa região é iluminada pela luz das
lanternas e dos archotes. Nos arredores da cidade ressoa o mugido
dos numerosos animais de carga ou de sacrifício, que tantos
peregrinos de fora trouxeram para os acampamentos; como ressoa
inocente e comovedor o balir desamparado e humilde dos
inumeráveis cordeiros, que amanhã hão de ser imolados no Templo!
Mas um só é imolado, porque Ele mesmo quis e não abre a boca, como
a ovelha que é conduzi da ao matadouro; e como um cordeiro, que
emudece diante de quem o tosa, assim se cala o Cordeiro pascal,
puro e sem mancha, - Jesus Cristo.
Sobre todo esse quadro se estende um céu sinistro e singularmente
impressionante: a lua caminha ameaçadora, escurecida por
estranhas manchas; dir-se-ia estar alterada e horrorizada, como
se tivesse medo de tomar-se cheia, pois nessa ocasião Jesus já
estará morto. Fora da cidade porém, no íngreme vale de Hinon, anda
vagando Judas Iscariotes, o traidor, - incitado pelo demônio,
chicoteado pela consciência, fugindo da própria sombra,
solitário, sem companheiro, em lugares malditos e sem caminhos,
em pântanos lúgubres, cheios de lixo e imundícies; milhares de
espíritos maus andam por toda a parte, desnorteando os homens e
impelindo-os ao pecado. O inferno está solto e incita todos
ao pecado: o fardo pesado do Cordeiro aumenta. A raiva de Satanás
multiplica-se, semeando desordem e confusão. O Cordeiro tem sobre
si todo o fardo; Satanás, porém, quer o pecado e pois que não cai
em pecado esse justo, a quem em vão tentou seduzir, quer pelo menos
que os inimigos que O perseguem, pereçam no pecado.
Os Anjos, porém, vacilam entre tristeza e alegria; desejariam
suplicar diante do trono de Deus a permissão de socorrer a Jesus,
mas só podem admirar e adorar o milagre da justiça e misericórdia
divina, que já existia, desde a eternidade, no Santíssimo do céu
e começa a realizar-se agora no tempo, pois também os Anjos crêem
em Deus Pai, Todo-Poderoso, Criador do Céu e da terra e em Jesus
Cristo, um só seu Filho, Nosso Senhor, o qual foi concebido do
Espírito Santo, nasceu de Maria Virgem, que esta noite começará
a padecer, sob o poder de Pôncio Pilatos, que amanhã será
crucificado, morto e sepultado; que descerá aos infernos,
ressurgirá dos mortos ao terceiro dia, que subirá ao céu, onde
se sentará à mão direita de Deus Pai Todo-Poderoso e de onde há
de vir ajulgar os vivos e os mortos pois também eles crêem no
Espírito Santo, na Santa Igreja Católica, na Comunhão dos Santos,
na remissão dos pecados, na ressurreição da carne e na vida
eterna. Amém.
Tudo isto é apenas uma pequena parte das impressões que
necessariamente enchiam um pobre coração pecador de dilacerante
angústia, contrição, consolação e compaixão quando, em busca de
alívio, se lhe desviava o olhar da cruel prisão do Salvador e se
dirigia sobre Jerusalém, nessa hora da meia noite, a mais solene
de todos os tempos, na qual a infinita justiça e a misericórdia
infinita de Deus, encontrando-se, abraçando-se e penetrando-se
uma a outra, iniciaram a santíssima obra do amor de Deus e dos
homens: castigar e expiar os pecados dos homens no Homem-Deus pelo
Homem-Deus.
Tal era a situação geral, quando o nosso querido Salvador foi
conduzido à casa de Anás.
5. Jesus diante de Anás
Cerca de meia noite chegou Jesus ao palácio de Anás e foi
conduzido, pelo átrio iluminado, à grande sala que tinha o tamanho
de uma pequena Igreja. No fundo, em frente à entrada, estava
sentado Anás, rodeado de 28 conselheiros, num terraço, sob o qual
podia passar, pelo lado. Em frente havia uma escada, interrompida
por patamares, que conduzia a esse tribunal de Anás, no qual se
entrava por uma porta própria, do fundo do edifício.
Jesus, cercado ainda por uma parte dos soldados que o prenderam,
foi puxado pelos soldados alguns degraus da escada para cima e
seguro pelas cordas. A outra parte da sala foi ocupada por
soldados e gentalha, judeus que insultavam Jesus, criados de
Anás, e parte das testemunhas reunidas por este que depois se
apresentaram em casa de Caifás.
Anás estava esperando impacientemente a chegada de Jesus: tudo
nele revelava ódio, malícia e crueldade. Era então presidente de
um certo tribunal e reunira ali a junta da comissão, que tinha
a tarefa de velar pela pureza da doutrina e de exercer o ofício
de procurador geral no tribunal do Sumo Sacerdote.
Jesus estava em pé diante de Anás, calado, de cabeça baixa,
pálido, cansado, com as vestes molhadas e enlameadas, as mãos
amarradas, seguro com cordas pelos soldados. Anás, velho
malvado, magro, com pouca barba, cheio de impertinência e de
orgulho farisaico, sorria hipócritamente, como se não soubesse
de nada e se admirasse de ser Jesus o preso que lhe haviam
anunciado. O discurso enfadonho com que recebeu Jesus, não sei
repetí-Io com as mesmas palavras, mas era mais ou menos o
seguinte: "Olá! Jesus de Nazaré! És tu? Onde estão então os teus
discípulos, os teus numerosos aderentes? Onde está o teu reino?
Parece que tudo saiu muito diferente do que pensavas! Acabaram
agora as injúrias; esperávamos pacientemente até que estivesse
cheia a medida das tuas blasfêmias, dos teus insultos aos
sacerdotes e violações do Sábado. Quem são os teus discípulos?
Onde estão? Agora te calas? Fala, agitador e sedutor do povo? Já
comeste o cordeiro pascal de modo insólito, à hora e em lugar fora
de costume. Queres introduzir uma nova doutrina? Quem te deu o
direito de ensinar? Onde estudaste? Qual é a tua doutrina, que
excita a todos? Responde, fala! Qual é a tua doutrina?”
Então levantou Jesus a cabeça fatigada e, fitando Anás, disse:
"Tenho falado em público, diante de todo o mundo, em lugares onde
todos os judeus costumam reunir-se. Não tenho dito nada em
segredo. Porque me perguntas a mim? Pergunta àqueles que me
ouviam, eles sabem o que tenho falado.”
Como o rosto de Anás, a essas palavras de Jesus, manifestasse ódio
e raiva, um esbirro infame, miserável e adulador, que estava ao
lado de Jesus e que o percebeu, bateu, com a mão de ferro, na boca
e face de Nosso Senhor, dizendo: "Assim é que respondes ao Sumo
Pontífice?" Jesus, abalado pela veemência da pancada e arrancado
e empurrado pelos soldados, caiu sobre a escada de lado e o sangue
escorreu-lhe do rosto; a sala retumbou de escárnio, murmúrio,
insultos e risadas. Levantaram Jesus com brutalidade e Ele disse
calmamente: "Se falei mal, mostra-me em que; se eu disse a
verdade, porque me feres?”
Anás, enfurecido pela calma de Jesus, convidou todos os presentes
a dizer, como Ele próprio queria, o que d’Ele tinham ouvido, o
que ensinava. Seguiu-se então uma grande vozeria e gritaria
daquele populacho: Ele disse que era rei, que era Filho de Deus,
que os fariseus eram adúlte ros; Ele agitava o povo, curava no
sábado, com auxílio do demônio; o povo de Ofel rodeava-O como
dementes, chamava-O seu Salvador e Profeta; Ele se deixava chamar
Filho de Deus; Ele mesmo se dizia enviado por Deus, chamava a
maldição sobre Jerusalém, falava da destruição da cidade, não
guardava o jejum, percorria o país seguido de multidões de povo,
comia com ímpios, pagãos, publicanos e pecadores, levava em sua
companhia mulheres de má vida, havia pouco tinha dito em Ofel que
daria a quem lhe deu água a beber, água da vida eterna e ele não
teria mais sede; seduzia o povo com palavras equívocas,
desperdiçava o bem alheio, pregava ao povo muitas mentiras sobre
seu reino e muitas outras coisas.
Todas essas acusações foram proferidas ao mesmo tempo, numa
grande confusão. Os acusantes avançavam para Jesus, lançando-Lhe
em rosto essas acusações, acompanhadas de insultos e os
soldados empurravam-nO para cá e para lá, dizendo: "Fala!
responde!" Anás e os conselheiros tomavam também parte,
gritando-lhe, com riso sarcástico: "Ora, agora ouvimos a tua
doutrina. É boa! Que respondes? É essa então a tua doutrina
pública? O país está cheio dela. Aqui não tens nada que dizer?
porque não ordenas? oh, rei? Oh, enviado de Deus, mostra a tua
missão?”
A cada uma dessas exclamações dos superiores, seguiam-se
arrancos, empurrões e insultos da parte dos soldados e de outros
que estavam próximo, que todos de boa vontade teriam imitado o
que Lhe batera na face.
Jesus cambaleava de um lado para o outro e Anás disse-Ihe, com
impertinência insultante: "Quem és? Que espécie de rei ou
enviado? Eu julgava que fosses o filho de um marceneiro obscuro.
Ou és acaso Elias, que foi levado ao Céu num carro de fogo? Dizem
que ele ainda vive. Sabes também te tornar invisível, assim
escapaste muitas vezes. Ou és por acaso Malaquias? Sempre tens
feito gala com esse profeta, interpretando-lhe as palavras como
se falasse de ti mesmo. Anda também a respeito dele um boato, que
não tinha pai, que era um Anjo e não morreu; boa oportunidade para
um embusteiro fazer-se passar por ele. Dize, que espécie de rei
és? És maior do que Salomão? Esta é também uma afirmação tua. Está
bem, não te quero privar mais tempo do título de teu reino.”
Anás mandou, pois, trazer uma tira de pergaminho, de 3/4 de côvado
de comprimento e da largura de três dedos, pô-Ia sobre uma
tabuinha, que seguravam diante dele e escreveu com uma pena
de caniço uma série de letras grandes, cada uma das quais continha
uma acusação contra o Senhor. Enrolou-a depois e pô-Ia numa
pequena cabaça, fechando esta com uma rolha e amarrando-a a um
caniço, mandou entregar-Lhe esse cetro irrisório e dirigiu-Lhe,
com riso satírico, algumas palavras, como: "Eis aqui o cetro de
teu reino; contém todos os teus títulos, dignidades e direitos.
Leva-os ao Sumo Sacerdote, para que conheça a tua missão e o teu
reino e te trate como convém à tua posição. Amarrai-Lhe as mãos
e levai este rei ao Sumo Sacerdote." Então amarraram de novo as
mãos de Jesus, que antes tinham desligado, cruzando-lhas sobre
o peito e pondo nelas o cetro afrontoso, que continha as acusações
de Anás. Assim conduziram o Senhor, entre risadas, insultos e
brutalidades, da grande sala de Anás para a casa de Caifás.
6. Jesus é conduzido de Anás a Caifás
Ao ser conduzido à casa de Anás, Jesus passara já pelo lado da
casa de Caifás; reconduziram-nO depois para lá, descrevendo um
ângulo. Da casa de Anás à de Caifás haveria talvez a distância
de trezentos passos. O caminho, que passa entre muros e pequenos
edifícios pertencentes ao tribunal de Caifás, era iluminado por
braseiros, colocados em cima de paus e estava cheio de uma
multidão clamorosa de frenéticos judeus. Mal podiam os soldados
reter a multidão. Aqueles que tinham ultrajado a Jesus na casa
de Anás, repetiram então a seu modo as palavras afrontosas desse
último diante do povo e Jesus foi maltratado e injuriado em todo
o percurso do caminho. Vi criados armados do tribunal afastarem
pequenos grupos de pessoas que choravam, lastimando a Jesus,
enquanto que deixavam entrar no pátio da casa de Caifás e davam
dinheiro a outros que se distinguiam acusando e insultando o
Divino Mestre.
7. O Tribunal de Cairás
Para chegar ao tribunal de Caifás, passa-se primeiro por um portão
a um vasto pátio exterior, depois por outro portão a outro pátio
que, com os outros muros, cerca toda a casa. (Nos trechos
seguintes daremos a este pátio o nome de "pátio interior"). A casa
tem de comprimento mais de duas vezes a largura; a parte dianteira
consta de uma sala, chamada vestíbulo ou átrio, lajeada, aberta,
no meio, sem teto, cercada por três lados de colunatas cobertas,
nas quais se acham também as entradas para o átrio. A entrada
principal do átrio é no lado comprido da casa. Entrando ali,
vê-se, à esquerda, uma fossa revestida de alvenaria, onde é
mantida uma fogueira; dirigindo-se à direita, avista-se, atrás
de algumas colunas mais altas e num plano alguns degraus mais
acima uma sala coberta, que forma o quarto lado do átrio e tem
mais ou menos a metade do tamanho desse. Nessa sala, no espaço
alguns degraus mais alto, estão os assentos dos membros do
conselho, dispostos num semicírculo. O assento do Sumo Pontífice
está no meio da sala. O lugar do acusado, com os guardas, achasse
no centro do semicírculo; em ambos os lados e atrás dele, até o
átrio, o lugar dos acusadores e das testemunhas. A esse estrado
semicircular dos juízes, conduzem, no fundo, três entradas que
dão para uma sala maior, de forma semicircular, ao longo de cujas
paredes há também assentos. Ali têm lugar as sessões secretas.
A direita e à esquerda da entrada, vindo do tribunal, há nessa
sala portas e escadas, que dão para fora, para o pátio interior,
que, seguindo a forma da casa, também é de forma semicircular.
Saindo pela porta da sala, à direita e virando-se no pátio à
esquerda do edifício, chega-se à porta de uma cadeia subterrânea,
que se estende sob a sala posterior, que está num plano mais alto
do que o átrio e assim dá lugar para adegas subterrâneas. Há
diversos cárceres nesse pátio circular; num deles vi S. Pedro e
S. João presos por uma noite, depois de Pentecostes, quando Pedra
curou o paralítico na Porta Bela do Templo.
No edifício e em redor havia inúmeras lanternas e fachos; estava
claro como dia. Além disso concorria também para a iluminação a
fossa da fogueira, no centro do átrio; era como um fogão colocado
dentro do chão, aberto em cima, onde se lançava o combustível,
que me pareceu ser carvão de pedra. Nos lados sobressaiam, à
altura de um homem, tubos parecidos com chifres, para deixarem
sair a fumaça; no meio, porém, se via o fogo. Soldados, soldados,
muita gente do populacho e falsas testemunhas subornadas
apinhavam-se em roda do fogo. Também se achavam ali mulheres e
raparigas de má vida, que ofereciam aos soldados uma bebida
vermelha e coziam-Ihes bolos por dinheiro. Era um movimento como
nos dias de carnaval.
A maior parte dos conselheiros convocados já estavam reunidos em
tomo do Sumo Sacerdote, no semicírculo elevado do tribunal; de
vez em quando chegavam ainda alguns. Os acusadores e testemunhas
falsas quase enchiam o átrio. Muita gente quis entrar à força,
mas era repeli da pelos soldados.
Pouco antes da chegada do cortejo de Jesus, vieram também Pedro
e João, revestidos dos mantos dos mensageiros do tribunal e
entraram no pátio exterior. João, com auxilio do empregado,
conhecido seu, pôde mesmo entrar pela porta do pátio interior,
a qual, porém, foi fechada atrás dele, por causa do povo
impetuoso. Pedro, atrasado pela multidão, já encontrou fechada
a porta do pátio interior e a porteira não quis deixá-lo entrar.
João disse-lhe que lhe abrisse; mas mesmo Pedra não poderia ter
entrado, se não tivessem chegado nesse momento Nicodemos e José
de Arimatéia, fazendo-o entrar com eles. No pátio interior
entregaram os mantos aos tais criados e colocaram-se silenciosos
no meio da multidão, à direita, de onde se podiam avistar os
assentos dos Juízes.
Caifás já estava sentado no meio do semicírculo graduado; em roda
se lhe sentavam cerca de setenta membros do Conselho Supremo. Muitos deputados comunais, anciãos e escribas estavam em pé ou sentados aos dois lados e em tomo deles, muitas testemunhas e patifes.
Do pé do tribunal, sob as colunatas, pelo átrio, até à porta pela
qual se esperava a entrada de Jesus, foram dispostos soldados;
aquela porta não era a que ficava em frente às cadeiras dos
juízes, mas uma outra, à esquerda do átrio.
Caifás era um homem de aspecto sério, olhar colérico e ameaçador;
estava vestido de um longo manto vermelho, ornado de florões e
orlas de ouro, atado sobre os ombros, o peito e na frente, por
muitas placas brilhantes. Na cabeça trazia um barrete, que na
parte superior tinha semelhança com uma mitra; entre as partes
anterior e posterior desse, havia aberturas, dos lados, das quais
pendiam pequenas faixas de pano, que caiam sobre os ombros. Caifás
já convocara havia muito tempo os partidários, entre os membros
do Sinédrio; muitos estavam reunidos desde que Judas saíra com
a tropa de soldados. Cresceu a tal ponto a impaciência e raiva
de Caifás, que desceu do alto assento, correndo, com todo o seu
aparatoso ornato, ao átrio e perguntou furioso se Jesus ainda não
estava chegando; nesse momento o cortejo vinha se aproximando e
Caifás voltou para o assento.
8. Jesus diante de Caifás
Entre frenéticos gritos de insulto, com empurrões e arrancos, foi
Jesus conduzido pelo átrio, onde a desenfreada fúria do populacho
se moderou, reduzindo-se a um sussurro e murmúrio surdo de raiva
contida. Da entrada dirigiu-se o cortejo à direita, para o
tribunal. Passando por Pedro e João, o querido Salvador,
olhou-os, mas sem virar a cabeça para eles, para não os trair.
Mal Jesus tinha chegado, por entre as colunas, em frente do
tribunal, Caifás já lhe gritou: "Então chegaste" blasfemador de
Deus, que nos tens profanado esta santa noite.”
Tiraram então o cetro irrisório de Jesus, a cabaça, na qual se
achavam as acusações escritas por Anás; depois de ler as
acusações, Caifás lançou uma torrente de insultos e acusações
contra Jesus, enquanto os esbirros e soldados em roda puxavam e
empurravam Nosso Senhor; tinham nas mãos curtos bastões de ferro,
em cuja extremidade havia um castão munido de muitas pontas; com
esses bastões empurravam a Jesus, gritando: "Responde, abre a
boca. Não sabes falar?" Fizeram tudo isso enquanto Caifás, ainda
mais assanhado do que Anás, dirigiu um sem número de perguntas
a Jesus, que, silencioso e paciente, olhava para baixo sem
levantar os olhos para Caifás. Os soldados quiseram forçá-Loa
falar, davam-Lhe murros na nuca e nos lados, batiam-Lhe nas mãos
e picavam-na com sovelas; houve até um vil patife que lhe apertou
com o polegar o lábio inferior sobre os dentes, dizendo: "Agora
morde!”
Seguiu-se a audição das testemunhas. Mas em parte era só uma
gritaria confusa do populacho subornado ou então depoimentos
de vários grupos dos mais assanhados inimigos de Jesus, entre os
fariseus e saduceus de todo o país, reunidos por ocasião da
festa. Proferiram de novo tudo o que Ele mil vezes tinha refutado;
disseram: "Ele cura e expulsa os demônios pelo próprio demônio;
não guarda o sábado; quebra o jejum; os seus discípulos não lavam
as mãos; Ele seduz o povo; chama os fariseus de raça de víboras,
de adúlteros; prediz a destruição de Jerusalém; tem relações com
pagãos, publicanos, pecadores e mulheres de má vida; percorre o
país, seguido de grande multidão de povo; faz-se chamar rei,
profeta, até Filho de Deus, fala sempre do seu reino; contesta
o direito do divórcio; proferiu ameaças sobre Jerusalém; chama-se
pão da vida, ensina coisas inauditas, dizendo que quem não Lhe
comer a carne e não Lhe beber o sangue, não poderá ser salvo.”
Desse modo eram torcidas e viradas ao contrário todas as palavras,
doutrina e parábolas de Jesus, para servirem de acusações, sempre
interrompidas por insultos e brutalidades. Mas todos
contradiziam e se confundiam uns aos outros. Um disse: "Ele se
faz passar por rei"; outro: "Não, Ele se deixa apenas chamar assim
e quando O quiseram proclamar rei, fugiu." Então gritou um: "Mas
Ele diz que é Filho de Deus"; outro, porém, replicou: "Não, Ele
não disse isso, chama-se Filho só por fazer a vontade do Pai."
Alguns exclamaram que Ele os tinha curado, mas que depois
recaíram; as curas eram apenas feitiço." Quase todas as acusações
consistiam essencialmente em acusá-Io de feitiçaria. Algumas
falsas testemunhas depuseram também sobre a cura do homem na
piscina de Betesda, mas mentiram e confundiram-se. Os fariseus
de Seforis, com os quais tinha discutido sobre o divórcio,
acusaram-na de falsa doutri na e até aquele jovem de Nazaré a quem
Ele não quisera aceitar como discípulo, teve a vileza de
comparecer ali, para dar testemunho contra Ele. Acusaram-na
também de ter absolvido a adúltera no Templo e ter acusado os
fariseus.
Contudo não eram capazes de encontrar qualquer acusação
solidamente provada. Os grupos de testemunhas que entravam e
saiam, começaram a insultar Jesus, em lugar de depor contra Ele.
Discutiam veemente uns com os outros e nos intervalos Caifás e
alguns dos conselheiros continuavam incessantemente a insultar
Jesus, gritando-Lhe, entre as várias acusações: "Que rei és tu?
Mostra teu poder. Manda vir as legiões de Anjos, das quais falaste
no horto das Oliveiras. Que fizeste do dinheiro das viúvas e das
pessoas que se deixaram enganar? Tantas riquezas que
desperdiçaste, que foi feito delas? Responde, fala! Agora que
devias falar, diante do juiz, ficas calado; mas onde terias feito
melhor em calar-te, diante do populacho e mulherio, aí te
abundavam as palavras, etc.”
Todas essas perguntas eram acompanhadas de incessantes
crueldades dos soldados, que, com pancadas e murros, queriam
forçar Jesus a responder. Só por milagre de Deus pôde Jesus
agüentar tudo isso, para expiar os pecados do mundo. Algumas
testemunhas infames afirmaram que Jesus era filho ilegítimo, mas
imediatamente replicaram outros: "É mentira; pois sua mãe era uma
moça piedosa do Templo e nós assistimos à cerimônia do seu
casamento com um homem muito religioso." Essas testemunhas
começaram a discutir.
Acusaram também Jesus e os discípulos de não oferecerem
sacrifícios no Templo. Eu também nunca vi Jesus ou os Apóstolos,
desde que O seguiam, levarem animais de sacrifício ao Templo, a
não ser os cordeiros de Páscoa. Essa acusação não era justa; pois
também os Essenos não ofereciam sacrifícios, sem por isso
merecerem castigo. A acusação de feitiçaria repetiu-se muitas
vezes e o próprio Caifás afirmou diversas vezes que a confusão
das testemunhas era efeito da arte mágica.
Alguns acusaram então Jesus de ter comido o cordeiro pascal já
de véspera, contrariamente ao costume e de ter alterado a ordem
dessa cerimônia já no ano anterior; por isso começaram de novo
a injuriar e insultar Jesus. Mas os depoimentos das testemunhas
eram tão confusos e contraditórios, que Caifás e todo o Sinédrio
ficaram envergonhados e furiosos, porque não podiam encontrar
nada que de qualquer modo pudessem provar. Nicodemos e José de
Arimatéia foram também convidados a se justificarem de ter Jesus
comido a Páscoa no Cenáculo deles, em Sião. Compareceram diante
de Caifás e provaram, com antigos documentos, que os galileus
podiam comer o cordeiro pascal um dia antes, conforme um direito
imemorial; além disso, acrescentaram, foram observadas as
cerimônias prescritas, pois estiveram presentes homens
empregados do Templo. Com essa afirmação ficaram as testemunhas
muito embaraçadas e o que vexava os inimigos de Jesus, era ter
Nicodemos mandado trazer os rolos de lei e provado com estes o
direito dos galileus. Além de diversos motivos para esse direito
dos galileus, os quais esqueci, foi alegado que seria impossível,
com a afluência do povo, acabar as cerimônias no tempo prescrito
pela lei do sábado; também haveria inconveniências na volta, pela
multidão do povo nos caminhos. Apesar dos galileus nem sempre
usarem desse direito, ficara, porém, perfeitamente provado pelos
documentos alegados por Nicodemos. A ira dos fariseus cresceu
ainda mais, quando Nicodemos terminou o discurso pela observação
de que todo o Sinédrio se devia sentir ultrajado, diante do povo
reunido, por um processo feito com tal precipitação e
preconceito, na noite de um dia tão santo e com a confusão e
contradição tão aberta de todas as testemunhas, com precipitação
e imprudência ainda maior.
Depois de muitos depoimentos falsos, vis e mentirosos, se
apresentaram mais duas testemunhas, dizendo: Jesus disse que
queria destruir o Templo feito pelas mãos de homens e construir
em três dias outro, que não seria feito por mãos de homens. Mas
também esses dois não estavam de acordo; um disse que Jesus queria
construir um templo novo; por isso teria celebrado a Páscoa num
outro edifício, porque queria destruir o antigo Templo; o outro,
porém, disse que aquele edifício também fora construído por mãos
de homens e que portanto não se referia a ele.
Caifás chegou então ao auge da cólera; pois as crueldades
praticadas para com Jesus, as afirmações contraditórias das
testemunhas, a inefável paciência e o silêncio do Salvador,
causaram impressão desfavorável a muitos dos presentes. Algumas
vezes foram as testemunhas até vaiadas. Muitos ficaram inquietos
no coração, vendo o silêncio de Jesus e cerca de dez soldados
afastaram-se, sob pretexto de se sentirem indispostos. Esses,
passando diante de Pedro e João, Ihes disseram: "Este silêncio
do galileu, num processo tão infame, dói no coração, é como se
a terra se fosse abrir e tragar-nos; dizei-nos aonde nos devemos
dirigir.”
Caifás, furioso pelos depoimentos contraditórios e a confusão das
duas últimas testemunhas, levantou-se do assento, desceu alguns
degraus, até onde estava Jesus e disse: "Não respondes nada a esta
acusação?" Indignou-se, porém, de Jesus não o fitar; os soldados
puxaram então, pelos cabelos, a cabeça de Nosso Senhor, para trás
e bateram-lhe com os punhos por baixo do queixo. Mas o Senhor não
levantou os olhos. Caifás, porém, estendeu com veemência as mãos
e disse em tom furioso: "Conjuro-Te pelo Deus vivo, que nos digas
se és o Cristo, o Messias, o Filho de Deus Bendito!”
Acalmara-se a vozeria e seguiu-se um silêncio solene em todo o
átrio; Jesus, fortalecido por Deus, disse, com uma voz cheia de
inefável majestade, que fazia estremecer a todos, com a voz do
Verbo Eterno: "Eu o sou, disseste-o bem. E eu vos digo que em breve
vereis o Filho do homem assentado à mão direita da majestade de
Deus, vindo sobre as nuvens do céu.”
Durante essas palavras vi Jesus como que luminoso e sobre Ele,
no céu aberto, Deus Pai Todo-poderoso, numa visão inexprimível;
vi os Anjos e as orações dos justos, suplicando e orando em favor
de Jesus. Vi, porém, como se a divindade de Jesus falasse
simultaneamente do Pai e do Filho: "Se eu pudesse sofrer, queria
sofrer; mas porque sou misericordioso, aceitei a natureza humana
no Filho, para que nela sofresse o Filho do Homem; pois sou justo
e ei-Lo que toma sobre si os pecados de todos estes homens, os
pecados de todo o mundo.”
Por baixo de Caifás, porém, vi aberto todo o inferno, um círculo
lúgubre de fogo, cheio de figuras hediondas e ele por cima desse
círculo, sustentado apenas como por um crepe fino. Vi-o penetrado
pela fúria do inferno. Toda a casa me parecia um inferno agitado
por baixo. Quando o Senhor declarou que era o Filho de Deus, o
Cristo, foi como se o inferno tremesse diante dEle e fizesse subir
a essa casa toda a sua fúria contra o Salvador.
Mas como tudo me é mostrado em imagens e figuras (cuja linguagem
é para mim também mais verdadeira, curta e clara do que outras
explicações, pois os homens também são formas corporais e
sensíveis e não somente palavras abstratas), vi o medo e o ódio
do inferno manifestar-se sob inúmeras figuras horríveis, que
subiam em muitos lugares, como saindo da terra. Entre outras me
lembro ainda de bandos de pequenas figuras escuras, semelhantes
a cães, que andavam nas patas traseiras, curtas e com garras
compridas, mas não me lembro mais que espécie de vicio
representavam essas figuras; sabia-o naquele tempo, mas agora só
me lembro da forma. Tais figuras horrendas vi entrar na maior
parte dos assistentes, ou sentar-se nos ombros ou sobre a cabeça
deles. A assembléia estava cheia dessas figuras e a fúria
aumentava cada vez mais em todos os maus. Nesse momento vi também
muitas figuras hediondas, saindo dos sepulcros. além de Sião;
creio que eram espíritos maus. Vi também, perto do Templo, saírem
da terra muitas aparições e entre essas, diversas que pareciam
arrastar-se com cadeias, como presos; não sei mais se essas
últimas aparições eram espíritos maus ou almas condenadas a
habitarem certos lugares da terra e que talvez se dirigissem ao
limbo, que o Senhor abriu pela sua própria condenação à morte.
- Não se podem exprimir exatamente essas coisas, nem quero
escandalizar aos que as ignoram, mas ao vê-Ias, sente-se um
arrepio. Esse momento tinha algo de horrível. Creio que também
João deve ter visto alguma coisa, pois ouvi-o falar disso mais
tarde; pelo menos todos os que não eram ainda inteiramente maus,
sentiram, com um medo profundo, o horror desse momento; os maus,
porém, sentiram-se numa violenta erupção de ódio.
Caifás, como inspirado pelo inferno, apanhou a orla do manto
oficial, cortou-a com uma faca e rasgou o manto, com um ruído
sibilante, gritando: "Ele blasfemou! Para que precisamos de
testemunhas? Vós mesmos ouvistes a blasfêmia; que julgais?" Então
se levantaram todos quantos ainda estavam presentes e gritaram,
com voz terrível: "É réu de morte. É réu de morte.”
A esse grito, a fúria do inferno tornou-se naquela casa
verdadeiramente terrível: os inimigos de Jesus estavam como
embriagados por Satanás e do mesmo modo os servos aduladores e
abjetos (7). Era como se as trevas proclamassem o seu triunfo
sobre a luz. Causou tal horror aos que ainda conservavam um pouco
de bom sentimento, que muitos destes saíram furtivamente,
envolvidos nos mantos. Também as testemunhas mais notáveis, como
não Ihes fosse mais necessária a presença, saíram do tribunal,
sentindo remorsos da consciência. Outros, mais vis, vadiavam pelo
átrio e em redor da fogueira, onde, depois de recebido dinheiro,
começaram a comer e beber.
(7) Essa adulaçãó cínica (a modo de cães) é talvez a significação
esquecida das figuras demoníacas antes mencionadas.
O Sumo Sacerdote disse, porém, aos soldados: "Entrego-vos este
rei; prestai a este blasfemo a devida honra." Depois se retirou
com os membros do Conselho, à sala circular, situada atrás do
tribunal, cujo interior não se podia ver do átrio.
João, cheio de profunda tristeza, lembrou-se então da pobre Mãe
de Jesus. Receou que a terrível notícia, comunicada por um
inimigo, pudesse ferí-Ia ainda mais e por isso, lançando mais um
olhar ao Santo dos santos, disse no seu coração: "Mestre, bem
sabeis porque me vou em bora" e saiu apressadamente do tribunal,
indo à SS. Virgem, como se fosse enviado por Jesus mesmo. Pedro,
porém, todo abalado pela angústia e pela dor e sentindo, devido
à fadiga, ainda mais o frio penetrante da manhã, ocultava a
tristeza e o desespero o mais que podia e aproximou-se timidamente
da fogueira no átrio, rodeada pelo populacho, que ali se aquecia.
Não sabia o que estava fazendo, mas não podia separarse do Mestre.
9. Jesus é escarnecido e maltratado em casa de Caifás
Quando Caifás saiu, com todo o conselho do tribunal, deixando
Jesus entregue aos soldados, lançou-se o bando de todos os
malvados patifes aí presentes, como um enxame de vespas
irritadas, sobre Nosso Senhor, que até então estava seguro com
cordas por dois dos quatro primeiros soldados; os outros tinham
se afastado antes do interrogatório, para se revezarem com
outros. Já durante a audição os soldados e outros malvados
arrancaram tufos inteiros do cabelo e da barba do Senhor. Alguns
homens bons apanharam parte do cabelo do chão e afastaram-se
furtivamente com ele; mas depois Ihes desapareceu. O bando vil
dos soldados também já tinham cuspido em Jesus, durante o
interrogatório que lhe tinham dado inúmeros murros, batido com
paus que terminavam em bulbos munidos de pontas e picado com
alfinetes; mas depois descarregaram a raiva de um modo insensato
sobre o pobre Jesus. Punham-Lhe na cabeça várias coroas,
trançadas de palha e cortiça, de formas ridículas e tiravam-nas
novamente, com palavras maldosas de escárnio. Ora diziam: "Ei-Lo,
o Filho de Davi, com a coroa de seu Pai!" ora: "Eis aqui está quem
é mais do que Salomão!" ou: "Este é o rei que prepara as núpcias
do filho" e assim escarneciam n’Ele toda a verdade eterna que
tinha proferido em ensinamentos e parábolas, para a salvação dos
homens... Batiam-Lhe com punhos e paus, empurravam-na, cuspindo
n’Ele de um modo nojento.
Trançaram ainda uma coroa de palha grossa de trigo, que ali
cultivavam, puseram-Lhe na cabeça um boné alto, parecido com uma
mitra de um bispo de hoje e em cima a grinalda de palha; já antes
O tinham despido da túnica tecida. Lá estava o pobre Jesus,
vestido apenas de tanga e escapulário sobre peito e costas; mas
também esse último, ainda lha arrancaram e não Lhe foi mais
restituído. Jogaram-Lhe sobre os ombros um manto velho,
esfarrapado, cuja parte anterior nem Lhe cobria os joelhos e em
redor do pescoço lhe puseram uma cadeia de ferro, que, como uma
estola, lhe pendia sobre o peito, até os joelhos; essa cadeia
terminava em duas argolas largas e pesadas, munidas de pontas
agudas, que lhe feriam dolorosamente os joelhos, quando andava
ou caia. Amarraram-Lhe de novo as mãos sobre o peito, pondo nelas
um caniço e cobriram-Lhe o rosto divino com o escarro nojento das
suas bocas imundas. O cabelo de Jesus, a barba, o peito e a parte
superior do manto estavam cobertas de imundícies nauseabundas;
vendaram-Lhe com um farrapo sujo os olhos, batiam-Lhe com punhos
e bastões, gritando: "Grande profeta! Profetiza, quem te bateu."
Ele, porém, nada dizia: gemia e orava no íntimo do coração por
eles, que continuavam a bater-Lhe. Assim maltratado, disfarçado
e sujo, arrastaram-na pela corrente à sala atrás do tribunal.
Empurraram-na diante de si, a pontapés e pauladas, com risadas
de escárnio, gritando: "Vamos com o rei de palha; ele
deve apresentar-se também ao Conselho, com as honras que Lhe
temos prestado." Entrando na sala, onde ainda se achavam Caifás
e muitos membros do Conselho, começaram de novo a escarnecer do
Divino Salvador, com vis gracejos e alusões sacrílegas a santos
usos e cerimônias. Assim como no átrio, cuspiram-Lhe e
sujaram-na, gritando: "Eis aqui tua unção de profeta e rei! "
Aludiram também à unção de Madalena e ao batismo: "Como, gritaram,
queres comparecer tão sujo diante do Supremo Conselho? Querias
sempre purificar os outros e não estás limpo; mas vamos limpar-Te
agora." Trouxeram então uma bacia com água suja e fétida, na qual
havia um farrapo grosso e nojento e entre murros, escárnio e
insultos, interrompidos apenas por cumprimentos e inclinações
derrisórias, uns mostrando-Lhe a língua, outros virando-lhes as
costas em posições indecentes, passaram-Lhe o farrapo sujo pelo
rosto e os ombros, fingindo limpá-Lo, mas sujando-O ainda mais;
depois Lhe entornaram todo o conteúdo nojento da bacia sobre a
cabeça e o rosto, gritando: "Aí tens ungüento precioso, água de
nardo a trezentos dinheiros, aí tens o teu batismo da piscina de
Betsaida.”
Com essa última palavra escarnecedora compararam-na, sem
premeditação, ao cordeiro pascal; pois os cordeiros que nesse dia
eram imolados, eram antes lavados no tanque perto da Porta das
Ovelhas e depois levados à piscina de Betsaida, onde recebiam uma
aspersão cerimonial, antes de serem imolados no Templo. Os
soldados, porém, aludiam ao doente de 38 anos, que fora curado
na piscina de Betsaida; pois vi-o ali batizar ou lavar; digo,
batizar ou lavar" porque não tenho recordação clara disso neste
momento.
Depois arrastaram e empurraram Jesus, com murros e pancadas, por
toda a sala, passando em frente dos membros do Conselho, ainda
reunidos, que todos O insultavam e escarneciam. Vi tudo cheio de
figuras diabólicas; era um movimento sinistro, confuso e
horrível. Mas em redor de Jesus maltratado vi muitas vezes um
esplendor luminoso, desde que dissera que era o Filho de Deus.
Muitos dos presentes pareciam sentí-Lo também mais ou menos,
vendo com certa inquietação que todos os insultos e maus tratos
não Lhe podiam tirar a majestade inexprimível. Os inimigos
obcecados pareciam sentir esse esplendor somente pela erupção
mais forte de sua ira e de seu ódio; a mim, porém, parecia esse
esplendor tão manifesto, que não podia deixar de pensar que
velavam o rosto de Jesus, só porque o Sumo Sacerdote, desde que
ouvira a palavra: "Eu o sou", não podia mais suportar o olhar do
Salvador.
10. A negação de Pedro
Quando Jesus disse, em tom solene: "Eu o sou", quando
Caifás rasgou o próprio manto, quando o grito: "É réu de morte!"
interrompeu os insultos e ultraje da gentalha, quando se abriu
sobre Jesus o céu da justiça e o inferno desencadeou sua fúria
e dos sepulcros saíram os espíritos presos, quando tudo estava
cheio de medo e horror; então Pedro e João, que tinham sofrido
muito por serem obrigados a ver, em silêncio e inação, o cruel
tratamento de Jesus, sem poder manifestar compaixão, não
agüentaram mais ficar ali. João saiu, juntamente com muita gente
e testemunhas e dirigiu-se apressadamente a Maria, Mãe de Jesus,
que se achava com as mulheres piedosas em casa de Marta, perto da
Porta do Angulo, onde Lázaro possuía um grande edifício.
Pedro, porém, não podia afastar-se, amava demasiadamente a
Jesus. Não podia conter-se; chorava amargamente, esforçando-se
por esconder as lágri mas. Não quis ficar, pois sua consternação
tê-Io-ia traído, nem podia ir a outra parte, sem causar
estranheza aos outros. Dirigiu-se por isso ao átrio, ao canto da
fogueira, onde se, apinhavam soldados e muitos homens do
populacho, que iam e voltavam, para ver escarnecer de Jesus
e faziam observações baixas e maliciosas. Pedro conservava-se
calado, mas esse silêncio e o ar de tristeza do rosto deviam
torná-Io suspeito aos inimigos do Mestre. Aproximou-se então
também do fogo a porteira e, como todos falassem de Jesus e o
insultassem, também entrou na conversa, à maneira das mulheres
impertinentes e, olhando para Pedro, disse: "Tu também és um dos
discípulos do Galileu!" Pedro tornou-se embaraçado e inquieto e,
receando que aquela gente grosseira o maltratasse, disse: "Oh,
mulher! Eu não O conheço; não sei e nem compreendo o que queres
dizer." Levantou-se e com a intenção de livrar-se deles, saiu do
átrio; foi à hora em que o galo, fora da cidade, cantou
pela primeira vez; não me lembro de tê-Io ouvido, mas senti que
então can tou. Saindo Pedro do átrio, viu-o outra criada e disse
a alguns que estavam ali: "Este também tem estado com Jesus" e
eles disseram: "Não eras também um dos discípulos do Galileu?"
Pedro, assustado e confu so, exclamou, protestando: "Em verdade,
não o era, nem conheço esse homem." Depois se afastou depressa
do primeiro pátio para o exterior, afim de prevenir do perigo
alguns conhecidos, que vira olharem por cima do muro. Chorou e
estava tão cheio de angústia e tristeza, por causa de Jesus, que
quase não se lembrava da sua negação. No pátio exterior estava
muita gente e também amigos de, Jesus, que não foram admitidos
ao pátio interior; mas a Pedro foi permitido sair. Aquela gente
trepara no muro, para espiar o que se passava e Pedro encontrou
entre eles muitos dos discípulos de Jesus, os quais a busca de
notícias tinham corrido das cavernas do vale Hinom para lá. Esses
se acercaram logo de Pedro, interrogando-o entre lágrimas, a
respeito de Jesus; mas ele estava tão abatido e tinha tanto medo
de trair-se, que Ihes aconselhou retirar-se, por haver ali perigo
para eles. Depois se separou deles, indo tristemente pelos pátios
enquanto os outros saíram com pressa da cidade. Estiveram ali
cerca de 16 dos primeiros discípulos, entre eles Bartolomeu,
Natanael, Saturnino, Judas Barsabas, Simeão, mais tarde bispo de
Jerusalém, Zaqueu e Manaem, o profético jovem, cego de nascença
e curado por Jesus.
Pedro não achou sossego; o amor de Jesus impelia-o ao pátio
interior, que cercava a casa; deixaram-no entrar, de novo, porque
Nicodemus e José de Arimatéia o mandaram entrar, na primeira vez.
Não voltou imediatamente à sala do tribunal, mas dirigiu-se à
direita, indo ao longo da casa, para a entrada da sala atrás do
tribunal, onde o bando de soldados já estavam conduzindo Jesus
em redor da sala, com vaias e insultos. Pedro aproximou-se
medroso; posto que se sentisse observado como suspeito, impelia-o
a ânsia por Jesus a enfiar-se pela porta, ocupada por gente baixa,
que estava assistindo àquela cena de escárnio. Nesse momento
estavam arrastando Jesus, coroado com a grinalda de palha, em
redor da sala. O Senhor lançou a Pedro um olhar sério de
repreensão. Pedro ficou como que esmagado pela dor. Mas, lutando
com o medo e ouvindo alguns dos circunstantes dizerem: "Quem é
este sujeito?", saiu novamente para o pátio, tão abatido e tão
confuso pelo medo, que andava cambaleando a passos lentos.
Vendo-se, porém, observado, entrou de novo no átrio, aproximou-se
da fogueira, ficando ali bastante tempo sentado, até que diversas
pessoas, que fora lhe tinham notado a confusão, entraram,
começando de novo a provocá-Io, falando mal de Jesus e de suas
obras. Um deles, chamado Cássio e mais tarde Longino, disse então:
"É verdade, também és daquela gente; és galileu, tua linguagem
prova-o". Como Pedro quisesse sair com um pretexto, impediu-o um
irmão de Malcho, dizendo: "O que? Não te vi com eles no horto das
Oliveiras? Não feriste a orelha de meu irmão?" Tornou-se Pedro
então como insensato, pelo pavor que o dominou e livrando-se
deles, começou a praguejar (tinha um gênio violento) e jurar que
absolutamente não conhecia esse homem e correu do átrio para o
pátio interior. Foi à hora em que o galo cantou de novo; os
soldados conduziram Jesus, nesse mesmo momento, da sala circular,
pelo pátio para o cárcere que ficava sob a sala. Virou-se, porém,
o Senhor e olhou para Pedro com grande dor e tristeza; lembrou-se
Pedro então da palavra de Jesus: "Antes do galo cantar duas vezes,
negar-me-ás três vezes", e essa lembrança pesou-lhe com terrível
violência sobre o coração. Fatigado pelas angústias e o medo,
tinha-se esquecido da promessa presunçosa de querer antes morrer,
do que O negar e do aviso profético de Jesus; mas à vista do Mestre,
esmagou-o a lembrança do crime que acabava de cometer. Tinha pecado; pecado contra o Salvador, tão cruelmente tratado, condenado,
inocente, sofrendo tão resignado toda a horrível tortura. Como
desvairado de contrição, saiu apressadamente pelo pátio
exterior, a cabeça velada e chorando amargamente; não temia mais
ser interrogado; teria então dito a todos quem era e que pecado
lhe pesava na consciência.
Quem se atreveria a dizer, que em tais perigos, angústias, em tal
pavor e confusão, numa tal luta entre amor e medo, cansado,
insone, prestes a perder a razão pela dor de tantos e tão tristes
acontecimentos dessa noite horrível, com uma natureza tão simples
como ardente, quem se atreveria a dizer que, em iguais condições,
teria sido mais forte do que Pedro? O Senhor abandonou-o às
próprias forças; tornou-se então tão fraco como o são todos os
que esquecem as palavras: "Vigiai e orai, para não cairdes em
tentação".
11. Maria no tribunal de Cairás
A SS. Virgem, em contínua e profunda compaixão para com Jesus,
sabia e sentia tudo que a Ele faziam. Sofria em contemplação
espiritual e, como Ele, continuava em oração pelos carrascos. Mas
o coração de mãe também lhe clamava a Deus que não permitisse esses
pecados e que afastasse essas torturas do santíssimo Filho;
durante todo esse tempo tinha o desejo irresistível de estar com
o pobre Filho, tão cruelmente tratado. Quando João, depois do
grito: "É réu de morte!", saiu do átrio de Caifás, vindo a ela,
em casa de Lázaro, perto da porta do Angulo e lhe confirmou com
a triste narração e entre lágrimas, todos os terríveis tormentos
de Jesus, os quais, em sua compaixão espiritual, já lhe, dilaceravam o coração, Maria pediu-lhe, como também Madalena, quase
desvairada de dor e algumas outras mulheres, que as conduzisse
ao lugar onde Jesus sofria. João, que deixara Jesus só para
consolar aquela que, depois de Jesus, lhe merecia mais amor, saiu
da casa com a SS. Virgem, conduzida pelas santas mulheres;
Madalena caminhava-Ihes ao lado, torcendo as mãos. As ruas
estavam iluminadas pelo claro luar e viam-se muitas pessoas, que
voltavam para casa. Iam veladas as santas mulheres; mas o andar
apressado e as exclamações de dor atraíam sobre elas a atenção
de vários grupos de inimigos de Jesus que passavam e muitas
palavras insultuosas e cruéis, proferidas de propósito em alta
voz contra Jesus, renovavam-lhe a dor. A Mãe de Jesus, sempre
unida a Ele, na contemplação espiritual do seu suplício, caiu
diversas vezes desmaiada, nos braços das companheiras;
conservava tudo no coração, sofrendo em silêncio com Ele e como
Ele. Quando desse modo caiu nos braços das mulheres, sob uma porta
ou arcada da cidade interior, vieram-Ihes ao encontro um grupo
de pessoas bem intencionadas, que voltavam do tribunal de Caifás,
lamentando a sorte do Mestre. Essas se aproximaram das santas
mulheres e, reconhecendo a Mãe de Jesus, demoraram-se algum
tempo, cumprimentando-a compadecidamente; "Oh! Mãe infeliz! Oh!
Mãe, cheia de tristeza, Oh! Mãe dolorosa do mais Santo de Israel!”
Maria, voltando a si, agradeceu-Ihes e continuaram o triste
caminho a passo apressado.
Avizinhando-se do tribunal de Caifás, passaram para o caminho do
lado oposto da entrada, onde apenas um muro cerca a casa, enquanto
que o lado da entrada conduz por dois pátios. Ali sobreveio nova
dor amarga à Mãe de Jesus e às companheiras. Tinham de passar em
frente a um lugar, um pouco elevado, onde estavam homens, sob uma
leve tenda, aparando a Cruz de Jesus Cristo, à luz de lanternas.
Logo que Judas saíra para trair Jesus, os inimigos haviam ordenado
que se preparasse uma cruz, para que, se Jesus fosse preso,
Pilatos não tivesse motivo para atrasar a execução; pois já tinham
a intenção de entregar Nosso Senhor de manhã cedo a Pilatos e não
esperavam que levasse tanto tempo até a condenação. As cruzes para
os dois ladrões, os roma nos já as tinham preparado. Os operários
amaldiçoavam e insultavam a Jesus, por terem de trabalhar durante
a noite por causa d’Ele; todas as machadadas e todas essas
palavras feriam e traspassavam o coração da pobre Mãe; mas ainda
assim rezava por esses homens tão horrivelmente cegos, que, com
maldições, preparavam o instrumento de sua redenção e do martírio
de seu Filho.
Tendo passado em volta da casa e chegado ao pátio exterior, Maria
entrou, acompanhada das santas mulheres e de João, dirigindo-se
à porta do pátio interior, que estava fechada. Tinha a alma cheia
de intensa compaixão para com Jesus. Desejava ardentemente que
a porta se abrisse e pudesse entrar, por intermédio de João; pois
sentia que apenas essa porta a separava do Filho querido, que,
ao segundo canto do galo, estava sendo levado do tribunal à cadeia
subterrânea. De súbito se abriu a porta e na frente de algumas
pessoas saiu Pedro, correndo para eles, cobrindo com as mãos o
rosto velado e chorando amargamente. À luz da lua e das lanternas,
conheceu logo a João e a SS. Virgem; parecialhe que a voz da
consciência lhe vinha ao encontro, na pessoa da Mãe de Jesus,
depois que o seu Divino Filho a tinha despertado. Ah! Como
ressoava a voz de Maria na alma de Pedro, quando ela disse: "Oh!
Simão! Que fizeram de Jesus, meu Filho?" Ele não podia enfrentar
o olhar de Maria, desviou os olhos para o lado, torcendo as mãos
e não pôde proferir palavra. Mas Maria não o deixou,
aproximou-se-Ihe e perguntou com voz triste: "Simão, filho de
Jonas, não me respondes?" Então exclamou Pedro, na sua dor: "Oh,
Mãe, não faleis comigo; vosso Filho sofre coisas indizíveis; não
me faleis a mim, pois condenaram-nO à morte e eu O neguei
vergonhosamente por três vezes." E como João se aproximasse para
falar-lhe, fugiu Pedro, desvairado de tristeza e saindo do pátio
e da cidade, retirou-se àquela gruta do monte das Oliveiras, na
qual as mãos de Jesus se tinham imprimido na pedra. (v. cap. 3,
7 pelo fim). Creio que nessa mesma gruta também nosso primeiro
pai Adão fazia penitência, quando veio para a terra amaldiçoada
por Deus.
A SS. Virgem, sentindo com vaemente compaixão essa nova dor de
Jesus, a quem negara o mesmo discípulo que fora o primeiro a
reconhecê-Lo como Filho de Deus vivo, caiu, após as palavras de
Pedro, sobre a pedra ao lado da porta, onde estava e
imprimiram-se-Ihe as formas das mãos e dos pés na pedra, a qual
ainda existe, mas não me lembro onde; tenho-a visto em qualquer
parte. As portas dos pátios estavam abertas, porque a maior parte
do povo se retirara, depois que Jesus fora fechado na cadeia.
Maria Santíssima, tendo voltado a si, desejava estar mais perto
do Filho querido; João levou-a e as santas mulheres até diante
da prisão do Senhor. Ah! Bem sentia Maria, a presença de Jesus
e Jesus a de sua Mãe, mas a Mãe fiel quis também ouvir com os
sentidos exteriores os gemidos do Filho adorado e ouvia-os e
também às palavras insultuosas dos guardas. Não podiam demorar-se
ali muito sem ser notadas; Madalena, na veemência da dor,
manifestava a comoção e embora Maria conservasse nessa extrema
dor uma santa calma, que impunha respeito, devia também ouvir
nesse curto caminho as palavras amargas e maliciosas: "Não é esta
a mãe do Galileu? O filho com certeza há de morrer na cruz, mas
naturalmente não antes da festa, a não ser que fosse o homem mais
criminoso." Então ela voltou e impeli da pelo coração, foi ainda
até à fogueira do átrio, onde havia ainda alguns populares; as
companheiras seguiram-na, em dor silenciosa. Nesse lugar de
horror, onde Jesus dissera que era Filho de Deus e a raça de
Satanás gritara: "É réu de morte!", Maria perdeu de novo os
sentidos. João e as santas mulheres levaram-na dali, parecendo
mais morta do que viva. A plebe nada disse, calou-se admirada;
foi como se um espírito puro tivesse passado pelo inferno.
O caminho conduziu-as de novo ao longo do pátio posterior da casa;
passaram outra vez por aquele lugar triste, onde alguns homens
estavam ocupados em aprontar a Cruz; os operários achavam tanta
dificuldade em terminar a cruz, quanto o tribunal em julgar Jesus;
foram obrigados a procurar várias vezes outros madeiros, porque
os primeiros não serviam ou se fendiam, até que juntaram os
diversos madeiros do modo por que Deus o determinara. Tenho tido
várias visões a respeito; vi também Anjos impedirem o trabalho,
até que tudo foi feito segundo a vontade de Deus; mas como não
me lembro mais claramente disso, deixo de contá-Io.
12. Jesus no cárcere
A cadeia em que estava Jesus, era um lugar pequeno, abobadado,
sob o tribunal de Caifás. Vi que ainda existe parte desse lugar.
Dos quatro só dois soldados ficavam com Ele; revezavam-se com os
outros várias vezes em pouco tempo. Ainda não tinham restituído
a roupa a Jesus, que estava vestido apenas daquele manto rasgado,
coberto de escarro e com as mãos novamente amarradas.
Ao entrar na prisão, Jesus pediu ao Pai Celeste que aceitasse toda
a crueldade e escárnio que sofreu e ainda ia sofrer, como
sacrifício expiatório por todos os homens que no futuro pecassem
por impaciência e ira, em igual sofrimento. Também nesse lugar
os soldados não deixavam descansar o Senhor. Amarraram-nO a uma
coluna baixa, no meio do cárcere e não Lhe permitiam encostar-se,
de modo que cambaleava com os pés feridos e inchados pelas quedas
e pelas pancadas das cadeias, que Lhe pendiam até os joelhos. Não
deixavam de insultar e maltratá-Lo e sempre que os dois estavam
cansados, eram revezados por outros, que entrando, começavam a
fazer-Lhe novas injúrias.
Não me é possível contar todas as baixezas que proferiram contra
o mais Puro e Santo de todos os Seres; fiquei doente demais e então
quase morri de compaixão. Ai! Que vergonha para nós, que por
moleza e nojo nem podemos contar ou escutar as crueldades
inumeráveis que o Salvador sofreu por nós! Sentimos um terror
semelhante ao do assassino a quem mandam pôr a mão nas feridas
do assassinado. Jesus sofria tudo sem abrir a boca: Eram os
homens, que soltavam a fúria contra seu irmão, seu Redentor, seu
Deus. Também sou pecadora, também por minha causa Ele teve de
sofrer. No dia do Juízo há de manifestar-se tudo.
Então veremos que parte nos maus tratos do Filho de Deus tivemos,
pelos nossos pecados, que continuamente cometemos e pelos quais
consentimos e nos unimos às crueldades perpetradas por aquele
bando de soldados diabólicos. Ai! Se considerássemos isso,
pronunciaríamos muito mais seriamente aquelas palavras contidas
nas fórmulas de contrição: "Senhor! Faze-me antes morrer do que
vos ofender mais uma vez pelo pecado.”
Estando em pé no cárcere, Jesus rezava continuamente pelos
carrascos. Quando esses ficaram enfim cansados e mais calmos, vi
Jesus encostado ao pilar e rodeado de luz. Amanheceu o dia, o dia
de sua imensa Paixão e expiação; o dia da nossa redenção espiava
timidamente por um orifício no alto da parede, contemplando o
nosso Cordeiro Pascal, tão santo e maltratado, que tomara sobre
si todos os pecados do mundo. Jesus levantou as mãos amarradas
ao novo dia, rezando alto e distinto uma oração tocante ao Pai
Celestial, na qual agradeceu a missão desse dia, que almejavam
os Patriarcas, pelo qual Ele tanto suspirara, desde a sua vinda
ao mundo, como disse: "Devo ser batizado com um batismo e quanto
desejo que se realize!" Com que fervor agradeceu o Senhor esse
dia, em que devia alcançar o alvo de sua vida, nossa salvação,
abrir o Céu, vencer o inferno, abrir para os homens a fonte da
graça e cumprir a vontade do Pai Celeste!
Rezei com Ele, mas não sei mais repetir a oração, pois eu estava
extenuada de compaixão e de chorar, vendo-Lhe os sofrimentos e
ouvindo-O ainda agradecer os horríveis tormentos, que tomou sobre
si também por minha causa; eu suplicava sem cessar: "Ah! Dai me
as vossas dores; pertencem-me a mim, pois são a expiação das
minhas culpas." Amanheceu o dia e Jesus saudou-o com uma ação de
graças tão comovente, que fiquei como aniquilada de amor e
compaixão e repeti-Lhe as palavras como uma criança. Era um
espetáculo indizivelmente triste, afetuoso, santo e imponente,
ver Jesus, depois desse tumulto da noite, amarrado à coluna, no
meio do estreito cárcere, rodeado de luz, saudando com palavras
de agradecimento os primeiros raios do grande dia de seu
sacrifício. Ai! Parecia-me que esse raio Lhe entrou no cárcere,
como um juiz vem visitar um condenado à morte, para reconciliar-se
com ele antes da execução. E Ele ainda Lhe agradeceu tão
docemente! - Os soldados, que de cansaço tinham adormecido um
pouco, acordaram surpresos, olhando para Ele; mas não O
incomodaram, pois pareciam admirados e assustados. Jesus ficou
nesse cárcere pouco mais de uma hora.
13. Judas aproxima-se da casa do tribunal
Judas, tomado de desespero, impelido pelo demônio, vagueara pelo
vale Hinom, no lado íngreme, ao sul de Jerusalém, lugar onde se
jogava o lixo, ossos e cadáveres; enquanto Jesus estava no
cárcere, ele veio aproximar-se da casa do tribunal de Caifás.
Rodeava-a, espreitando; ainda lhe pendia, preso ao cinto, o
prêmio da traição, as moedas de prata encadeadas num molho. A
noite já se tornara silenciosa e o infeliz perguntou aos guardas,
que não o conheciam, o que seria feito do Nazareno.
Responderam-lhe: "Foi condenado à morte e será crucificado".
Ainda ouviu outros falarem entre si que Jesus fora tratado tão
cruelmente e sofrera tudo com paciência e resignação; ao
amanhecer seria levado outra vez perante o Supremo Conselho, para
ser condenado solenemente. Enquanto o traidor colhia cá e lá essas
notícias, para não ser reconhecido, amanheceu o dia e já se via
muito movimento dentro e em redor da casa. Então, para não ser
visto, retirou-se Judas para os fundos da casa; pois fugia dos
homens como Caim e o desespero tomava-lhe cada vez mais posse da
alma. Mas eis o que se lhe apresentou ante os olhos: - Achou-se
no lugar onde tinham trabalhado preparando a cruz; lá estavam as
várias peças já arrumadas e entre elas, envolvidos nos cobertores, estavam os operários dormindo. Por sobre o monte das
Oliveiras cintilava a pálida luz da manhã; parecia tremer de
horror, ao ver o instrumento da nossa salvação. Judas, ao deparar
essa cena, fugiu, preso de horror: vira o madeiro do suplício,
para o qual vendera o Senhor. Escondeu-se, porém, nos arredores,
esperando pelo fim do julgamento da madrugada.
14. O julgamento de Jesus na madrugada
Ao romper do dia, quando já clareara, reuniram-se novamente Anás
e Caifás, os anciãos e os escribas, na grande sala do tribunal,
para uma sessão perfeitamente legal; pois o julgamento feito
durante a noite não era válido e era considerado apenas um
depoimento preparatório das testemunhas, porque urgia o tempo,
por causa da festa iminente. A maior parte dos membros do conselho
passaram o resto da noite na casa de Caifás, seja em aposentos
contíguos, seja na própria sala do tribunal, onde foram colocados
leitos para esse fim. Muitos, entre eles Nicodemos e José de
Arimatéia, chegaram ao romper do dia. Foi uma assembléia numerosa
e em cuja ação houve muita precipitação.
Como os membros do conselho se incitassem uns aos outros a
condenar Jesus à morte, levantaram-se Nicodemos, José de
Arimatéia e alguns outros contra os inimigos de Jesus, exigindo
que a causa fosse adiada até depois da festa, para não provocar
tumultos; também porque não se podia basear um julgamento justo
sobre as acusações até então proferidas, por serem contraditórios
os depoimentos das testemunhas. Os sumos sacerdotes e seu partido
forte irritaram-se com essa oposição e deixaram ver claramente
aos adversários que estes também eram suspeitos de favorecerem
a doutrina do galileu e que por isso naturalmente não Ihes
agradava esse julgamento, porque se dirigia também contra eles
mesmos; assim decidiram eliminar do Conselho todos que eram a
favor de Jesus; esses, porém, protestaram contra tal processo e,
declarando-se alheios a tudo que o Conselho ainda decidisse,
retiraram-se da sala do tribunal e dirigiram-se ao Templo. Depois
desse fato, nunca mais tomaram parte nas sessões do conselho.
Caifás, porém, mandou tirar Jesus do cárcere e conduzi-Lo, fraco,
maltratado e amarrado, como estava, diante do Conselho e preparar
tudo de modo que depois do julgamento, pudessem levá-Io
imediatamente a Pilatos. Os soldados correram tumultuosamente ao
cárcere, lançaram-se com insultos sobre Jesus, desamarraram-nO
da coluna e tiraram-Lhe o manto esfarrapado dos ombros,
obrigaram-nO, entre golpes, a vestir sua comprida túnica, ainda
coberta de toda a imundície e amarrando-O de novo com as cordas
pela cintura, conduziram-nO para fora do cárcere. Isso foi feito,
como tudo, com grande pressa e horrível brutalidade.
Conduziram-nO como um pobre animal de sacrifício, entre insultos
e golpes, através das fileiras dos soldados, que já estavam
reunidos diante da casa, à sala do tribunal. Quando Ele,
horrivelmente desfigurado pelos maus tratos, pela extenuação e
imundície, vestido apenas da túnica toda suja, apareceu diante
do Conselho, o nojo aumentou ainda o ódio desses homens. Nesses
corações duros de judeus não, havia lugar para a compaixão.
Caifás, porém, cheio de escárnio e raiva de Jesus, que estava em
pé diante dele, tão desfigurado, disse-Lhe: "Se és o Cristo do
Senhor, o Messias, dize-no-Io." Jesus levantou o rosto e disse,
com santa paciência e solene gravidade: "Se vo-lo disser, não
acreditareis e se vos perguntar, não me respondereis, nem me
dareis a liberdade; de hoje em diante o Filho do homem sentará
à direita do poder de Deus." Entreolharam-se então e com um riso
de desprezo, disseram a Jesus: "És então o Filho de Deus?" Jesus
respondeu, com a voz da verdade eterna: "Sim, é como dissestes,
eu o sou." A essa palavra de Nosso Senhor gritaram todos: "Que
provas precisamos ainda? Ouvimo-Lo nós mesmos da sua própria
boca".
Levantaram-se todos, cobrindo Jesus de escárnio e insultos,
chamando-O de vagabundo, miserável, de obscuro nascimento, que
queria ser o Messias e sentar-se à direita de Deus. Deram ordem
aos soldados de amarrá-Lo de novo, pôr-Lhe uma cadeia de ferro
em redor do pescoço, como aos condenados à morte, para levá-Lo
assim ao tribunal de Pilatos. Já antes tinham enviado um
mensageiro ao Procurador, avisando-lhe que preparasse tudo para
julgar um criminoso, porque deviam apressar-se, por causa da
festa. Ainda murmuravam contra o governador romano, por serem
obrigados a levar Jesus ainda ao tribunal do mesmo; porque, quando
se tratava de coisas estranhas às leis da religião e do Templo,
não podiam aplicar a pena de morte; querendo, pois, condenar Jesus
com mais aparência de justiça, acusaram-nO de crime contra o
imperador, mas diante dis so competia o julgamento ao governador
romano. Os soldados jáestavam alinhados no adro e até fora da casa
e muitos inimigos de Jesus já se tinham reunido diante da casa,
com o populacho. Os sumos sacerdotes e parte do conselho abriam
o séquito, seguia-se depois o nosso pobre Salvador, entre os
soldados e cercado da soldadesca e por fim toda a corja do
populacho. Assim desceram do monte Sião à cidade baixa, onde
ficava o palácio de Pilatos. Uma parte dos sacerdotes que
assistiram ao Conselho, dirigiram-se ao Templo, onde nesse dia
tinham muito serviço a fazer.
15. Desespero de Judas
Judas, o traidor, que não se tinha afastado muito, ouviu então
o barulho do séquito, como também as palavras de algumas pessoas,
que seguiam de mais longe; entre outras coisas disseram: "Agora
vão leváLo a Pilatos; o Conselho supremo condenou-O à morte; vai
ser crucificado; também não pode mais viver, nesse horrível
estado em que O deixaram os maus tratos. Tem uma paciência
incrível, não diz nada, apenas que é o Messias e se sentará à
direita de Deus; outra coisa não disse e por isso vai morrer na
cruz; se não o tivesse dito, não O podiam condenar à morte, mas
assim deve morrer. O patife que O vendeu, foi seu discípulo e pouco
antes ainda comeu com ele o cordeiro pascal; eu não queria ter
parte nesta ação; seja como for, o Galileu pelo menos nunca
entregou um amigo à morte por dinheiro.
Deveras, esse patife de traidor merece também ser enforcado."
Então o arrependimento tardio, a angústia e o desespero começaram
a lutar na alma de Judas. O demônio impeliu-o a correr. O molho
das trinta moedas de prata, no cinto, sob o manto, era-lhe como
uma espora do inferno: segurou-o com a mão, para que não fizesse
tanto barulho, batendo-lhe na perna ao correr. Correu a toda a
pressa, não atrás do cortejo, para lançar-se aos pés de Jesus,
pedindo perdão ao Salvador misericordioso, não para morrer com
Ele, nem para confessar a culpa diante de Deus; mas para se limpar
diante dos homens da culpa e desfazer-se do prêmio da traição;
correu como um insensato ao Templo, aonde diversos membros do
supremo conselho como chefes dos sacerdotes em exercício e alguns
dos anciãos se tinham dirigido, depois do julgamento de Jesus.
Olharam-se mutuamente, admirados e com um sorriso desprezível,
dirigiram olhares altivos a Judas que, impelido pelo
arrependimento do desespero e fora de si, correu para eles;
arrancou o feixe das moedas de prata do cinto e, estendendo-Ihes
a mão direita com o dinheiro, disse, em tom de violenta angústia:
"Tomai aqui o vosso dinheiro, com o qual me seduzistes a
entregar-vos o Justo; retomai o vosso dinheiro e soltai Jesus;
eu rompo o nosso pacto; pequei gravemente, traindo sangue
inocente." Mas os sacerdotes mostraram-lhe então todo o seu
desprezo; retiraram as mãos do dinheiro que Ihes oferecia, como
se não quisessem manchar-se com o prêmio da traição, dizendo: "Que
nos importa que pecasses? Se julgas ter vendido sangue inocente,
é lá contigo; sabemos o que compramos de ti e julgamo-Lo réu de
morte; é teu dinheiro, não temos nada com isso. etc," Disseram-lhe
essas palavras no tom que usam os homens que estão muito ocupados
e querem livrar-se de um importuno e viraram as costas a Judas.
Esse, vendo-se assim tratado, foi tomado de tal raiva e desespero,
que ficou como louco; eriçaramse-lhe os cabelos e rompendo com
as duas mãos o molho das moedas de prata, espalhou-as com
veemência no templo e fugiu para fora da cidade.
Vi-o de novo, correndo como louco, no vale de Hinom e o demônio
em figura horrível ao seu lado, segredando-lhe ao ouvido, para
levá-Io ao desespero, todas as maldições dos profetas sobre esse
vale, onde antigamente os judeus sacrificavam os próprios filhos
aos deuses. Parecia lhe que todas essas palavras o indicavam com
o dedo, dizendo, por exemplo: "Eles sairão para ver os cadáveres
daqueles que contra mim pecaram, cujo verme não morre, cujo fogo
não se apaga," Depois lhe soou aos ouvidos.: "Caim, onde está
Abel, teu Irmão? Que fizestes? O sangue de teu irmão clama a mim;
agora, pois, serás maldito sobre a terra, vagabundo e fugitivo."
Quando chegou à torrente doe Cedron e olhou na direção do monte
das Oliveiras, estremeceu e virou os olhos. Então ouviu de novo
as palavras: "Amigo, para que vieste? Judas, é com um beijo que
entregas o Filho do homem?" Então um imenso horror lhe penetrou
no fundo da alma, confundiram-se-Ihe os sentidos e o inimigo
segredou-lhe ao ouvido: "Aqui sobre o Cedron, fugiu também Davi
diante de Absalão; Absalão morreu pendurado numa árvore; Davi
referia-se também a ti no salmo: "Retribuíram o bem com o mal,
ele terá um juiz severo; Satanás estará à sua direita, todo o
tribunal o condenará; os seus dias serão poucos; outro lhe
receberá o episcopado; o Senhor recordar-se-á sempre da maldade
dos seus pais e dos pecados de sua mãe, porque sem misericórdia
perseguiu os pobres e matou os aflitos; ele amava a maldição e
esta virá sobre ele; revestia-se da maldição como de uma veste,
como água lhe entrou ela nos intestinos, como óleo nos ossos; como
uma veste o cobre a maldição, como um cinto que o cinge
eternamente." Entre esses terríveis remorsos da consciência,
chegara Judas a um lugar deserto, pantanoso, cheio de lixo e
imundície, a sudeste de Jerusalém, ao pé do monte dos Escândalos,
onde ninguém o podia ver. Da cidade se ouvia ainda mais forte o
tumulto e o demônio disse-lhe: "Agora O conduzem à morte;
vendeste-O; sabes o que está escrito na lei? "Quem vender uma alma
entre seus irmãos, os filhos de Israel, morrerá. Acaba com isto,
miserável, acaba com isto!" Então tomou Judas desesperado o cinto
e enforcou-se numa árvore que crescia em vários troncos, numa
cavidade daquele lugar. Quando se enforcou, rebentou-se-Ihe o
ventre e os intestinos caíram-lhe sobre a terra.
5
Jesus perante Pilatos e Herodes
1.
2.
3.
4.
5.
6.
Jesus é conduzido a Pilatos
O palácio de Pilatos e os arredores
Jesus perante Pilatos
Origem da Via Sacra
Pilatos e a Esposa
Jesus perante Herodes
Jesus perante Pilatos e Herodes
1. Jesus é conduzido a Pilatos
Conduziram Jesus, entre muitas crueldades, da casa de Caifás à
de Pilatos, através do trecho mais populoso da cidade, que nessa
ocasião formigava de peregrinos de toda a parte do país, além de
uma multidão de estrangeiros. O cortejo dirigiu-se para o norte,
descendo do Monte Sião, atravessando uma rua estreita, no fundo
do vale, depois pelo bairro de Acra, ao longo do lado ocidental
do Templo, até o palácio e o tribunal de Pilatos, que estava
situado na esquina noroeste do Templo, defronte do grande Fórum
ou mercado.
Caifás e Anás e grande número de membros do Supremo Conselho iam
em vestes festivas, à frente do cortejo; atrás deles, alguns
servos traziam rolos de escritura. Seguiam-se-Ihes muitos outros
escribas e judeus, entre eles as falsas testemunhas e os
assanhados fariseus, que foram os que mais se empenharam em acusar
ao Senhor. A uma pequena distância, seguia nosso bom Senhor Jesus,
conduzido pelos soldados com as cordas, cercado de soldados e dos
seis agentes que estavam presentes no ato da prisão. De todos os
lados afluiu o populacho, unindo-se com gritos e zombarias ao
cortejo; ao longo de todo o caminho esperavam numerosos grupos
de gente do povo.
Jesus estava vestido apenas de sua túnica, toda suja de escarro
e imundície. Do pescoço pendia-Lhe até os joelhos a longa
corrente, de largos anéis, que, ao andar, Lhe batia dolorosamente
de encontro aos joelhos. Tinha as mãos amarradas como na véspera
e quatro soldados conduziam-na pelas cordas, que Lhe saiam do
cinturão. Estava todo desfigurado pelas crueldades, com que O
haviam torturado durante a noite; andava cambaleando, cabelo e
barba em desalinho, o rosto pálido, inchado e cheio de manchas
escuras, causadas pelos socos. Impeliam-nO com pancadas e
injúrias. Tinham instigado a muitos do populacho para
escarnecê-Lo, imitando-Lhe a entrada triunfal no Domingo de
Ramos. Aclamavam-na com todos os títulos de rei, em tom de mofa,
jogavam-Lhe diante dos pés pedras, pedaços de madeira, paus,
trapos sujos e zombavam, em versos e motejos, de sua entrada
festiva. Os soldados conduziam-na aos arrancos, sobre os
obstáculos jogados no caminho; era uma crueldade sem fim.
Não muito longe da casa de Caifás estava a dolorosa e santa Mãe
de Jesus, com Madalena e João, encostados ao canto de um edifício,
esperando a aproximação do cortejo. A alma de Maria estava sempre
com Jesus, mas quando podia ficar também corporalmente perto
dEle, não lhe dava descanso o amor, impelindo-a a seguir-Lhe o
caminho e as pegadas. Depois da visita noturna ao tribunal de
Caifás, ficara só pouco tempo no Cenáculo, entregue à muda dor;
pois, quando Jesus foi tirado do cárcere, de madrugada, para ser
apresentado ao tribunal, a Virgem SS. se levantou, cobriu-se com
o manto e véu e saindo, disse a João e Madalena: "Sigamos meu Filho
à casa de Pilatos, quero vê-Lo com meus olhos." Dando uma volta,
chegaram assim em frente do cortejo; a SS. Virgem parara nesse
lugar e os outros com ela. A santa Mãe de Jesus sabia bem o que
era feito do divino Filho, que Lhe estava sempre ante os olhos
da alma; mas com o olhar interior não O podia ver tão desfigurado
e maltratado como na realidade estava, pela maldade e crueldade
dos homens. De fato via-Lhe sempre os horríveis sofrimentos, mas
inteiramente penetrados pela luz da santidade, do amor e da
paciência, da vontade que se oferecia vítima pelos homens. Mas
nesse momento se lhe apresentou à vista a realidade terrível e
ignominiosa. Passaram diante dela os orgulhosos e assanhados
inimigos de Jesus, os sumos sacerdotes do verdadeiro Deus, nas
vestes santas de gala; passaram com a intenção deicida,
representantes da malícia, mentira e maldição. Os sacerdotes de
Deus haviam-se tornado sacerdotes de Satanás. Que aspecto
horrível! Depois o tumulto e a alegria dos judeus, todos os perjuros inimigos e acusadores e afinal Jesus, Filho de Deus e do Homem,
seu filho, horrivelmente desfigurado e maltratado, amarrado,
batido, empurrado, cambaleando mais do que andando, arrastado
pelas cordas por cruéis carrascos, no meio de uma nuvem de
injúrias e maldições. Aí, se ele não fosse o mais pobrezinho, o
mais desamparado, o único que se conservava calmo, a rezar no
íntimo do coração, cheio de amor, no meio dessa tempestade do
inferno desencadeado, a angustiada Mãe não O teria reconhecido,
naquele estado, horrivelmente desfigurado. Quando se aproximou,
vestido da túnica tão suja, a Virgem Santíssima exclamou,
soluçando: "Ai de mim! É esse meu filho? Ai! É mesmo meu filho,
oh! Jesus, meu Jesus!" O cortejo passou-lhe em frente; o Senhor
volveu a cabeça para aquele lado, lançando um olhar comovente à
sua Mãe e ela perdeu os sentidos. João e Madalena levaram-na dali,
mas logo que voltou a si, fez-se conduzir por João ao palácio de
Pilatos.
Jesus tinha de suportar, também nesse caminho, que os amigos nos
abandonam na desgraça; pois os habitantes de Ofel estavam todos
reunidos num certo lugar do caminho e quando viram Jesus tão humilhado e desfigurado, entre os soldados, levado com injúrias e maus
tratos, ficaram também abalados na fé; não podiam imaginar o rei,
o profeta, o Messias, o Filho de Deus em tão miserável estado.
Os fariseus, ao passar, ainda zombaram deles, por causa da afeição
que dedicavam a Jesus: "Eis o vosso rei, saudai-O; agora deixais
pender a cabeça, agora que Ele vai para a coroação e dentro em
pouco subirá ao trono! Acabaram-se-Lhe os milagres, o sumo
sacerdote deu-Lhe cabo do feitiço, etc." Aquela boa gente, que
vira tantas curas milagrosas e recebera tantas graças de Jesus,
ficou abalada na fé, pelo horrível espetáculo que lhe
apresentavam as pessoas mais santas do país, o sumo sacerdote e
o Sinédrio. Os melhores elementos retiraram-se duvidosos, os
piores juntaram-se ao cortejo como podiam; pois a passagem em
várias ruas estava impedida por guardas dos fariseus, para evitar
qualquer tumulto.
2. O palácio de Pilatos e os arredores
Ao pé do ângulo noroeste do monte do Templo (8) está situado o
palácio do governador romano, Pilatos, em lugar bastante alto;
sobe-se uma escada de mármore de muitos degraus, de onde a vista
domina uma vasta praça de mercado, cercada de colunas, sob as
quais há acomodações para vendedores. Um posto de guarda de quatro
entradas, ao oeste, norte, leste e sul, (onde está o palácio de
Pilatos), interrompem essas arcadas do mercado, o qual também é
chamado "fórum" e se estende para oeste, além do ângulo noroeste
do monte do Templo; desse ponto do fórum pode-se avistar o Monte
Sião. O fórum é um pouco mais elevado de que as ruas
circunvizinhas, que sobem um pouco, até chegar às portas de
entrada do edifício; em várias partes se encostam as casas das
ruas vizinhas ao extremo da coluna que cerca o fórum. O palácio
de Pilatos não está contíguo ao fórum, mas é separado desse por
um espaçoso pátio. Esse pátio tem como porta, a leste, uma alta
arcada, que abre diretamente para a rua que conduz à porta das
Ovelhas, pela qual passa quem vai ao monte das Oliveiras; a oeste,
tem como porta outra arcada, que abre para a parte oriental da
cidade e conduz a Sião, através do bairro de Acra.
8) Provavelmente Junto ao forte Antônia, cuja situação nesse
lugar a vidente descreveu diversas vezes.
Da escada do palácio de Pilatos se avista, no norte, através do
pátio, o fórum, em cuja entrada há um pórtico e alguns assentos
de pedra, virados para o palácio. Os sacerdotes judeus,
dirigindo-se ao tribunal de Pilatos, não iam além desses
assentos, para não se contaminarem; o limite que não deviam
ultrapassar, estava marcado por uma linha traçada (sobre o
pavimento do pátio. Perto da arcada da porta oriental do palácio,
já dentro do recinto do fórum, havia um grande posto de guarda,
que, confinando ao norte com o fórum e ao sul com a arcada da porta
do pretório de Pilatos, formava uma espécie de vestíbulo ou adro
entre o foro e o pretório. Chamava-se pretório a parte do palácio
de Pilatos onde ele pronunciava os julgamentos. O posto de guarda
era rodeado de colunatas e tinha no centro um pátio sem teto, sob
este se achavam os cárceres, nos quais também os dois ladrões
estavam presos. Em toda parte se viam lá soldados romanos. Não
longe do posto da guarda, perto das arcadas que o cercavam, estava
no fórum a coluna da flagelação; havia ainda outras colunas no
recinto do mercado: as que estavam mais perto, serviam para
infligir castigos corporais, as que estavam mais longe, para
amarrar o gado à venda. Em frente ao posto da guarda, mesmo no
fórum, se subia por uma escadaria a um estrado, construído de pedras e bem ladrilhado, em que havia assentos de pedra; parecia-se
com um tribunal público; desse lugar, que era chamado Gabata,
pronunciava Pilatos as sentenças. A escada de mármore do palácio
de Pilatos conduzia a um terraço aberto, do qual ele falava aos
acusadores, sentados nos bancos de pedra defronte, próximo à
entrada do fórum. Falando alto, podia-se fazer entender com
facilidade.
Atrás do palácio há ainda outro terraço mais elevado, com jardins
e um caramanchão. Esses jardins formam a comunicação entre o
palácio de Pilatos e a casa da esposa, Cláudia Prócula. Por trás
desses edifícios há ainda um fosso, que os separa do monte do
Templo; além deste há ainda casas de empregados do Templo.
Contígua à parte oriental do palácio de Pilatos, está a casa do
conselho do tribunal do velho Herodes, em cujo pátio interno foram
mortas muitas crianças inocentes. Fizeram depois algumas
mudanças; a entrada é agora pelo lado oriental; há também uma
entrada para Pilatos, no vestíbulo do palácio.
Desse lado da cidade partem quatro ruas em direção ao oeste: três
conduzem ao palácio de Pilatos e ao Fórum; a quarta, porém, passa
ao lado norte do fórum, em direção à porta que conduz a Betsur.
Nesta rua, perto da porta, se acha o belo edifício que Lázaro
possui em Jerusalém e no qual também Marta tem uma habitação
própria.
Das quatro ruas, a que fica mais perto do Templo, vem da porta
das Ovelhas, perto da qual, quando se entra, à direita, se acha
a piscina das ovelhas; essa fica tão perto do muro da cidade, que
nesse se encostam arcadas, que formam uma abóbada sobre as águas.
Ela tem um escoadouro, fora do muro, para o vale de Josafá, o que
faz com que o solo, por fora da porta, fique encharcado. Em redor
dessa piscina há ainda outros edifícios; é nessa piscina que se
lavam os cordeiros pela primeira vez, antes de serem levados ao
sacrifício no Templo; mais tarde são lavados outra vez e
solenemente, na piscina de Betsaida, ao sul do Templo. Na segunda
rua há uma casa com pátio, que pertencia a Sant'Ana, Mãe de Maria,
onde ela e a família moravam e guardavam os animais para os
sacrifícios, quando vinham a Jerusalém. Se me lembro bem, foi
também nessa casa que foram celebradas as núpcias de José e Maria.
O Fórum, como já dissemos, fica mais alto do que as ruas
circunvizinhas e a água corre pelos regos das ruas, para a piscina
das Ovelhas. Na encosta do monte Sião há também um fórum
semelhante, diante do antigo castelo de Davi; ali perto, ao
sudeste, se acha o Cenáculo e ao norte, o tribunal de Anás e
Caifás. O Castelo de Davi é agora um forte abandonado e deserto,
com pátios, estábulos e salas vazias, que se alugam como
albergaria a caravanas e aos estrangeiros e seus animais de carga.
Esse edifício já há muito que está abandonado; já o vi nesse estado
na época do nascimento de Cristo; nessa ocasião o séquito dos Reis
Magos, com numerosos animais de carga, foi conduzido para lá, logo
ao entrar na cidade.
3. Jesus perante Pilatos
Eram talvez seis horas da manhã, segundo o nosso modo de contar,
quando a comitiva dos sumos sacerdotes e dos fariseus, com o nosso
Salvador, horrivelmente maltratado, chegou ao palácio de
Pilatos. Entre o mercado e a entrada do tribunal havia assentos
em ambos os lados do caminho, onde se divertiam Anás e Caifás,
e os conselheiros que os acompanhavam. Jesus foi conduzido alguns
passos adiante, até a escada de Pilatos, pelos soldados, que o
seguravam pelas cordas. Quando láchegaram, estava Pilatos
deitado sobre uma espécie de leito, na sacada do terraço; tinha
ao lado uma mezinha de três pés, em que se viam algumas insígnias
de sua dignidade e outros objetos, dos quais não me lembro mais.
Cercavam-no oficiais e soldados, que também tinham colocado lá
insígnias do poder romano. Os sumos sacerdotes e judeus ficaram
afastados do tribunal, porque, aproximando-se mais, se teriam
contaminado; segundo a lei havia um certo limite, que não
transgrediam.
Quando Pilatos os viu chegar tão apressados, com tanto tumulto
e gritaria, conduzindo Jesus maltratado, levantou-se e falou em
tom tão cheio de desprezo, como talvez algum orgulhoso marechal
francês falaria aos deputados de uma cidadezinha: "O que vindes
fazer tão cedo? Como pusestes este homem em tão mísero estado?
Começais cedo a esfolar e matar." Eles, porém, gritaram aos
soldados: "Adiante! Levai-O ao tribunal." Depois se dirigiram a
Pilatos: "Escutai as nossas acusações contra este criminoso; não
podemos entrar no tribunal, para não nos tornarmos impuros.
Depois de exclamarem essas palavras, gritou um homem de estatura
alta e forte e figura venerável, no meio do povo apinhado atrás
deles no fórum: "É verdade, não podeis entrar neste tribunal, pois
está santificado por sangue inocente; só Ele pode entrar, só Ele
entre os judeus épuro como os inocentes." Assim dizendo,
profundamente comovido, desapareceu na multidão. Chamava-se
Sadoc; era homem abastado, primo de Obed, que era o marido de
Seráfia, também chamada Verônica; dois dos seus filhinhos tinham
sido assassinados, com as crianças inocentes, no pátio do
tribunal, por ordem de Herodes. Desde então se tinha retirado do
mundo e vivia como um Esseno, em continência com a mulher. Tinha
visto Jesus uma vez, em casa de Lázaro e ouvira-O explicar a
doutrina; quando viu Jesus tão cruelmente arrastado para a escada
de Pilatos, reviveu-Ihe no coração a dolorosa lembrança dos
filhinhos assassinados naquele lugar e assim deu em alta voz o
testemunho da inocência do Senhor. Os acusadores de Jesus estavam
com muita pressa e irritados demais pelo modo desdenhoso de
Pilatos e a posição humilhante em que se achavam diante dele, para
dar atenção à exclamação de Sadoc.
Os soldados puxaram Jesus pelas cordas, escada acima, até o fundo
do terraço, de onde Pilatos estava falando aos acusadores. O
procurador romano já ouvira falar muito de Jesus. Quando O viu
tão horrivelmente maltratado e desfigurado e contudo conservando
uma dignidade inabalável, sentiu cada vez mais nojo e desprezo
dos sacerdotes e conselheiros judaicos, que lhe tinham já antes
prevenido que trariam Jesus de Nazaré, réu de morte, perante o
tribunal, fazendo-Ihes sentir que não estava disposto a
condená-Lo sem culpa provada. Disse-Ihes, pois, em tom brusco e
desdenhoso: "De que crime acusais este homem?" A que responderam
irritados: "Se não O conhecêssemos como malfeitor, não vo-Lo
teríamos entregado." Disse-Ihes Pilatos: "Pois tomai e julgai-O
segundo a vossa lei." - "Sabeis, responderam os judeus, que não
nos compete o direito absoluto de executar uma sentença de morte.”
Os inimigos de Jesus estavam cheios de escárnio e raiva; fizeram
tudo com precipitação e violência, para acabar com Jesus antes
de co meçar o tempo legal da festa, afim de poderem sacrificar
o cordeiro pascal. Mas não sabiam que Ele era o verdadeiro
Cordeiro pascal, que eles mesmos conduziam ao tribunal do juiz
pagão, servidor de falsos deuses, em cujo limiar não queriam
contaminar-se, para poder nesse dia comer o cordeiro pascal.
Como o governador os intimasse a proferir as acusações,
apresentaram três acusações principais contra Jesus e por cada
acusação depuseram 10 testemunhas. Formularam as acusações de
modo que apresentavam Jesus como réu de crime de lesa-majestade
e assim Pilatos devia condená-Lo; pois em causas que diziam
respeito às leis da religião e do Templo, poderiam eles mesmos
decidir. Primeiro acusaram Jesus de ser sedutor do povo,
perturbador do sossego público e agitador; e apresentaram algumas
provas, confirmadas por testemunhas. Disseram mais que andava de
um lugar para outro, causando grandes ajuntamentos do povo; que
violava o Sábado, curando nesse dia. Nisso Pilatos interrompeu-os, num tom sarcástico: "Naturalmente não estais doentes,
senão estas curas não vos causariam tanta indignação." Eles,
porém, continuaram a acusar Jesus, dizendo que seduzia o povo com
horríveis doutrinas, pois afirmava que teriam a vida eterna os
que Lhe comessem a carne e bebessem o sangue. - Pilatos zangou-se,
ao ver a fúria precipitada com que proferiram essa acusação; olhou
sorrindo para os seus oficiais e dirigiu aos judeus palavras
sarcásticas, como, por exemplo: "Parece mesmo que quereis
seguir-Lhe a doutrina e possuir a vida eterna; tenho a impressão
de que quereis comer-Lhe a carne e beber-Lhe o sangue.”
A segunda acusação era que Jesus instigava o povo a não pagar
imposto ao imperador. Pilatos interrompeu-os indignado, como
homem cujo cargo era velar por essas coisas e disse, em tom
convicto de suas próprias informações: "Isto é mentira grossa;
devo sabê-Io melhor do que vós." - Os judeus, porém, gritaram,
apresentando a terceira acusação: Que era mesmo verdade, esse
homem, de nascimento baixo, duvidoso e suspeito, tinha formado
um partido forte e proferido ameaças contra Jerusalém. Também
propagava entre o povo parábolas equivocas, sobre um rei que
prepara as núpcias do filho. Certa vez já uma grande multidão de
povo, reunido em uma montanha, tinha tentado proclamá-Lo rei, mas
Ele, achando que era ainda cedo, tinha-se escondido. Nos últimos
dias tinha ousado mais: preparou uma entrada tumultuosa em
Jerusalém e fez o povo gritar: "Hosana ao filho de Davi! Bendito
seja o reino que vemos chegar, do nosso pai Davi. Também se fazia
prestar honras régias, pois que ensinava que era Cristo, o
Unigênito do Senhor, o Messias, o rei prometido dos judeus e assim
se fazia chamar." Também essa acusação foi confirmada pelos
depoimentos de dez testemunhas.
Quando Pilatos ouviu que Jesus se fazia chamar o Cristo, rei dos
judeus, tornou-se pensativo. Saindo da sacada, entrou na sala
contígua ao tribunal, lançando, ao passar um olhar atento a Jesus
e deu ordem à guarda de trazê-Lo à sala do tribunal.
Pilatos era pagão supersticioso de espírito confuso e
inconstante. Conhecia as lendas obscuras de filhos dos deuses,
que teriam vivido na terra; também não ignorava que os profetas
dos judeus, desde muito tempo, haviam predito a vinda de um ungido
de Deus, de um Redentor e um libertador e que muitos judeus o
estavam esperando. Também sabia que uns reis do Oriente tinham
vindo ao velho Herodes, para pedir informações sobre um rei
recém-nascido dos judeus, a quem queriam prestar homenagens e que
depois disso, muitas crianças foram degoladas, por ordem de
Herodes. Já ouvira falar da promissão da vinda de um Messias, rei
dos judeus, mas como pagão que era, não o acreditava, nem podia
compreender que espécie de rei seria; quando muito, podia pensar,
como os judeus instruídos e os herodianos daquele tempo, num rei
poderoso e conquistador. Tanto mais ridícula lhe parecia por isso
a acusação de que esse Jesus que estava diante dele, tão humilhado
e desfigurado, pudesse declarar ser aquele Messias, aquele rei.
Como, porém, os inimigos de Jesus apresentassem isso como crime
contra os direitos do imperador, mandou conduzir o Salvador à sua
presença, para interrogá-Lo.
Pilatos olhou para Jesus com assombro e disse-Lhe: "És então o
rei dos judeus?" - Jesus respondeu: "Dizes isto de ti mesmo ou
foram outros que t'o disseram de mim?" Pilatos, indignado de ver
Jesus julgá-Io tão tolo, que fosse espontaneamente perguntar a
um homem tão pobre e miserável se era rei, disse em tom desdenhoso:
"Por acaso sou judeu, para me interessar por tais misérias? Teu
povo e seus sacerdotes entregaram-Te a mim, para condenar-Te como
réu de crime capital; dize-me, pois, o que fizeste?"
Respondeu-lhe Jesus, em tom solene: "O meu reino não é deste
mundo; se o meu reino fosse deste mundo, eu teria servidores, que
combateriam por mim, para não me deixar cair nas mãos dos judeus;
mas o meu reino não é deste mundo." Pilatos estremeceu, ao ouvir
essa graves palavras de Jesus e disse pensativo. "Então és mesmo
rei?" - Jesus respondeu. "É como dizes, sou rei. Nasci e vim a
este mundo para dar testemunho da verdade e todo que é da verdade,
atende à minha voz." - Então Pilatos fitou-O e levantando-se,
disse: "Verdade? O que é a verdade?" - Falaram-se ainda outras
palavras, das quais não me lembro bem.
Pilatos saiu outra vez para o terraço; não podia compreender
Jesus; mas sabia que não era um rei que quisesse prejudicar ao
imperador, nem era pretendente a um reino deste mundo; o
imperador, porém, não se importava com um reino do outro mundo.
Pilatos gritou, pois, da sacada aos sumos sacerdotes: "Não acho
nenhum crime neste homem." - os inimigos de Jesus irritaram-se
de novo e proferiram uma torrente de acusações contra Ele. O
Senhor, porém, permanecia calado e rezava por esses pobres homens
e quando Pilatos se Lhe dirigiu, perguntandoLhe: "Não tens nada
a responder a todas essas acusações?" Jesus não, proferiu uma só
palavra, de modo que Pilatos, surpreso, Lhe disse: "Vejo bem que
empregam mentiras contra ti" - (em vez de mentiras usou outra
expressão, que, porém, esqueci). Os acusadores continuavam,
cheios de raiva, a acusá-Lo, dizendo: "O que? Não achais crime
n’Ele? Não é então crime sublevar todo o povo, espalhar sua
doutrina em todo o país, da Galiléia até aqui?”
Quando Pilatos ouviu a palavra Galiléia, refletiu um momento e
perguntou: "Esse homem é da Galiléia, súdito de Herodes?" Os
acusadores responderam: "Sim, seus pais moravam em Nazaré e Ele
tem domicílio atual em Cafarnaum." Então disse Pilatos: "Pois que
é galileu e súdito de Herodes, conduzi-O a este; ele está aqui
na festa e pode julgá-Lo." Mandou conduzir Jesus outra vez do
tribunal para as mãos dos implacáveis inimigos, enviando também
com eles um dos oficiais, para entregar ao tribunal de Herodes
o súdito galileu Jesus de Nazaré. Ficou assim satisfeito'de poder
livrar-se desse modo da obrigação de julgar Jesus pois essa causa
lhe era desagradável. Ao mesmo tempo tinha nisso um fim político,
queria dar uma prova de atenção a Herodes, que sempre desejara
muito ver Jesus; pois estavam em desavença.
Os inimigos de Jesus, furiosos por lhes haver Pilatos negado a
demanda e terem de ir ao tribunal de Herodes, fizeram recair toda
a raiva sobre Jesus. Cercaram-na de novo de soldados e,
irritadíssimos, amarraram-Lhe as mãos e com empurrões e pancadas,
conduziram-na a toda pressa, através da multidão que se apinhava
no fórum e depois por uma rua, até o palácio de Herodes, que não
ficava muito longe. Acompanharam-nos soldados romanos.
Cláudia Prócula, esposa de Pilatos, mandara-lhe dizer por um criado, durante as ultimas discussões, que desejava falar-lhe
urgentemente. Quando Jesus foi conduzido a Herodes, estava
escondida numa galeria alta, olhando com grande angústia e
tristeza para o cortejo que passava pelo fórum.
4. Origem da Via Sacra
Durante toda a acusação perante Pilatos, a Mãe de Jesus, Madalena
e João ficaram no meio do povo, num canto das arcadas do fórum
ouvindo com profunda dor a gritaria raivosa dos
acusadores..Quando Jesus foi conduzido a Herodes, João voltou com
a SS. Virgem e Madalena por todo o caminho da Paixão. Foram até
à casa de Caifás e a de Anás, atravessando Ofel, até chegarem a
Getsêmani, no monte das Oliveiras e em todos os lugares onde Ele
caíra ou onde lhes tinham causado um sofrimento, paravam e em
silêncio choravam e sofriam com Ele. Muitas vezes a SS. Virgem
se prostrava no chão, beijando a terra onde Jesus caíra, Madalena
torcia as mãos e João, chorando, consolava-as, levantava-as e
continuava com elas o caminho. Foi esse o começo da Via Sacra e
da contemplação e veneração da Paixão de Jesus, antes mesmo que
estivesse terminada. Foi nessa ocasião que começou, na mais santa
flor da humanidade, na Santíssima Virgem Mãe de Deus e do Filho
do homem, a devoção da Igreja às dores do Redentor; já naquele
momento, quando Jesus ainda trilhava o caminho doloroso da
Paixão, a Mãe cheia de graça venerava e regava com lágrimas as
pegadas de seu Filho e Deus. Oh! que compaixão! Com que violência
lhe entrou a espada no coração, ferindo-o sem cessar! Ela, cujo
bem-aventurado seio O trouxera, que concebera, acariciara e
nutrira o Verbo, que era desde o princípio com Deus e era mesmo
Déus; ela, que em si Lhe tivera e sentira a vida, antes que, os
homens, seus irmãos, Lhe recebessem a bênção, a doutrina e a
salvação, ela participava de todos os sofrimentos de Jesus,
inclusive a sua sede da salvação dos homens, pela dolorosa Paixão
e Morte. Assim a Virgem puríssima e Imaculada inaugurou para a
Igreja a Via Sacra, para juntar em todos esses lugares os
infinitos merecimentos de Jesus Cristo, como se juntam pedras
preciosas ou colhê-los como se colhem flores à beira do caminho
e oferecê-Ios ao Pai Celeste, por aqueles que crêem. Tudo que
tinha havido e haverá de santo na humanidade, todos que têm
almejado a salvação, todos que já uma vez celebraram compadecidos
o amor e os sofrimentos do Senhor, fizeram esse caminho com Maria,
choraram, rezaram e sacrificaram no coração da Mãe de Jesus, que
também é terna Mãe de todos os seus irmãos, os fiéis da Igreja.
Madalena estava como que alucinada pela dor. Tinha um imenso e
santo amor a Jesus; mas quando queria verter a alma aos pés do
Salvador, como Lhe vertera o óleo de nardo sobre a cabeça,
abria-se um horrível abismo entre ela e o Bem-Amado. O
arrependimento dos pecados, como a gratidão pelo perdão, lhe eram
sem limites e quando o seu amor queria fazer subir a ação de graças
aos pés do Divino Mestre, como uma nuvem de incenso, eis que O
via maltratado e conduzido à morte, por causa dos pecados dela,
que Ele tomara sobre si. Então se lhe horrorizava a alma, diante
de tão grande culpa, pela qual Jesus tinha de sofrer tão
horrivelmente; precipitava-se-lhe no abismo do arrependimento,
que não podia nem exaurir, nem encher; e de novo se elevava, cheia
de amor e saudade, para seu Mestre e Senhor e via-O sofrendo
indizíveis crueldades. Assim tinha a alma cruelmente dilacerada,
vacilava entre o amor e o arrependimento, entre a sua gratidão
e a dolorosa contemplação da ingratidão do povo para com o
Redentor; todos esses sentimentos se lhe manifestavam no rosto,
nas palavras e nos movimentos.
João sofria em seu amor; conduzia a Mãe de seu Santo Mestre e Deus,
que também o amava e sofria por ele; conduzia-a, pela primeira
vez, nas pegadas da Via Sacra da Igreja e lia-lhe na alma o futuro.
5. Pilatos e a Esposa
Enquanto Jesus era conduzido a Herodes e lá o cobriam de insultos
e escárnio, vi Pilatos ir ao encontro da esposa, Cláudia Prócula.
Encontraram-se numa pequena casa, construída sobre um terraço do
jardim, atrás do palácio de Pilatos. Cláudia estava muito
incomodada e comovida. Era mulher alta e esbelta, mas pálida;
vestia um véu, que lhe pendia sobre as costas, contudo viam-se-Ihe
os cabelos, dispostos em redor da cabeça e alguns adornos; tinha
também brincos, um colar e sobre o peito um broche, em forma de
agrafe, que lhe prendia o longo vestido de pregas. Conversou
muito, tempo com Pilatos, conjurando-o por tudo que lhe era santo
a não fazer mal a Jesus, o Profeta, o mais Santo dos santos e
contou-lhe parte das visões maravilhosas que vira, a respeito de
Jesus, durante a noite.
Enquanto ela falava, vi-lhe grande parte das visões que tivera;
mas não me lembro mais exatamente da ordem em que se seguiram.
Recordome todavia, que viu todos os momentos principais da vida
de Jesus; viu a Anunciação de N. Senhora, o Nascimento de Jesus,
a adoração dos pastores e dos Reis Magos, as profecias de Simeão
e Ana, a fuga para o Egito, a matança dos inocentes, a tentação
no deserto, etc. Viu-Lhe quadros da vida pública, virtudes e
milagres; viu-O sempre rodeado de luz e teve visões horríveis do
ódio e da maldade de seus inimigos; viuLhe os inúmeros
sofrimentos, o amor e a paciência sem limite, a santidade e as
dores de sua santa Mãe. Para mais fácil compreensão, eram esses
quadros ilustrados com figuras simbólicas e pela diferença de luz
e sombra. Essas visões lhe causaram indizível angústia e
tristeza; pois todas essas coisas lhe eram novas, penetraram-lhe
no coração pela verdade intuitiva; parte das visões mostraram-lhe
acontecimentos que se deram na vizinhança de sua casa, como por
exemplo a matança das crianças inocentes e a profecia de Simeão
no Templo. De minha própria experiência sei bem quanto um coração
compassivo sofre em tais visões; pois compreende melhor os
sentimentos de outrem quem já os sentiu em si mesmo.
Ela tinha sofrido desse modo durante a noite e visto muitas coisas
maravilhosas e compreendido muitas verdades, umas mais, outras
menos claramente, quando foi acordada pelo barulho da multidão,
que conduzia a Jesus. Quando mais tarde olhou para fora, viu o
Senhor, objeto de todas as coisas maravilhosas que vira durante
a noite, desfigurado e cruelmente maltratado pelos inimigos, que
o conduziam através do fórum, ao palácio de Herodes. Esse
espetáculo, após as visões da noite, encheu-lhe o coração de
angústia e terror. Mandou imediatamente chamar Pilatos, a quem
contou, com medo e pavor, muitas das coisas que vira, porque não
tinha compreendido tudo ou não o sabia exprimir em palavras; mas
pedia e suplicava e estreitava-se-Ihe de um modo tocante.
Pilatos ficou muito admirado e até sobressaltado pelo que a esposa
lhe contou, comparava-o com tudo que ouvia cá e lá sobre Jesus,
com a raiva dos,judeus, com o silêncio do Mestre e as firmes e
maravilhosas respostas que lhe dera às perguntas; ficou
perturbado e inquieto; deixou-se, porém, em pouco vencer pelas
insistências da mulher e disse-lhe: "Já declarei que não acho
crime nesse homem; não O condenarei, jápercebi toda a maldade dos
judeus." Ainda falou sobre as declarações que Jesus tinha feito
contra si mesmo e até tranqüilizou a mulher, dandolhe um penhor,
como garantia da promessa. Não sei mais se foi uma jóia ou um
anelou sinete que lhe deu por penhor. Assim se separaram.
Conheci Pilatos como homem confuso, ambicioso, indeciso,
orgulhoso e vil ao.mesmo tempo; sem verdadeiro temor de Deus, não
recuava diante das ações mais vergonhosas, se delas esperava
qualquer lucro e ao mesmo tempo era um vil covarde, que se
entregava a toda espécie de ridículas superstições, procurando
a proteção dos deuses, quando se achava em situação difícil. Vi-o
também nessa ocasião muito perturbado; estava continuamente
diante dos deuses, aos quais oferecia incenso, numa sala secreta
da casa e dos quais pedia sinais. Também esperava outros sinais
supersticiosos, por exemplo, observava como comiam as galinhas;
mas todas essas coisas pareciam tão horríveis, tenebrosas e
infernais, que recuei tremendo de horror e não as posso mais
contar exatamente. Tinha ele as idéias confusas e o demônio sugeria-lhe ora uma, ora outra coisa. Primeiro opinou que devia soltar
Jesus, por ser inocente; depois pensou que os deuses se vingariam,
se salvasse Jesus; pois havia estranhos sinais e declarações, que
provavam ser o Nazareno um semideus, e sendo assim, podia fazer
muito mal aos deuses. "Talvez", disse consigo, "seja uma espécie
de Deus dos judeus, que deve reinar sobre tudo; alguns reis dos
adoradores dos astros, vindos do oriente, já vieram uma vez a
Jerusalém, procurar tal rei; talvez Este pudesse elevar-Se acima
dos deuses e do imperador e eu teria uma grande responsabilidade,
se Ele não morresse. Talvez a sua morte seja o triunfo dos meus
deuses." Mas depois se recordou dos sonhos maravilhosos da
mulher, que antes nunca vira Jesus e isso lançou um grande peso
na balança oscilante de Pilatos, em favor da libertação do Mestre
e decidiu-se de fato nesse sentido. Queria ser justo; mas não o
podia, porque tinha perguntado: "O que é a verdade?" e não
esperara a resposta: "Jesus Nazareno, o rei dos judeus, é a
verdade." Havia tanta confusão nos pensamentos do Procurador
romano, que eu não o podia compreender e ele mesmo também não sabia
o que queria; senão certamente não teria consultado as galinhas.
Juntava-se no entanto cada vez mais povo no mercado e na
vizinhança da rua pela qual Jesus fora conduzido a Herodes. Havia,
porém, uma certa ordem, pois o povo reunia-se em certos grupos,
segundo as cidades ou regiões donde vieram à festa. Os fariseus
mais encarniçados de todas as regiões onde Jesus tinha ensinado,
estavam com os patrícios, esforçando-se por excitar contra Jesus
o povo instável e perplexo. Os soldados romanos estavam reunidos
em grande número no posto de guarda, diante do palácio de Pilatos,
outros tinham ocupado todos os pontos importantes da cidade.
6. Jesus perante Herodes
O palácio do Tetrarca Herodes estava situado ao norte do fórum,
na cidade nova, não muito longe do palácio de Pilatos. Um
destacamento de soldados romanos acompanhou o cortejo, a maior
parte oriunda da região entre a Itália e a Suíça. Os inimigos de
Jesus, furiosos por ter de fazer tantas caminhadas, não cessavam
de ultrajá-Lo e de fazê-Lo empurrar e arrastar pelos soldados.
O mensageiro de Pilatos chegou antes do cortejo ao palácio de
Herodes, que assim, já avisado, O esperava sentado numa espécie
de trono, sobre almofadas, numa vasta sala; rodeavam-no muitos
cortesãos e soldados. Os Sumos Sacerdotes entraram pelo peristilo
e colocaram-se de ambos os lados; Jesus ficou na entrada. Herodes
sentiu-se muito lisonjeado, por Pilatos tê-Lo publicamente
declarado competente, diante dos Sumos Sacerdotes, de julgar um
galileu. Mostrou-se muito importante e vaidoso; também se regozijava de ver diante de si, em situação tão humilhante, o famoso
Mestre, que sempre tinha desdenhado apresentar-Se-Ihe. João
falara d’Ele com tanta solenidade e ouvira os Herodianos e outros
espiões e mexeriqueiros falarem de Jesus, que tinha muita
curiosidade de vê-Lo; compraziase em sujeitá-Lo, diante dos
palacianos e dos Sumos Sacerdotes, a um prolixo interrogatório,
pelo qual queria mostrar a ambas as partes quanto estava bem
informado. Pilatos tinha-lhe também comunicado que não achara
crime em Jesus; e o hipócrita tomou-o como aviso, para tratar os
acusadores com certa frieza, o que ainda mais Ihes aumentou a
raiva.
Proferiram acusações tumultuosamente, logo ao entrarem; Herodes,
porém, olhou com curiosidade para Jesus e quando O viu tão
desfigurado e maltratado, o cabelo desgrenhado, o rosto
dilacerado e coberto de sangue e imundícies, a túnica toda suja
de lama, esse rei mole e libertino sentiu dó e nojo. Exclamou um
nome de Deus que me soou como "Jeovah", virou o rosto, com um gesto
de nojo e disse aos sacerdotes: "Levai-O daqui, limpai-O. Como
podeis trazer à minha presença um homem tão sujo e maltratado?"
Os soldados levaram então Jesus ao átrio; trouxeram água numa
bacia e um esfregão e limparam-nO cruelmente; pois o rosto estava
ferido e passavam o esfregão com brutalidade.
Herodes repreendeu os sacerdotes, por causa dessa crueldade e no
modo de tratá-Ios parecia imitar Pilatos; pois também Ihes disse:
"Vê-se bem que Ele caiu nas mãos de carniceiros; começastes a
imolação hoje antes da hora." Os sumos sacerdotes, porém,
insistiam tumultuosamente nas acusações e incriminações. Quando
reconduziram Jesus à sala, quis Herodes fingir benevolência para
com Ele e mandou trazer-Lhe um cálice de vinho, por estar muito
fraco; Jesus, porém, sacudiu a cabeça e não aceitou o vinho.
Herodes dirigiu-se então com muita verbosidade e afabilidade,
proferindo tudo que sabia dEle. A princípio Lhe fez várias
perguntas e manifestou o desejo de vê-Lo fazer um milagre; como,
porém, Jesus não respondesse palavra alguma e permanecesse com
os olhos baixos, ficou Herodes irritado e envergonhado diante dos
presentes, mas não quis mostrá-Io e continuou a fazer-Lhe uma
torrente de perguntas. Primeiro procurou lisonjeá-Lo: "Sinto
muito te ver tão gravemente acusado; te nho ouvido falar muito
de ti; sabes que me ofendeste em Tirza, resgatando sem minha
licença, vários presos que eu mandara prender lá? Mas fizeste-O
talvez com boa intenção. Agora me foste entregue pelo governador
romano para te julgar; o que respondes a todas aquelas acusações?
Ficas calado? - Têm-me falado muito de tua sabedoria, dos teus
discursos e da tua doutrina; eu desejaria ouvir-Te refutar os teus
acusadores. - Que dizes? -É verdade que és o rei dos judeus? És o Filho de Deus? - Quem, és? - Ouvi dizer que tens feito grandes
milagres, prova-o diante de mim, fazendo um milagre. Depende de
mim libertar-Te. - É verdade que deste a vista a cegos de nascença?
Ressuscitaste dos mortos Lázaro? Saciaste vários milhares de
homens com poucos pães? Porque não respondes? - Conjuro-te a
operar um dos teus milagres. Seria muito em teu favor." Como,
porém, Jesus continuasse calado, Herodes falou com volubilidade
ainda maior: "Quem és? - Como chegaste a isto? - Quem Te deu o
poder? - Porque não tens mais poder agora? És acaso aquele de cujo
nascimento se contam coisas tão estranhas? No tempo de meu pai
vieram alguns reis do oriente e perguntaram-lhe por um
recém-nascido rei dos judeus, a quem queriam prestar homenagem;
dizem que eras Tu aquele menino; é verdade? - Escapaste da matança
em que pereceram tantas crianças? - Como foi isto? - Porque não
se ouviu falar de Ti tanto tempo? - Ou apenas dizem isto a teu
respeito para fazer-Te rei? - Justifica-Te. - Que espécie de rei
és Tu? Em verdade, não vejo em Ti nada de real. - Como me dizem,
fizeram-Te uma entrada triunfal no Templo. Que significa isto?
Fala! Como é que tudo acabou assim?”
A toda essa torrente de palavras não obteve resposta alguma
de Jesus. Foi-me explicado agora e, já há mais tempo, que Jesus
não lhe respondeu, porque Herodes foi excomungado, tanto pelas
relações adúlteras com Herodíades, como também pelo assassínio
de João Batista.
Anás e Caifás aproveitaram a indignação que lhe causou o silêncio
de Jesus, para de novo proferir as acusações. Entre outras coisas
afirmaram que Jesus tinha chamado Herodes de raposa e que, já
desde muito tempo, tinha trabalhado para a queda de toda a família
de Herodes; que queria fundar uma nova religião e comera o
cordeiro pascal no dia anterior. Essa acusação já a tinham
produzido perante Caifás, por traição de Judas, mas fora refutado
por alguns amigos de Jesus, os quais para esse fim leram alguns
trechos de rolos da Escritura.
Herodes, ainda que irritado pelo silêncio de Jesus, não se
esqueceu dos seus interesses políticos. Não quis condenar Jesus;
pois Este lhe inspirava um terror secreto e já era torturado de
remorsos, por causa da morte de João Batista; também odiava os
sumos sacerdotes, porque não tinham querido desculpar-lhe o
adultério e o haviam excluído dos sacrifícios pelo mesmo motivo.
Mas o motivo principal era que não queria condenar aquele a quem
Pilatos declarara inocente; convinha-lhe aos interesses
políticos aplaudir a opinião de Pilatos, diante dos príncipes dos
sacerdotes. A Jesus, porém, cobriu de desprezo e insultos; disse
aos criados e guardas, dos quais contava uns duzentos no palácio.
"Levai para fora este tolo e prestai a este rei ridículo as honras
que se Lhe devem; pois é mais um doido do que um criminoso.”
Conduziram então o Salvador a um vasto pátio, onde o cobriram de
escárnio e indizíveis crueldades. Esse pátio estendia-se por
entre as alas do palácio e Herodes, de pé num terraço, assistiu
por algum tempo a esse espetáculo cruel. Anás e Caifás, porém,
andavam sempre atrás dele e procuravam por todos os meios movê-Io
a condenar Jesus; mas Herodes disse-Ihes, de modo que os romanos
da escolta o ouvissem: "Seria um crime de minha parte, se O
condenasse." Queria certamente dizer: "Seria um crime contra a
sentença de Pilatos, que teve a gentileza de mandá-Lo a mim.”
Vendo que não conseguiam nada de Herodes, os sumos sacerdotes e
os inimigos de Jesus enviaram alguns dos seus, com dinheiro, a
Acra, bairro da cidade onde se achavam nessa ocasião muitos
fariseus, aos quais mandaram dizer que fossem, com os respectivos
partidários, às vizinhanças do palácio de Pilatos; fizeram também
distribuir entre o povo muito dinheiro, para levá-Ia a pedir
tumultuosamente a morte de Jesus. Outros emissários deviam
ameaçar o povo com castigos de Deus, se não conseguisse a morte
desse blasfemador sacrílego; também mandaram espalhar entre o
povo que se Jesus não morresse, se ligaria aos romanos e seria
esse o reino de que sempre falara; e então seriam aniquilados os
judeus. Em outra parte espalharam o boato de que Herodes condenara
Jesus, mas esperava que o povo manifestasse sua vontade;
receava-se a resistência dos adeptos do Nazareno e se esse fosse
solto, seria perturbada toda a festa; pois então Ele, com seus
partidários e os romanos, tirariam vingança. Desse modo fizeram
espalhar os boatos mais contraditórios e assustadores, para
irritar e sublevar o povo, enquanto outros emissários deram
dinheiro aos soldados de Herodes, afim de que maltratassem
gravemente a Jesus, mesmo até O fazer morrer, pois antes desejavam
que morresse do que Pilatos O soltasse.
Enquanto os fariseus estavam ocupados nesses negócios e intrigas,
sofreu Nosso Senhor o escárnio e a brutalidade mais ignominiosa
da soldadesca ímpia e grosseira, à qual Herodes O tinha entregue,
para ser maltratado, como tolo que não lhe quisera responder.
Empurraram-nO para o pátio e um deles trouxe um comprido saco
branco, que achara no quarto do porteiro e em que, havia tempos,
viera uma remessa de algodão. Cortaram com as espadas um buraco
no fundo do saco e meteramnO por entre grandes gargalhadas, sobre
a cabeça de Jesus; outro trouxe um farrapo vermelho e pôs-Lhe em
redor do pescoço, como um colar; o saco caia-Lhe sobre os pés.
Então se inclinavam diante d’Ele, empurravam-nO e entre ditos
insultantes, cuspiam e batiam-Lhe no rosto, porque não tinha respondido ao rei e prestavam-Lhe outras mil homenagens
escarnecedoras; atiravam-Lhe lama, davam-Lhe arrancos, como para
fazê-Lo dançar; depois o fizeram cair com o longo manto derrisório
e arrastaram-nO por um esgoto que passava no pátio, ao longo dos
edifícios, de modo que a cabeça sagrada do Salvador batia de
encontro às colunas e pedras angulares; depois O levaram e
começaram as crueldades de novo. - Havia lá cerca de duzentos
soldados e servidores do palácio de Herodes, gente de todas as
regiões e cada um dos mais perversos queria fazer honra a seu país
e distinguir-se diante de Herodes, inventando um novo ultraje
para Jesus. Faziam tudo precipitadamente, empurrando-se uns aos
outros, entre escárnios; os inimigos de Jesus tinham pago
dinheiro a alguns deles, que no tumulto Lhe deram diversas
pauladas na santa cabeça. Jesus fitavaos com os olhos
suplicantes, suspirando e gemendo de dor; mas zombavam dele,
imitando-Lhe os gemidos; a cada nova brutalidade rompiam em
gargalhadas e insultos, não havia nenhum que Lhe mostrasse
piedade. Tinha a cabeça toda banhada em sangue e vi-O cair três
vezes, sob as pauladas, mas vi também uma aparição como de Anjos,
que, chorando, desceram sobre Ele e lhe ungiram a cabeça. Foi-me
revelado que sem esse auxílio de Deus, as pauladas teriam sido
mortais. Os filisteus, que fizeram o cego Sansão correr na Pista
de Gaza, até cair morto de cansaço, não foram tão violentos e
cruéis como esses perversos.
Urgia o tempo para os Sumos Sacerdotes, porque em pouco deviam
ir ao Templo e quando receberam aviso de que todas as suas ordens
tinham sido cumpridas, insistiram mais uma vez com Hero des,
pedindo-lhe que condenasse Jesus. Mas o tetrarca tinha em vista
apenas suas relações com Pilatos e mandou reconduzir-Ihe Jesus,
vestido do manto derrisório.
6
Jesus é açoitado, coroado de espinhos e condenado à morte
1.
2.
3.
4.
5.
6.
7.
8.
Jesus reconduzido a Pilatos
Jesus é posposto a Barrabás
A flagelação de Jesus
Maria Santíssima durante a flagelação
Jesus é coroado de espinhos e escarnecido pelos soldados
Ecce Homo
Reflexão sobre estas visões
Jesus condenado à morte na Cruz
Jesus é açoitado, coroado de espinhos e condenado à morte
1. Jesus reconduzido a Pilatos
Cada vez mais enfurecidos, tornaram os príncipes dos sacerdotes
e os inimigos de Jesus a trazê-Lo de novo de Herodes a Pilatos.
Estavam envergonhados de não lhe ter conseguido a condenação e
ter de voltar novamente para aquele que já O tinha declarado
inocente. Por isso tomaram na volta outro caminho, cerca de duas
vezes mais longo, para mostrá-Lo naquela humilhação em outra
parte da cidade, para poder maltratá-Lo tanto mais pelo caminho
e dar tempo aos agentes de concitarem o povo. a agir conforme as
maquinações tramadas.
O caminho pelo qual conduziram Jesus, era mais áspero e desigual;
acompanharam-nO, estimulando os soldados sem cessar a
maltratá-Lo. A veste derrisória, o longo saco, impedia o Senhor
de andar; arrastavase na lama, várias vezes caiu, embaraçando-se
nele e era levantado cada vez com arrancos nas cordas, pauladas
na cabeça e pontapés. Sofreu nesse caminho indizíveis insultos
e crueldades, tanto daqueles que o conduziam, como também do povo;
mas Ele rezava, pedindo a Deus que não O deixasse morrer, para
poder terminar a sua Paixão e nossa Redenção.
Eram oito horas e um quarto da manhã, quando o sinistro cortejo
chegou, vindo do outro lado, (provavelmente de leste) ao palácio
de Pilatos, atravessando o fórum. A multidão do povo era enorme;
estavam reunidos em grupos, conforme as regiões e cidades de
procedência e os fariseus corriam entre o povo, excitando-o.
Pilatos, lembrando-se ainda da revolta dos galileus
descontentes, na Páscoa do ano anterior, tinha concentrado cerca
de mil homens, que ocuparam o pretório ou posto de guarda, as
entradas do fórum e do palácio.
A SS. Virgem, sua irmã mais velha, Maria Helí, a filha desta, Maria
Cleofé, Madalena e algumas outras mulheres piedosas (9), cerca
de vinte, assistiram aos acontecimentos que se seguiram; ficaram
sob as arcadas, de onde podiam ouvir tudo e aproximavam-se
furtivamente de vez em quando. João estava a princípio também
presente.
(9) A vidente esqueceu de mencionar onde todas essas mulheres se
tinham reunido e se Maria, voltando do monte das Oliveiras a
Jerusalém, pela porta das Ovelhas, se encontrou com o cortejo de
Jesus. Mas o "Peregrino" lembra-se de narrativas anteriores, de
que Marta, indo ao palácio de Herodes, se encontrou com Jesus e
seguiu-O até o tribunal de Pilatos.
Jesus, coberto com a veste derrisória, foi conduzido através da
multidão, entre os escárnios do populacho; pois a escória e os
mais perversos de entre o povo foram colocados na frente pelos
fariseus, que Ihes davam o exemplo, ultrajando Jesus. Um
palaciano de Herodes já tinha chegado antes, com a mensagem para
Pilatos, de que Herodes lhe ficava muito grato pela atenção, que,
porém, no afamado sábio galileu encontrara apenas um bobo mudo;
que O tinha tratado como tal e mandara reconduzí-Lo novamente a
Pilatos. Este ficou satisfeito de saber que Herodes estava de
acordo e não condenara Jesus; mandou levar-lhe de novo
cumprimentos e assim se tornaram amigos, de inimigos que eram,
desde o desabamento do aqueduto. (Vide: Apêndice no. 3).
Jesus foi novamente conduzido pela rua ao palácio de Pilatos;
empurraram-nO, para subir a escada que conduzia ao terraço; mas
pelos brutais arrancos dos soldados, pisou na longa veste e caiu
com tal violência sobre os degraus de mármore, que os salpicou
de sangue sagrado. Os inimigos do Mestre, que tinham de novo
ocupado os assentos, ao lado do fórum e o populacho romperam na
gargalhada por essa queda de Jesus e os soldados empurraram-nO
a pontapés pelos últimos degraus.
Pilatos estava recostado no seu assento, que se parecia com
um pequeno leito .de repouso; a pequena mesa estava ao lado; como
dantes, estavam também agora com ele alguns oficiais e outros
homens, com rolos de pergaminho. Ele se dirigiu ao terraço, do
qual falava ao povo e disse aos acusadores de Jesus: "Vós me
entregastes este homem cOmo agitador do povo à revolta;
interroguei-O diante de vós e não O achei réu do crime de que O
acusais. Também Herodes não lhe achou crime algum; pois vos mandei
a Herodes e vejo que não foi condenado à morte. Portanto
mandá-Lo-ei açoitar e depois soltar." Levantou-se, porém, entre
os fariseus violenta murmuração e clamor e a agitação e
distribuição de dinheiro entre o povo tomou mais intensidade.
Pilatos tratou-os com muito desprezo e expressões satíricas;
entre outras, disse essa: "Não vereis por acaso correr bastante
sangue inocente ainda hoje, na hora dos sacrifícios?”
2. Jesus é posposto a Barrabás
Ora, era nesse tempo que o povo vinha, antes da festa da Páscoa,
pedir, segundo um antigo costume, a liber,dade de um preso. Os
fariseus tinham enviado, justamente por isso, alguns agentes ao
bairro de Acra, a oeste do Templo, para dar dinheiro ao povo,
instigando-o a que não pedisse a libertação, mas a crucificação
de Jesus. Pilatos, porém, esperava que o povo pedisse a liberdade
de Jesus e resolveu dar-Ihes a escolher entre Jesus e um terrível
facínora, que já fora condenado à morte, para que quase não
tivessem que escolher. Esse celerado chamava-se Barrabás e era
amaldiçoado por todo o povo; tinha cometido assassinatos durante
uma agitação; vi que também tinha feito muitos outros crimes.
Houve um movimento entre o povo no fórum; um grupo avançou, com
os oradores à frente; esses levantaram a voz e bradaram a Pilatos,
que estava no terraço: "Pilatos, fazei-nos o que sempre fizestes,
por ocasião da festa! "Pilatos, que só estava esperando por isso,
respondeu-lhes: "Tendes o costume de receber de festas a
liberdade de um preso. A quem quereis que solte, Barrabás ou
Jesus, o rei dos judeus, que dizem ser o Ungido do Senhor?”
Pilatos, todo indeciso, chamava-O "rei dos judeus", já como
romano orgulhoso, que os desprezava, por terem um rei tão
miserável, que tivessem de escolher entre Ele e um assassino; já
com uma certa convicção de que Jesus pudesse ser de fato esse rei
maravilhoso dos judeus, o Messias prometido; mas também esse
pressentimento da verdade era em parte fingimento e mencionou
esse título do Senhor porque bem sentia que a inveja era o motivo
principal do ódio dos príncipes dos sacerdotes contra Jesus, a
quem considerava inocente.
Após a pergunta de Pilatos, houve uma curta hesitação e deliberação entre o povo e só poucas vozes gritaram precipitadamente:
"Barrabás!" Pilatos, porém, foi chamado por um criado da mulher;
retirou-se um instante do terraço e o criado mostrou-lhe o penhor
que ele dera de manhã à esposa e disse-lhe: "Cláudia Prócula manda
lembrarvos vossa promessa." Os fariseus, no entanto, e os
príncipes dos sacerdotes estavam em grande agitação;
aproximaram-se do povo, ameaçando e instigando-o; mas não
precisavam de tanto esforço.
Maria, Madalena, João e as outras piedosas mulheres estavam
no canto de uma arcada, tremendo e chorando. Embora a Virgem
Santíssima soubesse que não havia salvação para os homens senão
pela morte de Jesus, entretanto, como Mãe, estava cheia de
angústia e desejo de salvar a vida do Filho santíssimo; e assim
como Jesus, embora escolhesse de livre vontade tornar-se homem
e morrer na cruz, todavia sofria, como qualquer homem, todas as
dores e os martírios de um inocente horrivelmente maltratado e
conduzido à morte, assim também Maria padecia todos os tormentos
e angústias de uma mãe vendo o filho maltratado por um povo
ingrato. Ela e as companheiras tremiam, entregues, ora
à angústia, ora à esperança. João afastava-se de vez em quando,
a pouca distância, para ver se podia colher uma boa notícia. Maria
implorava a Deus para que não se cometesse esse imenso crime;
rezava como Jesus no monte das Oliveiras: "Se é possível, afaste
este cálice." Assim esperava ainda a mãe no seu amor; pois
enquanto as instigações e ameaças dos fariseus ao povo passavam
de boca em boca, chegara também a ela o boato de que Pilatos queria
soltar Jesus. Viam-se, não longe, grupos de gente de Cafarnaum,
entre os quais muitos que Jesus curara e ensinara; fizeram como
se não O conhecessem e olhavam furtivamente para João e as
infelizes mulheres, envoltas nos véus; mas Maria pensava, como
todos, que esses, pelo menos, rejeitariam Barrabás, para salvar
o Benfeitor e Salvador. Mas tal não se deu.
Pilatos, lembrando-se, à vista do penhor, da súplica da esposa,
devolveu-lho, como sinal de que cumpria a promessa. Voltou ao
terraço e sentou-se ao lado da mezinha; os sumos sacerdotes também
tornaram a ocupar os respectivos assentos e Pilatos exclamou de
novo: "Qual dos dois quereis que eu solte?" - Então se levantou
um grito geral por todo o fórum e de todos os lados: "Não queremos
Este; entregai-nos Barrabás!" Pilatos gritou mais uma vez: "Que
farei então de Jesus, que é chamado o Cristo, o rei dos judeus?"
- "Crucificai-O, Crucificai-O!" Pilatos perguntou então pela
terceira vez: "Mas que mal tem feito? Eu pelo menos não Lhe acho
crime de morte. Mas vou mandá-Lo açoitar e depois soltar." Mas
o grito "Crucificai-O! Crucificai-O!" rugia pelo fórum, como uma
tempestade infernal e os sumos sacerdotes e fariseus agitavam-see
gritavam como loucos de raiva. Então Pilatos lhes entregou
Barrabás, o malfeitor e condenou Jesus à flagelação.
3. A flagelação de Jesus
Pilatos, juiz covarde e indeciso, pronunciara várias vezes a
palavra: "Não lhe acho crime algum; por isso vou mandá-Lo açoitar
e depois soltar." A gritaria dos judeus, porém, continuava;
"Crucificai-O! Crucificai-O!" Contudo queria Pilatos tentar
ainda fazer sua vontade e deu ordem de açoitar Jesus à maneira
dos romanos. Então entraram os soldados e, batendo e empurrando
a Jesus brutalmente, com os curtos bastões, conduziram nosso
pobre Salvador, já tão maltratado e ultrajado, através da
multidão tumultuosa e furiosa, para o fórum, até a coluna de
flagelação, que ficava em frente de uma das arcadas do mercado,
ao norte do palácio de Pilatos e não longe do posto da guarda.
Os carrascos, jogando os açoites, varas e cordas no chão, ao pé
da coluna, vieram ao encontro de Jesus. Eram seis homens de cor
parda, mais baixos do que Jesus, de cabelo crespo e eriçado, barba
muito rala e curta; vestiam apenas um pano ao redor da cintura,
sandálias rotas e uma peça de couro ou outra fazenda ordinária,
que lhes cobria peito e costas como um escapulário, aberto dos
lados; tinham os braços nus. Eram criminosos comuns, das regiões
do Egito, que trabalhavam como escravos ou degredados na
construção de canais e edifícios públicos; escolhiam-se os mais
ignóbeis e perversos, para tais serviços de carrascos no
pretório.
Amarrados à mesma coluna, alguns pobres condenados tinham sido
açoitados até à morte, por esses homens horríveis, cujo aspecto
tinha algo de bruto e diabólico e pareciam meio embriagados.
Bateram em Nosso Senhor com os punhos e com cordas, apesar de não
lhes opor resistência alguma, arrastaram-nO com brutalidade
furiosa, até à coluna da flagelação. É uma coluna isolada, que
não serve para sustentar o edifício. É de tamanho tal, que um homem
alto, com o braço estendido, lhe pode tocar a extremidade
superior, arredondada e munida de uma argola de ferro; na parte
de traz, no meio da altura, há também argolas ou ganchos. É
impossível descrever a brutalidade bárbara com que esses cães
danados maltrataram a Jesus, nesse curto caminho; tiraram-Lhe o
manto derrisório de Herodes e quase jogaram nosso Salvador por
terra.
Jesus trepidava e tremia diante da coluna. Ele mesmo se apressou
a despir a roupa, com as mãos inchadas e ensangüentadas pelas
cordas, enquanto os carrascos O empurravam e puxavam. Orava de
um modo comovente e volveu a cabeça por um momento para a Mãe SS.
que, dilacerada de dor, estava com as mulheres piedosas num canto
das arcadas do mercado, não longe do lugar de flagelação e disse,
voltandose para a coluna, porque O obrigaram a despir-se também
do pano que lhe cingia os rins: "Desvia os teus olhos de mim."
Não sei se pronunciou essas palavras ou as disse só interiormente,
mas percebi que Maria as entendeu; pois a vi nesse momento desviar
o rosto e cair sem sentidos nos braços das santas mulheres
veladas, que a rodeavam.
Então abraçou Jesus a coluna e os algozes ataram-Lhe as mãos
levantadas à argola de cima, dando-Lhe arrancos brutais e
praguejando horrivelmente todo o tempo; puxaram-Lhe assim todo
o corpo para cima, de modo que os pés, amarrados em baixo à coluna,
quase não tocavam no chão. O Santo dos Santos estava cruelmente
estendido sobre a coluna dos malfeitores, em ignominiosa nudez
e indizível angústia e dois dos homens furiosos começaram, com
crueldade sanguinária, a flagelar-Lhe todo o santo corpo, da
cabeça aos pés. Os primeiros açoites ou varas que usaram,
pareciam ser de madeira branca e dura; talvez fossem também feixes
de tendões secos de boi ou tiras duras de couro branco.
Nosso Senhor e Salvador, o Filho de Deus, verdadeiro Deus e
verdadeiro homem, contraia-se e torcia-se, como um verme, sob os
açoites dos criminosos; ouviam-se-Lhe os gemidos e lamentos, doces e claros, como uma prece afetuosa no meio de dores
dilacerantes, entre o sibilar e estalar dos açoites dos
carrascos. De vez em quando ressoava a gritaria do povo e dos
fariseus, como uma nuvem escura de tempestade, abafando essas
queixas dolorosas e santas, cheias de bênçãos. As turbas
gritavam: "Deve morrer! Crucificai-O!", pois Pilatos estava
ainda a discutir com o povo. Quando queria fazer-se ouvir, no meio
do tumulto da multidão, fazia soar primeiro um toque de trombeta,
para impor silêncio. Nesses momentos se ouviam novamente os
açoites, os gemidos de Jesus, o praguejar dos carrascos e os
balidos dos cordeiros pascais, que eram lavados na piscina das
Ovelhas, ao lado da porta das Ovelhas, a leste do fórum. Depois
de lavados, eram levados, com a boca amarrada, até o caminho do
Templo, para não se sujarem mais, depois eram conduzidos para o
lado de fora, a oeste, onde ainda eram submetidos a uma ablução
cerimonial. Esses balidos desamparados dos cordeiros tinham algo
de indescritivelmente comovente; eram as únicas vozes que se
uniam aos gemidos do Salvador.
A multidão dos judeus mantinha-se afastada do lugar da
flagelação, numa distância, talvez, da largura de uma rua.
Soldados romanos estavam pdstos em diferentes lugares,
especialmente pelo lado do posto de guarda; perto da coluna de
flagelação havia grupos de populacho, que iam e vinham
silenciosos ou zombando; vi alguns que se sentiram comovidos; era
como se os tocasse um raio de luz saindo de Jesus.
Vi também meninos indignos que, ao lado do pretório, preparavam
novas varas e outros que iam buscar ramos de espinheiro. Alguns
soldados dos Príncipes dos sacerdotes tinham travado relações com
os carrascos e deram-lhes dinheiro; trouxeram-Ihes também um
grande cântaro, cheio de uma bebida vermelha, grossa, da qual
beberam até ficar embriagados e enraivecidos. Ao cabo de um quarto
de hora deixaram os dois carrascos de açoitar Jesus;
foram juntar-se a dois outros e beberam com eles. O corpo de Jesus
estava todo coberto de contusões vermelhas, pardas e roxas e o
sangue sagrado corria-Lhe por terra; agitava-se em movimentos
convulsivos. De todos os lados se ouviam insultos e motejos.
Durante a noite tinha feito muito frio. Desde a madrugada até
essa hora, não clareara o céu e, com grande espanto do povo,
caíram algumas curtas chuvas de pedra. Pelo meio dia clareou e
apareceu o sol.
O segundo par de carrascos caiu então com novo furor sobre Jesus;
tinham outra espécie de açoites; eram como varas de espinheiro,
com nós e esporões. Os violentos golpes rasgaram todas as
pisaduras do santo corpo de Jesus; o sangue regou o chão, em redor
da coluna e salpicou os braços dos carrascos. Jesus gemia, rezava,
torcia-se de dor.
Passaram então pelo fórum muitos estrangeiros, montados em
camelos; olharam assustados e entristecidos, quando o povo lhes
disse o que se estava passando. Eram viajantes, dos quais uns
tinham recebido o batismo e outros ouviram o sermão da montanha.
O tumulto e os gritos continuavam no entanto, diante da casa de
Pilatos.
Os dois seguintes carrascos bateram em Jesus com flagelos:
eram curtas correntes ou correias, fixas num cabo, cujas
extremidades estavam munidas de ganchos de ferro, que arrancavam,
a cada golpe, pedaços de pele e carne das costas. Oh! Quem pode
descrever o aspecto horrível e doloroso deste suplício?
Mas a crueldade dos carrascos ainda não estava satisfeita;
desligaram Jesus e amarraram-nO de novo, mas com as costas viradas
para a coluna. Como, porém, estivesse tão enfraquecido, que não
podia manter-se em pé, passaram-Lhe cordas finas sobre o peito
e sob os braços e debaixo dos joelhos, amarrando-O assim todo à
coluna; também Lhe ataram as mãos atrás da coluna, a meia altura.
Todo o corpo sagrado contraia-se-Lhe dolorosamente, as chagas e
o sangue cobriam-Lhe a nudez. Como cães raivosos, caíram-Lhe os
carrascos em cima, com os açoites; um tinha uma vara mais delgada
na mão esquerda, com que Lhe batia no rosto. O corpo de Nosso
Senhor formava uma só chaga, não havia mais lugar são. Ele olhava
para os carrascos, com os olhos cheios de sangue, que suplicavam
misericórdia, mas redobravam os golpes furiosos e Jesus gemia,
cada vez mais fracamente: "Ai!”
A horrível flagelação durara cerca de três quartos de hora, quando
um estrangeiro, homem do povo, parente do cego Ctesifon, curado
por Jesus, se aproximou precipitadamente da coluna, pelo lado de
traz e, com uma faca em forma de foice na mão, gritou indignado:
"Parai! Não flageleis este homem inocente até morrer!" Os
carrascos, meio embria gados, pararam espantados e o homem cortou
rapidamente, como de um único golpe, as cordas de Jesus, que todas
estavam seguras num prego de ferro, atrás da coluna; depois o
estrangeiro fugiu e perdeu-se na multidão. Jesus, porém, caiu
desfalecido, ao pé da coluna, sobre a terra empapada de sangue.
Os carrascos deixaram-nO lá e foram beber, depois de chamar os
auxiliares do carrasco, que estavam no posto de guarda, ocupados
em trançar a coroa de espinhos.
Jesus torcia-se ainda de dor, ao pé da coluna, as chagas a sangrar;
nesse momento vi passar perto algumas raparigas libertinas, com
as vestes imprudentemente arregaçadas; estavam de mãos dadas e
pararam diante de Jesus, olhando-O com repugnância melindrosa;
com isso sentiu Jesus ainda mais as feridas e levantou para elas
o rosto ensangüentado, com um olhar suplicante; então se
afastaram, continuando o caminho e os carrascos e soldados
dirigiram-Ihes, entre gargalhadas, palavras indecentes.
Vi várias vezes, durante a fIagelação, aparecerem Anjos tristes
em redor de Jesus; ouvi a oração que o Senhor dirigia ao Pai
eterno, no meio dos tormentos e insultos, oferecendo-se para
expiação dos pecados dos homens. Mas nesse momento, quando jazia,
banhado em sangue, ao pé da coluna, vi um anjo, que lhe restituía
as forças; parecia dar-Lhe um alimento luminoso.
Então se aproximaram novamente os carrascos e dando-Lhe pontapés,
mandaram-nO levantar-se, dizendo que ainda não tinham acabado com
o rei; querendo ainda bater-Lhe, arrastou-se Jesus pelo chão,
para alcançar a faixa de pano e cobrir a nudez; mas os perversos
celerados empurravam-na com os pés para lá e para cá, rindo-se
de ver Jesus em sangrenta nudez arrastar-se penosamente, como um
verme esmagado, para alcançar o pano e cobrir o corpo dilacerado.
Depois O impeliram, a pontapés e pauladas, a levantar-se sobre
as pernas vacilantes; não Lhe deram tempo de vestir a túnica, mas
lançaram-lha sobre os ombros e Jesus enxugou nela o sangue do
rosto, enquanto O conduziram apressadamente ao corpo da guarda,
dando uma volta. Podiam tê-Lo levado por um caminho mais curto,
porque as arcadas e edifícios em redor do fórum eram abertos, de
modo que se podia enxergar o corredor sob o qual jaziam presos
os dois ladrões e Barrabás; mas passaram com Jesus diante dos
sumos sacerdotes, que gritaram: "Levai-O à morte! Levai-O à
morte!" e viraram a cabeça com nojo. Conduziram-nO para o pátio
interior do corpo da guarda. Quando Jesus entrou, não havia lá
soldados, mas escravos, soldados e marotos, a escória do povo.
Vendo que o povo estava tão agitado, Pilatos mandara vir reforço
da cidadela Antônia. Essas forças cercavam em boa ordem o corpo
da guarda; podiam falar, rir e insultar a Jesus, mas não sair das
fileiras. Pilatos queria com eles manter o povo em respeito. Podia
bem haver lá mil homens.
4. Maria Santíssima durante a flagelação
Vi a SS. Virgem, durante a fIagelação do Redentor, em contínuo
êxtase; via e sofria na alma e com indizível amor e tormento, tudo
quanto sofria o Divino Filho. Muitas vezes lhe saíram fracos
gemidos da boca; os olhos estavam inflamados de tanto chorar.
Jazia velada nos braços da irmã mais velha, Maria Helí, que já
era muito idosa e se parecia muito com a mãe, Sant' Ana. Maria,
filha de Cleofas e de Maria Helí, estava também presente e
segurava sempre o braço de sua mãe. As santas amigas de Maria e
Jesus, todas veladas e envolvidas em mantos, rode avam a SS.
Virgem, tremendo de medo e dor, como se esperassem sua própria
sentença de morte. Maria vestia uma longa veste azul e sobre essa,
um comprido manto branco de lã e um véu branco-amarelo. Mada lena
estava desnorteada e desolada de dor e lamentação; tinha o
cabelo em desalinho, sob o véu.
Quando Jesus, depois da fIagelação, caíra ao pé da coluna,
mandara Cláudia Pr6cula, a mulher de Pilatos, um fardo de grandes
panos à Mãe de Deus. Não sei mais se julgava que Jesus ficaria
livre e a Mãe do Senhor lhe devia tratar as feridas com esses panos
ou se a pagã compadecida mandou os panos para o fim para o qual
a SS. Virgem os empregou.
Maria, voltando a si, viu passar o Divino Filho dilacerado,
conduzi do pelos soldados; Ele enxugou o sangue dos olhos com a
túnica, para fitar a SS. Virgem, que Lhe estendeu as mãos, num
transporte de dor e Lhe seguiu com a vista as pegadas sangrentas.
Logo depois vi a SS. Virgem e Madalena, quando o povo se dirigia
mais para o outro lado, aproximarem-se do lugar da fIagelação.
Cercadas e ocultas pelas outras santas mulheres e outra gente
boa, que se aproximara, prostraram-se por terra, ao pé da coluna
da fIagelação e apanharam com os panos todo o sangue de Jesus,
por toda a parte onde encontraram algum vestígio.
Não vi nessa hora João, junto das santas mulheres, que eram cerca
de vinte. O filho de Simeão, o de Obed e o de Verônica, como também
Aram e Temeni, os sobrinhos de José de Arimatéia, estavam todos
ocupados no Templo, cheios de tristeza e angústia.
Foi pelas nove horas da manhã que acabou a fIagelação.
Vi hoje as faces da SS. Virgem(lO) pálidas e mortiças, o nariz
delgado e comprido, os olhos quase cor de sangue, de tantas
lágrimas que derramou; não é possível descrever a impressão que
faz a figura de Maria, na sua simplicidade e graça natural. Já
desde ontem e durante toda a noite, tem ela vagueado, cheia de
angústia e amor, pelo vale de Josafá e pelas ruas de Jerusalém
e através do povo e contudo não se lhe vê nenhuma desordem nas
vestes; cada prega do vestido da SS. Virgem respira santidade;
tudo nela é simples e digno, puro e inocente. Os movimentos, ao
olhar em redor de si, são nobres e as pregas do véu, quando vira
um pouco a cabeça, são de uma singular beleza e simplicidade. Nos
movimentos não se lhe nota agitação e mesmo na mais dilacerante
dor, todo o porte se lhe conserva simples e calmo. Tem o manto
umedecido pelo orvalho da noite e por inúmeras lágrimas, mas em
tudo mais está limpo e bem arrumado. É inefavelmente bela e de
uma beleza toda sobrenatural; pois toda sua beleza étambém
pureza, simplicidade, dignidade e santidade.
Madalena, porém, tem um aspecto inteiramente diferente. É mais
alta e mais gorda e chama mais a atenção pelas formas e os
movimentos; mas toda a beleza lhe foi devastada pelas paixões,
pelo arrependimento e excessiva dor; quase causa horror vê-Ia,
tanto se tornou desfigurada, pela veemência sem limite de sua dor.
Tem as vestes molhadas e sujas de lama, em desarranjo e rasgadas;
o longo cabelo cai-lhe solto e em desalinho, sob o véu molhado
e amarrotado. Está toda desfigurada e agitada; não pensa senão
em sua dor, e parece quase uma alienada. Há muita gente aqui de
Magdala e arredores, que a viu dantes, na vida tão suntuosa e
depois tão pecaminosa e em seguida tanto tempo retirada do mundo
e agora a apontam com o dedo e a insultam, ao ver-lhe a estranha
figura; há também gente baixa de Magdala que, ao passar por ela,
lhe atira lama, mas Madalena não o nota, tão absorta está na sua
dor.
* Anna Catharina descreve uma vez Maria Santíssima do modo
seguinte: "Madalena é mais alta e mais bonita do que as outras
mulheres. Dina, a samaritana, é também bonita, mas muito mais
ativa e ágil do que Madalena; é muito viva, amável e serviçal por
toda a pane, como uma criada ligeira, prudente e carinhosa e
também muito humilde. A Santíssima Virgem, porém, excede todas
as outras em maravilhosa beleza. Posto que no porte tenha igual
em beleza, e seja superada pela figura de Madalena, com suas
maneiras estranhas, entretanto, Maria sempre se distingue
entre as outras, pela indescritível modéstia, singeleza,
simplicidade, mansidão, dignidade e calma; é tão pura e tão
simples, que se tem a impressão de ver nela a imagem de Deus no
homem. Não há caráter que se lhe pareça, senão o de seu Filho.
O rosto da santfssima virgem, porém, excede em indizível encanto
o de todas as mulheres que a acompanham e das que jamais tenho
visto. Impressiona pelo pone digno e grave e contudo parece uma
criança inocente e singela. É muito séria, silenciosa, muitas
vezes triste, mas nunca se mostra desordenada na dor; apenas as
lágrimas lhe correm brandamente pelo rosto calmo." Em outra
ocasião Anna Catharina diz: "Maria era imensamente simples. Jesus
não a distinguia diante dos outros homens, senão tratando-a
sempre com muita dignidade. Ela também não procurava contato com
os homens, com exceção de doentes e ignorantes e apresentava-se
sempre muito humilde, recolhida, muito calma e simples. Todos,
até os inimigos de Jesus, a estima vam e contudo ela não procurava
ninguém, permanecia silenciosa e sozinha.
5. Jesus é coroado de espinhos e escarnecido pelos soldados
Durante a flagelação falou Pilatos ainda várias vezes ao povo,
que uma vez até gritou: "Ele deve morrer, ainda que todos nós também pereçamos." Quando Jesus foi conduzido ao corpo da guarda,
para ser coroado de espinhos, ainda gritaram: "Morra! Morra!"
pois chegavam cada vez novas turbas de judeus, que pelos
emissários dos sumos sacerdotes eram incitados a gritar assim.
Houve depois uma curta pausa. Pilatos deu ordens aos soldados.
Os sumos sacerdotes e os conselheiros, que estavam sentados em
bancos, de ambos os lados da rua, à sombra das árvores ou sob lonas
estendidas, diante do terraço de Pilatos, mandarem os criados
trazer alimentos e bebida. Vi também Pilatos de novo perturbado
pela superstição; retirou-se sozinho, para oferecer incenso aos
deuses e por certos sinais descobrir-Ihes a vontade.
Vi que depois da fIagelação a SS. Virgem e as amigas, tendo
enxugado o sangue de Jesus, se afastaram do fórum. Vi-as com os
panos ensangüentados, numa pequena casa encostada a um muro; não
era longe do fórum; não me lembro mais de quem era. Não me recordo
de ter visto João durante a flagelação.
Jesus foi coroado de espinhos e escarnecido no pátio interior do
corpo da guarda, construído sobre os cárceres, ao lado do fórum.
Esse pátio era cercado de colunas e todas as entradas tinham sido
abertas. Havia ali cerca de cinqüenta miseráveis patifes,
sequazes dos soldados, servos dos carcereiros, soldados e
auxiliares dos carrascos, escravos e os criminosos que flagelaram
Nosso Senhor; esses todos tomaram parte ativa nas crueldades
praticadas em Jesus. No começo o povo tentou entrar, mas pouco
depois cercaram mil soldados romanos o edifício. Permaneciam nas
fileiras, mas com as zombarias e risos provocavam ainda o cruel
exibicionismo dos carrascos para redobrarem as torturas de Jesus,
animando-os com as risadas, como o aplauso anima os atores no
palco.
Rolaram para o meio do pátio o pedestal de uma velha coluna, no
qual havia um buraco, que talvez tivesse servido para nele ajustar
a coluna. Nesse pedestal colocaram um escabelo redondo e baixo,
que por detrás tinha uma espécie de cabo, para o manejar; por
maldade cobriram o escabelo de pedregulho agudo e cacos de louça.
Arrancaram de novo toda a roupa do corpo ferido de Jesus e
impuseram-Lhe um manto de soldado, curto, vermelho, velho e já
roto, que nem lhe chegava até os joelhos. Pendiam dele ainda
alguns restos de borlas amarelas; jazia num canto do quarto dos
verdugos, que costumavam impô-lo aos que tinham açoitado, seja
para enxugar-lhes o sangue, seja para escarnecê-los. Arrastaram
a Jesus para a coluna e empurraram-na brutalmente, com o corpo
despido e ferido, sobre o escabelo coberto de pedras e cacos.
Depois Lhe puseram a coroa de espinhos na cabeça. Essa tinha dois
palmos de altura, era muito espessa e trançada com arte; em cima
tinha uma borda um pouco saliente. Puseram-Lha em redor da fronte,
como uma ligadura e ataram-na atrás com muita força, de modo que
formavam uma coroa ou um chapéu. Era artisticamente trançada de
três varas de espinheiro, da grossura de um dedo, que tinham
crescido alto, através dos espessos arbustos. Os espinhos, pela
maior parte, foram propositalmente virados para dentro.
Pertenciam a três diferentes espécies de espinheiros, que tinham
alguma semelhança com a nossa cambroeira, o abrunheiro e
espinheiro branco. Em cima tinham acrescentado uma borda,
trançada de um espinheiro semelhante à nossa sarça silvestre e
pela qual pegavam e puxavam brutalmente a coroa. Vi o lugar onde
os meninos foram buscar esses espinhos.
Puseram-Lhe também na mão um grosso caniço, com um tufo na ponta.
Fizeram tudo isso com solenidade derrisória, como se O coroassem
de fato rei. Tiravam-Lhe o caniço da mão e batiam com tanta força
a coroa, que os olhos de Nosso Senhor se enchiam de sangue.
Curvavam os joelhos diante dEle, mostravam-Lhe a língua, batiam
e cuspiam-Lhe no rosto, gritando: "Salve, rei dos judeus!"
Depois, entre gargalhadas, fizeram-na cair no chão, junto com o
escabelo e tornaram a colocá-Lo sobre ele aos empurrões.
Não posso relatar todas as torturas e ultrajes que os carrascos
inventaram, para escarnecer o pobre Salvador. Ai! Jesus sofreu
horrível sede; pois em conseqüência das feridas, causadas pela
desumana flagelação, estava com febre e tremia; a pele e os
músculos dos lados estavam dilacerados o deixavam entrever as
costelas em vários lugares; a língua contraíra-se-Lhe
espasmodicamente; somente o sangue sagrado que lhe corria da
fronte, compadecia-se da boca ardente, que se abria ansiosa. Mas
aqueles homens horríveis tomaram-Lhe a boca divina por alvo de
nojentos escarros. Jesus foi assim maltratado por cerca de meia
hora e a tropa, cujas fileiras cercavam o pretório, aplaudia com
gritos e gargalhadas.
6. Ecce Homo
Reconduziram então Jesus ao palácio de Pilatos, a coroa de
espinhos sobre a cabeça, o caniço nas mãos amarradas, coberto do
manto vermelho. Jesus estava desfigurado, pelo sangue que Lhe
enchia os olhos e Lhe escorria na boca e sobre a barba. O corpo,
coberto de pisaduras e feridas, parecia-se-Lhe com um pano
ensopado de sangue. Andava curvado e cambaleando; o manto era tão
curto, que Jesus precisava curvar-se, para cobrir a nudez, porque
Lhe tinham arrancado toda a roupa, no ato da coroação de espinhos.
Quando o pobre Jesus chegou ao primeiro degrau da escada, diante
de Pilatos, até esse homem cruel estremeceu de horror e compaixão.
Apoiou-se a um dos oficiais e como o povo e os sacerdotes ainda
gritassem e insultassem, exclamou: "Se o demônio dos judeus é tão
cruel, então não deve ser bom morar com ele no inferno." Quando
Jesus foi puxado penosamente, escada acima e conduzido ao fundo,
Pilatos saiu para a sacada; foi dado um toque de trombeta, para
chamar a atenção do povo, a que Pilatos queria falar. Disse, pois,
aos príncipes dos sacerdotes e a todos os presentes: "Escutai,
vou mandá-Lo conduzir mais uma vez para diante de vós, para que
conheçais que não Lhe achei culpa alguma.”
Jesus foi então conduzido pelos soldados à sacada, ao lado de
Pilatos, de modo que todo o povo reunido no fórum podia vê-Lo.
Era um aspecto terrível, pungente, que primeiro causou no povo
horror e penoso silêncio. O Filho de Deus ensangüentado dirigiu
os olhos cheios de sangue, sob a coroa de espinhos, para o povo
e Pilatos, que, ao lado, indicando-O com a mão, gritou aos judeus:
"Eis aqui o Homem!”
Enquanto Jesus, com o corpo dilacerado, coberto do manto vermelho derrisório, abaixando a cabeça traspassada de espinhos e
inundada de sangue, segurando nas mãos atadas o cetro de caniço,
curvado para cobrir a nudez com as mãos, aniquilado pela dor e
tristeza, mas ainda respirando infinito amor e mansidão, estava
diante do palácio de Pilatos, como um espectro sangrento, exposto
aos gritos furiosos dos sacerdotes e do povo, passaram pelo fórum
grupos de forasteiros, homens e mulheres, com as vestes
arregaçadas, em direção à piscina das Ovelhas, para ajudar a lavar
os cordeiros da Páscoa, cujos balidos tristes se misturavam com
os clamores sanguinários da multidão, como para dar testemunho
em favor da Verdade, que se calava. Somente o verdadeiro cordeiro
pascal de Deus, o revelado, mas não conhecido mistério desse santo
dia, cumpriu a profecia e curvou-se em silêncio sobre o matadouro.
Os sumos sacerdotes e os membros do tribunal ficaram cheios de
raiva pelo aspecto de Jesus, espelho horrível de sua consciência
e gritaram: "Morra! Crucificai-O!" Pilatos, porém, exclamou:
"Ainda não vos basta? Ele foi tão maltratado, que não terá mais
desejo de ser rei." Eles, porém, se tornaram ainda mais furiosos,
gritando como dementes e todo o povo repetia: "Deve morrer.
Crucificai-O!" Então mandou Pilatos dar outro toque de trombeta
e disse: "Pois tomai-O e crucificai-O vós, porque não Lhe acho
culpa." Responderam-lhe alguns dos príncipes dos sacerdotes:
"Temos uma lei e segundo essa lei Ele deve morrer, porque declarou
ser o Filho de Deus!" Pilatos replicou: "Pois se tendes tais leis,
segundo as quais este homem deve morrer, eu não queria ser judeu.”
Mas o dito dos judeus: "Ele se declarou Filho de Deus" inquietou
Pilatos e suscitou-lhe de novo o pavor supersticioso; mandou,
pois, conduzir Jesus a um lugar separado, onde Lhe perguntou:
"Donde és?" Jesus, porém, não lhe respondeu. Disse-lhe então
Pilatos: "Não me respondes? Por ventura não sabes que tenho o
poder de crucificar-Te ou de soltar-Te?" E Jesus respondeu: "Não
terias poder sobre mim, se não te fosse dado do Céu; por isso
comete pecado mais grave aquele que me entregou em tuas mãos.”
Cláudia Prócula, que estava muito angustiada pela hesitação do
marido, mandou novamente um mensageiro a Pilatos mostrar-lhe o
penhor e lembrar-lhe a promessa; ele, porém, lhe mandou uma
resposta muito confusa e supersticiosa, da qual me lembro apenas
que se referia aos deuses.
Quando os príncipes dos sacerdotes e os fariseus tiveram
conhecimento da intervenção da mulher de Pilatos em favor de
Jesus, mandaram espalhar entre o povo: "Os partidários de Jesus
subornaram a mulher de Pilatos; se Ele ficar livre, unir-se-á aos
romanos e nós todos pereceremos.”
Pilatos, na sua indecisão, estava como embriagado; a razão
vacilavalhe de um lado para outro. Disse uma vez aos inimigos de
Jesus que não Lhe achava culpa. Mas vendo que esses, com mais vigor
ainda, exigiram a morte de Jesus e inquietado pelos seus próprios
pensamentos confusos, como pelos sonhos da mulher e as palavras
significativas de Jesus, queria ouvir mais uma resposta do
Senhor, que o pudesse tirar dessa situação penosa. Voltou
portanto à sala do tribunal, onde estava Jesus e ficou a sós com
Ele. Com um olhar perscrutador e quase medroso, fitou o Salvador
desfigurado e ensangüentado, para quem não se podia olhar sem
horror e pensou consigo: "Será possível que seja um Deus?" e de
repente se Lhe dirigiu com energia, conjurando-O a dizer-lhe se
era um deus e não um homem, se era rei, até onde se Lhe estendia
o reino, de que espécie era a sua divindade. Se lho dissesse,
dar-Lhe-ia a liberdade. - O que Jesus respondeu, posso dizê-Ia
só pelo sentido, não com as mesmas palavras. O Senhor falou-lhe
com terrível severidade. Fez-lhe ver em que sentido era rei e qual
o seu reino; mostrou-lhe o que era a verdade, pois disse-lhe a
verdade. Nosso Senhor revelou-lhe, com toda a franqueza, os
abomináveis crimes que Pilatos ocultava na consciência;
predisse-lhe o futuro, a miséria no exílio, o fim horroroso e que
Ele um dia viriajulgá-Io com toda a justiça.
Pilatos, meio assustado, meio irritado pelas palavras de Jesus,
saiu para a sacada e exclamou mais uma vez que queria soltar Jesus.
Então gritaram: "Se o soltares, não és amigo de César; pois quem
se declara rei, é inimigo de César." Outros gritaram que o
acusariam perante o imperador por perturbar-Ihes a festa; que
devia terminar a causa, porque eram obrigados, sob graves penas,
a estar no Templo às dez horas. - O grito: "Morra! Crucificai-O!"
levantou-se novamente de todos os lados; subiram até sobre os
tetos planos das casas em redor do fórum e gritavam dali.
Então viu Pilatos que contra essa fúria não conseguiria nada; os
gritos e o tumulto tinham algo de terrível e toda a multidão diante
do palácio estava em tal estado de agitação, que era para recear
uma rebe lião. Pilatos mandou trazer água; o criado derramou-lhe
água da bacia sobre as mãos, à vista de todo o povo e Pilatos gritou
do pretório à multidão: "Sou inocente do sangue deste justo; vós
tendes que responder pela sua morte." Então se levantou um grito
horrível, unânime, do povo reunido, no meio do qual havia gente
de todos os lugares da' Palestina: "Que o seu sangue caia sobre
nós e nossos, filhos!”
7. Reflexão sobre estas visões
Todas as vezes que, nas meditações da dolorosa Paixão de Jesus
Cristo, ouço esse grito espantoso dos judeus: "Que o seu sangue
caia sobre nós e nossos filhos", o efeito dessa solene maldição
me é revelado e tornado sensível, em quadros maravilhosos e
terríveis. Vejo acima do povo, que grita, um céu escuro, coberto
de nuvens cor de sangue, das quais saem flagelos e espadas de fogo.
Vejo como se os raios dessa maldição atravessassem todos até os
ossos e neles também os filhos. Vejo o povo como envolvido em
trevas e o grito sair-Ihes das bocas como um fogo tenebroso e
maligno, unir-se por cima das cabeças e cair de novo sobre eles,
entrando mais profundo em alguns, pairando sobre outros. Esses
últimos eram aqueles que depois da morte de Jesus se converteram.
O número destes não era, porém, pequeno; pois vejo Jesus e Maria,
durante todos esses terríveis sofrimentos rezarem sempre pela
salvação dos carrascos e todos esses horríveis tormentos não Ihes
causaram nenhum ressentimento. Durante toda a Paixão, no meio das
mais cruéis torturas dos insultos mais insolentes e ignominiosos,
no meio da fúria sanguinária dos inimigos e dos servos destes,
à vista da ingratidão e do abandono de muitos fiéis, que Lhe
causaram o mais amargo sofrimento físico e moral, vejo Jesus
sempre rezando, amando os inimigos, orando pela sua conversão,
até o último suspiro; mas vejo que por essa paciência e esse amor
ainda mais se inflama a fúria e raiva dos cruéis inimigos;
enfurecem-se porque toda a sua brutalidade e crueldade não
conseguem arrancar-Lhe da boca uma palavra de protesto ou de
queixa, que possa desculpar-Ihes a maldade. Hoje, que na festa
da Páscoa matam o cordeiro pascal, não sabem que matam o Cordeiro
de Deus.
Quando, durante tais visões, dirijo os meus pensamentos para o
coração do povo e dos juízes e para as santas almas de Jesus e
Maria, tudo que neles se passa me é mostrado em figuras, que as
pessoas naquele tempo não viram mas sentiram o que representavam.
Vejo então inúmeras figuras diabólicas, cada uma diferente,
conforme o vício que representa, em terrível ação entre a
multidão; vejo-as correr, instigar a raiva, causar confusão dos
espíritos, entrar na boca das pessoas; vejoas sair da multidão,
reunir-se em grande número e atiçar a raiva do povo contra Jesus,
mas à vista do amor e da paciência do Mestre tremem e desaparecem
de novo entre o povo. Toda essa atividade tem algo de desesperado,
confuso, contraditório; é um movimento confuso e insensato. Acima
e em redor de Jesus e Maria e do pequeno número de santos vejo
também se moverem muitos Anjos, cujas figuras e vestimentas
variam, conforme as respectivas funções e ação; representam
consolação, oração, unção, conforto por comida e bebida e outras
obras de misericórdia.
De modo semelhante vejo freqüentemente vozes consoladoras ou
ameaçadoras saírem, como palavras de diferentes cores e luzes,
da boca de tais aparições; e se são mensagens, vejo-lhas nas mãos,
em forma de tiras escritas. Outras vezes, quando preciso ser
instruída a esse respeito, vejo os movimentos d'alma e as paixões
dos corações, o sofrimento e o amor, enfim, tudo que é sentimento;
vejo-os passar através do peito e de todo o corpo dos homens, em
movimentos de diferentes cores, em variações de luz e sombra, de
diversas formas, direções e mudanças de forma e cor, de lentidão
e rapidez; assim compreendo tudo, mas é impossível exprimí-Io em
palavras; pois é um número infinito de coisas e ao mesmo tempo
me sinto tão abatida pela dor e tristeza por meus pecados e os
de todo o mundo e tão dilacerada pela dolorosa Paixão de Jesus,
que até não compreendo como ainda possa juntar o pouco que estou
contando. Muitas coisas, especialmente aparições e ações de
demônios e Anjos, contadas por outras pessoas, que tiveram visões
da Paixão de Nosso Senhor, são fragmentos de tais intuições de
movimentos interiores, invisíveis no momento em que se realizaram
outrora, as quais variam, segundo o estado d'alma das pessoas
videntes e são entremeadas nas narrações. Por isso há tantas
contradições, porque esquecem algumas coisas, saltam outras e só
uma parte é que contam. Tudo que há de mau no mundo, contribuiu
para atormentar Jesus. Tudo que é amor, n’Ele sofreu. Como
Cordeiro de Deus, tomou sobre si os pecados do mundo: Que
infinidade de coisas, tanto abomináveis como também santas, se
podem ver e contar. Se, portanto, as visões e contemplações de
muitas pessoas piedosas não concordam em tudo, é porque não
tiveram o mesmo grau de graça para ver, contar e fazer-se
compreender.
8. Jesus condenado à morte na Cruz
Pilatos, que não procurava a verdade, mas apenas uma saída para
a dificuldade, estava mais indeciso que nunca. A consciência
dizia-lhe: "Jesus é inocente." A esposa mandara dizer-lhe: "Jesus
é santo." A superstição dizia-lhe: "É um inimigo de teus deuses."
A covardia dizialhe: "É um deus e vingar-se-á." Interroga mais
uma vez a Jesus, em tom inquieto e solene e Jesus lhe fala dos
seus mais ocultos crimes, prediz . lhe um futuro e uma morte
miseráveis e que um dia virá, sentado sobre as nuvens do céu,
pronunciar sobre ele um juízo justo, o que deita na falsa balança
da justiça de Pilatos um novo peso contra a intenção de soltar
Jesus. Ficou furioso por se ver em toda a nudez de sua ignomínia
interior diante de Jesus, a quem não podia compreender; sentiu-se
indignado daquele que mandara açoitar e que podia mandar
crucificar, lhe predizer um fim miserável; dessa boca, que nunca
fora acusada de mentira, que não proferira uma só palavra em sua
própria defesa, ousar, em ocasião extremamente arriscada,
citá-Io perante seu justo tribunal, naquele dia futuro. Tudo isso
lhe ofendeu profundamente o orgulho; mas como não havia
sentimento dominante nesse homem miserável e indeciso, ficou
cheio de medo diante da ameaça do Senhor e fez a última tentativa
de libertar Jesus. Ouvindo, porém, a ameaça dos judeus de acusá-Io
perante o imperador, se soltasse Jesus, foi dominado por outro
pavor covarde: o medo do imperador terrestre venceu o receio do
rei cujo reino não era deste inundo. O celerado covarde e
irresoluto pensava consigo: "Se Ele morrer, morrerá também com
Ele o que sabe de mim e o que me predisse." À ameaça dos judeus
de acusá-Io perante o imperador, decidiu-se Pilatos a fazer-Ihes
a vontade, contrariamente à promessa que fizera à esposa,
contrariamente à justiça e à própria convicção. Por medo do
imperador, entregou aos judeus o sangue de Jesus, mas para a
própria consciência não tinha senão água, que fez derramar sobre
as mãos, exclamando: "Sou inocente do sangue deste Justo,
respondereis por Ele." - Não, Pilatos, tu és responsável, pois
que O dizes Justo e Lhe derramas o sangue; és o juiz injusto, sem
consciência. O mesmo sangue de que queria lavar as mãos e de que
não podia lavar a alma, os sanguinários judeus chamaram-na sobre
si e seus filhos, amaldiçoando-se a si mesmos. O sangue de Jesus,
que atrai a misericórdia de Deus sobre nós, fizeram-na chamar a
vingança sobre eles, gritando: "Que o seu sangue caia sobre nós
e nossos filhos.”
Ouvindo esses gritos sanguinários, Pilatos mandou preparar tudo
para pronunciar a sentença. Deu ordem para trazer outras vestes
solenes e vestiu-as; puseram-lhe na cabeça uma espécie de coroa
ou diadema, no qual havia uma pedra preciosa ou outra coisa
brilhante; vestiram-no também de outro manto e diante dele
levavam um bastão. Foi acompanhado de muitos soldados; oficiais
do tribunal iam na frente, transportando uma coisa e seguiam-se
escreventes, com rolos de papel e tabuinhas, precedidos por um
homem que tocava trombeta. Assim saiu do palácio para o fórum,
onde, em frente ao lugar da flagelação, havia um belo assento
elevado, construído de pedras, para pronunciar as sentenças; só
depois de pronunciadas desse lugar tinham as sentenças vigor
legal. Esse tribunal era chamado Gabata e era um estrado circular,
para o qual subiam escadas de vários lados; em cima havia um
assento para Pilatos e atrás dele um banco, para outros membros
do tribunal. Muitos soldados cercavam esse tribunal e em parte
ficavam nos degraus das escadas. Muitos dos fariseus já tinham
ido do palácio de Pilatos ao Templo. Somente Anás e Caifás, com
cerca de vinte e oito outros, se dirigiram ao tribunal no fórum,
logo que Pilatos começou a vestir as vestimentas oficiais. Os dois
ladrões já haviam sido conduzidos ao tribunal, quando Pilatos
apresentou Jesus ao povo, dizendo: Ecce homo! O assento de Pilatos
estava coberto de uma manta vermelha e sobre essa havia uma
almofada azul, com galões amarelos.
Jesus, ainda vestido do rubro manto derrisório, com a coroa de
espinhos na cabeça, as mãos atadas, foi então conduzido pelos
esbirros e soldados que O cercavam, entre as vaias do povo, para
o tribunal, onde O colocaram entre os dois ladrões. Pilatos,
sentado no tribunal, disse mais uma vez, em voz alta, aos inimigos
de Jesus: "Eis aí o vosso rei!" Eles, porém, gritaram: "Fora!
Morra! Crucifica-O!" - Pilatos disse: "Devo então crucificar
vosso rei?" -Mas os príncipes dos sacerdotes gritaram: " Não temos
outro rei senão o César." Então Pilatos não disse mais palavra
em favor de Jesus, nem mais Lhe falou, mas começou a pronunciar
a sentença. Os dois ladrões tinham sido condenados, já havia mais
tempo, à morte na cruz, mas a execução fora adiada para esse dia,
a pedido dos Sumos Sacerdotes, porque queriam ultrajar Jesus,
crucificando-O entre assassinos ordinários. As cruzes dos
ladrões já estavam ao lado deles, no chão, trazidas pelos
ajudantes dos carrascos. A Cruz de Nosso Senhor ainda não estava
lá, provavelmente porque a sentença ainda não fora pronunciada.
A Santíssima Virgem, que se tinha afastado depois da apresentação
de Jesus por Pilatos e da gritaria sanguinária dos judeus, abriu
caminho, em companhia de algumas mulheres, por entre a multidão
e aproximouse do tribunal, para ouvir a sentença de morte,
proferida contra seu Filho e Deus; Jesus estava nos degraus da
escada, diante de Pilatos, rodeado de soldados e os inimigos
lançavam-Lhe olhares cheios de ódio e escárnio. Um toque de
trombeta ordenou silêncio e Pilatos pronunciou, com a raiva de
um covarde, a sentença de morte contra o Salvador.
Senti-me sufocada de indignação, diante de tanta baixeza
e duplicidade; o aspecto desse celerado arrogante, do triunfo e
ódio sanguinário dos príncipes dos sacerdotes, satisfeitos após
tantos esforços fatigantes, o estado lastimoso e os sofrimentos
do pacientíssimo Salvador, a indizível angústia e os tormentos
da Mãe Santíssima e das santas mulheres, a furiosa ansiedade com
que os judeus esperavam a morte da presa, o frio orgulho dos
soldados e minha visão das horrendas figuras diabólicas entre a
multidão do povo, tudo isso me tinha aniquilado completamente.
Ai! Percebi que eu devia estar no lugar de Jesus, meu querido
esposo; então a sentença seria justa. Eu estava tão dilacerada
pela dor, que não me lembro mais da ordem exata das coisas. Vou
contar mais ou menos o que me lembro.
Pilatos começou por um longo preâmbulo, em que se referiu com
os mais pomposos títulos ao imperador Cláudio Tibério. Depois
expôs a acusação contra Jesus, que fora condenado à morte pelos
Sumos Sacerdotes e cuja crucificação tinha sido unanimemente
exigida pelo povo, por ser um rebelde, perturbador da paz pública,
violador da lei judaica, por se fazer chamar Filho de Deus e rei
dos judeus. Quando, porém, acrescentou ainda que achava essa
sentença justa, - ele que por várias horas continuara a declarar
Jesus inocente, quase não pude conter-me mais, à vista desse homem
infame e mentiroso. Ele disse ainda: "Por isso condeno Jesus
Nazareno, rei dos judeus, a ser pregado na Cruz." Depois deu ordem
aos carrascos que fossem buscar a cruz. Também me lembro, mas não
tenho plena certeza, que ele quebrou uma vara comprida, cuja
metade era visível e lançou os pedaços aos pés de Jesus.
A essas palavras a Mãe de Jesus caiu por terra sem sentidos e como
morta; agora então estava decidida, era certa a morte de seu
santíssimo e amantíssimo Filho e Salvador, morte horrível,
dolorosa, ignominiosa. As companheiras e João levaram-na para
fora da multidão, para que aqueles homens cegos de coração não
pecassem, insultando a dolorosa Mãe do Salvador; mas Maria não
podia deixar de seguir o caminho da Paixão de Jesus; as
companheiras viram-se obrigadas a levá-Ia outra vez de lugar em
lugar; pois o culto misterioso de unir-se-Lhe nos sofrimentos
impelia a Santíssima Mãe à oferecer o sacrifício de suas lágrimas
em todos os lugares onde o Redentor, seu Filho, sofrera pelos
pecados dos homens, seus irmãos; e assim a Mãe do Senhor consagrou
com as lágrimas todos esses santos lugares e tomou posse deles
para a futura veneração pela Igreja, Mãe de todos nós, como Jacó
erigiu uma pedra e, ungindo-a com óleo, consagrou-a em memória
da promissão, que ali recebera.
A sentença foi escrita, mesmo no tribunal, por Pilatos e copiada
mais de três vezes, por aqueles que lhe estavam atrás. Enviaram
vários mensageiros; porque alguns dos documentos precisavam ser
assinados por outras pessoas; não me lembro se esses documentos
faziam parte da sentença ou se eram outras ordens. Contudo foram
também alguns desses documentos levados a lugares distantes.
Havia, porém, ainda outra sentença, escrita por Pilatos mesmo e
que lhe provava claramente a duplicidade; pois tinha teor
totalmente diferente da sentença que pro nunciara; vi como a
escreveu contra a vontade, com o espírito atormentado e um anjo
irado a dirigir-lhe a mão. Esse documento, de cujo conteú do tenho
apenas uma lembrança vaga, dizia mais ou menos o seguinte:
"Compelido pelos Sumos Sacerdotes e o Sinédrio e ameaçado por uma
iminente insurreição do povo, que acusavam Jesus de Nazaré de
agitação contra a autoridade, de blasfêmia e de desprezo da lei
judaica, exigindo-Lhe a morte, entreguei-Ihes o mesmo Jesus, para
ser crucificado, não tanto movido pelas acusações, que em verdade
não achei fundadas, mas para não ser acusado perante o imperador,
de favorecer a insurreição e negar justiça aos judeus.
Entreguei-O porque exigiram com violência a morte, como
transgressor da lei; e com Ele dois ladrões, já antes condenados,
cuja execução fora adiada por maquinações dos judeus, porque
queriam que fossem executados junto com Jesus.”
Nesse documento, pois, escreveu o malvado um relatório totalmente
diferente. - Depois escreveu ainda a inscrição da cruz em três
linhas, com verniz, sobre uma tabuinha de cor escura. O documento
em que Pilatos desculpava a sentença, foi copiado várias vezes
e enviado a diversos lugares. Os Sumos Sacerdotes discutiram
ainda com Pilatos no tribunal; não estavam contentes com a
sentença, queixando-se sobretudo porque tinha escrito que eles
haviam exigido o adiamento da execução dos ladrões, para que
fossem executados com Jesus; contestaram também o título de
Jesus: queriam que escrevesse "que se declarou rei dos judeus"
e não simplesmente "rei dos judeus". Mas Pilatos perdeu a
paciência, tratou-os com arrogância, gritando furioso: "O que
escrevi, fica escrito." Ainda insistiram, dizendo que a Cruz de
Jesus não devia ficar mais alta que as dos ladrões; era preciso,
porém, fazê-Ia mais alta, porque, por um erro dos operários,
ficara mais curta a parte acima da cabeça, não cabendo o título
escrito por Pilatos; esse protesto contra o alongamento da cruz
era apenas um subterfúgio, para evitar a inscrição, que Ihes
parecia injuriosa. Mas Pilatos não cedeu e assim foram obrigados
a alongar a cruz, adaptando-lhe uma peça de madeira, à qual se
pudesse fixar o título. Assim concorreram várias circunstâncias
para dar à cruz aquela forma significativa, que sempre lhe tenho
visto, isto é, com os braços um pouco elevados, como os galhos
de uma árvore, os quais, ao sair do tronco, se estendem para cima;
tinha a forma da letra Y, com a linha do centro alongada por entre
os braços. Os dois braços eram mais finos do que o tronco e estavam
embutidos nesse, sendo os encaixes reforçados de ambos os lados,
por uma cunha fincada por baixo. Como, porém, o tronco acima da
cabeça, por um erro, tivesse saído curto de mais para se fixar
bem visível a inscrição de Pilatos, foi preciso ajustar mais uma
peça ao tronco. No lugar dos pés pregaram um pedaço de madeira,
para os sustentar.
Enquanto Pilatos pronunciava a sentença injusta, vi Cláudia
Prócula, sua mulher, remeter-lhe o penhor e separar-se dele. Na
mesma noite fugiu ocultamente do palácio e foi para junto dos
amigos de Jesus, que a levaram a um esconderijo, num subterrâneo
da casa de Lázaro, em Jerusalém. Vi também um amigo de Jesus
gravar, numa pedra esverdeada atrás do tribunal do Gábata, duas
linhas, que diziam respeito à sentença injusta de Pilatos e à
separação da mulher do Procurador; ainda me lembro das palavras
"judex injustus" e do nome "Cláudia Prócula".
Mas não me recordo se foi no mesmo dia ou alguns dias mais tarde;
lembro-me apenas que nesse lugar do fórum estava um numeroso grupo
de homens conversando, enquanto o outro homem, encoberto por
eles, gravou aquelas linhas, sem ser visto. Vi que aquela pedra
ainda está, desconhecida embora, em Jerusalém, nos alicerces duma
casa ou duma Igreja, situada onde antigamente era o Gábata.
Cláudia Prócula tornouse cristã e depois de se ter encontrado com
S. Paulo, tornou-se-Ihe amiga dedicada.
Pronunciada a sentença, enquanto Pilatos escrevia e discutia com
os Sumos Sacerdotes, era Jesus entregue aos carrascos; antes houvera ainda algum respeito ao tribunal, mas depois estava o Divino
Mestre inteiramente à mercê desses homens abomináveis.
Trouxeram-Lhe a roupa, que Lhe tinham tirado para escarnecê-Lo
em casa de Caifás; fora guardada e parece-me que também fora
lavada por gente compassiva, pois estava limpa. Creio também que
era costume entre os romanos levar os condenados à execução,
vestidos de sua própria roupa. Despiram de novo Jesus:
desataram-Lhe as mãos, para poder revestí-Lo, arrancaram-Lhe o
manto vermelho do corpo chagado, abrindo-Lhe assim muitas
feridas. Ele mesmo vestiu, com mãos trêmulas, a faixa em torno
da cintura e os carrascos lançaramLhe o escapulário sobre os
ombros. Como, porém, a coroa de espinhos fosse muito larga para
deixar passar-Lhe pela cabeça a túnica sem costura, que Lhe fizera
a Virgem Santíssima, arrancaram-Lhe a coroa e todas as feridas
começaram a sangrar, com indizíveis dores. Depois de Lhe porem
a túnica sobre as feridas do corpo, vestiram-na da veste larga
de Lã branca, que cingiram com a faixa larga e puseram-Lhe
finalmente o manto. Feito isso, amarraram-na novamente com o
cinturão, munido de pontas de ferro, no qual estavam presas as
cordas para conduzí-Lo. Durante todo esse tempo batiam e empurravam-nO, tratando-O com atroz crueldade.
Os dois ladrões estavam um ao lado direito, outro ao lado esquerdo
de Jesus; tinham as mãos amarradas e pendia-Ihes, como a Jesus
diante do tribunal, uma cadeia de ferro do pescoço. Vestiam apenas
um pano na cintura e um gibão semelhante a um escapulário, de
fazenda ordinária, sem mangas e aberto nos lados; na cabeça tinham
bonés, tecidos de palha, que se pareciam com barretinhas
estofadas de crianças. A pele dos ladrões era de um pardo sujo,
coberta de cicatrizes, causadas pela flagelação passada. Aquele
que se converteu depois, já estava calmo e pensativo; o outro,
porém, irritado e impertinente, unindo-se aos carrascos para
insultar e amaldiçoar Jesus, que os olhava a ambos com
olhos cheios de caridade e desejo de salvá-Ios, oferecendo também
por eles todos os seus sofrimentos.
Os carrascos estavam ocupados em juntar todas as ferramentas;
preparavam-se para a triste e terrível marcha, em que o nosso
amado e doloroso Salvador quis carregar o peso dos pecados de nós
todos, homens ingratos e para os expiar, ia derramar o santíssimo
Sangue do cálice de seu Corpo, transpassado pelos homens mais
abomináveis.
Anás e Caifás terminaram afinal a discussão acalorada com
Pilatos; receberam algumas tiras compridas ou rolos de
pergaminho, com cópias dos documentos e dirigiram-se
apressadamente ao Templo; e só por pouco não chegaram tarde.
Então se separaram os Sumos Sacerdotes do verdadeiro
Cordeiro pascal; correram ao Templo de pedra, para imolar e comer
o cordeiro simbólico e a realização do símbolo, o verdadeiro
Cordeiro de Deus, fizeram-na conduzir por vis carrascos ao altar
da cruz. Separaram-se ali os dois caminhos, dos quais um conduzia
ao símbolo e outro à realização do Sacrifício; abandonaram o
Cordeiro de Deus, a pura Vítima expiatória, que tentaram macular
exteriormente e insultar com todo o horror da perversidade,
entregaram-na a carrascos ímpios e desumanos e correram ao Templo
de pedra, para imolar cordeiros lavados, purificados e bentos.
Haviam tomado todo o cuidado para não se sujarem exte riormente
e tinham as almas todas sujas, transbordantes de ódio, inveja e
ultrajes. - "Que o seu sangue caia sobre nós e nossos filhos",
tinham exclamado e com essas palavras cumpriram a cerimônia,
impuseram a mão de sacrificador sobre a cabeça da vítima.
Separaram-se ali os dois caminhos, que conduziam ao altar da lei
e ao altar da graça.
7
Jesus leva, a Cruz ao Gólgota
1. Jesus toma a cruz aos ombros
2. A primeira queda de Jesus sob a cruz
3. O encontro de Jesus com a Santíssima Mãe. Segunda queda
de Jesus debaixo da cruz
4. Terceira queda de Jesus sob a cruz. Simão de Cirene
5. Verônica e o Sudário
6. A quarta e quinta queda de Jesus sob a cruz. As
compassivas filhas de Jerusalém
7. Jesus no Monte Gólgota. Sexta e sétima queda de Jesus e
seu encarceramento
8. Maria e as amigas vão ao Calvário
Jesus leva, a Cruz ao Gólgota
1. Jesus toma a cruz aos ombros
Quando Pilatos desceu do tribunal do Gábata, seguiram-no uma
parte dos soldados e formaram diante do palácio, para acompanhar
o séquito. Um pequeno destacamento ficou com os condenados. Vinte
e oito fariseus armados, entre os quais os seis inimigos furiosos
de Jesus que estavam presentes quando foi preso no horto das
Oliveiras, vieram a cavalo ao fórum, para acompanhar o séquito.
Os carrascos conduziram Jesus ao meio do fórum; alguns escravos
entraram pela porta ocidental, trazendo o pãtíbulo da cruz e
jogaram-no ruidosamente aos pés do Salvador. Os dois braços da
cruz, mais finos, estavam amarrados com cordas ao tronco largo
e pesado; as cunhas, o cepo para sustentar os pés e a peça ajustada
ao tronco para a inscrição, junto com outras ferramentas, eram
carregados por alguns meninos a serviço dos carrascos.
Quando jogaram a cruz no chão, aos pés de Jesus, Ele se ajoelhou
junto à mesma e, abraçando-a, beijou-a três vezes, dirigindo ao
Pai celestial, em voz baixa, uma oração comovente de ação de
graças pela redenção do gênero humano, a qual ia realizar. Como
os sacerdotes, entre os pagãos, abraçam um altar novo, assim
abraçou Jesus a cruz, o eterno altar do sacrifício cruento de
expiação. Os carrascos, porém, com um arranco nas cordas, fizeram
Jesus ficar ereto, de joelhos, obrigandoO a carregar penosamente
o pesado madeiro ao ombro direito e com o braço direito segurá-Io,
com pouco e cruel auxílio dos carrascos. Vi anjos ajudando-O
invisivelmente, pois sozinho não teria conseguido suspendê-Io;
ajoelhava-se, curvado sob o pesado fardo.
Enquanto Jesus estava rezando, outros carrascos puseram sobre os
pescoços dos ladrões os madeiros transversais das respectivas
cruzes, amarrando-Ihes os braços erguidos de ambos os lados.
Essas travessas não eram inteiramente retas, mas um pouco curvas
e na hora da crucifixão eram ajustadas na extremidade superior
dos troncos, que eram transportados atrás deles por escravos,
junto com outros utensílios. Ressoou um toque de trombeta da
cavalaria de Pilatos e um dos fariseus a cavalo aproximou-se de
Jesus, que estava de joelhos, sob o fardo e disse-Lhe: "Acabou
agora o tempo dos belos discursos"; e aos carrascos:
"Apressai-vos, para que fiquemos livres d’Ele. Vamos avante!" Fizeram-nO levantar-se então aos arrancos e caiu-Lhe assim sobre
o ombro todo o peso da cruz, que nós devemos também carregar para
seguíLo, segundo as suas santas palavras, que são a verdade
eterna. Então começou a marcha triunfal do Rei dos reis, tão
ignominiosa na terra, tão gloriosa no Céu.
Tinham atado duas cordas à extremidade posterior da cruz e dois
carrascos levantaram-na por meio delas, de modo que ficava
suspensa e não se arrastava pelo chão. Um pouco afastados de Jesus
seguiam quatro carrascos, segurando as quatro cordas que saiam
do cinturão novo, com que O tinham cingido. O manto, arregaçado,
fora-Lhe atado em redor do peito. Jesus, carregando ao ombro os
madeiros da cruz, ligados num feixe, lembrava-me vivamente Isaac,
levando a lenha para a sua própria imolação ao monte Mória.
O trombeteiro de Pilatos deu então o sinal de partir, porque
Pilatos também queria sair com um destacamento de soldados, para
impedir qualquer movimento revoltoso na cidade. Estava a cavalo,
vestido da armadura e rodeado de oficiais e de um destacamento
de cavalaria; seguia depois um batalhão de infantaria, de cerca
de 300 soldados, todos oriundos da fronteira da Itália e Suíça.
Em frente do cortejo em que ia Jesus, seguia um corneteiro, que
tocava nas esquinas das ruas, proclamando a sentença e a execução.
Alguns passos atrás, marchava um grupo de meninos e homens das
camadas mais baixas do povo, transportando bebidas, cordas,
pregos, cunhas e cestos, com diversas ferramentas; escravos mais
robustos carregavam as estacas, escadas e os troncos das cruzes
dos ladrões. As escadas constavam apenas de um pau comprido, com
buracos, nos quais fincavam cavilhas. Seguiam-se depois alguns
fariseus a cavalo e atrás deles um rapazinho, segurando sobre os
ombros, suspensa numa vara, a coroa de espinhos, que não puseram
na cabeça de Jesus, porque parecia impedí-Lo de carregar a cruz.
Esse rapazinho não era muito ruim.
Seguia então Nosso Senhor e Salvador, curvado sob o pesado fardo
da cruz, cambaleando sobre os pés descalços e feridos, dilacerado
e contundido pela flagelação e as outras brutalidades, exausto
de forças, por estar sem comer, sem beber, nem dormir desde a Ceia,
na véspera, enfraquecido pela perda de sangue, pela febre e sede,
atormentado por indizíveis angústias e sofrimentos da alma. Com
a mão segurava o pesado lenho sobre o ombro direito; a esquerda
procurava penosamente levantar a larga e longa veste, para
desembaraçar os passos, já pouco seguros. Tinha as mãos inchadas
e feridas pelas cordas, com que haviam estado antes fortemente
amarradas. O rosto estava coberto de pisaduras e sangue; cabelo
e barba em desalinho e colados pelo sangue; o pesado fardo e o
cinturão apertavam-Lhe a roupa pesada de lã de encontro ao corpo
ferido e a lã pegava-se-Lhe às feridas reabertas. Em redor só
havia ódio e insultos. Mas também nessa imensa miséria e em todos
esses martírios se manifestava o amor do Divino Mártir: a boca
movia-se-Lhe em oração e o olhar suplicante e humilde prometia
perdão. Os dois carrascos que suspendiam a cruz, pelas cordas
fixadas na extremidade posterior, aumentavam ainda o martírio de
Jesus, deslocando o pesado fardo, que alternadamente levantavam
e deixavam cair.
Em ambos os lados do cortejo marchavam vários soldados, armados
de lanças. Depois de Jesus, vinham os dois ladrões, cada um
conduzido por dois carrascos, que Ihes seguravam as cordas,
presas ao cinturão; transportavam sobre a nuca os madeiros
transversais das respectivas cruzes, separados do tronco; tinham
os braços amarrados às extremidades dos madeiros. Andavam meio
embriagados por uma bebida que Ihes tinham dado. Contudo o bom
ladrão estava muito calmo; o mau, porém, impertinente, praguejava
furioso. Os carrascos eram homens baixos, mas robustos, de pele
morena, cabelo preto, crespo e eriçado; tinham a barba rala, aqui
e acolá uns tufinhos de pelos. Não tinham fisionomia judaica;
pertenciam a uma tribo de escravos do Egito, que trabalhavam na
construção de canais; vestiam somente tanga e um escapulário de
couro, sem mangas. Eram verdadeiros brutos. Atrás dos ladrões
vinham a metade dos fariseus, fechando o cortejo. Esses
cavaleiros cavalgavam durante todo o caminho, separados, ao longo
do séquito, apressando a marcha ou conservando a ordem. Entre a
gentalha que ia na frente do cortejo, transportando as
ferramentas e outros objetos, achavam-se também alguns meninos
perversos, filhos de judeus, que se lhe tinham juntado
voluntariamente.
Depois de um considerável espaço seguia o séquito de Pilatos; na
frente um trombeteiro a cavalo, atrás dele cavalgava Pilatos,
vestido da armadura de guerra, entre os oficiais e cercado de um
grupo de cavaleiros; em seguida marchavam os trezentos soldados
de infantaria. O séquito atravessou o fórum, mas entrou depois
numa rua larga.
O cortejo que conduzia Jesus, passou por uma rua muito estreita,
pelos fundos das casas, para deixar livre o caminho para o povo,
que se dirigia ao Templo, como também para não pôr obstáculos ao
séquito de Pilatos.
A maior parte da multidão já se pusera a caminho, logo depois de
pronunciada a sentença; os demais judeus dirigiram-se às
respectivas casas ou ao Templo; pois haviam perdido muito tempo
durante a manhã e apressavam-se em continuar os preparativos para
a imolação do cordeiro pascal. Contudo era ainda muito numerosa
a multidão, composta de gente de todas as classes: forasteiros,
escravos, operários, meninos, mulheres e a ralé da cidade;
corriam pelas ruas laterais e por atalhos para a frente, para ver
mais uma ou outra vez o triste séquito. O destacamento de soldados
romanos que seguia, impedia o povo de juntar-se atrás do séquito,
assim era preciso correr sempre para a frente, pelas ruas laterais. A maior parte da multidão dirigiu-se diretamente ao
Gólgota.
A rua estreita pela qual Jesus foi conduzido primeiro, tinha apenas a largura de alguns passos, e passava pelos fundos das casas,
onde havia muita imundície. Jesus teve que sofrer muito ali; os
carrascos andavam mais perto dEle; das janelas e dos buracos dos
muros O vaiava a gentalha; escravos que lá trabalhavam,
atiravam-Lhe lama e restos imundos da cozinha; patifes perversos
derramavam-Lhe em cima água suja e fétida dos esgotos; até
crianças, instigadas pelos velhos, juntavam pedras nas roupinhas
e saindo das casas e atravessando o séquito a correr, jogavam-nas
no caminho, aos pés de Jesus. Assim foi Jesus tratado pelas
crianças, que tanto amava, abençoava e chamava bem-aventuradas.
2. A primeira queda de Jesus sob a cruz
A rua estreita dirige-se no fim para a esquerda, torna-se mais
larga e começa a subir. Passa ali um aqueduto subterrâneo, que
vem do Monte Sião; creio que passa ao longo do fórum, onde há
também, sob a terra, canais abobadados e desemboca na piscina das
ovelhas, perto da porta das ovelhas. Eu ouvia o murmúrio e o correr
das águas nos canos. Naquele ponto, antes de subir a rua, há um
lugar mais fundo, onde, por ocasião das chuvas, se junta água e
lama e há lá uma pedra saliente, que facilita a passagem, como
em muitas outras ruas de Jerusalém, as quais, em grande parte,
são bastante toscas. Quando Jesus, carregado do pesado fardo,
chegou a esse lugar, não tinha mais força para ir adiante; os
carrascos arrastavam e empurravam-nO sem piedade; então Jesus,
nosso Deus, tropeçando sobre a pedra, caiu por terra e a cruz
tombou-Lhe ao lado. Os carrascos praguejaram, puxaram-nO pelas
cordas, deram-Lhe pontapés; o séquito parou, formou-se um grupo
tumultuoso em redor do Divino Mestre. Debalde estendia a mão, para
que alguém O ajudasse a levantar-se. "Ai!" exclamou, "dentro em
pouco estará tudo acabado", e os lábios moviam-se-Lhe em oração.
Os fariseus gritaram: "Vamos! Fazei-O levantar-se, senão nos
morre nas mãos!" Aqui e acolá, dos lados da rua, se viam mulheres
a chorar, com crianças, que também choramingavam assustadas. Com
auxílio sobrenatural, conseguiu Jesus afinal levantar a cabeça
e esses homens abomináveis e diabólicos, em vez de O ajudarem e
aliviarem, ainda Lhe impuseram novamente a coroa de espinhos.
Levantaram-nO depois brutalmente e puseram-Lhe a cruz de novo ao
ombro. Com isso era obrigado a pender para o outro lado a cabeça,
torturada pelos espinhos, para assim poder carregar o pesado
patíbulo. Com novo e maior martírio subiu então pela rua, que dali
em diante se tornava mais larga.
3. O encontro de Jesus com a Santíssima Mãe. Segunda queda
de Jesus debaixo da cruz
A Mãe de Jesus, transpassada de dor, tinha se retirado do fórum,
com João e algumas mulheres, depois de ouvir a sentença que lhe
condenara injustamente o Filho. Tinham visitado muitos dos
lugares sagrados pela Paixão de Jesus, mas quando o correr do povo
e o toque dos clarins e o séquito de Pilatos, com os soldados,
anunciaram a partida para o Calvário, Maria não pôde conter-se
mais: o amor impelia-a a ver o divino Filho, no seu sofrimento
e pediu a João que a conduzisse a um lugar onde Jesus tivesse de
passar.
Eles tinham vindo dos lados de Sião; passaram ao lado do tribunal
donde Jesus, havia pouco, fora levado por portas e alamedas que
noutros tempos estavam fechadas, mas nessa ocasião abertas, para
dar passagem à multidão. Passaram depois pela parte ocidental de
um palácio, que do outro lado dá, por um portão, para a rua larga,
na qual o séquito entrou depois da primeira queda de Jesus. Não
sei mais com certeza se esse palácio era uma ala da casa de
Pilatos, com a qual parece estar ligada por pátios e alamedas ou
se é, como me lembro agora, a própria habitação do Sumo Sacerdote
Caifás; pois a casa em Sião era apenas o tribunal. - João conseguiu
de um criado ou porteiro compassivo a licença de passar, com Maria
e as companheiras, para o outro lado e o mesmo empregado
abriu-lhes o portão para a rua larga. - Estava com eles um sobrinho
de José de Arimatéia; Suzana, Joana Chusa e Salomé de Jerusalém
seguira a Santíssima Virgem.
Quando vi a dolorosa Mãe de Deus, pálida, olhos vermelhos de
chorar, tremendo e gemendo, envolta da cabeça aos pés num manto
azul-cinzento, passando com as companheiras por aquela casa,
sentime presa de dor e susto. Já se ouviam por sobre as casas o
tumulto e os gritos do séquito, que se aproximava, o toque da
trombeta e a voz do arauto, anunciando nas esquinas das ruas a
execução de um condenado à cruz. O criado abriu o portão; o ruido
tornou-se mais distinto e assus tador. Maria rezava e disse a
João: "Que devo fazer, ficar para vê-Lo ou fugir? Como poderei
suportar vê-Lo neste estado?" João disse: "Se não ficardes,
arrepender-vos-eis amargamente toda a vida". Então saíram da
casa, ficando à espera, sob a arcada do portão; olhavam para a
direita, rua abaixo, que até lá subia, mas continuava plana, do
lugar onde estava Maria.
Ai! Como o som da trombeta lhe penetrou no coração! O séquito
aproximava-se, ainda estaria distante uns 80 passos, quando
saíram do portão. Ali o povo não andava na frente, mas aos lados
e atrás havia alguns grupos; grande parte da gentalha, que saíra
por último do tribunal, corria por atalhos para a frente, para
ocupar outros lugares, donde pudesse ver passar o séquito.
Quando os servos dos carrascos, que transportavam os instrumentos do suplício, se aproximaram, impertinentes e triunfantes,
começou a Mãe de Jesus a tremer e chorar e torcer as mãos de
aflição. Um dos miseráveis perguntou aos que iam ao lado: "Quem
é essa mulher, que está ali lamentando?" Um deles respondeu: "É
a mãe do Galileu." Ouvindo isso os perversos insultaram-na com
palavras de zombaria, apontaram-na com os dedos e um desses homens
perversos tomou os cravos, com os quais Jesus devia ser pregado
na cruz e mostrou-o à Santíssima Virgem, com ar de escárnio. Ela,
porém, torcendo as mãos, olhava na direção de seu Filho e esmagada
pela dor, encostou-se ao pilar do portão. Tinha a palidez de um
cadáver e os lábios roxos. Passaram os fariseus a cavalo; depois
veio o menino, com o título da cruz e, ai! alguns passos atrás,
Jesus, o Filho de Deus, seu próprio Filho querido, o Santo, o
Redentor: lá ia cambaleando e curvado, afastando penosamente a
cabeça, com a coroa de espinhos, do pesado fardo da cruz. Os
carrascos arrastavam-na pelas cordas para a frente; tinha o rosto
pálido, coberto de sangue e pisaduras, a barba toda junta e colada
sob o queixo pelo sangue. Os olhos encovados e sangrentos do
Salvador, sob o horrível enredo da coroa de espinhos, lançaram
um olhar grave e cheio de piedade à Mãe dolorosa e depois,
tropeçando, Ele caiu pela segunda vez, sob o peso da cruz, sobre
os joelhos e as mãos. A Mãe, na veemência da dor, não via mais
nem soldados nem carrascos, via só o Filho querido em estado tão
lastimoso e tão maltratado. Estendendo os braços, correu os
poucos passos do portão até Jesus, através dos carrascos e
abraçando-O, caiu-Lhe ao lado de joelhos. Ouvi as palavras: "Meu
Filho!" - "Minha Mãe!" - não sei se foram pronunciadas pelos
lábios ou só no coração.
Houve um tumulto: João e as mulheres tentavam afastar Maria, os
carrascos praguejavam e insultavam-na; um deles gritou: "Mulher,
que queres aqui? Se O tivesses educado melhor, não estaria agora
em nossas mãos." Vi que alguns dos soldados estavam comovidos;
eles afastaram a Santíssima Virgem, nenhum, porém, a tocou. João
e as mulheres levaram-na e ela caiu de joelhos, como morta de dor,
sobre a pedra angular do portão, a qual suportava o muro; estavam
de costas viradas para o séquito, apoiando-se com as mãos na parte
superior da pedra inclinada, sobre a qual caíra. Era uma pedra
com veias verdes; onde os joelhos de Nossa Senhora tocaram,
ficaram cavidades e onde as mãos se lhe apoiaram, deixaram marcas
menos profundas. Eram impressões chatas, com contornos pouco
claros, semelhantes a impressões causadas por uma pancada sobre
massa de farinha. Era uma pedra muito dura. Vi que no tempo do
bispo Tiago o Menor essa pedra foi colocada na primeira Igreja
católica, que foi construída ao lado da piscina de Betesda.
Já o tenho dito várias vezes e digo-o mais uma vez, que vi em
diversas ocasiões tais impressões causadas pelo contato de
pessoas santas em acontecimentos de grande importância. Isso é
tão certo, que há até a expressão: "Uma pedra sentir-se-ia
comovida", ou a outra: "Isso faz impressão". A eterna Sabedoria
não tinha precisão da arte da imprensa, para transmitir à
posteridade testemunhos dos santos.
Como os soldados, armados de lanças, que marchavam aos lados do
séquito, impeliam o povo para diante, os dois discípulos que
estavam com a Mãe de Jesus, reconduziram-na pelo portão, que foi
fechado atrás deles.
Os carrascos tinham, no entanto, levantado Jesus aos arrancos e
puseram-Lhe a cruz de novo ao ombro, mas de outra maneira. Os
braços da cruz, amarrados ao tronco haviam ficado um pouco soltos
e um deles descera um pouco ao lado do tronco; foi esse que Jesus
abraçou então, de modo que o tronco da cruz pendia atrás, mais
no chão.
4. Terceira queda de Jesus sob a cruz. Simão de Cirene
O séquito continuou nessa rua larga, até chegar à porta de um
antigo muro da cidade interior. Diante dessa porta há uma praça,
em que desembocam três ruas. Ali Jesus tinha de passar sobre outra
pedra grande, mas tropeçou e caiu. A cruz tombou para o lado e
Jesus, apoiando-se sobre a pedra, caiu por terra e tão
enfraquecido estava, que não pôde levantar-se mais. Passaram
grupos de gente bem vestida, que iam ao Templo e vendo-O,
exclamaram: "Coitado, o pobre homem morre!" Deuse um tumulto; não
conseguiram mais levantar Jesus e os fariseus que conduziam o
cortejo, disseram aos soldados: "Não chegamos lá com Ele vivo;
deveis procurar um homem que Lhe ajude a levar a cruz."
Vinha justamente descendo pela rua do meio Simão de Cirene, um
pagão, acompanhado pelos três filhinhos; transportava um feixe
de ramos secos debaixo do, braço. Era jardineiro e vinha dos
jardins situados perto do muro oriental da cidade, onde
trabalhava. Todos os anos vinha, com mulher e filhos, para a festa
em Jerusalém, como muitos outros da mesma profissão, para podar
as sebes. Não pôde sair do caminho, porque a multidão se apinhava
na rua. Os soldados, que pela roupa viam que era pagão e pobre
jardineiro, apoderaram-se dele e, levando-o para onde estava
Jesus, mandaram-lhe que ajudasse o Galileu a transportar a cruz.
Simão resistiu e mostrou muita repugnância, mas obrigaram-no à
força: Os filhinhos choravam alto e algumas mulheres que
conheciam o homem, levaram-nos consigo. Simão sentiu muito nojo
e repugnância, vendo Jesus tão miserável e desfigurado e com a
roupa tão suja e cheia de imundície. Mas Jesus, com os olhos cheios
de lágrimas, olhou para Simão com olhar tão desamparado, que
causava dó. Simão foi obrigado a ajudá-Lo a levantar-se; os
carrascos amarraram o braço da cruz mais para trás e
penduraram-no, com uma volta da corda, sobre o ombro de Simão,
que andava muito perto, atrás de Jesus, que deste modo não tinha
mais de carregar tanto peso. Finalmente o lúgubre séquito se pôs
em movimento.
Simão era homem robusto, de 40 anos. Andava com a cabeça
descoberta; vestia uma túnica curta, apertada e na cintura uma
faixa de pano roto; as sandálias, atadas aos pés e pernas com
correias, terminavam na frente em bico agudo. Os filhos vestiam
túnicas listadas de várias cores; dois já eram quase moços,
chamavam-se Rufo e Alexandre e juntaram-se . mais tarde aos
discípulos. O terceiro era ainda pequeno; vi-o ainda menino, em
companhia de Santo Estêvão. Simão ainda não tinha seguido muito
tempo Jesus, carregando o patíbulo e já se sentia profundamente
comovido.
5. Verônica e o Sudário
A rua em que se movia nessa hora o séquito, era longa, com uma
leve curva para a esquerda e nela desembocavam várias ruas
laterais. De todos os lados vinha gente bem vestida, que se
dirigia ao Templo; ao ver o séquito, uns se afastavam, com o receio
farisaico de se contaminarem, outros manifestavam certa
compaixão. Havia cerca de duzentos passos que Simão ajudava Jesus
a carregar a cruz, quando uma mulher de figura alta e imponente,
segurando uma menina pela mão, saiu de uma casa bonita, ao lado
esquerdo da rua e que tinha um átrio cercado de muros e de um belo
gradil brilhante, onde se penetrava por um terraço, com
escadaria. Ela correu, com a menina, ao encontro do cortejo. Era
Seráfia, mulher de Sirac, membro do Conselho do Templo, a qual,
pela boa ação praticada nesse dia, recebeu o nome de Verônica (de
"vera icon": verdadeira imagem).
Seráfia tinha preparado em casa um delicioso vinho aromático, com
o piedoso desejo de oferecê-Io como refresco a Jesus, no caminho
doloroso para o suplício. Já tinha ido uma vez ao encontro do
séquito, em expectativa dolorosa; vi-a velada, segurando pela mão
uma mocinha que adotara, passar ao lado do séquito, quando Jesus
se encontrou com a Santíssima Virgem. Mas, com o tumulto, não
achou ocasião de aproximar-se e voltou às pressas para casa, para
lá esperar o Senhor.
Saiu, pois, velada de casa para a rua; um pano pendia-lhe do ombro;
a menina, que podia ter nove anos, estava-lhe ao lado, ocultando
sob o manto o cântaro com o vinho, quando o séquito se aproximou.
Os que o precediam, tentaram em vão retê-Ia; ela estava fora de
si de amor e compaixão. Com a menina, que se lhe segurava,
pegando-lhe o vestido, atravessou a gentalha, que ia dos lados
e por entre soldados e carrascos, avançou para a frente de Jesus
e, caindo de joelhos, levantou para Ele o pano, estendido de um
lado, suplicando: "Permiti-me enxugar o rosto de meu Senhor."
Jesus tomou o pano com a mão esquerda e apertou-o, com a palma
da mão de encontro ao rosto ensangüentado; movendo depois a mão
esquerda, com o pano, para junto da mão direita, que segurava a
cruz, apertou-o entre as duas mãos e restituiu-lho, agradecendo;
ela o beijou, escondendo-o sobre o coração, debaixo do manto e
levantou-se.
Então a menina ofereceu timidamente o cântaro com o vinho; mas
os soldados e carrascos, praguejando, impediram-na de confortar
Jesus. A audácia e rapidez dessa ação provocou um ajuntamento
curioso do povo e causou assim uma pausa de dois minutos apenas
na marcha, o que permitiu a Seráfia oferecer o sudário a Jesus.
Os fariseus a cavalo e os carrascos irritaram-se com essa demora
e mais ainda com a veneração pública manifestada ao Senhor e
começaram a maltratá-Lo e empurrá-Lo. Verônica, porém, fugiu com
a menina para dentro de casa.
Apenas entrara no aposento, estendeu o sudário sobre a mesa e caiu
por terra desmaiada; a menina, com o cântaro de vinho,
ajoelhou-se-lhe ao lado, chorando. Assim as encontrou um amigo
da casa, que entrara para a visitar e a viu como morta, sem
sentidos, ao lado do sudário estendido, no qual o rosto
ensangüentado do Senhor estava impresso de um modo
maravilhosamente distinto, mas também horrível. Muito assustado,
fê-Ia voltar a si e mostrou-lhe o rosto do Senhor. Cheia de dor,
mas também de consolação, Seráfia ajoelhou-se diante do sudário,
exclamando: "Agora vou abandonar tudo, o Senhor deu-me uma
lembrança".
Esse sudário era de lã fina, cerca de três vezes mais longo do
que largo. Costumava-se usar em volta do pescoço; às vezes usavam
ainda outro em torno dos ombros. Era uso ir ao encontro de pessoas
aflitas, cansadas, tristes ou doentes e enxugar-lhes o rosto; era
sinal de luto e compaixão; nas regiões quentes também usavam dá-lo
de presente. Verônica guardava esse sudário sempre à cabeceira
da cama. Depois de sua morte veio ter, por intermédio das santas
mulheres, às mãos da Santíssima Mãe de Deus e dos Apóstolos e
depois à Igreja.
6. A quarta e quinta queda de Jesus sob a cruz. As compassivas
filhas de Jerusalém
O séquito estava ainda a boa distância da porta; a rua descia um
pouco até lá. A porta era uma construção extensa e fortificada;
passavase primeiro por uma arcada abobadada, depois sobre uma
ponte e finalmente por outra arcada. A porta ficava em direção
sudoeste; ao sair dela, se via o muro da cidade estender-se para
o sul, a uma distância como, por exemplo, da minha casa até a
Matriz, (cerca de dois minutos de caminho); depois virava, a uma
boa distância, para oeste e voltava novamente à direção do sul,
fazendo a volta do Monte Sião. A direita se estendia o muro para
o norte, até à porta do Angulo, dirigindo-se depois ao longo da
parte setentrional de Jerusalém, para leste.
Quando o séquito se aproximou da porta, impeliam-nO os carrascos
com mais violência. Justamente diante da porta, havia no caminho
desigual e arruinado uma grande poça: os carrascos arrastavam
Jesus para frente, apertavam-se uns aos outros; Simão Cireneu
procurou passar ao lado da poça, pelo caminho mais cômodo; com
isso deslocou-se a cruz e Jesus caiu pela quarta vez sob a cruz
e tão duramente, no meio do lodaçal, que Simão quase não pôde
segurar a cruz, Jesus exclamou em voz fina, fraca e contudo alto:
"Ai de ti! Ai de ti! Jerusalém! Quanto te tenho amado! Como uma
galinha, que esconde os pintinhos sob as asas, assim queria reunir
os teus filhos e tu me arrastas tão cruelmente para fora das tuas
portas." - O Senhor disse essas palavras com profunda tristeza,
mas os fariseus, virando-se para Ele, insultaram-nO, dizendo:
"Este perturbador do sossego público ainda não acabou; ainda tem
a língua solta?" e outras zombarias semelhantes. Espancaram e
empurraram Jesus, arrastando-O para fora do lodaçal, para o
levantar. Simão Cireneu ficou tão indignado com as crueldades dos
carrascos, que gritou: "Se não acabardes com essa infâmia,
jogarei a cruz no chão e não a carregarei mais, mesmo que me mateis
também.”
Logo depois de passar a porta, separa-se da estrada, do lado
direito, um caminho estreito e áspero que, dirigindo-se para o
norte, conduz em poucos minutos ao monte Cal vário. A estrada
grande ramifica-se, a pouca distância dali, em três direções: à
esquerda, para sudoeste, pelo vale Gihon, em direção à Belém;
para oeste, em direção à Emaús e Jope e para noroeste, rodeando
o monte Calvário, em direção à porta Angular, que conduz a Betur.
Olhando da porta pela qual Jesus saiu, à esquerda, para sudoeste,
pode-se ver a porta de Belém. Essas duas portas são, entre as
portas de Jerusalém, as menos distantes. No meio da estrada, fora
da porta, donde parte o caminho para o monte Calvário, havia uma
estaca, com uma tabuleta pregada, na qual estavam escritas as
sentenças de morte proferidas contra Jesus e os ladrões, escritas
em letras brancas salientes, que pareciam coladas sobre a
tabuleta. Não longe dai, na esquina do caminho do Gólgota, estava
um numeroso grupo de mulheres, a chorar e lamentar. Em parte eram
moças e mulheres pobres, com crianças, vindas de Jerusalém, que
se tinham adiantado ao séquito; em parte mulheres vindas de Belém,
Hebron e outros lugares circunvizinhos, que tinham chegado para
a festa e se juntaram àquelas mulheres.
Jesus não caiu ali inteiramente por terra; ia caindo como quem
desmaia, de modo que Simão pôs a extremidade da cruz no chão e,
aproximando-se de Jesus, segurou-O. O Senhor encostou-se em
Simão. Essa foi a quinta queda do Salvador sob a cruz. As mulheres
e moças, ao verem Jesus tão desfigurado e ensangüentado,
começaram a chorar e lamentar alto, oferecendo-lhe os sudários,
segundo o costume entre os judeus, para que enxugasse o rosto.
Jesus virou-se-Ihes e disse: "Filhas de Jerusalém, (isso
significa também: filhas de Jerusalém e cidades vizinhas), não
choreis por mim, mas chorai por vós e vossos filhos; porque sabei
que virá tempo em que se dirá: "Ditosas as que são estéreis e
ditosos os ventres que não geraram e ditosos os peitos que não
deram de mamar." - Então começarão os homens a dizer aos montes:
"Caí sobre nós!" e aos outeiros: "Cobri-nos". Porque, se isto se
faz no lenho verde, que se fará no seco?" Ainda Ihes disse outras
belas palavras, as quais, porém, esqueci; entre outras disse que
aquelas lágrimas Ihes seriam recompensadas, que doravante deviam
seguir outros caminhos, etc.
Houve ali uma pausa, pois o séquito parou por algum tempo. Aqueles que levavam os instrumentos do suplício, continuaram o
caminho para o Calvário; seguiam-se depois cem soldados do
destacamento de Pilatos, o qual tinha acompanhado o cortejo até
ali, mas chegado à porta da cidade, voltara para o palácio.
7. Jesus no Monte Gólgota. Sexta e sétima queda de Jesus e
seu encarceramento
O séquito pôs-se novamente em caminho. Jesus, curvado sob a cruz,
impelido a empurrões e golpes, arrastado pelas cordas, subiu
penosamente o áspero caminho que segue para o norte, entre o monte
Calvário e os muros da cidade; depois, no alto, se volta o caminho
tortuoso outra vez para o sul. Lá caiu Jesus, tão enfraquecido,
pela sexta vez; foi uma queda dura e a cruz, ao cair, ainda mais
o feriu. Os carrascos, porém, espancaram e impeliram-na com mais
brutalidade do que antes, até que Jesus chegou ao cume, no penedo
do Gólgota e ali caiu novamente com a cruz por terra, pela sétima
vez.
Simão Cireneu, também maltratado e cansado, estava cheio de
indignação e compaixão; quis ajudar Jesus a levantar-se, mas os
carrascos, aos empurrões e insultos, fizeram-no voltar pelo
caminho, morro abaixo; pouco depois se associou aos discípulos
do Mestre Divino. Também os outros que trouxeram os instrumentos
ou seguiram o cortejo e de que os carrascos não precisavam mais,
foram enxotados do cume. Os fariseus a cavalo subiram o monte Cal
vário por outros caminhos, mais cômodos, do lado oeste. Do cume
se avistam justamente os muros da cidade.
A face superior, o lugar do suplício, tem a forma circular e
caberia bem no largo diante da nossa Matriz; é do tamanho de um
bom picadeiro e cercado de um aterro baixo, cortado por cinco
caminhos. Essa disposição de cinco caminhos encontra-se em quase
todos os lugares do país, em lugares de banhos públicos ou de
batismo, como na piscina Betesda; muitas cidades também têm cinco
portas. Essa disposição acha-se em todas as construções dos
tempos antigos e também em mais modernos e assim foram feitas em
atenção às antigas tradições. Como em todas as coisas da Terra
Santa, há também nisso um profundo sentido profético, cumprido
nesse dia, em que se abriram os cinco caminhos de toda a salvação,
as cinco sagradas Chagas de Jesus.
Os fariseus a cavalo pararam fora do círculo, no lado oriental
do monte, onde o declive é mais suave; o lado que dá para a cidade
e por onde eram conduzidos os condenados, é escarpado e íngreme.
Estavam ali também cem soldados romanos, nativos das fronteiras
entre a Itália e a Suíça, que estavam distribuídos em parte em
vários lugares da execução. Alguns ficaram com os dois ladrões,
que, por falta de lugar no cume, não tinham levado para cima, mas
fizeram deitar de costas, com os braços amarrados aos madeiros
transversais das cruzes, na encosta do monte, um pouco abaixo do
cume, onde o caminho vira para o sul. Muita gente, na maior parte
das classes baixas, estrangeiros, servos, escravos, pagãos e
muitas mulheres, gente que não se importava de contaminar-se,
juntavam-se em redor do largo do cume ou formavam grupos, cada
vez mais numerosos, nas alturas circunvizinhas, acrescidos de
gente que se dirigia à cidade. Para oeste, ao pé do monte Gihon,
havia um grande acampamento de forasteiros, vindos para a festa
da Páscoa; mui'tos ficavam olhando de longe, outros se
aproximavam pouco a pouco.
Eram cerca de onze horas e três quartos, quando Jesus,
arrastado com a cruz para o lugar do suplício, caiu por terra e
Simão foi expulso de lá. Os carrascos levantaram o Salvador aos
arrancos das cordas e desligaram os madeiros da cruz, jogando-os
no chão, um em cima do outro. Ai! que aspecto terrível apresentava
Jesus, em pé no lugar do suplício, abatido, triste, coberto de
feridas, ensangüentado, pálido. Os carrascos deitaram-na
brutalmente por terra, dizendo em tom de mofa: "á rei dos judeus,
devemos tomar medida de teu trono?" Mas Jesus deitou-se de livre
vontade sobre a cruz e se a fraqueza lha tivesse permitido, os
carrascos não teriam tido necessidade de jogá-Lo por terra.
Estenderam-na sobre a cruz e marcaram nesta os lugares das mãos
e dos pés, enquanto os fariseus em redor riam e insultavam o Divino
Salvador.
Levantando-O novamente, conduziram-nO amarrado uns setenta passos ao norte, descendo a encosta do monte Calvário, a uma fossa
cava da na rocha, que parecia uma cisterna ou adega; levantando
o alçapão, empurraram-nO para dentro tão brutalmente, que se não
fosse por auxí lio divino, teria chegado ao fundo duro da rocha
com os joelhos esmagados. Ouvi-Lhe os gemidos altos e agudos.
Fecharam o alçapão e deixaram uma guarda. Segui-O nesses setenta
passos; parece-me lem brar ainda de uma revelação sobrenatural
de que os Anjos o socorreram, para que não esmagasse os joelhos;
mas a pobre Vítima gemia e chorava de modo que cortava o coração.
A rocha amoleceu, ao contato dos joelhos sagrados do Redentor.
Os Carrascos começaram então os preparativos. Havia no centro
do largo do suplício uma elevação circular, de talvez dois pés
de altura, para a qual se tinham de subir alguns degraus: era o
ponto mais alto do penedo do Calvário. Nesse cume estavam cavando
a cinzel os buracos nos quais as três cruzes deviam ser plantadas;
já tinham tomado medida para isso na extremidade inferior das
cruzes. Colocaram os troncos das cruzes dos ladrões à direita e
à esquerda, sobre essa elevação; esses lenhos eram toscamente
aparados e mais baixos do que a cruz de Jesus; em cima haviam sido
cortados obliquamente. Os madeiros transversais, aos quais os
ladrões ainda estavam amarrados, foram depois ajustados um pouco
abaixo da extremidade superior dos troncos.
Os carrascos colocaram então a cruz de Nosso Senhor no lugar
onde O queriam pregar, de modo que a pudessem comodamente
levantar e fazer entrar na escavação. Encaixaram os dois braços
da cruz no tronco, pregaram a peça de madeira para os pés, abriram
com uma verruma os furos para os cravos e para o prego do título,
fincaram a martelo as cunhas sob os braços da cruz e fizeram cá
e lá algumas cavidades no tronco da cruz, para dar espaço para
a coroa de espinhos e as costas, de modo que o corpo ficasse mais
suportado pelos pés do que pendurado pelas mãos, que podiam
rasgar-se com o peso do corpo e para que Jesus sofresse maior
martírio. Ainda fincaram em cima por um madeiro transversal, para
servir de apoio às cordas, com as quais queriam puxar e elevar
a cruz e fizeram ainda outros preparativos semelhantes.
8. Maria e as amigas vão ao CaIvário
Depois do doloroso encontro da SS. Virgem com o Divino
Filho, caITegando a cruz, quando Maria caiu sem sentidos sobre
a pedra angu lar, Joana Chusa, Suzana e Salomé de Jerusalém, com
auxílio de João e do sobrinho de José de Arimatéia, conduziram-na
para dentro da casa, impelidos pelos soldados e o portão foi
fechado, separando-a do Filho bem-amado, carregado do peso da
cruz e cruelmente maltratado. O amor e o ardente desejo de estar
com o Filho, de sofrer tudo com Ele e de não O abandonar até o
fim, davam-lhe uma força sobrenatural. As companheiras foram com
ela à casa de Lázaro, na proximidade da porta Angular, onde
estavam reunidas as outras santas mulheres, com Madalena e Marta,
chorando e lamentando-se; com elas estavam também algumas
crianças. De lá saíram em número de 17, seguindo o caminho
doloroso de Jesus.
Vi-as todas, sérias e decididas; não se importavam com os insultos
da gentalha, mas impunham respeito pela sua tristeza; passaram
pelo fórum, a cabeça coberta pelos véus; no ponto onde Jesus
tomara ao ombro a cruz, beijaram a terra; depois seguiram todo
o caminho da Paixão de Jesus, venerando todos os lugares onde Ele
mais sofrera. Maria e as que eram mais inspiradas, procuravam
seguir as pegadas de Jesus e a SS. Virgem, sentindo e vendo-lhes
tudo na alma, guiava-as, onde deviam parar e quando deviam
prosseguir nessa via sacra. Todos esses lugares se lhe imprimiram
vivamente na alma; ela contava até os passos e mostrava às
companheiras os santos lugares.
Desse modo a primeira e mais tocante devoção da Igreja foi escrita
no coração amoroso de Maria, Mãe de Deus; escrita pela espada
profetizada por Simeão; os santos lábios da Virgem
transmitiram-na aos companheiros do sofrimento e por esses a nós.
Esta é a santa tradição vinda de Deus ao coração da Mãe Santíssima
e do coração da Mãe aos corações dos filhos; assim continua sempre
a tradição na Igreja. Quando se vêm as coisas como as vejo, parece
este modo de transmissão mais vivo e mais santo. Os judeus de todos
os tempos sempre veneraram os lugares consagrados por uma ação
santa ou por um acontecimento de saudosa memória. Eles não
esquecem um lugar onde se deu uma coisa sobrenatural: marcam-no
com monumento de pedras e vão em peregrinação, para rezar. Assim
também nasceu a devoção da Via Sacra, não por uma intenção
premeditada, mas da natureza dos homens e das intenções de Deus
para com seu povo, do fiel amor de uma mãe, e, por assim dizer,
sob os pés de Jesus, que foi o primeiro que a trilhou.
Chegou então esse piedoso grupo à casa de Verônica, onde entraram,
porque Pilatos com os cavaleiros e os duzentos soldados, voltando
da porta da cidade, lhes vinham ao encontro. Ali Maria e os
companheiros viram o sudário, com a imagem do rosto de Jesus e
entre lágrimas e suspiros, exaltaram a misericórdia de Jesus para
com sua fiel amiga.
Levaram o cântaro com o vinho aromático, com que Verônica não
conseguira confortar Jesus e dirigiram-se todos, com Verônica,
à porta do Gólgota. No caminho se Ihes juntaram ainda muitas
pessoas bem intencionadas e outras comovidas pelos
acontecimentos, entre as quais também certo número de homens,
formando um cortejo que, pela ordem e seriedade com que passou
pelas ruas, me fez uma singular impressão. Esse cortejo era quase
maior do que aquele que conduziu a Jesus, não contando o povo que
o acompanhou.
As angústias e dores aflitivas de Maria nesse caminho, ao ver o
lugar do suplício, com as cruzes no alto, não se podem exprimir
em palavras; a alma amantíssima da Virgem sentia os sofrimentos
de Jesus e era ainda torturada pelo sentimento de não poder
seguí-Lo na morte. Madalena, toda transtornada e como embriagada
de dor, andava cambaleando, como que arremessada de angústia em
angústia; passava do silêncio às lamentações, do estupor ao
desespero, das lamentações às ameaças. Os companheiros eram
obrigados a sustê-Ia, a protegê-Ia, a exortá-Ia e a escondê-Ia
da vista dos curiosos.
Subiram o monte Cal vário pelo lado mais suave, ao oeste e
aproximaram-se em três grupos do aterro circular do cume, a certa
distância, um atrás do outro. A Mãe de Jesus, a sobrinha desta,
Maria de Cleofas, Salomé e João avançaram até o lugar do suplício;
Marta, Maria Helí, Verônica, Joana Chusa, Suzana e Maria, mãe de
Marcos, ficaram um pouco afastadas, rodeando Maria Madalena, que
não podia conter a dor. (*) Um pouco mais atrás estavam ainda sete
pessoas e entre os três grupos havia gente boa, que mantinha uma
certa comunicação entre eles. Os fariseus a cavalo estavam em
diversos lugares em redor do local do suplício, enquanto os
soldados romanos ocupavam as cinco entradas.
* Os santos Evangelistas Mateus (27, 56) e Marcos (15, 40)
mencionam, além da Mãe de Jesus, as seguintes mulheres piedosas:
Maria Madalena, Maria, filha de Cleofas e Salomé. - S. João fala
das duas primeiras e de Helí. Pelo menos podem as suas palavras
ser tomadas nesse sentido: "Estavam ao pé da cruz de Jesus sua
Mãe, a innã de sua Mãe. Maria, filha de Cleofas e Maria Madalena."
Nem é preciso dizer que a palavra "irmã" pode também significar
parenta.
Que espetáculo doloroso para Maria: o lugar do suplício, o cume
com as cruzes, a terrível cruz do Filho adorado e diante dela,
no chão, os martelos, as cordas, os horrendos pregos e os
repelentes carrascos, meio nus, quase embriagados, fazendo o
horroroso trabalho entre imprecações. Os troncos das cruzes dos
ladrões já estavam arvorados, munidos de paus encaixados para
subir. A ausência de Jesus ainda prolongava o martírio da Mãe
Santíssima; ela sabia que ainda estava vivo; desejava vê-Io,
tremia ao pensar em que estado O veria; ia vê-Lo em indizíveis
tormentos.
Desde a madrugada até às dez horas, quando foi pronunciada a
sentença, caíra várias vezes chuva de pedra; durante o caminho
de Jesus ao Cal vário clareou o céu e brilhava o sol; mas pelas
doze horas começou uma neblina avermelhada a velar o sol.
8
Crucificação e morte de Jesus
1. Os carrascos despem Jesus para a crucificação e
oferecem-Lhe vinagre
2. Jesus é pregado na cruz
3. Elevação da cruz
4. A crucificação dos ladrões
5. Os carrascos tiram à sorte as vestes de Jesus
6. Jesus crucificado e os ladrões
7. Primeira palavra de Jesus na cruz
8. Eclipse do sol. Segunda e terceira palavra de Jesus na cruz
9. Estado da cidade e do Templo durante o eclipse do sol
10. Abandono de Jesus. A quarta palavra de Jesus na cruz
11. Quinta, Sexta e Sétima palavras de Jesus na cruz. Morte de
Jesus.
12. O tremor de terra, aparição de mortos em Jerusalém
13. Outras aparições depois da morte de Jesus
14. José de Arimatéia pede a Pilatos o corpo de Jesus
15. O coração de Jesus trespassado por uma lança. Esmagamento das
pernas e morte dos ladrões
16. A descida de Jesus aos infernos
Crucificação e morte de Jesus
1. Os carrascos despem Jesus para a crucificação e
oferecem-Lhe vinagre
Dirigiram-se então quatro carrascos à masmorra subterrânea,
situada a setenta passos ao norte; Jesus rezava todo o tempo a
Deus, pedindo força e paciência e oferecendo-se mais uma vez em
sacrifício expiatório, pelos pecados dos inimigos. Os carrascos
arrancaram-na para fora e, empurrando, batendo e insultando-O,
levaram-na para o suplício. O povo olhava e insultava; os
soldados, frios e altivos, mantinham a ordem, dando-se ares de
importância; os carrascos, cheios de raiva sanguinária,
arrastaram Jesus brutalmente para o largo do suplício.
Quando as santas mulheres viram Jesus chegar, deram dinheiro a
um homem, que o devia levar, junto com vinho aromático, aos
carrascos, para que esses o dessem a Jesus a beber. Mas esses
criminosos não Lho deram, mas beberam-no depois. Tinham lá dois
vasos de cor parda, dos quais um continha vinagre misturado com
fel e o outro uma espécie de vinagre, que afirmavam ser vinho,
com mirra e absinto; dessa bebida ofereceram um copo pardo, a
Jesus, que apenas o provou, tocando-o com os lábios, mas não
bebeu. Estavam no lugar do suplício dezoito carrascos; os seis
que O tinham açoitado, quatro que O conduziram, dois que
suspenderam a extremidade da cruz pelas cordas e seis que O deviam
crucificar. Parte deles estavam ocupados com Jesus, outros com
os ladrões, trabalhando e bebendo altemadamente. Eram homens baixos, robustos, sujos e meio nus, de feições estranhas, cabelo
eriçado, barba rala: homens abomináveis e bestiais. Serviam a
judeus e romanos por dinheiro.
O aspecto de tudo isso era mais terrível ainda, porque eu via o
mal, em figuras visíveis para mim e invisíveis para os outros.
Via grandes e hediondas figuras de demônios, agindo entre todos
esses homens cruéis; era como se auxiliassem em tudo,
aconselhando, passando as ferramentas; havia inúmeras aparições
de figuras pequenas e medonhas, de sapos, serpentes e dragões de
muitas garras, vi todas as espécies de insetos venenosos voarem
em redor e escurecerem o ar. Entravam na boca e no coração dos
assistentes ou pousavam-Ihes nos ombros; eram homens cujos
corações estavam cheios de pensamentos de ódio e maldade ou que
proferiam palavras de maldição e escárnio. Acima do Senhor,
porém, vi várias vezes, durante a crucifixão, aparecerem grandes
figuras angélicas, que choravam e aparições luminosas, nas quais
distingui apenas pequenos rostos. Vi aparecer tais Anjos de
compaixão e consolo também sobre a Santíssima Virgem e todos os
bons, confortando e animando-os.
Os carrascos tiraram então o manto do Senhor, que lhe tinham antes
enrolado em redor do peito; tiraram-Lhe o cinturão, com as cordas
e o próprio cinto. Despiram-na da longa veste de lã branca,
passando-a pela cabeça, pois estava aberta no peito, ligada com
correias. Depois lhe tiraram a longa faixa estreita, que caia do
pescoço sobre os ombros e como não Lhe podiam tirar a túnica sem
costuras, por causa da coroa de espinhos, arrancaram-Lhe a coroa
da cabeça, reabrindo assim todas as feridas; arregaçando depois
a túnica, puxaram-lha, com vis gracejos, pela cabeça ferida e
sangrenta.
Lá estava o Filho do Homem, coberto de sangue, de contusões, de
feridas fechadas ou outras ainda sangrentas, de pisaduras e
manchas escuras. Estava apenas vestido ainda do curto escapulário
de lã sobre o peito e costas e da faixa que cingia os rins. O
escapulário de lã aderira às feridas secas e estava colado com
sangue na nova ferida profunda, que o peso da cruz Lhe fizera no
ombro e que Lhe causava um sofrimento indizível. Os carrascos
arrancaram-lhe o escapulário impiedosamente do peito e assim
ficou Jesus em sangrenta nudez, horrivelmente dilacerado e
inchado, coberto de chagas. No ombro e nas costas se Lhe viam os
ossos, através das feridas e a lã branca do escapulário ainda
estava colada em algumas feridas e no sangue ressecado do peito.
Arrancaram-Lhe então a última faixa de pano da cintura e eis que
ficou de todo nu e curvou-se, cheio de confusão e vergonha; e como
estava a ponto de cair, sob as mãos dos carrascos, sentaram-na
sobre uma pedra, pondo-Lhe novamente a coroa de espinhos sobre
a cabeça e ofereceram-Lhe a beber do outro vaso, que continha
vinagre com fel; mas Jesus desviou a cabeça em silêncio.
Quando, porém, os carrascos O pegaram pelos braços, com que cobria
a nudez e O levantaram, para estendê-Lo sobre a cruz, ouviram-se
gritos de indignação e descontentamento e os lamentos dos amigos
por essa vergonha e ignomínia. A Mãe Santíssima suplicou a Deus
com ardor; já estava a ponto de tirar o véu da cabeça e, abrindo
caminho por entre os carrascos, oferecê-Io ao Divino Filho. Mas
Deus ouvira-lhe a oração; pois nesse momento um homem, vindo da
porta e correndo todo o caminho com as vestes arregaçadas,
atravessou o povo e precipitou-se ofegante entre os carrascos e
entregou um pano a Jesus que, agradecendo-lhe, o aceitou e cobriu
a nudez, cingindo-O à moda dos orientais, passando a parte mais
comprida por entre as pernas e ligando-a com a outra em redor da
cintura.
Esse benfeitor do Divino Redentor, enviado para atender à súplica
da SS. Virgem, tinha na sua impetuosidade algo de imperioso;
ameaçou os carrascos com o punho e disse apenas: "Tomem cuidado
de não impedir este homem de cobrir-se." Não falou com ninguém
mais e retirou-se tão rapidamente como tinha vindo. Era Jonadab,
sobrinho de São José, da região de Belém, filho daquele irmão a
quem José, depois do nascimento de Jesus, empenhara o jumento.
Não era amigo declarado de Jesus; também nesse dia se tinha
mantido afastado e limitara-se a observar tudo de longe. Já quando
ouvira contar que Jesus fora despido na flagelação, ficara muito
indignado; depois, quando se aproximou a hora da crucifixão,
estava no Templo e sentia uma indizível angústia. Quando a Mãe
de Jesus, no Gólgota, dirigiu o grito da alma a Deus, sentiu
Jonadab de repente um impulso irresistível de correr do Templo
ao Calvário para cobrir a nudez do Senhor. Sentia na alma uma viva
indignação contra o ato ignominioso de Cam, que rira da nudez de
Noé, embriagado pelo vinho e sentiu-se impelido a correr, como
um novo Sem, para cobrir a nudez do lagareiro. Os crucificadores
eram os Camitas e Jesus pisava as uvas no lagar, para o vinho novo,
quando Jonadab veio cobrí-Lo. Essa ação foi o cumprimento de uma
figura simbólica do Antigo Testamento e foi mais tarde
recompensada, como vi e hei de contar.
2. Jesus é pregado na cruz
Jesus, imagem viva da dor, foi estendido pelos carrascos sobre
a cruz; Ele próprio se sentou sobre ela e eles brutalmente O
deitaram de costas. Colocaram-Lhe a mão direita sobre o orifício
do prego, no braço direito da cruz e aí lhe amarraram o braço.
Um deles se ajoelhou sobre o santo peito, enquanto outro lhe
segurava a mão, que se estava contraindo e um terceiro colocou
o cravo grosso e comprido, com a ponta limada, sobre essa mão cheia
de bênção e cravou-o nela, com violentas pancadas de um martelo
de ferro. Doces, e claros gemidos ouviram-se da boca do Senhor;
o sangue sagrado salpicou os braços dos carrascos; rasgaram-Lhe
os tendões da mão, os quais foram arrastados, com o prego
triangular, para dentro do estreito orifício. Contei as
marteladas, mas esqueci, na minha dor, esse número. A Santíssima
Virgem gemia baixinho e parecia estar sem sentidos exteriormente;
Madalena estava desnorteada.
As verrumas eram grandes peças de ferro, da forma de um T; não
havia nelas nada de madeira. Também os pesados martelos eram, como
os cabos, de ferro e todos de uma peça inteiriça; tinham quase
a forma dos martelos de pau que os marceneiros usam entre nós,
trabalhando com formão.
Os cravos, cujo aspecto fizera tremer Jesus, eram de tal tamanho
que, seguros pelo punho, excediam em baixp e em cima cerca de uma
polegada. Tinham cabeça chata, da largura de uma moeda de cobre,
com uma elevação cônica no meio. Tinham três gumes; na parte
superior tinham a grossura de um polegar e na parte inferior a
de um dedo pequeno; a ponta fora aguçada com uma lima; cravados
na cruz, vi-Ihes a ponta sair um pouco do outro lado dos braços
da cruz.
Depois de terem pregado a mão direita de Nosso Senhor, viram os
crucificadores que a mão esquerda, que tinham também amarrado ao
braço da cruz, não chegava até o orifício do cravo, que tinham
perfurado a duas polegadas distante das pontas dos dedos. Por isso
ataram uma corda ao braço esquerdo do Salvador e, apoiando os pés
sobre a cruz, puxaram a toda força, até que a mão chegou ao
orifício do cravo. Jesus dava gemidos tocantes; pois
deslocaram-Lhe inteiramente os braços das articulações; os
ombros, violentamente distendidos, formavam grandes cavidades
axilares, nos cotovelos se viam as junturas dos ossos. O peito
levantou-se-Lhe e as pernas encolheram-se sobre o corpo. Os
carrascos ajoelharam-se sobre os braços e o peito, amarraram-lhe
fortemente os braços e cravaram-Lhe então cruelmente o segundo
prego na mão esquerda; jorrou alto o sangue e ouviram-se os agudos
gemidos de Jesus, por entre as pancadas do pesado martelo. Os
braços do Senhor estavam tão distendidos, que formavam uma linha
reta e não cobriam mais os braços da cruz, que subiam em linha
oblíqua; ficava um espaço livre entre esses e as axilas do Divino
Mártir.
A SS. Virgem sentiu todas essas torturas com Jesus; estava de uma
palidez cadavérica e fracos gemidos saiam-lhe da boca. Os
fariseus dirigiram insultos e zombarias para o lado onde ela
estava; por isso os amigos conduziram-na para junto das outras
santas mulheres, que estavam um pouco mais afastadas do lugar do
suplício. Madalena estava como louca; feria o rosto de modo que
tinha as faces e os olhos cheios de sangue.
Havia na cruz, em baixo, talvez a um terço da respectiva altura,
uma peça de madeira, fixa por um prego muito grande, destinada
a suportar os pés de Jesus, afim de que ficasse mais em pé do que
suspenso; de outro modo as mãos teriam sido rasgadas pelo peso
do corpo e os pés não poderiam ser pregados sem quebrá-Ios. Nessa
peça de madeira tinham perfurado o orifício para o cravo. Tinham
também feito uma cavidade para os calcanhares, como também havia
outras, em vários pontos da cruz, para que o Mártir pudesse ficar
suspenso mais tempo e o peso do corpo não Lhe rasgasse as mãos,
fazendo-O cair.
Todo o corpo de nosso Salvador tinha-se contraído para o alto da
cruz, pela violenta extensão dos braços e os joelhos
tinham-se-Lhe dobrado. Os carrascos lançaram-se então sobre
esses e, por meio de cordas, amarraram-nos ao tronco da cruz; mas
pela posição errada dos orifícios dos cravos, os pés ficavam longe
da peça de madeira que os devia suportar. Então começaram os
carrascos a praguejar e insultar. Alguns julgavam que se deviam
furar outros orifícios para os pregos das mãos; pois mudar o
suporte dos pés era difícil. Outros fizeram horrível troça de
Jesus: "Ele não quer estender-se, disseram, mas nós Lhe
ajudaremos." Atando cordas à perna direita, puxaram-na com
horrível violência, até o pé tocar no suporte e amarraram-na à
cruz. Foi uma deslocação tão horrível, que se ouvia estalar o
peito de Jesus, que gemia alto: "Ó meu Deus! Meu Deus!" Tinham-Lhe
amarrado também o peito e os braços, para os pregos não rasgarem
as mãos; o ventre encolheu-se-Lhe inteiramente, as costelas
pareciam a ponto de destacar-se do esterno. Foi uma tortura
horrorosa.
Amarraram depois o pé esquerdo com a mesma brutal violência,
colocando-o sobre o pé direito e como os pés não repousavam com
bastante firmeza sobre o suporte, para serem pregados juntos,
perfuraram primeiro o peito do pé esquerdo com um prego mais fino
e de cabeça mais chata do que os cravos, como se fura a sovela.
Feito isso, tomaram o cravo mais comprido que o das mãos, o mais
horrível de todos e, passando-o brutalmente pelo furo feito no
pé esquerdo, atravessaramlhe a marteladas o direito, cujos ossos
estalavam, até o cravo entrar no orifício do suporte e, através
desse, no tronco da cruz. Olhando de lado a cruz, vi como o prego
atravessou os dois pés.
Essa tortura era a mais dolorosa de todas, por causa da distensão
de todo o corpo. Contei 36 golpes de martelo, no meio dos gemidos
claros e penetrantes do pobre Salvador; as vozes em redor, que
proferiam insultos e maldições, pareciam-me sombrias e
sinistras.
A Santíssima Virgem tinha voltado ao lugar do suplício; a
deslocação do corpo do Filho adorado, o som das marteladas e os
gemidos de Jesus, causaram-lhe tão veemente dor e compaixão, que
caiu novamente nos braços das companheiras, o que provocou um
ajuntamento de povo. Então acorreram alguns fariseus a cavalo,
insultando-as e os amigos afastaram-na outra vez a alguma
distância. Durante a crucifixão e a elevação da cruz, que se lhe
seguiu, se ouviam, especialmente entre as mulheres, gritos de
compaixão, como: "Porque a terra não traga esses miseráveis?
Porque não cai fogo do céu, para os devorar?" - A essas manifestações de amor respondiam os carrascos com insultos e escárnio.
Os gemidos que a dor arrancava de Jesus, misturavam-se com
contínua oração; recitava trechos dos salmos e dos profetas,
cujas predições nessa hora cumpria; em todo o caminho da cruz,
até à morte, não cessa va de rezar assim e de cumprir as profecias.
Ouvi e rezei com Ele todas essas passagens e às vezes me lembro
delas, quando rezo os salmos; mas fiquei tão acabrunhada com o
martírio de meu Esposo celeste, que não sei mais juntá-Ias. Durante esse horrível suplício, vi Anjos a chorar aparecerem
acima de Jesus.
O comandante da guarda romana fizera pregar no alto da cruz a
tábua, como titulo que Pilatos escrevera. Os fariseus estavam
indignados porque os romanos se riam alto do título "Rei dos
judeus." Por isso voltaram alguns fariseus à cidade, depois de
ter tomado medida para uma outra inscrição, para pedir a Pilatos
novamente outro título.
Enquanto Jesus era pregado à cruz, estavam ainda alguns homens
a trabalhar na escavação em que a cruz devia ser colocada; pois
era estreita a cova e a rocha muito dura. Alguns dos carrascos,
em vez de dar a Jesus para beber o vinho aromático trazido pelas
santas mulheres, be beram-no eles mesmos e ficaram embriagados;
queimava-Ihes as entra nhas e causava-Ihes tanta dor nos
intestinos, que ficaram desvairados; insultavam a Jesus,
chamando-O de feiticeiro e enfureciam-se à vista da paciência do
Divino Mestre; desceram várias vezes o Calvário, a correr, para
beber leite de jumenta. Havia lá perto algumas mulheres, que pertenciam a um acampamento de peregrinos, vindos para a festa da
Páscoa, as quais tinham jumentas, cujo leite vendiam.
Pela posição do sol era cerca de doze horas e um quarto,
quando Jesus foi crucificado. No momento em que elevaram a cruz,
ouviu-se do Templo o soar de muitas trombetas: Era a hora em que
imolavam o cor deiro pascal.
3. Elevação da cruz
Depois de terem pregado Nosso Senhor à cruz, ataram cordas
na parte superior da mesma, por meio de argolas, lançaram as
cordas sobre o cavalete antes erigido no lado oposto e puxaram
a cruz pelas cordas, de modo que a parte superior se lhe ergueu;
alguns dirigiram-se com paus munidos de ganchos, que fincaram no
tronco e fizeram o pé da cruz entrar na cova. Quando o madeiro
chegou à posição vertical, entrou na escavação com todo o peso
e tocou no fundo com um terrível choque. A cruz tremeu do abalo
e Jesus soltou um grito de dor; pelo peso vertical desceu-lhe o
corpo, as feridas alargaram-se-Lhe, o sangue corria mais
abundantemente e os ossos deslocados entrechocaram-se. Os
carrascos ainda sacudiram a cruz, para a por mais firme e fincaram
cinco cunhas na cova, em redor da cruz: uma na frente, uma do lado
direito, outra à esquerda e duas atrás, onde o madeiro estava um
pouco arredondado.
Foi uma impressão terrível e ao mesmo tempo comovedora, quando,
sob os gritos insultuosos dos carrascos e dos fariseus, como
também de muitos homens do povo, mais afastados, a cruz se elevou,
balançando e entrou estremecendo na escavação; ouviram-se também
vozes piedosas de compaixão, as vozes mais santas da terra: a da
Mãe Santíssima, de João, das amigas e de todos que tinham um
coração puro, saudaram com expressão dolorosa o Verbo eterno,
feito carne e elevado sobre a cruz. Estenderam as mãos
ansiosamente como para o segurar, quando o Santo dos santos, o
Esposo de todas as Almas, pregado vivo na cruz, foi elevado pelas
mãos dos pecadores enfurecidos. Quando, porém, o madeiro erguido
com estrondo, entrou na respectiva cova, houve um momento de
silêncio solene; todo o mundo parecia experimentar uma sensação
nova, nunca até então sentida. O próprio inferno sentiu assustado
o choque do lenho sobre a rocha e levantou-se contra ele,
redobrando nos seus instrumentos humanos o seu furor e os
insultos. Nas almas do purgatório e do limbo, porém, causou
alegria e esperança: soava-Ihes como o bater do triunfador às
portas da Redenção. A santa Cruz estava pela primeira vez plantada
no meio da terra, como aquela árvore da vida no Paraíso e das
chagas dilatadas do Cristo corriam quatro rios santos sobre a
terra, para expiar a maldição, que pesava sobre ela e para
fertilizar e a tomar um paraíso do novo Adão.
Quando nosso Salvador foi elevado na cruz e os gritos de insulto
foram interrompidos por alguns minutos de silencioso espanto,
ouviase do Templo o som de muitas trombetas, que anunciavam o
começo da imolação do cordeiro pascal, do símbolo, interrompendo
de um modo solene e significativo os gritos de furor e de dor,
em redor do verdadeiro , Cordeiro de Deus, imolado na cruz. Muitos
corações endurecidos foram abalados e pensaram nas palavras do
precursor, João Batista: "Eis aí o Cordeiro de Deus, que tomou
sobre si os pecados do mundo.”
O lugar onde fora plantada a cruz, estava elevado cerca de dois
pés acima do terreno em redor. Quando a cruz ainda se achava fora
da cova, estavam os pés de Jesus à altura de um homem, mas depois
de introduzida na respectiva escavação, podiam os amigos chegar
aos pés do Mestre, para os abraçar e beijar. Havia um caminho para
essa elevação. O rosto de Jesus estava virado para nordeste.
4. A crucificação dos ladrões
Durante a crucifixão do Senhor jaziam os ladrões, de costas, com
as mãos ainda amarradas aos madeiros transversais das cruzes, que
tinham sobre a nuca, ao lado do caminho, na encosta oriental do
Calvário; estava com eles uma guarda. Suspeitos de terem
assassinado uma mulher judaica, com os filhos, no caminho de
Jerusalém a Jope, foram presos num castelo daquela região, onde
morava às vezes Pilatos, por ocasião das manobras do exército e
onde se apresentaram como ricos negociantes. Tinham estado muito
tempo no cárcere, antes do julgamento e da condenação. Esqueci
os pormenores. O ladrão do lado esquerdo era o mais velho e grande
criminoso, o sedutor e mestre do outro. Geralmente são chamados
Dimas e Gesmas; esqueci-Ihes os nomes verdadeiros; vou chamar,
por isso, ao bom Dimas e ao mau Gesmas.
Ambos pertenciam à quadrilha de salteadores que, nas fronteiras
do Egito, tinham dado agasalho à Sagrada Família, com o menino
Jesus, na fuga para o Egito. Dimas fora o menino morfético que,
a conselho de Maria, fora lavado pela mãe na água em que o menino
Jesus se tinha banhado e que ficara curado no mesmo instante. A
caridade e a proteção que a mãe proporcionara à Sagrada Família,
fora recompensada naquela ocasião pela cura simbólica, que se
realizou na cruz, quando foi limpo pelo sangue de Jesus. Dimas
caíra em muitos crimes, mas não era perverso; não conhecia Jesus,
a paciência do Senhor comoveu-o. Enquanto jaziam por terra,
falava sem cessar de Jesus com o companheiro: "Maltratam
horrivelmente este Galileu, dizia, o que Ele fez, pregando a nova
doutrina, deve ser pior do que os nossos crimes; mas Ele tem grande
paciência e poder sobre todos os homens." - Gesmas respondeu: "Que
poder tem? Se fosse tão poderoso, como dizem, podia salvarnos
todos." Desse modo continuavam a falar e quando a cruz do Senhor
foi elevada, vieram carrascos dizer-Ihes: "Agora é a vossa vez"
e arrastaram-nos para o lugar do suplício. Desamarraram-nos dos
madeiros transversais a toda a pressa, pois o sol já se escurecia
e havia um movimento na natureza: como se uma tempestade se
aproximasse.
Os carrascos encostaram escadas às árvores das cruzes e ajustaram
os lenhos transversais em cima, com cavilhas. Foram então
colocadas duas escadas junto à cruz, para os carrascos. No entanto
deram a beber aos ladrões vinagre misturado com mirra e
vestiram-Ihes o gibão já roto, ataram-Ihes cordas nos braços e
lançando-as sobre os braços da cruz, puxaram-nos para cima,
obrigando-os, a pancadas e pauladas, a subir pelos paus que
estavam fincados no tronco das cruzes. Nos madeiros transversais
e nos troncos já estavam amarradas as cordas, que pareciam ser
feitas de cortiça torcida. Os braços dos condenados foram amarrados aos madeiros transversais; ataram-Ihes os pulsos e
cotovelos, como também os joelhos e os pés à cruz e apertaram-nos
com tanta violência, torcendo as cordas por meio de paus, que os
ossos estalavam e o sangue Ihes esguichou dos músculos. Os
infelizes soltaram gritos horríveis e Dimas, o bom ladrão, disse:
"Se nos tivésseis tratado como a este Galileu, não teríeis mais
o trabalho de puxar-nos aqui para cima.”
5. Os carrascos tiram à sorte as vestes de Jesus
Os carrascos juntaram as vestes de Jesus no lugar onde tinham
jazido os ladrões e fizeram delas vários lotes, para tirar à
sorte. O manto era mais largo em baixo do que em cima e tinha várias
pregas; sobre o peito estava dobrado e formava assim bolsos.
Rasgaram-no em várias tiras, como também a longa veste branca,
aberta no peito, onde havia correias para atá-Ia e
distribuíram-nas pelos lotes; assim fizeram também várias partes
da faixa de pano que vestia em volta do pescoço, do cinto, do
escapulário e do pano com que cobria o corpo; todas essas vestes
estavam ensopadas do sangue de Nosso Senhor. Como, porém,
não chegaram a um acordo a respeito da túnica sem costuras, que,
rasgada em partes, não serviria mais para nada, tomaram uma
tabuleta com algarismos e dados em forma de favas, com marcas,
que trouxeram consigo e jogando esses dados, tiraram à sorte a
túnica. Viu-lhes. porém, um mensageiro de Nicodemos e José de
Arimatéia, dizendo-lhe que ao pé do Cal vário havia quem quisesse
comprar as vestes de Jesus; juntaram então depressa todas as
vestes e, correndo para baixo, venderam-nas; assim ficaram essas
relíquias com os cristãos.
6. Jesus crucificado e os ladrões
Depois do violento choque da cruz, a cabeça de Jesus, coroada de
espinhos, foi fortemente abalada e derramou grande abundância de
sangue; também das chagas das mãos e dos pés correu o sangue em
torrentes. Os carrascos subiram então pelas escadas e desataram
as cordas com que tinham amarrado o santo corpo, para que o abalo
não o fizesse cair. O sangue, cuja circulação fora quase impedida
pela forte pressão das cordas e pela posição horizontal,
afluiu-Lhe então de novo por todo o corpo e as chagas, renovando
todas as dores e causando-Lhe um forte atordoamento. Jesus deixou
cair a cabeça sobre o peito e ficou suspenso como morto, cerca
de sete minutos.
Houve um momento de calma. Os carrascos estavam ocupados em
repartir as vestes de Jesus; o som das trombetas perdia-se no ar,
todos os assistentes estavam exaustos de raiva ou de dor. Olhei,
cheia de susto e compaixão, para meu Jesus, meu Salvador, a
Salvação do mundo; vi-O imóvel, desfalecido de dor, como morto
e eu também estava àmorte; pensava antes morrer do que viver.
Minha alma estava cheia de amargura, de amor e dor; minha cabeça,
que eu sentia cercada de uma rede de espinhos, fazia-me quase
endoidecer de dor; minhas mãos e meus pés eram como fornalhas
ardentes; dores indizíveis passavam-me, como milhares de raios,
pelas veias e nervos, encontrando-se e lutando em todos os membros
interiores e exteriores de meu corpo, tornando-se uma nova fonte
de sofrimentos. E todos esses terríveis tormentos não eram senão
amor e todo esse fogo penetrante de dores era contudo uma noite,
em que não via senão meu Esposo, o Esposo de todas as almas,
pregado à cruz e contemplava-O com muita tristeza e muita
consolação.
A cabeça de Jesus, com a horrível coroa, com o sangue que Lhe
enchia os olhos, os cabelos, a barba e a boca ardente, meio
entreaberta, tinha caído sobre o peito e também mais tarde só
podia levantar-se com indizível tortura, por causa da larga coroa
de espinhos. O peito do Divino Mártir estava violentamente
dilatado e alçado; os ombros, os cotovelos e os pulsos distendidos
até saírem fora das articulações; o sangue corria-Lhe das largas
feridas das mãos sobre os braços; o peito levantado deixava em
baixo uma cavidade profunda; o ventre estava encolhido e
diminuído; como os braços, estavam também as coxas e pernas horrivelmente deslocadas. Os membros estavam tão horrivelmente
distendidos e os músculos e a pele a tal ponto esticados, que se
podiam contar os ossos. O sangue escorria-Lhe em redor do enorme
prego que Lhe traspassava os pés sagrados, regando a árvore da
cruz. O santo corpo estava todo coberto de chagas, pisaduras
vermelhas, manchas amarelas, pardas e roxas, inchaços e lugares
escoriados. As feridas reabriram-se, pela violenta distensão dos
músculos e sangravam em vários lugares; o sangue que corria, era
a princípio ainda vermelho, mas pouco a pouco se tomou pálido e
aquoso e o santo corpo cada vez mais branco; por fim. tomou a cor
de carne sem sangue. Mas, apesar de toda essa cruel desfiguração,
o corpo de Nosso Senhor na cruz tinha um aspecto extremamente
nobre e comovedor; na verdade, o Filho de Deus, o Amor Eterno,
que se sacrificou no tempo, permaneceu belo, puro e santo nesse
corpo do Cordeiro pascal moribundo, esmagado pelo peso dos pecados de toda a humanidade.
A pele da Santíssima Virgem, como a de N. Senhor, tinha por
natureza, uma bela cor ligeiramente amarelada, mesclada de um
vermelho trans parente. As fadigas e as viagens do Mestre nos anos
anteriores, lhe tinham tornado as faces, sob os olhos e a cana
do nariz um pouco tostadas pelo sol. Jesus tinha um peito largo
e forte, branco e sem pêlo, enquanto o de João Batista estava todo
coberto de pelo ruivo. Tinha ombros largos e os músculos dos
braços bem desenvolvidos; as coxas eram nervosas e musculosas,
os joelhos fortes e robustos, como os de um homem que tem andado
muito e rezado muito de joelhos. Tinha as pernas compridas e a
barriga das pernas fortes, de muito viajar em terras montanhosas.
Os pés eram belos e bem desenvolvidos, a planta dos pés tinha-se
tomado calosa, porque geralmente andava descalço por caminhos
rudes. As mãos eram de bela forma, com os dedos longos e delgados, não delicados demais, mas também não como as de um homem
que as emprega em trabalhos pesados. Não tinha o pescoço curto,
mas forte e musculoso. A cabeça tinha boas proporções, não grande
demais; a testa era alta e larga e todo o rosto de um belo e puro
oval. O cabelo, de um castanho avermelhado, não muito grosso,
singelamente repartido no alto da cabeça, caia-Lhe sobre os
ombros; a barba não era comprida, mas aparada em ponta e repartida
sob o queixo.
Agora, porém, o cabelo fora arrancado em grande parte, o
resto colado com sangue; o corpo era uma só chaga, o peito estava
como que despedaçado, o ventre escavado e encolhido; em vários
lugares se viam as costelas, através da pele lacerada; todo o
corpo estava de tal modo distendido e alongado, que não cobria
mais inteiramente o tronco da cruz.
O madeiro era um pouco arredondado do lado posterior, na
frente liso, com várias escavações; a largura igualava-lhe mais
ou menos a grossura. As diversas partes da cruz eram de madeira
de diferentes cores, umas pardas, outras amareladas; o tronco era
mais escuro, como madeira que tem estado muito tempo na água.
As cruzes dos ladrões, trabalhadas mais grosseiramente, foram
instaladas do lado direito e esquerdo do cume, a tal distância
da cruz de Jesus, que um homem podia passar a cavalo entre elas;
estavam um pouco mais baixo e colocadas de modo que olhavam um
para o outro.
Um dos ladrões rezava, o outro insultava Jesus que, olhando para
baixo, disse uma coisa a Dimas. O aspecto dos ladrões na cruz era
horrendo, especialmente o do que ficava à esquerda, criminoso
enraivecido, embriagado, de cuja boca só saiam insultos e
maldições. Os corpos, pendentes da cruz, estavam horrivelmente
deslocados, inchados e cruelmente amarrados. Os rostos
tornaram-se-Ihes roxos e pardos, os lábios escuros, tanto da
bebida, como da pressão do sangue; os olhos inchados e vermelhos,
quase a sair das órbitas. Soltavam gritos e uivos de dor, que Ihes
causavam as cordas; Gesmas praguejava e blasfemava. Os pregos com
que os madeiros transversais foram ajustados ao tronco,
forçavam-nos a curvar a cabeça. Moviam-se e torciam-se
convulsivamente na tortura e apesar das pernas estarem fortemente
amarradas, um deles conseguiu puxar um pé para cima, de modo que
o joelho dobrado se lhe ergueu um pouco.
7. Primeira palavra de Jesus na cruz
Depois de crucificar os ladrões e de repartir as vestes do Senhor,
juntaram os carrascos todos os instrumentos e ferramentas e,
insultando e escarnecendo mais uma vez a Jesus, foram-se embora.
Também os fariseus, que ainda estavam, montaram nos cavalos e
passando diante de Jesus, dirigiram-lhe muitas palavras
insultuosas e seguiram para a cidade. Os cem soldados romanos,
com os respectivos comandantes, puseram-se também em marcha, pois
veio outro destacamento, de cinqüenta soldados romanos,
ocupar-Ihes o lugar. Esse destacamento era comandado por
Abenadar, árabe de nascimento, que mais tarde, no batisrrlo,
recebeu o nome de Ctesifon. O oficial subalterno que estava com
essa tropa, chamava-se Cassius; era também muitas vezes encarregado por Pilatos de levar mensagens; recebeu depois o nome de
Longinus. Vieram também a cavalo doze escribas e alguns anciãos
do povo, entre os quais os que foram pedir mais uma vez outra
inscrição para o título da cruz; Pilatos nem os tinha deixado
entrar. Cheios de raiva, andaram a cavalo em redor do lugar do
suplício e expulsaram dali a Santíssima Virgem, chamando-a de
mulher perdida. João levou-a para junto das outras mulheres, que
estavam mais afastadas; Madalena e Marta ampararam-na nos braços.
Quando, fazendo a volta da cruz, chegaram diante de Jesus,
balançaram a cabeça, dizendo: "Arre! Impostor! Como é que
destróis o Templo e o reedificas em três dias? Queria sempre
socorrer os outros e agora não se pode salvar a si mesmo. - Se
és o Filho de Deus, desce da cruz. Se é o rei de Israel, então
desça da cruz e creremos nEle. Sempre confiava em Deus, que Ele
venha salvá-Lo agora." Os soldados também zombavam, dizendo: "Se
és o rei dos judeus, salva-te agora.”
Quando "Jesus ainda pendia desmaiado, disse Gesmas, o ladrão à
esquerda: "O demônio abandonou-O." Um soldado fincou então uma
esponja embebida em vinagre sobre a ponta de uma vara e chegou-a
aos lábios de Jesus, que pareceu chupar um pouco. As zombarias
continuavam. O soldado disse: "Se és o rei dos judeus, salva-te."
Tudo isso se deu enquanto o destacamento anterior era substituído
pelo de Abenadar.
Jesus levantou um pouco a cabeça e disse: "Meu Pai, perdoai-lhes,
porque não sabem o que fazem"; depois continuou a rezar em
silêncio. Então gritou Gesmas: "Se és o Cristo, salva-te a ti e
a nós." Escarneciam-nO sem cessar; mas Dimas, o ladrão da direita,
ficou muito comovido, ouvindo Jesus rezar pelos inimigos. Quando
Maria ouviu a voz de seu Filho, ninguém mais pôde retê-Ia:
penetrou no círculo do suplício; João, Salomé e Maria, filha de
Cleofas, seguiramna. O centurião não as expulsou.
Dimas, o bom ladrão, obteve pela oração de Jesus uma Iluminação
Interior, no momento em que a Santíssima Virgem se aproximou.
Reconheceu em Jesus e em Maria as pessoas que o tinham curado,
quando era criança e exclamou em voz forte e distinta: "O que?
É'possível que insulteis Àquele que reza por vós? Ele se cala,
sofre com paciência, reza por vós e vós o cobris de escárnio? Ele
é um profeta, é nosso rei, é o Filho de Deus." A essa inesperada
repreensão da boca de um miserável assassino, suspenso na cruz,
deu-se um tumulto entre os escarnecedores; apanhando pedras,
quiseram apedrejá-Io ali mesmo. Mas o centurião Abenadar não o
permitiu; mandou dispersá-Ios e restabeleceu a ordem.
Durante esse tempo a Santíssima Virgem se sentia confortada
pela oração de Jesus. Dimas, porém, disse a Gesmas, que gritara
a Jesus: "Se és o Cristo, salva-te a ti e a nós" - "Também tu não
temes a Deus, apesar de sofreres o mesmo suplício que Ele? Quanto
a nós, é muito justo, pois recebemos o castigo de nossos crimes;
este, porém, não fez mal algum. Pensa nisto, nesta última hora
e converte-te de coração." Essas palavras e outras mais disse a
Gesmas, pois estava todo comovido e iluminado pela graça;
confessou suas faltas a Jesus e disse: "Senhor, se me condenardes,
será muito justo; mas tende misericórdia de mim." Respondeu
Jesus: "Experimentarás a minha misericórdia." Dimas recebeu, por
um quarto de hora, a graça de um profundo arrependimento.
Tudo que acabo de contar agora, se deu pela maior parte ao mesmo
tempo ou sucessivamente, entre as doze horas e doze e meia, pelo
sol, alguns minutos depois da exaltação da cruz. Mas dai a pouco
mudaram rapidamente os sentimentos nos corações da maior parte
dos assisten tes; pois enquanto o bom ladrão ainda estava
falando, eis que se deu na natureza um fenômeno extraordinário,
que encheu de pavor todos os corações.
8. Eclipse do sol. Segunda e terceira palavra de Jesus na cruz
Até pelas 10 horas, quando Pilatos pronunciou a sentença, caíra
várias vezes chuva de pedra; depois, até às 12 horas, o céu estava
claro e havia sol; mas depois do meio dia, apareceu uma neblina
vermelha, sombria, diante do sol. Pela sexta hora, porém, ou como
vi pelo sol, mais ou menos às doze e meia, (a maneira dos judeus
de contar as horas é diferente da nossa) houve um eclipse
milagroso do sol. Vi como isso se deu, mas infelizmente não pude
guardá-Io na memória e não tenho palavras para o exprimir. A
princípio fui transportada como para fora da terra; vi muitas
divisões no firmamento e os caminhos dos astros, que se cruzavam
de modo maravilhoso. Vi a lua do outro lado da terra; vi-a voar
rapidamente ou dar um salto, como um globo de fogo; depois me achei
novamente em Jerusalém e vi a lua aparecer sobre o monte das
Oliveiras, cheia e pálida, - o sol estava velado pelo nevoeiro,
- e ela se moveu rapidamente do oriente, para se colocar diante
do sol. No começo vi, no lado oriental do sol, uma lista escura,
que tomou em pouco tempo a forma de uma montanha, cobrindo-o
depois inteiramente. O disco do sol parecia cinzento escuro,
rodeado de um círculo vermelho, como uma argola de ferro em brasa.
O céu tomou-se escuro; as estrelas tinham um brilho vermelho. Um
pavor geral apoderou-se dos homens e dos animais, o gado fugiu
mugindo, as aves procuravam um esconderijo e caiam em bandos sobre
as colinas em redor do Cal vário; podiam-se apanhá-Ias com as
mãos. Os zombadores começaram a calar-se; os fariseus tentavam
explicar tudo como fenômeno natural, mas não conse~ guiram
acalmar o povo e eles mesmos ficaram interiormente apavorados.
Todo o mundo olhava para o céu; muitos batiam no peito e, torcendo
as mãos, exclamavam: "Que o seu sangue caia sobre os seus
assassinos." Muitos, de perto e de longe, caíram de joelhos,
pedindo perdão a Jesus, que no meio das dores volvia os olhos para
eles.
A escuridão aumentava, todos olhavam para o céu e o Cal vário
estava deserto; ali permaneciam apenas a Mãe de Jesus e os mais
íntimos amigos; Dimas, que estivera mergulhado em profundo
arrependimento, levantou com humilde esperança o rosto para o
Salvador e disse: "Senhor, fazei-me entrar num lugar onde me
possais salvar; lembrai-vos de mim, quando estiverdes no vosso
reino." Jesus respondeu-lhe: "Em verdade te digo: Hoje estarás
comigo no Paraíso.”
A Mãe de Jesus, Madalena, Maria de Cléofas, Maria Helí e João
estavam entre as cruzes dos ladrões, em redor da cruz de Jesus,
olhando para Nosso Senhor. A Santíssima Virgem, em seu amor de
mãe, suplicava interiormente a Jesus que a deixasse morrer com
Ele. Então olhou o Senhor com inefável ternura para a Mãe querida
e, volvendo os olhos para João, disse a Maria: "Mulher, eis aí
o teu filho; será mais teu filho do que se tivesse nascido de ti."
Elogiou ainda João, dizendo: "Ele teve sempre uma fé sincera e
nunca se escandalizou, a não ser quando a mãe quis que fosse
elevado acima dos outros." A João, porém, disse: "Eis aí tua Mãe!"
João abraçou com muito respeito, como um filho piedoso, a Mãe de
Jesus, que se tinha tornado também sua Mãe, sob a cruz do Redentor
moribundo. A SS. Virgem ficou tão abalada de dor, após essas
solenes disposições do Filho moribundo, que, caindo nos braços
das santas mulheres, perdeu os sentidos exteriormente;
levaram-na para o aterro em frente à cruz, onde a sentaram por
algum tempo e depois a conduziram para fora do círculo, para junto
das outras amigas.
Não sei se Jesus pronunciou alto todas essas palavras; percebi-as
interiormente, quando, antes de morrer, entregou Maria
Santíssima, como Mãe, ao Apóstolo querido e este, como filho, a
sua Mãe. Em tais con templações se percebem muitas coisas, que
não foram escritas; é pouco apenas o que pode exprimir a língua
humana. O que lá é tão claro, que se julga compreender por si
mesmo, não se sabe explicar com palavras. Assim não é de admirar
que Jesus, dirigindo-se à Santíssima Virgem, não dissesse: "Mãe",
mas mulher"; pois que ela ali estava na sua digni dade de mulher
que devia esmagar a cabeça da serpente, naquela hora em que aquela
promessa se realizava, pelo sacrifício do Filho do Homem, seu
próprio filho. Não era de admirar lá que Jesus desse João por filho
àquela a quem o Anjo saudava: "Ave Maria, cheia de graça", porque
o nome de João significa "graça"; pois todos são o que os
respectivos nomes significam e João tornara-se filho de Deus e
Jesus Cristo vivia nele. Percebia-se que Jesus, naquele momento,
dava com aquelas palavras uma mãe, Maria, a todos que, como João,
O recebem e, crendo nEle, se tornam filhos de Deus, que não foram
nascidos do sangue, nem da vontade da carne, nem da vontade do
homem, mas do próprio Deus. Sentia-se que a mais pura, a mais
humilde, a mais obediente de todas as mulheres, que se tomara a
Mãe do Verbo feito carne, respondendo ao Anjo: "Eis aqui a serva
do Senhor, faça-se em mim segundo a vossa palavra!", agora,
ouvindo do Filho moribundo que se devia tornar Mãe espiritual de
outro filho, dizia, obediente e humilde, as mesmas palavras, no
íntimo do coração, dilacerado das dores da separação: "Eis aqui
a serva do Senhor, faça-se em mim segundo a vossa palavra",
aceitando assim por filhos todos os filhos de Deus, todos os
irmãos de Jesus. Tudo isso parece lá tão simples e necessário,
mas aqui é tão diferente, que é mais fácil sentí-Io, pela graça
de Deus, do que o exprimir em palavras.
9. Estado da cidade e do Templo durante o eclipse do sol
Eram mais ou menos duas horas e meia, quando fui conduzida à
cidade, para ver o que lá se passava. Encontrei-a cheia de pavor
e consternação; as ruas em trevas, cobertas de nevoeiro; os homens
erravam cá e lá, às apalpadelas; muitos estavam prostrados por
terra, nos cantos, com a cabeça coberta, batendo no peito; outros
olhavam para o céu ou estavam sobre os telhados, lamentando-se.
Os animais mugiam e escondiam-se, os pássaros voavam baixo e
caiam. Vi que Pilatos fizera uma 'visita a Herodes e que estavam
consternados, no mesmo terraço do qual Herodes, de manhã,
assistira ao escárnio de que Jesus fora alvo. "Isto não é
natural", disseram, "excederam-se nos maus tratos infligidos ao
Nazareno." Vi-os depois irem juntos ao palácio de Pilatos,
atravessando o fórum; ambos estavam muito assustados, indo a
passos apressados e cercados de soldados. Pilatos não ousou olhar
para o lado do Gábata, o tribunal donde tinha pronunciado a
sentença contra Jesus. O fórum estava deserto; aqui e acolá alguns
homens voltavam apressadamente para casa, outros passavam
chorando.
Juntavam-se também alguns grupos de povo nas praças públicas.
Pilatos mandou chamar os anciãos do povo ao palácio e perguntou-Ihes o que significavam aquelas trevas; disse-Ihes que as
tomava por um sinal de desgraça iminente; o Deus dos judeus
parecia estar irado porque haviam exigido à força a morte do
galileu, que certamente era profeta e rei dos judeus; enquanto
ele, Pilatos, não tinha culpa, lavara, as mãos, etc.
Os judeus, porém, ficaram endurecidos, queriam explicar tudo como
fenômeno comum e não se converteram. Converteu-se, contudo, muita
gente, entre outros também todos os soldados que, na véspera,
tinham caído por terra e se levantado, quando prenderam Jesus no
monte das Oliveiras.
No entanto juntou-se uma multidão de povo diante do palácio de
Pilatos e onde de manhã tinham gritado: "Crucifica-o!
crucifica-o!", gritavam agora: "Fora o juiz injusto! Que o sangue
do Crucificado caia
sobre os seus assassinos!" Pilatos viu-se obrigado a rodear-se
de guardas. Zodóc, que, de manhã, quando Jesus fora conduzido ao
pretório, lhe proclamara alto a inocência, agitou-se e falou com
tal energia diante do palácio, que Pilatos esteve a ponto de
mandá-Io prender. Pilatos, o miserável desalmado, atribuiu toda
a culpa aos judeus: disse que não tinha nada com isso, que Jesus
era o rei, o profeta, o Santo dos judeus, a quem estes tinham
levado à morte e nada tinha com Ele, nem lhe cabia culpa; os
próprios judeus é que lhe tinham exigido a morte, etc.".
No Templo reinava extremo susto e terror. Estavam ocupados na
imolação do cordeiro pascal, quando veio de repente a escuridão.
Tudo estava em confusão e aqui e acolá se ouviam gritos
angustiantes. Os príncipes dos sacerdotes fizeram tudo para
conservar a calma e a ordem: fizeram acender todas as lâmpadas,
apesar de ser meio dia, mas a confusão crescia cada vez mais. Vi
Anás preso de susto e terror; corria de um canto a outro, para
se esconder. Quando tornei a sair da cidade, ouvi as grades das
janelas das casas tremerem, sem haver tempestade. A escuridão
crescia cada vez mais. Na parte exterior da cidade, ao noroeste,
perto do muro, onde havia muitos jardins e sepulturas, desabaram
algumas entradas de sepulcros, como se houvesse um tremor de
terra.
10. Abandono de Jesus. A quarta palavra de Jesus na cruz
Sobre o Gólgota fizeram as trevas uma impressão terrível. A
horrorosa fúria dos carrascos, os gritos e maldições na elevação
da cruz, os uivos dos ladrões ao serem amarrados ao madeiro, os
insultos dos fariseus a cavalo, o revezar dos soldados, a
barulhenta partida dos carrascos embriagados, tudo isso
diminuíra a princípio um pouco o efeito das trevas. Seguiram-se
depois as repreensões do ladrão penitente, Dimas e a raiva dos
fariseus contra ele. Mas à medida que crescia a escuridão,
tornavam-se mais pensativos os espectadores, afastando-se da
cruz. Foi então que Jesus recomendou sua Mãe a João e que Maria
foi conduzida a alguma distância do lugar do suplício. Houve um
momento de solene silêncio; o povo estava assustado com as trevas;
a maior parte olhava para o céu; em muitos corações se levantou
a voz da consciência; muitos se arrependeram e, olhando para a
cruz, bateram no peito; pouco a pouco se formaram grupos de
pessoas que sentiam essas mesmas impressões. Os fariseus,
ocultando o terror, ainda procuravam explicar tudo pelas leis
naturais, mas baixavam cada vez mais a voz e afinal quase não
ousavam mais falar; de vez em quando ainda proferiam uma palavra
insolente, mas soava um tanto forçada. O disco do sol estava meio
escuro, como uma montanha ao luar; estava rodeado de um anel
vermelho. As estrelas tinham um brilho rubro; os pássaros caiam
sobre o Cal vário e nas vinhas vizinhas entre os homens e
deixavam-se pegar com a mão; os animais dos arredores mugiam e
tremiam; os cavalos e jumentos dos fariseus apertavam-se uns de
encontro aos outros, baixando as cabeças. O nevoeiro úmido
envolvia tudo.
Em redor da cruz reinava silêncio; todos se tinham afastado,
muitos fugiram para a cidade. O Salvador, naquele infinito
martírio, mergulhado no mais profundo abandono, dirigindo-se ao
Pai celestial, rezava pelos inimigos, impelido pelo amor. Rezava,
como durante toda a Paixão, recitando versos de salmos que nEle
se cumpriam. Vi figuras de Anjos em redor d’Ele. Quando, porém,
a escuridão cresceu e o terror pesava sobre todas as consciências
e todo o povo estava em sombrio silêncio, ficou Jesus abandonado
de todos e privado de toda a consolação. Sofria tudo quanto sofre
um pobre homem, aflito e esmagado pelo absoluto abandono, sem
consolação divina ou humana, quando a fé, a esperança e a
caridade, privadas de iluminação e consolo, de visível
assistência, ficam sozinhas no deserto da provação, vivendo de
si mesmas, num infinito martírio. Tal sofrimento não se pode
exprimir. Nessa tortura moral, Jesus nos alcançou a força de
resistirmos na extrema miséria do abandono, quando se rompem
todos os laços e relações com a existência e a vida terrena com
o mundo e a natureza em que vivemos, quando se desfazem também
as perspectivas que esta vida em si nos abre, para outra existência; nessa provação venceremos, se unirmos nosso abandono com os
merecimentos do abandono de Jesus na cruz. O Salvador conquistounos os méritos da perseverança, na extrema luta do absoluto
abandono e ofereceu por nós, pecadores, a miséria, a pobreza, o
martírio, o abandono, que sofreu na cruz, de modo que o homem,
unido a Jesus no seio da Igreja, não deve mais desesperar na hora
extrema, quando tudo se escurece e toda a luz e consolação acaba.
Não temos mais de descer nesse deserto da noite interior, sozinhos
e sem proteção. Jesus lançou no abismo desse mar de amargura, o
abandono exterior e interior que padeceu na cruz e assim não mais
deixou os cristãos desamparados no abandono da morte, quando
desaparece toda a consolação. Não há mais para o cristão nem
deserto, nem solidão, nem abandono, nem desespero, na hora da
morte, no último combate; pois o Salvador, a luz, o caminho e a
verdade, também andou por esse caminho tenebroso, derramando
bênçãos e vencendo todos os terrores e erigiu sua cruz também
nesse deserto.
Jesus, inteiramente desamparado e abandonado, ofereceu-se, como
faz o amor, a si mesmo por nós, fez até do abandono um riquíssimo
tesouro; pois se ofereceu, com toda sua vida, seus trabalhos, amor
e sofrimento e a dolorosa experiência de nossa ingratidão, ao Pai
celestial, por nossa fraqueza e pobreza. Fez testamento diante
de Deus e ofereceu todos os seus merecimentos à Igreja e aos
pecadores. Pensou em todos; naquele abandono estava com todos,
até o fim dos séculos; e assim rezou também por aqueles hereges
que afirmam que sendo Deus, não sentiu as dores da Paixão e não
sofreu ou sofreu menos do que um homem comum em igual martírio.
- Participando dessa oração e sentindo com Ele as angústias,
parecia-me ouví-Lo dizer, que: "se devia ensinar o contrário,
isto é, que Ele sentiu esse sofrimento do abandono com mais
amargura do que um homem comum, porque estava intimamente unido
à Divindade, porque era verdadeiro Deus e verdadeiro homem e no
sentimento da humanidade abandonado por Deus, bebeu, como DeusHomem, até o fundo o cálice do abandono completo.”
E testemunhou por um grito a dor do abandono, dando assim a todos
os aflitos, que reconhecem a Deus por Pai, a liberdade de uma
queixa cheia de confiança filial. Pelas três horas, Jesus
exclamou em alta voz: "Eli, Eli, lama Sabachtani!", o que quer
dizer: "Meu Deus, meu Deus, porque me abandonastes?”
Quando esse grito de Nosso Senhor interrompeu o angustiante
silêncio que reinava em redor da cruz, os escarnecedores se
voltaram novamente para Ele e um deles disse: "Ele chama Elias",
e outro: "Vamos ver, se Elias vem ajudá-Lo a descer da cruz."
Quando, porém, Maria ouviu a voz do Filho, nada mais pôde retê-Ia;
voltou para junto da cruz, seguida por João, Maria, filha de
Cleofas, Madalena e Salomé.
Enquanto o povo tremia e gemia, vinha passando perto um grupo de
cerca de trinta homens a cavalo, notáveis da Judéia e da região
de Jope, que tinham vindo para a festa; e quando viram Jesus tão
horrivelmente tratado e os sinais ameaçadores que se mostravam
na natureza, exprimiram em alta voz o horror que sentiam,
exclamando: "Ai! desta cidade abominável! Se nela não estivesse
o Templo, devia-se destruí-Ia a fogo, por se ter tomado culpada
de tanta iniqüidade.”
As palavras desses distintos estrangeiros foram como um ponto de
apoio para o povo, que rompeu em murmuração e altos lamentos; os
que tinham os mesmos sentimentos, juntaram-se em grupos. Todos
os presentes formaram dois partidos: uns murmuravam e
lamentavam-se, os outros proferiam insultos e maldições. Os
fariseus, porém, ficavam cada vez menos arrogantes; temendo um
levantamento do povo, porque também o povo de Jerusalém estava
sobressaltado, aconselharam-se com o centurião Abenadar;
deram-se ordens para fechar a porta da cidade que dava para o
Calvário, cortando assim toda a comunicação; mandaram também um
mensageiro a Pilatos, para pedir 500 soldados e de Herodes a
guarda real, para impedir uma insurreição. No entanto conseguiu
o centurião Abenadar, pela energia, restabelecer a ordem e calma,
proibindo qualquer insulto a Jesus, para não irritar o povo.
Logo depois das três horas, o céu começou a clarear-se; a lua
afastou-se gradualmente do sol, para o lado oposto àquele de que
viera. O sol reapareceu, sem brilho, ainda vedado pelo nevoeiro
vermelho e a lua ia descendo rapidamente para o outro lado, como
se caísse. Pouco a pouco o sol readquiriu mais claridade e as
estrelas desapareceram; contudo o dia ainda permanecia sombrio.
A medida que reaparecia a luz, tornavam-se os inimigos
escarnecedores mais arrogantes; foi nessa ocasião que disseram:
"Ele chama Elias." Abenadar, porém, impôs-Ihes silêncio e manteve
a ordem.
11. Quinta, Sexta e Sétima palavras de Jesus na cruz. Morte de
Jesus
Quando a luz voltou, surgiu o corpo de Nosso Senhor, pálido,
extenuado, como que inteiramente desfalecido, mais branco do que
antes, por causa da grande perda de sangue. Jesus disse ainda,
não sei se o percebi só interiormente ou se Ele o disse a meia
voz: "Sou espremido como as uvas, que foram pisadas aqui pela
primeira vez; devo dar todo o meu sangue, até sair água e o bagaço
ficar branco; mas não se fará mais vinho neste lugar".
Mais tarde vi, numa visão a respeito dessas palavras, que foi
nesse lugar que Jafé pela primeira vez pisou as uvas, para fazer
vinho, como hei de contar mais tarde, (vide Apêndice no. 5).
Jesus consumia-se de sede e disse com a língua seca: "Tenho sede."
E como os amigos o olhassem com tristeza,disse-lhes:"Não me
podíeis dar um gole de água?" Queria dizer que durante a escuridão
ninguém os teria impedido. João, muito incomodado, respondeu:
"Senhor, esquecemo-Io mesmo." Jesus disse ainda algumas
palavras, cujo sentido era: "Também os amigos mais íntimos deviam
esquecer-se e não me dar a beber, para que se cumprisse a
Escritura." Mas esse esquecimento Lhe doeu amargamente.
Ofereceram então dinheiro aos soldados, para Lhe dar um pouco de
água; eles recusaram, mas um deles tomou uma esponja em forma de
pera, embebeu-a em vinagre, que havia lá num pequeno barril de
casca de árvore e ainda lhe misturou fel. Mas o centurião
Abenadar, compadecido de Jesus, tomou a esponja do soldado,
espremeu-a e embebeu-a de vinagre puro. Ajustou depois um lado
da esponja num pedaço curto de uma haste de hissope, que servia
de boquilha para chupar, fincou-o na ponta da lança e levantou-a
à altura do rosto de Jesus, aproximando-Lhe dos lábios a esponja.
Nosso Senhor ainda disse algumas palavras de exortação ao povo;
lembro-me apenas que disse: "Quando minha voz não se fizer mais
ouvir, falará a boca dos mortos"; ao que alguns gritaram: "Ainda
continua blasfemando." Abenadar, porém, os mandou calar.
Tendo chegado a hora da agonia, Nosso Senhor lutou com a morte
e um suor frio cobriu-lhe os membros. João estava sob a cruz e
enxugou-Lhe os pés com o sudário. Madalena, esmagada pela dor,
encostava-se à cruz no lado de trás. A Santíssima Virgem estava
entre a cruz do bom ladrão e a de Jesus, amparada pelos braços
de Maria de Cleofas e Salomé, olhando para o Filho, que lutava
com a morte. Então disse Jesus: "Tudo está consumado!" e,
levantando a cabeça, exclamou em alta voz: "Meu Pai, em vossas
mãos entrego o meu espírito." Foi um grito doce e forte, que
penetrou o Céu e a terra; depois inclinou a cabeça e expirou. Vi
a alma de Jesus, em forma luminosa, entrar na terra, ao pé da cruz
e descer ao Limbo. João e as santas mulheres prostraram-se com
a face na terra.
O centurião Abenadar, árabe de nascimento, depois, como discípulo, batizado com o nome de Ctesifon, desde que oferecera o vinagre
a Jesus, ficara a cavalo junto à elevação onde estavam erigidas
as cruzes, de modo que o cavalo tinha as patas dianteiras mais
no alto. Profundamente abalado, entregue a sérias reflexões,
contemplava incessantemente o semblante de Nosso Senhor, coroado
de espinhos. O cavalo baixara assustado a cabeça e Abenadar, cujo
orgulho estava domado, não puxava mais as rédeas. Nesse momento
pronunciou o Senhor as últimas palavras, em voz alta e forte e
morreu dando um grito, que penetrou o Céu, a terra e o inferno.
A terra tremeu e o rochedo fendeu-se, deixando uma larga abertura
entre a cruz do Senhor e a do ladrão à esquerda. O testemunho que
Deus deu de seu Filho, abalou com susto e terror a natureza
enlutada. Estava consumado! A alma de Nosso Se nhor separou-se
do corpo e ao grito de morte do Redentor moribundo estremeceram
todos que O ouviram, junto com a terra que, tremendo, reconheceu
o Salvador; os corações amigos, porém, foram transpassados pela
espada da dor. Foi então que a graça desceu à alma de Abenadar;
estremeceu emocionado, cederam-lhe as paixões e o coração
orgulhoso e duro, fendeu-se-Ihe como o rochedo do Cal vário.
Lançou longe de si a lança, bateu no peito com força e exclamou
alto, com a voz de um homem novo: "Louvado seja Deus,
Todo-poderoso, o Deus de Abraão e Jacó! Este era um homem justo;
em verdade, Ele é o Filho de Deus'" E muitos dos soldados, tocados
pela palavra do centurião, fizeram o mesmo.
Abenadar, tornado novo homem, salvo pela graça e tendo rendido
publicamente homenagem ao Filho de Deus, não quis ficar mais tempo
a serviço dos inimigos de Cristo. Dirigiu-se a cavalo ao oficial
subalterno, Cássio, também chamado Longinus, apeou-se, apanhou
a lança e entregou-lha; disse algumas palavras aos soldados e a
Cássio, que então montou a cavalo e tomou o comando. Abenadar
desceu do Cal vário e, atravessando o vale de Gihon, dirigiu-se
às cavernas do vale de Hinom, onde estavam escondidos os
discípulos; anunciou-Ihes a morte do Senhor e voltou de lá à
cidade, ao palácio de Pilatos.
Grande espanto apoderou-se dos assistentes, ante o grito de morte
de Jesus, quando a terra tremeu e o rochedo do Cal vário se fendeu.
Esse terror fez-se sentir em toda a natureza; pois rasgou-se o
véu do Templo, muitos mortos saíram das sepulturas, desabaram
algumas paredes do Templo, ruíram muitos edifícios e desmoronaram
montes em muitas regiões da terra.
Abenadar deu testemunho em alta voz, muitos soldados
testemunharam com ele, grande parte do povo presente e também
alguns dos fariseus, chegados no fim, se converteram. Muitos
bateram no peito e, descendo do monte, voltaram chorando pelo
vale para casa; outros rasgaram as vestes e lançaram pó sobre a
cabeça. Todo o mundo estava cheio de medo e terror.
João levantou-se e algumas das santas mulheres, que até então
tinham ficado afastadas, aproximaram-se da cruz; levantaram a Mãe
de Jesus e as amigas, conduziram-nas a alguma distância da cruz,
para as confortar.
Quando Jesus, cheio de amor, Senhor de toda a vida, pagou pelos
pecadores a dolorosa dívida da morte; quando entregou, como
homem, a alma a Deus seu Pai e abandonou o corpo, tomou esse santo
vaso esmagado a fria e pálida cor da morte; o corpo tremeu-Lhe
convulsivamente nas últimas dores e tomou-se lívido e os
vestígios do sangue derramado das chagas ficaram mais escuros e
distintos. O rosto alongou-se, as faces encolheram-se, o nariz
ficou mais delgado e pontiagudo, o queixo caiu, os olhos, cheios
de sangue e fechados, abriramse, meio envidraçados. O Senhor
levantou pela última vez e por poucos momentos a cabeça, coroada
de espinhos e deixou-a depois cair sobre o peito, sob o peso dos
sofrimentos. Os lábios lívidos e contraídos entreabriram-se,
deixando ver a língua ensangüentada. As mãos, antes fechadas
sobre a cabeça dos cravos, abriram-se; estenderam-se os braços,
as costas entesaram-se ao longo da cruz e todo o peso do santo
corpo desceu sobre os pés. Os joelhos curvaram-se, tomando para
um lado e os pés viraram-se um pouco em redor do prego que os
trespassara.
Então se entesaram as mãos da Mãe Dolorosa, a vista escureceu-selhe, palidez de morte cobriu-lhe o rosto, os ouvidos deixaram de
escutar, os pés vacilaram e ela caiu por terra; também Madalena,
João e os outros se prostraram, com a cabeça velada, entregues
à dor.
Quando ergueram a mais amorosa, a mais desolada das mães, dirigindo os olhos à cruz, ela viu o corpo do Filho adorado, concebido
na virgindade, por obra e graça do Espírito Santo, carne de sua
carne, osso de seus ossos, coração de seu coração, vaso sagrado
formado no seu seio pela virtude divina, agora privado de toda
a beleza e formosura, separado da alma santíssima, entregue às
leis da natureza que Ele próprio criara e de que os homens tinham
abusado pelo pecado, desfigurando-a; viu o corpo do Filho
Unigênito esmagado, maltratado, desfigurado, morto pelas mãos
daqueles que viera salvar e vivificar. Ai! O vaso de toda beleza
e verdade, de todo amor, pendia da cruz, entre dois assassinos,
vazio, rejeitado, desprezado, insultado, semelhante a um
leproso. Quem pode compreender toda a dor da Mãe de Jesus, rainha
de todos os mártires?
A luz do sol ainda era sombria e nebulosa. O tremor de terra foi
acompanhado de calor sufocante; mas seguiu-se-Ihe depois um frio
sensível. O corpo de Nosso Senhor morto, na cruz, causava um
sentimento de respeito e estranha comoção. Os ladrões pendiam em
horríveis contorções, como embriagados. Ambos estavam no fim
calados; Dimas rezava.
Era pouco depois das três horas, quando Jesus expirou. Passado
o primeiro terror causado pelo tremor de terra, alguns dos
fariseus recobraram a anterior arrogância. Aproximando-se da
fenda no rochedo do Calvário, jogaram-lhe pedras e atando várias
cordas, amarraram uma pedra, fizeram-na entrar na fenda, para
medir-lhe a profundidade; quando, porém, não tocaram no fundo,
tomaram-se mais pensativos. Também se sentiam inquietos com os
lamentos do povo, que batia no peito; e por isso, montando a
cavalo, retiraram-se; alguns se sentiam mudados interiormente.
O povo também se retirou em pouco tempo, indo pelo vale para a
cidade, cheio de medo e terror. Muitos se tinham convertido. Uma
parte dos 50 soldados romanos foi reforçar a guarda da porta, até
a chegada dos 500, requeridos por Pilatos. A porta tinha sido
fechada; alguns soldados ocuparam outros pontos da vizinhança,
para impedir ajuntamento e tumulto. Cássio (Longino) e cerca de
cinco soldados ficaram no lugar do suplício. Os parentes de Jesus
estavam em redor da cruz ou sentados em frente, chorando. Algumas
santas mulheres tinham voltado à cidade. Silêncio e tristeza
reinavam em volta do lenho sagrado. De longe, no vale e nas alturas
afastadas, se via de vez em quando um ou outro dos discípulos,
olhando com curiosidade e receio para a cruz, mas retirando-se
timidamente, ao aproximar-se alguém.
12. O tremor de terra, aparição de mortos em Jerusalém
Quando Jesus, com um grito forte, entregou o espírito nas mãos
do Pai celestial, a alma do Salvador, qual forma luminosa,
acompanhada de brilhante cortejo de Anjos, entrou na terra, ao
pé da cruz; entre os Anjos estava também S. Gabriel. Vi esses Anjos
expulsarem grande número de espíritos maus da terra para o abismo.
Jesus, porém, mandou muitas almas do limbo para que, retomando
os corpos, assustassem os impenitentes, os exortassem a
converter-se e dessem testemunho d’Ele.
O tremor de terra, na hora da morte do Redentor, quando o rochedo
do Calvário se fendeu, causou muitos desmoronamentos e desabamentos em todo o mundo, especialmente na Palestina e em Jerusalém.
Maio povo na cidade e no Templo sossegara um pouco, ao desaparecer
a escuridão, eis que os abalos do solo e o estrondo do desabamento
dos edifícios, em muitos lugares, espalharam um terror geral e
ainda maior do que dantes. O pavor chegou ao extremo, quando
apareceram os mortos ressuscitados, andando pelas ruas e
admoestando com voz rouca o povo, que fugia, chorando, em todas
as direções.
No Templo, os príncipes dos sacerdotes acabavam justamente de
restabelecer a ordem e recomeçar os sacrifícios, suspensos pelo
terror das trevas e triunfavam com a volta da luz, quando de
repente tremeu o solo, ouvindo-se um estrondo de muros a desabar,
acompanhado de ruido sibilante do véu do Templo, que se rasgou
de alto a baixo, causando um momento de mudo terror na imensa
multidão, interrompido em diversos lugares por gritos e lamentos.
Mas a multidão estava tão habituada à ordem do Templo, o imenso
edifício tão repleto de gente, a ida e vinda dos que ofereciam
sacrifícios estava tão bem regulada, as cerimônias da imolação
dos cordeiros e da aspersão do altar com o sangue se desenrolavam
tão regularmente, através das longas fileiras dos sacerdotes,
acompanhadas de canto e do alto som das trombetas, que o susto
não produziu logo no principio uma confusão e desordem geral.
Assim, pois, continuavam os sacrifícios em algumas partes do
imenso edifício do Templo, com as inúmeras passagens e salas,
quando em outra parte já reinava o espanto e terror e em outros
lugares os sacerdotes já conseguiam acalmar o povo; mas ao
aparecimento dos mortos, em várias partes do Templo, todo o povo
se dispersou e o sacrifício foi interrompido, como se o Templo
fosse profanado. Contudo nem isso se deu repentinamente, de modo
que a multidão se tivesse precipitado pelos degraus abaixo,
empurrando e esmagando-se uns aos outros; mas dissolveu-se
gradualmente, saindo em grupos, enquanto outros eram ainda
contidos pelos sacerdotes ou estavam em partes separadas do
Templo. Todavia, manifestava-se o medo e o terror em toda parte,
em diversos graus, de um modo incrível.
Pode-se fazer uma idéia da desordem e confusão que reinava,
imaginando um grande formigueiro, de tranqüilo movimento, em que
se jogam pedras ou se remexe com um pau; enquanto reina confusão
num ponto, em outro ainda continua o movimento e a atividade
toda regular e mesmo no lugar onde houve desarranjo, logo começa
a restabelecer-se a ordem.
O sumo sacerdote Caifás e seu partido, com audácia desesperada,
não perderam a cabeça. Como um hábil governador de uma cidade
revoltada, afastou a confusão, ameaçando aqui, exortando ali,
desunindo os partidos, atraindo outros com muitas promessas.
Devido ao seu endureéimento diabólico e aparente calma, conseguiu
impedir uma perigosa perturbação geral, fazendo com que a massa
do povo não visse nesses acontecimentos assustadores um
testemunho da morte inocente de Je sus. A guarnição do forte
Antônia também fez tudo para conservar a ordem; deste modo era
o terror e a confusão grande, é verdade, mas cessou a celebração
da festa, sem que houvesse tumulto. O povo dispersou-se, ficando
ainda com um oculto pavor, que também foi pouco a pouco abafado
pela ação dos fariseus.
Essa era a situação geral da cidade; seguem-se agora alguns
incidentes particulares, de que ainda me lembro: As duas grandes
colunas situadas à entrada do Santuário do Templo e entre as quais
estava suspensa a magnífica cortina, afastaram-se no alto, a da
esquerda para o sul, a da direita para o norte; a verga que
suportavam, abaixou-se e a grande cortina partiu-se em duas, de
alto a baixo, com um som sibilante e, caindo as duas partes para
os lados, abriu-se o santuário. Essa cortina era vermelha, azul,
branca e amarela; trazia o desenho de muitas constelações dos
astros e também figuras, como, por exemplo, a da serpente de
bronze. O santuário estava aberto a todos os olhares. Perto da
cela onde Simeão costumava rezar, no muro ao norte, ao lado
do santuário, tombou uma pedra grande e a abóbada da cela desabou;
em várias salas se afundou o solo, umbrais deslocaram-se e colunas
cederam para os lados.
No santuário apareceu, proferindo palavras de ameaça, o Sumo Sacerdote Zacarias, que fora assassinado entre o Templo e o altar;
falou também da morte do outro Zacarias (*) e de João Batista,
como em geral da morte dos profetas. Ele saiu pela abertura que
ficara, onde caiu a pedra na cela de Simeão e falou aos sacerdotes
que estavam no Santo. Dois filhos do piedoso Sumo Sacerdote Simão
o Justo, bisavô do velho sacerdote Simeão que profetizara na
apresentação de Jesus no Templo, apareceram como espíritos
grandes, perto da grande cátedra (cadeira dos doutores),
proferindo palavras severas sobre a morte dos profetas e sobre
o sacrifício que ia cessar; exortaram a todos a que seguissem a
doutrina de Jesus crucificado. Perto do altar apareceu o profeta
Jeremias, proclamando em voz ameaçadora o fim do sacrifício
antigo e o começo do novo. Essas aparições e palavras, em lugares
onde só Caifás e os sacerdotes as ouviram, foram negadas ou
ocultadas e foi proibido falar nisso, sob pena de grande
excomunhão. Mas ouviu-se ainda um grande ruído; abriram-se as
portas do santo e uma voz gritou: "Saiamos daqui!" Vi então Anjos,
que se retiraram do Templo. O altar do incenso tremeu e caiu um
dos vasos de incenso; o armário que continha os rolos da
Escritura, tombou e os rolos caíram fora, em desordem; a confusão
aumentou, não sabiam mais que hora do dia era.
(*) Em 1821 Anna Catharina contemplou o primeiro ano da vida
pública de Jesus e, em meados de Setembro, contou muitas coisas
sobre as relações do Senhor com um velho Esseno, Eliud, sobrinho
de Zacarias pai de João Batista. Eliud morava num lugar situado
antes de chegar a Nazaré, onde também Jesus ficou alguns dias
antes de ser batizado. Das conversas de Eliud e Jesus, Anna
Catharina aprendeu muitos fatos, que se referem aos primórdios
da história da sagrada Família. Entre outros contou, a 18 de
Setembro, pelas visões que teve, de dez dias antes do batismo de
Jesus: "Hoje ouvi o seguinte: no sexto ano de João Batista foi
Isabel, sua mãe, viver com ele no deserto. Não podia mais ficar
em casa, por causa da tristeza que a acabrunhava: pois Herodes
mandara prender o marido, Zacarias, que estava em viagem de Hebron
a Jerusalém, para fazer o serviço no Templo: depois de o ter
sujeitado a cruéis torturas mandara matá-Io, por não querer
revelar o esconderijo do filho. Amigos sepultaram o corpo perto
do Templo. Esse não é, porém, aquele Zacarias que fora morto entre
o Templo e o altar, a quem vi aparecer depois da morte de Jesus;
saiu do muro, ao lado do oratório do velho Simeão e andou pelo
Templo; o túmulo em que estava, era no muro e ruiu, como vários
outros sepulcros no Templo, etc.
Nicodemos, José de Arimatéia e muitos outros abandonaram o Templo
e foram-se embora. Jaziam corpos de mortos, em vários lugares;
outros mortos ressuscitados andavam no meio do povo, exortando-o
com palavras severas; à voz dos Anjos que se afastaram do Templo,
também eles voltaram às sepulturas. A grande cátedra, no átrio
do Templo, caiu. Vários dos 32 fariseus que tinham ido ao
Calvário, mais tarde voltaram, durante essa confusão e, como se
tinham convertido ao pé da cruz, ficaram ainda mais comovidos com
esses sinais, de modo que censuraram com grande energia a Anás
e Caifás, retirando-se depois do Templo.
Anás, o verdadeiro chefe dos inimigos de Jesus, que desde muito
tempo dirigira todas as intrigas secretas contra o Salvador e os
discípulos e que também instruíra os acusadores, estava quase
doido de terror; fugia de um canto para outro das salas secretas
do Templo; vi-o gritando e torcendo-se em convulsões; levaram-no
a um quarto secreto, rodeado de alguns dos partidários. Caifás
deu-lhe uma vez um forte abraço, para o reanimar; mas em vão; a
aparição dos mortos tinha-o levado ao desespero.
Caifás, apesar de estar também cheio de pavor, estava de tal modo
possesso do demônio do orgulho e da obstinação, que não deixava
perceber nada do susto que sentia. Cheio de raiva e orgulho,
ocultava o medo e mostrava uma testa de bronze aos sinais
ameaçadores da cólera divina. Quando, porém, apesar de todos os
esforços, não pôde mais fazer as cerimônias da festa, deu ordem
de guardar silêncio sobre os prodígios e aparições de que o povo
não tinha conhecimento. Disse e mandou outros sacerdotes também
dizerem que esses sinais de cólera divina eram provocados pelos
partidários do galileu crucificado, que entraram no Templo sem
se terem purificado; que somente os inimigos da santa lei, a qual
Jesus também quisera derrubar, tinham causado esse terror. Muito
se devia também à feitiçaria do galileu que, como em vida, assim
também na morte, perturbava a paz do Templo." Desse modo conseguiu
acalmar muitos e intimidar outros com ameaças; muitos, porém,
estavam profundamente abalados e ocultavam os sentimentos. A
festa foi adiada, até a purificação do Templo. Muitos cordeiros
foram imolados; o povo dispersou-se pouco a pouco.
O túmulo de Zacarias, sob o muro do Templo, desabara, arrastando
consigo as pedras do muro; Zacarias saiu do túmulo, mas não voltou
mais para lá, não sei onde depositou de novo os restos mortais.
Os filhos ressuscitados de Simeão o Justo, depositaram os corpos
novamente, no túmulo, ao pé do monte do Templo, na hora em que
o corpo de Jesus foi preparado para a sepultura.
Enquanto tudo isso se passava no Templo, reinava o mesmo espanto em muitas partes de Jerusalém. Logo depois das três horas,
ruíram muitos túmulos, particularmente na região dos jardins, ao
noroeste, dentro da cidade. Vi lá, nos túmulos, mortos ainda
envoltos em panos; em outros jaziam esqueletos, com farrapos
apodrecidos, de muitos saia um mau cheiro insuportável. No
tribunal de Caifás desabaram as escadas em que Jesus fora
escarnecido, também parte do fogão do átrio, onde Pedro começara
a negar Jesus. A destruição era tal, que era preciso procurar
outra entrada. Ali apareceu o corpo do Sumo Sacerdote Simão o
Justo, a cuja descendência pertencia Simeão, que proferiu a
profecia, na apresentação do Menino Jesus no Templo. Esse falou
algumas palavras ameaçadoras, a respeito do julgamento injusto
que se fizera ali. Estavam reunidos alguns membros do Sinédrio.
Os criados que no dia anterior deixaram entrar Pedro e João,
converteram-se e fugiram para as cavernas onde estavam escondidos
os discípulos. No palácio de Pilatos se fendeu a pedra e
afundou-se o solo onde Jesus fora apresentado ao povo por Pilatos.
Todo o edifício tremeu e vacilou; no pátio do tribunal vizinho
se afundou todo o lugar onde estavam sepultados os corpos das
inocentes crianças que Herodes mandara assassinar. Em vários outros lugares da cidade se fenderam muros, caíram paredes; mas
nenhum edifício foi totalmente destruído.
Pilatos, supersticioso e confuso, estava preso de terror e
incapaz de desempenhar o cargo; o terremoto abalou-lhe o palácio,
o solo tremia-Ule debaixo dos pés, fugia de uma sala para outra.
Os mortos mostravam-se-lhe no átrio do palácio, lançando-lhe em
rosto o julgamento iníquo e a sentença contraditória. Julgando
que fossem os deuses do profeta Jesus, encerrou-se num quarto
secreto do palácio, onde ofereceu incenso e sacrifícios aos
deuses pagãos, fazendo promessas, para que os ídolos impedissem
os deuses do Galileu de fazer-lhe mal. Herodes estava no palácio,
desvairado de pavor e mandara fechar todas as portas.
Foram cerca de cem os mortos, de todas as épocas, que em Jerusalém
e arredores se levantaram dos sepulcros destruídos e na maior
parte se dirigiram, dois a dois, a diversos pontos da cidade,
apresentando-se ao povo, que fugia em todas as direções e dando,
em algumas palavras, severo testemunho de Jesus. A maior parte
dos túmulos estavam situados na solidão dos vales, fora da cidade;
mas havia-os também nos novos bairros da cidade, especialmente
na região dos jardins, ao noroeste, entre a porta angular e a do
Cal vário; também em redor e debaixo do Templo havia muitos
túmulos ocultos ou esquecidos.
Nem todos os mortos que pela destruição dos túmulos ficaram à
vista, ressuscitaram; havia muitos que se tomaram vivíveis só
porque estavam numa sepultura comum com os outros. Muitos, porém,
cujas almas Jesus mandara do Limbo à terra, se levantaram,
descobriram o rosto e andavam, como pairando, pelas ruas, iam às
casas dos parentes, entravam nas casas dos descendentes,
censurando-os com palavras ameaçadoras, por terem tomado parte
na morte de Jesus. Vi as aparições procurarem juntar-se, conforme
as antigas amizades e andar duas a duas pelas ruas da cidade. Não
vi o movimento dos pés sob as longas túnicas mortuárias, pareciam
pairar sobre o solo, sem o tocar; as mãos ou estavam envoltas em
largas faixas de linho, ou escondidas nas largas mangas pendentes
e ligadas em redor dos braços; os véus do rosto estavam levantados
e postos sobre a cabeça; as faces pálidas, amareladas e secas,
destacavam-se das longas barbas; as vozes tinham um som estranho
e incomum. Essas vozes eram a única manifestação dos corpos, que
passavam de lugar em lugar, sem parar e sem se importar com o que
encontravam no caminho; parecia que eram só vozes. Estavam
diversamente vestidos, conforme a época da morte e segundo a
classe e a idade. Nas encruzilhadas, onde fora promulgada a
sentença de morte contra Jesus, paravam, proclamando a glória de
Jesus e a maldição dos assassinos. Os homens ficavam longe,
escutando-os a tremer e fugiam quando eles continuavam o caminho.
No fórum, diante do palácio de Pilatos, ouvi-os proferir palavras
ameaçadoras; lembro-me da palavra: "Juiz sanguinário!" - Todo o
povo se ocultou nos cantos mais escondidos das casas; havia grande
medo e susto na cidade. Pelas quatro horas da tarde voltaram os
mortos para os túmulos. Mas depois da ressurreição de Jesus Cristo
ainda apareceram muitos espíritos, em vários lugares. O
sacrifício foi interrompido; era uma confusão geral; só uma pequena parte do povo comeu o cordeiro pascal à noite.
13. Outras aparições depois da morte de Jesus
Entre os muitos mortos ressuscitados, que dentro e em redor de
Jerusalém se contavam cerca de cem, não havia nenhum parente de
Jesus. Os túmulos ao noroeste estavam antigamente fora da cidade,
mas pelo alargamento da mesma, ficaram depois dentro dos muros.
Tive também visões de diversos mortos, que em vários lugares da
Terra Santa ressuscitaram, aparecendo aos parentes e dando
testemunho de Jesus e da missão que viera cumprir na terra. Assim
vi Zadoc, homem muito piedoso, que tinha dado todos os bens aos
pobres e ao Templo e fundado a comunidade dos Essenos, perto de
Hebron; foi um dos últimos profetas antes de Cristo e esperava
e anelava pela vinda do Messias, de quem tinha muitas revelações;
tinha também relações com os antepassados da Sagrada Família. Vi
esse Zadoc, que viveu uns cem anos antes de Jesus, ressuscitar
e aparecer a diversas pessoas, na região de Hebron. Numa visão
anterior vi que foi dos que primeiro depositaram novamente o
respectivo corpo e depois acompanharam a alma de Jesus. Vi também
vários mortos aparecerem aos discípulos do Senhor, escondidos nas
cavernas, exortando-os à fé.
Vi que as trevas e o terremoto espalharam terror e destruição,
não só em Jerusalém e arredores, mas também em outras partes do
país, mesmo em lugares longínquos. Ainda me lembro dos seguintes
casos: Em Tirza desabaram as torres da cadeia, da qual Jesus
resgatara alguns presos e vários outros edifícios. Na terra do
Cabul houve desabamentos em muitos lugares. Em toda a Galiléia,
onde Jesus tinha vivido e pregado mais tempo, vi desabar, em
muitos lugares, edifícios, sobretudo muitas casas de fariseus que
tinham perseguido Jesus com mais ódio e que então estavam todos
na festa em Jerusalém e cujas mulheres e filhos morreram
soterrados sob os destroços das casas.
As devastações em redor do lago de Genezaré (mar de Galiléia) eram
consideráveis. Em Cafarnaum caíram muitíssimos edifícios; a
povoação dos escravos, situada entre Tibérias e os jardins de
Zorobabel, Centurião de Cafarnaum, foi quase completamente
destruída.
O rochedo que formava uma pequena península no lago e fazia parte
dos belos jardins do Centurião, perto de Cafarnaum, desmoronou-se
todo; o lago entrou pelo vale a dentro e chegou até perto de
Cafarnaum, que dantes estava distante quase meia hora. A casa de
Pedro e a morada da Santíssima Virgem, entre Cafarnaum e o lago,
ficaram intactas. As águas do mar da Galiléia estavam muito
agitadas; as margens ruíram em algumas partes e em outras se
levantaram. O lago mudou consideravelmente de forma, ficando mais
ou menos como está hoje e a configuração das respectivas margens
quase não se conhece mais. De maior importância foram as mudanças
na extremidade sudoeste do lago, logo abaixo de Tariquéia, onde
havia um dique comprido e escuro, que separava o lago de um pântano
e dava firme direção às águas do Jordão, ao saírem do lago; todo
esse dique foi levado pelas águas, causando vastas destruições.
No lado oriental do lago, onde os porcos dos Gerazenos se tinham
lançado no pântano, afundaram-se muitas terras, como também em
Gergesa, Gerasa e em todo o distrito de Corazim. Também o monte
da segunda multiplicação dos pães sofreu forte abalo e a pedra
sobre a qual fora colocado o pão, partiu-se ao meio. Dentro e em
redor de Panéas desabaram também muitas casas. Na Decapolis
desapareceram partes inteiras de cidades; muitos lugares na Ásia
sofreram grandes prejuízos, como, por exemplo, Nicéa e
principalmente muitos lugares a leste e nordeste de Panéas.
Também na Galiléia superior vi grande destruição e os fariseus
encontraram, ao voltar da festa, muita desgraça em casa. Alguns
receberam a notícia já em Jerusalém; foi por isso que os inimigos
de Jesus ficaram tão abatidos, até depois de Pentecostes e não
ousaram tomar medida alguma importante contra a comunidade do
Senhor.
No monte Garizim vi ruir grande parte do Templo. Havia lá um ídolo
em cima de um poço, num pequeno Templo, cujo telhado, junto com
o ídolo, caiu na água do poço. Em Nazaré desabou metade da
sinagoga, da qual os judeus expulsaram Jesus; também a parte do
rochedo da qual quiseram lançá-Io no abismo, desmoronou-se.
Muitas montanhas, vales e cidades sofreram forte destruição. O
leito do Jordão mudou-se em várias partes; Pois pelos abalos do
litoral do mar da Galiléia e pelas mudanças das correntes dos
riachos, formaramse obstáculos e mudou-se a corrente das águas,
de modo que o leito do Jordão é hoje muito diferente do que era
antes. Em Machérus e em outras cidades de Herodes, ficou tudo
calmo e inalterado; essa região estava fora do círculo da
penitência e da ameaça, como aqueles homens no horto das
Oliveiras, que não caíram e por isso também não se levantaram.
Em algumas regiões, aonde havia muitos espíritos maus, vi-os em
grande número afundar-se na terra, juntamente com os edifícios
e montes destruídos; os tremores de terra recordaram-me então as
convulsões dos possessos, quando o demônio sente que é obrigado
a sair. No momento em que, perto de Gergesa, se afundou no pântano
parte do monte, de onde outrora os demônios se lançaram no
pântano, com a manada de porcos, vi imensa multidão de maus
espíritos cair, como uma nuvem sinistra e afundar-se com o monte
no abismo.
Creio que foi em Nicéa que vi um acontecimento, de cujos
pormenores me lembro só imperfeitamente. Vi um porto, com muitos
navios e numa casa, com uma torre alta, perto do porto, vi um
homem; era pagão, o capitão do porto. Tinha por obrigação subir
muitas vezes à torre e observar o mar, a ver se chegavam navios
ou velar por qualquer acontecimento. Vi que, ouvindo forte
estrondo sobre os navios do porto e temendo a aproximação de um
inimigo, subiu apressadamente à torre; olhando para os navios,
viu-Ihes pairar acima grande número de figuras escuras, que, com
vozes lamentosas, lhe gritaram: "Se queres conservar os navios,
leva-os para fora do porto; pois devemos voltar ao abismo; morreu
o grande Pan." É o que me lembro ainda distintamente dessa visão;
disseram-lhe outras coisas ainda e deram-lhe muitas ordens, onde
e como devia revelar, numa viagem marítima iminente, o que lhe
tinham dito; exortaram-no também a receber bem os mensageiros que
viriam, anunciando a doutrina e a morte daquele que nesse momento
tinha falecido.
Os maus espíritos foram desse modo obrigados pelo poder de Deus
a avisar esse homem bom, tomando-se assim núncios de sua própria
ignomínia. O capitão do porto mandou, pois, pôr a seguro os
navios, quando estava iminente uma violenta tempestade; vi então
os demôni os se lançarem rugindo no mar e a metade da cidade ficou
destruída pelo terremoto. A casa com a torre ficou intacta. O
homem fez depois longas viagens em navio, cumprindo todas as
ordens que recebera e anunciando a morte do grande Pan, como os
demônios tinham chamado ao Senhor; mais tarde chegou também a
Roma, onde se admiraram muito daquela narração. Vi ainda muitas
outras coisas desse homem, mas esqueci-as; entre outras, vi que
uma das suas narrativas de viagens, misturada com os
acontecimentos que contei, se propagou muito entre os povos, mas
não me lembro mais da conexão, Creio que tinha um nome semelhante
a Tamus ou Tramus.
14. José de Arimatéia pede a Pilatos o corpo de Jesus
Mal se tinha restabelecido um pouco a calma em Jerusalém, depois
de tantos acontecimentos assustadores, quando Pilatos, tão
consternado, foi importunado de todos os lados com narrativas do
que sucedera. Também o Supremo Conselho lhe mandou, como já
resolvera de manhã, um requerimento, pedindo que mandasse esmagar
as pernas dos sacrificados, para que morressem mais depressa e
tirá-Ios depois da cruz, para que não ficassem pendurados durante
o Sábado. Pilatos enviou, pois, os carrascos para esse fim ao
Calvário.
Pouco depois vi José de Arimatéia entrar no palácio de Pilatos.
Já recebera a notícia da morte de Jesus e resolvera, com
Nicodemos, sepultar o corpo do Senhor no sepulcro novo que
escavara na rocha do seu jardim, não longe do monte Cal vário.
Creio tê-Io visto já fora da porta da cidade, onde observou tudo
que se passou e deliberou o que se devia fazer; pelo menos vi lá
homens que, por ordem dele limpavam o jardim do sepulcro e ainda
terminavam algumas obras no interior do mesmo. Nicodemos também
foi a diversos lugares, para comprar panos e especiarias para o
embalsamamento do corpo; depois esperou a volta de José.
Esse encontrou Pilatos muito assustado e incomodado; pediu-lhe
francamente e sem hesitação licença para tirar da cruz o corpo
de Jesus, rei dos judeus, porque queria sepultá-Lo no seu próprio
sepulcro. O fato de um homem tão distinto pedir, com tal
insistência, licença para prestar a última homenagem ao corpo de
Jesus, a quem o juiz iníquo tão ignominiosamente mandara
crucificar, abalou-lhe ainda mais a consciência; aumentou-se-Ihe
ainda mais a convicção da inocência de Jesus e com ela, o remorso;
mas, fingindo calma, perguntou: "Então já está morto?", pois
havia poucos minutos apenas que mandara os carrascos matar os
crucificados, quebrando-Ihes as pernas. Mandou por isso chamar
o centurião Abenadar, que voltara das cavernas, onde falara com
alguns dos discípulos; perguntou-lhe se o rei dos judeus já tinha
morrido. Então relatou Abenadar a morte do Senhor, às três horas,
as últimas palavras e o grito forte de Jesus, o tremor de terra
e o abalo que fendeu o rochedo. Exteriormente parecia Pilatos
admirar-se apenas que tivesse morrido tão cedo, porque os
crucificados em geral viviam mais tempo; mas interiormente estava
assustado e amedrontado, pela coincidência desses sinais com a
morte de Jesus. Queria talvez disfarçar um pouco a crueldade com
que procedera; pois despachou imediatamente uma ordem escrita,
entregando a José de Arimatéia o corpo do rei dos judeus, com a
licença de tirá-Lo da cruz e sepultá-Lo. Estava satisfeito de
poder assim pregar uma peça aos príncipes dos sacerdotes, que
teriam visto com prazer Jesus ser enterrado ignominiosamente com
os dois ladrões. Mandou também alguém ao Cal vário, para fazer
executar essa ordem. Creio que foi o mesmo Abenadar; pois que o
vi tomar parte no descendimento de Jesus da cruz.
Saindo do palácio de Pilatos, foi José de Arimatéia encontrar-se
com Nicodemos, que o estava esperando na casa de uma boa mulher,
situada numa rua larga, próxima do beco em que Jesus, logo no
começo do doloroso caminho da cruz, fora tão vilmente ultrajado.
Nicodemos tinha comprado muitas ervas e especiarias para o
embalsamamento, em parte da mesma mulher, que vendia ervas
aromáticas, em parte em outros negócios, onde a própria mulher
fora comprar as especiarias que não tinha, como também vários
panos e faixas, necessárias para o embalsamamento. De todos esses
objetos fez-lhe um pacote que pudesse comodamente transportar.
José de Arimatéia também foi ainda a outro lugar, para comprar
um pano grande de algodão, muito bonito e fino, com seis côvados
de comprimento e vários côvados de largura. Os criados foram
buscar no armazém, ao lado da casa de Nicodemos, escadas,
martelos, ponteiros, odres, vasilhas, esponjas e outros objetos
necessários para aquele fim. Colocaram os objetos menores numa
padiola, semelhante àquela em que os discípulos levaram o corpo
de João Batista, que tinham raptado do castelo forte de Herodes.
15. O coração de Jesus trespassado por uma lança. Esmagamento
das pernas e morte dos ladrões
Durante todo esse tempo reinava silêncio e tristeza sobre o
Gólgota. O povo assustado dispersara-se, indo esconder-se em
casa. A Mãe de Jesus e João, Madalena, Maria, filha de Cleofas
e Salomé estavam, em pé ou sentados, em frente à cruz, com as
cabeças veladas, chorando. Alguns soldados estavam sentados no
barranco, com as lanças fincadas no chão. Cássio, a cavalo, ia
de um lado para outro. Os soldados conversavam do alto do Cal vário
com outros que estavam mais em baixo. O céu estava nublado e toda
a natureza parecia abatida e de luto. Vieram então seis carrascos,
subindo o monte Cal vário; trouxeram escadas, pás e cordas, como
também pesadas maças de ferro de três gumes, para esmagar as
pernas dos executados.
Quando os carrascos entraram no círculo do suplício, os parentes
de Jesus retiraram-se um pouco. A Santíssima Virgem foi novamente
presa de angústia e receio de que os verdugos ainda maltratassem
o Corpo de Jesus; pois encostaram as escadas à cruz e subindo,
sacudiram o santo Corpo conferindo se apenas se fingia morto.
Como, porém, notassem que o corpo já estava inteiramente frio e
rígido e João, a pedido das mulheres piedosas, a eles se dirigisse
para impedir a crueldade, deixaram provisoriamente o corpo do
Senhor, mas não pareciam convencidos de que estivesse morto.
Subiram então pelas escadas nas cruzes dos ladrões; dois
esmagaram, com as maças cortantes, os ossos dos braços acima e
abaixo do cotovelo, um terceiro fez o mesmo acima e nas canelas,
abaixo dos joelhos. Gesmas soltou gritos horríveis.
Esmagaram-lhe em três golpes o peito, para acabar de matá-Io.
Dimas gemeu com a tortura e morreu; foi o primeiro mortal que
tornou a ver o Redentor. Os carrascos desataram então as cordas,
deixando cair os corpos no chão e arrastando-os depois com cordas,
para o vale entre o Cal vário e o muro da cidade, onde os
enterraram.
Os carrascos ainda pareciam duvidar da morte do Senhor e os
parentes de Jesus estavam ainda mais assustados, pela brutalidade
com que haviam procedido e com medo de que pudessem voltar. Mas
Cássio, oficial subalterno, homem de 25 anos, ativo e um pouco
precipitado, cuja vista curta e cujos olhos tortos, juntamente
com os ares de importância que se dava, provocavam freqüentemente
a troça dos subordinados, recebeu de repente uma inspiração
sobrenatural. A crueldade e vil brutalidade dos carrascos, o medo
das santas mulheres e um impulso repentino, causado por uma graça
divina, fizeram-no cumprir uma profecia. Ajustando a lança, que
trazia em geral dobrada e encurtada, firmou-lhe a ponta e virando
o cavalo, esporeou-o para subir o cume, onde estava a cruz e onde
o cavalo quase não podia virar; vi como o afastou da fenda do
rochedo. Parando assim entre a cruz do bom ladrão e a de Jesus,
ao lado direito do corpo de Nosso Salvador, tomou a lança com ambas
as mãos e introduziu-a com tal força no lado direito do Santo
Corpo, através das entranhas e do coração, que a ponta da lança
saiu um pouco do lado esquerdo, abrindo uma pequena ferida. Quando
tirou depois com força a santa lança, brotou da larga chaga do
lado direito do Redentor um rio de sangue e água que, caindo,
banhou o rosto de Cássio, como uma onda de salvação e graça. Ele
saltou do cavalo e, prostrando-se de joelhos, bateu no peito e
confessou a fé em Jesus em alta voz, diante de todos os presentes.
A Santíssima Virgem e os outros, cujos olhos estavam sempre fixos
no Salvador, viram a súbita ação do oficial com grande angústia
e acompanharam o golpe da lança com um grito de dor,
precipitando-se para a cruz. Maria caiu nos braços das amigas,
como se a lança lhe tivesse transpassado o próprio coração e
sentisse o ferro cortante atravessá-Io de lado a lado. Cássio,
caindo de joelhos, louvava a Deus, pois, iluminado pela graça,
ficou crendo e também os olhos do corpo se lhe curaram e desde
então via tudo cIaro e distinto. Mas ao mesmo tempo ficaram todos
profundamente comovidos à vista do sangue que, misturado com
água, se juntara, espumante, numa cavidade da rocha, ao pé da
cruz; Cássio, Maria Santíssima, as santas mulheres e João
apanharam o sangue e a água em tigelas, guardando-o depois em
frascos e enxugando-o da rocha com panos.
Cássio estava como que transformado; tinha recobrado a vista
perfeita e profundamente comovido, curvava-se diante de Deus, com
coração humilde. Os soldados presentes, tocados pelo milagre que
se operara nele, prostraram-se de joelhos, batiam no peito e
louvavam a Jesus. O sangue e a água corriam abundantemente da
larga chaga do lado direito do Salvador, sobre a rocha limpa, onde
se juntaram; apanharam-no, com indizível comoção e as lágrimas
de Maria e Madalena misturavam-selhe. Os carrascos, que nesse
ínterim tinham recebido a ordem de Pilatos de não tocar no corpo
de Jesus, que doara a José de Arimatéia, para o sepultar, não
voltaram mais.
A lança de Cássio, constava de várias peças, que eram ajustadas
uma sobre a outra; quando dobrada, parecia apenas um bastão, de
pouco comprimento. A parte de ferro que feria, tinha a forma de
pêra achatada; quando se queria servir da lança, enfiava-se-Ihe
a ponta e abriam-se em baixo duas lâminas de ferro, curvas e
movediças.
Tudo Isso se passou em redor da cruz de Jesus, logo depois das
quatro horas, quando José de Arimatéia e Nicodemos estavam ocupados em juntar as coisas necessárias para o enterro. Os criados
de Joséde Arimatéia foram, enviados para limpar o sepulcro e
anunciaram aos amigos de Jesus no Gólgota que José recebera de
Pilatos licença para tirar da cruz o corpo do Mestre e sepultá-Io
no seu sepulcro; então voltou João, com as santas mulheres, à
cidade, dirigindo-se ao monte Sião, para que a Santíssima Virgem
pudesse tomar algum alimento e também para buscar alguns objetos
para o enterro. Maria tinha uma pequena habitação nos edifícios
laterais do Cenáculo. Não entraram pela porta mais próxima, mas,
mais ao sul, pela porta que conduz a Belém; pois a porta para o
Cal vário estava fechada e ocupada por dentro pelos sbldados que
os fariseus tinham requisitado, com medo de um levante do povo.
16. A descida de Jesus aos infernos
Quando Jesus, com um grito forte, rendeu a santíssima alma, vi-a,
qual figura luminosa, acompanhada de muitos Anjos, entre os quais
também Gabriel, descer pela terra a dentro, ao pé da cruz. Vi,
porém, que a divindade lhe ficou unida tanto à alma, como também
ao corpo, pregado à cruz. Não sei explicar o modo porque se passou.
Vi o lugar aonde se dirigiu a alma de Jesus; era dividido em três
partes, parecendo três mundos e eu tinha a sensação de que tinha
a forma redonda e que cada um estava separado do outro por uma
esfera.
Antes de chegar ao limbo, havia um lugar claro e, por assim dizer,
mais verdejante e alegre. Era o lugar em que vejo sempre entrarem
as almas remi das do purgatório, antes de serem levadas ao céu.
O limbo, onde se achavam os que esperavam a redenção, estava
cercado de uma esfera cinzenta, nebulosa e dividido em vários
círculos. Nosso Salvador, conduzido pelos Anjos como em triunfo,
entrou por entre dois desses círculos, dos quais o esquerdo
encerrava os Patriarcas até Abraão e o direito as almas de Abraão
até João Batista. Jesus penetrou por entre os dois; eles, porém,
ainda não O conheciam, mas estavam todos cheios de alegria e
desejo; foi como se dilatassem esses páramos da saudade
angustiosa, como se ali entrassem o ar, a luz e o orvalho da
Redenção. Tudo se deu rapidamente, como o sopro do vento. Jesus
penetrou através dos dois círculos, até um lugar cercado de
neblina, onde se achavam Adão e Eva, nossos primeiros pais.
Falou-Ihes e adoraram-nO com indizível felicidade. O cortejo do
Senhor, ao qual se juntou o primeiro casal humano, dirigiu-se
então à esquerda, ao limbo dos Patriarcas que tinham vivido antes
de Abraão. Era uma espécie de purgatório; pois entre eles se
moviam, cá e lá, maus espíritos, que atormentavam e
inquietavam algumas dessas almas de muitas maneiras. Os Anjos
bateram e mandaram que abrissem; pois havia lá uma entrada, uma
espécie de porta, que estava fechada; os Anjos anunciaram a vinda
do Senhor, parecia-me ouví-Ios exclamar: "Abri as portas!" Jesus
entrou triunfalmente; os espíritos maus, retirando-se, gritaram:
"Que tens conosco? Que queres fazer de nós? Queres crucificar-nos
também?, etc." - Os Anjos, porém, amarraram-nos e empurraram-nos
para diante. Essas almas sabiam pouco de Jesus, tinham só uma
idéia obscura do Salvador; Jesus anunciou Ihes a Redenção e eles
lhe cantaram louvores. Dirigiu-se então a alma do Senhor ao espaço
à direita, ao verdadeiro limbo, em frente ao qual se encontrou
com a alma do bom ladrão, conduzida por Anjos ao seio de Abraão
e com a do mau ladrão que, cercado de espíritos maus, foi precipitada no inferno. A alma de Jesus dirigiu-Ihes algumas palavras
e entrou então no seio de Abraão, acompanhada dos Anjos, das almas
remidas e dos demônios expulsos.
Esse lugar parecia-me situado um pouco mais alto; era como se se
subisse do subterrâneo de uma igreja à igreja superior. Os
demônios amarrados quiseram resistir, não queriam passar; mas
foram levados à força pelos Anjos. Neste lugar estavam todos os
santos Israelitas, à esquerda os Patriarcas, Moisés, os Juízes,
os Reis; à direita os profetas e todos os antepassados e parentes
de Jesus, até Joaquim, Ana, José, Zacarias, Isabel e João. Nesse
lugar não havia nenhum mau espírito, nem tormento algum, a não
ser o desejo ansioso da Redenção, que se realizara enfim.
Indizível delícia e felicidade enchia as almas todas, que
saudavam e adoravam o Salvador; os demônios amarrados foram
obrigados a confessar sua ignomínia diante delas. Muitas dessas
almas foram enviadas à terra, para entrar nos respectivos corpos
e dar testemunho do Senhor. Foi nesse momento que tantos mortos
saíram dos sepulcros em Jerusalém; apareciam como cadáveres
ambulantes, depositando depois novamente os corpos, como um
mensageiro da justiça deposita o manto oficial, depois de ter
cumprido as ordens do superior.
Vi depois o cortejo triunfal do Salvador entrar numa esfera mais
baixa, uma espécie de lugar de purificação, onde se achavam
piedosos pagãos que tinham tido um pressentimento da verdade e
o desejo de conhecê-Ia. Havia entre eles espíritos maus, porque
tinham ídolos; vi os espíritos malignos forçados a confessar o
embuste e as almas adorarem o Senhor com alegria tocante. Os
demônios desse lugar foram também amarrados e levados no cortejo.
Assim vi o Salvador passar triunfalmente, com grande velocidade,
por vários lugares onde estavam almas encerradas, libertando-as
e fazendo ainda muitas outras coisas, mas no meu estado de miséria
não posso contar tudo.
Por fim o vi aproximar-se, com ar severo, do centro do abismo,
do inferno, que me apareceu sob a forma de um imenso edifício
horrível, formado de negros rochedos, de brilho metálico, cuja
entrada tinha enormes portas, terríveis, pretas, fechadas com
fechaduras e ferrolhos que causavam medo. Ouviam-se uivos de
desespero e gritos de tormento, abriram-se as portas e apareceu
um mundo hediondo e tenebroso.
Assim como vi as moradas dos bem-aventurados sob a forma de uma
cidade, a Jerusalém celeste, com muitos palácios e jardins,
cheios de frutas e flores maravilhosas, de várias espécies,
conforme as inúmeras condições e graus de santidade, assim vi
também o inferno como um mundo separado, com muitos edifícios,
moradas e campos. Mas tudo destinado, ao contrário, à tortura e
às penas dos condenados. Como na morada dos bem-aventurados tudo
é disposto segundo as causas e condições da eterna paz, harmonia
e alegria, assim no inferno se manifesta em tudo a eterna ira,
discórdia e desespero. Como no céu há muitíssimos edifícios,
indizivelmente belos, transparentes, destinados à alegria e à
adoração, assim há no inferno inúmeros e variados cárceres e
cavernas, cheios de tortura, maldição e desespero. No céu há
maravilhosos jardins, cheios de frutos de gozo divino; no inferno
horrendos desertos e pântanos, cheios de tormentos e angústias
e de tudo que pode causar horror, medo e nojo. Vi templos, altares,
castelos, tronos, jardins, lagos, rios de maldição, de ódio, de
horror, de desespero, de confusão, de pena e tortura; como há no
céu rios de bênção, de amor, de concórdia, de alegria e
felicidade; aqui a eterna, terrível discórdia dos condenados; lá
a união bem-aventurada dos santos. Todas as raízes da corrupção
e do erro produzem aqui tortura e suplício, em
inumeráveis manifestações e operações; há só um pensamento reto:
a idéia austera da justiça divina, segundo a qual cada condenado
sofre a pena, o suplí cio, que é o fruto necessário de seu crime;
pois tudo que se passa e se vê de horrível nesse lugar, é a
essência, a forma e a perversidade do pecado desmascarado, da
serpente que atormenta com o veneno maldo so os que o alimentaram
no seio. Vi lá uma colunata horrorosa, em que tudo se referia ao
horror e à angústia, como no reino de Deus à paz e ao repouso.
Tudo se compreende facilmente, ao vê-Io, mas é quase impossível
exprimir tudo em palavras.
Quando os Anjos abriram as portas, viu-se um caos de contradição,
de maldições, de injúrias, de uivos e gritos de dor. Vi Jesus
falar à alma de Judas. Alguns dos Anjos prostraram exércitos
inteiros de demônios. Todos foram obrigados a reconhecer e adorar
Jesus, o que foi para eles o maior suplício. Grande número deles
foram amar rados a um círculo, que cercava muitos outros, que
deste modo tam bém ficaram presos. No centro havia um abismo de
trevas, Lúcifer foi amarrado e lançado nesse abismo, onde vapores
negros lhe ferviam em redor. Tudo se fez segundo os decretos
divinos. Ouvi dizer que Lúcifer, se não me engano, 50 ou 60 anos
antes do ano 2.000 de Cristo, seria novamente solto por certo
tempo. Muitas outras datas e números foram indicados, dos quais
não me lembro mais. Deviam ser soltos ainda outros demônios antes
desse tempo, para provação e castigo dos homens. Creio que também
em nossO tempo era a vez de alguns deles e de outros pouco depois
do nosso tempo.
É-me impossível contar tudo quanto me foi mostrado; são
muitas coisas e não as posso relatar em boa ordem; também me sinto
tão doente e quando falo dessas coisas, elas se me representam
novamente diante dos olhos e só o aspecto já é suficiente para
nos fazer morrer.
Ainda vi exércitos imensos de almas remidas saírem do purgatório
e do limbo, acompanhando o Senhor, para um lugar de delícias
abaixo da Jerusalém celeste. Foi lá que vi também, há algum tempo,
um amigo falecido. A alma do bom ladrão foi também conduzida para
lá e viu assim o Senhor no Paraíso, conforme a promessa. Vi que
nesse lugar foram preparados banquetes de alegria e conforto,
como os tenho visto já muitas vezes, em visões consoladoras.
Não posso indicar com exatidão o tempo e a duração de tudo que se
passou, como também não posso contar tudo quanto vi e ouvi
lá porque eu mesma não compreendo mais tudo, já porque podia ser
mal compreendida pelos ouvintes. Vi, porém, o Senhor em lugares
muito diferentes, até no mar, parecia santificar e libertar todas
as criaturas; em toda parte fugiam os maus espíritos diante d’Ele
e lançaram-se no abismo. Vi também a alma do Senhor em muitos
lugares da terra. Vi-Q aparecer no sepulcro de Adão e Eva, sob
o Gólgota. As almas de Adão e Eva juntaram-se-Ihe novamente;
falou-Ihes e com elas Q vi passar, como sob a terra, em muitas
direções e visitar os túmulos de muitos profetas, cujas almas se
lhe juntaram, próximo das respectivas ossadas e explicou-Ihes o
Senhor muitas coisas. Vi-O depois, com esse séquito escolhido,
em que seguia também Davi, passar em muitos lugares de sua vida
e paixão, explicando-Ihes com indizível amor todos os fatos
simbólicos que se tinham dado ali e o cumprimento dessas figuras
em sua pessoa.
Vi-O especialmente explicar às almas tudo quanto se dera de fatos
figurativos no lugar em que foi batizado e contemplei muito
comovida a infinita misericórdia de Jesus, que as fez participar
da graça de seu santo Batismo.
Causou-me inexprimível comoção ver a alma do Senhor, acompanhada
por esses espíritos bem-aventurados e consolados, passar, como
um raio de luz, através da terra escura e dos rochedos, pelas águas
e pelo ar e pairar tão sereno sobre a terra.
É o pouco de que me lembro ainda, de minha contemplação da descida
do Senhor aos infernos e da redenção das almas dos Patriarcas,
depois de sua morte; mas além dessa visão dos tempos passados,
vi nesse dia uma imagem eterna de sua misericórdia para com as
pobres almas do purgatório. Vi que, em cada aniversário desse dia,
lança por meio da Igreja, um olhar de salvação ao purgatório; vi
que já no Sábado Santo remiu algumas almas do purgatório, que
tinham pecado contra Ele na hora da crucificação.
A primeira descida de Jesus ao limbo é o cumprimento de figuras
anteriores e, por sua vez, é a figura da redenção atual. A descida
aos infernos que vi, referia-se ao tempo passado, mas a salvação
de hoje é.uma verdade permanente; pois a descida de Jesus aos
infernos é o plantio de uma árvore da graça, destinada a
administrar os seus méritos divinos às almas do purgatório e a
redenção contínua e atual dessas almas é o fruto dessa árvore da
graça no jardim espiritual do ano eclesiástico. A Igreja
militante deve cuidar dessa árvore, colherlhe os frutos, para os
outorgar à Igreja padecente, porque essa nada pode fazer em seu
próprio proveito. Eis o que se dá em todos os merecimentos de Nosso
Senhor; é preciso cooperar, para ter parte neles. Devemos comer
o pão ganho com o suor de nosso rosto. Tudo quanto Jesus fez por
nós no tempo, dá frutos eternos; mas devemos cultivá-Ios e
colhê-Ios no tempo, para poder gozá-Ios na eternidade. A Igreja
é como um bom pai de família; o ano eclesiástico é o jardim mais
perfeito, com todos os frutos eternos no tempo; em um ano tem
bastante de tudo para todos. Ai! dos jardineiros preguiçosos e
infiéis, que deixam perder uma graça, que poderia curar um
enfermo, fortalecer um fraco, saciar um faminto: no dia de juízo
terão de dar conta até do menor pézinho de erva.
9
A sepultura de Jesus
1. O jardim e o sepulcro de José de Arimatéia
2. O descendimento da cruz
3. O corpo de Jesus é preparado para a sepultura
4. O enterro
5. A volta para casa, depois do enterro; o sábado; prisão de
José de Arimatéia
6. A guarda no túmulo de Jesus
7. Os amigos de Jesus no Sábado santo
A sepultura de Jesus
1. O jardim e o sepulcro de José de Arimatéia
Esse jardim (*) está situado a cerca de sete minutos do monte
Calvário, perto da porta de Belém, na encosta que vai subindo até
os muros da cidade; é um belo jardim, com grandes árvores e bancos,
em lugares com sombra; de um lado se estende até o muro da cidade,
no alto da encosta. Quem vem da porta ao norte do vale, entrando
no jardim, tem à esquerda o terreno do jardim, que sobe até o muro
da cidade; e vê no fundo do mesmo, à direita, um rochedo isolado,
onde é o sepulcro.
Essa porta é de metal, que parece ser cobre e abre em dois batentes
que, abertos, se encostam à parede em ambos os lados; não fica
perpendicular, mas um pouco inclinada para o nicho e quase tocando
o solo, de modo que uma pedra colocada em frente impede de abri-Ia.
A pedra destinada a esse fim ainda estava fora da gruta e foi
colocada à porta fechada só depois de depositado o corpo de Nosso
Senhor no sepulcro. É grande e um pouco arredondada para o lado
da porta, porque as paredes laterais também não estão em ângulo
reto. Para abrir os batentes da porta não é necessário rolar a
pedra para fora da gruta, o que seria bastante difícil, por causa
da falta de espaço; mas passa-se uma corrente, que pende da
abobada, através de algumas argolas, fixas para esse fim na pedra;
puxando pela corrente, levanta-se a pedra, mas mesmo assim, só
com esforço de vários homens se a desloca, encostando-a à parede
lateral.
* Parece-nos necessário mencionar aqui que a piedosa freira, nos
quatro anos em que as visões foram escritas, narrou as muitas
transformações pelas quais passaram os Santos Lugares de
Jerusalém, no correr dos séculos, desde os primeiros tempos.
Viu-os alteruadamente devastados e restaurados, mas sempre
venerados, seja oculta ou publicamente e ela mesma os venerava
nas visões. Viu também muitas pedras e fragmentos de rochedos,
testemunhas da Paixão e Ressurreição de Nosso Senhor, que depois
da descoberta dos Santos Lugares por Santa Helena, foram
reunidos. na Igreja do Santo Sepulcro, por ela construído, na
proximidade e sob a proteção da cidade. A narradora venerava nessa
Igreja o lugar onde estava a cruz, o túmulo e várias partes da
gruta sepulcral, sobre as quais foram edificadas várias capelas;
algumas vezes, porém, quando venerava, não tanto o túmulo, mas
o lugar onde estivera o túmulo, parecia em espírito procurar esse
lugar na vizinhança, mas sempre um pouco mais distante do lugar
da cruz. Depois de entrar no jardim, se vira à direita, para chegar
à gruta sepulcral que abre para leste e donde cai a vista sobre
a encosta e o muro da cidade. A sudoeste e noroeste do mesmo
rochedo há ainda duas grutas menores, com entradas baixas. Pelo
lado oeste passa um estreito caminho em redor do rochedo. O
terreno em frente da entrada da gruta sepulcral é um pouco mais
elevado do que a entrada e o solo da gruta. e para chegar à porta,
há alguns degraus, que descem como um fosso, nesse lado oriental
do rochedo. A entrada exterior está fechada por uma grade de vime.
O interior da caverna é tão espaçoso, que quatro homens podem
ficar encostados à parede, à direita. e quatro à esquerda, sem
embaraçar os movimentos dos que depositam o corpo do morto. Esse
espaço alarga-se no fundo da gruta, em frente à porta, formando
no lado ocidental um nicho largo, mas pouco alto, que se arredonda
em cima, formando a abóbada do rochedo sobre o sepulcro. Esse tem
a altura de cerca de dois pés e há nele uma cavidade, para receber
o corpo envolto nas mortalhas. O sepulcro está junto da gruta.
como um altar; do lado dos pés e da cabeça há ainda lugar para
um homem ficar em Pé e também em frente do sepulcro se pode ainda
permanecer, depois de fechada a porta do nicho.
Em frente à entrada da gruta, há no jardim um banco de pedra. Podese subir o rochedo do sepulcro e andar sobre a relva de que é
coberto; de lá se avista justamente o muro da cidade e também o
ponto mais alto de Sião e algumas torres; vê-se também de lá a
porta de Belém, um aqueduto e a fonte de Gion. A rocha no interior
da gruta é branca, com veios vermelhos e pardos. Toda a obra da
gruta foi feita com muito capricho.
2. O descendimento da cruz
Enquanto a cruz ficou abandonada, cercada apenas de alguns
guardas, vi cerca de cinco homens, que, vindo de Betânia, desceram
pelos vales, aproximaram-se do lugar do suplício, olharam para
a cruz e afastaram-se furtivamente; creio que eram discípulos.
Havia, porém, dois homens, José de Arimatéia e Nicodemos, que vi
três vezes nos arredores, examinando e deliberando; uma vez,
durante a crucificação, estavam perto, (talvez quando mandaram
comprar as vestes de Jesus da mão dos soldados). Mais tarde
estavam lá para ver se o povo já se tinha afastado, indo depois
ao sepulcro, para fazer alguns preparativos; do sepulcro voltaram
à cruz, olhando para cima e em redor, como se estudassem as
condições. Fizeram o plano para o descendimento e voltaram à
cidade.
Começaram então ajuntar todas as coisas necessárias para o embalsamamento do corpo. Fizeram os servos levar as ferramentas para
o descendimento do santo corpo da cruz e além disso, duas escadas,
que tiraram de uma granja, perto da casa grande de Nicodemos; cada
uma dessas escadas constava apenas de uma estaca, atravessada,
de distância em distância, por paus, que serviam de degraus; havia
nessas escadas ganchos, que se podiam fixar mais alto ou baixo,
seja para prendê-Ias em qualquer parte, seja para pendurar neles
algum objeto necessário, durante o trabalho.
A boa mulher em cuja casa receberam as especiarias para o embalsamamento, tinha-Ihes empacotado tudo muito bem, para poderem
transportá-Ias comodamente. Nicodemos comprara 100 arráteis de
especiarias, que, segundo o nosso peso, equivale aproximadamente
a 16 kilos, como me foi revelado várias vezes. Transportavam parte
dessas especiarias em pequenos barris de cortiça, que Ihes
pendiam do pescoço sobre o peito. Um desses barrizinhos continha
um pó. Em bolsas de pergaminho ou de couro levaram pequenos molhos
de ervas. José levou também um vaso de ungüento, feito não sei
de que material; era vermelho e tinha ilm aro azul. Os servos,
como acima já mencionamos, tinham levado numa padiola: vasos,
odres, esponjas e ferramentas. Levaram também fogo, numa lanterna
fechada.
Esses servos saíram para o Cal vário antes dos senhores e por uma
outra porta, creio que pela de Belém. No caminho pela cidade,
passaram pela casa à qual tinha ido a Santíssima Virgem, com
outras mulheres e com João, afim de buscar algumas coisas
necessárias para o embalsamamento do corpo do Senhor e donde
saíram, seguindo os servos a pouca distância. Eram talvez cinco
mulheres, algumas das quais transportavam grandes fardos de panos
sob os mantos. Era costume das mulheres envolver-se
cuidadosamente numa longa faixa de pano, da largura de um bom
côvado, quando saiam de noite ou quando queriam fazer
secretamente uma obra piedosa. Começavam a enrolar-se por um
braço e o pano envolvia-as tão estreitamente, que não podiam dar
passos largos; tenho-as visto enrolarem-se assim e o pano chega
comodamente para o corpo e o outro braço e ainda para velar a
cabeça; nesse dia tinha algo de estranho: era o traje de luto.
José de Arimatéia e Nicodemos também tinham se vestido de luto:
as mangas, estolas e cinta larga eram pretas; os mantos, que
traziam puxados sobre a cabeça, eram longos e largos e de cor
cinzenta. Cobriram tudo que transportavam com esses mantos. Ambos
se dirigiram à porta do Calvário.
As ruas estavam desertas e silenciosas; no terror geral todo o
povo se conservava em casa, com as portas fechadas. Muitos estavam
prostrados por terra, fazendo penitência; só poucos celebraram
as cerimônias prescritas para a festa. Quando José e Nicodemos
chegaram à porta, encontraram-na fechada e as ruas vizinhas, como
os muros da cidade, ocupados por numerosos soldados; eram aqueles
que os fariseus tinham requerido, depois de duas horas da tarde,
porque temiam uma insurreição. Os soldados ainda não tinham
recebido ordem de retirar-se. José apresentou-Ihes uma ordem
escrita de Pilatos para os deixar pas sar; os soldados
mostraram-se prontos a obedecer a essa ordem, mas disseram-Ihes
que já haviam experimentado em vão abrir a porta, que
provavelmente se deslocara em conseqüência do terremoto; por isso
foram também os carrascos obrigados a entrar pela porta Angular,
depois de quebrar as pernas dos crucificados. Mas, quando José
e Nicodemos puseram as mãos nos ferrolhos, abriu-se a porta com
toda a facilidade, com assombro de todos.
O dia ainda estava sombrio, escuro e nebuloso, quando chegaram
ao Cal vário, onde encontraram os servos que tinham mandado
adiante, como também as santas mulheres, que estavam sentadas em
frente à cruz, chorando. Cássio e vários soldados que se tinham
convertido, .estavam como transformados e mantinham-se a alguma
distância, tímidos e respeitosos. José e Nicodemos falaram com
a Santíssima Virgem e João a respeito de tudo que tinham feito,
para salvar Jesus da morte ignominiosa e souberam que só com
dificuldade se havia impedido que as pernas de Nosso Senhor fossem
quebradas e que assim se tinha cumprido a profecia. Falaram também
do golpe da lança, com a qual Cássio abrira o peito de Jesus.
Depois de ter chegado também o centurião Abenadar, começaram, com
muita tristeza e respeito, a obra piedosa do descendimento e
embalsamamento do santo corpo do Senhor, Mestre e Redentor.
A santíssima Virgem e Madalena estavam sentadas ao pé da cruz,
à direita, entre a cruz de Dimas e a de Jesus; as outras mulheres
estavam ocupadas em arrumar as especiarias e os panos, a água,
as esponjas e os vasos. Cássio também se aproximou, quando viu
Abenadar chegar e contou-lhe a miraculosa cura de seus olhos.
Todos estavam comovidos, cheios de tristeza e amor, mas graves
e silenciosos. Às vezes, quando a pressa e atenção à obra santa
o permitiam, se ouvia cá e lá, um gemido abafado ou soluço.
Sobretudo Madalena, muito exaltada, abandonavase inteiramente à
dor e não se lembrava dos presentes, nem se moderava por qualquer
consideração.
Nicodemos e José encostaram as escadas por detrás da cruz,
levando, ao subir, um pano largo, no qual estavam presas três
largas correias, prenderam o corpo de Jesus, sob os braços e
joelhos, ao lenho e seguraram os braços de Nosso Senhor, atando-os
pelos pulsos aos madeiros transversais. Depois tiraram os cravos,
batendo-os por detrás com ponteiros colocados sobre as pontas.
As mãos do Senhor não foram muito abaladas pelos golpes do martelo
e os cravos caíram facilmente das chagas, que estavam muito
alargadas pelo peso do corpo e esse, seguro por meio dos panos,
não pendia mais dos cravos. A parte Inferior do corpo que, com
a morte, tombara sobre os joelhos, repousava então, em posição
natural, sobre um pano, que estava seguro no alto, aos b!aços da
cruz. Enquanto José tirava o cravo e deixava cair cuidadosamente
o braço esquerdo sobre o corpo, atou Nicodemos o braço direito
do mesmo modo ao da cruz, segurando também a cabeça coroada de
espinhos em posição natural, pois caíra sobre o ombro direito;
tirou o cravo da mão direita e fez descer o braço, com as
respetivas ataduras, ao longo do corpo. Ao mesmo tempo o centurião
Abenadar tirou, com grande esforço, o longo cravo dos pés.
Cássio apanhou respeitosamente os cravos e depositou-os aos pés
da Santíssima Virgem. José e Nicodemos colocaram então as escadas
no lado da frente, próximo do santo corpo, desataram a correia
superior do tronco da cruz e sucessivamente as correias,
pendurando-as nos ganchos da escada. Descendo então devagar das
escadas e passando as correias de gancho em gancho, cada vez mais
para baixo, vinha também o santo corpo descendo gradualmente para
os braços do centurião Abenadar, que de pé sobre um escabelo,
segurou o corpo sobre os joelhos e desceu depois com ele enquanto
Nicodemos e José, segurando a parte superior pelos braços,
desciam degrau por degrau das escadas, devagar e com todo cuidado,
como se transportassem um amigo querido, gravemente ferido. Assim
desceu o santo e desfigurado corpo do Salvador da cruz à terra.
O descendimento do corpo da cruz foi um espetáculo indizivelmente
tocante. Faziam todos os movimentos com tanto cuidado e carinho,
como se receassem causar sofrimento ao Senhor; manifestavam ao
san to corpo o mesmo amor e respeito que tinham sentido para com
o Santo dos santos, durante a vida. Todos que estavam presentes,
não desviavam os olhos do corpo do Senhor e acompanhavam todos
os movimentos e manifestavam solicitude, estendendo os braços,
derramando lágrimas ou por outros gestos de dor. Mas todos
guardavam silêncio; os homens que trabalhavam, penetrados de um
respeito involuntário, como quem toma parte num ato religioso,
só falavam a meia voz, para chamar a atenção ou pedir qualquer
objeto. Quando ressoaram as marteladas que fizeram sair os
pregos, Maria Santíssima, Madalena e todos que tinham assistido
à crucificação, sentiram de novo as dores dilacerantes daquela
hora; pois esses golpes lhes lembravam as dores cruéis de Jesus
causadas pelas marteladas e todos estremeceram, pensando ouvir-Lhe novamente os gemidos penetrantes e contudo se afligiam
de que a santa boca Lhe houvesse emudecido, no silêncio da morte.
Depois de descer o santo corpo, os homens o envolveram dos joelhos
até os quadris e depositaram-no sobre um pano, nos braços da Mãe
Santíssima, que lhos estendeu, cheia de dor e saudade.
3. O corpo de Jesus é preparado para a sepultura
A Santíssima Virgem estava sentada sobre uma coberta, estendida
sobre a terra; o joelho direito, um pouco elevado, como também
as costas, apoiavam-se-Ihe sobre uma almofada, feita de mantos
enrolados; fizeram esse arranjo para facilitar à Mãe, exausta de
dor e cansaço, a triste obra de caridade que ia fazer, para com
o santo corpo do Filho querido, cruelmente assassinado. A santa
cabeça de Jesus, um pouco curvada, estava encostada ao joelho de
Maria; o corpo jazia estendido sobre o pano. Igualavam-se a dor
e o amor da Virgem Santíssima. Tinha de novo nos braços o corpo
do Filho adorado, a quem durante tão longo martírio não pudera
testemunhar seu amor; via quanto estava desfigurado o santo
corpo, pelas horríveis crueldades, via-lhe de perto as feridas,
beijava-lhe as faces sangrentas, enquanto Madalena jazia
prostrada por terra, com o rosto sobre os pés de Jesus.
Os homens retiraram-se então para um pequeno vale, situado a sudoeste, na encosta do Cal vário, onde tencionavam terminar o
embalsamamento e arrumaram tudo quanto era necessário para esse
fim. Cássio, com um grupo de soldados que se tinham convertido,
mantinhase a respeitosa distância; toda a gente inimiga do Mestre
tinha já voltado para a cidade e os soldados ainda presentes
ficaram para servir de guarda' e impedir que alguém viesse
perturbar as últimas honras prestadas a Jesus. Alguns ajudavam,
comovidos e humildes, prestando pequenos serviços, quando Ihes
pediam.
Todas as santas mulheres ajudavam, onde era preciso, passando os
vasos com água, esponjas, panos, ungüentos e especiarias ou
mantinham-se atentas a certa distância. Entre elas se achavam
Maria, filha de Cleofas, Salomé e Verônica; Madalena estava
sempre ocupada com o santo corpo; Maria Helí, a irmã mais velha
da Santíssima Virgem, senhora já idosa, estava sentada
silenciosa, João estava sempre ao lado da Santíssima Virgem,
pronto a prestar-lhe qualquer auxílio; era o mensageiro entre as
mulheres e os homens; ajudava àquelas e depois prestou também
muitos serviços aos homens, durante o embalsamamento. Estava tudo
muito bem preparado; as mulheres trouxeram odres de couro, que
se podiam abrir e dobrar e um vaso com água, que estava sobre uma
fogueira de carvão. Trouxeram a Maria e a Madalena tigelas com
água e esponjas limpas, espremendo as usadas e despejavam a água
usada nos odres de couro. Creio, pelo menos, que os chumaços
redondos que as vi espremerem, eram esponjas.
A Santíssima Virgem conservava um ânimo forte, em toda a sua
indizível dor; (*) mesmo em sua tristeza não podia deixar o santo
corpo no horrendo estado em que o pusera o ignominioso suplício
e assim começou, com atividade infatigável, a lavá-Io
cuidadosamente. Abrindo a coroa de espinhos pelo lado posterior,
tirou-a cuidadosamente da cabeça de Jesus, com auxílio dos
outros. Para que os espinhos que entraram na cabeça, não
alargassem as feridas, foi preciso cortá-Ios um a um da coroa.
Colocaram depois a coroa junto aos cravos, ao lado, e Maria tirou
alguns espinhos compridos e fragmentos que tinham ficado na
cabeça do Salvador, com uma espécie de pinças curvas e elásticas,
de cor amarela e mostrou-os tristemente aos amigos compassivos.
Puseram os espinhos junto à coroa; mas é possível que alguns
fossem guardados como lembrança.
Quase não se podia mais reconhecer o rosto do Senhor, tão
desfigurado estava pelas feridas e pelo sangue. O cabelo e a
barba, em desalinho, estavam completamente colados pelo sangue.
Maria lavou-lhe o rosto e a cabeça, passando esponjas molhadas
sobre o cabelo, para tirar o sangue que secara. A medida que
lavava, tornavam-se mais visíveis os efeitos do cruel suplício,
causando cada vez novas manifestações de compaixão, novos
cuidados, de ferida em ferida. Maria limpou-lhe as feridas da
cabeça, lavou o sangue dos olhos, das narinas e dos ouvidos, com
uma esponja e um pequeno lenço, estendidos sobre os dedos da mão
direita; com esse limpou também a boca entreaberta, a língua,
os dentes e os lábios de Nosso Senhor. Dispôs o pouco que restava
da cabeleira de Jesus em três partes, uma para cada lado e uma
para o lado posterior da cabeça e depois de alisar os cabelos de
ambos os lados, fê-los passar por trás das orelhas. Quando acabou
de limpar a cabeça, deu-Lhe um beijo na face e cobriu o santo
rosto. Dirigiu então os cuidados ao pescoço, aos ombros, ao peito
e às costas do santo corpo, aos braços e às mãos laceradas e
sangrentas. Ai! Então se viu toda a horrenda dilaceração do santo
corpo. Todos os ossos do peito e todas as articulações estavam
deslocadas e tornaram-se inflexíveis; o ombro sobre o qual Jesus
transportou a pesada cruz, era uma grande chaga; toda a parte
superior do corpo estava coberta de feridas e pisaduras, causadas
pela flagelação; no lado esquerdo se via uma ferida pequenina,
onde saíra a ponta da lança e no lado direito se abria a larga
chaga feita pela mesma lança, que também lhe traspassou o coração
de lado a lado. Maria Santíssima lavou e limpou todas essas
feridas. Madalena, prostrada de joelhos, ficava-lhe às vezes em
frente, para a ajudar, mas quase sempre estava aos pés de Jesus,
os quais lavou então pela última vez, mais com as lágrimas do que
com água, enxugando-os com o cabelo.
* Quando a narradora, na Sexta-Peira Santa, a 30 de Março de 1820,
no começo da noite, contemplava o descendimento do Senhor da cruz,
caiu de repente num profundo desmaio, na presença de Clemente
Brentano. Depois de voltar a si, declarou, no meio de incessantes
sofrimentos: "Quando contemplei o corpo de Jesus estendidos sobre
os joelhos da Santíssima Virgem, pensei comigo: "Vede, como é
forte! Ela nem desmaia." Meu guia repreendeu-me imediatamente por
esse pensamento, que era mais expressão de espanto do que uma dor
aguda como uma espada, a ponto de eu quase morrer e ainda continuo
a senu-Ia. Picou muito tempo com essa dor, que foi também a causa
de uma doença grave, que a levou quase às portas da morte.
A cabeça, o peito e os pés do Senhor foram assim limpos do sangue
e de toda a imundície; o corpo, de um branco azulado, com o brilho
de carne exangue, coberto de manchas pardas e de outros lugares
verme lhos, onde a pele fora arrancada, repousava sobre os
joelhos de Maria, que lhe envolvia os membros lavados e se pôs
a embalsamar todas as feridas, começando novamente pela cabeça.
As santas mulheres ajoelhavam-se alternadamente diante dela,
apresentando-lhe um vaso, do qual, com o indicador e o polegar
da mão direita, tirava um bálsamo ou ungüento precioso, com que
ungia e untava todas as feridas. Derramou também ungüento sobre
o cabelo; vi que, segurando as mãos de Jesus com a mão esquerda,
as beijou respeitosamente e encheu as largas chagas dós cravos
com o mesmo ungüento ou as mesmas especiarias de que enchera os
ouvidos as narinas e a chaga do lado. Madalena estava quase todo
o tempo ocupada com os pés de Jesus, ora enxugando e untando-os,
ora banhando-os novamente com as lágrimas; muitas vezes apoiava
neles o rosto.
Vi que não despejavam fora a água usada, mas guardavam-na nos
odres de couro, nos quais também espremiam as esponjas. Vi
diversas vezes que Cássio e outros soldados foram buscar água à
fonte de Gion, em odres e jarros, que as mulheres tinham trazido;
essa fonte de Gion estava tão perto, que se podia enxergá-Ia do
jardim do sepulcro.
Quando a Santíssima Virgem acabou de untar todas as feridas, envolveu a santa cabeça em faixas; mas ainda não pôs o lenço que
devia cobrir-lhe o rosto. Fechou-lhe os olhos entreabertos,
pousando sobre eles a mão por algum tempo; fechou também a boca
do Senhor, abraçou o santo corpo do Filho e, chorando, deixou cair
o rosto sobre o de Jesus. Madalena, pelo grande respeito que tinha
ao Senhor, não lhe tocou no semblante, mas apenas descansou o
rosto sobre os pés do santo corpo.
José e Nicodemos já tinham estado por algum tempo perto,
esperando, quando João se aproximou da Santíssima Virgem, pedindo
que se separasse do corpo de Jesus, para que o pudessem preparar
para a sepultura, porque o sábado já estava perto. Maria abraçou
mais uma vez, com o maior fervor, o corpo do Filho adorado,
despedindo-se dele com palavras comoventes. Então levantaram os
homens o santo corpo no pano em que jazia, sobre os joelhos da
Mãe Santíssima e levaram-no para o lugar do embalsamamento. A
Virgem Santíssima, novamente entregue à dor, para a qual tinha
achado alguma consolação nos piedosos cuidados, caiu, com a
cabeça velada, nos braços das mulheres; Madalena, porém, seguiu
os homens, correndo-Ihes alguns passos atrás, com os braços
estendidos, como se lhe quisessem raptar o Amado, mas voltou
depois para junto da SS. Virgem.
Levando o santo corpo, os homens desceram um pouco do alto do
Gólgota, para um lugar, numa dobra da encosta, onde havia uma
pedra chata e lisa, própria para esse fim. Ali já tinham feito
todos os preparativos para o embalsamamento. Vi primeiro, ali
estendido, um pano trabalhado a crivo, semelhante a uma rede, como
que feita de rendas; pareciase com o grande pano de fome (*), que
se pendura em nossas igrejas.
* Pano de fome chama-se no bispado de Münster, na Alemanha, um
pano grande, de linho branco, que durante a quaresma é pendurado,
por meio de cordões do teto da Igreja ao solo, diante do altar-mor
ou entre o coro e a Igreja. Este pano costuma ter partes bordadas
a crivo, que representam as cinco Chagas, os instrumentos da
Paixão ou outras coisas semelhantes. Sobre as almas sensíveis faz
este pano uma impressão séria e sublime, exortando-as à
mortificação, sobriedade, piedade e meditação.
Quando criança, pensava eu sempre, ao ver esse pano, que era o
mesmo que vi no embalsamamento do Senhor. Provavelmente tinha o
feitio de uma rede, para deixar escorrer a água, ao lavar. Vi mais
um pano grande, estendido sobre a pedra. Deitaram o corpo do
Senhor sobre o primeiro e alguns seguravam o outro por cima.
Nicodemos e José de Arimatéia ajoelharam-se e desataram, sob essa
coberta, o lençol em que tinham envolvido o ventre do Senhor, ao
descê-Lo da cruz. Depois tiraram também do santo corpo a cinta
que Jonadab, sobrinho do pai nutrício do Salvador, lhe trouxera
antes da crucifixão. Lavaram então o ventre do Senhor com
esponjas, sob o pano com que o cobriam, com piedoso recato e que
o tornava invisível aos seus olhos. Coberto ainda com o pano,
levantaram-nO depois, por meio de outros panos, passados sob os
braços e joelhos e assim lhe lavaram também as costas, sem virar
o corpo. Continuavam a lavar, até que a água espremida das
esponjas escorria clara e limpa. Depois o lavaram ainda com água
de mirra e vi que depuseram o santo corpo sobre a pedra,
estendendo-o respeitosamente com as mãos, dandolhe uma posição
reta, pois o meio do corpo e as pernas estavam ainda um pouco
curvas, entesadas, na posição em que se encolhera, morrendo.
Puseram-Lhe então sob os lombos um pano da largura de um côvado
e cerca de três côvados de comprimento, enchendo-lhe o seio de
molhos de ervas, - como vejo às vezes em banquetes celestes, ervas
verdes em pratos de couro, com borda azul, - e de fibras finas
e crespas de plantas parecidas com açafrão e sobre tudo isso
espalharam um pó fino, que Nicodemos trouxera num vaso. Envolveram depois o ventre, com todas essas especiarias, no pano, puxaram
uma parte deste, por entre as pernas, para cima e fixaram-na sobre
o ventre, fazendo entrar a extremidade do pano por baixo do cinto.
Depois de O ter deste modo envolvido, ungiram todas as chagas das
coxas, cobriram-nas de especiarias, puseram molhos de ervas entre
as pernas, até os pés e enrolaram as pernas junto com as ervas,
de baixo para cima.
Então foi João chamar a Santíssima Virgem e as outras santas
mulheres. Maria ajoelhou-se ao lado da cabeça, colocando sob essa
um lenço fino, que recebera de Cláudia Prócula, mulher de Pilatos
e que trouxera ao pescoço, sob o manto. Ela e as outras santas
mulheres encheram então os espaços entre a cabeça e os ombros,
em redor do pescoço, até às faces de Jesus, com molhos de ervas,
com as fibras e o pó fino e feito isso, a Santíssima Virgem atou
tudo com aquele pano, envolvendo cabeça e ombros. Madalena
derramou ainda um frasco inteiro de um líquido aromático na ferida
do lado de Jesus e as santas mulheres puseram-lhe ainda ervas e
especiarias nas mãos e em redor dos pés. Os homens puseram
especiarias nas axilas, na cova estomacal, enchendo todo o espaço
em redor do corpo, cruzaram sobre o seio os santos braços
entorpecidos e envolveram finalmente todo o corpo, junto com as
especiarias, no grande pano branco, até o peito, como se enfaixa
uma criança; depois fizeram entrar sob um dos braços já enfaixados
a extremidade de uma faixa, com a qual enrolaram todo o corpo,
levantando-o e começando pela cabeça. Feito isto, puseram-no
sobre o pano grande, de seis côvados de comprimento, o qual José
de Arimatéia comprara e nele o envolveram. O corpo jazia
obliquamente sobre o pano, do qual dobraram uma extremidade dos
pés até o peito, a outra, de cima, sobre a cabeça e ombros; com
as partes salientes dos lados envolveram o meio do corpo.
Todos se ajoelharam então em redor do corpo, para se despedirem,
chorando e eis que um milagre comovente se lhes deparou ante os
olhos: Toda a figura do santo corpo, com todas as feridas, apareceu na superfície do pano que o cobria, desenhado em cor vermelhoescura, como se Jesus quisesse recompensar-Ihes os cuidados carinhosos e a tristeza, deixando-Ihes o retrato, através de todo o
invólucro. Chorando alto, abraçaram o santo corpo, beijando e
venerando a milagrosa imagem. A admiração de que estavam
possuídos, era tão grande, que de novo abriram o pano e tornou-se
ainda maior, quando acharam todas as faixas e ataduras do corpo
brancas como dantes; só o pano exterior trazia a imagem da figura
do Senhor.
A parte do pano sobre a qual jazia o corpo, mostrava o desenho
do dorso do Senhor e os lados do pano que o cobriam, sobrepostos,
apresentavam a imagem da frente, porque na frente estava o pano
dobrado sobre Ele, com vários cantos. A imagem não dava a impressão de feridas sangrentas, pois todo o corpo estava envolto
espessamente em especiarias, com muitas ataduras; era, porém, uma
ima gem milagrosa, testemunho da divindade criadora, que
permanecera unida ao corpo de Jesus.
Vi também muitos fatos da história posterior dessa santa mortalha, os quais, porém, não sei mais contar na devida ordem. Ela
estava, junto com outros panos, na posse dos amigos de Jesus,
depois da ressurreição. Uma vez vi que foi arrancada a uma pessoa,
que a levava sob o braço. Vi-a duas vezes nas mãos de judeus, mas
também muito tempo em diversos lugares, venerada pelos cristãos.
Uma vez houve uma questão por causa dela e para a terminar, jogaram
a mortalha no fogo, mas foi milagrosamente levada pelos ares e
caiu nas mãos de um cristão.
Foram feitas três cópias da santa imagem, por santos homens, que
puseram outros panos em cima, com fervorosa oração, reproduzindo
assim tanto a figura do dorso, como também a imagem composta da
frente. Essas cópias foram consagradas pelo contato na intenção
solene da Igreja e em todos os tempos têm sido instrumento de
muitos milagres. O original vi uma vez, um pouco estragado, com
alguns rasgões, na Ásia, venerado por cristãos não católicos. Esqueci o nome da cidade, que fica situada num vasto país, vizinho
da terra dos Reis Magos. Vi nessas visões também certas coisas
de Turim e da França, do Papa Clemente I e do imperador Tibério,
que morreu cinco anos depois da morte de Cristo; mas esqueci-as.
4. O enterro
Os homens colocaram o santo corpo sobre a padiola de couro,
cobriram-no com uma coberta parda e enfiaram em cada lado um
varal, o qual me causou uma viva recordação da Arca da Aliança.
Nicodemos e José carregavam as extremidades anteriores dos varais
sobre os ombros; atrás seguravam Abenadar e João. Depois se
seguiam a Santíssima Virgem, sua irmã mais velha, Maria Helí,
Madalena e Maria de Cleofas e após elas, o grupo das mulheres que
dantes estavam um pouco mais afastadas: Verônica, Joana Cuza,
Maria Marcos (mãe de Marcos), Salomé Zebedaei, Maria Salomé,
Salomé de Jerusalém, Susana e Ana, sobrinha de S. José, educada
em Jerusalém. Encerravam o séquito Cássio e os soldados. As outras
mulheres, por exemplo Maroni, de Naim, Dina, a Samaritana e Mara,
a Sufamita, estavam então em Betânia, em casa de Marta e Lázaro.
Dois soldados, com fachos torcidos, iam na frente, pois
precisavam de luz na gruta do sepulcro. Cantando salmos, em tom
triste e baixo, caminharam cerca de sete minutos, através do vale,
em direção ao jardim do sepulcro. Vi na encosta, além do vale,
Tiago o Maior, irmão de João, olhar o cortejo e voltar depois,
para o anunciar aos outros discípulos, refugiados nas cavernas.
O jardim irregular, coberto de relva, que ficava diante do rochedo
da gruta, na extremidade do jardim, era cercado de uma sebe e além
desta tinha na entrada uma cancela, cujas trancas, com gonzos de
ferro, estavam fixas em estacas. Defronte da entrada do jardim,
diante do rochedo do sepulcro, à direita, há várias palmeiras.
A maior parte das outras plantas são arbustos, flores e ervas
aromáticas.
Vi o cortejo parar na entrada do jardim e abrir a cancela, tirando
algumas trancas, das quais se serviram depois, como alavancas,
para fazer rolar para dentro da gruta a grande pedra que devia
fechar o sepulcro. Chegando ao pé do rochedo, abriram a padiola
e tiraram o santo corpo, deitando-o sobre uma tábua estreita,
coberta de um largo pano. Nicodemos e José carregaram as duas
extremidades da tábua, enquanto os outros dois seguravam o pano.
A nova gruta sepulcral fora limpa e perfumada pelos criados de
Nicodemos; era bem graciosa e no alto das paredes interiores tinha
um friso esculpido. A cova mortuária era, no lugar da cabeça, um
pouco mais larga do que no lugar dos pés e havia sido escavada
na forma côncava de um cadáver amortalhado, com pequenas
elevações no lugar da cabeça e dos pés.
As santas mulheres assentaram-se em frente à entrada da gruta.
Os quatro homens desceram com o santo corpo do Senhor à gruta,
onde o depuseram no chão; encheram ainda parte do leito sepulcral
de especi arias, estenderam sobre ele um pano, colocando sobre
este o santo corpo. O pano pendia ainda dos lados do sepulcro.
Manifestando ao santo corpo o seu amor com lágrimas e abraços,
saíram da gruta. Entrou então a Santíssima Virgem. Sentou-se à
cabeceira de Jesus, à beira do sepulcro, que tinha cerca de dois
pés de altura e inclinou-se, chorando, sobre o cadáver do Filho.
Depois de Maria Santíssima sair, entrou Madalena, com ramos e
flores, que colhera no jardim e que espalhou sobre o santo corpo.
Torcendo as mãos e chorando alto, abraçou os pés de Jesus. Como,
porém, os homens lá fora insistissem em fechar o sepulcro, voltou
para junto das mulheres. Os homens dobraram sobre o santo corpo
a parte pendente do pano, cobriram tudo com uma coberta parda e
fecharam as portas. Puseram uma barra transversal e uma
perpendicular; parecia uma cruz.
A grande pedra destinada a fechar as portas do sepulcro e que
ainda estava fora da gruta, tinha uma forma semelhante a uma arca
* ou um monumento sepulcral; um homem podia deitar-se sobre ela.
Era muito pesada e os homens rolaram-na para dentro da gruta, com
auxílio das trancas tiradas da cancela do jardim e encostaram-na
às portas fechadas do sepulcro. A entrada exterior da gruta foi
fechada com uma porta de ramos entrelaçados.
* Provavelmente a narradora se refere às antigas caixas ou arcas,
nas quais os camponeses de sua terra guardam a roupa. O fundo é
menor do que a tampa e deste modo tomam a forma de uma tumba; por
isso ela os Compara a um monumento sepulcral. Ela mesma possuía
uma tal arca, que chamava o seu baú. Desse modo descreve várias
vezes aquela pedra, mas, mesmo assim, não temos ainda uma
idéia clara da respectiva forma.
Todos os trabalhos dentro da gruta foram feitos à luz de
fachos, porque dentro estava muito escuro. Durante o enterro do
Senhor, vi vários homens na proximidade do jardim e do Monte
Calvário, que, tímidos e tristes, andavam de um lado para outro;
creio que eram discípulos, que receberam de Abenadar notícias e,
saindo das cavernas, aproximaram-se através do vale e àquela hora
estavam voltando.
5. A volta para casa, depois do enterro; o sábado; prisão de José
de Arimatéia
Já era a hora em que começava o sábado. Nicodemos e José voltaram à
cidade, passando por uma pequena porta que havia no muro da cidade, perto do jardim e que, se bem me lembro, Ihes era concedida
por favor particular. Disseram à Santíssima Virgem, a João,
Madalena e algumas mulheres que ainda queriam ir ao Monte Cal
vário, para rezar e bus car algumas coisas ali deixadas, que essa
porta, como também o portão para o Cenáculo, Ihes seriam abertos,
se batessem. Maria Helí, a irmã já idosa da Santíssima Virgem,
foi conduzi da à cidade por Maria Marcos e outras mulheres. Os
criados de Nicodemos e José voltaram ao Monte Calvário, para
buscar os utensílios que lá tinham deixado.
Os soldados reuniram-se àqueles que ocupavam a porta que
dava para o Monte Cal vário; Cássio seguiu para o palácio de
Pilatos, levando a lança e relatou-lhe tudo que acontecera,
prometendo também lhe dar notícias exatas de tudo quanto ainda
sucedesse, se o mandasse acompanhar a guarda do sepulcro, a qual
os judeus, segundo fora informado, viriam requerer-lhe. Pilatos
escutou todas as informações com um ocul to terror, tratou-o,
porém, como fanático e com nojo e medo supersticio so da lança
que Cássio trouxera consigo, mandou-lhe que a levasse para fora
da sala.
Quando a Santíssima Virgem e os amigos voltavam com os
utensílios do Monte Cal vário, onde ainda tinham rezado e
chorado, viram um des tacamento de soldados que Ihes vinha ao
encontro; retiraram-se então para os dois lados do caminho, para
deixar passar a tropa. Esta se dirigiu ao Monte Cal vário,
provavelmente para tirar, ainda antes do sábado, as cruzes e
enterrá-Ias. Depois de terem passado, as santas mulheres continuaram o caminho em direção à pequena porta da cidade.
José e Nicodemos encontraram-se na cidade com Pedro, Tiago
o Maior e Tiago o Menor. Todos estavam chorando. Pedro
especialmente estava muito triste, preso de violenta dor;
abraçou-os soluçando, acu sou-se a si mesmo, lastimando não ter
estado presente à morte do Se nhor e agradeceu-Ihes terem dado
sepultura ao corpo sagrado. Todos estavam desvairados de dor.
Pediram ainda para serem recebidos no Cenáculo, quando batessem
e despediram-se, para procurar ainda ou tros discípulos
dispersos.
Vi mais tarde a Santíssima Virgem e as amigas baterem à porta
do Cenáculo e serem recebidas, como também Abenadar e, pouco a
pouco, os demais Apóstolos e vários discípulos. As santas
mulheres retiraram-se para a parte onde habitava a Santíssima
Virgem; tomaram um pouco de alimento e passaram ainda alguns
minutos, recordando com tristeza e dor tudo o que se tinha
passado. Os homens revestiram-se de outras vestes e vi-os
começarem o sábado de pé, sob um candeeiro. Depois comeram ainda
carne de cordeiros, em diversas mesas, no Cenáculo, mas sem
cerimônias; pois não era o cordeiro pascal, que já tinham comido na véspera. Reinava tristeza e desânimo geral. Também as santas
mulheres rezavam com Maria, à luz de um candeeiro. Mais tarde,
quando já escurecera totalmente, foram ainda recebidos Lázaro,
Marta, Maroni, a viúva de Naim, Dina Sumarites e Maria Sufanites,
que depois de começar o sábado, vieram da Betânia e a dor
renovou-se pela narração de tudo que se passara.
Mais tarde saíram José de Arimatéia e alguns discípulos e diversas
mulheres do Cenáculo, voltando para casa; iam tímidos e tristes
pelas ruas de Sião, quando de repente um grupo de homens armados
saiu de uma emboscada, arremessando-se sobre eles e prendendo
José de Arimatéia, enquanto os outros fugiram com gritos de
terror. Vi encarcerarem o bom José numa torre do muro da cidade,
não muito longe do tribunal. Caifás mandara soldados pagãos
executarem essa prisão, porque não eram obrigados a guardar o
sábado. Os inimigos tinham a intenção de deixar José morrer de
fome e não falar nesse desaparecimento.
6. A guarda no túmulo de Jesus
Na noite de sexta-feira para sábado vi Caifás e os príncipes dos
judeus reunirem-se em conselho, para decidir o que deviam fazer,
diante dos acontecimentos milagrosos e da excitação do povo.
Depois foram ainda durante a noite, procurar Pilatos e
disseram-lhe que se tinham lembrado de que aquele impostor tinha
dito, quando ainda vivia, que no terceiro dia após a morte
ressuscitaria; pediam-lhe que por isso mandasse guardar o
sepulcro até o terceiro dia, para que os discípulos de Jesus não
lhe roubassem o corpo, divulgando em seguida que tinha ressuscitado dos mortos, pois dessa forma seria a segunda impostura pior
do que a primeira.
Pilatos, porém, não quis intrometer-se mais nessa questão e
disseIhes: "Tendes uma guarda; ide guardar o túmulo como
entenderdes." Mandou, porém, Cássio acompanhar a guarda e
observar e relatar-lhe depois tudo. Vi os doze fariseus saírem
da cidade, antes do pôr do sol. Os doze soldados que os
acompanhavam, não estavam vestidos à forma romana: eram soldados
do Templo e pareciam-me uma espécie de guarda de corpo. Levaram
braseiros, fixos sobre hastes, para poder ver tudo durante a noite
e para ter luz na escuridão do sepulcro.
Ao chegar, certificaram-se da presença do corpo, amarraram uma
corda à porta do túmulo, dessa corda fizeram passar uma segunda
à pedra, selando essas cordas com um selo semilunar. Depois
voltaram à cidade e os guardas sentaram-se defronte da porta
exterior do sepulcro. Ficavam alternadamente cinco ou seis
homens, indo de vez em quando alguns à cidade, para buscar
víveres. Cássio, porém, não deixou o posto; permanecia em pé ou
sentado, no fosso em frente à entrada da gruta, de modo que podia
ver o lado do túmulo fechado, onde repousavam os pés do Senhor.
Recebeu grandes graças interiores e a inteligência intuitiva de
muitos mistérios; como não estivesse acostumado a tais estados
sobrenaturais, ficava, a maior parte do tempo dessa iluminação
espiritual, como que embriagado, inconsciente das coisas
exteriores. Foi nesse tempo que se converteu inteiramente,
tornando-se novo homem; passou o dia em atos de arrependimento,
ação de graças e adoração.
7. Os amigos de Jesus no Sábado santo
Vi à noite, como já mencionei, os homens reunidos no Cenáculo,
cerca de vinte, de vestes longas e brancas e cingidos, celebrando
o sábado, à luz de um candeeiro e depois de comer, separaram-se
para dormir. Diversos foram para casa. Também hoje os vi reunidos
no Cenáculo, na maior parte do tempo em silêncio, rezando e lendo
altemadamente e de vez em quando deixando entrar alguns que
chegavam.
No local onde ficava a Santíssima Virgem, havia uma grande sala
e nessa alguns recantos separados por biombos ou tapetes, para
servirem de quartos de dormir. Depois que as santas mulheres,
voltando do sepulcro, tinham posto todos os utensílios nos
respectivos lugares, acendeu uma delas um candeeiro, que pendia
no centro da sala. Reuniram-se sob este candeeiro, em roda da
Santíssima Virgem, rezando alternadamente, com grande devoção e
tristeza. Depois tomaram algum alimento. Entraram na sala Marta,
Maroni, Dina e Mara, que depois de começar o sábado, tinham vindo
de Betânia, com Lázaro, que se juntou aos homens reunidos no
Cenáculo. Contaram chorando aos recém-chegados a morte e a
sepultura do Senhor e como já era tarde, alguns dos homens, entre
os quais José de Arimatéia, mandaram chamar as mulheres que
queriam voltar para suas casas na cidade e despediram-se. Ao
voltar este grupo para casa, José foi preso, perto do tribunal
de Caifás, como já contei e encarcerado numa torre.
As mulheres que ficaram no Cenáculo, separaram-se então,
indo para as mencionadas celas de dormir; puseram panos compridos
sobre a cabeça e por algum tempo ali permaneceram sentadas no
chão, em triste silêncio, encostadas às cobertas, que estavam
enroladas ao pé da parede. Depois se levantaram, desenrolaram as
cobertas, tiraram as san dálias, cintas e parte do vestuário,
velaram-se da cabeça aos pés, como costumam fazer para dormir e
deitaram-se para um curto descanso, sobre as cobertas estendidas;
pois logo depois de meia noite se levantaram de novo, arrumaram
a roupa, enrolaram os leitos e reuniram-se sob o candeeiro, em
roda da Santíssima Virgem, para rezarem alternadamente.
Tenho visto muitas vezes filhos fiéis de Deus e homens santos,
desde que se reza neste mundo, observarem esse costume de orações
notur nas, seja inspirados por uma graça pessoal, seja incitados
por preceitos divinos e eclesiásticos.
Depois da Mãe de Jesus e as amigas terem cumprido esse dever
de oração noturna, apesar dos grandes sofrimentos e depois de
terem tam bém os homens rezado no Cenáculo, à luz do candeeiro,
bateu João, com alguns outros discípulos, à porta da sala das
mulheres, que se envolveram imediatamente nos mantos e os
seguiram, junto com a Santíssima Virgem, ao Templo.
Vi a Santíssima Virgem, as santas mulheres, João e outros
discípulos chegarem ao Templo, quase ao mesmo tempo em que o
sepulcro era selado: cerca de três horas da manhã. Era costume
de muitos judeus, de madrugada, depois de ter comido o cordeiro
pascal, irem ao Templo, que nessa ocasião já era aberto à meia
noite, porque começavam os sacrifícios de manhã muito cedo.
Naquele dia, porém, estava tudo em desordem, pela interrupção da
festa e pela profanação do Templo. Parecia-me que a Santíssima
Virgem, com as amigas, queria somente se despedir do Tem plo, no
qual tinha sido educada, adorando o Santíssimo, até trazer
no seio o próprio Santíssimo, que agora fora tão cruelmente
imolado, como verdadeiro Cordeiro pascal. O Templo estava
aberto, segundo o hábito desse dia e iluminado por lampiões e até
o átrio dos sacerdotes era acessível ao povo, fora os guardas e
empregados, como de costume nessa manhã. Mas, lá não havia nenhum
fiel. Tudo estava ainda em desordem e devastado pelas terríveis
destruições do dia precedente. O Templo estava profanado pela
aparição de mortos e eu não podia deixar de perguntar a mim mesma:
"Como poderão reparar tudo isto?”
Os filhos de Simeão e os sobrinhos de José de Arimatéia, que
estavam muito tristes com a notícia da prisão do tio,
encontraram-se com a Santíssima Virgem e os companheiros e
conduziram-nos por todas as partes do Templo, do qual eram
guardas. Viram silenciosos e assustados toda a destruição,
adorando o testemunho divino; só de vez em quando os guias
descreviam acontecimentos do dia anterior.
Vi em muitos lugares prejuízos causados pelo terremoto da
véspera, que ainda não haviam sido consertados. No ponto onde se
juntam o átrio e o Santo do Templo, havia tão larga fenda no muro,
que um homem podia passar através e havia perigo dos muros caírem.
A verga por cima da cortina, diante do Santo, abaixara, as colunas
que a suportavam, cederam para os lados e a cortina pendia de ambos
os lados, rasgada de cima a baixo, em duas partes. Pela grossa
pedra caída do muro norte do Templo, perto da cela de oração de
Simeão, também destruída, formarase tão grande abertura, no lugar
onde aparecera Zacarias, que as santas mulheres puderam passar
sem dificuldade e do outro lado, perto da cátedra em que o Menino
Jesus ensinara, ver, através da cortina rasgada, o Santo, o que
em outros tempos era proibido. Também se fenderam aqui e acolá
os muros, afundaram-se partes do solo, umbrais e colunas saíram
do lugar.
A SS. Virgem visitou, com os amigos, todos os lugares que lhe eram
sagrados, pela lembrança de Jesus. Prostrando-se por terra,
beijava os santos lugares, chorando e contava as suas
reminiscências, em poucas palavras comovedoras. Também as
companheiras faziam o mesmo.
Os judeus têm grande veneração por todos os lugares onde aconteceu
alguma coisa que Ihes parece sobrenatural; tocam e beijam esses
lugares e deitam-se por terra, tocando-a com o rosto. Nunca achei
nisso coi~a de admirar. Se sabemos, cremos e sentimos que o Deus
de Abraão, Isaac e Jacó é Deus vivo e mora no meio do seu povo,
no Templo, na sua casa em Jerusalém, devíamos admirar-nos antes,
se não o fizessem. Quem crê em Deus vivo, Pai e Redentor e
Santificador dos homens, seus filhos, não se admira que Ele esteja
com amor vivo entre os vivos e que estes lhe prestem amor, honra
e adoração, bem como a tudo quanto se lhe refere, mais do que aos
pais terrestres, amigos, mestres, superiores e príncipes. Os
judeus sentiam no Templo e nos lugares sagrados o que sentimos
diante do SS. Sacramento. Mas também entre os judeus havia cegos
e "iluminados", como há também entre nós, que não adoram o Deus
vivo e realmente presente, mas se entregam ao culto supersticioso
dos ídolos deste mundo. Não se lembram das palavras de Jesus:
"Quem me negar diante dos homens, também o negarei diante de meu
Pai Celestia!." Tais homens, que servem ao espírito e à mentira
do mundo, em pensamentos, palavras e obras, sem interrupção, mas
rejeitam todo o culto externo de Deus, dizem às vezes, se por
ventura ainda não rejeita ram o próprio Deus, como demasiadamente
exterior: "Adoramos a Deus em espírito e verdade"; mas não sabem
o que isso significa: no Espírito Santo e no Filho, que nasceu
de Maria Virgem, que deu testemunho da verdade e viveu entre nós,
que morreu por nós neste mundo e quer ficar presente na sua
Igreja, no SS. Sacramento, até o fim dos séculos.
A SS. Virgem visitou assim muitos lugares do Templo,
venerando-os religiosamente. Mostrou-Ihes onde entrara a
primeira vez no Templo, quando menina e onde fora educada, na
parte sul do edifício, até o casamento. Mostrou-Ihes onde
desposara São José, onde apresentara Jesus, onde Simeão e Ana
proferiram a profecia; nesse lugar chorou amargamente, pois a
profecia estava cumprida; a espada transpassara-lhe o coração.
Mostrou-Ihes onde achara o Menino Jesus ensinando no Templo e
beijou respeitosamente a cátedra. Visitaram também a caixa
de esmolas, onde a viúva depositara a esmola e o lugar onde o
Senhor perdoara à adúltera. Depois de ter deste modo venerado
todos os luga res santificados pela presença de Jesus, com
recordações, beijos, lágrimas e orações, voltaram a Sião.
De volta, ao amanhecer, no Cenáculo de Sião, Maria e as
compa nheiras se dirigiram à sua habitação separada, situada à
direita do pátio da casa. Na entrada se separaram delas João e
outros discípu los e foram juntar-se aos homens que, em número
de cerca de vinte, permaneciam reunidos, de luto, no Cenáculo,
durante todo o sábado, rezando alternadamente, sob a luz do
candeeiro. Vi-os também de vez em quando receberem timidamente
alguns recém-chegados, conversando com eles e chorando. Todos
mostravam íntimo respeito e certa vergonha diante de João, que
ficara com Jesus até à morte. João, porém, era benévolo e afetuoso
para com todos e simples como uma criança, tratava a todos com
humildade. Vi-os também uma vez tomar uma refeição. Fora disso
estavam silenciosos e a casa permanecia fechada. Também não
podiam ser inquietados ali, pois a casa pertencia a Nicodemos e
haviam-na alugado para a refeição pascal.
Vi depois as santas mulheres reunidas na sala escura,
iluminada apenas pela luz do candeeiro, pois as portas e janelas
estavam fecha das. Ora se juntavam em roda da SS. Virgem, para
a oração, ora se retiravam para suas celas separadas, cobrindo
a cabeça com o véu de luto e sentavam-se sobre caixas chatas,
cobertas de cinza, em sinal de luto, ou rezavam, com o rosto
voltado para a parede. Sempre que se reuniam para rezar, deixavam
o véu de luto nas respectivas celas. Vi também as mais fracas
tomarem algum alimento, as outras, porém, jejuavam.
Contemplei-as diversas vezes e sempre as vi rezando ou de luto,
do modo por que descrevi. Unindo minha contemplação aos
pensamentos da SS. Virgem, que estava mergulhada na recordação
de Nosso Salvador, vi várias vezes o santo sepulcro e cerca de
sete guardas, que permaneciam em frente à entrada, em pé ou
sentados. Perto da porta da gruta, no fosso que ali havia, estava
Cássio em silêncio e profunda meditação. Vi as portas do sepulcro
fechadas e a pedra encostada. Através das portas, porém, vi o
corpo do Senhor, jazendo ainda como fora depositado, cercado de
luz, entre dois Anjos em adoração.
10
A Gloriosa Ressurreição de Jesus
1.
2.
3.
4.
5.
6.
7.
8.
As vésperas da ressurreição
José de Arimatéia é posto em liberdade
A noite antes da ressurreição de Jesus
A Ressurreição do Senhor
As santas mulheres no sepulcro. Aparições de Jesus
Relatório da guarda do sepulcro
Ameaças dos inimigos
Ágape após a ressurreição de Jesus
A Gloriosa Ressurreição de Jesus
1. As vésperas da ressurreição
Depois de terminado o sábado, entrou João na sala das piedosas
mulheres, chorou com elas e consolou-as. Quando, após algum tempo
saiu, entraram Pedro e Tiago o Maior para o mesmo fim,
demorando-se também pouco tempo apenas. Retiraram-se então as
santas mulheres mais uma vez para a cela, chorando ainda por algum
tempo, sentadas sobre a cinza e cobertas do véu de luto.
Enquanto a Santíssima Virgem estava sentada, em ardente oração,
cheia de saudade de Jesus, vi acercar-se-lhe um Anjo, que lhe
disse que saísse pela portinha de Nicodemos, pois o Senhor se
aproximava. Encheu-se então o coração de Maria de profunda
alegria; envolvendo-se no manto, ela deixou as santas mulheres,
sem dizer onde ia. Vi-a dirigirse apressada àquela portinha do
muro da cidade pela qual tinham entrado, ao voltar do Sepulcro.
Podiam ser cerca de 9 horas da noite, quando vi a Santíssima Virgem
parar de repente o passo apressado, num lugar deserto, perto dessa
portinha; olhou com radiante amor para o muro da cidade. A alma
de Jesus veio voando, resplandecente, sem sinais das chagas, ao
encontro de Maria, seguida de um grande número de almas dos
patriarcas. Virando-se para os patriarcas e indicando Maria,
disse estas palavras: "Maria, minha Mãe" e foi como se a
abraçasse; depois desapareceu. Maria, porém, caiu de joelhos e
beijou a terra onde Ele pisara; os sinais dos joelhos e pés da
Virgem ficaram impressos na pedra. Voltou então, cheia de
indizível consolação, para junto das santas mulheres, que
encontrou reunidas em redor de uma mesa, preparando ungüentos e
especiarias. Não lhes disse o que lhe sucedera; mas estava
confortada e consolou a todos e confirmou-as na fé.
Quando Maria voltou, vi as santas mulheres em redor de uma longa
mesa, de pés cruzados, como um aparador e cuja toalha pendia até
o chão. Vi algumas escolherem, misturarem e arrumarem
variadíssimos molhos de ervas; tinham também alguns frascos com
ungüento e outros com água de nardo, como também várias flores
vivas, entre as quais me lembro de ter visto uma íris listrada
ou um lírio; embrulharam tudo em panos. Durante a ausência de
Maria, tinham ido à cidade Madalena, Maria Cleofa, Salomé, Joana
Cuza e Maria Salomé, para comprar tudo. Queriam ir na madrugada
do dia seguinte ao sepulcro, para derramar e espalhar tudo sobre
o corpo amortalhado do Senhor. Vi os discípulos buscarem uma
parte das especiarias em casa daquela merceeira e entregarem-nas
à porta da casa das santas mulheres, sem entrar lá.
2. José de Arimatéia é posto em liberdade
Pouco tempo depois do encontro da Santíssima Virgem com a alma
do Senhor e da sua volta para junto das mulheres santas, vi José
de Arimatéia rezando no cárcere. De súbito vi o cárcere cheio de
luz e ouvi chamar-lhe o nome; vi o teto em parte como que levantado
do muro e uma figura resplandecente, que desceu um pano, que me
fez lembrar do pano em que José envolvera o corpo de Jesus e a
figura mandou-o subir pelo pano. José segurou então o pano e
apoiando os pés em algumas pedras salientes do muro, subiu até
duas vezes a altura de um homem, à abertura que, depois de o ter
deixado passar, tomou a fechar-se. Quando José chegou em cima,
desapareceu a figura. Eu mesmo não sei se foi o Senhor ou um Anjo
que o libertou.
Vi-o depois correr sobre o muro da cidade, sem ser notado, até
perto do Cenáculo, que está situado perto do muro sul de Sião.
Ali desceu e bateu na porta do Cenáculo. Os discípulos ali
reunidos tinham fechado as portas e já se entristeciam muito pelo
desaparecimento de José; ao receberem a notícia, pensaram
primeiro tivesse sido lançado numa fossa. Quando, porém, abriram
e o viram entrar, reinou a mesma alegria que mais tarde, quando
Pedro, libertado do cárcere, reapareceu entre eles. José contou
a aparição que tivera; alegraram-se muito e ficaram consolados;
deram-lhe de comer e agradeceram a Deus. José porém, fugiu na
mesma noite de Jerusalém, para a cidade natal, Arimatéia; mas
recebendo depois notícia de que não havia mais perigo, voltou para
Jerusalém.
Pelo fim do Sábado vi também Caifás e outros sacerdotes em casa
de Nicodemos, conversando com este e interrogando-o
hipócritamente a respeito de muitas coisas; não sei mais do que
se tratava. Ele, porém, ficou decidido e fiel na defesa do Senhor
e os inimigos saíram então.
3. A noite antes da ressurreição de Jesus
Pouco depois vi o sepulcro do Senhor. Tudo ali estava quieto e
sossegado; cerca de sete guardas estavam sentados ou em pé,
defronte e em redor do rochedo. Cássio raras vezes se afastara,
durante todo o dia e por poucos instantes; lá estava de novo
mergulhado em meditação sobre muitas coisas e em expectativa;
pois recebera muitas graças e iluminações e estava interiormente
esclarecido e comovido.
Era noite e os braseiros diante da gruta sepulcral projetavam uma
viva luz em redor; então me aproximei, na minha contemplação, do
corpo sagrado, para o adorar: jazia ainda inalterado, envolto nos
panos, rode ado de luz, entre dois Anjos, que vi continuamente,
desde que foi levado à sepultura, do lado da cabeça e dos pés,
em silenciosa adoração. Esses Anjos eram como figuras sacerdotais
e lembravam-me vivamente os Querubins da Arca da Aliança, pela
posição, com os braços cruzados sobre o peito; somente não lhes
vi asas. Em geral a sepultura e o túmulo do Senhor me lembravam
por diversas vezes extraordinariamente a Arca da Aliança, em
várias épocas da história. Talvez que a luz e a prece dos Anjos
se tenham tomado até certo ponto visíveis a Cássio e por isso
ficasse em contínua contemplação diante do sepulcro fechado,
como alguém que adora o SS. Sacramento.
Durante a minha adoração, tive a impressão de que a alma do Senhor,
com as almas remidas dos patriarcas, entrava pelo rochedo na
gruta, fazendo-os conhecer todo o martírio do seu santo corpo.
Nesse mesmo momento me parecia que todos os invólucros eram
tirados; vi o corpo sagrado cheio de feridas e era como se a
divindade, que lhe permanecia unida, o mostrasse às almas de
maneira misteriosa, em todos os maus tratos e cruel martírio que
padecera. Parecia-me inteiramente transparente e visível todo o
seu interior. Podiam-se-Ihe conhecer as feridas, dores e
sofrimentos, nas partes mais íntimas. As almas estavam cheias de
indizível respeito e pareciam estremecer e chorar de compaixão.
Entrei depois numa contemplação, cujo mistério, em toda a
extensão, não posso contar claramente. Vi a alma de Jesus
entrar-lhe no corpo sagrado, sem lhe restituir a vida pela
perfeita união e com ele sair do sepulcro; pareceu-me que os dois
Anjos, que adoravam nas duas extremidades do túmulo, levaram o
santo corpo martirizado para cima, nu, desfigurado e cheio de
feridas, ereto, mas com os membros na posição em que estavam no
túmulo. Vi-os subir ao céu, passando pelo rochedo que tremeu;
tive uma visão de Jesus, apresentando o corpo martirizado ao
trono do Pai Celestial, no meio de inúmeros coros de Anjos em adoração, do mesmo modo que as almas de muitos profetas tomaram os
respectivos corpos, depois da morte de Jesus, conduzindo-os ao
Templo, sem que eles vivessem verdadeiramente e tivessem de
morrer de novo; pois foram depois depostos pelas almas sem
separação violenta. Nessa contemplação não vi as almas dos
patriarcas acompanharem o corpo do Senhor. Também agora não me
lembro mais onde ficaram, até que as vi novamente reunidas à alma
do Senhor.
Notei nessa contemplação um tremor do rochedo do sepulcro; quatro dos guardas tinham ido à cidade buscar qualquer coisa, os três
que estavam presentes, caíram como que desmaiados. Atribuíram-no
a um terremoto, não percebendo a verdadeira causa. Cássio, porém,
estava muito comovido e abalado; pois viu algo do que se passou,
sem ter entretanto uma clara compreensão. Mas permaneceu no
posto, esperando com profundo respeito o que ia acontecer. No
entanto voltaram os soldados ausentes.
Minha contemplação tomou a dirigir-se depois às santas mulheres.
Depois de terem terminado a preparação das especiarias, que foram
envolvidas em panos e arrumadas para se levarem comodamente,
retiraram-se novamente para as celas; não se deitaram, porém,
para dormir, encostaram-se apenas nos leitos enrolados, para
descansar, porque queriam ir ao sepulcro de Jesus antes de
amanhecer. Tinham manifestado várias vezes receios a respeito
dessa intenção; pois tinham medo de que os inimigos de Jesus Ihes
pudessem fazer mal, se saíssem. Mas a Santíssima Virgem,
reanimada desde a aparição de Jesus, consolou-as e disse-Ihes que
descansassem um pouco e depois fossem sossegadamente ao sepulcro,
que não Ihes sucederia mal algum. Assim foram descansar um pouco.
Eram, porém, cerca de onze horas quando a Santíssima Virgem,
impelida pelo amor e pela saudade, não achou mais sossego;
levantouse, envolveu-se inteiramente no manto cinzento e saiu
sozinha de casa. Pensei ainda: "Ah! Como podem deixar sair sozinha
nestas condições a santa Mãe, tão angustiada e abatida?" Vi-a,
porém, ir cheia de tristeza até à casa de Caifás e dali até ao
palácio de Pilatos, o que significava uma longa volta para dentro
da cidade. Assim percorreu sozinha toda a via sacra de Jesus,
pelas ruas desertas, demorando-se nos lugares onde o Senhor
sofrera qualquer dor ou mau trato. Era como se procurasse algo
que tivesse perdido. Muitas vezes se lançava por terra, apalpava
com as mãos as pedras em redor, tocando depois com a mão a boca,
como se tivesse tocado numa coisa sagrada, o sangue do Senhor e
o beijasse respeitosamente. Estava, porém, num estado
sobrenatural; pelo amor via tudo em redor de si luminoso e claro,
estava toda absorta em amor e adoração. Acompanhei-a pelo caminho
e senti e fiz, na medida de minhas poucas forças, tudo quanto ela
sentiu e fez.
Ela seguiu o caminho da cruz até o Monte Calvário. Quando se
aproximou deste, parou de repente e vi Jesus, com o santo corpo
torturado, aparecer diante da Santíssima Virgem; um Anjo ia à
frente, os dois Anjos que o adoravam no sepulcro, iam ao lado,
seguindo-se um grande número de almas remidas. O corpo não se
movia, era como um cadáver
ambulante, rodeado de luz; mas ouvi sair dele uma voz, que
anunciou à Mãe Santíssima o que Ele tinha feito no limbo e que
em breve ressuscitaria, com corpo vivo e glorificado e viria ao
seu encontro; que o esperasse perto da pedra em que caíra, no Monte
Calvário. Vi depois essa aparição se dirigir à cidade e a
Santíssima Virgem, envolta no manto, prostrando-se de joelhos,
rezar no local onde o Senhor a mandara esperar. Já devia ser mais
de meia noite, pois Maria gastara muito tempo em seguir a via
sacra.
Vi, porém, o cortejo do Senhor percorrer também todo o caminho
da cruz. Todo o suplício e os padecimentos de Jesus foram
mostrados às almas e os Anjos colheram, de maneira misteriosa,
toda a substância sagrada que lhe fora arrancada, durante a
Paixão. Vi que lhes foi mostrado também a crucifixão, a elevação
da cruz, o golpe da lança no lado, a descida da cruz e a preparação
para a sepultura; a Santíssima Virgem contemplou tudo em espírito
e adorou-O com amor.
Vi então, na contemplação, o corpo do Senhor jazendo novamente
no túmulo e que os Anjos lhe tinham restituído, de maneira
misteriosa, tudo quanto lhe fora tirado, durante o suplício. Vi-O
de novo envolto na mortalha, rodeado de esplendor e os dois Anjos
em adoração, nas extremidades do túmulo, do lado da cabeça e dos
pés. Não posso explicar como O vi; são tantas e tão variadas
coisas, tão inefáveis, que a nossa inteligência não as pode
compreender segundo as leis comuns da natureza. Quando as vejo,
é tudo tão claro e compreensível, mas depois se me turva a mente,
de modo que não o posso claramente descrever.
Quando o céu clareou-se a leste de um alvo rasto luminoso, vi
Madalena, Maria Cleofas, Joana Cuza e Salomé, envoltas nos
mantos, saírem da habitação, no Cenáculo. Levavam sob os mantos
as especiarias, embrulhadas nos panos e uma delas levava também
uma lanterna acesa. As especiarias constavam de flores vivas,
para serem espalha das sobre o corpo e de suco extraído de
plantas, essências e óleos, que queriam derramar sobre ele. Vi
as santas mulheres encaminharem-se, com muito receio, em direção
à portinha de Nicodemos.
4. A Ressurreição do Senhor
Vi a alma de Jesus aparecer, com grande esplendor, entre dois
Anjos de figura guerreira, (os Anjos que eu via dantes tinham
figura sacerdotal), rodeado de muitas outras figuras luminosas;
passando por cima através do rochedo do sepulcro, desceu sobre
o santo corpo, como se se inclinasse para ele e com ele se
fundisse. Então vi os membros se lhe moverem nos invólucros e o
corpo vivo, e resplandecente do Senhor, unido à alma e à
divindade, sair, ao lado das mortalhas, como se saísse da chaga
do lado. Esta visão me recordou Eva, que saiu do lado de Adão.
Tudo estava cheio de luz e esplendor.
Nesse momento vi, na minha contemplação, a aparição de uma forma
monstruosa, que dos infernos subiu, por baixo do túmulo. Levantou
raivosamente a cauda de serpente e a cabeça de dragão contra o
Senhor. Além disso, como ainda me recordo, tinha uma cabeça
humana. Vi, porém, na mão do Redentor ressuscitado um belo bastão
branco e sobre este uma bandeira desfraldada. O Senhor pisou a
cabeça do dragão e bateu três vezes com o bastão na cauda da
serpente; vi-a encolher-se cada vez mais e afinal desaparecer;
a cabeça do dragão foi pisada e esmagada na terra e só a cabeça
humana lhe ficou ainda. Tenho tido essa visão já por diversas
vezes na contemplação da ressurreição e vi também uma serpente
semelhante, espreitando à hora da conceição de Nosso Senhor.
A forma dessa serpente lembra-me sempre a serpente do paraíso,
mas, era ainda mais hedionda. Penso que essa visão se referia à
promissão: "A semente da mulher esmagará a cabeça da serpente."
Parecia-me um símbolo da vitória sobre a morte; pois enquanto
Jesus esmagou a cabeça do dragão, não vi mais o sepulcro, mas vi
o Senhor passar resplandecente através do rochedo. Tremeu a
terra, um Anjo em figura de guerreiro desceu do céu ao sepulcro,
como um relâmpago, levantou a pedra para o lado direito e
sentou-se-Ihe em cima. Foi talo tremor de terra, que as lanternas
oscilavam e as chamas saiam por todos os lados. A vista disso,
caíram por terra os guardas, como que atordoados e jaziam como
mortos, com os membros tortos. Cássio viu tudo cheio de luz e
esplendor; mas recobrando ânimo, aproximou-se resolutamente do
túmulo, abriu um pouco as portas, examinou as mortalhas vazias
e afastou-se, para ir relatar a Pilatos o que acontecera. Mas
ainda se demorou um pouco na proximidade, esperando que sucedesse
mais alguma coisa; pois vira só o terremoto, o Anjo que num
instante levantara a pedra e se lhe sentara em cima, o túmulo
vazio, mas não vira Jesus. Como também os guardas, foi Cássio um
dos primeiros que deram notícia do sucedido aos Apóstolos.
No mesmo momento em que o Anjo desceu ao sepulcro e a terra tremeu,
vi o Senhor aparecendo à Mãe SS., perto do Monte Calvário. Estava
maravilhosamente belo, sério e luminoso. A veste, que
lhe envolvia o corpo como um largo manto, flutuava no ar atrás
dEle quando caminhava e tinha reflexos de cor branca azulada,
como fu maça vista através da luz do sol. As chagas estavam largas
e brilhavam; nas chagas das mãos se podia introduzir bem um dedo.
Os lábios das chagas tinham a forma de três triângulos
eqüiláteros, co incidindo no centro de um circulo. Do meio das
mãos saiam raios luminosos para os dedos. As almas dos patriarcas
inclinaram-se di ante da Mãe de Jesus, à qual o Senhor disse, em
poucas palavras, que me fugiram da memória, que tomaria a vê-Lo.
Mostrou-lhe as chagas e quando ela se prostrou por terra, para
beijar-lhe os pés, tomou-a pela mão e levantando-a, desapareceu.
Vi ao longe o brilhar das lanternas ao lado do sepulcro e a leste
de Jerusalém uma luz branca no horizonte - o amanhecer do dia.
5. As santas mulheres no sepulcro. Aparições de Jesus
As santas mulheres estavam perto da pequena porta de
Nicodemos, quando o Senhor ressuscitou. Nada notaram dos
prodígios que nesse momento se deram, nem sabiam que fora posta
uma guarda à porta do túmulo; pois na véspera, como era sábado,
ninguém fora ao sepulcro e elas tinham ficado de luto, com as
portas fechadas. Inquietas, diziam umas às outras: "Quem nos
tirará a pedra da porta?" Pois no desejo de prestar homenagem ao
corpo do Senhor, tinham se esquecido inteiramente da pedra.
Tinham a intenção de derramar água de nardo e ungüentos sobre o
corpo do Senhor e cobrí-Io de flores e ervas aromáticas, pois não
tinham contribuído para as especiarias usadas no embalsamamento, de cujas despesas se encarregara Nicodemos e por
isso queriam agora oferecer ao corpo do Senhor e Mestre o que de
mais precioso podiam encontrar. Salomé comprara a maior parte;
não era a mãe de João, mas outra Salomé, uma senhora rica de
Jerusalém, aparentada com S. José. Resolveram que iriam pôr as
especiarias sobre a pedra, diante do túmulo e esperar até que
porventura viesse um dos discípulos, que Ihes abrisse as portas,
no entanto continuavam caminhando para o jardim do sepulcro.
Vi os guardas deitados em redor, como mortos e com os
membros tortos. A pedra fora colocada do lado direito da gruta,
de modo que se podia abrir a porta que, porém, ainda estava
encostada. Vi através da porta, no leito sepulcral, os panos em
que o corpo de Jesus tinha sido envolto. O pano largo, que cobria
todo o corpo, estava inalterado, ape nas vazio e encolhido,
continha somente as ervas aromáticas. A faixa com que fora
enrolado, estava ao longo do lado anterior do leito Sepulcral mas
não fora desenrolada. O pano com que Maria lhe cobrira a cabeça,
encontrava-se na cabeceira, à direita, na mesma posição em
que lhe envolvera a cabeça, apenas o véu do rosto fora aberto.
Vi então as mulheres se aproximarem do jardim. Vendo as lanternas
da guarda e os soldados deitados em redor, assustaram-se e
deixando de lado o jardim, seguiram alguns passos em direção ao
Gólgota. Madalena, porém, esqueceu-se de todo o perigo e entrou
apressada no jardim; Salomé seguiu-a a alguma distância. Eram as
duas principalmen te que tinham comprado os ungüentos. As duas
outras mulheres eram mais tímidas e ficaram fora do jardim.
Vi Madalena, deparando com os guardas, correr assustada para
trás, ao lado de Salomé; depois avançaram juntas e passando
timidamente por entre os soldados, que ainda estavam atordoados,
entraram na gru ta. Viram a pedra já afastada; as portas estavam
encostadas, como provavelmente Cássio as deixara. Então abriu
Madalena, com grande ânsia, uma das portas, olhou assustada para
o leito sepulcral e viu todos os panos vazios e separados. Tudo
estava cheio de esplendor e um Anjo sentado à direita, sobre o
túmulo. Madalena ficou espantada; não sei se ouviu qualquer
palavra do Anjo. Correu precipitadamente para fora do jardim,
pela pequena porta de Nicodemos, ao encontro dos
Apóstolos, reunidos na cidade. Também não sei se Maria Salomé,
que não entrara na gruta, ouviu alguma palavra do Anjo; vi-a fugir
do sepulcro e do jardim, muito assustada, logo depois de Madalena
e juntar-se às mulheres que ficaram fora do jardim, às quais
anunciou o que sucedera.
Tudo isso foi feito com grande pressa e com o espanto de quem viu
espíritos. As outras mulheres, ouvindo as notícias de Maria
Salomé, assustadas e ao mesmo tempo satisfeitas, não ousaram por
algum tempo entrar no jardim. Cássio, porém, depois de sair do
sepulcro, demora ra-se algum tempo nos arredores, esperando ver
Jesus ou que este apa recesse talvez às mulheres, que se
aproximavam; dirigiu-se depois apressadamente à porta da cidade,
para levar notícias a Pilatos e passando perto das santas
mulheres, contou-Ihes em poucas palavras o que vira, exortando-as
a que fossem verificá-Io com os próprios olhos. Então recobraram
ânimo e entraram juntas no jardim e tendo entrado com muito medo
na gruta, viram diante delas os dois Anjos do sepulcro, em vestes
sacerdotais, brancas e resplandecentes. As mulheres, extremamente assustadas, estreitando-se uma à outra e cobrindo o rosto
com as mãos, inclinaram-se até à terra. Um dos Anjos, porém,
falou-Ihes, dizendo que não se assustassem; não procurassem ali
o Crucificado, pois estava vivo, tinha ressuscitado e não se
achava mais entre os mortos. Mostrou-Ihes também o leito vazio
do sepulcro e mandou-Ihes que anunciassem aos discípulos o que
tinham ouvido e visto, avisando-Ihes que Jesus os precederia na
Galiléia; deviam lembrar-se do que Ihes dissera na Galiléia: "O
Filho do homem será entregue nas mãos dos pecadores e crucificado
e no terceiro dia ressuscitará dos mortos." Então desapareceram
os Anjos e as santas mulheres, com temor e tremendo, olharam para
o leito sepulcral e os panos, chorando e ao mesmo tempo cheias
de alegria; depois saíram, dirigindo-se à porta da cidade pela
qual Jesus saíra para o suplício. Estavam ainda espantadas, não
se apressavam, mas paravam de vez em quando, olhando em redor,
na esperança de ver Jesus ou que Madalena voltasse.
No entanto vi Madalena chegar ao Cenáculo; estava como que
desvairada e bateu com veemência à porta. Alguns dos discípulos
estavam ainda deitados, dormindo ao longo das paredes; outros já
se haviam levantado e estavam conversando; Pedro e João foram
abrir. Madalena disse apenas: "Tiraram o Senhor do sepulcro, não
sabemos para onde o levaram". Tendo dito isto, voltou ao jardim
do sepulcro, correndo com grande pressa. Pedro e João entraram
de novo em casa, disseram algumas palavras aos outros discípulos
e seguiram-na depois apressadamente, mas João mais ligeiro do que
Pedro.
Vi Maria Madalena entrar novamente no jardim e correr ao sepulcro,
perturbada pela corrida forçada e a tristeza. Estava toda molhada
de orvalho, o manto caíra-lhe da cabeça aos ombros e os cabelos
tinham se-lhe soltado. Como estava só, teve medo de entrar na
gruta, mas ficou no fosso, diante da gruta; ali se inclinou, para
olhar para dentro do túmulo, através da porta baixa da gruta.
Segurando o longo cabelo com as mãos, viu dois Anjos de vestes
brancas, sacerdotais, sentados à cabeceira e aos pés do túmulo
e ouviu ao mesmo tempo a voz de um deles: "Mulher, por quê choras?"
E Madalena exclamou, cheia de tristeza, (pois não pensava senão
no corpo de Jesus, que não estava mais ali): "Levaram o meu Senhor
e não sei onde o puseram!" Dizendo isso e vendo só os panos,
virou-se logo, como quem procura alguém; pensava que devia
encontrá-Lo em qualquer parte e tinha um vago sentimento de sua
presença e nem a aparição dos Anjos podia dissuadí-la. Parecia
não se lembrar que eram Anjos; pensava só em Jesus, perguntava
somente a si mesma: "Jesus não está aqui; onde estará Ele?”
Vi-a alguns passos diante da gruta, vagando de um lado para o outro, como quem, com grande perturbação, está procurando alguém.
O longo cabelo caía-lhe de ambos os lados sobre os ombros; uma
vez o segurou no ombro direito, com ambas as mãos; depois o pegou
de ambos os lados e jogou-o para trás, olhando sempre em redor.
De súbito viu, a dez passos de distância, a leste do rochedo
sepulcral, onde o jardim sobe para o muro da cidade, atrás de uma
palmeira, nas moitas, uma figura alta, vestida de branco, à luz
do crepúsculo e correndo para lá, ouviu de novo as palavras:
"Mulher, por quê choras? A quem procuras?" Julgou que fosse o
jardineiro e eu também lhe vi na mão uma enxada e na cabeça um
grande chapéu, que se parecia com um pedaço de casca de árvore,
para proteger do sol, como vi também o jardineiro na parábola que
Jesus contou às mulheres, em Betânia, pouco antes da Paixão. A
aparição não era luminosa, mas de um homem vestido de uma longa
veste branca, à luz do crepúsculo. Às palavras: "Quem procuras?"
Madalena respondeu imediatamente: "Senhor, se O levaste, dize-me onde está e irei buscá-Lo." E ao mesmo tempo olhou em redor,
para ver se o achava ali perto. Então lhe disse Jesus, com a voz
habitual: "Maria!" Reconhecendo-Lhe a voz e esquecendo a
crucificação, morte e sepultura, Madalena virou-se imediatamente
e disse-Lhe, como se Ele ainda estivesse vivo: "Raboni (Mestre)!"
E caiu de joelhos, estendendo as mãos para lhe abraçar os pés.
Jesus, porém, ergueu a mão para a afastar, dizendo: "Não me
toques: pois ainda não subi ao meu Pai. Mas vai a meus irmãos e
dize-Ihes: "Ascenderei a meu Pai e a vosso Pai, a meu Deus e a
vosso Deus." E o Senhor desapareceu.
Recebi também a explicação do motivo pelo qual Jesus disse: "Não
me toques"; mas não me lembro mais muito bem. Parece-me que o
disse, porque Madalena era muito impetuosa e estava dominada
inteiramente pela convicção de que Ele vivia como dantes e que
tudo era como outrora. Das palavras de Jesus: "Ainda não subi a
meu Pai", recebi a explicação de que Ele não se apresentara ainda
ao Pai depois da Ressurreição e não lhe agradecera ainda a vitória
sobre a morte e a Redenção. Parecia dizer com isso que as primícias
da alegria pertenciam a Deus; antes de tudo devia lembrar-se de
dar graças a Deus, pelo mistério consumado da Redenção e da
vitória sobre a morte; pois Madalena queria abraçar-Lhe os pés,
como dantes e não pensava senão no Mestre querido e esquecera,
no enlevo do amor, o grande milagre da ressurreição.
Depois do desaparecimento do Senhor se levantou Madalena e correu
mais uma vez ao sepulcro, como para se convencer de que não
tinha sonhado. Então viu os dois Anjos sentados à cabeceira e aos
pés do túmulo, ouviu o que tinham dito também às outras mulheres,
a respeito da ressurreição, viu os panos; convencida do milagre
e da visão, saiu correndo, para procurar as companheiras no
caminho do Gólgota; pois andavam ainda pelos arredores,
indecisas, esperando a volta de Madalena e nutrindo o desejo de
ver o Senhor em qualquer parte.
Tudo o que se deu com Madalena, durou apenas alguns minutos;
podiam ser cerca de duas horas e meia, quando lhe apareceu o
Senhor. Ela correra justamente para fora do jardim, quando entrou
João e logo após este, Pedro. João ficou na entrada e curvando-se,
olhou pela porta meio aberta do sepulcro e viu lá dentro os panos.
Então chegou Pedro e entrou na gruta; lá viu as mortalhas
dobradas, nas quais estavam em brulhadas as especiarias: tudo
enlaçado com faixa de pano, como as mulheres costumam enrolar tais
panos para guardar; o véu do rosto, porém, estava dobrado perto
da parede, do lado direito. João entrou então também na gruta,
aproximando-se do leito sepulcral, viu-o e creu na ressurreição;
pois nesse momento se lhes tornou claro o que Jesus tinha dito
e o que está escrito na Escritura e a que dantes tinham prestado pouca atenção. Pedro levou os panos sob o manto. Depois
saíram, correndo, pela pequena porta de Nicodemos; João, porém,
tomou novamente a dianteira.
Vi com eles e também com Madalena, o sepulcro. Ambas as vezes vi os
dois Anjos sentados à cabeceira e aos pés, como sempre e
durante todo o tempo em que o santo corpo de Jesus esteve no
sepulcro. Pareceu-me, porém, que Pedro não os viu. Quanto a João,
ouvi-o dizer mais tarde aos discípulos de Emaús que, olhando de
fora para dentro, vira um Anjo. Talvez fosse por isso que,
assustado, deixou primeiro entrar Pe dro e não o escreveu no
Evangelho por humildade, para não ter visto mais do que Pedro.
Depois vi os guardas, estendidos por ali, recobrarem os sentidos
e levantarem-se. Tomaram as lanças e os braseiros, que ardiam na
entrada, em cima de hastes e lançavam luz na gruta, saíram
assustados e pertur bados do jardim e voltaram à cidade, pela
porta pela qual Jesus fora conduzido à morte.
No entanto encontrara Madalena as santas mulheres e
contara-Ihes que comunicara a Pedro ter visto o Senhor e os Anjos;
as mulheres responderam-lhe que também tinham visto os Anjos.
Madalena voltou apressadamente à cidade, pela porta do Calvário;
as mulheres, porém, foram novamente na direção do Jardim,
esperando talvez encontrar ainda lá os dois Apóstolos. Os guardas
passaram-Ihes perto e disseram Ihes algumas palavras.
Quando as santas mulheres chegaram próximo ao jardim do sepulcro,
veio-Ihes ao encontro Jesus, com uma veste larga e branca, que
lhe cobria até as mãos e disse: "Deus vos salve!" Elas estremeceram e caíram-Lhe aos pés, os quais pareciam querer abraçar; mas
não me lembro mais claramente de o ter visto. O Senhor disse-Ihes
algumas palavras, apontou com a mão em uma direção e desapareceu.
As santas mulheres foram depressa pela Porta de Belém a Sião, para
anunciar aos discípulos que tinham visto o Senhor e o que Ele Ihes
dissera. Estes, porém, não queriam a princípio Ihes dar fé às
afirmações, nem às de Madalena, tomando tudo, até à volta de Pedro
e João, por imaginação das mulheres.
João e Pedro, que se tornara muito pensativo com o que
tinha visto, encontraram-se, ao voltar, com Tiago o Menor e
Tadeu, que os tinham querido seguir ao sepulcro. Também esses dois
estavam muito comovidos, pois o Senhor Ihes aparecera perto do
Cenáculo. Vi, porém, que Jesus tinha passado perto de Pedro e
João; pareceu-me que Pedro O viu, pois vi-o de súbito extremamente
comovido. Não sei se João também O reconheceu.
Nas visões que se referem a esse tempo, vejo muitas vezes, em Jerusalém e em outros lugares, o Senhor e outras aparições no meio
de homens, mas não noto que estes o avistem. Às vezes vejo alguns
estremecerem de repente espantar-se, enquanto que outros ficam
indiferentes. Parece-me que vejo o Senhor sempre, mas percebo ao
mesmo tempo que naqueles dias os homens o viam só de vez em quando.
Do mesmo modo tenho visto sempre os dois Anjos sacerdotais na
gruta do sepulcro, desde a sepultura do Senhor, mas vi também que
as santas mulheres às vezes os viam, outras vezes viam só um
e ainda em outras ocasiões viam ambos. Os Anjos que falaram às
mulheres, eram os Anjos de aparência sacerdotal. Falou apenas um
deles e só um foi visto, porque a porta não estava aberta. O Anjo
que desceu do céu como um relâmpago, rolou a pedra para o lado
o sentou-se-Ihe em cima, apareceu na figura de um guerreiro.
Cássio e os guardas viram-no a princípio sentado na pedra. Os
Anjos que falaram ainda depois, eram um ou os dois Anjos do
sepulcro. Do motivo porque tudo assim sucedeu, não me lembro mais;
quando o vi, não fiquei surpresa; pois lá vemos muito simples e
direito e nada parece estranho.
6. Relatório da guarda do sepulcro
No entretanto chegara Cássio ao palácio de Pilatos, cerca de uma
hora depois da ressurreição. Vi o governador deitado no leito e
Cássio apresentar-se-Ihe e relatar-lhe, muito comovido, como o
rochedo tremera e um Anjo descera do céu, removendo a pedra e as
mortalhas ficaram vazias. Jesus era com certeza o Messias e o
Filho de Deus; ressuscitara e não estava.mais no sepulcro. Ainda
contou outras coisas que vira.
Pilatos ouviu tudo com um oculto terror, mas não deixou perceber
nada e disse a Cássio: "És um sonhador; fizeste muito mal em
colocar-te junto do sepulcro do Galileu; pois os deuses dEle
conquistaram poder sobre ti e fizeram-te ver todas essas visões
fantásticas. Dou-te o conselho de não falar dessas coisas ao sumo
Sacerdote, senão te meterás em maus lençóis." Fingiu também crer
que o corpo de Jesus fosse roubado pelos discípulos e que a guarda
descrevesse o sucedido de modo diferente apenas para se
desculpar, porque havia permitido o roubo ou porque não cumprira
com o dever ou talvez porque tivesse sido enfeitiçada. Tendo
Pilatos falado ainda mais tempo dessa maneira indecisa,
despediu-se Cássio e o governador mandou novamente oferecer
sacrifícios aos ídolos.
Vieram ainda quatro dos soldados da guarda, dando a mesma
informação a Pilatos, que os mandou a Caifás, sem Ihes manifestar
opinião. Vi uma parte dos soldados da guarda dirigir-se
imediatamente a um vasto pátio perto do Templo, onde estavam
muitos anciãos do povo. Vi estes se reunirem em conselho e depois
tomarem os soldados de parte e os induzirem, com dinheiro e
ameaças, a dizerem que os discípulos tinham roubado o corpo de
Jesus, enquanto os guardas dormiam. Como, porém, os soldados
replicassem que os camaradas contariam o contrário a Pilatos,
prometeram os fariseus arranjar tudo com Pilatos. No entanto
chegaram os quatro guardas enviados por Pilatos e persistiam em
des crever o sucedido como o tinham contado ao governador. Mas
já se espalhara também a notícia da fuga inexplicável de José de
Arimatéia do cárcere bem fechado e como os fariseus quisessem
lançar suspeitas sobre os guardas, que persistiam em proclamar
a verdade, acusando-os de terem combinado com os discípulos o
roubo do corpo de Jesus e ameaçando-os violentamente, se não o
trouxessem de novo, responderam os guardas que não o podiam fazer,
assim como os guardas do cárcere não podiam trazer o fugitivo José
de Arimatéia. Responderam valentemente às acusações e não se
deixaram induzir por nenhum suborno a guardar silêncio, a
respeito dos acontecimentos; até falaram com muita franqueza do
falso e odioso julgamento de sexta-feira e da interrupção das
cerimônias da Páscoa; então foram presos e lançados no cárcere
os outros, porém, espalharam o boato de que os discípulos tinham
roubado o corpo de Jesus e os fariseus mandaram propagar
esta mentira em todos os lugares e sinagogas do mundo, junto com
outros insultos a Jesus.
Mas esta mentira lhes foi de pouco proveito; pois após a
ressurreição de Jesus, apareceram muitas almas de santos judeus
defuntos e comoveram os corações dos descendentes, levando a
converterem-se os que ainda eram acessíveis à graça e ao
arrependimento. Vi também tais aparições apresentarem-se a
muitos discípulos que, abalados na fé e desanimados, se tinham
dispersado pelo país; consolaram e firmaram nos na fé.
A ressurreição dos corpos mortos dos sepulcros, depois da
morte de Jesus, não tinha semelhança com a ressurreição do
Salvador; pois o Senhor ressuscitou com o corpo glorificado e
revivificado, andou na terra vivo e em pleno dia e subiu ao céu
com esse mesmo corpo, diante dos olhos dos amigos; esse corpo não
era mais sujeito à morte e ao sepulcro. Mas os outros corpos
ressuscitados eram apenas cadáveres ambulantes e sem movimento,
dados como invólucro às almas, que de novo os depuseram no seio
da terra, onde esperam a ressurreição final, como todos nós. Em
verdade ressuscitaram menos do que Lázaro, que viveu
verdadeiramente e mais tarde morreu segunda vez; pois
aqueles foram depostos nos sepulcros, como vestimentas das
almas, quando o corpo de Jesus foi sepultado.
7. Ameaças dos inimigos
No domingo seguinte, se não me engano, vi os judeus começarem a
limpar, a lavar e purificar o Templo. Encheram o chão de flores
e cinza de ossos de mortos e ofereceram sacrifícios de expiação;
tiraram os escombros, fecharam as aberturas com tábuas e tapetes
e fizeram depois as cerimônias da Páscoa, as quais na própria
festa não tinham podido completar.
Proibiram, porém, todos os boatos e murmúrios, explicando a
interrupção da festa e as destruições no Templo como conseqüência
do terremoto e da presença de pessoas impuras durante o
sacrifício; citaram um trecho de uma visão do profeta Ezequiel,
sobre a ressurreição dos mortos, não sei mais como a aplicaram
a esse fato. Demais ameaçaram com penas e excomunhão. Assim
reduziram todos ao silêncio, pois muitos se sentiam culpados,
como cúmplices do crime. Contudo conseguiram acalmar realmente
apenas a grande multidão, endurecida no pecado e já perdida; a
parte melhor do povo converteu-se silenciosamente nessa ocasião
e abertamente na festa de Pentecostes e mais tarde na sua terra,
ao ouvir a pregação dos Apóstolos. Os Sumos Sacerdotes tomaram-se
por isso cada dia menos arrogantes e o número dos fiéis aumentou,
de modo que já nos dias do Diácono Estevão, todo o bairro de Ofel
e a parte oriental de Sião não podia mais conter a multidão da
comunidade de Jesus Cristo e os cristãos construíram as cabanas
e tendas além da cidade, através do vale de Cedron, até Betânia.
Vi naqueles dias o sumo Sacerdote Anás como que possesso do
demônio; puseram-no em reclusão e não apareceu mais. Caifás
estava desvairado de secreto furor.
Na quinta-feira depois da Páscoa, vi Pilatos procurar a esposa,
mas em vão. Estava escondida em casa de Lázaro, em Jerusalém.
Ninguém imaginava que estivesse ali, pois naquela ocasião não se
encontravam mulheres no edifício, só Estêvão, o discípulo que
ainda não era conhecido como tal, entrava e saia de vez em quando
da casa, levando-lhe comida e dando-lhe notícias e preparava-a
para a conversão. Estêvão era primo de Paulo. Simão de Cirene
procurou depois do sábado os Apóstolos, pedindo admissão e o
batismo.
8. Ágape após a ressurreição de Jesus
Nicodemos, preparou uma refeição para os Apóstolos, as mulheres
e uma parte dos discípulos, sob as colunatas abertas, no vestíbulo
do Cenáculo. Depois de meio-dia ali se reuniram dez dos Apóstolos;
Tomé retraíra-se arbitrariamente, afastando-se um pouco dos
outros. Tudo quanto se fez ali, foi para cumprir a vontade de Jesus
que na ceia pascal se sentara entre Pedro o João, revelando-Ihes
diversos mistérios do SS. Sacramento e fazendo-os depois
sacerdotes; ordenou-Ihes também que ensinassem essas verdades
aos outros, juntamente com as doutrinas anteriores a esse
respeito.
Vi primeiro Pedro e João, no meio dos outros oito Apóstolos,
comunicando-lhes os mistérios que Jesus Ihes confiara;
explicaramlhes também a doutrina do Senhor a respeito do modo de
administrar este Sacramento e de ensiná-Io aos discípulos. Vi
que, de uma maneira sobrenatural, tudo quanto Pedro ensinou, foi
dito também por João. Todos os Apóstolos estavam revestidos das
vestes brancas de cerimônia, sobre as quais Pedro e João haviam
colocado nos ombros uma estola, cruzada no peito e segura com um
gancho; os outros Apóstolos traziam uma estola sobre um ombro,
a qual, passando pelo peito e as costas, cruzava debaixo do outro
braço e era segura por um gancho. Pedro e João eram sacerdotes,
ordenados por Jesus, os outros eram ainda diáconos.
Terminada esta explicação, entraram na sala também as santas
mulheres, em número de nove; Pedro falou-Ihes e ensinou-Ihes.
João, Porém, foi receber na casa do despenseiro, perto do portão,
dezessete dos mais provados discípulos, que estiveram mais tempo
com Jesus. Entre esses estavam: Zaqueu, Natanael, Matias,
Barsabás e outros. João serviu-os no lava-pés e na vestição;
vestiram longas vestes brancas c cintas. Depois da explicação da
doutrina, Mateus foi enviado por Pedro à Betânia, para ensinar
a muitos outros discípulos, durante uma refeição semelhante, em
casa de Lázaro e fazer tudo o que os Apóstolos tinham feito no
Cenáculo.
A refeição foi realmente um banquete. Rezaram em pé e comeram
deitados sobre os leitos e durante a refeição Pedro e João
ensinaram. No fim do banquete foi colocado em frente a Pedro um
pão delgado e estriado, que ele partiu nas partes marcadas e
subdividiu cada parte mais uma vez. Depois mandou passar esses
bocados, em dois pra tos, por ambos os lados da mesa. Passou
também de mão em mão um grande cálice, do qual todos beberam. Se
bem que Pedro benzesse o pão, não era contudo o SS. Sacramento,
mas apenas um ágape; Pedro disse ainda que ficassem unidos, como
era um só o pão que os alimentara e o vinho que beberam. Depois
se levantaram todos e cantaram salmos.
Tiradas as mesas, as santas mulheres formaram um semicírculo, na
extremidade da sala; os discípulos colocaram-se de ambos os lados
e todos os Apóstolos andavam de Uln lado para outro, ensinando
e revelando a esses discípulos mais provados o que Ihes podiam
comunicar sobre o SS. Sacramento. Pareceu-me ser a primeira
explicação do catecismo depois da morte de Jesus. Vi também que
depois apertaram as mãos uns aos outros, declarando ardentemente
que queriam ter tudo em comum, dar tudo uns aos outros e ficar
todos unidos.
Então vi em todos uma grande comoção. Talvez tivessem sentido só
interiormente o que vi exteriormente: pois vi-os, no meio de
uma luz brilhante, fundirem-se uns nos outros e tudo formou
afinal um templo de luz, em que apareceu a SS. Virgem como cume
e centro de todos. Até mesmo vi que toda a luz emanava dela para
os Apóstolos e destes voltava, pela SS. Virgem, ao Senhor. Era
uma imagem das relações recíprocas entre os presentes.
11
Outras aparições de Jesus até a ascensão
1. Jesus aparece aos dois discípulos no caminho de Emaús
2. Jesus aparece aos Apóstolos na sala do Cenáculo
3. Jesus aparece novamente e converte o Apóstolo S. Tomé da
descrença
4. A pesca milagrosa. Jesus proclama Pedro supremo Pastor
5. Jesus revela-se a quinhentos discípulos numa montanha
6. As relações de Maria Santíssima com os Apóstolos e com
a Igreja. Jesus aparece à sua Santíssima Mãe
7. Outras aparições de Jesus
Outras aparições de Jesus até a ascensão
1. Jesus aparece aos dois discípulos no caminho de Emaús
Na segunda-feira depois da Páscoa, os dois discípulos Lucas e
Cléofas, que era neto do tio de Maria Cleofé, se dirigiram a Emaús.
Saíram de Jerusalém por caminhos diferentes e encontraram-se
novamente fora da cidade. Ambos duvidavam ainda da ressurreição
de Jesus e queriam falar mais a miúdo sobre tudo quanto ouviram.
O tratamento ignominioso e a crucificação do Mestre lhes eram
particularmente uma pedra de escândalo.
Pelo meio do caminho se aproximou o Senhor, vindo de um atalho.
Por algum tempo os seguiu, depois se lhes juntou e perguntou-Ihes
de que estavam falando.
"Mas os olhos de ambos estavam como que vendados e não o
conheceram", conta S. Lucas no capo 24 do seu Evangelho e o Mestre
disse-lhes: "De que estais falando pelo caminho, e porque estais
tristes?" E respondendo um deles, chamado Cléofas, disse-Lhe: "És
talvez o único forasteiro em Jerusalém, que não sabes o que se
tem passado ali nestes últimos dias?" Disse-Ihes Jesus: "O que
foi?" E responderam os dois: "O que aconteceu a Jesus Nazareno,
que foi um varão profeta, poderoso em obras e em palavras diante
de Deus e todo o povo; e como os sumos sacerdotes e os nossos
magistrados o fizeram condenar à morte e o crucificaram. Ora, nós
esperávamos que Ele fosse aquele que devia salvar Israel e agora,
além de tudo, já é hoje o terceiro dia depois que sucederam estas
coisas. É verdade que certas mulheres que conosco estavam, nos
espantaram, pois na alvorada foram ao sepulcro e, não Lhe tendo
achado o corpo, voltaram dizendo que também tinham tido uma v.isão
de Anjos, os quais disseram que Ele está vivo. E alguns dos nossos
foram ao sepulcro e acharam que era assim como tinham dito as
mulheres, mas a Ele não O acharam." Então lhes disse Jesus: "á
gente sem inteligência! e tardos de coração para crer tudo o que
anunciaram os profetas! Porventura não era preciso que o Cristo
sofresse estas coisas e que assim entrasse na sua glória?" E
começando por Moisés e discorrendo por todos os outros profetas,
explicou-Ihes o que d’Ele estava dito em toda a Escritura.”
Chegando perto de Emaús, o Senhor quis separar-se dos dois
discípulos. "Eles, porém, conta a piedosa Emmerich, obrigaram-nO
a entrar numa casa, que estava situada na segunda fileira das
casas de Emaús. Não havia mulheres na casa, que me parecia ser
uma casa aberta para celebração de festas; pois se via que fora
nela celebrada uma festa; ainda havia restos de ornamentação. O
aposento era quadrangular e limpo, a mesa estava posta e os
assentos dispostos do mesmo modo que no banquete do dia da Páscoa.
Um homem trouxe um favo de mel num vaso trançado, semelhante a
um cestinho, um bolo grande quadrado e um pequeno pão ázimo,
delgado e transparente, que foi colocado diante do Senhor, como
hóspede. O homem que trouxe o bolo, parecia bem intencionado;
vestia algo de semelhante a um avental e parecia ser cozinheiro
ou despenseiro. Tinha cabelos pretos. Durante o ato solene não
estava presente. O bolo tinha a grossura de papelão e era marcado
com linhas sulcadas, que o dividiam em partes da largura de dois
dedos.
Depois de terem rezado, Jesus, recostado nos assentos, comeu
primeiro com eles do bolo e do mel. Depois tomou o pãozinho
estriado, cortou-o com uma curta faca branca de osso e tirou-lhe
três partes ainda unidas. Este pedaço colocou sobre um pequeno
prato, benzeu-o e levantando-se, elevou-o com ambas as mãos e
rezou, olhando para o céu. Os dois discípulos estavam em frente,
muito comovidos e como fora de si. Quando Jesus partiu o bocado,
aproximaram a boca por cima da mesa e receberam da mão do Senhor
o pedaço. Vi, porém, que ao levar com a mão o terceiro bocado à
boca, o Senhor desapareceu. Não posso afirmar que comesse
realmente o bocado. Os bocados resplandeciam, depois de Jesus os
ter benzido. Vi os dois discípulos ficarem ainda algum tempo como
que atordoados e depois se abraçarem um ao outro, chorando.”
2. Jesus àparece aos Apóstolos na sala do Cenáculo
Os dois discípulos voltaram imediatamente a Jerusalém. No
entretanto achavam-se os Apóstolos, com exceção de Tomé, na sala
do Cenáculo, junto com muitos discípulos, entre os quais também
Nicodemos e José de Arimatéia. As portas da casa e da sala estavam
bem fechadas. Três vezes se reuniram para a oração, formando sob
o candeeiro um círculo, aberto para o lado do Santíssimo. Todos
vestiam longas vestes brancas e cintos; três dos Apóstolos,
porém, estavam com vestimentas mais vistosas e entre estes três,
era Pedro o primeiro. Num vestíbulo que dava para a sala,
assistiram à oração a Santíssima Virgem, Maria Cleofé e Madalena.
Apesar de Jesus já ter aparecido a vários Apóstolos, não havia
ainda uma fé firme na sua ressurreição. Chegaram então os dois
discípulos, anunciando com muito alegria que tinham visto o
Senhor e que o reconheceram ao partir o pão.
''Tendo-se reunido de novo para a oração, conta Anna Catharina,
viIhes os rostos tomarem-se luminosos, pensativos e felizes e vi
o Senhor aparecer na porta, que estava fechada. Vestia também uma
longa veste branca, com uma simples cinta. Pareciam ter um
sentimento indefinido de sua presença, até que, passando pelo
meio deles, parou sob o candeeiro; ao vê-Lo, ficaram todos
espantados e comovidos. O Senhor mostrou-Ihes os pés e as mãos
e abrindo a túnica, mostrou-Ihes a chaga do lado. Falou-Ihes e,
como estavam muito assustados, pediu alguma coisa para comer. Vi
que da boca se lhe derramava luz sobre os Apóstolos, que estavam
como encantados.
Então foi Pedro atrás de um biombo ou tapete, a uma parte separada
da sala, onde era guardado o SS. Sacramento, sobre o forno pascal;
havia ali também um aposento lateral, onde guardavam a mesa baixa
(tinha cerca de um pé de altura), depois de terminada a refeição.
Sobre essa mesa se encontrava um prato fundo, oval, coberto com
uma toalha branca, o qual Pedro trouxe ao Senhor. Havia nele um
pedaço de peixe e um pouco de mel; Jesus agradeceu, benzeu a comida
e comeu; deu também alguns bocados aos outros, mas não a todos.
Ofereceu também à Virgem Santíssima e às outras mulheres, que
estavam no vestíbulo.
Depois o vi ainda ensinar e distribuir os poderes. Os discípulos
formavam-lhe em roda um tríplice círculo, no meio do qual ficaram
os dez Apóstolos; Tomé não estava presente. Pareceu-me
maravilhoso que parte das palavras e instruções do Mestre só os
Apóstolos percebes sem, digo percebessem, pois não O vi mover os
lábios. Estava resplandecente, irradiava-se-Lhe luz das mãos,
dos pés, do lado e da cabeça, sobre os Apóstolos, como se soprasse
sobre eles e essa luz os penetrava; perceberam que podiam perdoar
os pecados, que deviam batizar e curar os enfermos, impor as mãos
e que podiam beber veneno, sem que lhes fizesse mal. Jesus
explicou-Ihes vários trechos da Escritura Sagrada, que se Lhe
referem e ao Santíssimo Sacramento e mandou fazer uma adoração
ao Santíssimo Sacramento, depois do culto do sábado. Falou também
dos ossos e das relíquias dos antepassados e do respectivo culto,
para lhes alcançar a intercessão. Também Abraão tinha em seu poder
os ossos de Adão e colocava-os no altar, quando oferecia sacrifícios. Além disso, falou Jesus também do mistério da Arca da
Aliança e que esse mistério seria, daí em diante, o seu Corpo e
Sangue, que lhes tinha dado para sempre, esse Sacramento.
Discorreu também sobre a Sagrada Paixão e ainda algumas coisas
maravilhosas de Davi, as quais os discípulos ainda não sabiam.
Depois lhes mandou que fossem à região de Sicar, para aí dar
testemunho da ressurreição.”
3. Jesus aparece novamente e converte o Apóstolo S. Tomé
da descrença
Durante a viagem a Sicar, procurou Tomé os Apóstolos, que lhe
contaram a aparição do Salvador ressuscitado. Ele, porém, não
quis acreditar, antes de Lhe ter tocado nas chagas. Mesmo quando
Pedro falou publicamente, na escola de Thaenath-Silo, sobre a
ressurreição de Jesus e a seu convite, mais de cem das pessoas
presentes levantaram a mão, como testemunhas, pois tinham visto
Jesus ressuscitado, Tomé ainda não chegou a crer firmemente.
Os Apóstolos e discípulos tornaram a celebrar o sábado na sala
do Cenáculo, em Jerusalém. Terminado o sábado, fizeram um grande
ágape e reuniram-se depois para a oração. Tomé estava também
presente nessa ocasião. Depois que a SS. Virgem e Madalena
entraram, fecharam-se as portas.
Os Apóstolos oraram primeiro, ajoelhados diante do Santíssimo e
cantaram salmos, em coros alternados, depois começaram a
conversar.
"Mas pouco depois, narra a piedosa freira, se Ihes tomaram os ros-
tos maravilhosamente felizes e comovidos, pela aproximação do
Senhor. Vi Jesus no pátio, resplandecente e vestido de
branquíssima veste e cinta. Dirigiu-se à porta do vestíbulo, a
qual se abriu diante d’Ele e fechou-se-Lhe após. Os discípulos,
que estavam no vestíbulo, viram a porta abrir-se e retiraram-se
para o lado, para dar caminho. O Senhor atraves~ou depressa o
vestíbulo e entrando na sala, passou entre Pedro e João, que, como
todos os Apóstolos, também se afastaram para o lado, enquanto o
Senhor ficava no lugar de Pedro. Nesse instante parecia a sala
vasta e clara, pois vi o Senhor rodeado de luz. Os Apóstolos
retiraram-se apenas desse círculo de luz; parecia-me que do
contrário não o teriam visto.
Jesus disse primeiro: "A paz seja convosco." Depois
conversou algum tempo com Pedro e João e colocou-se sob o
candeeiro, acercando-se um pouco mais da roda.
Vi que Tomé, ao ver Jesus, ficou muito comovido, recuando
timidamente um pouco. Jesus, porém, tomou com a mão direita a mão
direita de Tomé e segurando-a pelo dedo indicador, colocou a ponta
desse dedo na chaga da mão esquerda. Depois tomou com a esquerda a outra mão de Tomé e pôs-lhe os dedos na chaga da mão direita;
levou a mão direita de Tomé ao peito, sob a roupa, sem descobrir
o peito, pondo-lhe o indicador e o médio na chaga do lado. Disse
então algumas palavras, que não me recordo mais. Tomé, porém,
exclamou:
"Meu Senhor e meu Deus!" e caiu desmaiado por terra, enquanto
Jesus ainda o segurava pela mão. Os que estavam perto, socorreramno e Jesus levantou-o pela mão.
A princípio não vi as chagas de Jesus, mas quando tomou a mão de
Tomé, vi-as, não como chagas sangrentas, mas como pequenos sóis
ofuscantes. Os outros discípulos ficaram muito comovidos por esta
cena e estendiam as cabeças para a frente, porém, sem avançar
muito, para ver o que o Senhor fazia Tomé apalpar. Só Maria vi,
durante toda a presença do Senhor, sem movimento exterior, em
profunda e silenciosa adoração interior; estava como extasiada.
Madalena parecia um pouco mais comovida, mas não tanto
exteriormente como os discípulos.
Jesus não desapareceu imediatamente; conversou ainda um pouco e
pediu também algo de comer. Vi que lhe trouxeram novamente um
prato, que continha algo de semelhante a peixe, de que comeu,
benzendo-o, dando um bocado primeiro a Tomé e depois o resto a
alguns outros.
Depois da conversão de Tomé, explicou Jesus ainda porque estava
no meio deles, apesar de O terem abandonado e porque não ficava
ao lado de alguns que lhe tinham permanecido mais fiéis.
Recordou-Ihes também que tinha dito a Pedro que confortasse os
irmãos e o motivo por que lhe dissera. Dirigindo-se a todos,
disse-Ihes porque quis dar-Ihes Pedro como chefe, embora este O
tivesse negado, pois o rebanho precisava de um pastor. Falou
também do zelo de Pedro.
Vi que João entrou no Santuário e ao voltar, trouxe sobre o braço
um manto largo, bordado a várias cores e na mão um bordão alto,
fino e oco, que em cima era curvo como um cajado de pastor. Pedro
ajoelhou-se diante de Jesus, que lhe deu um bocado a comer, como
um pequeno bolo luminoso, com o qual Pedro recebeu um poder
particular. Jesus aproximou também a boca da boca e depois dos
ouvidos de Pedro e infundiuIhes uma força ou um poder. Vi, porém,
que não era ainda o Espírito Santo, mas algo que o Espírito Santo,
no dia de Pentecostes, devia vivificar plenamente. Impôs-lhe
também as mãos e deu-lhe poder e jurisdição sobre os outros.
Depois o vestiu com o manto que João, ao lado de Pedro, tinha sobre
o braço e pôs-lhe o báculo na mão. Disse-lhe também que esse manto
era como para guardar e recolher nele toda a força e todo o poder
que lhe tinha dado, indicando-lhe também que devia usar esse manto
sempre que quisesse fazer uso do seu poder.
Jesus falou também de um grande batismo, depois da vinda do
Espírito Santo; disse que Pedro desse o poder que recebera, também
aos outros, após oito dias. Ordenou ainda que alguns depusessem
a veste branca e vestissem a outra, com um peitoral; outros no
entanto deviam vestir as vestes brancas. Era a instituição de
graus elevados da hierarquia e das ordens, em que deviam entrar.
Depois se agruparam os discípulos, por ordem de Jesus, em sete
grupos separados, dos quais cada um recebeu como chefe um
Apóstolo. Tiago o Menor e Tomé ficaram ao lado de Pedro. Foi por
ordem de Jesus que se agruparam. Pareciam representar sete
comunidades ou sete Igrejas; o que representavam os três
Apóstolos restantes não sei bem.
Pedro, com o novo poder e dignidade, fez uma alocução a todos;
parecia um novo homem, cheio de energia. Escutaram-lhe as
palavras, chorando e com grande emoção; consolou-os o Apóstolo
e falou de muitas coisas, que Jesus sempre predissera e que agora
se tinham realizado. Lembrou-Ihes também que Jesus sofrera por
dezoito horas o escárnio e a ignomínia do mundo inteiro.
Durante o discurso de Pedro desapareceu Jesus. Nenhum susto nem
admiração interrompeu a atenção prestada ao discurso de Pedro,
que parecia dotado de nova força. Depois cantaram um salmo em ação
de graças. Jesus não falara nem com a Virgem Santíssima, nem com
Madalena.
4. A pesca milagrosa. Jesus proclama Pedro supremo Pastor
Quando o Senhor apareceu na sala do Cenáculo, deu também ordem
a Pedro de ir, com os Apóstolos, a Tibérias pescar.
Encaminharam-se, portanto, em vários grupos e por caminhos
diversos, para o mar da Galiléia.
Entraram numa casa de pesca fora de Tibérias, a qual Pedro
antigamente tivera arrendado, mas já havia três anos que não
pescava mais ali. Pedro entrou, com Natanael e Tomé, numa
embarcação maior e João, com Tiago, João Marcos e Silas, numa
barca menor. Pedro mesmo quis remar; era extraordinariamente
humilde e modesto, apesar de Jesus o haver distinguido tanto,
diante de todos. Cruzaram durante toda a noite o lago, à luz de
archotes, lançando muitas vezes a rede, mas retiravamna sempre
vazia. Durante esse trabalho cantavam e rezavam em voz alta.
Enquanto os Apóstolos se ocupavam desse modo com a pesca, veio
o Salvador, pairando, do vale de Josafá para o lago, acompanhado
de muitas almas de Patriarcas, que livrara do Limbo e de outras
almas remidas. Na margem do lago havia um lugar, onde se costumava
fazer uma fogueira. No momento em que Jesus pensou que aí se devia
preparar um peixe, apareceu imediatamente, diante das almas dos
Patriarcas, um peixe, fogueira e tudo quanto era necessário.
"As almas dos Patriarcas, explica a piedosa freira, tiveram parte
na preparação do peixe e no próprio peixe, que significava a
Igreja padecente: as almas do purgatório. Por essa refeição foram
unidas exteriormente com a Igreja. Jesus deu aos Apóstolos, com
essa refeição de peixe, a compreensão nítida da Igreja padecente
e militante. Jonas no ventre do peixe simboliza também a estadia
de Jesus nos Infernos.”
Já estava amanhecendo, quando os Apóstolos, fatigados pelo
trabalho, queriam lançar âncora perto da praia. Estavam já
vestindo as túnicas, quando viram a figura de um homem, atrás do
caniçal da praia.
Era Jesus, que exclamou: "Meus filhos, não tendes alguma
coisa para comer?" Responderam: "Não". Então disse Jesus que
lançasse a rede para o lado oeste da barca de Pedro. Assim fizeram
e João tinha de dirigir o seu barco para outro lado da embarcação
de Pedro. Mas como sentissem o peso da rede cheia, João reconheceu
Jesus e gritou para Pedro, no meio do lago silencioso: "É o
Senhor." Então vestiu Pedro imediatamente a túnica, saltou na
água e nadou em direção à praia e através do caniçal. ao encontro
de Jesus. Quando Já estava com o Mestre, chegou também João. Jesus
disse a Pedro que trouxesse os peixes. Puxaram portanto as redes
para a praia e vi que Pedro atirou os peixes da rede para. a praia.
Eram, porém, 153 peixes, de várias espécies, os
quais significavam 153 novos fiéis, que se converteram em Tebes.
Achavam-se na embarcação diversos homens, servos do pescador de
Tibérias, que ficaram com as barcas e os peixes; os Apóstolos,
porém, seguiram Jesus à cabana. Disse-Ihes o Mestre que viessem
comer. Ao chegarem, vi que as almas dos Patriarcas tinham
desaparecido; os Apóstolos, porém, ficaram muito admirados, ao
verem a fogueira e o peixe, que não era dos que haviam pescado
e pão e bolos cozidos de mel e farinha. Recostaram-se ao lado de
um madeiro grosso, que estava diante da cabana e servia de mesa.
Jesus deu a cada um, sobre um pão chato, uma porção de peixe da
assadeira; não vi. porém, que o peixe diminuísse. Deu-Ihes também
do bolo de mel e depois se deitou à mesa e comeu. Tudo se fez em
silêncio solene.
* Nestes quarenta dias, conta Catharina Emmerich, eu via o Senhor,
quando não estava com os discípulos, percorrer os lugares
memoráveis de sua vida, acompanha do pelas almas que com Ele
tinham mais relações, desde Adão e Eva, até Noé e Abraão e os
outros Patriarcas e toda a respectiva tribo; mostrava-Ihes o que
por elas tinha feito e padecido, pelo que ficaram todas muito
consoladas e purificadas pela gratidão. Ensinou-Ihes nessa
ocasião de certo modo todos os mistérios do Novo Testamento,
pelos quais foram libertadas das cadeias. Vi-O com elas em Nazaré
diante do presépio, em Belém, em todos os lugares onde houve em
sua vida um acontecimento notável.
Tomé tinha sido o terceiro dos que pressentiram na barca a
presença de Jesus. Todos estavam tímidos e acanhados, pois o
Mestre estava mais espiritual do que em outras ocasiões e toda
a refeição e a hora tinham algo de misterioso. Ninguém se atreveu
a fazer pergunta alguma; reinava santo e solene silêncio, que
causou assombro a todos. Jesus parecia mais recolhido, não se lhe
percebiam as chagas.
Após a refeição, vi Jesus levantar-se, como também os
discípu los, dirigindo-se à praia, onde passearam; no fim de
algum tempo, parou o Divino Mestre e disse, em tom solene, a
Pedro: "Simão, filho de Jonas, amas-me mais do que estes?" Pedro
respondeu timidamente: "Sim, Senhor, sabeis que vos amo." Jesus
disse-lhe: "Apascenta meus cordeiros". No mesmo instante vi uma
imagem da Igreja e do Bispo supremo, ensinando e guiando os
primeiros cristãos, que ain da eram fracos e vi também batizar
e lavar muitos recém-convertidos, como tenros cordeiros.
Depois continuaram passeando, às vezes parava Jesus,
virando-se para os discípulos, que por seu lado também se volviam
todos para Ele.
Depois de algum tempo, o Mestre disse novamente a Pedro:
"Simão, filho de Jonas, amas-me?" Pedro, muito tímido e humilde,
lembrando-se de sua negação, respondeu novamente: "Sim, Senhor,
sabeis que vos amo." E Jesus disse mais uma vez, em tom solene:
"Apascenta minhas ovelhas." Nesse momento tive a visão da Igreja
crescente e da perseguição e vi como o supremo Bispo reunia os
cristãos dispersos, cujo número sempre aumentava, como os
protegia e Ihes enviava pastores e os governava.
Depois de ter andado novamente por algum tempo, disse Jesus,
pela terceira vez: "Simão, filho de Jonas, amas-me? Então vi
Pedro contristado, pensando que Jesus perguntava tantas vezes por
duvidar de seu amor; lembrando-se de havê-Io negado três vezes,
disse: "Senhor, sabeis tudo; sabeis que vos amo." Vi João pensar
consigo: "Oh! que amor deve ter Jesus e quanto amor carece ter
um pastor, que três vezes lhe pergun ta pelo amor, àquele a quem
quer entregar o rebanho." Jesus disse de novo: "Apascenta minhas
ovelhas! Em verdade, em verdade te digo: quando eras mais moço,
cingias-te a ti próprio e ias onde querias; mas quando ficares
velho, estenderás as mãos e outro te cingirá e levar-te-á aonde
não quererás ir. Segue-me.”
Virou-se Jesus então para continuar o caminho e João foi com Ele;
Jesus disse-lhe uma coisa que só ele ouviu. Vi, porém, que Pedro,
ao vê10, apontou para João e perguntou ao Senhor: "Senhor, que
se dará com este?" E Jesus, castigando-lhe a curiosidade,
disse-lhe: "Se quero que ele fique até que eu venha, que tens com
isso? Segue-me tu!" Virou-se, pois e continuou o caminho.
Quando Jesus disse pela terceira vez: "Apascenta minhas ovelhas"
e que haviam de cingí-Io e conduzi-Io, tive uma visão da Igreja
já muito desenvolvida, vi Pedro em Roma, amarrado e crucificado
e os tormentos dos Santos em diversos lugares.
Vi também que Pedro teve a graça de contemplar tudo isso em espírito e conhecer o seu fim e que, olhando para João, viu que este
também seguia Jesus em vários sofrimentos; pensou no mesmo
momento: "Então este, a quem Jesus tanto ama, porventura não será
também crucificado, como ele?" Perguntou, pois, a Jesus, que por
isso o repreendeu.
Por algum tempo acompanharam ainda Jesus, que Ihes disse o que
haviam de fazer, desaparecendo depois diante deles. Dirigiu-se
a Gergesa, a leste do lago; os Apóstolos, porém, voltaram a
Tibérias".
A piedosa vidente viu depois ainda o Salvador e as almas no Paraíso, que descreve como ainda existente e ligado à terra, porém,
inacessível. Jesus visitou ainda, em companhia delas, os campos
de grandes batalhas e todas as terras onde os Apóstolos primeiro
anunciariam o Evangelho, para as abençoar com sua presença.
5. Jesus revela-se a quinhentos discípulos numa montanha
De Tibérias foram os Apóstolos, por um caminho de várias horas,
a um lugar onde Pedro ensinou e curou enfermos. Falou com muito
entusiasmo e grande mansidão da Paixão e Ressurreição de Jesus
e da pesca milagrosa. Quando os Apóstolos partiram do lugar,
seguiu-os grande multidão de povo a uma montanha, da qual se podia
ver todo o mar de Galiléia. Muitos discípulos e também as santas
mulheres já se tinham aí reunido. A Mãe de Deus, porém, ficara
em Jerusalém, percorrendo três vezes por dia a Via Sacra.
No cume do monte havia uma escavação, em cujo centro se achava
uma coluna, que servia de púlpito. Eram cinco os caminhos que
conduziam ao cume da montanha; para cada atalho mandou Pedro um
dos Apóstolos, para ensinar ao povo, que por causa da grande
multidão que afluía, não podia ouví-Io. Pedro, estando ao pé da
coluna e rodeado dos restantes Apóstolos e discípulos e de muito
povo, anunciou a Paixão, a Ressurreição e as aparições do Cristo.
"Vi, porém, narra a piedosa freira, Jesus vindo da mesma região
da qual viera Pedro. Subiu o monte e as santas mulheres que estavam
nesse caminho, prostraram-se diante d’Ele. Passando-Ihes perto,
dirigiu-lhes algumas palavras. Quando, porém, resplandecente e
luminoso, ia passando pelo meio do povo, estremeceram muitos com
medo e todos esses não perseveraram na fé. O Senhor avançou para
o centro, até à coluna, onde antes estivera Pedro, que então se
lhe colocou em frente. Jesus falou da necessidade de abandonar
tudo e de imitá-Lo e da perseguição que teriam de sofrer.
Afastaram-se, porém, cerca de duzentas pessoas presentes, ao
ouvirem essas palavras.
Depois de se terem ido embora, disse o Senhor que tinha falado
ainda benignamente, para não escandalizar os fracos. Mas então
falou muito claramente aos Apóstolos e discípulos dos sofrimentos
e das perseguições que teriam de suportar no mundo aqueles que
O seguissem e da recompensa eterna. Disse-Ihes também que
ficassem em Jerusalém e que só depois de Ihes ter enviado o
Espírito Santo, batizassem em nome do Pai, do Filho e do Espírito
Santo; antes deviam fundar uma comunidade de fiéis. Jesus dispôs
ainda como se deviam distribuir pela terra e fundar comunidades
mais longínquas; depois deviam reunir-se de novo e partir outra
vez para terras distantes, que receberiam o batismo de sangue.
Enquanto Jesus estava no meio deles falando, ficavam as almas dos
Patriarcas em roda da assembléia, mas invisíveis para todos.
Jesus, porém, desapareceu, como uma luz que se apaga e muitos se
prostraram por terra, tocando com o rosto o chão. Pedro ensinou
ainda em seguida e rezou.
Foi essa a mais importante aparição de Jesus na Galiléia, onde
ensinou e demonstrou a todos a sua ressurreição; as outras
aparições eram menos públicas.”
6. As relações de Maria Santíssima com os Apóstolos e com a Igreja.
Jesus aparece à sua Santíssima Mãe
Os Apóstolos e vinte discípulos estavam novamente reunidos na
sala do Cenáculo, em oração. Então falou João aos Apóstolos e
Pedro aos discípulos, sobre as relações para com a Mãe do Senhor.
"Vi durante essa explicação, que me parecia basear-se numa
comunicação de Jesus, a aparição da Santíssima Virgem, pairando
sobre eles, vestida de um manto luminoso desdobrado, que, por
assim dizer, encerrava todos. Por cima de Maria vi o céu aberto
e a Santíssima Trindade, que lhe pôs uma coroa sobre a cabeça.
Tive a impressão de que Maria era a cabeça verdadeira de todos
aqueles fiéis, o Templo que os abrigava. Durante essa visão não
vi mais a Santíssima Virgem fora, onde estava rezando. Creio que
era uma imagem do que sucedeu à Igreja, por vontade de Deus,
durante essa explicação dos Apóstolos; ou era a imagem de um
êxtase de Maria, durante a pregação dos Apóstolos.”
Seguiu-se uma refeição, na qual a Santíssima Virgem estava
sentada entre Pedro e João, à mesa dos Apóstolos. Depois rezou
Maria, coberta com o véu, junto com os Apóstolos, na sala do
Cenáculo. Abriu-se também o Santíssimo, diante do qual rezaram
de joelhos.
"Meia noite já podia ter passado, quando a Santíssima Virgem
recebeu de joelhos o Santíssimo Sacramento da mão de Pedro, que
trouxe os bocados sobre o pratinho do cálice e lhe pós na boca
o pedaço que ainda fora partido pelo próprio Jesus. Vi no mesmo
momento o Senhor aparecer a Maria e desaparecer de novo, mas
invisível para os outros. A Virgem Santíssima estava penetrada
de luz e esplendor. Rezaram ainda e depois se separaram. Os
Apóstolos manifestaram durante essa cerimô nia ainda mais
respeito para com Maria; outrora eram sempre familiares, embora
respeitosos.”
Depois de ter recebido o Santíssimo Sacramento, retirou-se Maria,
com as outras mulheres, para a sua morada, em casa de João Marcos,
onde ainda permaneceu mais tempo em oração. Ao amanhecer, entrou
Jesus, através das portas fechadas, no quarto da Mãe Santíssima,
conversando muito tempo com ela.
"Disse-lhe que devia ajudar os Apóstolos e tudo o que Ihes devia
ser. Era tudo espiritual e misterioso. Deu-lhe, porém, poder
sobre a Igreja, a força, a qualidade de protetora e vi que a luz
do Filho de Deus se derramou na Virgem Santíssima, como se Ele
mesmo a penetrasse. Não posso descrevê-Io bem. Desapareceu de
novo pela porta. Ela, porém, rezou ainda e deitou-se depois, para
dormir.
Vejo a Santíssima Virgem, desde que comungou, mais vezes com
os Apóstolos; são outras agora as relações que tem com eles;
Pedem-lhe conselho, é como a Mãe de todos e até como um Apóstolo.”
7. Outras aparições de Jesus
O número dos fiéis crescia visivelmente. Muitos, vindos de fora,
eram alojados num vasto edifício em ruína, perto do Cenáculo (o
castelo de Davi?); outros, mais tarde, numa casa perto da piscina
de Betesda na qual ensinavam os Apóstolos. Assombrados pelos
numerosos prodígi os e milagres, os judeus ainda não ousavam
empregar meios violentos contra a comunidade. Esforçavam-se,
porém, por dissimular tudo e ne gar os fatos; fecharam com
alvenaria a porta que ligava o monte do Templo ao bairro
adjacente, de modo que a comunidade ficava isolada; mas, mesmo
antes disto, nem os Apóstolos e discípulos, nem os novos aderentes
iam ao Templo, pois o Santíssimo achava-se no Cenáculo.
Catharina Emmerich viu ali diversas vezes solenes reuniões, com
oração e canto de salmos diante do Santíssimo Sacramento; Jesus
mesmo instruíra os Apóstolos a respeito. Numa dessas piedosas
reuniões, na qual Maria tomava parte, apareceu Jesus de repente
no meio deles, anunciando-Ihes que viria no segundo dia depois
do sábado seguinte. Antes que se refizessem da surpresa, já tinha
desaparecido de novo.
Quando depois os Apóstolos foram a Betânia, Jesus caminhou de
súbito diante deles, mas desapareceu logo depois.
Uma outra vez, quando Pedro, João, Tiago o Menor, Tomé e alguns
outros Apóstolos iam, pelo meio-dia, de Betânia aJerusalém, perto
do monte das Oliveiras, apareceu-Ihes Jesus de repente e
conversou com eles. Mas depois continuaram o caminho, foi como
se ficasse atrás, assim desaparecendo.
Mais tarde esteve Jesus mais uma vez com eles, durante um ágape
no Cenáculo. Comeu só com os Apóstolos, benzeu o pão, partiu-o
e ensinou. As mulheres tomaram a refeição na ante-sala, os
discípulos nos corredores laterais.
Quanto mais se aproximava o dia da separação e ascensão de Jesus
ao céu, tanto mais vezes parece ter-se mostrado aos discípulos.
Assim narra a piedosa Emmerich:
"O Senhor andava com os Apóstolos em muitos caminhos, na
vizinhança de Jerusalém, de maneira que muitos judeus viram as
aparições. Quando, porém, aparecia, fechavam as casas e
escondiam-se. Os Apóstolos e discípulos tratavam-nO com certa
timidez, pois manifestava-seIhes muito espiritual. Jesus
ensinava muito e censurava também algumas faltas dos Apóstolos.
Durante a noite vi o Senhor aparecer e espa lhar a bênção também
em outros lugares, como por exemplo, em Belém. Em Nazaré, onde
tinha muitos inimigos, apareceu a vários descrentes
e principalmente à gente com que Ele e a Virgem Santíssima tiveram
antes relações. Ainda em muitos outros lugares O vi aparecer. Os
homens que O viram, tomaram-se muito crentes e reuniram-se, no
dia de Pentecostes, aos Apóstolos e discípulos.
Nos últimos dias se mostrava Jesus continuamente e muito natural
para com os Apóstolos. Comia e rezava com eles e ensinava-Ihes.
Fazia com eles longos passeios, repetindo-lhes toda a doutrina.
Somente durante a noite permanecia em outros lugares, sem que
soubessem.
12
A Ascensão e a vinda do Espírito Santo
1. O Senhor despede-se dos seus
2. Jesus sobe ao céu
3. Preparação dos Apóstolos e discípulos para a vinda do
Espírito Santo
4. A vinda do Espírito Santo
5. Sermão e batismo na piscina de Betesda
A Ascensão e a vinda do Espírito Santo
1. O Senhor despede-se dos seus
Na véspera da ascensão veio Jesus, com cinco discípulos à casa
de Lázaro, em Betânia, onde se encontraram com Maria e as outras
santas mulheres. Muito povo se reuniu em redor da casa, para ver
mais uma vez Jesus e despedir-se d’Ele. O Divino Mestre apareceu
à gente de fora, benzeu e distribuiu-Ihes muitos pãezinhos;
depois se afastaram.
Na casa tomou Jesus, em pé, um refresco com os discípulos, que
choravam amargamente, porque ia deixá-Ios. Ele, porém, disse:
"Por quê chorais, queridos irmãos? Vede esta mulher, que não
chora." Dizendo-o, apontou para a Mãe Santíssima.
Jesus despediu-se mais intimamente de Lázaro. Deu-lhe do pão
bento a comer, abençoou-o e apertou-lhe a mão.
Depois se encaminharam todos, com exceção de Lázaro, que morava
escondido em casa, para Jerusalém, onde Nicodemos e José de
Arimatéia prepararam uma refeição.
"Vi Jesus, com os Apóstolos, -andando por vários caminhos, em
redor do Monte das Oliveiras; os outros grupos O seguiam. Às vezes
parava Jesus, para Ihes explicar alguma coisa. Todos estavam em
grande angústia, alguns choravam; outros estavam muito abatidos.
Vi um deles pensando: "Quando Ele for embora, quem será o mestre?
E como se cumprirá tudo o que foi prometido a respeito do Messias?"
Pedro e João pareciam-me mais calmos e compreendendo tudo melhor.
Muitas vezes faziam perguntas ao Senhor e Ele parava,
explicando-lhes muitas coisas. Assim andaram até à noite. O
Senhor parava freqüentemente, estava muito sério, ao
ensinar-Ihes, às vezes desaparecia repentinamente. Então ficavam
muito assustados, mas de repente Ihes voltava de novo. Era como
se quisesse prepará-los para a próxima separação. Vi-os andando
por belas campinas, por caminhos agradáveis e debaixo de árvores.
O sol brilhava lindamente à tarde.
Quando Jesus e os Apóstolos se aproximaram da casa do banquete,
já o sol se tinha posto. Maria, Nicodemos e José de Arimatéia
vieramLhe ao encontro em frente à casa. Jesus entrou ao lado de
sua Mãe. As outras mulheres vieram mais tarde. Depois de Ihes
haver dito algumas palavras e de terem chegado os outros
discípulos, Jesus entrou na grande sala do banquete. Benzeu o
peixe, o pão e as verduras e ofereceu a todos; cada um recebeu
um bocado.
Durante o banquete, Jesus não deixou de ensinar-Ihes, com
palavras muito sérias. Vi as palavras saírem-lhe da boca como
raios de luz e entrarem na boca dos Apóstolos, num mais depressa,
noutro mais vagarosamente, conforme o grau de desejo ou sede da
doutrina de Jesus.
No fim da refeição Jesus benzeu também um cálice de vinho, bebeu
e ofereceu-o aos outros e todos beberam. Mas não foi o Santíssimo
Sacramento.
Depois dos discípulos se terem levantado do ágape, reuniram-se
os outros, que comeram nas salas laterais, debaixo das árvores,
em frente à grande sala; vi Jesus aproximar-se-Ihes, ensinar-Ihes
por muito tempo e abençoá-Ios; depois se afastaram.
Vi então as outras mulheres, que nesse meio tempo tinham chegado,
entrarem no jardim, debaixo das árvores. A Santíssima Virgem
estava com elas. Jesus aproximou-se-Ihes e deu a mão a sua Mãe.
Falou-Ihes muito sério. Todas estavam muito comovidas e senti que
Madalena desejava veemente abraçar os pés do Senhor. Tendo-Ihes
falado assim por algum tempo e depois de as haver abençoado,
deixou-as Jesus. Choraram muito, mas silenciosamente, abafando
a dor; a Santíssima Virgem, porém, não a vi chorar, nessa ocasião.
Ao aproximar-se a meia noite, saiu Jesus com os Apóstolos, tomando o caminho pelo qual viera à cidade no domingo de Ramos. Maria
seguiu depois dos Apóstolos e após ela, um grupo de discípulos.
Muita gente se Ihes aproximou no caminho e o Senhor falou-Ihes.
"Em companhia dos onze Apóstolos, cerca de trinta discípulos, a
Santíssima Virgem e algumas mulheres, dirigiram-se ao Cenáculo.
Só Jesus, os onze e Maria penetraram na sala interior; os discípulos entraram nas salas laterais, onde havia bancos de dormir, não
sei se dormiram ou rezaram. As companheiras de Maria ficaram no
vestíbulo. Foi preparada a mesa da última Ceia e aceso o
candeeiro. Havia na mesa apenas um pão ázimo e um pequeno cálice.
Os Apóstolos revestiram-se das vestes de cerimônia e Pedro pôs
a veste própria de sua dignidade. A Santíssima Virgem sentou-se
em frente ao Senhor. Vi Jesus fazer o mesmo que fizera na última
ceia: marcar o pão, oferecê-Io a Deus, partir, benzer e dá-Io aos
discípulos; depois beberam também do cálice, sem que o enchessem
de novo. Vi o Santíssimo Sacramento brilhando, ao pronunciar
Jesus as palavras, penetrar como um pequeno corpo luminoso na boca
dos Apóstolos. Na consagração do cálice, se lhe derramou a palavra
sacramental no cálice como um rubro fulgor de sangue. Madalena,
Marta e Maria Cleofé já tinham recebido o SS. Sacramento nos
últimos dias.
No começo da noite fizeram a oração e cantaram com mais solenidade
do que comumente, à luz do candeeiro. Jesus deu mais uma vez a
Pedro poder sobre os outros. Impôs-lhe mais uma vez o manto,
repetindo o que dissera, ao aparecer-Ihes na praia do lago
Tibérias e no cume da montanha. Ensinou ainda sobre o batismo e
a bênção da água. Durante a oração e a doutrina, já pela manhã,
vi ainda cerca de dezessete discípulos, dos mais íntimos de Jesus,
atrás da SS. Virgem, na sala do Cenáculo.
Antes de saírem de casa, o Senhor apresentou-Ihes a Santíssima
Virgem como centro e intercessora dos fiéis. Pedro e os outros
inclinaram-se diante dela; Maria, porém, abençoou-os.
No momento em que isso se deu, vi Maria revestida, de um modo
sobrenatural, de um grande manto, de cor azul celeste, colocada
sobre um trono, tendo na cabeça uma coroa. Era um símbolo de sua
dignidade.”
2. Jesus sobe ao céu
Ao amanhecer do dia, saiu o Senhor do Cenáculo, conduzindo os onze
Apóstolos pelas ruas de Jerusalém, por todo o caminho da Paixão.
Seguiram-nos Maria e um grupo de discípulos. Onde se dera uma cena
da Paixão, demorava-se alguns momentos, explicando-Ihes a
significação do lugar ou um trecho dos profetas referente a isso.
Onde, porém, os judeus tinham obstruído o lugar, para impedir a
veneração dos fiéis, mandou Jesus tirar esses obstáculos.
Assim saíram da cidade e vieram a um jardim ou lugar de oração,
onde se sentaram à sombra das árvores e Jesus ensinou e
consolou-os. Como no entanto começava a amanhecer,
tomaram-se-Ihes os corações um pouco mais alegres, na esperança
de que Jesus ainda ficasse com eles.
Aproximaram-se então muitas turbas de povo. Jesus continuou o
caminho para o monte Calvário e dali para o Monte das Oliveiras,
onde se sentou novamente num jardim, falando ainda muito tempo
com os discípulos, como para terminar a sua obra.
Já estava reunida numerosa multidão em redor de Jesus e por toda
a redondeza; em Jerusalém correu o boato do grande concurso de
povo no Monte das Oliveiras, ao qual se juntaram novos grupos da
cidade.
Então se dirigiu o divino Salvador ao Horto de Getsêmani e subiu
o Monte das Oliveiras.
"A multidão caminhava como em procissão, subindo o monte
pelos diversos caminhos, de todos os lados e muitos grupos
passavam pelas moitas, pelas sebes e cercas.
O Senhor, porém, tornava-se cada vez mais resplandecente e
ligeiro. Os discípulos seguiam-no, mas não mais podiam
alcançá-Lo. Tendo o Senhor chegado ao cume do monte, brilhava como
a luz branca do sol. Do céu, porém, desceu sobre Ele um círculo
luminoso, que brilhava com todas as cores do arco-íris. Todos os
que O seguiam, ficaram parados, em vasto círculo, como que
ofuscados. O Senhor brilhava ainda mais do que o esplendor que
o cercava. Pousando a mão esquerda sobre o peito, abençoou com
a direita elevada todo o mundo, virando-se para todos os lados.
A multidão ficou imóvel, vi que todos foram abençoados. Jesus não
abençoava como os rabinos, com a mão aberta para a frente, mas
como os bispos cristãos. Senti com grande felicidade essa bênção
sobre todo o mundo.
Então se lhe uniu o próprio esplendor à luz do alto e notei que
se tornava invisível, a partir da cabeça, dissolvendo-se-Ihe a
figura na luz celeste e desaparecia como que subindo. Era como
se um sol entrasse no outro ou como uma chama entrando numa luz
ou uma centelha numa chama. Era como se se fitasse o sol radioso
do meio-dia e ainda mais branco e claro; o pleno dia parecia
escuro, em comparação com aquela luz. Quando já não se Lhe via
mais a cabeça, ainda se podia distinguir-Lhe os pés
resplandecentes, até que desapareceu inteiramente, no esplendor
do céu. Inúmeras almas vieram de todos os lados, entrando nessa
luz e desapareceram no céu com o Senhor. Não posso dizer que O
vi tomar-se cada vez mais pequeno, como algo que voa no ar; mas
vi-O desaparecer numa nuvem de luz.
Ao aparecer a nuvem luminosa, caiu, por assim dizer, um orvalho
de luz sobre todos e não podendo mais suportar essa luz, ficaram
todos cheios de espanto e admiração. Os Apóstolos e discípulos
achavam-se mais perto de Jesus; estavam em parte deslumbrados e
olhavam para baixo; muitos se prostraram por terra. A Santíssima
Virgem estava logo atrás dos Apóstolos, olhando tranqüilamente
para a frente.
Após alguns momentos, quando o esplendor diminuiu um pouco, toda
a assembléia, no maior silêncio e nas mais intensas emoções da
alma, olhou para a luz do alto, que ainda ficou por algum tempo.
Nessa luz vi descer duas figuras, no começo pequenas, crescendo
cada vez mais e aparecer, com vestes longas e brancas e um bastão
na mão, como profetas, falando à multidão; as vozes soavam alto
e forte, como a de trombetas e parecia-me que as deviam ouvir em
Jerusalém. Não se moviam, mas estavam inteiramente imóveis, ao
dizer as poucas palavras: "Homens da Galiléia, que estais aí
olhando para o céu? Esse Jesus que acaba de vos ser arrebatado,
para subir ao céu, voltará como o vistes subir ao céu." Tendo dito
essas palavras, desapareceram.
O esplendor, porém, ficou ainda por algum tempo, até que afinal
se desfez, como do dia se passa à noite. Os discípulos estavam
fora de si, sabiam agora o que lhes tinha sucedido: O Senhor tinha
ido embora para o Pai Celestial. Muitos caíram por terra, de dor
e atordoamento. Enquanto desaparecia o esplendor, recobraram
ânimo e ergueram-se, cercados pelos outros. Muitos formaram
grupos, as mulheres aproximaram-se também e assim se demoraram
ainda, olhando para o céu, pensando e falando sobre o sucedido;
depois voltaram os discípulos a Jerusalém, seguidos pelas
mulheres. Alguns dos mais simples choravam como crianças, outros
se conservavam recolhidos e pensativos. A Santíssima
Virgem, Pedro e João estavam muito tranqüilos e consolados. Vi,
porém, também muitos outros que não estavam comovidos, mas
descrentes e duvidosos e que se apartaram dos outros e se
afastaram; pouco a pouco se dispersou toda a multidão.
No lugar onde Jesus subiu ao céu, havia uma grande laje, sobre
a qual o Divino Mestre estava ensinando ainda, antes de dar a
bênção e desaparecer na nuvem luminosa. As pegadas do Senhor
ficaram impressas na pedra e numa outra se imprimiu uma das mãos
da Santíssima Virgem.
Meio dia já tinha passado, quando toda a multidão acabou de
dispersar-se. Os discípulos e a Santíssima Virgem dirigiram-se
ao Cenáculo. Sentindo a princípio a separação de Jesus, estavam
inquietos e julgavam-se abandonados. Quando, porém, se acharam
reunidos no Cenáculo, encheram-se todos de consolação,
principalmente pela presença cal ma da Santíssima Virgem no meio
deles e, confiando inteiramente na palavra de Jesus, de que Maria
lhes seria o centro, a Mãe e intercessora, recuperaram a paz de
coração.
3. Preparação dos Apóstolos e discípulos para a vinda do
Espírito Santo
Os dez dias entre a ascensão do Senhor e a vinda do Espírito Santo
passaram-nos os Apóstolos reunidos com a Santíssima Virgem, no
Cenáculo. Reuniam-se freqüentemente para a oração, na sala da
última Ceia, em que observavam uma ordem mais rigorosa do que o
grande número de discípulos e fiéis, também presentes. Demais
viviam muito recolhidos, temendo também a perseguição dos Judeus.
Um dia Pedro, estando no meio dos Apóstolos, vestido da
vestidura episcopal, propôs a eleição de um Apóstolo em lugar de
Judas, indicando a José Bársabas e Matias para esse fim. Ambos
nunca tinham pensado nisso, nem desejado tal dignidade, enquanto
muitos dos discípulos que assistiram à eleição, desejavam ser
Apóstolos.
Matias, apesar de mais delicado e fraco, por possuir maior
fortaleza da alma foi preferido por Deus a Bársabas, que era
jovem, na flor da idade. Como a piedosa Emmerich relata em poucas
palavras apenas esse acontecimento importante, damos a seguir
aqui a bela narração dos Atos dos Apóstolos de S. Lucas (1, 15-26):
Naqueles dias, levantando-se Pedro no meio dos Irmãos (e montava
a multidão dos que ali se achavam juntos, a quase cento e vinte
pessoas), disse: "Irmãos, é necessário que se cumpra a Escritura,
em que o Espírito Santo predisse, pela boca de Davi, acerca de
Judas, que foi o condutor daqueles que prenderam Jesus; e o qual
estava entre nós alistado no mesmo número e a quem coube parte
deste ministério. E este possuiu de fato um campo do preço da
iniqüidade; e depois de se enforcar, arrebentou pelo meio e todas
as entranhas se lhe derramaram na terra. E tão notório se fez a
todos os habitantes de Jerusalém este fato, que se ficou chamando
aquele campo, na língua deles, Hacéldama, isto é, campo de sangue.
Porque escrito está no livro dos Salmos: Fique deserta a habitação
dele e não haja quem nela habite e receba-lhe outro o seu cargo.
Convém, pois, que destes homens, que têm estado juntos na nossa
companhia, todo o tempo em que viveu entre nós o Senhor Jesus,
começando desde o batismo de João, até o dia em que foi arrebatado ao céu, que um dos tais seja testemunha conosco da
ressurreição.
E propuseram dois: José, que era chamado Bársabas, o qual tinha
por sobrenome o Justo e Matias. E orando, disseram: Tu, Senhor,
que conheces os corações de todos, mostra-nos destes dois a quem
escolheste, para que tome o lugar deste ministério e aposto lado,
do qual pela prevaricação decaiu Judas, para ir ocupar-lhe o
lugar. E a respeito lançaram sortes e caiu a sorte sobre Matias,
que foi contado no número dos Apóstolos.
4. A vinda do Espírito Santo
Para a santa festa de Pentecostes enfeitaram a sala da última Ceia
festivamente, com árvores, grinaldas e flores. Nas vésperas da
festa, Pedro benzeu dois pães ázimos, partiu e distribuiu-os aos
Apóstolos e à Santíssima Virgem. À cidade, porém, chegaram muitos
peregrinos para a festa de Pentecostes, estrangeiros de
variadíssimos trajes e costumes estranhos.
Os Apóstolos e discípulos passaram a noite antes de
Pentecostes, junto com Maria e as santas mulheres, na sala da
última ceia, em oração e silenciosa meditação, preparando-se
para a vinda do Espírito Santo. Estavam reunidas ao todo mais de
cento e vinte pessoas. Todos desejavam ardentemente a vinda do
Consolador prometido, que os encheria, segundo a promessa de
Jesus, de força celeste. A piedosa serva de Deus descreve esse
importante acontecimento com palavras intuitivas:
"Percebi, depois de meia-noite, uma maravilhosa intensidade e um
movimento misterioso e benfazejo na natureza inteira, que se
comunicava a todos os presentes. Pareceu-me também que, pela
abertura no teto da sala, se podia ver o céu tornar-se mais claro.
Os Apóstolos tinham-se retirado em silêncio do meio da sala para
junto das paredes, ficando perto das colunas; por entre eles vi
os discípulos nos pórticos laterais, olhando pelas paredes
abertas para dentro da sala. Pedro estava diante da cortina atrás
da qual se guardava o Santíssimo Sacramento; a Santís sima
Virgem, porém, estava na sala, diante da porta do vestíbulo, no
qual se achavam as santas mulheres.
Estando assim todos silenciosos, cheios de veemente desejo,
com os braços cruzados sobre o peito, olhos baixos,
propagou-se-lhe a calma e o silêncio por toda a casa. Os
discípulos, nos átrios laterais, se dirigiram todos aos
respectivos lugares e após alguns momentos, reina va o maior
silêncio em todo o redor da casa.
Pela manhã vi sobre o Monte das Oliveiras, onde Nosso Senhor
subira ao céu, se aproximar uma nuvem luminosa, resplandecente,
prateada, vindo do céu, em direção à casa dos Apóstolos, em Sião.
Vi-a primeiro, a grande distância, como um globo, cujo movimento
acompanhava uma doce e ardente brisa. Ao aproximar-se, aparecia
cada vez maior a nuvem luminosa, passando como um nevoeiro
brilhante sobre a cidade, até que parou sobre Sião e a casa da
última Ceia, concentrando-se cada vez mais e tornando-se cada vez
mais clara e transparente como um sol brilhante; finalmente
desceu, com crescente sussurro, como uma nuvem de trovoada muito
baixa. Muitos judeus, que ouviram o bramido e viram a nuvem,
correram assustados ao Templo. Toda essa cena tinha alguma
semelhança com uma trovoada que se aproxima rapidamente, mas em
vez de trovão, ouvia-se o zunido, que se sentia, porém, como uma
brisa cálida e profundamente reconfortante.
Quando a nuvem luminosa pairava muito baixo sobre o Cenáculo e, a
par do crescente ruído, se tomava cada vez mais brilhante, vi
também a casa e os arredores banhados numa luz intensa, mas os
Apóstolos, discípulos e mulheres, cada vez mais silenciosos e
ardentes.
Eram cerca de três horas da manhã, antes do nascer do sol, quando
vi de repente saírem da nuvem, sussurrante, torrentes de luz
branca, que se cruzavam sete vezes e ao cruzarem, se dissolviam
em raios e gotas ígneas, que caíram sobre a casa e arredores. O
ponto em que as sete torrentes de luz se cruzavam, era cercado
como de um arco-íris, onde vi formar-se uma figura luminosa e
pairar sobre a casa; parecia-me que essa figura tinha asas
estendidas sob os ombros; mas não posso dizer com certeza se eram
asas, pois tudo parecia emanação de luz. Nesse momento, porém,
toda a casa estava cheia de luz em redor. Não vi mais a luz do
candelabro de cinco braços. As pessoas reunidas estavam todas
como pasmas e extasiadas; levantaram inconscientemente os
rostos, com desejo ardente e vi derramar-se na boca de todos uma
torrente de luz, como pequenas línguas de fogo em chamas. Era como
se respirassem e recebessem ardentemente esse fogo e como se algo
de sua boca, em ardente desejo, fosse ao encontro dessas chamas.
O santo fogo derramou-se também sobre os discípulos e as mulheres,
no vestíbulo e desta forma se dissolveu a nuvem luminosa
gradualmente, como uma nuvem que derrama chuva de luz. As línguas
de fogo vieram sobre todos, mas com intensidade e cores
diferentes.
O estrondo semelhante a uma trovoada acordou muitos homens. O
Espírito comoveu muitos fiéis e discípulos que moravam nos
arredores.
Depois de acabada a efusão do Espírito, nasceu alegre coragem em
toda a assembléia. Todos estavam comovidos e como embriagados
de alegria e confiança. Rodeavam a Santíssima Virgem, única que
permane cia toda tranqüila e calma, em seu habitual recolhimento
e santo silêncio, apesar de feliz e confortada. Os Apóstolos,
porém, abraçavam-se uns aos outros, penetrados de uma jubilosa
audácia de falar. Era como se clamassem uns aos outros: Em que
estado estávamos? Que foi feito de nós? - Também as santas
mulheres abraçavam umas as outras; todos os discípulos, nos
corredores, estavam do mesmo modo comovidos. Os Apóstolos
correram para eles e em todos havia, por assim dizer, nova vida,
cheia de alegria, confiança e coragem.
Esse transporte de Iluminação do coração e de conforto terminou
em uma ação de graças. Reuniram-se em oração, dando graças a Deus,
com profunda comoção. No entanto desapareceu gradualmente a luz.
Pedro fez então um discurso aos discípulos e enviou alguns para
os acampamentos de peregrinos bem-intencionados, vindos para a
festa de Pentecostes.
Havia, porém, entre o Cenáculo e a piscina de Betesda diversos
barracões e dormitórios abertos, onde os forasteiros que vinham
para a festa, dormiam e guardavam os animais. Estavam ali muitos
dormindo; outros estavam acordados e receberam também a graça do
Espírito Santo; pois passara uma emoção geral pela natureza.
Muitos homens bons receberam iluminação e a graça da conversão;
os maus, porém, ficaram tímidos, medrosos e ainda mais
endurecidos. - A maior parte dessa gente, que estava acampada
naqueles arredores, onde se reunira a nascente comunidade, estava
já ali desde a Páscoa, porque, pela distância de sua terra, não
valia a pena fazer a viagem de ida e volta entre a Páscoa e
Pentecostes. Esses, pois, por tudo que ouviram e viram, se
tornaram mais familiares e amigos dos discípulos do que os outros.
Quando os discípulos enviados por Pedro os procuraram e lhes
anunciaram o cumprimento da promissão do Espírito Santo,
tornaram-se de diversos modos conscientes de sua própria
conversão e, obedecendo à palavra dos discípulos, reuniram-se
todos em redor da piscina de Betesda, que ficava próxima.
No entanto Pedro no Cenáculo impôs as mãos a cinco Apóstolos, que
deviam ajudar a ensinar e batizar na piscina de Betesda. Se me
lembro bem, foram esses Tiago o Menor, Bartolomeu, Matias, Tomé
e Judas Tadeu. Vi nessa ordenação, que o último tinha uma visão:
foi como se o visse abraçar o corpo de Nosso Senhor.
Antes de Irem à piscina de Betesda, para benzer a água e batizar,
vios ainda receber a bênção da SS. Virgem, ajoelhados diante dela;
antes da ascensão de Jesus a recebiam em pé. Vi os Apóstolos
receberem essa bênção sempre, nos dias seguintes, antes de saírem
e depois de voltarem. Nesses atos de bênção e sempre quando
comparecia entre os Apóstolos, em sua dignidade, a SS. Virgem
vestia um longo manto branco, um véu amarelo sobre o rosto e na
cabeça, caindo de ambos os lados até quase ao chão, uma larga faixa
de pano azul celeste, dobrada sobre a testa um pouco para trás,
enfeitada de bordado e segura na cabeça por uma pequena coroa de
seda branca.
5. Sermão e batismo na piscina de Betesda
Convidada pelos discípulos, reuniu-se uma grande multidão de povo
em redor da piscina de Betesda. Os discípulos contaram com grande
alegria o que sucedera. Pedro enviou os cinco Apóstolos antes
mencionados, que se colocaram nas cinco entradas da piscina e
falaram com entusiasmo ao povo. Esse, porém, se assustou, porque
cada um os ouvia falar em sua própria língua.
Estavam, pois, todos atônitos e admiravam-se, dizendo:
"Porventura não se está vendo que todos estes que falam são
galileus? E como os ouvimos falar cada um na língua de nosso país
natal? Partos e Medos e Elamitas e os que habitam a Mesopotâmia,
a Judéia e a Capadócia, o Ponto e a Ásia, a Frigia e o Egito, várias
partes da Líbia, que fica próximo de Cirene e os que vieram de
Roma; também Judeus e prosélitos, Cretenses e Árabes, todos nós
os ouvimos narrar nas nossas línguas as maravilhas de Deus."
Estavam, pois, atônitos e maravilhavam-se, dizendo uns aos
outros: "Que quer isto dizer?" Outros, porém, escarnecendo,
diziam: "É porque estão embriagados de vinho doce." (Atos 2,
7-13).
Pedro, porém, subiu a um púlpito, levantou a voz e disse: "Homens
da Judéia e todos os que habitais em Jerusalém, sabei e com
ouvidos atentos escutar as minhas palavras. Estes homens não
estão tomados de vinho, como pensais, pois é ainda a hora terceira
do dia; mas é o que foi dito pelo profeta Joel: E acontecerá nos
últimos dias, diz o Senhor, que derramarei meu Espírito sobre toda
a carne e profetizarão vossos filhos e vossas filhas e vossos
jovens terão visões e os vossos anciãos sonharão. Sim, naqueles
dias derramarei meu Espírito sobre os meus servos e sobre as
minhas servas e profetizarão; e farei ver prodígios em cima no
céu e sinais em baixo na terra, sangue e fogo e vapor de fumo.
O sol converter-se-á em trevas e a lua em sangue, antes que venha
o grande e ilustre dia do Senhor. E isto acontecerá: Todo aquele
que invocar o nome do Senhor, será salvo. Israelitas, ouvi estas
palavras: Jesus Nazareno, homem aprovado por Deus entre vós, com
virtudes e prodígios e sinais, que Deus operou por Ele no meio
de vós, como bem o sabeis, depois de vos ser entregue pela
decretada vontade e presciência de Deus, vós, crucificando-O por
mãos de iníquos, lhe tirastes a própria vida; Deus, porém, o
ressuscitou, dissipadas as dores do reino da morte, porquanto era
impossível que por este fosse retido. Pois Davi diz dEle: Eu via
sempre o Senhor diante de mim, porque está à minha direita, para
que eu não seja abalado; por isso se alegrou o meu coração e se
regozijou a minha língua e além disto, também a minha carne repousará na esperança, porque não deixarás a minha alma no reino dos
mortos, nem permitirás que o teu Santo experimente corrupção.
Fizeste-me conhecer os caminhos da vida e encher-me-ás de
alegria, mostrando-me a tua face. Irmãos, seja-me permitido
dizer-vos ousadamente do patriarca Davi que ele morreu, foi
sepultado e o seu sepulcro se vê entre nós, até o dia de hoje.
Sendo, pois, um profeta e sabendo que com juramento lhe havia Deus
prometido que do fruto de seu sangue se assentaria alguém sobre
o seu trono, antevendo-o, falou da ressurreição de Cristo, que
nem seria deixado no reino dos mortos, nem a sua carne veria a
corrupção.
Deus o ressuscitou, e todos nós somos testemunhas. Assim é
que, depois que subiu à direita de Deus e havendo recebido do Pai
a promessa do Espírito Santo, O derramou sobre nós, como vedes
e ouvis. Pois Davi não subiu ao céu, mas ele mesmo disse: O Senhor
disse ao meu Senhor: Assenta-te à minha direita, até que eu ponha
os teus inimigos por escabelo dos teus pés. Saiba portanto toda
a casa de Israel, com a maior certeza, que Deus o fez não só Senhor,
mas também Cristo, a este Jesus que crucificastes.”
Tendo ouvido estas coisas, ficaram compungidos no coração e disseram a Pedro e aos mais Apóstolos: "Que devemos fazer, irmãos?”
Pedro então Ihes respondeu: "Fazei penitência e cada um de vós
seja batizado em nome de Jesus Cristo, para remissão de vossos
pecados e recebereis o dom do Espírito Santo; porque para vós é
a promessa e para vossos filhos e para todos os que estão longe
e quantos chamar a si o Senhor nosso Deus." Com outras muitíssimas
razões o testificou ainda e exortava-os, dizendo: "Salvai-vos
dessa geração depravada". (Atos 2, 14-40).
Batizaram então durante todo o dia. No entanto ensinavam os
Apóstolos, para preparar o povo à recepção dos santos
Sacramentos. Cerca de três mil homens receberam no dia de
Pentecostes o santo Batismo, inclusive as santas mulheres.
Auxiliada por elas, distribuía Maria as vestes brancas aos
batizandos.
A Mãe de Deus foi batizada depois de Pentecostes, sozinha, na
piscina de Betesda, por João, que celebrou antes a Santa Missa,
como era celebrada naqueles tempos: consagravam-se a hóstia e o
vinho com algumas orações.
13
A expansão da Igreja cristã na Judéia
1. A cura do paralítico de nascença. Sermão de Pedro no Templo
2. Ensino no Templo. A primeira santa Missa e ordenação de
sacerdotes
3. Curas milagrosas pela sombra de Pedro. Encarceramento
dos ApóstoIos
4. Comunhão de bens. Crescimento da comunidade
5. Eleição dos sete diáconos. Queixas por causa da distribuição
das esmolas
6. As obras do diácono S. Felipe
7. Perseguições
8. Estêvão é interrogado e apedrejado
9. A conversão de Saulo
10. Herodes manda decapitar Tiago o Maior e lançar Pedro no
cárcere
11. Outras provações da Igreja de Jerusalém
A expansão da Igreja cristã na Judéia
1. A cura do paralítico de nascença. Sermão de Pedro no Templo
A pequena comunidade dos fiéis recebera um forte incremento no
dia de Pentecostes. Com toda a razão se dá a este dia o nome de
data de fundação da santa Igreja. Na sala do Cenáculo cabia só
um número relativamente pequeno de fiéis; já tinham começado a
instalar uma Igreja na velha sinagoga, situada na vizinhança da
piscina de Betesda. Esses trabalhos estavam então terminados e
Pedro, seguido dos Apóstolos, dos discípulos, de Maria e das
santas mulheres, levou o Santíssimo Sacramento, em solene
procissão, do Cenáculo para essa primeira Igreja cristã e
colocou-O no tabemáculo, sobre o altar.
Não muito tempo depois foram Pedro e João, com alguns discípulos,
ao Templo.
"Estavam, porém, alguns homens levando um paralítico numa
padiola, para a porta do Templo. Pedro e João, ao subirem a escada,
lhe disseram algumas palavras. Depois falou Pedro por algum tempo
com grande ardor ao povo, no átrio do Templo. Durante esse sermão
foram as saídas do Templo ocupadas por soldados e os sacerdotes
conferenciavam de vez em quando uns com os outros.
Então vi Pedro e João, ao dirigirem-se ao Templo, passarem perto
do paralítico, que lhes pediu uma esmola. Estava deitado diante
da porta, todo encolhido, apoiando-se sobre o cotovelo esquerdo
e segurando com a direita uma muleta, com a qual debalde procurava
levantar-se um pouco. Pedro disse-lhe: "Olha para nós!" E como
ele o fizesse, disse Pedro: "Ouro e prata não tenho, mas o que
tenho, dou-te: Em nome de Jesus Cristo de Nazaré, levanta-te e
anda." E tomando-lhe a mão direita, levantou-o e João segurou-o
sob o braço. Então ficou o homem em pé, alegre e forte e vi-o
curado, saltando, com gritos de alegria e correndo pelo Templo.
Pedro e João, porém, foram ao átrio e num lugar onde o Menino Jesus
ensinara na idade de doze anos, subiu Pedro à cátedra. Muito povo
da cidade e numerosos forasteiros o rodearam; também o paralítico
curado estava neste círculo.
Pedro, porém, falou da cátedra ao povo:
"Homens israelitas! porque vos admirais disto ou porque pondes os
olhos em nós, como se por nossa virtude ou poder tivéssemos feito
andar este homem? O Deus de Abraão, o Deus de Isaac, o Deus de
Jacó, o Deus de nossos pais glorificou seu Filho Jesus, a
quem entregastes e negastes perante Pilatos, julgando este que
se Lhe devia dar a liberdade. Mas vós renegastes o Santo, o Justo
e pedistes que se vos desse um assassino. E assim matastes o autor
da vida, a quem Deus ressuscitou dentre os mortos, do que somos
testemunhas. E pela fé em seu Nome foi que seu Nome curou a este,
que vedes e conheceis; e a fé que Ele nos comunicou, foi que lhe
deu inteira saúde, à vista de todos vós. Entretanto, irmãos, sei
que o fizestes por ignorância, como também os vossos magistrados.
Mas Deus cumpriu assim o que já dantes anunciara, por boca de todos
os profetas: que o Cristo padeceria. Portanto, arrependei-vos e
convertei-vos, para que os vossos pecados vos sejam perdoados;
para que venham os tempos do refrigério diante do Senhor, quando
enviar o mesmo Jesus Cristo, sobre o qual vos foi pregado. Por
ora certamente é necessário que o céu O receba, até aos tempos
da restauração de todas as coisas, de que Deus falou, por boca
dos santos profetas, desde o princípio do mundo. Moisés, de fato,
disse: "Porquanto o Senhor, vosso Deus, vos suscitará um profeta
dentre vossos irmãos, semelhante a mim; a este ouvireis em tudo
o que vos disser. E isto acontecerá: Toda a alma que não ouvir
aquele profeta, será exterminada do meio do povo. E todos os
profetas, desde Samuel e quantos depois falaram, anunciaram estes
dias. Vós sois os filhos dos profetas e da aliança que Deus
estabeleceu com nossos pais, dizendo a Abraão: E na tua
descendência serão abençoadas todas as gerações da terra. Deus,
ressuscitando seu Filho, vo-Lo enviou primeiramente a vós, para
que vos abençoasse; afim de que cada um se aparte da maldade."
(Atos 3,12 - 26).
"Então muitos daqueles que tinham ouvido a pregação, creram
nela e chegou o número destes a cinco mil pessoas." (Atos 4, 4.)
Tendo Pedro ensinado com grande entusiasmo até a meia noite, foi
preso, junto com João e o paralítico curado, pelos soldados do
Templo e metido num cárcere, no tribunal de Caifás.
No outro dia foram levados, com murros e pancadas, à sala do
tribunal, onde se tinham reunido Caifás e o Conselho Supremo.
E mandando-os apresentar, perguntavam-Ihes: "Com que poder e em
nome de quem fizestes isto?" Então Pedro, cheio do Espírito Santo,
lhes respondeu: "Príncipes do povo e vós, ánciãos, ouvi-me. Se
hoje se nos pede razão do benefício feito a um homem enfermo, com
que virtude este foi curado, seja notório a todos vós e a todo
o povo de Israel, que em nome de nosso Senhor Jesus Cristo
Nazareno, a quem crucificastes e a quem Deus ressuscitou dos
mortos, é que este se acha curado, em pé diante de vós. Jesus
Cristo é a pedra que foi reprovada por vós, arquitetos e que se
tornou a pedra fundamental; e não há salvação em nenhum outro,
porque abaixo do Céu nenhum outro nome foi dado aos homens, que
possa salvar-nos.”
Ora, vendo a firmeza de Pedro e João e sabendo que eram homens
ignorantes e simples, admiravam-se e conheciam que eram aqueles
que tinham estado com Jesus. Vendo também em pé, ao lado deles,
o homem que havia sido curado, não podiam dizer nada em contrário.
MandaramIhes, pois, que saíssem para fora da sala do conselho e
conferenciavam entre si, dizendo: "Que faremos a estes homens?
Porquanto fizeram, na verdade, um milagre, notório a todos os
habitantes de Jerusalém; é manifesto e não o podemos negar.
Todavia, para que não se divulgue mais entre o povo, ameacemo-los,
para que no futuro não falem mais a ninguém neste nome". E
chamando-os. Intimaram-nos a que absolutamente não falassem
mai~, nem ensinassem no nome de Jesus. Mas Pedro e João,
respondendo-lhes, disseram: "Se é justo diante de Deus ouvir
antes a vós do que a Deus, julgai-o vós mesmos; porque não podemos
deixar de falar das coisas que temos visto e ouvido." Então,
ameaçandoos, os deixaram ir livres, não achando pretexto para os
castigar, por medo do povo, porque todos celebravam o milagre que
se fizera, no fato que tinha acontecido". (Atos 4, 7-21).
2. Ensino no Templo. A primeira santa Missa e ordenação
de sacerdotes
Pedro ensinou novamente, com grande poder, no Templo, onde também
se reuniram os outros Apóstolos e discípulos, confirmando as explicações de. Pedro. Então se dirigiram, com os batizados e
recém-convertidos, em procissão, dois a dois, ao Cenáculo, em
Sião. Chegados aí, Pedro e João conduziram a SS. Mãe de Jesus,
que vestira as vestes festivas e rezara ajoelhada diante do SS.
Sacramento, à porta do vestíbulo. Pedro fez uma alocução aos
recém-convertidos, entregando-os à proteção de Maria, a Mãe
comum. Apresentou-lhos em grupos de vinte; a Virgem Santíssima,
porém, abençoou cada grupo, dirigindo-lhes algumas palavras.
Pedro celebrou então a santa missa no cenáculo. Vi fazer-se
tudo como Jesus fizera na instituição do SS. Sacramento:
oferecer, depositar vinho no cálice, lavar as mãos e consagrar.
O vinho e a água foram depositados de lados diferentes. Num lado
do altar havia rolos da Escritura. Pedro, após ter comungado, deu
também o SS. Sacramento e cálice aos dois que ajudavam. João deu
a sagrada Comunhão também aos outros; Maria foi a primeira que
a recebeu, depois os Apóstolos e mais seis discípulos, que em
seguida receberam ordens e ainda muitos outros. Aqueles que
comungavam, tinham diante de si uma toalha, uma faixa comprida
de pano, que dois seguravam dos lados. Não vi, porém, que todos
recebessem o cálice.
Os seis discípulos que então receberam as santas ordens,
avançaram do lugar dos discípulos para o dos Apóstolos, mais para
o coro. Maria trouxe-lhes as vestes, pondo-as sobre o altar. Eram:
Zaqueu, Natanael, José Bársabas, Barnabas, João Marcos e Eliú,
filho do velho Simeão. Ajoelhavam-se dois a dois diante de Pedro,
que lhes dirigia a palavra e rezava, lendo num pequeno rolo da
Escritura. João e Tiago tinham velas na mão; pousavam-lhes a mão
sobre os ombros e Pedro sobre a cabeça. Pedro cortou-lhes o
cabelo, pondo-o sobre um prato no altar, ungiu-lhes a cabeça e
as mãos com óleo de um vaso que João segurava. Depois lhes puseram
também as vestes e estolas, que cruzavam em parte debaixo do
braço, em parte sobre o peito.
No fim da solenidade Pedro abençoou a comunidade com o
grande cálice da última Ceia, no qual era conservado o SS.
Sacramento.”
Acabada a cerimônia, dirigiram-se todos à piscina de Betesda,
onde os recém-convertidos, homens e mulheres, foram batizados.
Catharina Emmerich descreve em outro lugar a cerimônia da Missa:
"Pedra rezava diante do altar e dois Apóstolos ao lado lhe
acompanhavam a oração e os atos. Vi que levantou o pão e o vinho
no cálice, oferecendo-os, depois partiu o pão em bocados,
benzeu-os e pronunciou as palavras da consagração sobre o pão e
o vinho, depois do que começaram a luzir.
Quando elevou o pão e o cálice, oferecendo-os, vi aparecer uma
mão resplandecente por cima do altar, como saindo de uma nuvem;
quando benzeu e disse as palavras da consagração, moveu-se também
essa mão, benzendo; só desapareceu quando todos se afastaram. Não
vi que Pedro o notasse também.
Depois da consagração, Pedro tomou primeiro um bocado e encheu
então o vaso, que era tão largo, que muitos dos bocados ali cabiam,
uns sobre os outros. Então se aproximaram os Apóstolos que estavam
presentes e receberam na boca o SS. Sacramento, da mão de Pedro;
depois vieram também os outros assistentes, recebendo o SS.
Sacramento, como da primeira vez. Acabando os bocados no vaso,
Pedro voltou ao altar, para encher de novo com os que restavam
no prato e continuou distribuindo a Santa Comunhão.
Como na sala não cabiam todos e muitos ficavam fora, saíram os
primeiros, depois de terem recebido o Sacramento e os outros
entraram. Os que comungavam, não se ajoelhavam, mas inclinavam-se
respeitosamente, ao receber o SS. Sacramento. Tendo saído os
últimos, entraram de novo os primeiros. Quando Pedro consagrou
o vinho, não rezou tanto tempo como da primeira vez; vi-o falar
sobre ele palavras que luziam. Depois bebeu e deu também aos
Apóstolos para beberem. Os Apóstolos ofereceram o cálice ainda
aos outros.”
3. Curas milagrosas pela sombra de Pedro. Encarceramento
dos Apóstolos
Pedro foi ao Templo, com João e os outros sete Apóstolos que
ficaram em Jerusalém. "Já no caminho fora da cidade, no vale de
Josafá, havia muitos enfermos, deitados em redor do Templo, no
átrio dos gentios e até na escadaria do Templo. Vi que era
principalmente Pedro que curava; os outros curavam também, é
verdade, mas era mais para auxiliar a Pedro. Este curava só
aqueles que acreditavam em Jesus e se queriam unir à comunidade
dos cristãos. Onde havia uma dupla fila de doentes, vi a sombra
de Pedro cair sobre a segunda fila, enquanto curava e os enfermos
saravam pela vontade dele. A muitos se negou a curar. Ensinou
também no Templo, defronte do altar dos holocaustos, à direita
e também num lugar elevado, com degraus, na sala lateral, à
esquerda de quem entrava no Templo. Ninguém os estorvava; o povo
era-lhes muito
dedicado.”
Os Atos dos Apóstolos, cap. 5, continuam a narração:
Assim, pois, concorriam multidões de homens das cidades vizinhas
de Jerusalém, trazendo os enfermos e os cativos de espíritos
imundos, os quais eram todos curados. Mas, levantando-se o
príncipe dos sacerdotes e todos os que com ele estavam (a seita
dos saduceus), encheram-se de inveja e de ciúme e fizeram prender
os Apóstolos e metê-los na cadeia pública. Mas o Anjo do Senhor,
abrindo de noite as portas do cárcere e tirando-os para fora,
disselhes: "Ide e apresentai-vos no Templo, pregai ao povo todas
as palavras de vida." Tendo ouvido isto, entraram ao amanhecer
no Templo e se puseram a ensinar. Mas, chegando o príncipe dos
sacerdotes e os que com ele estavam, convocaram o conselho e todos
os anciãos dos filhos de Israel e mandaram buscar os Apóstolos
no cárcere. Mas tendo lá ido os agentes e como, aberto o cárcere,
não os achassem, voltaram e deram a notícia: "Achamos o cárcere
fechado com toda a diligência e os guardas diante das portas; mas,
abrindo-as, não achamos ninguém dentro." Quando, porém, ouviram
esta novidade, o magistrado do Templo e os príncipes dos
sacerdotes ficaram perplexos sobre o que teria sido feito deles.
Mas ao mesmo tempo chegou alguém, que Ihes deu esta notícia:
"Olhai que aqueles homens que metestes no cárcere, estão no
Templo, ensinando o povo." Então foi o magistrado com os agentes
e trouxe-os sem violência, porque temia ser apedrejado pelo povo.
E logo que os trouxeram, apresentaram-nos ao conselho e o príncipe
dos sacerdotes fez-Ihes a seguinte pergunta: "Não vos ordenamos,
com expresso preceito, que não ensinásseis neste nome? E não
obstante, tendes enchido Jerusalém da vossa doutrina; e quereis
lançar sobre nós o sangue desse homem." Mas Pedro e os Apóstolos,
respondendo, disseram: "Importa mais obedecer a Deus do que aos
homens. O Deus dos nossos pais ressuscitou Jesus, a quem destes
a morte, pendurando-O num madeiro. A Este elevou Deus com sua
destra, como príncipe e como Salvador, para dar a contrição a
Israel e a remissão dos pecados. E somos testemunhas destas
palavras e também o Espírito Santo, que Deus deu a todos os que
lhe obedecem." Quando isto ouviram, enraiveceram-se e planejaram
matá-Ios. Mas, levantando-se no conselho um fariseu, por nome
Gamaliel, doutor da lei, homem de respeito em todo o povo, mandou
que saíssem para fora aqueles homens, por um breve espaço de
tempo. E disse: "Homens israelitas, refleti bem no que haveis de
fazer acerca destes homens. Porque, em tempos passados, se
levantou um certo Teodas, que dizia ser um grande homem, a quem
aderiu o número de quatrocentos homens; o qual foi morto e todos
que nele acreditavam foram desfeitos e reduzidos a nada. Depois
deste se levantou Judas Galileu, nos dias em que se fazia o
arrolamento do povo e levou-o após si, mas pereceu e foram
dispersos todos quantos se lhe acostaram. Agora, pois, vos digo:
não vos metais com estes homens, deixai-os; porque, se este conselho ou esta obra vem dos homens, há de desvanecer-se; se, porém,
vem de Deus, não podereis desfazê-Ia, para que não pareça que
resistis até a Deus." Seguiram-lhe o conselho e, tendo chamado
os Apóstolos, depois de os haverem feito açoitar, mandaram-Ihes
que não falassem mais no nome de Jesus e soltaram-nos. Os
Apóstolos, porém, saíram da presença do conselho verdadeiramente
contentes, por terem sido achado dignos de sofrer afrontas pelo
nome de Jesus. E todos os dias não cessavam de ensinar e de pregar
Jesus Cristo, no Templo e pelas casas." (Atos 5)
4. Comunhão de bens. Crescimento da comunidade
Dos primeiros cristãos diz a Escritura Sagrada a bela palavra:
"da multidão dos que criam, o coração era um e a alma uma; e nenhum
dizia pertencer-lhe coisa alguma das que possuía, mas tudo entre
eles era comum." (Atos 4,32.)
Já depois do ágape, no domingo da Páscoa, os Apóstolos e
discípulos propuseram esta resolução. Os recém-convertidos
concordaram com a proposta.
"Pedro ensinava que nenhum devia possuir mais do que o outro, que
deviam repartir tudo e cuidar dos pobres que se reuniam à
comunidade. Vi que no pátio do Cenáculo matavam rezes, trinchavam
ovelhas e cabras, distribuindo tudo aos necessitados. As peles
eram entregues a um homem, para as preparar. Os pobres recebiam
também cobertores, pano de lã para roupa e pão. Tudo era
distribuído. Reinava sempre boa ordem na distribuição; as
mulheres recebiam sua parte da mão de mulheres e os homens da mão
de homens.”
Aos recém-convertidos foram destinadas também as casas de Marta
e Madalena; Lázaro distribuiu toda a fortuna pela comunidade. Do
mesmo modo entregou Barnabas todo o dinheiro recebido pela venda
de seus bens, na ilha de Chipre.
Juntou-se-Ihes também um judeu rico, de nome Ananias, com a
mulher, Safira, moradores da Betânia. Ananias trouxe panos,
ovelhas e jumentos, donativos para a comunidade e pediu o batismo.
Antes de ser admitido, trouxe ainda o produto da venda de um campo;
mas, com o consentimento da mulher, guardara parte do dinheiro
para si. Quando, porém, veio pôr o dinheiro aos pés de Pedro, na
presença dos Apóstolos e de todos os recém-convertidos,
repreendeu-o este por causa da mentira e logo caiu Ananias morto.
A mesma sorte teve também Safira.
Esse acontecimento é narrado mais extensamente nos Atos dos
Apóstolos, cap. 5:
"Um varão, pois, por nome Ananias, com a mulher, Safira, vendeu
um campo e com fraude usurpou certa porção do preço do campo, com
consentimento da mulher; e levando uma parte, depositou aos pés
dos Apóstolos. E disse Pedro: "Ananias, porque tentou Satanás o
teu coração para que mentisses ao Espírito Santo e reservasses
parte do preço do campo? Porventura não te era livre ficar com
ele e ainda depois de vendido, não era teu o preço? Como
assentaste, pois, em teu coração fazer tal? Sabe que não mentiste
aos homens, mas a Deus." Ananias, porém, ouvindo estas palavras,
caiu e expirou. E infundiu-se um grande temor em todos os que o
ouviram. Levantando-se então uns mancebos, carregaram-no e
levando-o dali para fora, enterraram-no.
E passado que foi o espaço de três horas, entrou também a mulher,
não sabendo o que tinha acontecido. E Pedro disse-lhe: "Dize-me,
mulher, se vendeste por tanto a herdade?" e ela disse: "Sim, por
tanto." Pedro então lhe disse: "Porque assim combinastes, para
tentar o Espírito do Senhor? Eis aí estão à porta os pés daqueles
que enterraram teu marido e te levarão a ti." No mesmo instante
lhe caiu Safira aos pés e expirou e os moços, entrando, acharam-na
morta e levando-a, enterraram-na junto do marido. E difundiu-se
um grande temor por toda a Igreja e entre todos os que ouviram
narrar este acontecimento.
Os cômodos da casa perto da piscina da Betesda, daí há pouco, não
bastavam mais para a multidão dos recém-convertidos. Os Apóstolos
entraram, pois, em negociações com os magistrados judeus, para
conseguir outros terrenos para habitações. Foram-Ihes indicados
três terrenos apropriados, perto de Betânia. O povo mudou para
lá e puseram tendas leves em redor de uma tenda maior, na qual
morava um discípulo e se guardavam as provisões comuns. Assim se
formaram três comunidades novas de fiéis.
Os Apóstolos, porém, procuravam também os velhos amigos, que
moravam em lugares mais afastados, para lhes informar sobre os
acontecimentos após a última Páscoa, para lhes ensinar e os
batizar. Assim mandou Pedro a Tomé, Filipe e Matias, cada um com
mais um discípulo, a Samaria, Tebez e Tibérias. Mas também Pedro
e os outros Apóstolos se espalharam por toda a Judéia; apenas
Tiago o Menor, com alguns discípulos, ficou em Jerusalém e na
Igreja de Betesda.
5. Eleição dos sete diáconos. Queixas por causa da distribuição
das esmolas
Nesse tempo se ouviram queixas das viúvas e dos órfãos sobre a
distribuição das esmolas. Reuniram-se por isso novamente todos
os Apóstolos no CenáciIlo, em volta de Pedro, a quem todos se
submetiam e que lhes deu a santa Comunhão. Depois o conduziram,
vestido do ornato episcopal, ao vestíbulo da casa, onde dirigiu
a palavra aos numerosos discípulos e recém-convertidos, para
promulgar ordens a respeito da distribuição das esmolas.
"Entre outras coisas, ouvi dizer que não era conveniente
abandonar a pregação da palavra de Deus, para cuidar de alimentos
e roupa. Assim, por exemplo, não convinha mais que Lázaro,
Nicodemos e José de Arimatéia administrassem, como até então, os
bens terrestres da comunidade, por se terem tornado sacerdotes.
Depois falou ainda sobre a ordem na distribuição das esmolas,
sobre a administração das casas, dos órfãos e das viúvas. Então
se apresentou Estêvão, um belo moço, esbelto, oferecendo-se para
esse serviço. Entre os outros reconheci também a Parmenas, que
era um dos mais velhos. Mas havia entre eles também mouros, que
eram ainda muito moços e não tinham recebido o Espírito Santo.
Pedro impôs as mãos a todos, cruzando-Ihes a estola do lado, sob
o braço; sobre aqueles que ainda não tinham recebido o Espírito
Santo, se derramou então uma luz.”
A esses sete diáconos foram então entregues os bens e as provisões da comunidade. José de Arimatéia, porém, cedeu-lhes a sua
casa. Faziam distribuir as esmolas em três lugares: diante do
Cenáculo, em Betânia e na praça da estalagem, no caminho de Belém.
Nesse último lugar se levantaram de novo queixas, mas os queixosos
não tinham tanta razão. Por isso enviaram Estêvão e os outros
diáconos mensageiros aos Apóstolos que, depois de nomear os
diáconos, se tinham espalhado por todo o país.
Pedro voltou, com André, da região de Jope a Jerusalém, Tomé, com
Felipe, da Samaria; compareceram também outros Apóstolos, para
terminar essa questão. Mas antes de chegarem, os descontentes já
se tinham dirigido, com a queixa, ao conselho dos sacerdotes em
Jerusalém, por intermédio de Saulo e Gamaliel e Estêvão foi citado
perante o conselho. Mas este, acusado e interrogado por muitos
fariseus e judeus excitados, se defendeu tão bem e com tanta
seriedade, que foi absolvido.)
Tendo, porém, Pedro se reunido no Cenáculo com os outros
Apóstolos, mandou chamar os queixosos à sua presença e resolveu
tudo, fazendo separar muitos da comunidade e acomodar em outras
casas.
6. As obras do diácono S. Felipe
Apesar dos Samaritanos não terem comunhão com os judeus, não
deviam ficar privados do Evangelho, como também os gentios, pois
já o Salvador ensinara muitas vezes nas regiões de Samaria, depois
de ter tido aquela piedosa conversação com a mulher samaritana,
no poço de Jacó.
Entre os sete primeiros diáconos se achava também Felipe que,
depois de Estêvão, era o mais respeitado. Felipe dirigiu-se à
Samaria e pregou ali o Evangelho do Cristo.
"E o povo estava atento ao que Felipe lhe dizia, escutando-o com
o mesmo ardor e vendo os prodígios que fazia, porque os espíritos
imundos saiam de muitas pessoas, dando grandes gritos e muitos
paralíticos e coxos eram curados; pelo que se originou uma grande
alegria naquela cidade. Havia lá, porém, um homem, por nome Simão,
o qual antes tinha ali exercido a magia, enganando o povo
Samaritano, dizendo que era um grande homem, a quem todos davam
ouvidos, desde o maior até o menor, dizendo: Este é a virtude magna
de Deus. E obedeciam-lhe, porque, com as artes mágicas, por muito
tempo Ihes havia perturbado o espírito. Mas depois que creram o
que Felipe Ihes anunciava do reino de Deus, foram-se batizando
homens e mulheres, em nome de Jesus. Então creu também o mesmo
Simão e depois que foi batizado, ligou-se a Felipe. Vendo os
prodígios e grandíssimos milagres que se faziam, todo cheio de
pasmo se admirava. Os Apóstolos, porém, que se achavam em
Jerusalém, tendo ouvido que Samaria recebera a palavra de Deus,
mandaram lá Pedro e João, os quais, quando chegaram, fizeram
oração pelos Samaritanos, afim de receberem o Espírito Santo, que
ainda não tinha descido sobre nenhum dos recém-convertidos, mas
tinham sido apenas batizados em nome do Senhor Jesus. Então Ihes
impunham as mãos e recebiam o Espírito Santo. E quando Simão viu
que se dava o Espírito Santo por meio da imposição da mão dos
Apóstolos, ofereceu-Ihes dinheiro, dizendo: "Dai-me também este
poder, de que qualquer a quem eu impuser as mãos, receba o Espírito
Santo." Mas Pedro disse-lhe: "O teu dinheiro pereça contigo; uma
vez que te persuadiste de que o dom de Deus se pode adquirir com
dinheiro, não tens parte nem herança alguma neste ministério;
porque o teu coração não é reto diante de Deus. Faze, pois,
penitência desta tua maldade e roga a Deus que, se é possível,
te seja perdoado este pensamento do teu coração; porque vejo que
estás num fel de amargura e preso nos laços da iniqüidade". E
respondendo Simão, disse: "Roga por mim ao Senhor, para que não
me suceda nada do que disseste". Depois de terem dado este
testemunho e anunciado a palavra do Senhor, voltaram para
Jerusalém e pregaram em muitos lugares da Samaria. E o Anjo do
Senhor disse a Felipe: "Levanta-te e dirige-te para o sul, ao
caminho que vai de Jerusalém a Gaza, o qual se acha deserto." E,
levantando-se, partiu. E eis que um homem etíope, eunuco, servo
de Candace, rainha da Etiópia, de cujos tesouros era
superintendente, tinha vindo a Jerusalém para fazer oração e
voltava, sentado na sua carruagem, lendo o profeta Isaías. Então
disse o Espírito a Felipe: "Vai e aproxima-te deste carro". E
correndo logo Felipe, ouviu que o eunuco lia o profeta Isaías e
disse-lhe: "Compreendes porventura o que estás lendo?" o etíope
respondeu-lhe: "Como o poderei entender, se não houver alguém que
mo explique?" E rogou a Felipe que subisse e se lhe sentasse ao
lado. Ora a passagem da Escritura que lia, era esta: "Como ovelha
foi levado ao matadouro e como cordeiro mudo diante de quem o
tosquia, assim ele não abriu a boca. Na sua humilhação foi abolido
o Julgamento. Quem poderá contar-lhe a geração, pois que sua vida
será tirada da terra?" E respondendo o eunuco a Felipe, disse:
"Rogo-te que me digas de quem disse isto o profeta: de si mesmo
ou de algum outro?" E abrindo Felipe a boca e principiando por
esse trecho da Escritura, anunciou-lhe Jesus. E continuando o
caminho, chegaram a um lugar onde havia água e disse o eunuco:
"Eis aqui água; o que impede que eu seja batizado?" E respondeu-lhe Felipe: "Se crês de todo o coração, podes". E respondendo, disse o etíope: "Creio que Jesus Cristo é o Filho de Deus".
E mandou parar o carro e descerem os dois para a margem do rio,
onde Felipe o batizou. E tanto que saíram da água, arrebatou o
Espírito do Senhor a Felipe e o eunuco não mais o viu; continuou,
porém, o caminho, cheio de prazer. Mas Felipe achou-se em Azot
e passando além, pregava o Evangelho em todas as cidades, até que
veio a Cesaréia". (Atos 8, 6 - 40).
7. Perseguições
Era inevitável que os fiéis fossem cada vez mais perseguidos pelo
ódio dos judeus. Pedro dissera-lhes abertamente que assim se
devia mostrar quem possuía o Espírito Santo enviado por Jesus;
começara o tempo de agir e sofrer perseguição.
Mas para que não se levantasse logo uma perseguição violenta
contra os recém-convertidos, os Apóstolos julgavam prudente
afastaremse de vez em quando das vizinhanças de Jerusalém. A
primeira vez foram todos para a respectiva terra natal. A segunda
vez, depois da eleição dos diáconos, mudaram de lugar. Desta vez
se encaminhou Tomé para a Samaria, Zaqueu para Bedar, João para
Éfeso, na Ásia Menor, Pedro, porém, com Silvano, para a região
de Jope.
"Pedro fazia mais milagres do que todos os outros, diz Catharina
Emmerich. Expulsava demônios e ressuscitava mortos; vi até que
um Anjo o precedia, mandando o povo fazer penitência e pedir
socorro a Pedro. O centurião Comélio também já ouvira falar nele,
mas naquele tempo não se convertera ainda. Antes de Estêvão ser
apedrejado, todos os Apóstolos mais uma vez se reuniram em
Jerusalém e depois de se dispersarem de novo, Pedro voltou a Jope
e então se efetuou a conversão de Cornélio.
Maria e todas as santas mulheres, inclusive Verônica, estavam em
Betânia.
Também vi Saulo em Jerusalém, já muito ativo. Dirigia todo o ódio
dos judeus. Vi-o percorrer a cidade e agitar o povo, com incrível
ódio, convencido de ter o direito ao seu lado. Conhecia muitos
discípulos, procurava-os de propósito e discutia com eles. Também
se esforçava por perturbar e destruir a nova colônia dos cristãos.
Incitava também o ódio dos saduceus e ficou furioso ao ouvir
narrar que Simão Mago, em Samaria, se convertera. Este, porém,
apostatou e juntou-se em Jerusalém a Saulo, cujo ódio crescia
cada vez mais. Saulo pediu aos sacerdotes judeus cartas, com
poderes especiais e ia a muitos lugares, para perseguir os
cristãos".
Depois de Pedro e os Apóstolos haverem resolvido a questão havida
em Jerusalém, todos se retiraram novamente para regiões onde os
judeus não lhes podiam fazer mal. Pedro dirigiu-se novamente a
Jope e arredores.
Durante a estadia em Lídia, morreu em Jope uma piedosa mulher
cristã, de nome Tabita. Então enviaram os discípulos alguns
mensageiros a Jope, para chamar Pedro. Quando este chegou à casa
da morta, aproximou-se do cadáver e disse: "Tabita, levanta-te."
Então abriu a morta os olhos e levantou-se do féretro, com espanto
de todos que estavam presentes.
"Simão Mago está na cidade, juntamente com Saulo, incitando todos
contra a comunidade cristã. Os fiéis estão em grande aflição.
Muitos dos Apóstolos estão longe, mas os fiéis mandaram chamálos.
Os judeus destroem as casas dos cristãos, até nos lugares que eles
mesmos lhes tinham destinado. Os cristãos que moram na estrada
de Belém, estão saindo para Salém, onde João batizava. Ali estão
construindo cabanas e uma capela; têm consigo um sacerdote e
também o SS. Sacramento, numa cápsula.
Serviu de pretexto à perseguição o fato de Pedro, viajando
de Samaria a Jope, batizar no caminho muita gente, inclusive
certo homem, cuja conversão provocou grande discussão em
Jerusalém. Estêvão defendeu essa causa com tanta firmeza, que o
prenderam. A comunidade aflita mandou chamar Pedro e os outros
Apóstolos.
8. Estêvão é interrogado e apedrejado
A perseguição mencionada não se dirigia tanto contra os Apóstolos, mas contra os recém-convertidos, que fOflnavam comunidade
em redor de Jerusalém. Estêvão era um dos que governavam essas
comunidades. Era, como diz a Escritura, cheio de graça e fortaleza
e fazia grandes prodígios e milagres entre o povo.
Alguns da sinagoga se levantaram a disputar com Estêvão, mas não
podiam resistir à sabedoria e ao Espírito que nele falava. Então
subornaram alguns homens, que agitaram o povo. Levaram-no ao
conselho e apresentaram falsas testemunhas, que disseram: "Este
homem não cessa de proferir palavras contra o lugar santo e contra
a lei." (Atos 6, 8-13). Ele, porém, disse:
"Irmãos e pais, escutai. O Altíssimo não habita em edifícios
construídos por mãos de homens, como diz o profeta: "O céu é o
meu trono e a terra o escabelo dos meus pés. Que casa me
edificareis?" diz o Senhor, "ou qual é o lugar do meu repouso?
Não fez porventura a minha mão todas estas coisas?" Homens de dura
cerviz e de corações e ouvidos incircuncisos, vós sempre resistis
ao Espírito Santo; assim como agiram vossos pais, assim o fazeis
também! A qual dos profetas não perseguiram vossos pais? E mataram
até os que anunciavam a vinda do Justo, do qual agora fostes
traidores e homicidas, vós que recebestes a lei por ministério
dos Anjos e não a guardastes." Ao ouvir, porém, tais palavras,
enraiveceu-se-lhes o coração e rangiam os dentes contra Estêvão.
Mas como estava cheio do Espírito Santo, olhando para o céu, viu
a glória de Deus e Jesus à destra de Deus. E disse: "Eis que
estou vendo os céus abertos e o Filho do Homem à direita de Deus."
Então, levantando uma grande gritaria, taparam os ouvidos e,
todos juntos, arremeteram com fúria contra o santo diácono e,
tendo-o lançado para fora da cidade, apedrejaram-no; e as
testemunhas depuseram os mantos aos pés de um moço, que se chamava
Saulo. E apedrejaram Estêvão, que invocava Jesus e dizia: "Senhor
Jesus, recebei o meu espírito." E pondo-se de joelhos, clamou em
alta voz, dizendo: "Senhor, não lhes imputeis este pecado." E
tendo dito isto, adormeceu no Senhor. E Saulo consentiu no
homicídio de Estêvão." (Atos 7, 48-60)
Estêvão sofreu o martírio mais ou menos um ano depois da
crucificação de Cristo. A piedosa Emmerich narra o seguinte:
"Vi Estêvão, sem se lembrar do apedrejamento, rezando apenas pelos carrascos e olhando para o céu aberto. O martírio deu-se fora
da porta, ao norte, ao lado de uma estrada. Era um lugar aberto,
circular, em cujo centro se achava uma pedra, sobre a qual se
ajoelhou o santo moço, rezando, com as mãos ergui das. Vestia uma
longa veste branca, arregaçada, sobre a qual pendia, no peito e
nas costas, uma espécie de escapulário, com duas fitas
transversais; creio que era uma parte das vestes sacerdotais.
Procederam no apedrejamento em certa ordem; em volta do lugar
haviam juntado pedras, ao pé de cada um dos apedrejadores. Vi
também Saulo, homem extraordinariamente sério e zeloso, que
arranjara tudo o que era necessário para a lapidação e os
lapidantes depositaram os mantos aos seus pés. Estêvão levantara
as mãos, rezando e não se movia, sob as pedradas; era como se não
as sentisse. Também não fazia movimentos espontâneos para se
proteger; parecia extasiado, olhava para o alto e o céu estava
aberto acima dele; via Jesus e com Ele, Maria, sua Mãe. Finalmente
uma pedra lhe bateu na cabeça, prostrando-o morto. Era um moço
alto e belo, de cabelo castanho e liso.
Saulo não causava uma impressão repugnante, pelo grande zelo com
que preparara a lapidação, como acontecia com os outros, que eram
cheios de inveja e hipocrisia; pois o fazia impelido por um falso
zelo, mas que julgava justo, pela lei judaica; foi por isso também
que Deus o iluminou.”
Os ossos do santo mártir Estêvão foram mais tarde milagrosamente
encontrados, em conseqüência de uma Visão, junto com os corpos
de Nicodemos, Gamaliel e seu filho Abidon.
"O corpo de Estêvão, que jazia numa posição natural, foi levado
a Jerusalém, a uma Igreja situada no monte em que estivera o
Cenáculo. Esses ossos foram depois várias vezes distribuídos e
levados a vários lugares e muitos milagres se deram com eles.
Lembro-me que uma cega tocou o caixão das relíquias com flores,
por meio das quais recobrou de novo a vista. Em outro lugar se
converteram muitos judeus. Em certa região o demônio, assumindo
a forma de um homem muito respeitável, pediu uma parte das
relíquias de S. Estêvão, mas quando o bispo pediu a luz de Deus,
para saber se o suplicante o merecia, fugiu o demônio, rugindo
e tomando um aspecto horrível. De tais milagres vi muitos e também
que parte das relíquias foram levadas para Roma e depositadas
junto ao corpo de S. Lourenço. Deu-se então um fato milagroso:
O corpo de S. Lourenço mudou de posição, cedendo lugar às
relíquias de Santo Estêvão.”
Com a morte de Estêvão a perseguição não terminou absolutamente,
pois S. Lucas acrescenta à narração do apedrejamento de S. Estêvão
estas palavras:
"Saulo, porém, assolava a Igreja, entrando pelas casas e tirando
com violência homens e mulheres, fazia com que os metessem no
cárcere. Entretanto os que se tinham dispersado, iam de um lugar
para outro, anunciando a palavra de Deus." (Atos 8, 3-4).
Assim servia essa perseguição ao plano de Deus, não só para provar
e purificar os eleitos, mas também para propagar a doutrina de
Jesus em outras regiões e aumentar o número de fiéis.
9. A conversão de SauIo
Um acontecimento sumamente importante para ajovem Igreja cristã
foi a conversão de um homem, que até então tinha sido abertamente
inimigo e se propusera a destruí-Ia, mas que mais tarde se tornou
um dos seus mais árduos defensores e com a pregação e o seu sangue
confirmou a fé no Filho de Deus crucificado.
Depois de ter visto Estêvão expirar. sob as pedradas dos judeus,
encaminhou-se para Damasco, com o fim de trazer presos para
Jerusalém todos os partidários de Jesus que encontrasse.
"Seguia pelo caminho, conta a Escritura Sagrada, aproximando-se
de Damasco, quando subitamente o cercou uma luz vinda do céu e
caindo por terra, ouviu uma voz que lhe dizia: "Saulo, Saulo,
porque me persegues?" Ele replicou: "Senhor, quem és?" E
respondeu-lhe a voz: "Eu sou Jesus, a quem persegues. Duro te é
recaIcitrar contra o aguilhão." Então, tremendo e atônito,
disse: "Senhor, que queres que eu faça?" O Senhor respondeu-lhe:
"Levanta-te e entra na cidade e aí se te dirá o que te "cumpre
fazer." Os homens que o acompanhavam, estavam espantados,
!ouvindo a voz, mas sem ver ninguém. Levantou-se, pois, Saulo do
solo e tendo os olhos abertos, nada via. Os companheiros, porém,
conduzin do-o pela mão, levaram-no a Damasco, onde esteve três
dias sem ver e não comeu nem bebeu. Ora, em Damasco havia um
discípulo, de nome Ananias e o Senhor, numa visão, lhe disse:
"Ananias." E ele acudiu, dizendo: "Eis-me aqui, Senhor!" E o
Senhor tornou-lhe: "Levanta-te e vai à rua que se chama Direita
e procura em casa de Judas um homem chamado Saulo de Tarso, porque
eis que está rezando." E Saulo viu também um homem, por nome
Ananias, que entrou e lhe impôs as mãos, para que recebesse a
vista.
Respondeu, pois, Ananias: "Senhor, tenho ouvido muitos falarem
a respeito deste homem, quanto mal fez aos teus santos em
Jerusalém; e ele tem poder dos príncipes dos sacerdotes para
prender todos que invocam teu nome." Mas o Senhor disse-lhe: "Vai
porque este é para mim um vaso escolhido, para levar meu nome
perante os gentios e os reis e os filhos de Israel. Porque eu lhe
mostrarei quanto lhe cumpre sofrer pelo meu nome." E Ananias foi
e entrou na casa e impondo-lhe as mãos, disse: "Saulo, irmão, o
Senhor Jesus, que te apareceu no caminho por onde vinhas,
enviou-me, para que recobres a vista e fiques cheio do Espírito
Santo." E no mesmo instante lhe caíram dos olhos umas escamas,
e assim recuperou a vista; e levantando-se, foi batizado. E depois
que tomou alimento, recobrou as forças. Alguns dias esteve então
com os discípulos que se achavam em Damasco e logo começou a pregar
nas sinagogas que Jesus é o Filho de Deus. E pasmavam todos que
o ouviam e diziam: "Pois não era este quem perseguia em Jerusalém
os que invocavam este nome e que veio prendê-Ios, para os levar
aos príncipes dos sacerdotes?" Saulo, porém, esforçava-se cada
vez mais e confundia os judeus que habitavam em Damasco,
afirmando que Jesus é o Cristo.
E passados muitos dias, os Judeus se reuniram em conselho,
resolvendo matá-lo. Saulo, porém, foi advertido das ciladas.
Guardavam-lhe as portas dia e noite, para o eliminar. Os
discípulos, porém, tomando-o de noite, desceram-no pela muralha,
metido numa cesta. Tendo chegado a Jerusalém, procurava Saulo
reunir-se aos discípulos, mas todos o temiam, não crendo que fosse
discípulo. Então Barnabé, levando-o consigo, o apresentou aos
Apóstolos e contou-Ihes como tinha visto o Senhor no caminho e
lhe tinha falado e como depois em Damasco agira com toda franqueza
em nome de Jesus. E Saulo estava com eles em Jerusalém, entrando
e saindo e falando corajoso em nome do Senhor. Falava também com
os gentios e disputava com os gregos, mas tratavam de matá-lo.
Sabendo disto, os irmãos acompanharam-no até Cesaréia e
enviaram-no a Tarso. Estava então em paz a Igreja por toda a
Judéia, Galiléia e Samaria e se estabelecia, caminhando no temor
de Deus e estava cheia do Espírito Santo." (Atos 9, 3-31).
Anna Catharina dá do santo Apóstolo Paulo esta descrição:
"Paulo não era alto, mas baixo e robusto. Tinha uma alma forte,
procurando a justiça, mas sem obstinação nem orgulho. Depois da
conversão era humilde e amável, mas era dotado de muita seriedade,
perseverança e firmeza.”
10. Herodes manda decapitar Tiago o Maior e lançar Pedro no
cárcere
No quinto ano depois da morte de Jesus Cristo se levantou nova
perseguição contra a comunidade; por isso levou João a SS. Virgem
para a região do Éfeso, onde já se formara nova comunidade de
cristãos. Em Éfeso a visitou Tiago o Maior, ao voltar da Espanha
para Jerusalém. Chegando ali, trabalhou e pregou ainda algum
tempo, depois foi preso e condenado à morte por Herodes.
"Tiago foi conduzido para fora da cidade, em direção ao Monte
Calvário, conta a serva de Deus, e no caminho continuava pregando
e ensinando, convertendo ainda muitos. Quando lhe ataram as mãos,
disse: Podeis amarrar-me as mãos, mas não a bênção e a língua."
Um paralítico estava sentado à beira do caminho e dirigindo-se
a Tiago, pediu que lhe desse a mão e o curasse. Tiago respondeu:
"Vem a mim e dá-me a mão." O paralítico levantou-se, tomou as mãos
amarradas do Santo Apóstolo e foi curado. Vi também o homem que
o atraiçoou, chamado Josias, correndo para ele, arrependido,
pedindo-lhe perdão. Confessou a fé em Cristo e foi também
executado. Tiago perguntou-lhe se queria receber o batismo e como
afirmasse que sim, abraçou-o o Apóstolo e, beijando-o, disse:
"Serás batizado no teu sangue." Vi ainda uma mulher, que correu
com o filho cego para junto de Tiago, no lugar do suplício, pedindo
e alcançando-lhe a vista.
Tiago e Josias foram primeiro colocados juntos num lugar elevado,
sendo-Ihes proclamado em alta voz o "crime" e a sentença de morte.
Depois se sentou Tiago numa pedra, à qual lhe foram atadas as mãos;
vendaram-lhe os olhos e assim o decapitaram. No entanto tinham
também encerrado Tiago o Menor na própria casa; além dele, estavam
em Jerusalém Mateus, Natanael, Cased e Natanael, o noivo de Caná.
Mateus morava em Betânia. A casa de Lázaro e todas as suas
propriedades na Judéia estavam, havia muito tempo, na posse da
comunidade cristã; o palácio na cidade, porém, tomaram-lhe os
Judeus. Durante o suplício de Tiago o Maior, se levantou um grande
tumulto e muitos se converteram.”
Para agradar aos judeus, Herodes fez também prender Pedro e lançá-lo no cárcere, com intenção de apresentá-Io ao povo depois da
Páscoa. Entretanto a Igreja orava a Deus por ele sem cessar. Mas
quando Herodes estava para o apresentar, nessa mesma noite, Pedro
foi posto em liberdade por um Anjo.
"Vi Pedro dormindo, num cárcere bastante vasto, entre dois soldados, que estavam deitados a uma certa distância e também dormindo.
Jazia num lado perto da parede; tinha os pés encerrados num cepo,
ambos os braços, porém, estavam amarrados aos guardas, que
dormiam à direita e à esquerda. Vi aparecer do alto um esplendor
e nele um Anjo, que tocou em Pedro, que acordou; as cadeias
soltaram-se-Ihe, à direita e à esquerda, das mãos; caíram sem
barulho e sem movimento de sua parte e estavam ainda da mesma forma
que tinham dantes, quando lhe atavam as mãos. O Anjo disse-lhe
uma coisa, então tirou Pedro os pés do cepo, sem abrí-Io, pós as
sandálias, que ainda estavam ligadas às pernas, e levantando-se,
cingiu a túnica larga, vestiu o manto com que se tinha coberto
e seguiu o Anjo, que passou diante dele pela porta, sem que essa
se abrisse; era como se lhe passassem através. Por fim chegaram
a um grande portão de ferro, o qual se abriu. Vi em tudo isso que
havia luz só no espaço onde passavam. Entraram então numa rua;
lá desapareceu o Anjo e vi que Pedro estava muito espantado. Até
então tinha pensado que sonhava; só agora notara que estava em
liberdade. Passou por uma porta e atravessando um riacho, veio
a um lugar que parecia fora da cidade; mas não posso dizê-Io com
certeza, pois Jerusalém era muito dividida por colinas; afinal
vi que a casa da mãe de João Marcos não estava na própria cidade,
mas isolada e fora de uma porta. Vi, porém, nessa casa muitos
discípulos e fiéis, reunidos numa sala, rezando, à luz de um
candeeiro. Conservavam-se muito quietos e silenciosos, cobrindo
as janelas com panos, para que a luz não fosse vista. Vi que Pedro
batia na porta do átrio e que uma criada estava escutando por
dentro. Quando Pedro pediu que abrisse a porta, correu ela
apressadamente à sala, anunciando-o alegremente aos outros, mas
esses não queriam acreditar; vi, porém, que Pedro continuava
batendo e que alguns saíram para abrir; Pedro entrou e eles o
abraçaram, felizes e contentes. Mas não se demorou muito;
fez-Ihes um sinal para ficarem quietos, contou umas coisas e saiu
da casa.
O castigo de Deus caiu pouco depois sobre Herodes. Numa festa
se lhe arrebentou o ventre, num teatro, diante de todo o povo.
Levaram-no a uma grande sala, onde estava o trono e onde cabiam
cerca de 500 pessoas. Estava como doido de raiva e dor e tão
asqueroso, que não o posso descrever. Ocultaram sua morte por
algum tempo.”
11. Outras provações da Igreja de Jerusalém
Tiago o Menor governava como bispo a Igreja de Jerusalém, para
a qual, segundo uma velha tradição, fora eleito pelo próprio
Salvador. Foi o único que ficou na cidade, pois os outros partiram
para terras longínquas a fim de pregar o reino de Deus. Nasireu
por causa de suas virtudes e piedade era muito estimado, não só
entre os Apóstolos e discípulos, mas também entre os judeus, de
modo que lhe deram o apelido de "justo." Apesar disso, devia
também morrer mártir, alguns anos depois de Tiago o Maior.
"Vi quando o levaram, durante sete dias, de um tribunal ao outro
e cada dia o maltratavam durante uma hora. Depois de o terem
lançado do pináculo do Templo abaixo, apedrejaram-no ainda e
afinal o mataram a pauladas.”
Como os partidários de Tiago resistissem, levantou-se um tumulto,
no qual foram mortos três discípulos, entre os quais também um
filho do velho profeta Simeão.
Depois da morte de Tiago o Menor, a Igreja de Jerusalém ficou 5
anos sem bispo. Mais tarde foi nomeado bispo Simeão, que era filho
de Maria, filha de Cléofas. No entanto era a Igreja administrada
por Joas, parente de Pedro. Antes da destruição de Jerusalém, pelo
general romano Tito, no ano 70, Simeão saiu com os cristãos da
cidade e só voltou doze anos mais tarde. No ano 87 foi crucificado,
na idade de 120 anos.
É provável que já antes de Simeão, tivesse sido martirizado em
Jerusalém o santo Apóstolo Matias. A piedosa Emmerich viu-o, é
verdade, duas vezes no país dos Reis Magos (Armênia), pregando
a fé, mas diz depois que foi morto a pauladas na cabeça, com um
longo pau, depois da morte de Tiago o Menor.
A história eclesiástica, narra mais extensamente: O Apóstolo
pregou o santo Evangelho, com zelo incansável, na Judéia e
Galiléia, durante 33 anos. Como o número dos cristãos aumentasse
dia a dia, foi levado perante o Conselho supremo e ameaçado de
morte pelo Sumo Sacerdote Ananias, se não deixasse de pregar o
Crucificado. Matias, porém, demonstrou que Jesus é o Filho
unigênito de Deus, o Messias prometido, que ressuscitou dos
mortos. Por esta corajosa profissão de fé, foi con "de nado pelo
Sumo Sacerdote à morte por lapidação. O corpo do santo Apóstolo
foi sepultado em Jerusalém. Santa Helena, porém, levou-o para
Roma e deu-o a santo Agrítio, que o levou a Treves, para onde fora
nomeado Bispo.
A piedosa Emmerich teve também uma visão, em que viu os judeus,
sob o reinado do imperador Juliano o Apóstata, quando S. Cirilo
era Bispo de Jerusalém, no ano 362, tentarem reedificar o Templo,
para desse modo provar a falsidade da profecia de Jesus Cristo.
"Vi que uma tempestade levou grande quantidade de cal e materiais
de construção, cobrindo e obstruindo estradas inteiras. Da terra
saiu fogo, destruindo as ferramentas; grandes abóbadas caíram,
matando muitos homens e na roupa dos operários apareceram nódoas
pretas, em forma de cruzes. Vi também alguns operários caírem numa
adega, cuja abóbada ruíra e aí acharem uma grande pia de pedra,
que continha mui tos rolos escritos; uma voz mandou-lhes que
levassem alguns destes. Esses operários foram depois socorridos
e salvos, a maior parte. Aqueles rolos continham muitos
documentos sobre o bom ladrão e sobre a infância de Jesus, verdade
e ficção.
Vi também, naquele tempo, uma grande cruz luminosa aparecer do
Monte das Oliveiras até o Monte Calvário e muitos se converteram.”
14
Os últimos anos e a morte gloriosa de Maria Santíssima
1.
2.
3.
4.
5.
6.
7.
8.
Maria em Éfeso
Viagens de Maria a Jerusalém
Reunião dos Apóstolos, por ocasião da morte de Maria, em Éfeso
Os últimos dias de vida de Maria
A morte gloriosa da Santíssima Virgem
Embalsamamento e enterro de Maria
A Assunção de Maria
Abertura do sepulcro de Maria
Os últimos anos e a morte gloriosa de Maria Santíssima
Antes de passarmos a descrever a propagação do reino de Deus entre
os gentios, pelos Apóstolos, juntamos aqui a narração da piedosa
Emmerich sobre a maravilhosa e gloriosa morte da Mãe de Jesus.
Assim seguimos também a cronologia, pois a Santíssima Virgem
morreu antes dos Apóstolos e estes estiveram presentes por
ocasião da sua morte.
1. Maria em Éfeso
Depois da ascensão do Filho querido, viveu Maria, segundo a
narração de Catharina Emmerich, três anos em Jerusalém e depois
outros três anos em Betânia, em casa de Lázaro. São João, que
sempre a acompanhava, levou-a para Éfeso. afim de a salvar da
perseguição e ali viveu ainda nove anos.
"Maria não morava propriamente em Éfeso, mas numa região onde já
se tinham refugiado algumas das santas mulheres, suas amigas. A
habitação de Maria achava-se numa colina, à esquerda do caminho
de Jerusalém a Éfeso, cerca de três horas e meia de viagem, antes
de chegar a Éfeso; a colina tinha uma subida suave, para o lado
da cidade. Era uma região deserta, com muitas colinas férteis e
belas, com grutas limpas, entre pequenas planícies arenosas; era
deserta, mas não inabitável; havia muitas árvores isoladas, de
troncos lisos e copas sombrias, em forma de pirâmide.
Quando João trouxe a Santíssima Virgem para uma casa que lá
mandara construir, já ali moravam várias famílias cristãs e
algumas das santas mulheres, seja em grutas dos montes ou em
subterrâneos, tornados habitáveis com alguma construção de
madeira, seja em frágeis tendas; só a casa de Maria era de pedra.
A Santíssima Virgem morava ali com uma jovem empregada. Viviam
recolhidas em paz e sossego.
João não morava na mesma casa; passava a maior parte do tempo em
Éfeso ou arredores; fez também várias viagens à Palestina.
Dava-lhe sempre a Santa Comunhão, rezava com ela a Via Sacra,
dava-lhe a bênção e recebia-lhe também a bênção materna.
No último tempo da estadia ali, vi Maria tornar-se cada vez mais
recolhida no amor de Deus; quase não tomava mais alimento. Era
como se só exteriormente estivesse na terra e com o espírito no
outro mundo. Parecia não notar o que lhe acontecia em redor. Vi-a,
nas últimas semanas antes da morte, já muito idosa e fraca e a
criada a guiá-Ia às vezes pela casa.
Uma vez vi João entrar lá. Tirou o cinto e vestiu outro, que tirou
sob o manto e que era ornado de letras. No braço pôs uma espécie
de manípulo e no peito uma estola. A Santíssima Virgem veio saindo
do quarto de dormir, revestida toda de uma veste branca,
apoiando-se sobre o braço da criada. Tinha o rosto branco como
a neve e como que transparente. A saudade parecia trazê-Ia como
que suspensa entre o céu e a terra. Desde a ascensão de Jesus,
todo o seu ser tinha a expressão de uma saudade infinita e sempre
crescente, que parecia consumi-Ia. Dirigiu-se, com João, ao
lugar de oração. Puxou uma fita ou correia; então se virou
o tabernáculo na parede e a cruz que lá estava, apareceu. Depois
de terem ambos rezado, ajoelhados, por algum tempo, levantou-se
João e tirou do peito um vaso de metal; abriu-o de um lado, tirou
de lá um invólucro de lã fina e deste, um lenço dobrado, de estofo
branco, do qual retirou o Santíssimo Sacramento, em forma de um
pedacinho de pão branco. Depois disse algumas palavras solenes
e sérias e deu à Santíssima Virgem a Sagrada Comunhão.
Por trás da casa, até certa distância, na encosta da montanha,
Maria Santíssima fizera para si uma Via Sacra. Enquanto morava
em Jerusalém nunca deixara, desde a morte do Senhor, de
percorrer-lhe o caminho da Paixão, chorando de saudade e
compaixão. De todos os lugares do caminho onde Jesus sofrera, ela
tinha medido a distância a passos; o amor imenso de Mãe extremosa
não lhe podia viver sem a contínua contemplação desse caminho
doloroso.
Pouco tempo depois de chegar àquela região, eu a via diariamente
caminhar até certa distância, subindo a colina atrás da casa,
nessa meditação da Paixão e morte do Filho amado. A princípio ia
sozinha, medindo pelo número de passos que tantas vezes contara,
as distâncias dos lugares onde Jesus sofrera certos tormentos.
Em todos esses lugares erigia uma pedra ou, se havia ali uma
árvore, marcava-a. O caminho conduzia a um bosque onde, numa
elevação, marcou o Monte cal vário e numa gruta de outra colina,
o sepulcro de Jesus Cristo.
Depois de ter medido desse modo as doze estações da Via Sacra,
percorria-a, em silenciosa meditação, acompanhada da criada; em
cada estação da Paixão se sentavam, recordando no coração o
mistério do respectivo sofrimento e louvando ao Senhor por seu
Infinito amor, com lágrimas de compaixão. Depois arranjaram as
estações ainda melhor e vi que a Santíssima Virgem escrevia com
um buril, na pedra assinalada, a significação do lugar, o número
dos passos, etc. Vi também, depois da morte da Santíssima Virgem,
os cristãos percorrerem esse caminho, prostrando-se por terra e
beijando o chão.”
2. Viagens de Maria a Jerusalém
"Depois do terceiro ano da estadia em Éfeso, Maria sentiu profundo
e veemente desejo de ir a Jerusalém. João e Pedro levaram-na,
pois. Se bem me lembro, estavam ali reunidos vários Apóstolos;
vi Tomé; creio que era um ,Concílio e Maria assistiu-Ihes com os
conselhos maternais.
No dia da chegada, ao cair da noite, antes de entrar na cidade,
eu a vi visitar o Monte das Oliveiras, o Calvário, o santo Sepulcro
e outros lugares sagrados, em redor de Jerusalém. A Mãe de Deus
estava tão triste e tão comovida pela paixão, que só com extremo
esforço podia ficar em pé e Pedro e João levaram-na dali,
segurandoa pelos braços.
Ela viajou mais uma vez de Éfeso a Jerusalém, ano e meio antes
da morte. Vi-a então visitar também de noite os santos lugares,
acompanhada pelos Apóstolos. Estava indizivelmente triste e
gemia apenas, exclamando "Ó, meu Filho, meu Filho! Quando chegou
à porta posterior, daquele palácio, onde se encontrara com Jesus
caindo sob a cruz, tombou por terra, desmaiada, comovida pela
lembrança; os companheiros julgavam que morresse.
Levaram-na ao Cenáculo, em Sião, onde morava. Ali esteve a
Santíssima Virgem, durante alguns dias, tão fraca e doente e teve
tantos desmaios, que várias vezes lhe esperaram a morte e já
pensavam em preparar-lhe o sepulcro. Ela mesma escolheu para este
fim uma gruta no Monte das Oliveiras e os Apóstolos mandaram um
escultor cristão fazer ali um belo sepulcro.
Entretanto o povo espalhava várias vezes falsas notícias da morte de Maria SS. e esse boato de ter morrido e sido sepultada em
Jerusalém propagou-se também em outros lugares. Mas quando o
sepulcro ficou pronto, ela já se restabelecera e tinha força
bastante para voltar para casa em Éfeso, onde, após ano e meio,
faleceu realmente. O sepulcro preparado no Monte das Oliveiras
foi sempre venerado e guardado, construindo-se depois sobre ele
uma Igreja e João Damasceno escreveu também, baseado nesse boato,
que Maria morreu em Jerusalém e ali foi sepultada.
Deus permitiu que as notícias da morte, sepultura e assunção ao
céu da Virgem SS. se conservassem apenas numa incerta tradição,
para não alimentar no cristianismo o sentimento pagão daqueles
tempos; pois muitos talvez a tivessem adorado como deusa.”
3. Reunião dos Apóstolos, por ocasião da morte de Maria, em Éfeso
Algum tempo antes da morte, rezou a SS. Virgem, para que nela se
cumprisse o que Jesus lhe prometera no dia antes da ascensão, em
casa de Lázaro, em Betânia. Foi-me mostrado em espírito, que
quando ela lhe suplicou que depois da ascensão não a deixasse
muito tempo neste vale de lágrimas, Jesus lhe disse vagamente
quais as obras espirituais que ela devia ainda fazer na terra até
a morte e, atendendo-lhe à súplica, prometeu-lhe que os Apóstolos
e vários discípulos lhe assistiriam a morte; recomendou-lhe o que
Ihes devia então dizer e como os devia abençoar.
Quando a SS. Virgem implorou que os Apóstolos se reunissem em
torno dela, vi, em regiões muito diferentes e opostas, chegar o
chamado aos Apóstolos; neste momento só me lembro do seguinte:
Os Apóstolos já tinham construído pequenas Igrejas, em vários
lugares, onde tinham pregado; embora algumas dessas Igrejas não
fossem construídas de pedra, mas apenas de vime trançado e
rebocadas de barro, todavia tinham sempre, todas que tenho visto,
na parte posterior, a forma circular ou triangular, como a casa
de Maria em Éfeso. Nessas Igrejas tinham altares e celebravam o
santo sacrifício da Missa.
Vi que todos foram chamados, Inclusive os que estavam nas terras
mais longínquas, recebendo por aparições a ordem de ir ver a SS.
Virgem. Em geral não foi sem milagroso auxílio que os Apóstolos
fizeram as longuíssimas viagens. Creio que freqüentemente faziam
as viagens de uma maneira sobrenatural, sem eles mesmos saberem;
pois muitas vezes os tenho visto passar no meio de grandes
multidões de homens, sem serem vistos.
Quando o chamado do Senhor se, fez ouvir aos Apóstolos, para irem
a Éfeso, Pedro e se bem me lembro, também Matias, se achavam na
região de Antioquia. André, que vinha de Jerusalém, onde fora
perseguido, não se achava longe. Judas Tadeu e Simão estavam na
Pérsia. Tomé encontrava-se na Índia, quando recebeu a ordem de
partir; mas já resolvera ir à Tartária, mais para o norte e não
pode decidir-se a abandonar esse projeto. Assim continuou o
caminho para o norte, atravessando parte da China, até chegar à
região onde agora é a Rússia; ali foi chamado pela segunda vez
e partiu então às pressas para Éfeso. João estava mesmo na
vizinhança de Éfeso; Bartolomeu a leste do Mar Vermelho, na Ásia.
Paulo foi chamado. Foram chamados apenas os que eram parentes ou
amigos da Sagrada Família.
4. Os últimos dias de vida de Maria
"Eu tinha muita convivência com a Mãe de Deus em Éfeso, conta
Catharina Emmerich, a 7 de Agosto de 1821. Fui com ela e cerca
de cinco outras santas mulheres, percorrer a Via Sacra. Estava
lá também a sobrinha da profetiza Ana e a viúva Mara, sobrinha
de Santa Isabel. A SS. Virgem ia à frente de todas. Vi-a já muito
idosa, mas não tinha outro sinal de velhice na aparência, senão
o da intensa saudade, que a levava à união com o Filho, à
glorificação.
Maria era indizivelmente séria; nunca a vi rir, mas apenas sorrir
de modo tocante. Estava emagrecida, mas não lhe vi rugas, nem
sinal algum de velhice. Estava como que espiritualizada. Parecia
ser a última vez que fazia a Via Sacra. Enquanto assim caminhava,
parecia-me que João, Pedro e Tadeu já tinham chegado.
Vi (a 9 de Agosto) Maria deitada num leito estreito e baixo coberto
por um dossel, em forma de tenda, do qual pendiam brancas
cortinas, à direita do quarto, atrás do fogão. A cabeça
repousava-lhe sobre uma almofada redonda. Estava muito fraca e
pálida e como abrasada de saudade. A cabeça e todo o corpo lhe
estava envolto num longo pano. Um cobertor de lã parda cobria-a.
Vi umas cinco mulheres, uma depois da outra, entrarem e saírem
do quarto; pareciam despedir-se da moribunda. As que saiam,
faziam com as mãos gestos de comovedora tristeza ou de oração.
Vi novamente entre elas a sobrinha de Isabel, que tinha visto
durante a Via Sacra.
Maria disse uma vez a Maria de Agreda: "Se eu tivesse querido
afastar de mim a morte, o Altíssimo ter-me-ia concedido esta
graça: pois como o pecado não tinha parte em mim, também a morte,
castigo do pecado, não podia ter parte em mim. Como, porém, meu
Santíssimo Filho, que muito menos ainda podia merecer a morte,
quis voluntariamente sofrer e morrer, para dar satisfação à
justiça divina pelas culpas do mundo, assim também escolhi para
mim a morte, para ficar por minha vontade unida a meu Filho, na
morte como na vida.
Como recompensa desta minha escolha, Deus Nosso Senhor me
concedeu, em favor dos filhos da Igreja, o privilégio, para mim
tão caro, de dar minha proteção especial na hora da morte, contra
os assaltos do inimigo das almas, como também meu auxílio e minha
intercessão perante o tribunal da divina misericórdia, a todos
que me veneram, se me invocarem na hora da morte, para os socorrer,
pelos méritos de minha morte voluntária. O Senhor concedeu-me
para isso poder particular e a promessa expressa de que dará aos
meus devotos abundantes auxílios da graça, para uma boa morte e
verdadeira reforma da vida, se me invocarem, em memória do
mistério da minha morte.”
Com toda razão acrescentou portanto a Igreja à saudação do Anjo
e de Santa Isabel, que tantas vezes rezamos no rosário, as outras
palavras: "Santa Maria, Mãe de Deus, rogai por nós, pecadores,
agora e na hora da nossa morte. Amém.”
Depois vi seis Apóstolos já reunidos na sua casa, Pedro, André,
João, Tadeu, Bartolomeu e Matias, como também um dos sete
diáconos, Nicanor, que era sempre tão serviçal e amável. Os
Apóstolos estavam reunidos em oração na parte anterior da casa,
à direita, onde tinham preparado um oratório.
Hoje (a 10 de Agosto) vi entrar ainda dois Apóstolos, com as vestes
arregaçadas, como viajantes, Tiago o Menor e Mateus.
Os Apóstolos celebraram ontem, à noite e hoje de manhã o ofício
divino, na parte anterior da casa. Diante do altar havia uma
estante coberta, da qual pendia um rolo da Escritura. Sobre o
altar havia candeeiros acesos e na mesa um vaso em forma de cruz,
feito de uma substância que brilhava como madrepérola. Tinha
apenas um palmo de altura e outro tanto de largura e continha cinco
vasos fechados, com tampa de prata. No do meio se achava o SS.
Sacramento. Nos outros, porém, crisma, óleo, sal e fibras (talvez
algodão) e outras coisas santas. Os vasos foram feitos e estavam
fechados de tal maneira, que não se podia derramar nada. Os
Apóstolos costumavam transportar essa cruz nas viagens, pendente
sobre o peito, debaixo do manto. Assim eram mais do que o Sumo
Sacerdote, quando trazia sobre o peito o Santo do
Antigo Testamento.
Pedro, revestido do ornato sacerdotal, estava diante do altar,
os outros atrás, em coro. As mulheres assistiam em pé, no fundo
da casa.
Vi chegar um novo Apóstolo (a II de Agosto) foi Simão.
Ainda faltavam Felipe e Tomé.
Houve novamente ofício divino. Depois deu Pedro à SS. Virgem a
Sagrada Comunhão. Levou-lha naquele vaso em forma de cruz. Os
Apóstolos formaram duas fileiras, do altar até ao leito,
inclinando-se profun damente, quando Pedro passou por entre eles
com o SS. Sacramento. As cortinas do leito da SS. Virgem foram
abertas de todos os lados.
Diante do leito de Maria havia um banquinho baixo, triangular e
sobre este, um pratinho, com uma colherzinha parda e
transparente.
Vi novamente (a 12 de Agosto) o divino ofício; foi celebrada a
Missa. O quartinho de Maria estava todo aberto. Uma mulher estava
ajoelhada ao lado do leito, levantando e amparando de vez em
quando a Santíssima Virgem. Vi fazê-Io também durante o dia e
oferecer-lhe uma colher de suco de fruta do pratinho. Maria tinha
um crucifixo sobre o leito, em forma de Y, tendo quase meio braço
de comprimento; ela recebeu o SS. Sacramento.
Vi hoje (a 13 de Agosto) o ofício divino, como de costume e a
Santíssima Virgem, durante o dia, sentada no leito, tomando
várias vezes al
gum alimento, com a colherzinha.
Vi os Apóstolos chegarem na maior parte muito fatigados. Ao
entrar, abraçavam os que já estavam presentes, muito comovidos;
alguns choraram de alegria e também de tristeza, pelo motivo tão
doloroso daquele encontro. Aproximavam-se do leito de Maria,
saudando-a respeitosamente; ela, porém, só poucas palavras lhes
podia dizer.
Vi também cinco discípulos e lembro-me mais vivamente de Simão,
o Justo e de Barnabé.
5. A morte gloriosa da Santíssima Virgem
O ano 48 depois do nascimento do Cristo é o ano da morte de Maria;
morreu 13 anos e dois meses depois da ascensão de Jesus. A morte
da SS. Virgem foi um acontecimento cheio de tristeza, mas também
de consolação. Já na véspera, pelo meio-dia, reinava grande
tristeza e angústia em casa de Maria; a criada estava
completamente desolada.
A Santíssima Virgem descansava, silenciosa e como próximo da
morte, sobre o leito. Estava toda envolta, até os próprios braços,
num lençol branco. O véu do rosto estava dobrado sobre a testa;
falando aos homens, puxava-o sobre o rosto. As próprias mãos só
estavam descobertas quando ficava sozinha. Nos últimos dias não
a vi tomar outro alimento, senão, de vez em quando, uma
colherzinha de suco de uns frutinhos amarelos, semelhantes à uva,
que a criada lhe espremia no pratinho, ao pé do leito.
Quando a Santíssima Virgem, ao cair da tarde, sentiu
aproximar-selhe o fim, quis despedir-se dos Apóstolos,
discípulos e mulheres presentes e dar-lhes a bênção, conforme a
vontade de Jesus. As cortinas do leito foram abertas para todos
os lados. Maria estava sentada no leito, como que transparente,
de uma alvura resplandecente, Rezou e abençoou um por um, com as
mãos postas em forma de cruz, tocando a testa de cada um. Depois
falou ainda com todos e fez tudo quanto Jesus lhe recomendara em
Betânia.
A João disse como devia sepultar-lhe o corpo e distribuir-lhe a
roupa entre a criada e uma outra moça pobre da vizinhança, que
às vezes viera lhe prestar serviços.
Depois dos Apóstolos, se acercarem do leito da Santíssima Virgem
os discípulos presentes e receberam-lhe também a bênção do mesmo
modo. Os homens retiraram-se então para o quarto anterior da casa
e prepararam-se para o ofício divino, enquanto as mulheres
presentes se aproximavam do leito da Santíssima Virgem, se
ajoelhavam e recebiam a bênção. Vi que uma delas, inclinando-se
sobre Maria, recebeu dela um abraço.
Nesse ínterim foi preparado o altar e os Apóstolos vestiram-se
para o ofício divino, com as longas vestes brancas, cingindo-se
com as cintas ornadas de letras. Cinco deles, que funcionavam no
ato solene do sacrifício, como o vi celebrar por Pedro, após a
ascensão de Jesus, primeiro na Igreja nova, perto do tanque de
Betesda, revestiram-se das grandes e belas vestes sacerdotais.
O ofício divino já estava adiantado, quando chegaram Felipe e um
companheiro do Egito. Dirigiu-se imediatamente à Mãe do Senhor
recebeu-lhe a bênção, chorando copiosamente.
No entanto Pedro acabara o santo sacrifício; tinha consagrado e
recebido o Corpo do Senhor, dando-o também aos Apóstolos e
discípulos presentes. A Santíssima Virgem não podia avistar o
altar; mas estava sentada no leito, durante a santa cerimônia,
sempre em profundo recolhimento. Depois de Pedro ter comungado
deu a Santa Comunhão também aos outros Apóstolos e levou-a então
à SS. Virgem.
Todos os Apóstolos o acompanharam, em procissão solene. Tadeu ia
à frente, com um incensório, Pedro levava o Santíssimo
Sacramento no vaso cruciforme, sobre o peito. Seguia-se-Ihe
João, que trazia um pequeno prato, sobre o qual estavam o cálice,
com o preciosíssimo Sangue e alguns vasos. A Santíssima Virgem
estava deitada de costas, tranqüila e pálida, com olhar fixo para
cima; não falava com ninguém e estava como em contínuo êxtase;
resplandecia de saudade.
Pedrb aproximou-se e administrou-lhe o santo Sacramento da
Extrema Unção, quase do mesmo modo como se faz hoje. Depois lhe
deu o Santíssimo Sacramento. Sem se recostar, a Virgem sentou-se
para o receber e caiu depois de novo sobre o leito. Os Apóstolos
rezaram durante algum tempo e depois ela recebeu o cálice da mão
de João, levantando-se um pouco menos. Vi como um fulgor penetrar
em Maria, quando recebeu a Sagrada Comunhão e depois caiu em
êxtase sobre o leito e não mais falou.
Mais tarde se reuniram os Apóstolos novamente em roda do leito,
rezando. O rosto de Maria estava risonho e fresco como na
juventude. Dirigia os olhos com santa alegria ao céu. Vi então
uma visão maravilhosa e comovedora. O teto por cima do quarto de
Maria desaparecera; o candeeiro estava suspenso no ar; vi, pelo
céu aberto, a Jerusalém celeste. Desciam dois planos brilhantes,
como nuvens luminosas, nas quais apareciam muitos rostos de
Anjos. Entre essas nuvens se derramava uma torrente de luz sobre
Maria, acima da qual vi uma encosta resplandecente, que subia até
a Jerusalém celeste. A Virgem estendia os braços, com infinita
saudade e vi-lhe o corpo sagrado, com tudo o que o envolvia,
erguer-se-Ihe acima do leito, enquanto a alma, como uma puríssima
forma luminosa, lhe saia do corpo, com os braços estendidos,
erguendo-se na torrente de luz que, qual montanha resplandecente,
se elevava céus acima. Os dois coros de Anjos, nas nuvens, se lhe
uniram atrás da alma, separando-a do santo corpo, que no momento
da separação recaiu sobre o leito, cruzando os braços sobre o
peito. Seguindo a alma com o olhar, vi-a entrar, pela estrada de
luz, na Jerusalém celeste e chegar ao trono da Santíssima
Trindade. Vi muitas almas, entre as quais reconheci muitos
patriarcas: Joaquim, Ana, José. Isabel, Zacarias e João Batista,
lhe vieram ao encontro, com respeito e alegria. Ela passou, porém, no meio de todos, dirigindo-se ao trono de Deus e de seu Filho
que, excedendo ainda com o esplendor das chagas a luz de toda a
aparição, a recebeu com amor divino e lhe entregou algo como um
cetro, mostrando-lhe o globo terrestre, como para lhe confiar um
poder.
Assim a vi entrar na glória do céu, esquecendo-me totalmente dos
que lhe rodeavam o corpo na terra. Alguns dos Apóstolos, por
exemplo, Pedro e João, devem tê-Io visto também, pois tinham o
olhar dirigido para o céu. Os demais estavam de joelhos e
inclinados profundamente. Tudo estava cheio de luz e esplendor,
como na ascensão do Senhor.
Vi com grande alegria, numerosas almas remidas do purgatório
seguirem a alma de Maria, quando entrou no céu e também hoje, na
festa da Assunção, vi entrar muitas almas no céu, entre as quais
algumas que conheci. Foi-me dada a consoladora informação de que
anualmente, no aniversário da morte da Santíssima Virgem, muitas
almas que lhe tiveram devoção, participariam dessa graça.
Quando tornei a olhar para a terra, vi o corpo de Maria
resplandecente, com o rosto fresco, os olhos fechados, os braços
cruzados sobre o peito, deitado sobre o leito. Os Apóstolos, os
discípulos e as mulheres estavam de joelhos em roda do leito e
rezavam. Enquanto eu via tudo isso, era como se soasse uma música
deliciosa na natureza, que parecia comovida, como o tinha
percebido na noite de Natal. Expirara, como observei, depois da
nona, à hora em que morrera também o Senhor.
As mulheres estenderam uma coberta sobre o corpo sagrado; depois
cobriram a cabeça e velaram o rosto, sentando-se juntas no chão,
no quarto do vestíbulo, onde fizeram a lamentação fúnebre,
ajoelhandose e sentando-se alternadamente. Os Apóstolos, porém,
e os discípulos retiraram-se para a parte anterior da casa,
cobriram a cabeça e celebraram um ofício fúnebre. Revezavam-se
dois a dois, de joelhos, aos pés e à cabeceira do santo corpo.
Mateus e André percorreram a Via Sacra da Santíssima Virgem, até
à última estação, a gruta que representava o sepulcro de Jesus.
Levaram consigo ferramentas, para escavar um pouco mais o leito
sepulcral; pois ali devia ser depositado o corpo de Maria. Havia
cerca de meia hora de caminho, da casa até a gruta.
6. Embalsamamento e enterro de Maria
Quatro vezes vi os Apóstolos se revezarem, fazendo guarda de honra ao corpo sagrado e rezando. Hoje vi chegar algumas mulheres,
entre as quais me lembro ainda da filha de Verônica e da mãe de
João Marcos, que vieram preparar o corpo para a sepultura.
Trouxeram lençóis e especiarias, para o embalsamar à moda
judaica. Cortaram os caracóis mais belos da Santíssima Virgem,
como lembrança e enrolaram o corpo, dos tornozelos até o peito,
em lençóis e faixas de pano, bem apertados.
Os Apóstolos assistiam, nesse ínterim, ao sacrifício solene
celebrado por Pedro, recebendo com ele a sagrada Comunhão; depois
vi Pedro e João, ainda revestidos dos grandes mantos episcopais,
entrar pelo vestíbulo e aproximar-se do santo corpo. João levava
um vaso com ungüentos e Pedro, imergindo o dedo da mão direita
no vaso, ungiu a testa, o meio do peito, as mãos e os pés da
Santíssima Virgem, orando. Não era a Extrema Unção, que já
recebera ainda viva. Pedro passou o ungüento sobre os pés e as
mãos; a fronte e o peito, porém, assinalouos com o sinal da cruz.
Creio que foi para prestar homenagem ao corpo sagrado, como o
fizeram também ao sepultar o corpo do Senhor.
Depois dos Apóstolos terem saído, continuaram as mulheres o
embalsamamento. Puseram tufos de mirra sob os braços, nas axilas
e no epigástrio;encheram também com a mesma os espaços entre os
ombros, ao redor do pescoço e do queixo e as faces. Os pés estavam
também cobertos de tais tufos de ervas aromáticas. Depois lhe
cruzaram os braços sobre o peito, envolveram o corpo na grande
mortalha e enrolaramno com a faixa sob o braço, como uma grande
boneca. Sobre o rosto lhe estenderam um sudário transparente,
através do qual se lhe podiam ver as faces alvas e
resplandecentes, por entre os tufos de ervas. Depois deitaram o
corpo sagrado num caixão, semelhante a uma cesta comprida e sobre
o peito de Maria uma grinalda de flores de cor branca, encarnada
e azul celeste, como sinal de virgindade.
Então entraram todos os Apóstolos, discípulos e outros presentes,
para ver mais uma vez o santo e querido semblante, antes de ser
coberto. Ajoelharam-se, por entre muitas lágrimas e em silêncio,
em roda da SS. Virgem, tocaram-lhe as mãos já enfaixadas sobre
o peito, despedindo-se e depois saíram. As santas mulheres
despediram-se então também, cobriram-lhe depois a santa face e
colocaram a tampa sobre o caixão, que fecharam, atando-o nas duas
extremidades e no meio com faixas cinzentas. Depois vi que puseram
o caixão sobre uma padiola e Pedro e João transportaram-no sobre
os ombros para fora da casa. Devem ter-se revezado, pois mais
tarde vi que seis Apóstolos o transportavam.
Parte dos Apóstolos e discípulos precediam, outros e as mulheres
seguiam o caixão. Já estava anoitecendo: levavam quatro lanternas
sobre paus.
Assim seguiu o cortejo pelo caminho da Via Sacra de Maria, até
a última estação e, passando em frente à pedra que a assinalava,
sobre a colina, chegaram ao lado direito da gruta sepulcral. Ali
depuseram o santo corpo; quatro levaram-no para dentro da gruta
e puseram-no no leito escavado na pedra. Todos os presentes
entraram ainda um por um, espalhando flores e ervas aromáticas
e ajoelharam-se, oferecendo com lágrimas as suas orações; a
tristeza e o amor fê-Ios demorar ainda. Já era noite, quando os
Apóstolos fecharam a porta do sepulcro. Cavaram um fosso diante
da entrada estreita da gruta e plantaram uma sebe de vários
arbustos verdes, dos quais parte estava florescente e parte já
tinha brotos e que haviam sido transplantados de outro lugar,
junto com as raízes, de maneira que não se podia ver sinal da
entrada, tanto mais quanto fizeram passar um pequeno córrego em
frente dessa sebe. Não se podia mais entrar na gruta senão
passando pelo lado, por trás dos arbustos. “
7. A Assunção de Maria
Os Apóstolos, discípulos e mulheres voltaram separados,
demorando-se ainda aqui e acolá, rezando nas estações da Via
Sacra; alguns ficaram também velando em oração perto do sepulcro.
Ao voltar, viram de longe, por cima do sepulcro de Maria, uma luz
maravilhosa e ficaram muito comovidos, sem saber o que era.
Vi ainda vários Apóstolos e algumas santas mulheres rezar e cantar
no pequeno jardim, diante do sepulcro. Descia, porém, uma larga
faixa de luz do céu até o rochedo do sepulcro e nela vi um esplendor
de três círculos, de Anjos e almas, que rodeavam a aparição de
Nosso Senhor e da alma gloriosa de Maria. A aparição de Jesus
Cristo, com os sinais resplandecentes das chagas, pairava diante
dela. Em redor da alma de Maria vi, no círculo interior de luz,
figuras de crianças, no segundo círculo pareciam meninos de seis
anos e no círculo exterior jovens adultos. Vi-Ihes distintamente
os rostos; o resto vi apenas como formas luminosas. Quando esta
aparição chegou até o rochedo, tornando-se cada vez mais clara,
vi dali até Jerusalém celeste uma estrada de luz. Depois vi a alma
da SS. Virgem, que seguia a aparição de Jesus, passar para a frente
e entrar através da rocha no sepulcro, do qual pouco depois saiu
unida ao corpo glorificado de Maria, muito mais clara e resplandecente e voltou com o Senhor e todo o glorioso séquito, para
a Jerusalém celeste. Depois desapareceu todo o esplendor e se via
de novo a luz pálida do céu estrelado, que se estendia sobre a
região.
Se os Apóstolos e as santas mulheres, que rezavam diante do
sepulcro, também o viram, não o sei; mas vi que todos olhavam para
cima, orando cheios de admiração; outros, porém, atônitos se
prostraram, tocando com o rosto a terra. Vi também alguns que
voltavam para casa, levando consigo a padiola, entoando cânticos
e orações no caminho da Via Sacra e demorando-se diante das
estações, olharem com grande emoção e fervor para a luz que
surgira acima do sepulcro.
Assim não vi a SS. Virgem morrer e subir ao céu de modo comum;
mas primeiramente se lhe tirou da terra a alma e depois também
o corpo.
Mais tarde, regressando à casa, os Apóstolos e discípulos
tomaram algum alimento e depois se deitaram para dormir.
8. Abertura do sepulcro de Maria
Hoje, à noite (15 de Agosto), permaneciam ainda os Apóstolos em
oração e pranto, na sala. As mulheres já se tinham deitado. Então
vi chegarem o Apóstolo Tomé e dois companheiros. Um desses tinha
o nome de Jonatan e era parente da Sagrada Família. Oh! como
ficaram aflitos, ao ver que tinham chegado tarde! Tomé chorou como
uma criança, quando ouviu narrar a morte de Maria. Os discípulos
lavaram-lhes os pés e deram-lhes de comer. Nesse ínterim
acordaram as mulheres e se levantaram e depois de terem saído do
quarto, conduziram Tomé e Jonatan ao aposento onde a SS. Virgem
morrera. Ali se ajoelharam os recém-chegados, regando o lugar com
as lágrimas. Tomé ficou ainda muito tempo de joelhos, rezando
diante do pequeno altar de Maria. Comoveu-me indizivelmente a sua
tristeza.
Os Apóstolos, que não tinham interrompido a oração, depois de
acabarem, saíram todos, para dar as boas vindas aos
recém-chegados. Tomando nos braços Tomé e Jonatan,
levantaram-nos, dois ainda estavam de joelhos e abraçando-os,
levaram-nos à sala anterior da casa, onde Ihes ofereceram
pãezinhos e mel; beberam também de pequenos jarros e cálices.
Rezaram mais uma vez juntos e abraçaram-se.
Depois manifestaram Tomé e Jonatan desejos de ver o sepulcro da
SS. Virgem. Os Apóstolos acenderam lanternas, firmadas sobre paus
e todos foram pelo caminho da Via Sacra de Maria, em direção ao
sepulcro. Falavam pouco; demoravam-se algum tempo diante das
estações, recordando-se do caminho da cruz do Senhor e do amor
compassivo da Mãe SS., que ali pusera as pedras comemorativas e
tantas vezes as regara com lágrimas. Chegados ao rochedo do
sepulcro, ajoelharam-selhe todos em volta. Tomé e Jonatan, porém,
correram à entrada; João seguiu-os. Dois dos discípulos afastaram
um pouco os arbustos diante da entrada e eles entraram e
ajoelharam-se respeitosamente diante do túmulo da Santíssima
Virgem. João, porém, aproximou-se do leve caixão em forma de
cesta, que sobressaia um pouco do leito sepulcral, desatou as três
faixas, que lhes fechavam a tampa e colocou esta ao lado. Então
fizeram convergir a luz para dentro e viram, com grande espanto
e comoção, os lençóis mortuários vazios, ainda na mesma posição
em que lhe tinham envolvido o corpo. Sobre o rosto e o peito
estavam abertos. Os envoltórios dos braços estavam um pouco
soltos, mas ainda com as dobras; o corpo glorificado de Maria,
porém, não estava mais na terra. Admirados, de mãos erguidas,
olhavam para o alto, como se o santo corpo nesse momento houvesse
aparecido e João bradou para fora da gruta: "Vinde e admirai, ela
não está mais aqui!". Então entraram todos, dois a dois, na
estreita gruta, viram os lençóis vazios no caixão e, saindo,
ajoelharam-se todos e, olhando, com os braços estendido, para o
céu, choravam e rezavam, louvando o Senhor e sua querida Mãe
glorificada, que Ihes era também uma boa e fiel Mãe. Louvavam-na
como filhos piedosos, exaltando-a com doces palavras de amor,
como o Espírito Ihes inspirava. Então se lembraram bem daquela
nuvem luminosa, que viram de longe, ao voltar do enterro e que
descera sobre o rochedo do sepulcro e depois subira ao céu.
João, porém, tirou respeitosamente do caixão as mortalhas da
Santíssima Virgem, dobrou e enrolou-as, para as levar consigo;
depois colocou novamente a tampa sobre o caixão, atando-a com as
faixas, como dantes.
Saíram da gruta, fechando de novo a entrada com os arbustos.
Rezando e cantando salmos, voltaram pelo caminho da Via Sacra,
para a casa de Maria.
Fecharam completamente a entrada do sepulcro da Virgem
Santíssima, chegando mais os arbustos e firmando-os com terra;
alargaram tam bém o fosso. Limparam o pequeno jardim diante do
sepulcro e omaramno; cavaram também uma passagem para a parede
posterior do sepulcro e ali abriram com cinzel uma janelasinha
no rochedo, pela qual se podia ver o túmulo, onde tinha jazido
o corpo da Mãe Santíssima, à qual o Salvador, morrendo na cruz,
os entregara todos e sua Igreja, na pessoa de João. Oh! eram filhos
fiéis, obedientes ao quarto mandamento e muito tempo viveriam na
terra, guardando o seu amor.
A maior parte dos discípulos presentes já se haviam despedido.
Também os Apóstolos se separaram. Bartolomeu, Simão, Judas Tadeu,
Felipe e Mateus foram os primeiros que, após uma despedida comovedora, voltaram ao campo de ação. Os restantes, fora João, que
ainda ficou mais tempo, dirigiram-se juntos à Palestina, onde
depois também se separaram. Estavam lá muitos discípulos; também
várias mulheres viajaram com eles de Éfeso para Jerusalém.
Parece-me que o sepulcro de Maria ainda existe debaixo da terra;
há de descobrir-se um dia."
Guiados pelas informações da piedosa serva de Deus, foram feitas
várias vezes, desde 1891, pesquisas para achar a casa de Maria,
perto de Éfeso. Foi encontrada sobre o monte "dos rouxinóis" Uma
Velha ruína, chamada: Panágia-Kapuli, isto é, "Porta da SS.
Virgem". Os restos mais antigos dos muros pertencem, segundo a
afirmação de peritos, aos primeiros séculos da era cristã. A forma
e divisão da casa concorda com a descrição feita por Catharina
Emmerich. Foram também feitas escavações, pelas quais se achou
igualmente a Via Sacra feita por Maria e várias pedras das
estações, mostrando ainda inscrições. O próprio sepulcro de Maria
ainda não fora encontrado, até 1906.
É ainda digno de nota que se conservou a tradição, entre os
habitantes da povoação próxima: Kirkinsche, que Maria viveu no
monte "dos rouxinóis" e ali também morreu. Desde tempos
imemoráveis se fazem, duas ou três vezes por ano, especialmente
na festa da Assunção de Maria, romarias à ruína de Panágia-Kapuli,
onde um sacerdote oferece o santo sacrifício da Missa.
Vide: "Panágia-Kapuli", a casa perto de Éfeso, recentemente
descoberta, onde viveu e morreu a SS. Virgem Maria; por João
Niessen. Laumansche Buchhandlung, Duelmen, 1906.
15
Ação dos Apóstolos e discípulos de Jesus entre os gentios
1. Vocação dos gentios. Conversão do Centurião Comélio
2. O Concílio dos Apóstolos em Jerusalém
3. Fundação da Igreja de Roma por S. Pedro
4. Viagens e trabalhos apostólicos de S. Paulo
5. Santo André, Apóstolo da Grécia
6. S. Tiago o Maior, Apóstolo da Espanha
7. São João Evangelista em Roma e na Ásia Menor
8. Viagens apostólicas e trabalhos de São Tomé, principalmente
na Índia
9. Trabalhos apostólicos de S. Bartolomeu na Ásia e
especialmente na Abissínia, (África)
10. Os santos Apóstolos Simão e Judas Tadeu na Pérsia
11. Trabalhos apostólicos e tribulações dos santos
Apóstolos Felipe, na Frigia e Mateus, na Etiópia
12. Os santos Evangelistas Marcos, em Roma e no Egito e Lucas, na
Grécia
13. S. Barnabé, S. Timóteo e S. Satumino
14. S. Lázaro, Marta e Madalena no sul da França
Ação dos Apóstolos e discípulos de Jesus entre os gentios
1. Vocação dos gentios. Conversão do Centurião Cornélio (Atos 10)
É verdade que o divino Salvador chamou primeiro o povo escolhido,
os judeus, para entrar no seu reino; mas nem por isso pretendia
excluir os povos gentios. É que já se deduz da vocação dos Reis
Magos e de seu séquito, vindo dos países pagãos do Oriente ao
presépio de Belém e também da viagem de Jesus àqueles países e
ao Egito. Os judeus, na verdade, entregavam-se ao sonho ilusório
de que só eles, com exclusão de todos os outros povos, eram
destinados ao reino de Deus. Também os Apóstolos por muito tempo
nao conseguiram desfazer-se desta opinião errônea. Por isso o
próprio Deus ensinou esta verdade a Pedro, Vigário de Jesus Cristo
e Chefe da Igreja.
Pedro estava ainda em Jope, quando um pagão piedoso, de nome
Comélio, em Cesaréia, teve a visão de um Anjo de Deus, que lhe
assegurou que as suas orações e esmolas eram aceitas por Deus,
e que devia mandar chamar Pedro, em Jope. Comélio enviou dois
servos e um soldado a Jope. Quando chegaram próximo da cidade,
subiu Pedro ao terraço da casa, para rezar. Como, porém, sentisse
fome, viu descer do céu aberto uma grande toalha, onde se achavam
toda a espécie de animais quadrúpedes e répteis da terra e aves.
Uma voz alta intimou-o: "Levanta-te, Pedro, mata e come". Pedro
respondeu: "Oh! não, Senhor; nunca comi coisa alguma vil e
impura". A voz disse-lhe: "Não chames de impuro o que Deus
purificou". Três vezes se deu o mesmo. Logo depois desapareceu
a visão. Enquanto Pedro ainda meditava a respeito, já perguntavam
os três mensageiros, à porta da casa, se ali morava um certo Pedro.
Este recebeu do Espírito de Deus a ordem: "Aí estão três homens
à tua procura. Levanta-te e vai com eles sem medo; pois fui eu
que os mandei".
Pedro fez como lhe fora mandado, e pôs-se, com alguns discípulos,
a caminho de Cesaréia. Cornélio os estava esperando e tinha já
reunido os parentes e amigos. Pedro disse-Ihes:
"Sabeis que é abominável para um Judeu juntar-se ou unir-se a um
estrangeiro: mas Deus mostrou-me que a nenhum homem chamasse vil
ou imundo. Por isso vim, sem vacilar, logo que fui chamado.
Pergunto, pois: Porque me chamastes?" E disse Cornélio: "Hoje
fazem quatro dias que eu estava orando em minha casa, à hora nona
e eis que surgiu diante de mim um homem vestido de branco e
disse-me: Cornélio, a tua oração foi atendida e as tuas esmolas
foram lembradas na presença de Deus. Manda, pois, alguém a Jope
e faze vir um certo Simão, que tem por sobrenome Pedro e está
hospedado em casa de Simão, curtidor de peles, à beira-mar." Em
conseqüência disto mandei logo te buscar e fizeste bem em vir.
Agora, porém, estamos todos em tua presença, para ouvir o que o
Senhor ordenou que nos dissesses.”
Então Pedro, abrindo a boca, disse: "Tenho na verdade aprendido
que Deus não faz acepção de pessoas; mas que em toda a nação aquele
que o teme e obra o que é justo, esse lhe é aceito. Deus enviou
o seu Verbo aos filhos de Israel, anunciando-Ihes a paz, por meio
de Jesus Cristo. (O Senhor de todos). Sabeis o que se passou por
toda a Judéia, começando desde a Galiléia, depois do batismo que
João pregou; como Deus ungiu com o Espírito Santo e a virtude a
Jesus de Nazaré, que passou fazendo o bem e sarando todos os
oprimidos do demônio, porque Deus estava com Ele. E nós somos
testemunhas de tudo quanto fez na terra dos judeus e em Jerusalém;
eles, porém, O mataram, pregando-O num madeiro. Mas Deus O
ressuscitou ao terceiro dia e quis que se manifestasse, não a todo
o povo, mas às testemunhas que havia previamente predestinado;
a nós, que comemos e bebemos com Ele, depois que ressuscitou
dentre os mortos. E mandou-nos pregar ao povo e dar testemunho
de que é Ele quem por Deus foi constituído juiz dos vivos e dos
mortos. DEle dão testemunho todos os profetas e todos os que nEle
crêem, recebem perdão dos pecados por meio do seu Nome." Estava
Pedro ainda proferindo estas palavras, quando desceu o Espírito
Santo sobre todos os que o ouviam. E espantaram-se os fiéis que
eram da circuncisão e que tinham vindo com Pedro, de ver que a
graça do Espírito Santo fora também derramada sobre os gentios;
pois ouviam-nos falar diversas línguas e engrandecer a Deus.
Então disse Pedro: "Porventura pode alguém recusar a água, para
que sejam batizados estes que receberam o Espírito Santo, do mesmo
modo que nós?" E mandou que fossem batizados em nome do Senhor
Jesus Cristo. Então lhe rogaram que ficasse com eles por alguns
dias.
2. O Concílio dos Apóstolos em Jerusalém
Alguns dos discípulos tinham vindo a Antioquia, falando ali também aos gentios e recebendo-os no seio da Igreja. Como se
convertessem muitos, foi enviado lá Barnabé, da Igreja de
Jerusalém. Este procurou Paulo e com ele trabalhou com tanto
sucesso em Antioquia que os partidários de Jesus foram ali
chamados, pela primeira vez, cristãos.
Surgiu, porém, ali uma disputa, quando alguns, vindo da
Judéia, ensinavam que a circuncisão, e com esta também a
observação de toda a lei mosaica, era necessária para a salvação.
Paulo e Barnabé eram contrários a essa doutrina e foram, com
alguns outros, enviados pela comunidade de Antioquia a Jerusalém,
para propor esta questão, de tamanha importância, aos Apóstolos
e anciãos, para a decidirem. Esta foi a causa do primeiro Concílio
da Igreja. Catharina Emmerich apenas nos informa que a Mãe de
Jesus veio de Éfeso para assistir a este concílio e dar seus
conselhos aos Apóstolos. Tiramos a narração do Concílio dos Atos
dos Apóstolos, (15,4-32).
Tendo (Paulo e Barnabé, com os companheiros) chegado a Jerusalém,
foram recebidos pela Igreja e pelos Apóstolos e presbíteros, aos
quais referiram quão grandes coisas Deus tinha operado neles. Mas
levantaram-se alguns da seita dos fariseus que haviam abraçado
a fé, dizendo: "É necessário, pois, que os gentios sejam
circuncidados e também que observem a lei de Moisés."
Congregaram-se, pois, os Apóstolos e presbíteros, para
examinarem este ponto. E depois de fazer a respeito um grande
estudo, levantando-se Pedro, lhes disse: "Irmãos, sabeis que
desde os primeiros dias ordenou Deus que da minha boca ouvissem
os gentios a palavra do Evangelho e que a cressem. E Deus, que
conhece os corações, declarou-se por eles, dando-Ihes o Espírito
Santo, como também a nós; e não fez diferença alg~ma entre nós
e eles, purificandolhes pela fé os corações. Logo, porque tentais
agora a Deus, impondo um jugo aos discípulos, que nem nossos pais
nem nós podemos suportar? Mas cremos que pela graça do Senhor
Jesus Cristo somos salvos, assim como eles também o foram.”
Então toda a assembléia se calou e escutavam a Barnabé e
Paulo, que lhes contava quão grandes milagres e prodígios fizera
Deus, por intervenção deles, entre os gentios. E depois que se
calaram, entrou a falar Tiago, dizendo: "Irmãos, ouvi-me. Simão
tem contado como Deus primeiro visitou os gentios, para fazer
deles um povo para o seu nome. E com isto concordam as palavras
dos profetas, como está escrito: Depois disto voltarei e
edificarei de novo o tabernáculo de Davi, que caiu, e
reparar-lhe-ei as ruínas e levantá-Io-ei, para que o resto dos
homens e todas as gentes sobre as quais tem sido invocado o meu
nome, busquem a Deus, diz o Senhor, que faz estas coisas. - Pelo
Senhor é conhecida a sua obra desde a eternidade. Pelo que julgo
que não se devem inquietar os que dentre os gentios se convertem
a Deus, mas que se lhes deve somente prescrever que se abstenham
das contaminações dos ídolos e da fornicação e das carnes
sufocadas e do sangue. Porque Moisés, desde tempos antigos, tem
em cada cidade homens que o pregam, nas sinagogas, onde é lido
todos os sábados.”
Então pareceu bem aos Apóstolos e presbíteros e a toda a Igreja
eleger dentre eles varões e enviá-Ios a Antioquia, com Paulo e
Barnabé; enviaram Judas, que tinha o sobrenome de Barsabas e
Silas, muito conceituados entre os irmãos e pelos quais enviaram
a seguinte epístola: "Os Apóstolos e presbíteros irmãos, aos
irmãos convertidos dos gentios que se acham na Antioquia e na
Síria e na Cilícia, saúde. Tendo ouvido narrar que alguns que têm
saído de nós, transtornando os vossos corações, vos têm
perturbado com palavras, sem Ihes termos mandado tal: Aprouve-nos
a nós, congregados em Concílio, escolher homens e enviá-Ios a vós,
com os nossos mui amados Barnabé e Paulo, que têm exposto a vida
pelo nome de Nosso Senhor Jesus Cristo. Enviamos, portanto, Judas
e Silas, que até verbalmente vos exporão as mes mas coisas. Porque
pareceu bem ao Espírito Santo e a nós, não vos impôr mais encargos
do que os necessários, que são os seguintes: que vos abstenhais
do que tiver sido sacrificado aos ídolos e do sangue e das carnes
sufocadas e da fornicação, do que fareis bem de vos guardar. Deus
seja convosco.”
Assim enviados, foram a Antioquia e tendo congregado a multidão
dos fiéis, entregaram a carta. Depois de a ter lido, se encheram
de contentamento, pela consolação que Ihes causou. E também Judas
e Silas, como profetas que eram, consolaram com muitas palavras
os irmãos e os confirmaram na fé.
3. Fundação da Igreja de Roma por S. Pedro
S. Pedro parece ter se dirigido, logo depois de ser libertado do
cárcere de Jerusalém, para Antioquia, onde teve parte essencial
na fundação daquela Igreja, que governou durante sete anos.
A 18 de Janeiro, porém, do ano 44, como narra a piedosa Emmerich,
chegou Pedro a Roma, com os dois discípulos Martialis e Apolinaris
e o criado Marcion. De Antioquia veio primeiro a Jerusalém, depois
a Roma, passando por Nápoles e várias outras cidades. Foi recebido
mui carinhosamente, com os companheiros, por Léntulo, um dos mais
distintos romanos, a quem fora anunciada a sua chegada.
Muitos romanos que haviam ido ao batismo de João, também tinham
ouvido falar do Messias e dos milagres que fazia. Léntulo procurou
essa gente e escutou-Ihes avidamente as narrações. Cresceu-lhe
tanto a saudade e o amor a Jesus, que mandou um sudário fino para
tocar no Divino Mestre, no aperto da multidão e guardou-o depois
com grande reverência.
Léntulo tinha também grande desejo de pintar a figura de Jesus
e por isso pedia continuamente a Pedro que lhe contasse muitas
coisas sobre o Salvador. Muitas vezes tentava pintar o retrato
de Jesus, mas Pedro sempre lhe dizia que ainda não lhe era
semelhante. Um dia adormeceu Léntulo durante a oração e ao
acordar, encontrou o retrato verdadeiro terminado
milagrosamente.
Léntulo tornou-se um dos primeiros cristãos de Roma. Pedro morava, porém, em casa de Pudens, a qual consagrou como primeira
Igreja de Roma e para a qual Léntulo contribuiu com muitos
donativos.
De Roma veio Pedro a Éfeso, por ocasião da morte de Maria e na
volta visitou Jerusalém. Pedro ocupou a cadeira episcopal de Roma
durante 25 anos. Foi crucificado no ano 69, na idade de 99 anos.
4. Viagens e trabalhos apostólicos de S. Paulo
Quando Paulo e Barnabé trabalhavam em Antioquia, foram escolhidos
pelo Espírito Santo para o aposto lado entre os gentios. Sendo
ordenados bispos, cumpriram depois fielmente a tarefa que Ihes
fora dada.
São Paulo empreendeu três grandes viagens missionárias. A primeira fê-Ia com Barnabé. De Antioquia se dirigiram primeiro à ilha
de Chipre, onde se converteu o governador da ilha de Pafos: Sérgio
Paulo. Depois continuaram a viagem até Antioquia, na Pisídia. Mas
como ali os judeus contradiziam ao que Paulo ensinava, disseram
Paulo e Barnabé:
"Éreis os primeiros a quem se devia anunciar a palavra de Deus;
mas porque a rejeitais e vos julgais indignos da vida eterna,
desde já nos vamos daqui, para os gentios." (Cap. 13, 46).
Alegraram-se os gentios, dos quais muitos aceitaram a palavra de
Deus. Em Icônio o povo quis maltratar e prejudicar os dois
missionários, que por isso fugiram para Listra. Paulo curou nessa
cidade um homem que nascera coxo e o povo quis por isso os adorar
como deuses; eles, porém, o impediram; mas pouco depois vieram
os judeus, agitando o povo; Paulo foi apedrejado e deixaram-no
como morto. No dia seguinte pôde partir com Barnabé para Derbe,
donde voltaram para Listra, Icônio e Antioquia, na Pisídia.
"Confirmaram os corações dos discípulos, exortando-os a perseverar na fé, e ensinando-Ihes que por muitas tribulações nos é
necessário entrar no reino de Deus. Por fim, tendo-Ihes ordenado
em cada Igreja
presbíteros e feito orações com jejum, os deixaram encomendados
ao Senhor, no qual tinham crido." (Cap. ]4,21-22).
Passando por Perge e Átila, voltaram para Antioquia, onde tinham
começado a viagem e pouco depois se encaminharam para Jerusalém,
afim de tomar parte no Concílio dos Apóstolos (no ano 50), cuja
decisão levaram depois à comunidade de Antioquia.
São Paulo fez a segunda viagem acompanhado pelo discípulo Silas.
Visitaram primeiro as Igrejas da Síria e Cilícia, que ficavam no
caminho de Listra, onde Timóteo se lhes juntou. Dali viajaram pela
Frigia, Galícia e Mísia, para Troas.
"E à noite teve Paulo esta visão: Achava-se ali em pé um homem
macedônio, que lhe rogava e dizia: "Parte para a Macedônia e
ajudanos!" (Cap. 16, 6.)
Embarcaram, pois, sem demora, depois de Lucas se lhes ter juntado,
em Troas. Em Filipos se converteu uma mulher, por nome Lídia, que
comerciava em púrpura. Paulo livrou também uma escrava do
demônio, pelo que foi acusado e, juntamente com Silas, açoitado
e lançado no cárcere.
"Mas à meia-noite, postos em oração, Paulo e Silas louvavam a Deus
e os que estavam na prisão, os ouviam. E subitamente se sentiu
um terremoto tão grande, que se moveram os fundamentos do cárcere.
E abriram-se logo todas as portas e foram soltas as prisões de
todos. Tendo, pois, despertado o carcereiro e vendo abertas as
portas do cárcere, tirando da espada, queria matar-se, achando
que tinham fugido os presos. Mas Paulo bradou-lhe em voz forte:
"Não te faças mal algum, porque todos nós aqui estamos". Então,
tendo pedido luz, entrou lá dentro o carcereiro e, todo tremendo,
se lançou aos pés de Paulo e Silas e tirando-os para fora,
disse-lhes: "Senhores, que é necessário que eu faça para me
salvar?" E eles disseram: "Crê no Senhor Jesus e serás salvo, tu
e a tua família." E pregavam-lhe a palavra do Senhor e a todos
de casa. E tomando-os naquela mesma hora da noite, o carcereiro
lavoulhes as chagas e imediatamente foi batizado, com toda a
família. (Cap. 16, 25-33).
Posto em liberdade, dirigiu-se Paulo à Tessalônica, anunciando
Jesus, ressuscitado dos mortos; mas, prevendo uma perseguição,
logo que chegou a noite continuaram a viagem e foram a Beréa. Como
também ali os judeus agitassem contra eles o povo, Paulo deixou
nessa cidade Silas e Timóteo, encaminhando-se para Atenas. Ali,
em pé no meio do areópago, anunciou aos filósofos gentios o Deus
desconhecido:
"Homens atenienses, em tudo e por tudo vos vejo um pouco
excessivos no culto da vossa religião. Pois passando e vendo os
vossos ídolos, achei também um altar, em que estava.escrito: Ao
Deus desconhecido. Pois esse Deus que adorais sem o conhecer, é
de fato O que vos anuncio. Deus que fez o mundo e tudo o que nele
há, sendo o Senhor do céu e da terra, não habita em templos feitos
pelos homens, nem é servido por mãos de homens, como se
necessitasse de alguma criatura, quando Ele mesmo é o que dá a
todos a vida e a respiração e todas as coisas. Ele fez de um só
casal todo o gênero humano, para que se espalhasse por toda a face
da terra e regulou e determinou a ordem dos tempos e os limites
da existência humana, para que os homens buscassem a Deus, se
porventura o pudessem tocar ou achar, ainda que não esteja longe
de cada um de nós. Pois n’Ele vivemos e nos movemos e existimos,
como ainda disseram alguns dos vossos poetas: porque somos também
de sua linhagem. Sendo, pois, linhagem de Deus, não devemos pensar
que a Divindade seja semelhante ao ouro ou à prata ou à pedra
lavrada por arte e indústria do homem. Deus, dissimulando por
certo os tempos desta ignorância, comunica agora aos homens que
todos, em todo o lugar, façam penitência. Pois determinou um dia
em que há de julgar o mundo, conforme a justiça, por aquele Homem
que destinou para juiz, do que dá certeza a todos, ressuscitando-O
dentre os mortos.”
Ouvindo-o, porém, falar da ressurreição dos mortos, uns faziam
zombaria e outros disseram: "Outra vez te ouviremos sobre este
assunto." Assim se retirou Paulo. Todavia, alguns homens,
agregando-se-lhe, abraçaram a fé; entre estes não foi só
Dionísio, areopagita, mas também uma mulher por nome Dámaris e
com eles, outros. (Cap. 17, 22-34.)
Paulo partiu de Atenas e chegou a Corinto, onde procurou primeiro
converter os judeus e depois os gregos à fé de Jesus Cristo.
Converteuse aí Crispo, que era o príncipe da sinagoga. Depois de
uma estadia de um ano e meio em Corinto, voltou a Antioquia,
passando por Éfeso, Cesaréa e Jerusalém.
Ali pouco tempo apenas se demorou o Apóstolo, partindo depois para
a terceira viagem apostólica. Atravessando primeiro a Galácia
e Frigia, chegou a Éfeso, de onde foi à Acaia, na Grécia e passando
por Corinto, voltou a Éfeso, onde passou mais de dois anos,
pregando e fazendo muitos milagres.
"E muitos dos que tinham crido, vinham confessando e anunciando
as suas obras. Muitos também dos que tinham seguido as artes vãs,
trouxeram os livros e ajuntando-os, queimaram-nos diante de
todos; e ca1culando-lhes o valor, acharam que montava a cinqüenta
mil dinheiros. Deste modo a palavra de Deus crescia muito e tomava
novas forças." (Cap. 19, 18-20).
Como, porém, o culto da deusa Diana cada vez mais diminuísse, o
ourives de prata, Demétrio, amotinou o povo contra o Apóstolo,
que por isso partiu para a Macedônia e Grécia, voltando dali a
Trôade, onde ressuscitou dos mortos o mancebo Euticho. Chegado
a Mileto, fez diante dos bispos da Ásia Menor um belo sermão de
despedida, no qual disse:
"E agora, eis que, levado pelo Espírito, vou para Jerusalém, não
sabendo o que ali me há de acontecer, senão o que o Espírito Santo
me assegura por todas as cidades, dizendo que me esperam em
Jerusalém prisões e tribulações. Nada disto, porém, temo nem
considero a minha própria vida mais preciosa do que eu mesmo,
contanto que acabe a minha carreira e o ministério da palavra,
que recebi do Senhor Jesus, para dar testemunho do Evangelho da
graça de Deus... Tende cuidado convosco e com todo o rebanho de
que o Espírito vos constituiu bispos, para governardes a Igreja
de Deus, que Ele adquiriu com seu próprio sangue. Porque sei que
depois da minha partida hão de penetrar entre vós lobos
arrebatadores, que não pouparão o rebanho." (Cap. 20, 22-29.)
Partindo de Mileto, viajou Paulo, por Chipre e Tiro, para
Jerusalém. Mas quando estava no templo, alguns amotinaram o povo.
Lançaramlhe as mãos e, arrastando o para fora, tê-Io-iam matado,
se não fosse o comandante romano, Lísias, que o arrebatou das mãos
do povo. O Apóstolo defendeu-se em seguida diante do Conselho
Supremo e foi depois retirado de novo do tumulto pelos soldados
e levado à Torre Antônia. Mais de quarenta judeus fizeram, porém,
o juramento que não haviam de comer nem beber, enquanto não
matassem Paulo. Mas Lísias, tendo-o sabido, mandou levá-I o, com
uma escolta militar, para Cesaréia e entregá-lo ao governador
Félix, que o guardou dois anos preso. Paulo defendeu-se também
diante de Festo, sucessor de Félix, como também diante do rei
Agripa. Mas, sendo cidadão romano, apelou para o imperador e foi
assim enviado a Roma. Viajando no alto mar, desencadeou-se um
furioso temporal, pondo-Ihes o navio e a vida em perigo, durante
13 dias, como Paulo mesmo predissera. Próximo da ilha de Malta
se despedaçou o navio de encontro a um rochedo, mas todos os
passageiros chegaram sãos e salvos à praia. O Apóstolo curou o
homem mais eminente da ilha, de nome Públio; e, tendo-o mordido
uma víbora, nada sofreu. No fim de três meses, se puseram de novo
em viagem. Em Roma a prisão de Paulo era pouco rigorosa e ele pôde
até converter algumas pessoas da corte de César. É provável que
ainda fizesse uma viagem apostólica à Espanha e depois à Ásia
Menor e à Grécia.
Depois de ter estado nove meses no cárcere Mamertino, o incansável Apóstolo foi degolado, fora da cidade de Roma, na estrada de
Óstia, a 29 de Junho de 67 (segundo Catharina Emmerich). Narra-nos
a tradição que a santa cabeça, depois de cortada pelo carrasco,
ainda saltou três vezes e onde tocou no chão, nasceu uma fonte.
Hoje ainda existem essas três fontes, na Igreja de Tre Fontane.
S. Paulo mereceu, com toda a justiça, o nome de Apóstolo dos
gentios, pelos seus trabalhos apostólicos em tantos países
pagãos. As quatorze Epístolas que escreveu, reconhecidas pela
Igreja, cheias de sublimes doutrinas da fé, continuam-lhe o
apostolado até o fim dos séculos. O zelo pela glória do nome de
Jesus, na salvação das almas, manifesta-se-Ihe nas palavras:
"Fiz-me tudo para todos, para salvar todos." (1Cor.9, 22) E chega
ao apogeu nesta exclamação: "Desejara atéser anátema por Cristo,
por amor de meus irmãos." (Rom. 9, 3) Toda a chama de amor se lhe
patenteia, porém, na mesma carta aos romanos (8, 35): "Quem nos
separará, pois, do amor de Cristo? será a tribulação? ou a
angústia? ou a fome? ou a nudez? ou o perigo? ou a perseguição?
ou a espada? Porque estou certo de que nem a morte, nem a vida,
nem as coisas presentes, nem as futuras... nem criatura alguma
nos poderá apartar do amor de Deus, que está em Jesus Cristo,
Senhor nosso." O Apóstolo mostrou esse amor a Jesus também pela
ação, sofrendo pelo nome de Jesus muitíssimas dores e
tribulações, de que ele mesmo escreve:
"Dos Judeus recebi cinco quarentenas de açoites, menos um; três
vezes fui açoitado com varas, uma vez fui apedrejado, três vezes
naufraguei, uma noite e um dia estive no fundo do mar; em jornadas,
muitas vezes me vi em perigo de rios, em perigo de ladrões, em
perigo dos da minha nação, em perigo dos gentios, em perigo da
cidade, em perigo do deserto, em perigo no mar, em perigo entre
falsos irmãos; em trabalho e fadiga, em muitas vigílias, com tome
e sede, em muitos jejuns, em frio e desnudez; fora estes males,
que são exteriores, me combatem as minhas ocorrências de cada dia,
o cuidado que tenho de todas as Igrejas." (2Cor. 11,24 - 28).
Em todas as tribulações S. Paulo não carecia de consolações
celestiais, de modo que podia dizer: "Nado em alegria em toda a
minha tribulação." (2Cor. 7,4). Depois de tantos trabalhos e
lutas, cheios de sacrifícios, pôde, com todo o direito, escrever:
"Combati o bom combate, acabei a minha carreira, guardei a fé.
Quanto ao mais, me está reservada a coroa da justiça, que o Senhor,
justo Juiz, me dará naquele dia.” (2Tim. 4, 7 - 8).
5. Santo André, Apóstolo da Grécia
Depois da divisão dos Apóstolos, S. André trabalhou primeiro
na Scítia, depois no Epiro e na Trácia e finalmente na região da
Acáia, na Grécia. Dali foi chamado por uma visão para junto do
Apóstolo Mateus, que estava preso, com outros discípulos e
sessenta cristãos, numa cidade da Etiópia. Os pagãos tinham-lhe
derramado veneno nos olhos, o que lhe causava dores horríveis.
André apressou-se a chegar junto de Mateus e curou-o, livrando-o,
com os companheiros, da prisão. Pregou também o Evangelho nessa
cidade, até que foi preso por gente amotina da e arrastado pela
cidade, com os pés amarrados. André, porém, rezava pelos
carrascos, que por isso ficaram tão comovidos, que lhe
pediram perdão e se converteram.
Depois voltou para a Acaia, onde curou um possesso cego e
ressuscitou um menino. Viajou também para Nicéa, ordenando um
bispo nessa cidade. Na Nicomédia ressuscitou outro rapaz e
aplacou uma tempesta de no Helesponto. Uma vez em que foi ameaçado
pelos Trácios selvagens, ficaram estes assustados com uma luz
resplandecente do céu e prostraram-se por terra. Outra vez foi
atirado às feras, mas ficou ileso.
Foi em Patras, cidade da Acaia, que o Apóstolo sofreu o martírio;
por ter confessado com grande franqueza a fé diante do procônsul
Egéas, mandou este que o lançassem no cárcere. O povo, que lhe
era muito afeiçoado, queria libertá-Io; ele, porém, pediu que lhe
não impedissem de alcançar à tão almejada coroa do martírio. O
juiz condenou-o à morte na cruz. Ao ver de longe a cruz, André
exclamou: "ó boa cruz, há tanto tempo almejada, tão ardentemente
amada e sem cessar procurada! Tira-me de junto dos homens e
restitui-me ao meu Mestre, para que por ti me receba, quem por
ti me remiu," Por dois dias esteve suspenso vivo, na cruz,
pregando ao povo a fé de Jesus Cristo. A piedosa Emmerich viu-o
morrer, rodeado de Anjos, sendo o corpo embalsamado por Maxila,
tia de Saturnino. Segundo a serva de Deus, teve lugar a morte de
Santo André no ano 93.
6. S. Tiago o Maior, Apóstolo da Espanha
Partindo de Jerusalém, Tiago o Maior dirigiu-se, pelas ilhas
gregas e pela Sicília, à Espanha, onde desembarcou em Gades. Como
ali não fosse bem recebido, mudou-se para outra cidade. Mas também
lá não foi tratado melhor; prenderam-no e teria sido morto, se
um Anjo não o tivesse livrado milagrosamente. Deixou na Espanha
cerca de sete discípulos e, acompanhado de dois outros, voltou
por Massília, no sul da França, a Roma.
Mas voltou depois à Espanha, dirigindo-se de Guedes, por Toledo,
a Saragoça.
"Ali, diz Catharina Emmerich, se converteu muita gente, ruas
inteiras creram no Senhor, com exceção apenas dos que ainda
aderiam ao paganismo. Vi Tiago correr também muitos perigos.
Soltavam contra ele víboras, as quais tomava tranqüilamente nas
mãos e não lhe faziam mal, mas viravam-se contra os idólatras que
o cercavam e estes, vendo o milagre, começavam a temê-Io. Vi
também que em Granada, onde apenas começara a pregar, foi preso
com todos os discípulos e cristãos. Tiago invocou no coração o
socorro e a proteção da Santíssima Virgem, que nesse tempo ainda
vivia em Jerusalém e Maria salvou-o, com todos os seus discípulos,
por intermédio de Anjos. A Virgem Santíssima mandou-lhe por um
Anjo a ordem de ir à Galícia, pregar ali a fé e depois voltar.
Vi Tiago, após a volta, em grandes tribulações, por causa de uma
iminente perseguição e provação da comunidade cristã de Saragoça.
Rezava numa noite à beira do rio, fora dos muros da cidade, junto
com alguns discípulos, pedindo a Deus conselho, se devia ficar
ou fugir. Lembrou-se também da Santíssima Virgem e suplicou-lhe
que o ajudasse a pedir luzes e auxílio do Filho, que certamente
não lhe negaria. Então vi subitamente aparecer por cima do
Apóstolo um esplendor no céu e Anjos que entoavam um magnífico
canto e transportavam uma coluna resplandecente, que da base
projetava um raio fino de luz sobre um lugar, alguns passos
distante de Tiago, como para indicar esse ponto. A coluna tinha
um brilho vermelho, era atravessada por muitas veias, muito alta
e delgada, terminando em cima como um lírio, que se abre em línguas
de luz, das quais uma raiava longe, em direção a Compostela, a
oeste, as outras, porém, para as regiões próximas. Nessa flor de
luz, vi a figura da Santíssima Virgem em pé, como sempre ficava
em vida na terra, durante a oração, toda branca e transparente,
com um brilho mais belo e suave que o da seda branca. Estava de
mãos postas, uma parte do longo véu cobria-lhe a cabeça, a outra
parte, porém, envolvia-a até os pés, de modo que com os pés
delicados e pequenos estava sobre as cinco pétalas da flor de luz.
Era um quadro indizivelmente doce e belo. Vi que Tiago, orando
de joelhos, levantou os olhos e recebeu interiormente de Maria
a ordem de, sem demora, construir nesse lugar um templo, em que
a intercessão de Maria se firmasse como uma coluna. Ao mesmo tempo
lhe anunciou a Virgem Santíssima que, depois de acabar a
construção da Igreja, devia ir a Jerusalém, Tiago levantou-se,
chamou os discípulos, que já tinham visto a luz e correram para
junto dele e comunicou-Ihes a aparição milagrosa e todos seguiam
com os olhos o esplendor que ia desaparecendo.
Tendo executado em Saragoça a ordem de Maria, Tiago constituiu
uma comissão de doze discípulos, entre os quais também homens
doutos, que deviam continuar a obra, que começara com tantas
dificuldades e tribulações.
Em seguida partiu de Espanha para Jerusalém, como lhe ordenara
a Virgem. Nessa viagem visitou em Éfeso Maria, que lhe predisse
a morte próxima, em Jerusalém, consolando e confortando-o. Tiago
despediu-se de Maria e do irmão e continuou a viagem para
Jerusalém, onde foi decapitado. (Veja cap. 13, no. 10).
O corpo do Apóstolo esteve algum tempo num sepulcro perto
de Jerusalém. Quando, porém, se levantou uma nova perseguição,
levaram-no alguns discípulos, entre os quais José de Arimatéia
e Saturnino, para a Espanha. Mas a perversa rainha Lupa, que já
antes perseguira S. Tiago, não quis permitir que o sepultassem
ali.
"Os discípulos tinham posto o santo corpo sobre uma pedra, que
sob ele formou então uma cavidade, como um sepulcro. Sucedeu
também que outros cadáveres, sepultados ao lado, foram lançados
fora da terra. Lupa acusou os discípulos perante o rei, que os
mandou prender; mas escaparam milagrosamente e o rei que os
perseguia com cavalaria, passou sobre uma ponte, que desabou,
morrendo ele com todos os companheiros. Lupa assustou-se tanto
com esse fato, que mandou dizer aos discípulos que prendessem e
atrelassem touros bravos num carro; onde estes levassem o corpo,
ali poderiam construir uma Igreja. Esperava que os touros bravos
destruíssem tudo. Um dragão opôs-se na região deserta aos
discípulos, mas morreu fulminado, quando fizeram o sinal da cruz;
os touros bravos, porém, tornaram-se mansos, deixaramse atrelar
ao carro e levaram o santo corpo ao castelo de Lupa. Ali então
foi sepultado e o castelo transformado em Igreja, pois Lupa
converteuse, confessando a fé cristã, com todo o povo".
No sepulcro do santo Apóstolo aconteceram muitos milagres. Mais
tarde lhe foram transferidos os ossos para Compostela, que se
tornou um dos mais afamados lugares de peregrinação. S. Tiago
pregou cerca de quatro anos na Espanha.
7. São João Evangelista em Roma e na Ásia Menor
Os cristãos podiam viver em Éfeso, sem ser incomodados; todavia
era João guardado por algum tempo como preso. Podia, porém, sair,
acompanhado por dois soldados; e visitava muitas vezes gente boa.
Uma vez se encontrou, num tal passeio, com um grupo de estudantes,
cujo professor falara contra João. Como o Apóstolo tinha pregado
o desprezo das riquezas terrestres, compraram ouro e pedras
preciosas, que quebraram em pedaços, espalhando-os por escárnio
no caminho de João; queriam mostrar-lhe que os pagãos podiam
também desprezar a riqueza, sem por isso serem necessariamente
cristãos. João, porém, disse-Ihes que isso era desperdício, mas
não a virtude do desapego. Um dos rapazes desafiou-o então a
apanhar os pedaços das pedras e restaurar-Ihes a forma anterior,
que creriam no seu Deus. João disse-Ihes que as apanhassem e lhas
trouxessem. Assim fizeram; João rezou e restituiu-Ihes então tudo
em estado perfeito. Prostraram-se então os jovens diante dele,
deram as jóias aos pobres e tornaram-se cristãos.
"Dois dos que tinham dado os bens aos pobres e seguido a João,
conta Catharina Emmerich, vendo os escravos bem vestidos,
arrependeram-se de ter seguido a Cristo. Vi João apanhar ramos
do mato e pedras na praia do mar, convertendo-os pela oração em
varas de ouro e pedras preciosas e; dando-Ihes, disse que
comprassem de novo as riquezas.
Estava ainda a repreendê-Ios por causa da queda, quando passou
diante deles o cadáver de um jovem e muita gente que o
transportava; imploraram, chorando, ao Apóstolo que lhe
restituísse a vida. Orando, ressuscitou-o e mandou-lhe dizer aos
discípulos irresolutos o que sabia do estado de suas almas. O
ressuscitado falou-Ihes do outro mundo, exortando-os a fazer
penitência. Arrependeram-se então os jovens e o Apóstolo
mandou-os jejuar, recebendo-os depois novamente na Igreja; o
ouro, porém, tornou-se de novo em ramos e as pedras preciosas converteram-se novamente nas pedras anteriores e foram lançadas ao
mar.
Vi que muitos se converteram e que João foi preso. Um sacerdote
dos ídolos disse que creria em Jesus e o libertaria, se João
bebesse um cálice de veneno, sem morrer. Fizeram-no conduzir a
um largo, perante o juiz e grande multidão de homens. Vi também
que dois condenados à morte foram forçados a beber o veneno e
caíram mortos em pouco tempo. João rezou e pronunciou algumas
palavras sobre o cálice. Então saiu deste um negro vapor e uma
luz desceu sobre ele. João bebeu tranqüilamente e o veneno não
lhe fez mal algum. O sacerdote pagão exigiu ainda que João
ressuscitasse os dois mortos. O Apóstolo deu-lhe o manto para o
estender sobre os mortos e disse-lhe o que devia dizer então.
Feito isso, levantaram-se os dois mortas; à vista deste milagre,
quase toda a cidade se converteu e deram liberdade a João.
Vi também desabar um templo em Éfeso, quando queriam obrigar João
a sacrificar aos ídolos. Era como se uma tempestade caísse sobre
o templo; ruiu o teto, poeira e vapor saiam de todas as aberturas
e os ídolos fundiram-se.
Um judeu convertido, que ainda era catecúmeno, caiu, na ausência
de João, em grande pobreza e dívidas e era por isso muito
perseguido. Então lhe disse um judeu maldoso que tomasse veneno,
pois teria de ficar até à morte no cárcere dos devedores
insolventes. Vi então o pobre homem, cheio de angústia, beber três
vezes uma taça de bronze, cheia de veneno, mas como S. João lhe
tivesse ensinado a fazer o sinal da cruz sobre tudo quanto comesse
ou bebesse, o veneno não lhe fez mal, apesar de querer
envenenar-se. Nesse ínterim voltou João àquele lugar. O homem
confessou-lhe o ato que praticara e, repreendido, reconheceu o
crime, manifestando grande arrependimento. João fez o sinal da
cruz sobre a taça de veneno, a qual se converteu em ouro e
mandou-lhe pagar com isso as dividas. Esse homem tornou-se
discípulo de João e bispo daquela cidade onde João achou o menino
que mais tarde encontrou como membro de um bando de bandidos.
João achou-o apascentando um rebanho fora da cidade. Conversando
com o menino, conheceu-lhe os bons talentos, apesar de grande
falta de educação. Mandou que chamasse os pais, dos quais João
pediu e recebeu o menino, para o educar. Tinha este 10 anos de
Idade. João levou-o ao bispo de Beréa, para o educar e disse a
este que mais tarde viria pédí-Io. No princípio tudo ia bem;
depois se descuidaram do menino, que afinal se juntou a uma
quadrilha de salteadores. Quando João, na volta, perguntou pelo
menino, soube que se achava nas montanhas, entre os salteadores.
Então montou numjumento e seguiu para lá. Erajá idoso e o caminho
da montanha muito íngreme. Tendo achado o moço, suplicou-lhe de
joelhos que se convertesse. O jovem tinha então cerca de vinte
anos. João levou-o consigo, depôs o bispo e impôs uma penitência
ao moço, que se tornou mais tarde também bispo.
O bispo demitido era, aliás, um homem bom, mas faltara ao dever
para com o moço. Ficara apenas seis anos bispo; era mais o vigário
geral de João. Chama-se Áquila e morreu de morte natural. Oh! como
chorou, ajoelhando-se diante de João, quando este o repreendeu
pelo descuido! Quando João foi atirado no óleo fervente, tinha
ensinado na Itália, onde fora também preso. De Patmos, onde era
muito benquisto e tinha convertido muitos, viajava às vezes, com
os guardas, mesmo até Éfeso. As revelações do Apocalipse, não as
recebeu de uma só vez, nem as escreveu ao mesmo tempo, mas com
intervalos; somente três anos antes da morte foi que escreveu o
Evangelho, no Interior da Ásia. - Tive várias visões do martírio
deste Apóstolo, em Roma. Vi-o num pátio circular, cercado de um
muro simples, onde o despiram e açoitaram; estava já muito velho,
mas ainda tinha um aspecto delicado e juvenil. Vi-o também
conduzido por uma porta para fora da cidade a um largo vasto e
circular, onde havia uma caldeira alta e um pouco estreita,
colocada sobre um fogão circular de pedra, o qual tinha aberturas
embaixo, para entrar o ar. João vestia um manto largo, abotoado
no peito, quase como o Senhor, quando foi escarnecido depois da
coroação de espinhos. Havia em roda muita gente a olhá-lo.
Tiraram-lhe o manto e vi o corpo sangrento pela flagelação. Dois
homens levantaram João, que subia também. O óleo estava fervendo;
embaixo faziam fogo com lenha curta, de cor escura, que traziam
em feixes. Tendo João estado dentro da caldeira por algum tempo,
sem sinal de dor ou queimaduras, tiraram-no; todo o corpo
conservava-se ileso e renovado, pois todas as feridas feitas
pelos açoites, tinham-se curado. Muita gente que o viu, precipitou-se para a caldeira, sem medo, enchendo pequenos jarros com
o óleo e eu ficava admirada de que não se queimassem. João, porém,
foi reconduzido à cidade.
De Roma veio João de novo a Éfeso vivendo ali alguns dias
escondido. Só de noite visitava as moradas dos cristãos e também
celebrou o santo sacrifício em casa de Maria. Depois mudou, com
alguns discípulos, para Kedar, onde três anos antes da morte
escreveu o Evangelho, na solidão. Os discípulos não estavam
presentes quando escrevia; moravam um pouco afastados e só de vez
em quando iam levar-lhe alimen to. Vi que escrevia deitado sob
uma árvore e que, quando chovia, em cima do Apóstolo permanecia
o céu claro e não o molhava. Viveu ali mais tempo, ensinando também
e convertendo muita gente nas cidades. De lá voltou novamente a
Éfeso.
Os partidários principais dos reis Magos, depois de recebido o
ba tismo das mãos de São Tomé, dirigiram-se à Ilha de Creta; o
resto espalhara-se por outras regiões. São Tomé instituíra na
Arábia vários bispos, pertencentes às tribos dos Reis Magos.
Estes bispos não conseguiram mais governar os fiéis da região,
os quais sempre recaiam na idolatria. Por isso escreveram a São
João, que Ihes mandasse dois discípulos, ambos irmãos de Fidélis,
os quais receberam no batismo os nomes de Macário e Caio e já eram
homens. Esses, porém, tanto tempo lho pediram, que afinal, embora
em idade avançada, fez essa viagem. Moravam ainda mais longe do
que o acampamento de Mensor. Vi João num lugar onde habitavam os
cal deus, que possuíam no seu templo o jardim fechado de Maria.
O templo não existia mais; tinham uma Igreja pequena, em forma
da casa de Maria em Éfeso, com terraço, como tenho visto todas
as Igrejas nos primeiros tempos do cristianismo. Ali se reuniram
também os bispos, pedindo a João que escrevesse a vida de Jesus,
pois que lhe contariam tudo quanto sabiam. Disse-lhes, porém, o
Apóstolo que já tinha escrito a vida de Jesus e tudo quanto podia
escrever de sua Divindade neste mundo; que, enquanto escrevera,
quase sempre havia estado no céu, não podia escrever mais outra
coisa. Disse-Ihes que um dos discípulos que acompanhara Jesus,
de nome Eremenzear, mais tarde chamado Hermes, tinha escrito a
respeito; Macário e Caio deviam completá-lo. Vi também que estes
assim fizeram e que a obra de Macário se perdeu, mas a de Caio
ainda existe. João partiu dali para Jerusalém, depois para Roma,
donde voltou para Éfeso.
Tive também uma bela visão da morte de São João. Estava já muito
velho, mas tinha o rosto ainda belo, delicado e juvenil. Vi-o
partir e distribuir o pão divino, creio que por três dias em
seguida, numa Igreja de Éfeso. Lembro-me que Jesus lhe tinha
aparecido, anunciando-lhe a morte; recordo-me só obscuramente,
mas vi muitas vezes Jesus lhe aparecer. Depois o vi ensinar ao
ar livre, sob uma árvore, fora da cidade, rodeado pelos
discípulos; dirigiu-se em seguida, acompanhado apenas por dois
discípulos, a um belo lugar num bosque, atrás de uma
pequena colina. Havia ali uma linda relva e podia-se ver o mar
azul no horizonte. Mostrou-Ihes uma coisa no chão; era que deviam
cavar ou acabar-lhe a cova. Creio que era para acabar, pois pouco
depois tudo estava tão bem preparado, que o trabalho principal
devia ter sido feito já anteriormente. As pás ainda estavam lá.
Vi-o voltar para junto dos outros, ensinandoIhes com amor,
rezando e exortando-os a se amarem uns aos outros. Os dois
voltaram também e um deles disse: "Ai! meu Pai, cremos que nos
quereis abandonar." Comprimiam-se-Ihe todos em roda e
prostravam-se por terra, chorando; João exortou-os, rezou e
abençoou-os. Depois mandou que ficassem ali; e acompanhado por
cinco dentre os discípulos, foi ao lugar do sepulcro, que não era
muito profundo, mas bem revestido de relva; tinha uma tampa de
vime e sobre esta puseram depois, se bem me lembro, relva e uma
pedra.
João, em pé à beira da cova, rezou com os braços estendidos; depois
colocou dentro o manto, entrou e, sentando-se, ainda rezava. E
veio-lhe um grande esplendor, enquanto ainda falava; os
discípulos estavam prostrados por terra, chorando e rezando. Vi
depois uma coisa maravilhosa: Quando João caiu vagarosamente
deitado e expirou, vi no esplendor que o encimava, uma figura
resplandecente, semelhante a ele, sair-lhe do corpo, como de um
invólucro grosseiro e desaparecer com a luz. Depois vi também os
outros discípulos, que se aproximavam e se prostravam em roda do
sepulcro, sobre o corpo sagrado, que foi coberto em seguida.
Vi também que o corpo do Apóstolo não está mais na terra, mas entre
norte e leste, num lugar resplandecente como o sol; vi que lá era
como um intermediário, recebendo alguma coisa de cima e levando-a
para baixo. Vi esse lugar como ainda pertencente à terra, mas
elevado acima dela e inacessível.”
8. Viagens apostólicas e trabalhos de São Tomé, principalmente
na Índia
Havia cerca de três anos depois da morte de Jesus, quando Tomé,
com o Apóstolo Tadeu e quatro discípulos, partiu para o país dos
Reis Magos. Batizou os dois reis, já muito idosos, Mensor e
Teokeno e pouco a pouco foram batizados todos os habitantes do
país.
Tomé enviou Tadeu, com uma carta, ao rei Abgar, para o curar;
soubera, por uma revelação divina, da enfermidade do rei.
"Por todo o caminho, conta a piedosa Emmerich fazia Tomé grandes
milagres, instituía catequistas e deixava também um discípulo.
Continuou a viagem até a Báctria. Foi também ao extremo norte,
além da China, onde começa o território da Rússia, entre tribos
muito selvagens. Na Báctria e entre os povos que seguem a doutrina
de Zoroastro, teve muito bom êxito. Chegou também ao Tibet.
Mais tarde vi São Tomé, não só na Índia, mas também numa ilha,
entre gente de cor e também no Japão; ouvi-lhe também profecias
sobre a sorte futura da religião nesse último país.
Tomé tinha pouca vontade de ir para a Índia. Antes de partir para
lá, teve muitos sonhos, nos quais construía belos e grandes
palácios na Índia. Não o compreendia a princípio, não dando
importância a esses sonhos, porque nada sabia de arquitetura. Mas
continuavam a repetirse tais avisos interiores, de ir à Índia para
converter muitos homens e ganhar muitas almas, porque isso
significaria a construção dos grandes palácios. Aconselhou-se
com Pedro, que o exortou a partir para a Índia. Então seguiu ao
longo do Mar Vermelho e passou também pela Ilha de Socotora, onde
ensinou, mas não por muito tempo.
Foi a segunda cidade da Índia onde Tomé chegou, encontrando o povo
a preparar-se para uma grande festa. Ensinou e curou enfermos;
o rei e muito povo o escutavam. Foram tantos os que lhe aderiram,
que um jovem sacerdote dos falsos deuses lhe criou um profundo
ódio e uma vez, durante o sermão, lhe bateu no rosto. Tomé, porém,
permaneceu calmo e humilde e, agradecendo-lhe, ofereceu também
a outra face. Vendo-o, o rei e todo o povo ticaram muito comovidos,
estimando depois Tomé como um homem muito santo; o sacerdote
idólatra converteu-se.
A mão tinha-se-Ihe coberto inteiramente de lepra. Tomé, porém,
curou-a e o jovem convertido se tornou o mais fiel dos discípulos.
Tomé conver teu também a filha do rei e o marido, que era possesso
de um demônio; depois saiu da região, continuando a viagem mais
para leste. Tendo a filha do rei dado à luz um filho, ela e o marido
tizeram voto de castidade, dando todos os bens aos pobres. O pai
indignou-se muito e afirmou que Tomé era feiticeiro; mas a filha
e o genro perseveraram no seu propósito e propagavam por toda a
parte a doutrina singela de Jesus Cristo, como a tinham recebido,
convertendo muitos. o próprio pai atinal ticou como vido e mandou
um mensageiro a Tomé, pedindo-lhe para voltar. O Apóstolo voltou,
pois, na despedida Ihes dissera: "Em pouco tempo nos tornaremos
a ver." O rei e uma grande multidão de povo pediram o batismo e
o próprio rei tornou-se mais tarde diácono e foi juntar-se
aos seis Magos. Tenho ainda a lembrança vaga de que se tornou
sacerdote e o filho construiu uma igreja.
Vi Tomé numa outra cidade, à beira do mar e notei que
tencionava deixar a Índia; creio que não era longe da região, onde
mais tarde pregou São Francisco Xavier. Apareceu-lhe, porém,
Jesus, que o mandou viajar para o interior da Índia. Tomé não
queria, por habitar ali um povo muito selvagem; então lhe apareceu
Jesus, pela segunda vez, dizendo-lhe que lhe estava fugindo
diante dos olhos, como Jonas; que fosse para lá, pois não o
abandonaria; grandes prodígios se fariam por suas mãos. No dia
do juízo Tomé havia de estar a seu lado, como testemunha de
quanto Ele fizera pelos homens.
Vi São Tomé, caminhando com muito povo, curando enfermos, expulsando demônios e batizando numa fonte. Veio vê-Io também um
homem muito distinto, douto e piedoso, que sempre estava
estudando nos livros e se tornou zeloso discípulo do Apóstolo.
Esse homem tinha uma sobrinha, casada com um parente do rei. Era
extremamente bela e riquíssima. Tendo ouvido falar dos milagres
de Tomé, sentia grande desejo de ouvir-lhe a doutrina. Passando
através do povo, até chegar junto dele, prostrou-se-Ihe aos pés
e pediu-lhe que lhe ensinasse. Tomé ensinou-lhe e abençoou-a; a
moça ficou muito comovida, chorava, rezava e jejuava dia e noite.
O marido, que a amava muito, tornou-se muito triste e procurava
distraí-Ia. Ela, porém, lhe pediu que a deixasse ainda algum tempo
recolhida. Ia diariamente à doutrina de Tomé e tornou-se zelosa
cristã. O marido, zangado, apresentou-se em vestes de luto ao rei,
acusando Tomé. Tendo levado o Apóstolo amarrado ao rei, este o
mandou açoitar e encarcerar. Foi o primeiro martírio de São Tomé,
em todas as suas viagens; ele, porém, louvava a Deus.
A mulher convertida cortou o cabelo, chorava e rezava, deu tudo
aos pobres e não usava mais enfeites. De noite, na ausência do
marido, subornava os guardas e ia com outros ao cárcere, para
ouvir a doutrina de Tomé. Levava consigo a ama de leite e pediram
o batismo. Tomé mandou preparar tudo em casa para o batismo, e
saindo do cárcere, foi à casa das recém-convertidas e batizou-as,
com muitos outros. Os guardas dormiam, por efeito da Providência
Divina e Tomé voltou ao cárcere.
Como, porém, até da família real alguns mudassem de vida e
seguissem a doutrina do Apóstolo, mandou o rei trazê-Io à sua
presença e como Tomé lhe explicasse a doutrina, sem que o rei
quisesse crer, propôs-lhe o Apóstolo pedir a Deus um sinal de que
ele dizia a verdade. Então mandou o rei colocar-lhe em frente
lanças em brasas e Tomé andou sobre as mesmas sem se queimar; no
lugar onde foram colocadas, nasceu uma fonte. Tomé narrou também
ao rei o que anunciava em toda a parte; que tinha visto, durante
três anos, os milagres feitos por Jesus e contudo tinha duvidado
muitas vezes; que agora cria e era obrigado a propagar a verdade
entre os infiéis. Acusava-se sempre de seu pecado. O rei mandou
ainda aquecer uma sala de banho, para o fechar lá dentro e fazê-Io
morrer pelo vapor quente; mas era impossível aquecê-Ia e havia
dentro só ar. Depois quis forçá-Io a sacrificar aos ídolos e Tomé
disse: "Se Jesus não quebrar os teus ídolos, então sacrificarei."
Então prepararam uma grande festa e dirigiram-se com pompa ao
templo. O ídolo, colocado num carro, era todo de ouro. Mas, à
oração de Tomé, caiu como fogo do céu, fundiu o ídolo e muitos
outros ídolos caíram. Levantou-se um grande tumulto entre o povo
e os sacerdotes dos ídolos e Tomé foi novamente lançado no
cárcere.
Deste cárcere foi libertado como Pedro, dirigindo-se a uma ilha,
onde ficou longo tempo. Deixou catequistas nesse país e partiu
para o Japão, onde se demorou meio ano. Depois que voltou,
converteram-se ainda muitas pessoas da família real. Os
sacerdotes idólatras guardavam-lhe veemente ódio. Um deles tinha
um filho enfermo e pediu a Tomé que o curasse; depois, porém,
estrangulou o filho, acusando Tomé do assassínio. Este,
entretanto, mandou trazer o cadáver e ordenou-lhe, em nome de
Jesus, que dissesse quem o matara. O cadáver levantou-se e disse:
"Foi meu pai." Em conseqüência deste milagre se converteram ainda
muitos.
Vi que Tomé costumava rezar fora da cidade, à grande distância
do mar, ajoelhado sobre uma pedra, a qual conservava as impressões
dos joelhos. Um dia predisse que, se o mar, que estava muito
distante, chegasse até aquela pedra, viria um homem de uma terra
longínqua, para pregar a doutrina de Jesus. Então eu não podia
imaginar como o mar pudesse chegar até ali. Mas nesse lugar foi
erigida uma cruz de pedras por Francisco Xavier, quando
desembarcou.
Vi S. Tomé, de joelhos sobre essa pedra, rezando em êxtase;
aproximaram-se traiçoeiramente sacerdotes idólatras, que o
atravessaram com uma lança. O corpo do Apóstolo foi transportado
para Odessa, onde ainda tenho visto celebrarem-lhe a festa. No
lugar em que morreu, ficoulhe, porém, uma costela e a lança que
o transpassou. Ao lado da pedra havia uma oliveira, que foi
salpicada com o sangue de Tomé e que exsudava óleo todos os anos,
no dia do martírio do Santo e quando isso não acontecia, esperavam
os habitantes da região um ano mau. Vi que os idólatras em vão
tentavam desarraigar esse arbusto, que sempre de novo crescia;
vi também ali uma Igreja e quando, na festa do Apóstolo, se rezava
a Missa, o arbusto exsudava ainda óleo. A cidade tem o nome de
Meliapur; agora a situação não é favorável, mas a fé cristã há
de firmar-se ali de novo.
Foi-me dito que Tomé chegou à idade de noventa e três anos. Estava
queimado pelo sol e muito magro; tinha o cabelo ruivo. Ao morrer,
apareceu-lhe o Senhor, dizendo-lhe que ia sentar-se-Ihe ao lado,
no dia do juízo.
Se não me engano, na ordem de suas freqüentes viagens, depois da
divisão dos Apóstolos, foi primeiro ao Egito, depois à Arábia e,
chegando ao deserto, mandou um discípulo ao Apóstolo Tadeu, para
que visitasse o rei Abgar. Depois batizou os reis Magos e
percorreu a Báctria, a China, o Tibet, e ao norte, o território
russo, voltando dali a Éfeso, para assistir à morte de Maria; da
Palestina partiu para a Itália, atravessando depois uma parte da
Alemanha, Suíça e França, embarcou para a África e passando pela
terra de Judit, pela Abissínia e Etiópia, foi à Socotora; dali
foi à Índia e Meliapur, de onde, libertado do cárcere pelo Anjo,
se dirigiu, por uma parte da China, ao extremo norte, que agora
pertence à Rússia. Dali veio à ilha ao norte do Japão.”
9. Trabalhos apostólicos de S. Bartolomeu na Ásia e
especialmente na Abissínia, (África)
O Santo Apóstolo Bartolomeu pregou primeiro na longínqua
Índia, onde deixou muitos discípulos e convertidos. Dali partiu
para o Japão e voltando, seguiu através da Arábia e do Mar
Vermelho, para a Abissínia.
Ali converteu o rei Polímio e ressuscitou um morto.
Na capital desse país muitos enfermos tinham sido curados por
um ídolo; mas desde que Bartolomeu chegara, emudecera o ídolo.
Havia na mesma cidade uma casa, em que habitavam muitas mulheres
possessas do demônio. Bartolomeu curou-as todas, ensinou e
batizou-as, depois de terem publicamente renunciado a idolatria.
"O Apóstolo conversava muitas vezes com o rei Polímio, que
lhe fazia perguntas muito profundas e o deixava freqüentemente,
para consultar grandes rolos escritos. O Apóstolo tinha consigo
um rolo escrito, o Evangelho de S. Mateus e dele lia as respostas.
Disse-lhe também que o ídolo fazia os homens adoecerem e depois
os curava, para os confir mar na idolatria. Mas agora o demônio
fora amarrado pelo nome de Jesus e não podia mais agir por meio
do ídolo. Prová-Io-ia, se o rei deixasse consagrar o templo ao
verdadeiro Deus e recebesse o batismo, com todo o povo. O rei
convocoU todo o povo ao templo e quando os sacerdotes pagãos
quiseram sacrificar, gritou-Ihes o demônio do ídolo que não o
fizessem, porque estava amarrado pelo Filho de Deus.
Bartolomeu ordenou-lhe que manifestasse todas as falsas curas que
fizera e o demônio confessou tudo pelo ídolo. Depois pregou
Bartolomeu diante do templo e mandou a Satanás que se mostrasse
na sua verdadei ra forma, para que o povo visse qual deus tinha
adorado. Então este apareceu como horrendo monstro preto,
desaparecendo diante deles na terra. O rei mandou destruir todos
os ídolos. Bartolomeu, porém, consa grou o templo para servir de
Igreja e batizou o rei e a família e pouco a pouco todo o exército.
Ensinava, curava os enfermos e era benquisto por todo o povo.
Depois recebeu Bartolomeu do céu a ordem de ir visitar a SS.
Virgem.
No entanto dirigiram-se os sacerdotes idólatras a Astíages, irmão
de Polímio, acusando Bartolomeu de feiticeiro. Quando este,
pois, voltou da reunião dos Apóstolos àquela terra, não chegou
até lá, mas foi preso por emissários de Astíages e levado à
presença deste, que lhe disse:
"Seduziste meu irmão a adorar o teu Deus; eu te ensinarei agora
a sacri ficar ao meu." Bartolomeu replicou: "Deus, que me deu o
poder de mos trar a teu irmão, Satanás e expulsá-Io diante dele
para o Inferno, há de dar-me também a força de esmagar os teus
ídolos e de forçar-te a aceitar a fé." Logo depois veio um
mensageiro, anunciando que o ídolo do rei caíra despedaçado.
Então rasgou o rei a roupa com raiva e mandou açoitar Bartolomeu,
que foi amarrado a uma árvore e esfolado vivo, mas neste martírio
não deixou de pregar em alta voz, até que lhe atravessaram o
pescoço com uma espada. Esfolaram-no, começando pelos pés e
entregaram-lhe a pele nas mãos. Depois da morte lançaram o santo
cor po às feras, mas alguns convertidos pobres tiraram-no de
noite. Vi que Polímio o buscou, com muito povo e sepultou.
Construíram-lhe uma capela sobre o sepulcro. O rei pagão, porém,
e os sacerdotes idólatras que tinham acusado Bartolomeu,
endoideceram, após treze dias e fugi ram para o sepulcro do
Apóstolo, pedindo socorro em alta voz; o rei converteu-se; os
sacerdotes, porém, morreram de uma morte horrível.”
10. Os santos Apóstolos Simão e Judas Tadeu na Pérsia
Os dois irmãos Simão e Tadeu, depois da separação dos
Apóstolos, viajaram algum tempo juntos; depois se dirigiu Simão
ao Mar Negro e à Scítia; Tadeu, porém, ao Oriente, onde
provavelmente se encontrou com S. Tomé, ficando com este. Depois
foi incumbido por Tomé de levar uma carta ao rei Abgar.
Quando Tadeu chegou ao palácio do rei, este viu ao lado do Apóstolo a figura resplandecente de Jesus, diante da qual se inclinou
profundamente. O Apóstolo curou o rei da lepra, pela imposição
das mãos.
Tendo curado em Edessa muitos enfermos e convertido muitos
infiéis, percorreu, com o companheiro Silas, os países que Jesus
já visitara e veio pela Arábia até o Egito. Nessa viagem conseguiu
batizar muita gente; povoações inteiras aceitaram a fé cristã.
Simão dirigiu-se, depois da morte de Maria, ao país dos Persas.
Tinha por companheiros o discípulo Abdias e alguns outros.
Guiados pela Providência Divina, os dois irmãos encontraram-se
novamente num acampamento militar e chegaram depois a uma grande
cidade (Babilônia).
"Ali foram bem sucedidos; vi acontecerem muitas coisas, das
quais não me lembro mais. Somente me recordo de que, numa
assembléia, em presença do rei, sacerdotes pagãos se levantaram
contra os Apóstolos; alguns tinham em ambas as mãos feixes de
cobras, do comprimento de um braço, outros tinham em cada mão duas
ou três. Essas cobras eram mais redondas e mais delgadas do que
enguias; tinham cabeças redon das e pequenas, com a boca sempre
aberta, vibrando as línguas como flechas. Os sacerdotes idólatras
soltaram as víboras contra os Apóstolos; mas vi-as lançarem-se,
voando como setas, contra aqueles que as trouxeram,
enrolando-se-Ihes e mordendo-os, de modo que fugiram, com gritos
estridentes, até que os Apóstolos ordenaram às víboras que os
deixassem. Vi que muitos habitantes da cidade e o próprio rei se
tornaram cristãos.
Partiram depois para outra cidade, onde moravam em casa de um
homem que era cristão. Amotinou-se o povo da cidade, e vi que os
dois Apóstolos foram levados, junto com o cristão que os
hospedava, a um templo, no qual havia ídolos de ouro e prata,
colocados sobre carros. Estava reunida, dentro e fora do templo,
uma imensa multidão de povo. Lembro-me que os ídolos se quebraram
e várias partes do templo desabaram e que os dois Apóstolos foram
arrastados no aperto da multidão, sem se defenderem e foram
mortos, com toda a espécie de armas, pelos sacerdotes e o povo.
Vi que a um deles, creio que a Tadeu, foi fendida a cabeça, cortada
pelo meio do rosto, com o machado que o povo trazia à cintura.
Vi sobre eles celestes aparições.”
Os corpos dos dois santos Apóstolos jazem na catedral de São Pedro em Roma.
11. Trabalhos apostólicos e tribulações dos santos Apóstolos
Felipe, na Frigia e Mateus, na Etiópia.
Sobre os trabalhos do santo Apóstolo Filipe, relata Catharina
Emmerich apenas o seguinte:
"Depois de Pentecostes, foram Felipe e Bartolomeu a Gessur, nas
fronteiras da Síria. Felipe curou logo uma mulher da cidade; era
muito benquisto pelo povo, mais tarde, porém, foi perseguido.”
A história eclesiástica conta que Felipe chegou também à Frigia,
convertendo numerosos pagãos à fé cristã. Em Hierápoli, cidade
desta província, foi arrastado pelos pagãos perante um ídolo do
deus Marte, para lhe sacrificar. Dizem que saiu por debaixo do
altar uma cobra enorme, que matou dois tribunos e o filho de um
sacerdote idólatra. O santo Apóstolo ressuscitou todos os três,
mas foi açoitado e crucificado. Quiseram tirá-Io da cruz ainda
vivo, mas pediu que o deixassem morrer na cruz, como o divino
Mestre e Senhor. Foi atendido este pedido, pois o apedrejaram
pendendo da cruz. O martírio deste Apóstolo teve lugar no ano 81.
Do santo Apóstolo Mateus conta a piedosa Catharina Emmerich que
estava preso numa cidade da Etiópia e que S. André o curou do
veneno que os pagãos lhe tinham derramado nos olhos.
Segundo a tradição, S. Mateus pregou durante 23 anos na Etiópia,
convertendo grande multidão de povo à fé cristã, entre outros
também o rei Egipo e toda a família. A filha do rei, Efigênia,
fez o voto de guardar a virgindade e neste propósito foi
confirmada pelo santo Apóstolo. Sabendo disto o tio, que depois
da morte do pai usurpara o trono e queria desposá-Ia, mandou matar
o santo Apóstolo. São Mateus foi atravessado por uma lança, no
altar, durante a celebração do Santo Sacrifício.
12. Os santos Evangelistas Marcos, em Roma e no Egito e Lucas,
na Grécia
São Marcos veio a Roma, com o príncipe dos Apóstolos, S. Pedro.
No seu Evangelho escreveu o que lhe ditou S. Pedro.
Quando irrompeu em Roma uma epidemia de peste, erigiu-se, por
ordem de Marcos, uma Via Sacra. Cristãos e pagãos que rezavam,
percorrendo esta Via Sacra, ficavam livres ou curados da peste.
Muitos pagãos, vendo esse milagre, se converteram.
De Roma se dirigiu São Marcos para o Egito, para pregar ali o
Evangelho.
"Vi-o primeiro em Alexandria; não foi com muito gosto que partiu
para lá. Na viagem cortou tão desastrosamente o dedo da mão
direita, que o teria perdido, se não fosse curado por uma aparição
celeste, com a qual muito se assustou, como S. Paulo. Em volta
do dedo lhe ficou toda a vida uma marca vermelha.
Ao entrar em Alexandria, rasgou-se-Ihe a sandália e deu-a a um
sapateiro, de nome Aniano, para a remendar. Este se feriu na mão,
durante o trabalho; Marcos, porém, curou-a com um ungüento
preparado de pó e saliva. Vendo-o, converteu-se Aniano e Marcos
foi morar-lhe em casa. Aniano possuía uma casa vasta, muitos
escravos, mulher e dez filhos. Numa sala, pertencente à casa
entregue a Marcos, se celebravam as primeiras reuniões dos
convertidos. Os Apóstolos não celebravam o santo Sacrifício numa
nova comunidade, antes desta ter sido bem instruída e confirmada.
Seguiamjá um rito certo na distribuição da sagrada Comunhão,
durante o Santo Sacrifício.
Três dos dez filhos de Aniano tomaram-se mais tarde sacerdotes.
O pai foi sucessor de S. Marcos.
O Apóstolo esteve também em Heliópoli. Havia ali um oratório,
instituído quando morava ali a sagrada Família; desse oratório
foi construída uma igreja e ao lado, mais tarde um pequeno
convento. Os que Marcos ali batizou, eram na maior parte judeus.
São Marcos foi preso e lançado num cárcere em Alexandria e morreu
estrangulado com uma corda. Quando estava no cárcere, vi Jesus
aparecer-lhe, tendo na mão uma patena e dando-lhe um pequeno pão
redondo. Vi também que o corpo do mártir foi levado mais tarde
para Veneza.”
Como nos conta a piedosa Emmerich, esteve S. Lucas primeiro com
São João, em Éfeso, depois com Santo André. Na terra pátria travou
conhecimento com Paulo, a quem depois acompanhou nas viagens.
"Escreveu o Evangelho, a conselho de Paulo e porque circulavam
livros apócrifos da vida do Senhor. Escreveu-o 25 anos depois da
Ascensão de Jesus, redigindo-o na maior parte com as informações
de testemunhas oculares, que procurava por toda a parte. Já no
tempo da ressurreição de Lázaro o vi visitar os I,ugares onde O
Senhor operava milagres e informar-se de tudo. Tinha também
amizade com Barsabas. Foi-me também revelado que Marcos escreveu
o Evangelho só com informações de testemunhas oculares e que
nenhum dos Evangelistas conhecia nem aproveitou na sua obra a dos
outros. Também me foi dito que teriam inspirado menos fé se
tivessem escrito tudo e que não escreveram os milagres, muitas
vezes repetidos, por motivo da extensão do livro.
Vi que Lucas pintou vários retratos da Santíssima Virgem, alguns
de modo milagroso. O busto de Maria, que não conseguia acabar,
encon trou terminado, ao voltar a si de um êxtase, em que caíra
durante a oração. Esse retrato é ainda conservado em Roma, na
Basílica de Santa Maria Maior, por cima de um altar, na capela
do Presépio, à direita do altar-mor. Não é, porém, o original,
mas apenas uma cópia. O original foi antigamente encerrado num
muro junto com muitas outras coisas sagradas, por ocasião de uma
perseguição; nesse muro, que foi convertido em um pilar, há também
relíquias de santos e documentos de muita antiguidade. A Igreja
tem seis pilares; é o do meio, à direita, de modo que o sacerdote,
dizendo a Missa no altar da imagem de Maria, ao dizer: Dominus
vobiscum, indica com a mão direita esse pilar.
Lucas pintou também o retrato inteiro de Maria, vestida de noiva;
mas não sei onde se acha agora esse quadro. Outro, em vestes de
luto, corpo inteiro, creio tê-Io visto numa Igreja, onde se guarda
o anel nupciaI de Maria. (Peruzia, na Itália)
Lucas pintou também Maria, como indo ao descendimento de Cristo
da cruz; deu-se isto de um modo milagroso: Depois que todos os
Apóstolos e discípulos tinham fugido, vi Maria, ao crepúsculo a
caminho do Calvário, creio que acompanhada de Maria, filha de
Cléofas e Salomé. Vi que Lucas estava ao lado do caminho e comovido
diante daquela inconsolável dor, estendeu-lhe um lenço, com o
desejo de que nele lhe ficasse impressa a imagem. Achou realmente
o retrato no lenço, como uma sombra a passar e conforme essa
imagem, pintou o quadro, contendo duas figuras: ele, com o lenço
e Maria, passando-lhe em frente. Não sei se Lucas estendeu o lenço
só com o desejo de receber o retrato ou seguindo o costume de
estender um lenço aos tristes ou porque dese jasse praticar para
com Maria o ato de caridade que Verônica fizera para com Jesus.
Creio ter visto esse quadro de S. Lucas guardado por um povo
estranho, que vive entre a Síria e a Armênia. Não são verdadeiros
cristãos, crêem em João Batista, têm um batismo de penitência,
que recebem todas as vezes que se querem purificar dos pecados.
Lucas pregava o Evangelho nessa região, operando muitos milagres
por meio desse quadro. Perseguiram-no e faltou pouco para o
lapidarem; o quadro, porém, ficou lá. Lucas levou consigo doze
homens desse povo, os quais tinha convertido. Aquela tribo morava
numa montanha, cerca de doze horas de caminho a leste do Líbano.
No tempo de S. Lucas contava apenas algumas centenas de almas.
A Igreja local era como uma gruta na montanha; para entrar nela,
era preciso descer; olhando para cima, viam-se cúpulas, nas quais
havia janelas, como se vêem nas abóbadas das nossas Igrejas.
Tenho visto esse quadro de S. Lucas naquela região, em tempos mais
recentes; não sei se foi em nosso tempo, mas é possível; pois no
tempo de S. Lucas tudo era muito simples. Mas agora a Igreja
parecia maior; o povo parecia ter também muitas cerimônias
diferentes; o sacerdote estava sentado diante do altar, debaixo
de um arco, o quadro pendurado no alto da abóbada e diante dele
ardiam muitas lâmpadas; já estava enegrecido e indistinto.
Recebem muitas graças por meio do quadro e veneram-no, porque têm
visto milagres feitos por ele.
Lucas foi supliciado como bispo, em Tebas, se não me engano. Vi-
o amarrado com uma corda a uma árvore e morrer a golpes de dardos.
Um desses lhe transpassou o peito e o corpo caiu-lhe para a frente;
então o amarraram de novo, lançando-lhe depois mais dardos. De
noite foi sepultado secretamente.
O remédio, de que S. Lucas se serviu, no seu tempo de médico, era
resedá, misturado com óleo de palma benta. Ungia com esta mistura
a testa e os lábios em forma de cruz; usava também, às vezes,
resedá seco, com infusão de água.
13. S. Barnabé, S. Timóteo e S. Saturnino
Como já mencionamos, foi Barnabé enviado pela Igreja de Jerusalém
a Antioquia, onde, junto com S. Paulo, pregou durante um ano o
santo Evangelho, com grande êxito, até que o Espírito Santo deu,
pela boca dos profetas dessa Igreja, a ordem: "Separai-me Paulo
e Bamabé para a obra, para a qual os destinei." Depois de terem
recebido a consagração episcopal, S. Bamabé acompanhou S. Paulo
por algum tempo. Tendo-se separado dele, fez ainda algumas
viagens apostólicas. Diz a tradição que chegou até Milão, sendo
o primeiro que nessa cidade anunciou a fé cristã. Foi lapidado
pelos judeus, na ilha de Chipre, sua terra natal, sendo-lhe o
corpo lançado numa fogueira, que, porém, não o queimou; os
discípulos sepultaram-no. Quando o acharam, no tempo do imperador
Zeno, encontraram-lhe sob o peito uma parte do Evangelho de S.
Mateus. Barnabé também escreveu alguma coisa.
Timóteo, discípulo de S. Paulo, estava preso na ilha de Quios,
ao mesmo tempo que S. João se achava no cativeiro, na ilha de
Patmos.
"Vi-o: era um homem alto, com cabelo e barba preta, magro e pálido.
Nas viagens vestia um manto cinzento, preso ao meio do corpo pela
cinta; como bispo, usava um longo manto, de cor parda-escura,
bordado grosseiramente de grandes florões de ouro, com fio grosso
como barbante, mas produzindo belo efeito; revestia-se também de
uma estola no peito, uma cinta, sobre a cabeça uma mitra baixa.
Todos o amavam; tinha em Quios uma comunidade de convertidos; até
os soldados da guarda aderiram à fé.
Havia ali uma mulher cristã rica, que caíra numa vida pecaminosa.
Um dia, quando Timóteo estava para dizer a santa Missa numa
capelinha e já se achava diante do altar, viu em espírito aquela
infeliz, que se aproximava da Igreja. Então lhe foi ao encontro
na porta, repreendeu-a pela vida pecaminosa e excomungou-a. Em
conseqüência disso se levantou uma perseguição contra Timóteo,
que foi desterrado para a Armênia, mas posto em liberdade antes
de S. João voltar de Patmos. Paulo mandou-o, como bispo, a Éfeso,
onde foi assassinado pelos pagãos, por ocasião de uma festa, em
que percorriam a cidade com máscaras, carregando ídolos em
triunfo. S. Timóteo tinha pregado veementemente contra esses
costumes pagãos.”
Saturnino, que era como André um dos primeiros que seguiram a
Jesus, depois do Batismo, pregou em Tarso, depois da morte de
Jesus. Ali teria sido morto a pancadas e pedradas, mas um vento
forte lançou tanta poeira e areia nos olhos dos perseguidores,
que pôde fugir. Esteve também em Roma, com S. Pedro e foi enviado
por esse à Gália. Esteve em Arelat, Nimes e muitos outros lugares
desse país. Em Toulouse ficou mais tempo, convertendo muita
gente, entre outros também uma mulher, que curara da lepra. Ali
também morreu mártir. Num monte, em cujo cume havia um templo
pagão, Saturnino foi amarrado a um touro. Aguilhoando o touro,
fizeram-no correr na ladeira íngreme para baixo; o touro,
enraivecido, caiu e pisando, esmagou a cabeça do Santo.
Celebra-se-Ihe a festa a 29 de Novembro.
14. S. Lázaro, Marta e Madalena no sul da França
Três ou quatro anos depois da morte de Jesus os judeus prenderam
Lázaro, Marta e Madalena e abandonaram-nos numa pequena embarcação, que já fazia água e sem remos nem velas, no alto mar; puseram
na mesma barca o discípulo Maximino, um cego de nascença curado
por Jesus, de nome Cheliônio e duas meninas. Com o auxílio de Deus
escaparam da morte; pois a barquinha foi impelida sobre o mar com
velocidade sobrenatural e aportou à costa meridional da França,
perto da cidade que hoje se chama Marselha. Quando chegaram a esta
cidade, estava o povo justamente a celebrar uma festa idólatra.
"Os sete estrangeiros - conta Catharina Emmerich - sentaram-se
sob as arcadas de uma praça pública, diante de um templo. Ficaram
assim sentados por muito tempo; tendo-se reconfortado um pouco,
com alimento tirado de pequenas vasilhas que trouxeram consigo.
Começou Marta a falar ao povo, que se lhe juntava em roda e
disse-Ihes como tinham chegado ali. Falou também de Jesus em tom
muito vivo e comovido. Mais tarde vi que alguns Ihes jogavam
pedras, para os afastar dali; mas as pedras não os feriam e eles
ficaram tranqüilamente sentados, até a manhã seguinte. No entanto
começaram os outros também a falar e já Ihes aderiam várias
pessoas. Na manhã seguinte vieram uns homens de uma casa grande,
que eu tomei pela câmara municipal; interrogaram-nos acerca de
muitas coisas. Ainda ficaram um dia inteiro sob a arcada, falando com os transeuntes, que se Ihes juntavam em roda. Ao terceiro
dia foram todos conduzidos àquela casa e apresentados ao prefeito
da cidade e depois separados. Os homens ficaram com o prefeito,
na câmara; as mulheres foram conduzidas a outra casa da cidade;
tratavam-nos bem e davam-Ihes de comer. Vi que ensinavam em
qualquer parte que chegavam e que o prefeito mandou proclamar por
toda a cidade que ninguém fizesse mal a essa gente. Dentro em pouco
muitos pediram o santo batismo; Lázaro batizava numa grande pia
que havia na praça pública, diante do templo, o qual em pouco tempo
estava quase abandonado. Creio que o prefeito da cidade também
se deixou batizar. Vi também que não ficaram muito tempo juntos;
Lázaro, como bispo, continuou a pregar a doutrina.”
Marta, com as duas meninas, suas criadas, dirigiu-se a uma região
deserta, montanhosa, perto da cidade moderna de Aix, onde
habitavam algumas escravas pagãs, que se converteram e onde
construíram mais tarde um convento e uma Igreja.
Havia, porém, no rio daquela região um monstro, que dava grandes
prejuízos. Marta encontrou-o à ribeira, devorando justamente um
homem. Ela venceu o monstro, lançando-lhe o cinto em roda do
pescoço, em nome de Jesus e estrangulou-o e o povo, acorrendo,
acabou de matá-Io.
"Marta pregava o Evangelho muitas vezes diante de grande multidão de povo, na campina e à margem do rio. Costumava para isso
construir um púlpito de pedras, com auxílio das companheiras;
colocavam as pedras em forma de escada; por dentro era como uma
abóbada. Em cima colocavam uma pedra larga, sobre a qual ela
pregava. Ela sabia fazer essa construção melhor do que um
pedreiro, pois era muito ativa e empreendedora.
Uma vez estava ensinando sobre o tal montão de pedras, à margem
do rio, quando um jovem tentou atravessar o rio a nado, para a
ouvir; a corrente, porém, levou-o e ele morreu afogado.
Injuriaram-na por isso os habitantes da região, acusando-a também
de ter convertido aquelas escravas. Tendo o pai do rapaz afogado
encontrado o cadáver do filho, trouxe-o na presença de muito povo
e, colocandoo aos pés de Marta, disse que creria no seu Deus, se
ela desse novamente vida ao filho. Vi que Marta ordenou ao
cadáver, em nome de Jesus, que voltasse à vida e que se levantou
vivo. O ressuscitado, o pai e muito povo tornaram-se cristãos.
Outros, porém, perseguiram Marta como feiticeira. Um dos
companheiros, que com ela viera da Palestina, vinha visitá-Ia e
dava a ela a sagrada Comunhão. Marta trabalhava e ensinava,
convertendo muitos.”
Quando Madalena se separou de Marta, retirou-se sozinha para uma
região deserta, bem longínqua, onde vivia numa gruta. Maximino
ia às vezes lá, encontrando-a em meio caminho, para dar-lhe a
sagrada Comunhão. Morreu pouco antes de Marta e foi também
sepultada no convento de Santa Marta. Sobre a gruta construiu
Maximino uma Igreja.
16
Glorificação de Jesus pelos Santos
1. O santo Papa Clemente. Morto em 101 D.C.
2. Santo Inácio de Antioquia. 107 D.C.
3. S. Dionísio Areopagita
4.
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9.
Santa
Santa
Santa
Santa
Santa
Santa
Inês. (21 de Janeiro)
Ágata. (5 de Fevereiro)
Dorotéa (6 de Fevereiro)
Apolônia (9 de Fevereiro)
Cecília (22 de Novembro)
Catarina de Alexandria. (25 de Novembro)
Glorificação de Jesus pelos Santos
Em honra de Nosso Salvador crucificado seguem aqui algumas
informações da piedosa Serva de Deus, sobre alguns discípulos dos
Apóstolos e algumas Virgens mártires da primeira era cristã, que
por amor ao esposo celestial sacrificaram alegremente os bens da
vida. Segundo o dito afamado de Tertuliano: "O sangue dos mártires
é a semente de que brotam novos cristãos", colaboraram os mártires
de modo especial na propaganda do reino de Cristo. Por isso
podemos considerar os santos cuja vida e martírio contamos nas
páginas seguintes, como cooperadores na instituição da santa
Igreja e que seguirão logo após os Apóstolos, no séquito triunfal
do divino Portador da cruz. O leitor poderá reconhecer, ao mesmo
tempo, que as visões da religiosa privilegiada de Dülmen
confirmam a maior parte das legendas desses santos.
1. O santo Papa Clemente. Morto em 101 D.C..
É altamente como vente o que a piedosa freira conta do santo Papa
Clemente, cuja festa a Igreja celebra a 23 de Novembro.
"Não vi São Clemente junto com São Paulo, mas sim freqüentemente
c6m Barnabé, também com Timóteo, Lucas e Pedro. Era romano; os
avós, porém, eram judeus, oriundos da região fronteira do Egito.
Era casado, mas recebeu uma iluminação do céu para viver em
continência; a mulher que, se bem me lembro, morreu também mártir,
consentiu em fazer o mesmo. Foi o terceiro Papa, depois de Pedro.
Vi São Clemente como Papa, pouco antes da perseguição. Estava
indizivelmente magro e pálido; tinha quase um aspecto tão
lastimoso como Nosso Senhor na cruz: as faces abatidas, a boca
contraída pela tristeza por causa da cegueira e falsidade do
mundo. Vi-o ensinar numa sala, sentado numa cadeira. Os ouvintes
estavam muito diferentemente dispostos: alguns tristes e
comovidos, outros apenas se fingiam tristes, escondiam a alegria
de saber dos sofrimentos iminentes do Pontífice; outros ainda
vacilavam nos sentimentos. Vi então entrar soldados romanos,
prendendo São Clemente. Arrastando-o para fora, puseram-no num
carro. Na parte posterior desse carro havia um assento coberto,
onde se sentava Clemente; na parte anterior havia mais lugares,
mas sem coberta. Seis soldados seguiram no carro com ele; outros
acompanhavam o carro, dos dois lados. Os cavalos eram menores que
os de hoje e estavam também atrelados de modo diverso; não havia
tantas correias. Vi o santo viajando no carro dia e noite. Estava
muito paciente e triste. Quando chegaram ao mar, foi embarcado
no navio e o carro voltou.
Depois tive uma visão do país para onde foi levado. Era uma região
pobre, deserta e estéril, onde havia muitas minas profundas. Tudo
era de um aspecto triste e sinistro. Clemente foi conduzido a uma
casa, com duas salas, das quais uma se encostava no centro da
outra; cada ala era cercada de arcadas; por uma dessas entrou
Clemente e foi conduzido à parte da casa onde moravam os
diretores; depois foi levado à outra, onde se achavam os presos.
Vi São Clemente num deserto, pedindo água em oração. Então veio
um raio de luz do céu, que se estendeu como um porta-voz e deste
raio saiu um cordeirinho que, com um dos pés, entregou uma vara
afiada embaixo como uma flecha. Na terra, embaixo, estava deitado
outro cordeiro. Clemente tomou a vara e fincou-a na terra e
imediatamente brotou água do orifício. Os dois cordeiros
desapareceram no mesmo instante. Clemente tinha rezado ao
Santíssimo Sacramento do Altar. Todos quantos bebiam dessa água,
sentiam vivo desejo do Santíssimo Sacramento. Clemente converteu
e batizou muitos.
Vi que foi lançado numa fossa cheia de víboras, perto do mar;
depois fizeram enchê-Ia de água. Mas Clemente saiu por meio de
uma escada. Vi que o levaram ao mar alto, num barco e com uma âncora
presa ao pescoço e o lançaram ao mar. No lugar onde o corpo tocou
no fundo, formou-se na rocha um sepulcro que, ao reflexo do mar,
se tomava visível. Os cristãos formaram do rochedo uma capela em
redor do sepulcro, a qual muitas vezes ficava coberta pelo mar.”
2. Santo Inácio de Antioquia. 107 D.C.
De Santo Inácio, bispo de Antioquia, conta-nos Anna Catharina
Emmerich, o seguinte:
"Vi Jesus, com os discípulos, diante de uma casa de uma pequena
cidade, mandando um dos discípulos à casa em frente, para chamar
uma mulher com o filhinho, a qual, vindo, lhe trouxe o filho, que
podia ter três ou quatro anos. Tendo o menino chegado diante do
Senhor, fechou-se o círculo dos Apóstolos, que se abrira para
deixar o menino entrar. Jesus falou a respeito deste, impôs-lhe
as mãos, abençoou-o e apertou-o ao coração. Depois o reconduziram
à mãe, que se tinha retirado. Esse menino não era outro senão o
futuro Santo Inácio.
Era um menino muito bom e ficou inteiramente mudado pela bênção
de Jesus. Vi-o freqüentemente no lugar onde Jesus o abençoara e
beijando o chão, dizia: "Aqui estava o varão santo." Vi-o,
brincando com outros meninos, escolher apóstolos e discípulos e
passear com eles, ensinando-Ihes à moda infantil, imitando assim
em tudo o Senhor. Vi-o também reunir os outros meninos no lugar
da bênção, contando-Ihes o que lhe acontecera e mandando que
beijassem também o chão. Os pais viviam ainda, vi-os muito
comovidos pelos modos do menino; converteram-se depois e
tornaram-se cristãos.
Mais tarde, já moço, juntou-se aos discípulos do Senhor,
particularmente a João, a quem era afeiçoado e que o ordenou
sacerdote. Quando João esteve pela primeira vez no exílio,
acompanhou-o lnácio, que não o quis abandonar.
Morto Evódio, que era sucessor de Pedro em Antioquia, foi
lnácio sagrado bispo dessa cidade, creio que por João ou por
Pedro. Vi passar pela cidade um Imperador, a quem Inácio foi
apresentado. O Imperador perguntou-lhe se era ele que, como um
mau espírito, causava tantas discórdias. Inácio respondeu,
perguntando-lhe como podia chamar de mau espírito ao portador de
Deus, que trazia Jesus no coração? O Imperador perguntou-lhe
então se sabia quem ele era e o santo replicou: que era o primeiro
enviado hoje pelo demônio. O Imperador condenou-o então à morte
em Roma e Inácio agradeceu-lhe alegremente. Vi o preso conduzido
a uma outra cidade, onde embarcou. Acompanhavam-no sol dados, que
o tratavam muito mal. Depois o vi desembarcar novamente e por onde
passava lhe vinham ao encontro muitos bispos e cristãos, que o
saudavam e lhe pediam a bênção. Em Smirna morava em casa do
bispo Policarpo, que dantes tinha sido seu condiscípulo; estavam
todos reu nidos com alegria e Inácio exortava e consolava a todos.
Escreveu também cartas ali. Ouvi que disse e também escreveu que
rezassem por ele, para que as feras o mastigassem e os dentes das
mesmas fossem como mós de moinho, que o triturassem, para ficar
qual farinha de trigo, afim de se tornar um pão puro de Jesus
Cristo, para o sacrifício.
Também os cristãos de Roma lhe vieram ao encontro,
ajoelharam-se, chorando, diante dele e pediram-lhe a bênção.
Inácio repetiu que queria ser triturado para o sacrifício do
Senhor. A multidão dos cristãos formava como um cortejo triunfal.
Vi que foi logo conduzido ao lugar do suplício, onde rogou a Deus
que os leões o deixassem rezar ainda um pouco e depois o devorassem
inteiramente; apenas o coração e alguns ossos deixassem, para que
aumentassem ainda mais a glória de Cristo na terra. Por ocasião
desta súplica, me foi feita uma exortação, a respeito
da importância e do valor das relíquias. Como pedira, assim
sucedeu: os leões lançaram-se-Ihe com grande fúria; mataram-no
num instante, devorando-o rapidamente e lambendo-lhe o sangue;
em breve não restava mais que alguns ossos grandes e o coração.
Vi que os leões foram retirados da arena, os espectadores também
se retiraram; os cristãos, porém, correram ao lugar,
esforçando-se para obter algo das relíquias. Todos olhavam para
o coração, no qual se tinham formado as letras do nome de Jesus,
como tinha sido escrito no título da cruz, em cor azul, pela
dilatação de nervos e veias." A festa de Santo Inácio celebra-se
a 1º. de Fevereiro.
3. S. Dionísio Areopagita
Dionísio, apelidado o Areopagita, era filho de pais gentios, mas
estudava muito, recomendando-se a um Deus mais perfeito. Avisado
de noite por uma aparição, fugiu da casa paterna, atravessando
a Palestina, onde ouviu muitas coisas sobre Jesus e depois estudou
no Egito a astronomia. Ali, observando o eclipse do sol por
ocasião da mort~ de Jesus, disse: "Isso não é fenômeno natural;
ou está morrendo um Deus ou o mundo perece.”
"Por muito tempo não podia compreender a idéia de um Deus
crucificado. Depois da conversão, viajou muito tempo com Paulo
e esteve também com ele em Éfeso, para ver Maria. O Papa S.
Clemente enviou-o a Paris. Vi que consolava os companheiros no
cárcere e que Jesus lhe apareceu, dizendo-lhe: "Segue
magnanimamente o teu caminho do martírio, que te leva a mim; olha
que eu também percorro o meu caminho de dores em ti." Vi-lhe também
o martírio. Tomou a cabeça cortada, segurando-a com os braços
cruzados sobre o peito e andou em volta do monte. Todos os
carrascos fugiram; irradiava-se dele uma luz clara. Uma mulher
sepultou-o. Era muito idoso, tinha muitas visões celestes e também Paulo lhe contou o que tinha visto em êxtase. Escreveu muitos
e belos livros, dos quais ainda existe grande parte. O livro dos
Sacramentos não acabou de escrever; fê-Io outro, em seu lugar."
Em outra ocasião, conta Catharina Emmerich: "Vi o livro de
Dionísio com muitas letras de ouro, mas tão estragado e
maltratado, que me entristeceu na verdade." A sua festa é
celebrada a 9 de Outubro.
4. Santa Inês. (21 de Janeiro)
"Vi uma virgem jovem e graciosa, arrastada no meio de soldados.
Vestia uma longa veste de lã, de cor parda; um véu cobria-lhe a
cabeça, que o cabelo envolvia em tranças. Os soldados
arrastavam-na, segurando-a pelos lados do manto, de modo que a
veste ficava muito distendida. Seguia muito povo, entre o qual
também algumas mulheres. Levaram-na pela porta de um muro alto,
através de um pátio quadrado, a um quarto. Empurrando a virgem
para dentro, puxaram-na para todos os lados, arrancando-lhe o
manto e o véu. Com sua mansidão e inocência era como um cordeiro
nas mãos dos carrascos. Tomando o manto, abandonaramna. Inês
ficou em pé, num canto, no fundo do quarto, olhando para cima e
com as mãos postas, rezando tranqüilamente.
Entraram primeiro dois ou três jovens. Avançando furiosos para
ela, arrancaram-lhe o vestido do corpo. Nesse momento lhe caíram
os longos cabelos e vi aparecer-lhe por cima, voando, um jovem
resplandecente (um Anjo) e derramar-lhe em redor uma onda de luz,
como uma veste. Os homens assustados deitaram a fugir. Então
entrou correndo, um jovem impertinente, que a tinha perseguido
com seu amor, rindo-se da covardia dos outros. Quis tocá-Ia, mas
Inês segurou-lhe as mãos e empurrou-o para trás. Ele caiu, mas
levantou-se no mesmo momento e arremessou-se furioso contra a
virgem. Esta, porém, o atirou novamente para trás, até a porta
do quarto, onde caiu por terra, imóvel. Inês, porém, tranqüila
como dantes, rezava, resplandecente, na flor da mocidade; o rosto
era-lhe como uma rosa luminosa. Aos gritos dos outros, acorreram
alguns homens, entre os quais também um que parecia ser o pai do
moço que jazia por terra. Estava indignado e furioso, falando em
feitiçaria; ouvindo-a, porém, dizer que conseguiria
restituir-lhe a vida, se a pedisse em nome de Jesus, acalmou-se
e pediu-lhe que o fizesse. Então falou Inês ao morto e este se
levantou e foi conduzido pelos outros para fora, ainda
cambaleando.
Passando algum tempo, vi de novo soldados, que entraram no quarto,
trazendo-lhe um vestido de cor parda, aberto nos lados e atado
com um cordão e um véu ordinário, como os recebiam sempre os
mártires. Vestiu-os, enrolou o cabelo em volta da cabeça e foi
assim conduzi da ao lugar do suplício. Era um pátio, cercado de
muralhas grossas, nas quais havia cárceres e quartos. Podia-se
subir por este muro e olhar para o largo; havia gente lá em cima.
Foram levadas também outras pessoas ao suplício, vindas de uma
cadeia situada não muito longe do lugar onde Inês fora maltratada;
creio que eram um avô, os dois genros e os filhos destes; estavam
amarrados uns aos outros com cordas. Quando chegaram diante do
Juiz, que estava sentado num assento alto, de pedra, no pátio
quadrado, foi Inês conduzida perante o magistrado, que a interrogou e exortou amavelmente; depois interrogou e exortou também
os outros. Estes tinham sido trazidos para serem interrogados e
para assistirem ao martírio de Inês. As mulheres desses homens
ainda eram pagãs. Depois de interrogados vários presos, um após
outro, foi Inês conduzida novamente ao juiz e assim por três
vezes. Depois foi conduzida a um posto, subindo três degraus e
onde a quiseram amarrar; ela, porém, não o permitiu. Em roda havia
um montão de lenha, que foi acesa. Vi, porém, de novo, pairando
sobre Inês uma figura, que derramou sobre ela uma torrente de luz,
formando um escudo, pelo que as chamas da fogueira, desviando-se,
se lançaram contra os carrascos, ferindo vários deles. Ela,
porém, ficou ilesa. Os carrascos tiraram-na e levaram-na
novamente ao juiz. Foi colocada sobre um cepo ou uma pedra;
quiseram atar-lhe as mãos, mas não o quis; pousou-as no regaço.
Vi uma figura resplandecente diante dela, segurando-lhe os
braços. Então lhe pegou um dos carrascos no cabelo e decepou-lhe
a cabeça, como tinham feito a Cecília; a cabeça pendia-lhe ainda
num dos ombros. Lançaram-lhe o corpo, assim mesmo vestido, à
fogueira. Vi durante o julgamento amigos da mártir, de longe e
chorando. Parecia-me muitas vezes um milagre que tais amigos
compassivos, que socorriam e consolavam os mártires, não fossem
maltratados. O corpo e, creio, até o vestido, não se queimaram.
Eu lhe tinha visto a alma sair do corpo, branca como a lua e subir
ao céu.
A execução teve lugar, se bem me lembro, antes do meio-dia e ainda
durante o dia lhe tiraram os amigos o corpo da fogueira e
sepultaram-no honrosamente. Muitas pessoas assistiram ao
enterro; estavam todas veladas, talvez para não serem conhecidas.
Creio que vi o jovem curado por ela, no lugar do suplício; ainda
não se convertera. Vi, fora da visão, ao meu lado, a aparição de
Santa Inês, luminosa e resplandecente, com a palma na mão. O
esplendor que a cercava, era de cor vermelha no centro e por fora
se tornava azul. Consolou-me alegremente nas minhas, veementes
dores, dizendo: "Sofrer com Jesus, sofrer em Jesus é doce".
5. Santa Ágata. (5 de Fevereiro)
"Os pais de Ágata moravam em Palermo; a mãe era ocultamente
cristã, o pai era pagão. Vi que a mãe lhe ensinava às escondidas
a doutrina cristã. Tinha duas alas. Desde os primeiros anos da
infância, alimentava grande intimidade com Jesus. Vi-a muitas
vezes sentada no jardim e junto dela um menino belíssimo e
resplandecente, com quem falava e brincava. Preparava-lhe um
assento cômodo na relva e de mãos postas o ouvia pensativa.
Brincavam com flores e pauzinhos. O menino parecia crescer junto
com ela. Vinha vê-Ia também mais tarde, quando mais crescido, à
proporção que ela crescia, mas quando estava sozinha.
Vi como Ágata se tornou maravilhosamente pura e forte de coração;
cooperava sempre com a graça, negando consentimento mesmo às menores impurezas e imperfeições e castigava-se a si mesma pelas
últimas.
Ao deitar-se, à noite, estava o Anjo da guarda muitas vezes ao
lado, lembrando-lhe o que tinha esquecido e ela con-ia a fazê-Io.
Era uma oração ou esmola ou qualquer coisa referente ao amor,
pureza, humilda de, obediência, misericórdia, vigilância contra
o pecado. Desde criança, se esgueirava muitas vezes
furtivamente, com esmolas e alimentos para os pobres. Era uma
alma belíssima e muito querida de Jesus, mas em contínua luta.
Vi-a açoitar-se e beliscar-se, para punir a concupiscência e as
menores faltas. Com todas essas severidades, permanecia
entretanto sempre franca, corajosa e desembaraçada.
Quando tinha cerca de oito ou nove anos, vi-a levada com
algumas outras meninas, num carro, a Catânea. Ia por vontade do
pai, que queria que recebesse uma educação livre pagã. Foi
entregue a uma mulher impertinente, que tinha ainda cinco filhas
em casa. Estas faziam todo o esforço possível para desviar Ágata
da virtude. Vi-as passearem com ela em belos jardins,
mostrando-lhe lindos vestidos e jóias; mas a menina conservava-se
sempre a mesma, sem manifestar nenhum interesse por tais coisas.
Vi o menino celeste ainda muitas vezes junto dela e a menina
tornava-se cada vez mais séria e firme. Era muito bonita,
não muito alta, mas de formas perfeitas. Tinha o cabelo preto,
grandes olhos escuros, o nariz de forma bonita, o rosto de um belo
oval; tinha um gênio suave, mas firme, manifestando em todo o seu
ser uma admirável fortaleza da alma. Vi que a mãe morreu de
tristeza e saudade, durante a ausência da filha.
Em casa da mulher vi como Ágata combatia com coragem e fiel perseverança a sua natureza, resistindo a todas as tentações.
Quintiano, que a condenou mais tarde ao martírio, vinha
freqüentemente a esta casa.
Não gostava da esposa, era um homem repugnante, de um gênio baixo
e orgulhoso, andava a espreitar em toda a cidade, para depois
atormentar ou intrigar as pessoas. Vi-o com aquela mulher e
olhando às vezes para Ágata, como se olha uma menina bonita; não
a tratava, porém, de modo inconveniente. Vi então ao lado de Ágata
o Esposo celeste, visível só para ela. Mostrava-lhe os
instrumentos do martírio, creio mesmo que brincavam com estes.
Mais tarde a vi novamente na cidade natal após a morte do pai.
Tinha cerca de treze anos. Confessava em público a fé cristã e
vivia com gente boa. Vi que foi tirada de casa por homens enviados
por Quintiano; veio de novo para a casa daquela mulher, onde tinha
novamente aparições do Esposo celeste. Vi também como a mulher
tentava de todos os modos seduzir Ágata, com lisonjas, prazeres
e divertimentos; ouvi como Ágata uma vez lhe respondeu conforme
a doutrina do Esposo divino; quando a mulher quis seduzí-Ia com
palavras para uma licenciosidade, respondeu-lhe: "O teu corpo e
sangue são criaturas de Deus, como a serpente também o é; mas o
que fala em ti é o demônio." Vi as freqüentes visitas de Quintiano
à casa dessa mulher e conheci-lhe muito também dois amigos.
Depois vi Ágata ser lançada no cárcere, interrogada e açoitada.
Cortaram-lhe os seios. Vi muitas vezes nos martírios o
instrumento com que o fizeram e com o qual arrancavam grandes
pedaços de carne dos corpos dos santos. Mas estes sentiam um
auxílio milagroso de Jesus, que muitas vezes vejo refrigerá-Ios.
Assim não desfaleciam, quando outros teriam caído desmaiados.
Vi Ágata depois no cárcere, onde lhe apareceu um ancião, dizendo
que viera curar-lhe os seios. A donzela respondeu, agradecendo,
que nunca usara remédios terrenos e que tinha o seu Senhor Jesus
Cristo, que a poderia curar, se quisesse. Disse-lhe o ancião: "Sou
cristão e já muito velho, não tenhas medo de mim." Ágata, porém,
respondeu-lhe: "As minhas feridas não têm nada que ofenda a
castidade. Jesus curarme-á, se for sua vontade; Ele criou o mundo
e pode também criar os meus seios." Então vi o ancião sorrir,
dizendo: "Pois sou o servo d’Ele, eis que os teus seios já estão
curados" - e então desapareceu.
Ágata foi conduzida mais uma vez ao martírio. Num quarto
abobadado havia fogões, sob os quais faziam fogo; tinham o feitio
de caixotes profundos e nos lados interiores havia muitas pontas
agudas e cortantes. Estavam ali muitos desses caixões, um ao lado
do outro. As vezes eram diversos homens que neles eram torturados.
Podia-se passar por entre os caixões, sob os quais ardia o fogo
e assim eram assados vivos os que neles estavam deitados sobre
cacos cortantes. Quando Santa Ágata foi lançada "num tal caixão,
tremeu a terra, um muro desabou, matando os dois amigos de
Quintiano. O povo amotinou-se, ameaçando Quintiano, que fugiu.
A santa Virgem foi levada novamente ao cárcere, onde morreu.
Quanto a Quintiano, morreu afogado num rio, quando estava fazendo
uma viagem para confiscar os bens de Ágata. Vi também, numa época
posterior, que um monte vomitava fogo e que o povo fugia diante
da massa ardente, para o sepulcro de Ágata, opondo a tampa do
sepulcro ao fogo, que se extinguiu.”
Santa Ágata, Santa Petronila e Santa Tecla foram as três virgens
mártires mais heróicas, segundo diz a piedosa vidente. Santa
Petronila, que era enteada de São Pedro, contribuiu muito para
a propagação do reino de Cristo; comemora-se-Ihe a festa no dia
31 de Maio. Santa Tecla era discípula de S. Paulo; celebra-se-Ihe
a festa a 23 de Setembro.
6. Santa Dorotéa (6 de Fevereiro)
"Vi uma cidade importante, situada numa região montanhosa,
(Cesaréia, na Capadócia) e no jardim de uma casa de estilo romano,
vi brincando três meninas, de 5 a 8 anos. Seguravam-se umas às
outras pelas mãos, ora dançando em roda, ora parando, cantavam
e colhiam flores. Depois de ter brincado por algum tempo, vi as
duas meninas mais velhas separarem-se da mais nova, afastando-se
com as flores, que depois desfolharam. A pequena parecia
afligir-se muito, vendo as outras se afastarem para o outro lado
do jardim. Vi que a menina abandonada ficou com uma profunda dor
no coração, da qual eu compartilhava. O rosto empalideceu-lhe e
ao mesmo tempo o vestidinho se lhe tornou branco como a neve e
ela caiu como morta no chão. Então ouvi uma voz no coração: "Esta
é Dorotéa." Vi no mesmo instante se lhe aproximar a aparição de
um menino resplandecente, que tinha na mão um ramalhete de flores,
levantou-a e conduzindo-a ao outro lado do jardim, entregou-lhe
o ramalhete e desapareceu. A menina ficou muito contente e correndo para as duas outras, mostrou-Ihes as flores, contando quem lhas
tinha dado. Estas se admiraram muito, abraçaram a pequena,
parecendo arrepender-se da ofensa, de modo que a paz se
restabeleceu entre elas.
A vista disso, nasceu no meu coração o desejo de receber também
mais uma vez tais flores, para me confortar. Apareceu-me então
de repente Dorotéa, como virgem, exortando-me com belas palavras
a fazer uma boa preparação para a Santa Comunhão e disse-me: "Como
é que desejas tanto as flores, recebendo tantas vezes a flor das
flores?" Explicou-me também a significação daquela visão das
meninas, que se referia àapostasia e conversão das duas meninas
mais velhas.
Depois tive uma visão da morte da mártir. Vi-a, com as duas irmãs,
num cárcere e vi que tinham uma questão. As duas irmãs negavam-se
a morrer por Cristo e foram postas em liberdade. Depois vi Dorotéa
diante do juiz, que a mandou levar às duas apóstatas, na esperança
de fazê-Ia seguir-lhe o exemplo e ser seduzida pelas palavras das
pecadoras. Mas ao contrário, Dorotéa fê-Ias voltar à fé cristã.
Foi então amarrada a um poste. Rasgaram-lhe a carne com ganchos,
queimaram-lhe os lados com fachos e afinal foi degolada. A vista
disto, vi converter-se um jovem (Teófilo), que a tinha
escarnecido no caminho do suplício e a quem ela respondera
algumas palavras. Vi diante dele a aparição de um
menino resplandecente, trazendo flores e frutas. O moço
arrependeu-se e con fessou abertamente a fé cristã; sofreu também
o martírio e foi decapitado. Junto com Dorotéa, foram muitos
outros torturados e queimados.”
7. Santa Apolônia (9 de Fevereiro)
"A cidade em que Apolônia sofreu o martírio, estava situada sobre
uma ponta de terra. Os numerosos ramos pelos quais o Nilo se
derrama no mar, não ficam mui longe dali. É uma cidade vasta e
bela (Alexandria), na qual se achava a casa paterna de Apolônia,
cercada de pátios e jardins, num largo elevado.
Presenciou-lhe o martírio uma viúva idosa, de estatura alta. Os
pais eram pagãos; ela, porém, já fora instruída desde criança na
doutrina cristã e batizada pela ama, que era uma cristã oculta.
Depois de crescida, foi casada pelos pais com um pagão, com quem
vivia na casa paterna. Tinha muito que sofrer e a vida matrimonial
era-lhe uma penitência penosa. Via se prostrada por terra,
banhada em lágrimas, rezando e cobrindo a cabeça de cinza. O
marido era um homem alto e magro e muito pálido; morreu muito
antes dela. Apolônia viveu ainda cerca de trinta anos após a
morte do esposo, como viúva sem filhos. Fazia muitas obras de
misericórdia aos pobres cristãos e era a consolação e esperança
de todos os necessi tados. A ama sofreu também o martírio, um
pouco antes dela. Foi por ocasião de um tumulto, em que foram
saqueadas as casas dos cristãos e destruídas pelo fogo, sendo
mortos também muitos cristãos. Vi Apolônia mais tarde, presa em
casa, por ordem do Juiz, conduzi da ao tribunal e depois lançada
no cárcere. Vi que foi conduzida repetidas vezes para diante do
juiz, sendo cruelmente maltratada, por causa das palavras severas
e decididas com que confessava a fé cristã. Era um espetáculo
que feria o coração e eu não podia deixar de chorar amargamente,
ao passo que podia ver outros martírios, muito maiores, com
grande calma. Talvez fosse a idade e o aspecto venerável da mártir
o que me comovia. Davam lhe pancadas com maças, batiam-lhe no
rosto e na cabeça com pedras.
Esmagaram-lhe o nariz, o sangue corria-lhe da cabeça, as faces
e a boca estavam rasgadas, os dentes tinham-lhe saltado fora, com
as pancadas.
Vestia a veste branca, com os lados abertos, com a qual tantas
vezes tenho visto os mártires. Por baixo tinha uma camisa de lã.
Estava sentada num assento de pedra sem encosto, as mãos amarradas atrás na pedra e também os pés atados. Tinham-lhe arrancado
o véu, o longo cabelo pendia-lhe solto em redor da cabeça. O rosto
estava todo desfigurado e coberto de sangue. Um dos carrascos
segurava-a por detrás, puxando-lhe a cabeça, outro lhe abria a
boca ferida, introduzindo-lhe à força na mésma um pedaço de
chumbo. Depois lhe arrancou o carrasco um dente após outro com
um grosso tenaz, quebrando-lhe ainda pedaços da mandíbula.
Durante essa tortura, em que Apolônia sofreu até cair desmaiada,
vi que Anjos, almas de santos mártires e também a aparição de Jesus
a consolavam e confortavam e que implorou e recebeu a graça de
tornar-se protetora contra dores de dentes, de cabeça e do rosto.
Como não deixava de louvar a Jesus e desprezar os sacrifícios dos
ídolos, mandou o juiz que fosse conduzida à fogueira e se não
mudasse de convicção, lançada ao fogo. Vi que não podia mais andar
sozinha; estava já semi-morta. Dois carrascos levantaram-na pelos braços e arrastaram-na a um lugar elevado e plano, onde ardia
uma fogueira, numa fossa. Diante da fogueira, parecia pedir uma
coisa. Não podia mais levantar a cabeça. Os pagãos julgaram que
quisesse negar Jesus ou que vacilasse na fé e soltaram-na. Ela,
porém, caiu por terra moribunda. Rezou, mas de repente se levantou
e deitou-se nas chamas. Durante todas as torturas vi muita gente
pobre, à qual Apolônia socorrera, durante tantos anos: torciam
as mãos, choravam e lamentavam. Por si mesma não teria podido
lançar-se no fogo, recebeu a força e inspiração de Deus. Vi que
não foi consumida pelo fogo, mas assada. Depois que morreu, os
pagãos abandonaram o lugar. Os cristãos aproximaramse
ocultamente, tiraram o corpo sagrado e sepultaram-no num lugar
abobadado.”
8. Santa Cecília (22 de Novembro)
"A casa paterna de Cecília estava situada num lado de Roma. Tinha
o mesmo feito da casa de Santa Inês, com pátios, arcadas e um
chafariz. Os pais não os vi muitas vezes. Vi Cecília, muito
bonita, meiga e viva, de faces vermelhas e rosto delicado, quase
como Maria. Vi-a brincar com outras crianças nos pátios. Quase
sempre estava com ela um Anjo, na figura de um menino gracioso;
falava-lhe e o via, mas as outras crianças não o viam.
Proibira-lhe de falar dele. Muitas vezes eu via junto dela
crianças, à cuja aproximação o Anjo se afastava. Tinha cerca de
sete anos. Vi-a também sozinha no quarto e o Anjo ao lado,
ensinando-a a tocar um instrumento de música, colocando-lhe os
dedos nas cordas ou segurando uma folha de papel. Ora tinha uma
caixa encordoada sobre os joelhos e o Anjo pairava-lhe em frente,
segurando um rolo de pergaminho, para o qual ela olhava; ora tinha
um instrumento parecido com o violino, encostado ao ombro e ao
pescoço; com a mão direita tangia as cordas e cantava para dentro
do instrumento, que tinha uma abertura coberta como de uma pele.
Produzia um som suavíssimo. Vi também muitas vezes com ela um
menino, de nome Valériano e o irmão mais velho, como também um
homem vestido de um longo manto branco, que morava perto e julgo
ser aio do menino que brincava com Cecília e parecia ser educado
com ela e destinado a ela.
Vi, porém, uma ama de Cecília, que era cristã e por intermédio
da qual travou conhecimento com o Papa Urbano. Vi Cecília e as
companheiras encherem muitas vezes de víveres e frutas as dobras
das vestes, que arregaçavam depois do lado e cobriam com os
mantos. Assim carregadas, saiam juntas furtivamente pela porta,
para que ninguém notasse coisa alguma. Vi o Anjo de Cecília
acompanhá-Ia sempre, o que era um quadro muito gracioso. Vi as
crianças irem a um edifício, cercado de grandes torres, muros e
diques. Dentro desses muros e em subterrâneos abobadados, viviam
cristãos encarcerados. Não me lembro com certeza se estavam
encarcerados ou apenas escondidos; parecia-me, porém, que os
pobres que moravam nas estradas, eram guardas ou cuidavam do
esconderijo. Lá vi as crianças repartindo entre os pobres o que
tinham trazido; faziam-no furtivamente. Vi que Cecília prendia
as saias às pernas por meio de uma fita e assim deslizava pelo
íngreme aterro abaixo. Ali a deixavam entrar nos subterrâneos e
uma vez a fizeram penetrar, por uma abertura redonda, num
subterrâneo, onde um homem a levou a Santo Urbano. Vi que este
lhe ensinava, lendo rolos e que ela levava e também trazia tais
rolos de escritura, sob o manto. Tenho também uma lembrança vaga
de que foi batizada lá embaixo. Vi uma vez Valériano, já moço,
com o preceptor, entre as moças que brincavam; quis abraçar
Cecília durante o brinquedo, mas esta o repeliu. O jovem
queixou-se ao preceptor, que o contou aos pais da donzela. Não
sei o que estes lhe disseram, mas castigaram Cecília,
proibindo-lhe de sair do quarto. Lá vi sempre o Anjo com ela,
ensinando-a a tocar o instrumento e cantar.
Finalmente tive também uma visão dos esponsais de Cecília. Vi os
pais de ambos e muitos outros homens, mulheres, meninos e meninas
numa sala, onde se viam belas estátuas. Cecília e Valériano
estavam adornados de grinaldas e vestes festivas, de cor. Havia
também uma mesa baixa, carregada de iguarias. O Anjo ficava sempre
entre Cecília e o noivo. Depois os vi a sós num quarto. Cecília
disse que era sempre acompanhada por um Anjo e como Valériano
quisesse vê-Io, respondeu que não o podia sem ser batizado. Quando
o mandou procurar Santo Urbano, já seguira com o esposo para outra
casa.”
Em outra ocasião conta Catharina Emmerich: "Vi a Santa sentada
num quarto muito s\~ples, quadrangular. Tinha sobre os joelhos
uma caixa triangular, da (altura de algumas polegadas,
encordoada, na qual tocava com ambas as mãos; erguia os olhos e
sobre ela se via um esplendor e pairavam entes luminosos, como
Anjos ou crianças bem-aven turadas, cuja presença Cecília
parecia sentir. Vi-lhe também ao lado um Jovem, sumamente puro
e delicado; era mais alto do que ela, mas sujeitava-se-Ihe
humilde, obedecendo-lhe às ordens. Creio que era Valériano, pois
mais tarde o vi amarrado com outro (Tibúrcio) a um poste,
flagelado com açoites e decapitado. Não se realizou este martírio
na praça grande do suplício, mas num lugar mais deserto. Vi também
o martírio de Santa Cecília, num pátio circular, diante da casa.
A casa era quadrangular, com terraço, sobre o qual se podia
passear; nos quatro cantos havia quatro esferas de alvenaria e
no centro, creio que uma estátua. No pátio tinham colocado uma
caldeira grande, aquecida por uma forte fogueira e na qual vi
sentada a virgem, com os braços estendidos, vestida de branco,
resplandecente e alegre. Um Anjo, irradiando uma luz vermelha,
estendia-lhe a mão, outro segurava-lhe uma coroa de flores sobre
a cabeça. Tendo uma lembrança obscura de ter visto um animal
cornudo, que parecia uma vaca brava, mas não como as vacas de nosso
tempo; foi conduzido pela porta do pátio e através deste a um
buraco escuro. Cecília foi depois tirada da caldeira e três vezes
golpeada no pescoço, com uma espada curta e larga. Mas não vi
senão a espada. Vi-a também viva ainda, apesar de ferida e falar
com um sacerdote velho, que eu já tinha visto antes, em casa da
mártir. Mais tarde vi a casa transformada em Igreja; vi lá
conservadas muitas relíquias, inclusive o corpo da Santa, do
qual, porém, de um lado, tinham sido tiradas muitas partes. Havia
Missa nessa Igreja.”
Santa Cecília apareceu na sua festa de 1819 à piedosa serva de
Deus, para a consolar na perseguição que contra ela se levantara.
"Pedi a Santa Cecília que me consolasse e no mesmo momento tive
a aparição. Era comovente. A cabeça, separada por uma larga ferida
do pescoço, estava inclinada sobre o ombro esquerdo. Não era alta,
tinha cabelos e olhos pretos, cútis branca, era bela e delicada.
Vestia uma veste branca, mas não branqueada, com grandes e grossos
florões dourados, com a qual provavelmente foi martirizada.
Disse-me mais ou menos o seguinte: "Tem paciência. As tuas faltas
Deus as perdoará, se te arrependeres. Não fiques tão abatida por
ter dito a verdade aos teus perseguidores. Quem é inocente, pode
falar com toda a franqueza aos inimigos. Também falei com
severidade aos meus inimigos e quando me falaram da flor da
mocidade e das flores de ouro do meu vestido, respondi-Ihes que
as estimava tão pouco como o pó de que eram feitos os seus ídolos
e que queria ouro em troca desse lodo. Vê, com esta ferida ainda
vivi três dias e gozei do consolo do servo de Jesus Cristo.
Trouxe-te a paciência, a menina de verde roupagem; ama-a, que ela
te auxiliará.”
9. Santa Catarina de Alexandria. (25 de Novembro)
"O pai de Santa Catarina chamava-se Costa. Era descendente de
estirpe real; pois um dos seus antepassados era Hazael, que fora
ungido rei da Síria por Elias, por ordem de Deus. Do lado materno
descendia Catarina da família de Mercúria, sacerdotisa pagã,
convertida por Jesus na ilha de Salamina.
Catarina era filha única de Costa. Tinha, como a mãe, cabelo
loiroclaro, era muito viva e corajosa, tendo sempre alguma coisa
que sofrer ou disputar. Tinha uma ama e desde muito cedo recebeu
mestres masculinos. Via-a fazer brinquedos de cortiça para
crianças pobres. Já mais crescida, escrevia muito sobre lousas
e rolos, dando-os depois a outras meninas, para as copiar. Vi
também que se dava muito com a ama de Santa Bárbara, que era cristã
ocultamente. Catarina possuía em alto grau o dom de profecia dos
antepassados de sua mãe e aquela profecia a respeito do grande
profeta foi-lhe mostrada também numa visão, quando tinha apenas
seis anos. Contou-a durante o jantar aos pais, que não ignoravam
a história de Mercúria. O pai, homem muito severo e reservado,
encerrou-a por castigo num subterrâneo. Vi que ali os ratinhos
e outros animais se lhe mostravam muito familiares, brincando
diante dela. Havia uma luz em redor de Catarina. Desejava de toda
a sua alma o Salvador dos homens, pedindo que a tocasse também
e tinha muitas visões e iluminações. Desde aquele tempo nutria
um ódio invencível contra todos os ídolos; escondia, enterrava
ou quebrava todas as pequenas estátuas de falsos deuses, que podia
apanhar e por isso e por motivo dos discursos estranhos e
profundos que proferia contra a idolatria, era muitas vezes
encerrada no cárcere do pai. Contudo era também instruída em todas
as ciências; vi que andando, escrevia na areia e nas . paredes
do palácio e que as companheiras a imitavam.
Quando tinha cerca de oito anos, partiu com o pai para
Alexandria, onde o futuro noivo a conheceu. O pai voltou com ela
a Chipre. Ali não havia mais judeus, mas de vez em quando se
encontravam um escravo judeu e poucos cristãos ocultos. Catarina
foi instruída interiormente por Deus e rezava com ardente desejo
do Batismo, que recebeu aos dez anos. Foi quando o bispo de
Dióspoli mandou, às ocultas, três sacerdotes a Chipre, para
consolar os cristãos. Recebeu uma ordem interna de mandar batizar
também Catarina, que estava então novamente no cárcere, onde
tinha por guarda um cristão disfarçado. Este a levou de noite
àreunião secreta dos cristãos, num subterrâneo fora da cidade,
onde ela foi repetidas vezes e lá, junto com outros, foi instruída
na fé e batizada pelos sacerdotes. Vi que o batizante lhe derramou
sobre a cabeça água de uma taça. Catarina recebeu, com o batismo,
uma inefável sabedoria. Falava de coisas maravilhosas, mas ainda
ocultava
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Vida, Paixão e Glorificação do Cordeiro de Deus