Anais Eletrônicos do IV Seminário Nacional Literatura e Cultura São Cristóvão/SE: GELIC/UFS, 03 e 04 de maio de 2012. ISSN: 2175-4128 1 “A CAUSA SECRETA”: PERVERSÃO SOB A MÁSCARA Clarissa Moreira de Macedo (Mestranda/UEFS) No entendimento de Alfredo Bosi, a ficção de Machado de Assis é “o ponto mais alto e mais equilibrado da prosa realista brasileira” (BOSI,1994, p.174). Entendendo que o conto “A Causa Secreta” atinge este “ponto alto”, o presente trabalho se propõe a analisá-lo. “A Causa Secreta”, de Joaquim Maria Machado de Assis, é um jogo de sensações, no qual pistas são deixadas para instigar o leitor na decifração de seus enigmas. Citando Bosi mais uma vez, o conto mencionado é uma “obra-prima de desenho psicológico” (BOSI, p. 182, 1994). A partir de uma sucessão de encontros que começam fortuitos, mas passam de eventuais a familiares, Garcia e Fortunato, personagens do conto “A Causa Secreta”, tornam-se amigos e sócios. Garcia, homem observador e silenciosamente analítico, após alguns incidentes em que observava Fortunato, sente-se inclinado a conhecê-lo. Nas palavras do narrador, Garcia tinha uma capacidade um tanto especial: “possuía, em gérmen, a facilidade de decifrar os homens, de decompor os caracteres, tinha o amor da análise, e sentia o regalo, que dizia ser supremo, de penetrar muitas camadas morais, até apalpar o segredo de um organismo” (ASSIS, p. 172, 2008). Na ocasião em que vira Fortunato dedicar-se a cuidar de um acidentado, vizinho seu, Garcia é impelido, pelo mistério que se apresentava a ele na figura de Fortunato, a inquietar-se. Após o encontro no qual Garcia auxiliou Fortunato nos cuidados desse ferido, os dois passam a ver-se com frequência, em ocasiões triviais e sem proximidade. A amizade é estabelecida quando Fortunato convida-o a jantar com ele e sua esposa. Depois, a partir da fundação da casa de saúde, ideia, de Fortunato, na qual Garcia e o marido de Maria Luísa são sócios, o conto ganha um fôlego maior de Anais Eletrônicos do IV Seminário Nacional Literatura e Cultura São Cristóvão/SE: GELIC/UFS, 03 e 04 de maio de 2012. ISSN: 2175-4128 2 mistério. É relevante dizer, pela complexidade que gradativamente alcança a narrativa, que enigmas vão sendo revelados, enquanto outros vão surgindo na análise acerca de Fortunato empreendida pelo médico Garcia. Quando trabalhavam na casa de saúde, não havia homem mais dedicado que Fortunato. Era este quem cuidava de tudo e quem tratava das moléstias mais repugnantes que chegavam ao local: [...] aberta a casa, foi ele o próprio administrador e chefe de enfermeiros, examinava tudo, ordenava tudo, compras e caldos, drogas e contas [...] Não recuava diante de nada, não conhecia moléstia aflitiva ou repelente, e estava sempre pronto para tudo, a qualquer hora do dia ou da noite [...] acompanhava as operações, e nenhum outro curava os cáusticos. – Tenho muita fé nos cáusticos, dizia ele. (ASSIS, p. 174, 2008) O narrador leva o leitor, através da visão da personagem Garcia, a compreender que o empenho aplicado, sobretudo no processo, na cura de um enfermo, era inerente ao chefe da casa de saúde. Este sentia um alívio, um êxtase escancarado no cuidado com os pacientes: “Garcia pôde então observar que a dedicação ao ferido da rua de D. Manoel não era um caso fortuito, mas assentava na própria natureza deste homem.” (ASSIS, p. 174, 2008). Entretanto, posterior e sutilmente, vai sendo revelada de modo mais profundo a personagem Fortunato. Como o narrador o demonstra, Fortunato era homem hábil, sabia mascarar seus ‘vícios’. Ao alegar o estudo da fisiologia e da anatomia, rasgava e envenenava gatos e cães. Maria Luísa, não suportando as atrocidades que, sabendo ela, eram pretextos para o exercício do sadismo praticado por Fortunato, pede que Garcia o impeça de continuar praticando-as em casa; pedido que o médico atende. O narrador, porém, instala dúvidas quando afirma que se Fortunato “os foi fazer em outra parte, ninguém o soube, mas pode ser que sim” (ASSIS, p. 174, 2008), indicando ao leitor o caráter dissimulador da personagem. Anais Eletrônicos do IV Seminário Nacional Literatura e Cultura São Cristóvão/SE: GELIC/UFS, 03 e 04 de maio de 2012. ISSN: 2175-4128 3 Fortunato tinha as suas máscaras. Fica subentendido que inicialmente a única a conhecer, ao menos algumas, das máscaras do marido era Maria Luísa. Esta conhecia a perversão, de causar dor no outro para sentir prazer, que compunha o caráter do marido. Neste sentido, o conceito trazido por Battistelli auxilia na leitura do conto: A perversão é uma das três estruturas psíquicas descritas por Freud, ao lado da psicose e da neurose. De acordo com Fleig (2008) perversão é um termo muito antigo, que advém da teologia moral e cristã e significa inversão do suposto natural [...] Então o perverso se caracterizaria por esse pensamento, como aquele cujo comportamento se afastaria do que estaria previsto pela natureza. A perversão era uma noção que abarcava os ditos pecados contra a natureza, todas as inversões da finalidade dada pela própria natureza. (BATTISTELLI, 2008) Diante de um gesto de aparente bondade do marido, contado por Garcia, mas logo desmembrado revelando seu real propósito, a mulher é momentaneamente surpreendida: Contou o caso da rua de D. Manoel. A moça ouviu-o espantada. Insensivelmente estendeu a mão e apertou o pulso ao marido, risonha e agradecida, como se acabasse de descobrir-lhe o coração. Fortunato sacudia os ombros [...] No fim contou ele próprio a visita que o ferido lhe fez, com todos os pormenores da figura, dos gestos, das palavras atadas, dos silêncios [...] um estúrdio. E ria muito ao contá-la. Não era o riso da dobrez. [...] o riso dele era jovial e franco. – Singular homem! pensou Garcia. (ASSIS, p. 173, 2008) Entretanto, ao observar um episódio assustador, Garcia muda de opinião em relação ao seu sócio. Este ‘pune’, lenta e malvadamente, um rato acusado por ele de lhe roubar um importante papel. Aplica-se nesse exercício de modo manso, analítico, prazeroso. O rato demora a sucumbir, passando por queimaduras e cortes: Anais Eletrônicos do IV Seminário Nacional Literatura e Cultura São Cristóvão/SE: GELIC/UFS, 03 e 04 de maio de 2012. ISSN: 2175-4128 4 O líquido flamejava. Entre o polegar e o índice da mão esquerda segurava um barbante, de cuja ponta pendia o rato atado pela cauda. Na direita tinha uma tesoura [...] Fortunato cortava ao rato uma das patas; em seguida desceu o infeliz até a chama, rápido, para não matá-lo, e dispôs-se a fazer o mesmo à terceira, pois já lhe havia cortado a primeira [...] E com um sorriso único, reflexo de alma satisfeita, alguma coisa que traduzia a delícia íntima das sensações supremas, Fortunato cortou a terceira pata do rato, e fez pela terceira vez o mesmo movimento até a chama. O miserável estorcia-se, guinchando, ensanguentado, chamuscado, e não acabava de morrer [...] Faltava cortar a última pata; Fortunato cortou-a muito devagar, acompanhando a tesoura com os olhos; a pata caiu, e ele ficou olhando para o rato meio cadáver. Ao descê-lo pela quarta vez, até a chama, deu ainda mais rapidez ao gesto, para salvar, se pudesse, alguns farrapos de vida [...] aproveitou-o para cortar-lhe o focinho e pela última vez chegar a carne ao fogo. Afinal deixou cair o cadáver no prato (ASSIS, p. 175-176, 2008) Garcia, então, após a cena do rato, decifra o enigma Fortunato: homem que escapava através do sadismo das aflições que o rodeavam: “Castiga sem raiva, pensou o médico, pela necessidade de achar uma sensação de prazer, que só a dor alheia lhe pode dar: é o segredo deste homem.” (ASSIS, p. 176, 2008). Fortunato gostava da aproximação com o caráter abjeto, podre e repulsivo dos pacientes, dos animais, das pessoas. Mas tal aproximação era furtiva. O prazer parecia rápido, fazendo-o recuar logo quando via sua ação finalizada: “Afinal deixou cair o cadáver no prato, e arredou de si toda essa mistura de chamusco e sangue.” (ASSIS, p. 176, 2008). Parecia adquirir uma consciência diferente, ainda que momentânea, das ações praticadas, o que o condicionava a afastar-se do “produto gozo-mal” por ele fabricado. Fato que não o impedia de praticar novas ações com o mesmo teor de prazer que o motivava; pelo contrário, talvez, pelo caráter furtivo das ações, o desejo de praticá-las para sentir novamente prazer crescia. A sádica personagem atraía-se por aquilo que lhe parecia indefeso, doentio. Criaturas assim não apresentariam dificuldades para serem torturadas e manietadas. Anais Eletrônicos do IV Seminário Nacional Literatura e Cultura São Cristóvão/SE: GELIC/UFS, 03 e 04 de maio de 2012. ISSN: 2175-4128 5 Sua esposa era débil, doente e submissa; o que justifica a escolha dela para sua mulher: “Criatura nervosa e frágil” (ASSIS, p. 173, 2008). Baladier (1996), coloca o sadismo como uma agressividade que se exerce contra uma outra pessoa tomada como objeto. O conto não evidencia os sofrimentos de Maria Luísa, mas os sugere. Com a morte da mulher e o desespero de Garcia, Fortunato revela-se ainda mais infrene em sua perversão. Ao descobrir que Garcia amava Maria Luísa e que poderia ter tido um romance com ela, Fortunato sente apenas um arranhão em sua vaidade: “Estacou assombrado [...] Não tinha ciúmes, note-se; a natureza compô-lo de maneira que não lhe deu ciúmes nem inveja, mas dera-lhe vaidade, que não é menos cativa ao ressentimento.” (ASSIS, p. 177, 2008). Garcia sofre. Descobre o forjado do caráter do sócio e perde o ser que representava para ele o amor. Fortunato diverte-se. Neste ponto do conto nota-se a gravidade do problema do médico recém viúvo; para ele não havia amizade, nem qualquer outro valor, moral ou sentimental. Havia lugar somente para seu prazer: Entretanto, Garcia inclinou-se ainda para beijar outra vez o cadáver; mas então não pode mais. O beijo rebentou em soluços, e os olhos não puderam conter as lágrimas, que vieram em borbotões, lágrimas de amor calado, e irremediável desespero. Fortunato, à porta, onde ficara, saboreou tranquilo essa explosão de dor moral que foi longa, muito longa, deliciosamente longa. (ASSIS, p. 177, 2008). O sádico busca o prazer no sofrimento do outro, o que o lança fora dos padrões normais de conduta moral. Através da dor, que pode ser provocada de diversas maneiras, e que, segundo a psicanálise freudiana, vêm do impulso sexual, o sádico provoca humilhações, levando à degradação física e psicológica do outro. Fortunato sentia-se atraído pela doença, pela proximidade com o sofrimento meticuloso e vagaroso de animais e pessoas. Gostava de vê-los penar. O impulso não era sexual no sentido mais corriqueiro. Era sexual no sentido em que a personagem Anais Eletrônicos do IV Seminário Nacional Literatura e Cultura São Cristóvão/SE: GELIC/UFS, 03 e 04 de maio de 2012. ISSN: 2175-4128 6 buscava obter o prazer e o orgasmo através do sofrimento de outro ser, mas sem, necessariamente, fazê-lo envolvendo os órgãos genitais e a prática sexual. Georges Bataille atenta para o seguinte: “nós não podemos, de qualquer maneira, reduzir o impulso sexual ao agradável e ao benéfico. Há nele um elemento de desordem, de excesso que vai até a colocar em jogo a vida daqueles que o seguem.” (BATAILLE, p. 109, 1989). A perversão é um tema, ligado à maldade humana, bastante discutido na contemporaneidade. Abordados pela Literatura e pelo Cinema, em diversos filmes como “A Fita Branca”, “Violência Gratuita”, “A Professora de Piano” e “Cachè”, todos de Michael Haneke – diretor austríaco com formação na Universidade de Viena em teatro, psicologia e filosofia, que discute o humano através de suas perversões e violência, fazendo um cinema ousado e profundo e que muitas vezes ironiza o expectador, jogando com ele –, o sadismo, a violência e as perversões apresentam-se na mídia como algo cada vez mais comum, e ainda assim, estranho e polêmico. De fato são. Envolvendo questões intrincadas da Religião, ramos complexos das Ciências e áreas ainda pouco conhecidas do comportamento humano, as perversões, tão antigas quanto a humanidade, estão cada vez mais à mostra ao homem deste século. Século marcado pelo fluxo intenso da informação. O homem, cada vez mais caótico, múltiplo e fragmentado, inverte valores sociais pertinentes à conduta de uma vivência harmônica sempre que conveniente, direcionando algumas vezes seus instintos a práticas duvidosas e em geral patológicas, como forma de expressão de seu ser reprimido e acorrentado aos padrões da vida pós-moderna: de informações velozes, negócios e mídias, que vão se ultrapassando a todo o momento, gerando um indivíduo atormentado pela pressão exigida por uma eficiência profissional. Pautado num modelo de vida no qual “quem tem mais é melhor”, e por uma lógica de mercado de consumo exagerado de bens, o homem não tem tempo de se voltar para si mesmo, se pensar e se descobrir, fator que gera níveis variados de perturbações: Anais Eletrônicos do IV Seminário Nacional Literatura e Cultura São Cristóvão/SE: GELIC/UFS, 03 e 04 de maio de 2012. ISSN: 2175-4128 7 O conflito verificado nas pulsões de vida e de morte nos levou à conexão em relação à crítica nietzschiana dos valores decadentes, no sentido de o indivíduo expressá-los por meio do sadismo como fenômeno ao mesmo tempo individual e social. (ARAUJO, CABRERA, s.d.). A perversão, seus efeitos e problematizações estão longe de serem esgotados pela Arte, Ciências ou Religião. Em “A Causa Secreta”, a perversão é apresentada e descrita sem a presença de qualquer solução ou indicação de melhora da personagem Fortunato. Machado de Assis cumpre um papel social ao discutir a perversão, fazendo de seu texto literário um modo de reflexão. A solução, no entanto, não foi proposta ou, sequer, mencionada, pois Fortunato continuava a praticar seus atos perversos de forma cada vez mais elaborada – traço que pode ser visto no final do conto, na ocasião da morte de Maria Luísa. Sendo a perversão algo que transcende a manifestação sexual e é oriunda do caráter, sendo relativizada a depender da comunidade, época e espaço no qual é praticada, a personagem sádica machadiana compõe um quadro de dissimulação e crueldade, causando aos que estão ao “seu alcance”, como Maria Luísa, incômodos em níveis variados, ficando impune e, segundo o conto, continuando a praticar atos que geram desconforto, humilhação e, mais ainda, dor, física e psicológica, ultrapassando limites de uma convivência harmônica em sociedade, que no caso do conto mencionado é a sociedade carioca do final do século XIX. REFERÊNCIAS ASSIS, Machado de. A Causa Secreta. In: FERNANDES, Rinaldo de. Capitu mandou flores: contos para Machado de Assis nos cem anos de sua morte. São Paulo: Geração Editorial, 2008. Anais Eletrônicos do IV Seminário Nacional Literatura e Cultura São Cristóvão/SE: GELIC/UFS, 03 e 04 de maio de 2012. ISSN: 2175-4128 8 BALADIER, C. Masoquismo e sadismo. In: FLEIG, M.; ZAHAR, Jorge. Dicionário enciclopédico de psicanálise: O legado de Freud e Lacan. Pierre K. Rio de Janeiro: 2008. BATAILLE, Georges. A literatura e o MAL. Tradução de Suely Bastos. Porto Alegre: L&PM, 1989. BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. 40ª ed. São Paulo: Cultrix, 1994. CABRERA, Ranny; ARAUJO, Paulo Roberto Monteiro. Dor e prazer: as origens do sadismo. Disponível em: < http://www.sbpcnet.org.br/livro/61ra/resumos/resumos/6475.htm > Acesso em: 16 ago. 2011. FREUD, Sigmund. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de S. Freud. In: In: BATTISTELLI, Bruna M. A. causa secreta, conto de Machado de Assis. Disponível em: <http://www6.ufrgs.br/psicopatologia/wiki/index.php/A_causa_secreta,_conto_d e_Machado_de_Assis> Acesso em: 22 set. 2011.