A EDUCAÇÃO COMO DIREITO FUNDAMENTAL M ARIA C RISTINA DE B RITO L IMA Juíza Titular da 5ª Vara Cível da Comarca de Duque de Caxias 1. INTRODUÇÃO A atual sociedade brasileira vem exigindo uma reflexão jurídica acerca da universalização dos direitos fundamentais, com a necessária implementação daqueles que são essenciais à sua manutenção e ao seu desenvolvimento. Entre esses direitos certamente está o da educação fundamental, finalmente erigido à categoria de público subjetivo, que conta com garantias constitucionais à sua efetivação1. Com o advento da Constituição Cidadã de 1988, pode-se dizer que o brasileiro vem descobrindo a importância da educação para o exercício da cidadania, chegando a estruturar um novo ramo do direito: o Direito Educacional, o qual recebeu de ÁLVARO MELO FILHO2 o conceito de “conjunto de técnicas, regras e instrumentos jurídicos sistematizados, que objetivam disciplinar o comportamento humano relacionado à educação”, havendo, agora, de a ele se incorporar os preceitos constitucionais que lhe dão nova feição, principalmente no que toca à educação fundamental. Sem dúvida que chegar a esse ponto, ainda que incipiente, demandou muito esforço, muita perseverança. Entretanto, o Brasil dos quinhentos anos, com um acanhado avanço cultural, vem conseguindo compreender a necessidade de os cidadãos terem noção plena e integral do papel que compete a cada um desempenhar. Acresça-se que, sem que todos tenham consciência dos mecanismos produtivos do trabalho, os quais levam inexoravelmente a um desenvolvimento econômico, o colapso do próprio Estado estaria por acontecer. 1 Artigo 205 c/c 208, caput c/c seu inciso I, bem como o seu §1º, todos da Constituição Federal. 2 MELO FILHO, Álvaro. “Direito Educacional: aspectos teóricos e práticos”. REVISTA MENSAGEM. Fortaleza, nº 8 (número especial sobre Direito Educacional): 1982/1983. p. 54. 212 Revista da EMERJ, v.4, n.13, 2001 E não é por acaso que os países desenvolvidos consideram o ensino básico como merecedor da máxima prioridade, podendo-se ainda acrescentar que, à medida em que a escolaridade dos cidadãos toma espaço, cresce, na mesma importância, o desenvolvimento do país, deslocando-se, portanto, o termo obrigatório do ensino basilar para o médio (como, por exemplo, já é o caso dos Estados Unidos da América e da Inglaterra, onde o ensino fundamental abrange também aquele que o Brasil denomina de ensino médio) e, ainda, para o ensino técnico-superior (como na Alemanha). Recente artigo divulgado pela Revista BIDAMÉRICA on line3, do Banco Interamericano de Desenvolvimento, destaca que há muito tempo os economistas partem do princípio de que níveis mais altos de educação contribuem para o desenvolvimento econômico. Embora difícil de quantificar essa ligação, a edição de 1997 do Relatório do BID sobre o Progresso Econômico e Social da América Latina - baseado em diversos estudos técnicos recentes para calcular o efeito sobre o crescimento econômico do aumento do nível de escolaridade da mão-de-obra da região, que é hoje relativamente baixo: 5,3 anos (4,9 anos, quando ajustado por população) - mostra quanto de retorno a região pode esperar dos investimentos em educação, afirmando que: “A taxa de crescimento potencial da América Latina se elevaria substancialmente nos próximos dez anos se o nível médio de escolaridade da mão-de-obra aumentasse um ano (acima das atuais tendências)”. A estimativa é de que um aumento assim elevaria em 1% o potencial médio da taxa de crescimento na próxima década. Essa diferença pode se traduzir em melhorias muito grandes no poder aquisitivo médio do latinoamericano. Em termos microeconômicos, a educação permite aos indivíduos adquirir conhecimentos gerais e assimilar informações de modo mais eficiente. Trabalhadores com maior escolaridade adaptam-se mais facilmente a novos processos de produção, têm melhor capacidade de comunicação, o que lhes permite cooperar com os colegas na solução de problemas de produção. São, por isso, capazes de executar tarefas mais complexas em manufatura e serviços, aproveitando melhor a tecnologia e tornando-se mais produtivos. Por tudo isso, acabam adicionando valor ao produto econômico do país4. 3 http://www.iadb.org/exr/IDB/stories/1997/POR/8f.htm 4 WASHINGTON DC. Inter-American Development Bank. Economic and Social Progress in Latin America: 1997 Report. Revista da EMERJ, v.4, n.13, 2001 213 Por essa razão, e já não sem tempo, o Brasil começa a investir na educação. A representação deste primeiro momento é a educação fundamental obrigatória e gratuita, com sua oferta inclusive para aqueles que não tiveram acesso na idade própria -, compreendida entre a 1ª e a 8ª séries do ensino fundamental, na forma prescrita pela Lei nº 9.394, de 20.12.1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, artigos 32 e seguintes. Essa fase da educação, que terá a duração mínima de oito anos, tem por escopo a formação básica do cidadão, mediante o desenvolvimento da capacidade de aprender, tendo como meios básicos o pleno domínio da leitura, da escrita e do cálculo; a compreensão do ambiente natural e social, do sistema político, da tecnologia, das artes e dos valores em que se fundamenta a sociedade; o desenvolvimento da capacidade de aprendizagem, tendo em vista a aquisição de conhecimentos e habilidades, a formação de atitudes e valores, o fortalecimento dos vínculos de família, dos laços de solidariedade humana e de tolerância recíproca em que se assenta a vida social. E, para atingir a meta traçada, a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 estabelece para a educação princípios gerais no seu artigo 206 e garante, através de seu artigo 208, inciso VII, atendimento priorizado ao educando do ensino fundamental através de programas suplementares de material didático-escolar, transporte, alimentação e assistência à saúde. Assim, aliada à maior oferta de vagas no ensino fundamental, deverá haver toda uma estruturação específica, quer das entidades públicas, quer das entidades privadas, conformada em direitos especiais ligados ao ensino básico, apta a incentivar, manter e expandir esse ensino basilar a todos os brasileiros. 2. EDUCAÇÃO COMO EXERCÍCIO PLENO DO DIREITO DE L IBERDADE E I NSTRUMENTO DE DESENVOLVIMENTO RUI BARBOSA, como enfatiza a história, muito conseguiu realizar ao transformar a tribuna parlamentar em um instrumento de luta na construção de uma nova ordem política. Ferrenho defensor da educação popular, o grande político baseava-se nas três nações mais eminentemente individualistas e desenvolvidas da época, as quais ele considerava o berço do mais enérgico sentimento da pessoa humana, da mais real autonomia das localidades, do mais constitucional governo do povo por si mesmo. 214 Revista da EMERJ, v.4, n.13, 2001 Para ele, as nações inglesa, americana e suíça eram aquelas onde o governo reinava e a opinião governava. A Inglaterra de 1833 foi brindada com o primeiro subsídio nacional a escolas populares. Ainda que muito pouco no início, aquele era o começo de uma nova fase, de um novo tempo, pois que ao Estado interessava a quantidade e a qualidade de instrução do seu povo. Já em 1839, estabeleceu a nação inglesa uma repartição de instrução pública (Committee of The Privy Council on Education) e, desde então, não se concederam subvenções escolares, senão sob cláusulas ditadas pelo governo. A participação do Estado na instrução pública recebeu a consagração oficial: criou-se uma instituição permanente, cuja missão era a de subvencionar o ensino primário, isto é, até certo ponto, dirigi-lo5. Os Estados Unidos - na visão de RUI BARBOSA, a grande república do norte -, desde a sua independência em 1776, mantinham a nítida intuição de seus patriarcas, que pregavam ao povo que a cultura da alma humana é o primeiro elemento, não só moral, como econômico e político, da vida de um Estado. Portanto, não há de se surpreender quando RUI destacava nos seus discursos as manifestações de eminentes figuras políticas, valendo ressaltar a dos presidentes: JAMES MADISON6, o quarto governante dos Estados Unidos da América, em discurso proferido em 1809: “Fomentar o adiantamento da ciência e a vulgarização dos conhecimentos, o melhor alimento BARBOSA, Rui. Reforma do ensino primário e várias instituições complementares da instrução pública. V. X, tomo II. Edição comemorativa do 1º centenário dos pareceres apresentados na Câmara do Império em 1883. Fundação Casa de Rui Barbosa, Fundação Cultural do estado da Bahia e Conselho Estadual de Educação. Publicado pelo Ministério da Educação e Saúde. Rio de Janeiro, 1946. p. 99 a 109. É certo que até chegar neste ponto, a educação popular inglesa passou por muitos dissabores. Grande hostilidade enfrentou do clero anglicano e de todos os partidários da igreja oficial, que envidavam esforços para obstar a manutenção da subvenção. Entretanto, a intervenção do Estado na educação fincou-se definitivamente, a ponto de John Bright declarar para o Times (em 9.12.1881) que, “se alguma coisa me coubesse dizer, capaz de atenuar as carregadas cores deste quadro (referindo-se à desditosa condição das classes operárias na Inglaterra), seria para vos lembrar que provavelmente nenhum país do mundo, nos últimos dez anos, se aproxima deste na magnitude dos esforços empregados em favor da educação”. 5 Op. cit., p. 122 e ss. JAMES MADISON redigiu as resoluções de Virgínia (1798), as quais demonstravam o ressentimento contra as leis de estrangeiros e de sedição. Foi Secretário de Estado (1801-1809) no governo JEFFERSON, sucedendo este como quarto presidente dos EUA (1809-1817). Foi conhecido como o Pai da Constituição. 6 Revista da EMERJ, v.4, n.13, 2001 215 da verdadeira liberdade7” e JAMES MONROE8, o quinto governante, em discurso proferido em 1817: “Como melhor dos meios de preservar as nossas liberdades, empreguemos todas as medidas sábias e constitucionais em desenvolver a inteligência da nação9 ”. Este último, fortaleceu a história do seu país com mensagens tão fortes sobre a educação, que RUI as destacava com empenho em seus pronunciamentos: “Um governo popular sem instrução popular, nem meios de obtê-la, é apenas o prólogo de uma farsa ou de uma tragédia, se não de uma e outra coisa 10” (de 4.8.1822); e “O melhor serviço possível a um país, depois de lhe granjear a liberdade, está em dilatar o cultivo mental do povo, igualmente essencial à preservação e à fruição dessa bênção11” (de 29.3.1826). Não deixado de destacar o profundo sentimento norte-americano pela educação, ao revelar à nação brasileira os resultados apresentados pelo Relatório do Secretário do Conselho de Instrução Pública em 1856. Referido documento comprova que em 1837 o poder produtivo do Estado de Massachussetts era de US$ 86.282.616 por ano, o que, dada a população desse tempo, correspondia a US$ 125 de produção por pessoa. Entretanto, neste mesmo ano, as cidades e povoados se impuseram taxas para o custeio das escolas na quantia de US$ 387.124, aumentando-a gradativamente nos anos subseqüentes. Assim, ao conferir a produtividade desenvolvida no período de 1837 a 1855, chegou-se à produção anual na casa de US$ 295.820.681, soma que, considerado o aumento da população, correspondia a US$ 262 por habitante, concluindo o relatório com a seguinte sentença12: “Poucas necessidades e minguados recursos tem um povo 7 Ibid, p. 123. “ To favor in like manner the advancement of science and the diffusion of information as the best aliment to true liberty”. 8 Ibid, p. 123. JAMES MONROE fez parte do Congresso Continental, de 1783 a 1786, intervindo na aprovação da constituição federal. Foi governador de Virgínia de 1799 a 1802 e eleito presidente dos EUA para o mandato de 1817 a 1825, sucedeu JAMES MADISON. Ibid, p. 123. “Let us by all wise and constitutional measures promote intelligence among people as the best means of preser ving our liberties”. 10 Ibid, p. 123. “A popular government, without popular information or the means of acquiring it is but a prologue to a force or tragedy, or perhaps to both”. 9 11 Ibid, p. 123. “The best service that can be rendered to a country, next to that of giving it liberty, is in diffusing the mental improvement, equally essential to the preservation and the enjoyment of this blessing”. 12 SARMIENTO, D..F. “Las escuelas: base de la prosperidad y de la república en los Estados Unidos”. Informe al Ministro de Instrucción Pública en la República Argentina. Nova Iorque. 1873. p. 32, 34, 37 e 38. 216 Revista da EMERJ, v.4, n.13, 2001 deseducado; ao passo que a cultura intelectual cria necessidades adicionais e provê de meios para as satisfazer. A variedade e extensão dos cômodos gozados serão proporcionais sempre ao cultivo, maior ou menor, do entendimento. Se há, com efeito, verdade econômica bem estabelecida, está em que o país mais ilustrado é, ou há de ser, se ainda não o é, o mais rico”. Porém, baldados os esforços de RUI BARBOSA, que em 1881 chegou até a elaborar um projeto de Reforma do Ensino Primário13, a política educacional não se modificou. Enquanto os países mais adiantados já sentiam que guarnecer de conhecimento o seu povo, fortalecendo o exercício do direito de liberdade, trazia uma resposta bastante positiva ao Estado, pois o desenvolvimento econômico se dava de forma mais veloz, o Brasil precisou passar por uma série de problemas conjunturais para, enfim, ter a educação como mola propulsora do desenvolvimento. 3. FONTE DE CUSTEIO DA EDUCAÇÃO, A EMENDA CONSTITUCIONAL N º 14/96 E O FUNDEF O maior problema enfrentado pela educação no Brasil sempre foi a destinação de verbas específicas. A escassez de recursos sempre aparecia como uma tônica constante em todos os governos. O Brasil não tinha por hábito legal deixar clara a vinculação de verbas para as atividades financeiras, sendo possível verificar essa assertiva desde a Carta de 1824, quando, então, estabelecida a instrução primária gratuita a todos os cidadãos (art. 179, alínea 32) não havia qualquer previsão de fonte de custeio (alínea 15). Na mesma esteira, a Constituição de 1891 sequer atribuiu receita ao atendimento do sistema educacional popular, muito embora tivesse deixado ao Congresso (art. 35) a incumbência de criar instituições de ensino superior e secundários nos Estados. Já a Carta Magna de 1934 estabeleceu a aplicação de, no mínimo, 10% da renda resultante de impostos da União e dos Municípios (sendo que 20% das cotas destinadas pela União para a educação, anualmente, eram 13 BARBOSA, Rui. Reforma do ensino primário e várias instituições complementar es da instrução pública. V. X, tomo IV. Edição comemorativa do 1º centenário dos pareceres apresentados na Câmara do Império em 1882. Fundação Casa de Rui Barbosa, Fundação Cultural do Estado da Bahia e Conselho Estadual de Educação. Publicado pelo Ministério da Educação e Saúde. Rio de Janeiro, 1946. p. 71 a 149. Revista da EMERJ, v.4, n.13, 2001 217 destinadas, também por força de lei, para o ensino nas zonas rurais) e 25% da mesma renda dos Estados e do Distrito Federal para a manutenção e desenvolvimento dos sistemas educativos. Houve, também, a previsão para as sobras das dotações orçamentárias, acrescidas das doações, das percentagens sobre o produto de vendas de terras públicas, das taxas especiais e outros recursos financeiros, os quais constituiriam fundos especiais da União, dos Estados e dos Municípios a serem aplicados exclusivamente em obras educativas, determinadas em lei. Ainda que o legislador constituinte não tivesse sido suficientemente claro acerca da destinação de verba específica para atender à educação, deixando à margem de lei complementar a sua instituição, esses dispositivos apresentaram um avanço na atividade financeira destinada à educação. Porém, como já dito anteriormente, a Constituição Democrática de 1934 não chegou a vingar, por força do golpe de Estado e a conseqüente outorga da Carta de 1937, que, por sua vez, nada dispôs a respeito. A Constituição de 1946 determinou que a União aplicasse nunca menos de 10% (dez por cento), e os Estados, o Distrito Federal e os Municípios nunca menos de 20% (vinte por cento) da renda resultante dos impostos na manutenção e desenvolvimento do ensino. Entretanto, essas especificações ainda não eram suficientes para atender às necessidades que a educação impunha. A Carta de 1967 não trouxe qualquer alteração no que toca ao custeio da educação, porém, a ausência de verbas para tal, acabou por preocupar os militares, quando, ao assumirem o poder, espantaram-se com a situação caótica encontrada no sistema educacional do País. Desse modo, os ajustes para o Estado cumprir com o dever da educação foi sendo, aos poucos, efetivado através de leis infraconstitucionais. Assim esclarece OLIVEIRA MOTTA14: “para enfrentar a difícil e deficitária realidade educacional, o Governo procura, de imediato, ampliar os recursos financeiros para a educação, através da criação do salário-educação (Lei nº 4.440, de 27.10.1964), a qual foi modificada pelo Decretolei nº 55.551, de 12.1.65, para atender diretamente à falta de verbas para expansão do ensino primário. No dia 21 de novembro de 1968, cria o Fundo Nacional do Desenvolvimento da Educação – FNDE, complementado pelo Decreto-lei nº 872, de 15 de setembro de 1969”. 14 Op. cit., pág. 134. 218 Revista da EMERJ, v.4, n.13, 2001 A Constituição de 1969, no seu artigo 15, alínea f, trouxe algumas alterações no tocante, pois determinou aos Municípios, de forma indireta, a aplicação de 20% (vinte por cento), no mínimo, de sua receita tributária no ensino municipal, sob pena de intervenção nos Estados. Mas foi com o advento da Constituição Cidadã de 1988 que o Brasil deu o grande passo, assumindo o compromisso de atender ao dever do Estado com a educação fundamental, garantindo-lhe meios para a efetivação desse direito, com fonte de custeio e verbas diretamente vinculadas ao mister. Com efeito, esse compromisso com que a novel Constituição gravou o orçamento público fez florescer dois direitos essenciais: a) o direito, irrecusável a toda a criatura humana, de que a sociedade lhe ministre, no primeiro período da evolução individual, os princípios elementares de moralidade e intelectualidade15, sem os quais não há homem responsável, sem os quais é cativeiro a lei, um absurdo a imputabilidade e a repressão torna-se uma injustiça; b) o direito incontestável à sociedade de negar-se a receber no seio da ordem comum cérebros atrofiados pela ausência dessa educação rudimentar, à míngua da qual o ente humano se desnatura e inabita para a convivência racional. Na verdade, a Carta Fundamental, originariamente, estabelecia, no seu artigo 211, caput, que a União organizaria e financiaria o sistema federal de ensino e o dos Territórios e prestaria assistência técnica e financeira aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios para o desenvolvimento de seus sistemas de ensino e o atendimento prioritário à escolaridade obrigatória. Dispondo, ainda, o artigo 212 sobre a aplicação anual a cargo da União e dos demais entes federados na manutenção e desenvolvimento do ensino e vinculando os recursos para os programas suplementares de alimentação e assistência à saúde. O artigo 60, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, apresenta norma de natureza meramente programática, para um objetivo tão forte como a eliminação do analfabetismo e a universalização do ensino fundamental. Mas, certamente, que apenas as verbas estipuladas, bem como o encargo da União nessa tarefa não foram suficientes para atender a uma meta 15 STEELE, G. General report for the year 1880. Preston District. Inglaterra, 1880. Enunciada na Inglaterra do século XIX, em um documento oficial, esta afirmação do direito de todas as crianças ao ensino e do dever social de gratuidade da instrução comum merece ainda hoje especial atenção e principalmente no Brasil. Revista da EMERJ, v.4, n.13, 2001 219 tão especial, devidamente tratada como direito fundamental e com garantias próprias para a sua efetivação, valendo citar o atendimento ao educando, no ensino fundamental, com programas suplementares de material didáticoescolar, transporte, alimentação e assistência à saúde. Portanto, era hora de ir mais longe e arriscar. E foi esta a motivação que levou o Brasil à Emenda Constitucional nº 14, de 13.9.1996, mesma época em que conseguia renegociar com o Fundo Monetário Internacional (FMI), vindo, assim, demonstrar o efetivo interesse político na erradicação do problema que emperrava o desenvolvimento econômico brasileiro. A Emenda Constitucional nº 14/96 modificou os artigos 34, 208, 211 e 212 da Constituição, além de dar nova redação ao artigo 60, do ADCT. Entre as modificações operadas, as mais importantes foram, sem dúvida, a) a do §1º, do artigo 21116 - que atribuiu à União, em matéria educacional, função redistributiva e supletiva, de forma a garantir equalização de oportunidades educacionais e padrão mínimo de qualidade do ensino mediante assistência técnica e financeira aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios - , b) a do §5º do artigo 21217 - que impediu que as empresas deduzissem a aplicação realizada no ensino fundamental de seus empregados e dependentes -, e c) a do artigo 6018, com inclusão dos parágrafos 1º a 7º do ADCT, vinculando efetivamente verbas específicas ao ensino fundamental. Com efeito, os citados dispositivos introduzidos pela Emenda Constitucional nº 14/96 cumpriram a sua missão, qual seja, a de criar meios para a implementação financeira do direito público subjetivo conferido pela Lei Fundamental, vinculando verbas específicas para tal. A redação originária tinha o seguinte teor: “§1º. A União organizará e financiará o sistema federal de ensino e o dos Territórios, e prestará assistência técnica e financeira aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios para o desenvolvimento de seus sistemas de ensino e o atendimento prioritário à escolaridade obrigatória”. 16 A redação originária tinha o seguinte teor: “O ensino fundamental público terá como fonte adicional de financiamento a contribuição social do salário-educação, recolhida, na forma da lei, pelas empresas, que dela poderão deduzir a aplicação realizada no ensino fundamental de seus empregados e dependentes”. 18 A redação originária do caput e seu parágrafo único era a seguinte: “Nos dez primeiros anos da promulgação da Constituição, o poder público desenvolverá esforços, com a mobilização de todos os setores organizados da sociedade e com a aplicação de, pelo menos, cinqüenta por cento dos recursos a que se refere o art. 212 da Constituição, para eliminar o analfabetismo e universalizar o ensino fundamental. Parágrafo único: “Em igual prazo, as universidade públicas descentralizarão suas atividades, de modo a estender suas unidades de ensino superior às cidades de maior densidade populacional”. 17 220 Revista da EMERJ, v.4, n.13, 2001 Impõe-se, assim, a análise desse texto legal, iniciando pelo artigo 34, da Constituição da República Federativa do Brasil, que trata da intervenção da União nos Estados, bem como no Distrito Federal. Ao inciso VII do citado dispositivo legal (art. 34) foi acrescentada a alínea e, estabelecendo a possibilidade de intervenção no Estado (ou Distrito Federal) que não promovesse a “e) aplicação do mínimo exigido da receita resultante de impostos estaduais, compreendida a proveniente de transferências, na manutenção e desenvolvimento do ensino”. E continua o legislador constitucional com o arcabouço protetivo e implementador da educação, estatuindo, no artigo 212, da Carta Magna, que os Estados e o Distrito Federal têm que aplicar, anualmente, no mínimo, 25% (vinte e cinco por cento) da receita resultante de impostos estaduais, compreendida a proveniente de transferências, na manutenção e desenvolvimento do ensino. Essas receitas tributárias referem-se não só àquelas ínsitas no artigo 155, do Texto Fundamental, provenientes de impostos: a) sobre a transmissão causa mortis e doação, de quaisquer bens ou direitos; b) sobre as operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, ainda que as operações e as prestações se iniciem no exterior; como c) sobre a propriedade de veículos automotores, mas também aquelas referenciadas no artigo 157, do mesmo diploma legal, que prevêem aos Estados e ao Distrito Federal o produto da arrecadação do imposto da União e d) sobre a renda e proventos de qualquer natureza, incidente na fonte, sobre rendimentos pagos, a qualquer título, por eles, suas autarquias e pelas fundações que instituírem e mantiverem, além de 20% (vinte por cento) do produto da arrecadação do imposto que a União instituir no exercício da competência que lhe é atribuída pelo artigo 154, I, da Constituição da República Federativa do Brasil. Do que se vê, ao tempo em que restou determinada a vinculação de 25% (vinte e cinco por cento), no mínimo, das receitas tributárias para a manutenção e desenvolvimento do ensino, ficou também estabelecido que o não cumprimento da determinação constitucional pode redundar em intervenção da União nos Estados (e no Distrito Federal). Não resta dúvida que a Emenda Constitucional veio reforçar a integridade nacional, repelindo não só o mau uso da autonomia dos Estados e do Distrito Federal, mas também a não-observância da meta de garantir o direito constitucional da educação. Revista da EMERJ, v.4, n.13, 2001 221 Dando continuidade à análise dos dispositivos introduzidos ou alterados pela Emenda Constitucional nº 14, relevam-se os incisos I e II, do artigo 208, do Texto Fundamental, os quais destacam que: “O dever do Estado com a educação será efetivado mediante a garantia de: I - ensino fundamental obrigatório e gratuito, assegurada, inclusive, sua oferta gratuita para todos os que a ele não tiverem acesso na idade própria; II progressiva universalização do ensino médio gratuito”. O inciso I, acima mencionado, assegurou a gratuidade de oferta do ensino fundamental a todos, inclusive àqueles que a ele não tiveram acesso na idade própria - 7 a 14 anos ou 6 a 13 anos de idade - afastando, entretanto, a obrigatoriedade. Já o inciso II, inovou para dar início à universalização do ensino médio. A alteração nos parágrafos 1º e 2º do artigo 211, bem como a inserção de mais dois parágrafos19, evidenciaram uma renovação na missão da União, que, agora, passa a desempenhar as seguintes funções: a) organizar o sistema federal de ensino e dos Territórios; b) financiar as instituições de ensino públicas federais; c) exercer, no que diz respeito à organização, manutenção e desenvolvimento do ensino, função redistributiva e supletiva; d) garantir equalização de oportunidades educacionais; e) garantir padrão mínimo de qualidade do ensino; f) prestar assessoramento técnico e assistência financeira aos demais sistemas de ensino 20. Contudo, a alteração produzida no parágrafo segundo do citado artigo apenas renomeou a educação pré-escolar, que passou a se chamar educação infantil. E, no que toca à inclusão dos parágrafos terceiro e quarto ao dispositivo em evidência, mais uma vez se demonstra a preocupação brasileira com a universalização do ensino fundamental obrigatório, destinando a ela atenção prioritária pelos sistemas municipal e estadual. 19 Art. 211. .......§1º. A União organizará o sistema federal de ensino e o dos Territórios, financiará as instituições de ensino públicas federais e exercerá, em matéria educacional, função redistributiva e supletiva, de forma a garantir equalização de oportunidades educacionais e padrão mínimo de qualidade do ensino mediante assistência técnica e financeira aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios. §2º. Os Municípios atuarão prioritariamente no ensino fundamental e na educação infantil. § 3º. Os Estados e o Distrito Federal atuarão prioritariamente no ensino fundamental e médio. § 4º. Na organização de seus sistemas de ensino, os Estados e os Municípios definirão formas de colaboração, de modo a assegurar a universalização do ensino obrigatório. 20 MOTTA, 1997, p. 195. 222 Revista da EMERJ, v.4, n.13, 2001 Doutra parte, no que toca à nova redação dada ao §5º do art. 212, da Constituição Federal21¸ tem-se que esta impediu que as empresas pudessem deduzir a aplicação realizada no ensino fundamental de seus empregados e dependentes do pagamento da contribuição. Com efeito, o salário-educação - contribuição social criada por lei e erigida à categoria de norma constitucional, vez que fonte adicional de financiamento do ensino fundamental público, conforme §5º, do artigo 212 - , na forma anteriormente estabelecida pela Constituição (dedução da aplicação realizada no ensino fundamental), acabava por beneficiar as instituições particulares e não as públicas, já que as bolsas de estudo aos empregados levava-os às instituições privadas, infringindo, assim, o artigo 213, do Texto Constitucional, que determina a destinação de recursos públicos às escolas públicas. Portanto, providencial a alteração que não só pôde manter a fonte adicional de custeio do programa suplementar de livro didático e transporte (vide capítulo destinado ao direito a material escolar e transporte), como também criar uma força adicional de pressão para implementar a qualidade do ensino público, já que as empresas absorvem mão-de-obra daqueles bancos escolares. Por fim, tem-se a alteração mais substancial da Emenda Constitucional ora analisada, o artigo 60, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, que será visto ponto a ponto. O caput do dispositivo prevê que: “Art. 60. Nos dez primeiros anos da promulgação desta Emenda, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios destinarão não menos de sessenta por cento dos recursos a que se refere o caput do art. 212 da Constituição Federal, à manutenção e ao desenvolvimento do ensino fundamental, com o objetivo de assegurar a universalização de seu atendimento e a remuneração condigna do magistério”. O artigo 212, por sua vez, estabelece que os Estados, o Distrito Federal e os Municípios devem aplicar 25% (vinte e cinco por cento) da receita resultante de impostos, incluindo as transferências, na manutenção e desenvolvimento do ensino. Art. 212......§5º. O ensino fundamental público terá como fonte adicional de financiamento a contribuição social do salário-educação, recolhida pelas empresas, na forma da lei. 21 Revista da EMERJ, v.4, n.13, 2001 223 Mas, de acordo com o artigo 60, caput, 60% (sessenta por cento) desses 25% (vinte e cinco por cento) 22 terão que ser destinados à manutenção e desenvolvimento específico do ensino fundamental, restando os outros 40% (quarenta por cento) dos 25% (vinte e cinco por cento) para o ensino médio e superior. Essa medida visa a assegurar a universalização do ensino fundamental, bem como a remuneração condigna do magistério, conforme evidenciado no próprio texto sob comento. Conforme se nota, o legislador buscou dar maior ênfase ao ensino fundamental, com o objetivo de realmente expungir do quadro brasileiro o analfabetismo, que tanto assusta e torna o Poder Público enfraquecido, já que sem possibilidade de sustentar a antiga estrutura de ente assistencialista. As receitas dos Estados, Distrito Federal e Municípios encontramse comprometidas duplamente: a) no tocante aos 25% (vinte e cinco por cento) e b) no tocante aos 60% (sessenta por cento) dos 25% (vinte e cinco por cento), os quais não poderão ser destinados a outro fim que não ao atendimento do ensino fundamental, com remuneração condigna do magistério. Cumpre acrescer que, além dessas receitas destinadas especialmente à educação fundamental, o legislador criou um Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério FUNDEF, no âmbito de cada Estado e do Distrito Federal, com o intuito de distribuir as responsabilidades, bem como os recursos entre os Estados e seus Municípios, de forma a que a meta brasileira da universalização do ensino fundamental possa ser efetivamente cumprida. O Fundo, que foi regulamentado pela Lei nº 9.424, de 24.12.1996, conforme estabelecido pelo §7º do mesmo dispositivo legal (artigo 60), tem a seguinte redação criadora: “§1º A distribuição de responsabilidades e recursos entre os Estados e seus Municípios a ser concretizada com parte dos recursos definidos neste artigo, na forma do disposto no art. 211 da Constituição Federal, é assegurada mediante a criação, no âmbito de cada Estado e do Distrito Federal, de um Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério, de natureza contábil”. Durante os próximos dez anos, ou seja, até o ano de 2007, contados a partir da data da entrada em vigor da referida Emenda (1º.1.97). 22 224 Revista da EMERJ, v.4, n.13, 2001 Com sua ação previamente delineada, o Poder Público agora está aparelhado para implementar a maior meta constitucional já traçada na história política brasileira para universalizar o ensino fundamental no País. A composição financeira do Fundo obedece às regras impostas pelo §2º, do artigo 6023, do ADCT, ou seja: a) 15% (quinze por cento) dos recursos provenientes dos impostos relativos a operações sobre circulação de mercadorias e sobre prestação de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação (ICMS), incluindo na base de cálculo a parcela devida pelos Estados a seus Municípios, conforme estabelecido no artigo 158, IV, 25% (vinte e cinco por cento) do produto da arrecadação do imposto do Estado sobre operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação; b) 15% (quinze por cento) da parcela de 47% (quarenta e sete por cento) referente à transferência da União aos Estados, Distrito Federal e Municípios do produto da arrecadação dos impostos: sobre rendas e proventos de qualquer natureza e sobre produtos industrializados, entregues na proporção anunciada nas alíneas a e b do inciso I do artigo 159, nos seguintes percentuais: 21,5% (vinte e um inteiros e cinco décimos por cento) ao Fundo de Participação dos Estados e do Distrito Federal e 22,5% (vinte e dois inteiros e cinco décimos por cento) ao Fundo de Participação dos Municípios; c) 15% (quinze por cento) da transferência constitucional da União aos Estados e ao Distrito Federal, no percentual de 10% (dez por cento) do produto da arrecadação do imposto sobre produtos industrializados, respeitada a proporção do valor das respectivas exportações de produtos industrializados. Doutra parte, o custeio dos programas suplementares (de material didático-escolar, transporte, alimentação e assistência à saúde) instituídos pelo artigo 208, inciso VII, da Constituição da República Federativa do Brasil, específicos ao atendimento do educando no ensino fundamental, tem fonte de custeio diferenciada, conforme estabelecido nos parágrafos 4º e 5º do artigo 212: são recursos provenientes de contribuições sociais e outros recursos orçamentários, além da contribuição social do salário-educação. 23 Art. 60....... §2º. O Fundo referido no parágrafo anterior será constituído por, pelo menos, quinze por cento dos recursos a que se referem os ar ts. 155, inciso II; 158, inciso IV; e 159, inciso I, alíneas a e b; inciso II, da Constituição Federal, e será distribuído entre cada Estado e seus Municípios, proporcionalmente ao número de alunos nas respectivas redes de ensino fundamental. Revista da EMERJ, v.4, n.13, 2001 225 O parágrafo terceiro do artigo em questão dispõe que: “A União complementará os recursos dos Fundos a que se refere o §1º sempre que, em cada Estado e no Distrito Federal, seu valor por aluno não alcançar o mínimo definido nacionalmente”. Para atender a essa determinação, a União conta com a destinação de 18% (dezoito por cento) de sua receita resultante de impostos, valendo acrescentar que, no mínimo, 30% (trinta por cento) da destinação constitucional (18%) deve ser usada pela União também para a erradicação do analfabetismo e na manutenção e desenvolvimento do ensino fundamental, conforme estabelecido pelo § 6º do artigo sob comento. Outro ponto que merece relevo está evidenciado pelo § 4º do artigo 24 60 , o qual prevê que a distribuição da verba proveniente do Fundo será proporcional ao número de alunos inscritos no ensino fundamental, de forma a garantir um padrão mínimo de qualidade de ensino. Nessa esteira, a Lei nº 9.424 (LDB), de 24 de dezembro de 1996, dispõe em seu artigo 6º, § 4º, que o valor mínimo será de R$ 300,00 (trezentos reais), valor este que será alterado em razão da flutuação natural dos números-base, verificável anualmente pelo censo escolar, a cargo do Ministério da Educação. A estimativa é de que o valor mínimo anual venha a aumentar, à medida em que o ensino fundamental for se estendendo ao médio, e diminuído for o seu acesso, em razão da redução do crescimento demográfico, o qual, segundo a taxa média geométrica de crescimento da população brasileira, vem mostrando uma tendência regular ao declínio desde a década de 60 25. O Fundo criado também tem como objetivo conceder uma remuneração condigna ao magistério do ensino fundamental. E certamente que não restou desguarnecido esse ponto no texto legal, vindo o § 5º de encontro a essa meta, inclusive com vinculação de percentual específico26/27 . 24 A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios ajustarão progressivamente, em um prazo de cinco anos, suas contribuições ao Fundo, de forma a garantir um valor por aluno correspondente a um padrão mínimo de qualidade de ensino, definido nacionalmente. 25 Em 1960 a taxa foi de 2,89%, em 1970 foi de 2,48%, caindo para 1,93% em 1980). No último período censitário (1991 a 1996) chegou a 1,38%. Contagem da População, 1996. Rio de Janeiro: IBGE, 1997, V.1: Resultados relativos a Sexo da População e Situação da Unidade Domiciliar. P. 19, tabela 3. § 5º Uma proporção não inferior a sessenta por cento dos recursos de cada Fundo referido no §1º será destinada ao pagamento dos professores do ensino fundamental em efetivo exercício no magistério. 26 Assim, para que essa nova melhoria salarial não restasse como norma sem cumprimento, por falta de regulamentação, o artigo 9º, da Lei nº 9.424, de 24.12.96, determinou que os Estados, o Distrito Federal 27 226 Revista da EMERJ, v.4, n.13, 2001 Outra vinculação efetiva para expungir o analfabetismo é feita ao percentual de 18% (dezoito por cento), anuais, das receitas da União, provenientes de impostos, de acordo com o § 6º, da Emenda sob comento28 . Quanto ao estabelecido pelo § 7º: “A lei disporá sobre a organização dos Fundos, a distribuição proporcional de seus recursos, sua fiscalização e controle, bem como sobre a forma de cálculo do valor mínimo nacional por aluno”; a lei complementar de que trata tomou o nº 9.424, de 24.12.1996, e entrou em vigor em 1º de janeiro de 1997. Do que se vê, é certo que a criação do Fundo, com a vinculação de verbas específicas ao atendimento do ensino fundamental, é um instrumento constitucional apto e de grande valor a atender e implementar a meta da educação. 4. DIREITO A UM ENSINO DE QUALIDADE O artigo 206, da Constituição da República Federativa do Brasil, elenca os princípios constitucionais que devem nortear o ensino no Brasil e dentre eles destaca-se o da garantia de padrão de qualidade. E para garantir esse padrão de qualidade, o artigo 214, constitucional, esclarece que o plano nacional de educação, que terá duração plurianual, visará à articulação e ao desenvolvimento do ensino em seus diversos níveis e à integração das ações do Poder Público que conduzam à erradicação do analfabetismo, universalização do atendimento escolar, melhoria da qualidade do ensino, formação para o trabalho e promoção humanística, científica e tecnológica do País. No que toca ao ensino fundamental, de viés prioritário e obrigatório, a Carta Magna estabeleceu diversas garantias específicas a esse nível de instrução, valendo ressaltar: 1º) a criação de programas suplementares com fonte própria de recursos; 2º) o estabelecimento de tratamento prioritário às e os Municípios implementassem essa medida através de um novo Plano de Carreira e Remuneração do Magistério, que assegurasse: a) a remuneração condigna dos professores do ensino fundamental público, em efetivo exercício no magistério; b) o estímulo ao trabalho em sala de aula; c) a melhoria da qualidade de ensino. Os entes federados tiveram o prazo de seis meses para elaboração do Plano, a partir da entrada em vigor da Lei nº 9.424/96, ficando estabelecido que o não cumprimento das condições estabelecidas acarreta sanções administrativas, sem prejuízo das civis ou penais ao agente executivo que lhes der causa. 28 A União aplicará na erradicação do analfabetismo e na manutenção e no desenvolvimento do ensino fundamental, inclusive na complementação a que se refere o §3º, nunca menos que o equivalente a trinta por cento dos recursos a que se refere o caput do art. 212 da Constituição Federal. Revista da EMERJ, v.4, n.13, 2001 227 necessidades do ensino obrigatório, quando da distribuição de recursos públicos; 3º) a criação, através da Emenda Constitucional nº 14/96, do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério – FUNDEF, com constituição financeira específica, diferenciada da do ensino em geral; 4º) o estabelecimento de percentual mínimo de 60% (sessenta por cento) dos 25% aplicáveis necessariamente no ensino, em investimento obrigatório e anual no ensino fundamental; 5º) o estabelecimento de função supletiva da União quanto à complementação de verbas necessárias à erradicação do analfabetismo e à manutenção e desenvolvimento do ensino fundamental, para que distorções regionais não atrapalhem a meta de alfabetização geral da população brasileira; 6º) o estabelecimento do percentual de 60% (sessenta por cento) de cada Fundo (Estados e Distrito Federal) para aplicação direta no pagamento dos professores do ensino fundamental em efetivo exercício no magistério. Não sendo demais frisar que, em havendo insuficiência de arrecadação para suprir a educação fundamental, tanto a União, como os entes federativos podem e devem alterar as alíquotas dos impostos de sua competência, de forma a suprir imediatamente o déficit verificado na prestação desse direito fundamental. Portanto, o conjunto de garantias que cercam o ensino fundamental, dando-lhe formato diferenciado, leva à conclusão de que o padrão de qualidade emergirá, inexoravelmente, do exercício continuativo e cumulativo dos instrumentos constitucionalmente estabelecidos. Entretanto, o legislador infraconstitucional, cioso do conceito subjetivo que poderia aflorar do termo “padrão de qualidade” - podendo prejudicar as necessárias avaliações periódicas dos resultados da aplicação dos recursos do FUNDEF, com vistas à adoção de medidas operacionais e de natureza político-educacional corretivas -, decidiu conceituá-lo objetivamente através dos artigos 13 e seus incisos e 14, da Lei nº 9.424/96, que dispõe sobre a organização do FUNDEF, nos seguintes termos: “Art. 13. Para ajustes progressivos de contribuições a valor que corresponda a um padrão de qualidade de ensino definido nacional e previsto no art. 40, § 4º, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias serão considerados, observados o disposto no art. 2º, § 2º, os seguintes critérios: 228 Revista da EMERJ, v.4, n.13, 2001 I – estabelecimento do número mínimo e máximo de alunos em salas de aula; II – capacitação permanente dos profissionais de educação; III – jornada de trabalho que incorpore os momentos diferenciados das atividades docentes; IV – complexidade de funcionamento. V – localização e atendimento da clientela; VI – busca do aumento do padrão de qualidade do ensino.” “Art. 14. A União desenvolverá política de estímulo às iniciativas de melhoria de qualidade do ensino, acesso e permanência na escola promovidos pelas unidades federadas, em especial aquelas voltadas às crianças e aos adolescentes em situação de risco social.” Logo, o padrão de qualidade garantido pela Constituição passa a ser entendido como a implementação conjunta dos incisos a que se refere o artigo 13 da lei especial em evidência, complementado, nos incisos V e VI, pelo artigo 14, do mesmo diploma legal. Considerando que o padrão de qualidade está representado por critérios objetivos, os quais se encontram nos incisos I a VI, do artigo 13 - ou seja, pelo número mínimo e máximo de alunos em salas de aula; pela capacitação permanente dos profissionais de educação; pela jornada de trabalho que incorpore os momentos diferenciados das atividades docentes; pela complexidade de funcionamento; pela localização e atendimento da clientela; pela busca do aumento do padrão de qualidade do ensino -, destaca-se que os recursos a ele vinculados são: 1) os do FUNDEF (no que se refere à construção do número ideal de escolas para o atendimento dos educandos da localidade, possuindo cada sala de aula um número máximo de alunos que permita o aprendizado e a capacitação permanente dos professores29 , com remuneração condizente e apoiada no percentual de 60% (sessenta por cento) do montante anual, exclusivamente destinado à remuAtualmente o quadro no Brasil é crítico. Cf. a seguinte manchete: Formar professor é prioridade. Folha de São Paulo, 16, out. 1999. Cotidiano, p. 3/6, “...mais da metade das vagas de professores do ensino fundamental existentes hoje no país ainda é ocupada por docentes que não concluíram o curso superior. A LDB exige que todos os professores da educação básica (que inclui o ensino infantil, fundamental e médio) tenham formação superior até 2007. Entretanto, dados divulgados ontem pelo MEC mostram que 801,8 mil vagas são ocupadas por professores sem diploma universitário. Eles representam 53,1% do total de 1,5 milhão de professores do ensino fundamental”. 29 Revista da EMERJ, v.4, n.13, 2001 229 neração do magistério; 2) os recursos da contribuição social e outros recursos orçamentários para atender os programas suplementares de merenda escolar e assistência-saúde do educando do ensino fundamental, além dos recursos da contribuição social do salário-educação para os programas de material-didático escolar e transporte, vez que a implementação conjunta deles demonstra certa complexidade no funcionamento da escola. Portanto, também no que tange à melhoria do padrão de qualidade, com a implementação dos critérios elencados, a Constituição da República Federativa do Brasil não só a conceituou objetivamente, furtando-a do sabor da discricionariedade administrativa, como estabeleceu-lhe uma dotação orçamentária, especificamente vinculada à sua implementação. E, em havendo essa tipificação, não há qualquer espaço para que o administrador público, na matéria, escolha a providência para a realização do interesse de que se trata. Dessa forma, ao Poder Judiciário restaram abertas as portas para julgar qualquer desvio, sendo, portanto, factível a invalidação de ato do Poder Público que caracterize vício legal 30. Ademais, a ausência de cumprimento desses critérios, identificadores do padrão de qualidade do ensino fundamental é motivação suficiente a embasar um pedido de mandamus ao Judiciário, visando à proteção de um direito líquido e certo, sendo o responsável pela não entrega da prestação administrativa do Estado à autoridade pública coatora, que infringiu a lei. Pode-se, por fim, concluir que a nova estruturação da educação fundamental pela Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 Constituição Cidadã - não deixa qualquer margem à discricionariedade, abrindo espaço para que o cidadão venha a exigir do Estado o cumprimento do dever assumido pelo Contrato Constitucional firmado e para o qual toda a sociedade contribui. 5. CONCLUSÃO De todo o exposto, pode-se concluir que: . Direitos existem que guardam obviamente as mesmas características do direito de liberdade, já que dele derivativos, valendo, entretanto, destacar a educação como um deles, pois, sem ela, sequer se terá a compreensão do significado do direito fundamental de liberdade. 30 MELLO, Celso A. Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 4ª ed. São Paulo. Malheiros. 1993, p. 207/8. 230 Revista da EMERJ, v.4, n.13, 2001 . O Estado tem como função precípua realizar os direitos fundamentais, já que a ele se impôs o dever de assegurar o cumprimento do contrato social, proporcionando aos cidadãos as facilidades legais para o exercício dos direitos fundamentais. . O Estado deve existir para, respeitando a liberdade de cada um e congregando as forças de seus componentes, criar, manter e garantir em prol dos seus constituintes um status igualitário de existência digna e respeitável. . A liberdade, como valor, que permite ao homem os meios para efetivamente alcançar aquela liberdade que lhe propicie viver sem qualquer intervenção do Estado, deve visar à igualdade de oportunidades, o que só será possível com educação básica para todos, valendo esta como instrumento da liberdade, integrante do núcleo essencial de direitos que conduzem à cidadania. . A nova Carta Magna, com novos ideais e novas propostas, universalizando o direito fundamental à educação básica e estabelecendo uma série de garantias à sua efetividade foi muito bem-vinda. Nela se encontra traçado todo um arcabouço para a educação brasileira, devidamente estruturada e com verbas vinculadas, por força da Emenda Constitucional nº 14/96. . O atendimento ao direito fundamental da educação básica deve ser concebido como prioritário e, em não se realizando a aplicação dos recursos a ele destinados, ou por desvio, ou por insuficiência de arrecadação, assegurar-lhe o cumprimento com a condenação líquida e certa do órgão competente, inscrevendo-se o débito no rol dos precatórios, já que, por força constitucional, “será obrigatória a inclusão no orçamento de verba necessária ao pagamento de seu débitos constantes de precatórios judiciários”, pode ser uma das possíveis soluções jurídicas aplicáveis, cabendo ao Judiciário inovar. . A inclusão, considerada obrigatória, no orçamento das entidades de direito público, de verba necessária ao pagamento de seus débitos constantes de precatórios judiciários, a decisão judicial servirá como um alerta ao Poder Público, de forma a que possa acionar os meios constitucionais disponíveis para o atendimento do direito à sociedade que ora reclama, enquadrando-se perfeitamente nessa linha os programas suplementares de merenda escolar e assistência à saúde, no ensino fundamental. Revista da EMERJ, v.4, n.13, 2001 231 . A outra possibilidade, em havendo arrecadação menor do que a esperada, será a instituição de outra fonte de recursos orçamentários para atender ao déficit, sendo certo que a União poderá valer-se dos instrumentos tributários já postos à sua disposição na Constituição da República Federativa do Brasil, oportuno citar, por exemplo, a majoração das alíquotas, de forma a permitir um incremento nas suas receitas e, assim, implementar o direito de que ora se trata. Outra alternativa é a redução em outros investimentos, com a conseqüente transferência do incremento orçamentário ao atendimento do direito fundamental da educação básica. . As possíveis distorções que ocorram com relação ao desvio de verba podem ser resolvidas através do remédio heróico da Ação Popular, garantia prevista no artigo 5º, inciso LXXIII, da Lei Básica Brasileira, quando se buscará a anulação do ato administrativo por sua lesividade, além da condenação ao pagamento de perdas e danos dos responsáveis pela sua prática e os beneficiários dele e da Ação Civil Pública, para as hipóteses em que se tenha por escopo impingir determinada obrigação de fazer, de cunho legal, a ente público. . A particular natureza dos problemas da tutela dos interesses coletivos e a necessidade de garantir uma resposta efetiva às exigências sociais de controle das atividades administrativas oferecem argumentos determinantes aos que militam a favor do alargamento dos poderes judiciais, desde que não exista um limite expressamente previsto pelas normas estatutárias. . A interferência do Poder Judiciário obedecerá às disposições legais, valendo ressaltar que a Constituição vinculou, inclusive, conceitos subjetivos, como qualidade de ensino, obtida através da implementação de todos os princípios constitucionais assegurados ao ensino fundamental. Logo, não há se tocar em matéria adstrita à administração pública, porque discricionária. Tudo que pertine à educação fundamental tornou-se matéria legal, portanto, passível de apreciação judicial. . A melhoria do padrão de qualidade, com a implementação dos critérios elencados, também foi brindada pela Constituição da República Federativa do Brasil, que não só a conceituou objetivamente, furtando-a do sabor da discricionariedade administrativa, como estabeleceu-lhe uma dotação orçamentária, especificamente vinculada à sua implementação. Podese, por fim, concluir que a nova estruturação da educação fundamental pela Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 - Constituição Cidadã - não deixa qualquer margem à discricionariedade, abrindo espaço 232 Revista da EMERJ, v.4, n.13, 2001 para que o cidadão venha a exigir do Estado o cumprimento do seu dever assumido pelo Contrato Constitucional firmado e para o qual toda a sociedade contribui. . A presente proposta leva a uma nova visão do Direito, “não como ordem estagnada, mas positivação, em luta, dos princípios libertadores, na totalidade social em movimento, onde o Direito, reino da libertação, tem como limites, apenas, a própria liberdade”. Revista da EMERJ, v.4, n.13, 2001 233