X Semana de Extensão, Pesquisa e Pós-graduação - SEPesq
Centro Universitário Ritter dos Reis
O direito fundamental da liberdade religiosa
na relação de emprego
Cláudio Kieffer Veiga
Mestrando em direito
Centro Universitário Ritter dos Reis
[email protected]
Resumo: O presente ensaio objetiva discutir o conflito que surge entre o direito
fundamental da liberdade religiosa e o direito fundamental à propriedade no
ambiente regido pelas normas da CLT. Tal debate possui uma importância jurídica
relevante, pois se de um lado o empregado e empregador unem-se
contratualmente através de sua autonomia privada, há incidência de normas
constitucionais nesse relacionamento que esses atores não podem desconsiderar,
tendo em vista o Estado democrático de direito em que vivemos. Para isso se
percorrerá, logicamente que limitado pelo espaço disponibilizado para esse
desenvolvimento, pelos trajetórios históricos do nascedouro da liberdade religiosa
e do direito à propriedade, tecendo a linha de contato e conflito quando esses dois
direitos fundamentais entram em choque entre empregado e empregador. Ver-seá ao final que a liberdade religiosa possui um viés entrelaçado com o próprio
princípio da dignidade da pessoa humana e, que, o dever de acomodação
desenvolvimento pela doutrina estadunidense é de suma importância para a
resolução do conflito exposto nesse artigo.
1 Introdução
No início do ano de 2014 estava estampada uma notícia no saite do
Tribunal Regional do Trabalho da 4ª região, a qual dava a informação de que
um grupo conhecido de empresas no Estado do Rio Grande do Sul, por
determinação judicial via antecipação de tutela na ação civil pública n.
0020035-03.2014.5.04.0018, deveria se abster da prática de atos que
violassem a liberdade de crença e culto religioso de seus funcionários.
Essa decisão judicial relatava atos de extrema gravidade contra a
liberdade de crença e culto, retirados de peças extraídas do Inquérito civil n.
001513.2011.04.000/5 da Procuradoria Regional do Trabalho/RS e de outras
diversas reclamações trabalhistas transitadas em julgadas em desfavor dessas
empresas rés. Dentre os atos averiguados estava de que os empregados eram
obrigados a participar de cultos no qual o diretor-presidente afirmava que
“tirava o capeta” dos participantes, dizia, ainda, que “quem não acreditasse em
Jesus Cristo estava “endemoniado””.
A liberdade religiosa esta sacramentada na Constituição brasileira de
1988 (CF/88), art. 5º, e seus incisos VI e VIII, além da própria garantia ao
estado laico em seu art. 19, inc. I. Além disso, o art. 18 da Declaração
Universal dos Direitos Humanos (DUDH) de 1948 e o art. 12 do Pacto de San
José da Costa Rica, ambos tratados internacionais ratificados pelo Brasil,
afiançam o direito de cada indivíduo professar sua fé e crença sem
interferência de medidas que possam restringi-las.
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Por outro lado, a CF/88 também garante o direito à propriedade no caput
do art. 5º e em seu inc. XXII. Também presente essa garantia no art. 17 da
DUDH de 1948 e no art. 21 do Pacto de San José.
Discutir uma possível colisão entre o princípio fundamental da liberdade
religiosa e o direito à propriedade, e mesmo uma possível colisão da liberdade
religiosa em sua dimensão horizontal (SARLET, 2012a, p. 383), percorrendo o
arcabouço jurídico nacional e de direito internacional, é que o presente ensaio
se propõe a enfrentar. Ainda, para fins de uma melhor delimitação de estudo, o
presente papper estará focado no ambiente de trabalho regulado pela
Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), ou seja, apenas a celeuma
envolvendo o empregador e empregado nesse cenário jurídico será o enfoque,
deixando de abordar por falta de espaço o conflito, não menos importante, nos
casos em o empregador seja o Poder público. Para isso, a metodologia
utilizada será essencialmente a pesquisa em doutrina especializada, legislação
e jurisprudência abalizada.
2 Da liberdade religiosa
A presente comunicação não anseia analisar o significado, nem
conceituar, o que é a religião propriamente dita, em decorrência da própria
dificuldade das ciências sociais nessa concepção (WEINGARTNER NETO,
2007, p. 96-112). No entanto, importante pontuar a constatação de Fábio
Comparato quando conclui que a compreensão do mundo antigo até os dias de
hoje passa pela religião, pois foi ela que sempre comandou a vida inteira das
pessoas, do nascimento à morte (COMPARATO, 2008, p. 50-51). Exatamente
por isso que a antropologia sustenta que a religião é um aspecto universal da
cultura de determinada sociedade, baseada em um sistema de crenças e
práticas, nas quais as sociedades depositam sua visão do universo
(MARCONI; PRESOTTO, 2011, p. 150-151).
Atualmente há várias conflagrações armadas envolvendo esse tema
pelo mundo, da mesma forma de que já tivemos no passado, tais como as
Cruzadas, apesar de seu objetivo não ter sido apenas a tomada de terras
santas, tinha como bandeira principal levantada pelo papa Urbano II esse viés
religioso (BURNS, 1968, p. 363-369). A própria reforma ou revolução
protestante, deixou rastros de dor, mortes e desrespeitos a vários direitos
básicos (BURNS, 1968, p. 451-477).
A liberdade religiosa é dividida em três modalidades: liberdade de
crença, culto e organização religiosa. A liberdade de crença é no intuito de que
cada um pode exercer sua autonomia para escolher qual a religião que melhor
lhe é compatível com sua personalidade, anseios morais e éticos. A liberdade
de culto orienta que os praticantes de determinada religião são livres para
manifestar publicamente a sua crença, bem como não cerceia aqueles que não
creem em nada, podendo utilizar de meios lícitos para divulgação de seu
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agnosticismo e/ou ateísmo. Por fim, a organização religiosa é a face da
liberdade para que um determinado credo possa instituir ou organizar sua
entidade religiosa legalmente.
Nessa seara, como é notório, a intolerância religiosa, que pode levar a
um conflito religioso, não deixa de ser um perigo ao equilíbrio social, assim,
consta no art. 5º da CF/88, em seu inc. VI, a liberdade de crença, de culto e de
organização religiosa. O inciso VIII, daquele mesmo artigo, reforça que por
motivos religiosos nenhuma pessoa será privada de seus direitos. E
completando essa tríade defesa de liberdade religiosa direta posta na
Constituição brasileira, temos ainda o art. 19, inc. I, que proíbe o Estado de
instituir religiões oficiais ou mesmo sofrer alguma interferência confessional em
suas diretrizes governamentais.
Igualmente, a proteção à liberdade religiosa encontra-se em tratados
internacionais ratificados pelo Brasil, tanto no art. 18 da DUDH, onde é direito
do ser humano manifestar suas crenças religiosas, inclusive através das
práticas de seu culto, bem como no art. 12 do Pacto de San José.
Além disso, o princípio da igualdade, consagrado no caput do art. 5º da
CF/88, não deixa de estar relacionado com o direito à liberdade de crença, pois
todo cidadão possui direito à vida digna, a despeito de sua fé ou crença
religiosa. Nota-se uma natural interdependência entre o direito da igualdade e à
liberdade de religião, pois, para Paulo Bonavides o princípio da igualdade vem
auxiliar a passagem da liberdade jurídica para a liberdade real (2012, p. 391).
Somente com a Constituição republicana de 1891 houve a separação
entre Igreja e Estado (MARTINS, 2009, p. 103) e, consequentemente, o início
do desenvolvimento nacional da liberdade religiosa. Não só isso, reconhecê-la
é reconhecer o caráter multicultural de determinada sociedade, bem como a
maturidade de um povo (MORAES, 2003, p. 125).
Tudo isso posto para demonstrar que a liberdade religiosa é importante
e tem cunho constitucional no Brasil, reforçado pelos pactos internacionais
devidamente ratificados. A interferência no desenvolvimento de uma liturgia ou
culto religioso implica no próprio prejuízo da identidade de expressão de um
determinado grupo, minoritário ou não, algo reprimido pelo art. 5° (incs. VI e
VIII), art. 19 (inc. I), art. 215 e art. 216 todos da CF/88.
3 Do direito à propriedade
Fábio Comparato diagnostica bem que “[...] o núcleo essencial da
propriedade, em toda a evolução do Direito privado ocidental, sempre foi o de
um poder jurídico soberano e exclusivo de um sujeito de direito sobre uma
coisa determinada.” (COMPARATO, 1997, 92-99).
Seguindo esse fio condutor, notamos que na antiguidade, conforme
Coulanges (2003, p. 66), a propriedade, em conjunto com a família e a religião
doméstica, era um dos pilares de sustentação mais cristalino da instituição
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sociedade nos tempos gregos e italianos, motivo que o referido autor aduz que
a ideia de propriedade privada estava implícita na própria religião, lembrando
que cada família naquele momento histórico possuía seu deus próprio familiar.
A propriedade era tão arraigada à religião doméstica que “[...] a família não
poderia renunciar a ela sem antes abjurar da religião [...]” (COULANGES, 2003,
p. 75), assim, naquele momento histórico a propriedade era inviolável e
inalienável, e sem nenhuma obrigação do seu proprietário com a comunidade.
Já na idade média, com a forte influência da Igreja católica, a mesma
aduzia que a propriedade era dada por Deus para toda a humanidade, no
entanto, eram os homens que ficavam a cargo de dividi-la, ou seja, “[...] a
origem da propriedade particular era humana e não divina.” (ARRUDA, 1976, p.
359). Após isso, já na modernidade, o direito de propriedade ganha contornos
outros, com uma nova base jusnaturalista e a introdução da ideia de contrato
social, tendo como expoente dessas bases teóricas Rousseau, Hobbes e
Locke, desvinculando esse direito definitivamente da justificativa religiosa.
Locke defende a ideia da propriedade como um direito natural, estando
presente já no estado de natureza do homem, onde esse era proprietário do
trabalho de seu corpo e de sua pessoa (LOCKE, 1994, p. 42). Em
contrapartida, o próprio Locke traz limites para o direito de propriedade quando
manifesta de que “[...] a mesma lei da natureza que nos concede a
propriedade, também lhe impõe limites.” (LOCKE, 1994, p.43).
Já para Rousseau e Hobbes, o direito à propriedade individual não se
trata de um direito natural, e sim, um direito positivo que nasce junto com a
constituição do Estado, pois no estado natural do homem tudo é comunitário
sem espaço para o particularismo de um bem (HOBBES, 2003, p. 108-109 e
ROUSSEAU, 2003, p. 35).
Inspirados com esses novos ares, a Revolução Francesa sacramenta o
marco da evolução da transformação do direito à propriedade (RICCITELLI,
2009, p. 24), consagrando o liberalismo e fortalecendo a base capitalista, onde
exalta-se a concepção individualista, com seu exercício sob raras restrições,
sendo que “[...] o direito do proprietário é elevado à condição de direito natural,
em pé de igualdade com as liberdades fundamentais.” (GOMES, 2007, p. 116).
Por derradeiro, a era contemporânea traz um questionamento dessa
concepção individualista e absoluta quase que total do direito à propriedade,
surgindo a discussão de sua função social (GOMES, 2007, p. 123-131).
Na CF/88, o direito à propriedade encontra-se sacramentado como
direito fundamental, pois esta localizado tanto no caput do art. 5º, como em seu
inc. XXII. Igualmente, a consagração do direito à livre iniciativa privada,
plasmado no direito à propriedade, esta na própria base fundamental do Estado
democrático de direito estampado no art. 1º, inc. IV, CF/88.
De qualquer sorte, importante trazer a tese de que o direito de
propriedade constitucional estaria mais para um “direito-meio”, no sentido
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especial de atender as necessidades das pessoas que ainda não tiveram
concretizado esse direito (COMPARATO, 1997, 92-99), além disso, sendo o
princípio da dignidade da pessoa humana, para alguns doutrinadores, a figura
atuante “[...] simultaneamente como limite dos direitos e limite dos limites.”
(SARLET, 2012b, p. 149), logo, estaria legitimado para barrar qualquer
atividade restritiva dos direitos fundamentais elementares.
Mais especificamente sobre a ótica do empregador, importante observar
que o princípio da função social da empresa, sendo um desdobramento direto
do princípio social da propriedade (BRANCO, 2007, p. 77), restringe o direito
da propriedade, igualmente limitado pela dignidade da pessoa humana [do
trabalhador em seu ambiente profissional].
4 Da colisão entre os direitos fundamentais da liberdade religiosa e da
propriedade no ambiente de trabalho
O presente artigo não debaterá as concepções, princípios e regras
trabalhistas postas na CLT e demais ordenamentos infraconstitucionais, pois a
discussão aqui cotejada é em âmbito constitucional, isto é, esfera normativa de
hierarquia superior. Os próprios tratados internacionais comentados ao longo
desse texto possuem, no mínimo, a hierarquia de supralegalidade, nos termos
do voto do Ministro Gilmar Mendes no Recurso Extraordinário n. 466.343/SP.
Não se pode deixar de reconhecer que a liberdade religiosa é uma
conquista para a própria humanidade, pois não se desconhece o que a
intolerância religiosa já causou em nossa história. Essa liberdade esta
estampada em nosso ordenamento constitucional e demais pactos que o Brasil
ratificou nas últimas décadas. Do mesmo quilate constitucional, temos a
garantia à propriedade, conquista notória do movimento liberal, e um dos
pilares do sistema capitalista atual que impera no globo terrestre.
Entendendo que a religião é composta dos elementos crença e ritual,
onde somente a crença não basta para formá-la, sendo primordial a sua própria
prática (MARCONI; PRESOTTO, 2011, p. 151), como resolver em um ambiente
laboral a tensão entre um trabalhador e seu patrão quando os mesmos
possuem dogmas religiosos diferentes? Ainda, como equacionar quando o
patrão resolve impor aos seus funcionários suas crenças e dogmas religiosos?
Ou mesmo, como proceder quando o empregado deseja exercer seu
direito de culto, exteriorizando sua religião no ambiente de trabalho, como as
mulheres islâmicas e a utilização de uma das variações de seus véus; os
umbandistas e a utilização de suas “guias” no pescoço; os sabatistas e as
empresas que possuem atividades aos sábados; ou os judeus e a utilização da
Kipá? Nessas circunstâncias, sendo agnóstico ou mesmo ateu o empregador
desse empregado, como poderá o mesmo ser podado em seu direito
fundamental à propriedade?
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Como evidencia-se, seja o empregador querendo impor suas crenças
aos seus funcionários, seja querendo limitar a manifestação da crença desses,
além da utilização de seu poder diretivo presente nessa relação contratual
(NASCIMENTO, 2007, p. 691-692), com certeza invocará o direito fundamental
à propriedade, isto é, a sua empresa. Ainda, o empregador poderá invocar seu
igual direito de professar seu culto, logo, aparentemente, estaria ele também
sendo alijado em sua liberdade religiosa.
No entanto, em uma relação onde temos o trabalhador de um lado e o
empregador de outro, será que podemos realmente falar sobre uma eficácia
horizontal pura dos direitos fundamentais entre particulares? Essa problemática
da aplicação dos direitos fundamentais nas relações interprivadas, conforme
denomina Sarlet (2012a, p. 384), tem sofrido um alerta por parte da doutrina,
tendo em vista que em um contrato de emprego as relações são
manifestamente desiguais, pois estabelecidas entre um indivíduo frente a um
detentor de poder social superior, conforme Sarlet (2012a, p. 389). Logo, não
se poderia nesses casos sustentar a possibilidade de um igualitarismo religioso
(NALINI, 2009, p. 36).
A CF/88, em seu inc. XXIII do art. 5º, impõe limite sobre o direito de
propriedade em geral, quando aduz que ele deverá atender a sua função
social. Com isso, a orientação constitucional esta em consonância com a mais
moderna concepção de direito de propriedade, pois mesmo mantendo ele
como um direito fundamental, deixou de “[...] caracterizá-lo como incondicional
e absoluto.” (MORAES, 2003, p. 173).
Logo, nessa senda, envolvendo os direitos fundamentais da liberdade
religiosa e do direito de propriedade, com a regência da supremacia
constitucional em nosso país, como solucionar essa colisão de direitos no
ambiente laboral, senão procurando uma teoria jurídica que possa responder a
altura esses anseios. Dentre os sistemas propostos, a teoria das regras e
princípios proposta por Robert Alexy parece ser uma das mais abalizadas para
os valores liberais e democráticos do mundo ocidental.
Para Alexy, a diferença primordial entre regra e princípio é um critério
qualitativo (ALEXY, 2011, p. 90). As regras são normas que são sempre
satisfeitas ou não, ocorrendo conflito entre essas espécies de norma, isso se
resolve no plano da validade, acarretando o afastamento no ordenamento
jurídico da regra declarada inválida, salvo na possibilidade do acréscimo de
uma cláusula de exceção que elimine esse antagonismo (ALEXY, 2011, p. 92).
Por outro lado, os princípios são mandamentos de otimização, podendo
ser realizados na maior medida possível dentro das possibilidades fáticas e
jurídicas, podendo ser satisfeitas em graus variados, levando em conta sempre
um dever prima facie (ALEXY, 2011, p. 90 e 104). Exatamente por essa
peculiaridade qualitativa dos princípios, que quando esses entram em
colidência utiliza-se a técnica da ponderação (ALEXY, 2011, p. 117-118) para
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apurar qual irá ceder em razão do outro, mas nunca um princípio será
declarado inválido.
Partindo dessa premissa, ocorrência de colisão entre princípios exigíveis
no âmbito celetista - empregado-empregador -, importante pontuar que a
doutrina que estuda o direito à liberdade religiosa acentua a necessidade da
“[...] compreensão da dimensão axiológica da expressão religiosa no texto
constitucional brasileiro, que passa necessariamente pelo exame do modelo de
Estado laico preconizado pelo legislador constituinte.” (SANTOS JUNIOR,
2013, p. 176).
Assim, não se deve exigir uma neutralidade do Estado perante a
liberdade religiosa, o que poderia ser interpretado erroneamente por uma
rápida leitura do art. 19, inc. I da CF/88, no sentido de um total distanciamento,
sob pena de um caminho propício para sua própria diminuição (TAVARES,
2014, p. 119-120) e, sim, um “[...] compartilhamento material entre Estado
neutro e principio da igualdade, que não pode ser ignorado por nenhum
operador para fins de equacionamento adequado ao fenômeno religioso [...]”
(TAVARES, 2014, p. 125-126). Como já se falou anteriormente, a liberdade
religiosa passa pelo próprio reconhecimento de uma sociedade multicultural,
exigindo que a defesa de determinadas culturas seja efetivada pelo Estado.
Assim, a leitura mais correta do conteúdo do inc. I do art. 19 da CF/88, é de
afastar a vinculação aos termos “neutralidade”, “tolerância” e “apatia”.
Nessa trilha, a ponderação deverá ser aplicada sempre que existir o
conflito ente empregado e empregador envolvendo os direitos – princípios – à
liberdade religiosa e à propriedade, no sentido restrito à empresa.
Porém, para reforçar a própria técnica da ponderação já referida,
importante destacar o dever de acomodação, com origem em uma emenda em
1972 ao Civil Rights Act de 1964, no qual o empregador deve realizar uma
acomodação razoável da religião do trabalhador, isto é, exatamente em razão
da função social da empresa (ALONSO; REIS, 2014, p. 379), salvo se não
representar um encargo indevido de tal monta que possa comprometer
extremamente suas atividades.
Importante colacionar a lição de Weingartner sob o dever de
acomodação e a liberdade religiosa na seara trabalhista:
Assim, diante das diversas crenças dos trabalhadores, a empresa
tem o dever de acomodação, que também decorre do seu dever de
tolerância e não discriminação – e o Estado tem que assegurar as
garantias institucionais da liberdade religiosa individual, do princípio
da
igualdade
e
da
diversidade/pluralidade
religiosas.
(WEINGARTNER, 2007, p. 232)
Por finalizar, a massiva doutrina que indica sempre uma relevância
prioritária para a liberdade religiosa pode ser sintetizada nas seguintes razões:
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1) trata-se de um direito fundamental; 2) situa-se no cerne da
problemática dos direitos humanos, conforme assinala Jorge Miranda;
3) nenhuma Constituição deixa de considerar esse direito; 4) foi
consagrada por Tratados Internacionais; 5) originou os demais
direitos, segundo Jellinek; 6) sua importância deriva da magnitude e
importância da religiosidade no seio das sociedades humanas de
todos os tempos; 7) gravidade dos conflitos religiosos hoje existentes
ao redor do mundo; 8) gravidade dos conflitos religiosos no passado,
incluindo as atrocidades, a exemplo das inquisições; 9) a paz é
favorecida, através da tolerância; e 10) interessa a todos, ou seja,
tanto ao que crê como ao que não crê. (SORIANO, 2002, p. 18)
Por fim, sempre importante lembrar o que pronuncia Soriano (2002, p.
17), “[...] não há que se falar em dignidade da pessoa humana diante da
restrição de liberdade religiosa ou da inexistência de liberdade no sentido mais
lato”.
5 Algumas decisões sobre liberdade religiosa na seara trabalhista
Importante colacionar algumas ementas de decisões dos tribunais
trabalhistas sobre o conflito discutido no presente papper:
INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS. Demonstrado nos autos que
a trabalhadora sofreu dano moral decorrente de constrangimento
exercido por superiores hierárquicos, consubstanciados no tratamento
de forma inadequada, bem como em insistentes convites para
participação de cultos religiosos para os quais não tinha interesse,
fere a liberdade de crença garantida constitucionalmente [...].
(RIO GRANDE DO SUL. Tribunal Regional da 4ª Região. Recurso
ordinário 0001320-18.2011.5.04.0017. Recorrente: Josi Mendonça de
Lima. Recorrida: Villela Advogados Associados. Relator: Des. Clóvis
Fernando Schuch Santos. Porto Alegre, 19 set. 2013)
INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS. ASSÉDIO RELIGIOSO. A
reclamante era compelida a participar de culto religioso diverso do
seu, sob temor de perder o emprego. Violação aos dispositivos
contidos no artigo 5º, incisos VI e VIII, da CF [...].
(RIO GRANDE DO SUL. Tribunal Regional da 4ª Região. Recurso
ordinário 0000795-95.2013.5.04.0104. Recorrente: Amarante Santos
da Rosa-ME. Recorrida: Marciele Pires da Silva. Relator: Des. João
Batista de Matos Danda. Porto Alegre, 29 mai. 2014)
Pontua- se que esses dois paradigmas apresentados são os conflitos
mais notórios na atualidade, isto é, a utilização da ascendência do poder social
do empregador sob o empregado, quando lhe imputa uma obrigatoriedade
moral de frequentar ou crer em sua religião.
Já na próxima ementa, vislumbra-se que foi reconhecida uma despedida
indireta, pela falta de respeito do empregador à crença de seu empregado:
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RECURSO ORDINÁRIO. RESCISÃO INDIRETA. ASSÉDIO MORAL.
Tendo em vista o princípio da continuidade, que rege as relações de
emprego, a rescisão motivada por iniciativa do empregado há que ser
amparada por fato(s) relevante(s), caracterizando efetivo
descumprimento das obrigações contratuais, de modo a inviabilizar a
manutenção do vínculo entre as partes. O reconhecimento do assédio
moral praticado em relação à reclamante por sua superiora
hierárquica enseja a ruptura contratual por falta do empregador, nos
termos do artigo 483, "e", da CLT.
(RIO GRANDE DO SUL. Tribunal Regional da 4ª Região. Recurso
ordinário 0000355-54.2012.5.04.0001. Recorrente: GR S/A.
Recorrida: Lais de Oliveira Halinski. Relator: Des. Gilberto Souza dos
Santos. Porto Alegre, 12 fev. 2014)
Retira-se a seguinte passagem desse acórdão, a qual demonstra não só
o cerceamento de opção pela escolha de frequentar determinada religião,
como nos casos antecedentes, mas o próprio ataque a crença de determinado
funcionário, quando passa a lhe ridicularizar:
Ao referir-se à autora como "batuqueira", sabendo de sua fé como
evangélica, como referiu a autora, a superiora hierárquica ofendeu
ambas as religiões, pois vulgarizou termo que merece respeito e
violou previsão expressa do texto constitucional quanto à liberdade de
crença (artigo 5º, VI) e à intimidade (artigo 5º, X).quanto à liberdade
de crença (artigo 5º, VI) e à intimidade (artigo 5º, X).
Ao contrário senso, há casos em que o empregador previdente toma as
devidas cautelas para não macular a liberdade religiosa de seu empregado:
DANO MORAL. INDENIZAÇÃO. DISCRIMINAÇÃO POR MOTIVO DE
CRENÇA RELIGIOSA. NÃO CONFIGURAÇÃO. Não incorreu em
prática discriminatória a credo religioso, capaz de desencadear a
obrigação de indenizar por dano moral, a empresa que impôs a todos
os seus empregados e à diretoria, o uso de camiseta com estampa da
imagem de Nossa Senhora de Nazaré, na época das festividades do
Círio, se facultou à reclamante o direito alternativo à licença
remunerada no período, em alusão ao que dispõe o art. 5º, VIII, da
CF/88 [...].
(PARÁ. Tribunal Regional da 8ª Região. Recurso ordinário 020552004-008-08-00-3. Recorrente: Portugal comércio de produtos
descartáveis Ltda. Recorrida: Rosângela de Oliveira Cecim. Relatora:
Desa. Elizabeth Fátima Martins Newman. Belém, 02 jun. 2005)
6 Conclusões
Na presente comunicação buscou apresentar o conflito entre direitos
fundamentais, sempre que envolvido o direito à liberdade religiosa, que pode
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surgir em um ambiente de trabalho regido pelas normas celetistas entre
empregado e empregador.
Em vista dos argumentos apresentados, e mesmo pela amostragem de
jurisprudência colacionada, importa aduzir que mesmo o empregador com seu
poder diretivo e com o direito fundamental à propriedade, amparado pelo
sistema capitalista em que vivemos, deve respeitar e fazer imperar em seus
domínios a liberdade religiosa de seus empregados.
Não é demais frisar que cada caso será analisado individualmente, pois
ao mesmo tempo em que existe um dever de acomodação por parte do
empregador, isso não pode interferir no ambiente empresarial que chegue ao
ponto de inviabilizar o próprio seguimento desse negócio.
Ante ao exposto, o assunto da liberdade religiosa no ambiente de
trabalho, e mesmo essa discussão pelo Poder Judiciário trabalhista, nos parece
que merece um melhor amadurecimento, pois não raro ainda se escuta a velha
máxima em nossa sociedade de que “política, futebol e religião não se discute”.
Importante relembrar que a não discussão de assuntos relevantes para uma
nação, tal como a própria liberdade à religião, apenas reforça posição de
grupos dominantes os quais desconsideram as opiniões e o respeito às demais
minorias ou mesmo grupos alijados de uma voz ativa em nossa sociedade.
Referências
ALONSO, Ricardo Pinha; REIS, Junio Barreto dos. A liberdade religiosa nas
relações de trabalho. In: LAZARI, Rafael José Nadim de; BERNARDI, Renato;
LEAL, Bruno Bianco (org.). Liberdade religiosa no estado democrático de
direito: questões históricas, filosóficas, políticas e jurídicas. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2014, p. 363-383.
ARRUDA, José Jobson de Andrade. História antiga e medieval. São Paulo:
Ática, 1976.
BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 27.ed. São Paulo:
Malheiros, 2012.
BRANCO, Ana Paula Tauceda. A colisão de princípios constitucionais no
direito do trabalho. São Paulo: LTr, 2007.
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do
Brasil
de
1988.
Disponível
em:
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