OS PODERES CONSTITUÍDOS E A FUGA DA ALIENAÇÃO
Jakeline Goldoni Pereira
(UNIOESTE)
[email protected]
Marcos Douglas Pereira
(UNIOESTE)
[email protected]
A filosofia por meio das temáticas de interesse no entre-lugar da juventude
É corrente ouvirmos em rodas de conversas que concentre jovens e nas salas de aulas,
nos momentos mais conflitantes, opiniões acerca da dificuldade e desinteresse – por parte de
nossos alunos pelas disciplinas e conteúdos das grades curriculares do Ensino Médio. A
disciplina de Filosofia é uma das que se apresentam como novidade aos alunos e uma das que
traz maiores dificuldades àqueles que não têm grande interesse pela área de Ciências
Humanas. Tal perspectiva pode derivar do fato de que os conteúdos sócio históricos e a forma
cronológica com que são tratados didaticamente os saberes sistematizados não atraem o
interesse dos adolescentes e tornam-se para eles um fardo constante, trazendo o desejo de que
o curso se acabe rapidamente para que não haja nunca mais a necessidade de realizar leituras
consideradas por eles tão complexas.
Entendemos ser necessário compreender o jovem em sua amplitude e reconhecer seu
entre-lugar na história do pós-guerra antes de idealizar formas de estabelecer o diálogo e atraílos para as maravilhas do aprendizado acadêmico. Podemos verificar no livro da jornalista
Melissa de Miranda, Inércia: a Geração Y no limite do tédio (2011) por meio do empréstimo
da voz aos jovens, permitindo que falem de sua geração, que, notadamente, reconhecem viver
uma espécie de hedonismo, que representa a busca pelo prazer a qualquer custo, sem o qual
sua própria vivência parece perder o sentido, levando a uma espécie de tédio, que inclui
instituições como a escola e o aprendizado do curso de filosofia
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A estudante Diana, de 26 anos, vai além. Ela afirma que essa necessidade
incessante de buscar novidades é um reflexo do capitalismo. A colegial
justifica que tanto ela quanto seus amigos cresceram em um momento no
qual a obsessão com o mercado e o consumo se tornara tão absurda, que
isso afetou a sua maneira — e a de outros jovens — de viver. "Não é só a
tecnologia e o bombardeamento de informações. É tudo, é a nossa vida
inteira, é como e sob que circunstâncias nós fomos criados. Claro que o
capitalismo já existia antes, mas acho que vivenciamos o auge disso tudo,
sabe? Porque não temos líderes políticos significativos, não temos
movimentos culturais fortes... Aliás, não temos unificação alguma em
qualquer área que seja. A tendência é justamente o contrário: segregar cada
vez mais e especializar tudo. Vivemos na era do individualismo puro!",
lamenta ela. (MIRANDA, 2011, p.11)
Percebemos em diversos outros depoimentos ao longo do livro – como nas palavras da
jovem Diana, acima – a preocupação dos adolescentes com sua própria forma de ver o mundo
e as coisas a seu redor. O sistema capitalista, tão discutido por Karl Marx, e sua demonização
– tratada pelo autor como fetichização, parecem incomodar aos jovens e representa ponto de
partida importante para o estudo da filosofia contemporânea e ponto de contato entre o
interesse do aluno e as discussões importantes estabelecidas pelo curriculum escolar.
Uma das formas de introdução – alternativos à tradicional aula expositiva – para a
dialética dos conteúdos pode ser a utilização da mídia musical que muito interessa e atrai o
interesse do público juvenil, que engrossa as fileiras de cadeiras nas salas de aula. O rock,
especialmente aquele produzido em fins dos anos 1970 até a metade dos anos 1990 apresenta
rico material – especialmente por meio de suas letras e pela catarse proporcionada pelo seu
ritmo, arranjos e instrumentos – por discutir os rumos e mecanismos do capitalismo em sua
fase de desenvolvimento e que suscitou maiores críticas.
Analisar as letras das músicas, aproveitando-se do encantamento produzido pela
melodia forte e marcante do rock, configura importante aliado para a discussão de temáticas
em sala de aula – especialmente as de Ensino Médio, na qual a juventude aguarda ansiosa por
ideias e técnicas que dialoguem com sua ebulição de sentimentos e pensamentos. Seguindo a
teoria – aplicada à literatura – de Arnold Hauser, em seu livro Sociología del arte, é
importante a função do mediador como agente importante no processo de desenvolvimento
para futuras obras. Entendemos como obra significativa – além da literária – a lírica musical,
como a das letras do rock, podendo esta corresponder à teoria de Hauser (1977) sobre as obras
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artísticas. O autor da letra musical guarda certo distanciamento de seu público, não só físico
como cronológico. No caso das letras produzidas por músicos dos anos 1980, tal
distanciamento pode ser equacionado na tríade autor-obra-público pela figura do mediador.
No caso específico da letra musical (esquecida nos “baús” do tempo), compreendemos ser o
professor um importante mediador entre o rock nacional dos anos 1980 e o aluno de Ensino
Médio dos dias atuais, para a efetivação de um aprendizado mais significativo dos conteúdos
constantes no curriculum da disciplina de filosofia.
Compreendendo ser a década de 1980 como uma das mais fortes e produtivas da seara
do gênero musical a que nos referimos no Brasil, entendemos ser a banda Engenheiros do
Hawaii uma das que apresentam maior riqueza na profundidade das letras e em possibilidades
líricas com análises filosóficas consistentes e forte posição ideológica. Tal grupo musical
apresenta uma diversidade de letras com marcações ricamente estéticas por meio de
paralelismos, paradoxos, metáforas, entre outras figuras de linguagem e estilo que analisam
subjetiva e objetivamente temas da filosofia como a alteridade, o socialismo libertário, a
alienação e o consumo.
Engenheiros do Hawaii: arautos da filosofia no rock brasileiro ?
Considerados pelos fãs e até pela crítica como um dos maiores representantes do rock
filosófico, os gaúchos do Engenheiros do Hawaii iniciaram sua jornada de sucesso por volta
de 1985. O grupo musical - formado em 1984, pelo vocalista e guitarrista Humberto
Gessinger, juntamente com o guitarrista Carlos Stein, o baixista Marcelo Pitz e o baterista
Carlos Maltz - foi reconhecido inicialmente como pregador dos ritmos Art rock, pós-punk,
folk rock, rock progressivo, pop rock e rock alternativo. Popular por suas críticas ácidas, e
canções que criticavam com fina ironia os desmandos do capitalismo, a hipocrisia humana e o
egocentrismo, seus integrantes tiveram importantes influências do rock internacional como
Pink Floyd, Rush, Bob Dylan, Neil Young, Iron Maiden e os Beatles.
Estudantes da faculdade de Arquitetura da UFRGS, os jovens formaram uma banda
temporária que objetivava participar de um festival que ocorrera em protesto à paralisação das
aulas. O projeto deu tão certo que as apresentações culminaram na formação da banda. O
próprio nome Engenheiros já representa uma sátira (gênero preferido da banda) aos
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estudantes de Engenharia, que andavam de bermudas floridas de surfistas e com os quais tinha
certa rixa.
A formação alterou-se até chegar ao seu núcleo mais forte, formado por Gessinger, o
guitarrista Augusto Licks e o baterista Carlos Maltz. Em 1986 gravaram o primeiro disco
Longe demais das capitais, na qual aparece a letra de forte conteúdos filosófico Toda forma
de poder, que contrapõe a teoria socialista e o anarquismo. A discografia do grupo contou
ainda com a gravação, em 1987, de “A revolta dos dândis”, que compõe uma trilogia que
aponta para o rock progressivo, com “Ouça o que eu digo, não ouça ninguém” (1988) e
“Alívio imediato (1989)”. As letras apresentam nesta fase de início da “maturidade” musical
da banda diversas antíteses, paradoxos e citações literárias de filósofos renomados como
Albert Camus e Jean-Paul Sartre.
Com a explosão do sucesso da banda e sua forma alternativa de pensar e se apresentar
vieram acusações de elitismo e fascismo. A análise das letras da banda confundiam e abriam
margem para diversas interpretações e horizontes de expectativas. O grupo ainda lançou, em
uma fase mais direcionada ao interesse de mercado, porém sem perder sua qualidade estética,
os álbuns O papa é pop (1990), no qual investia em letras de forte apelo, regravações e nos
solos de guitarra. Houve grande aclamação de público e de crítica – especialmente a
internacional, como o jornal The New York Times – e rejeição por parte da crítica nacional.
Em 1991, o grupo lança o disco Várias variáveis retomando um som menos eletrônico e
progressivo que apontava para as raízes do rock’n’roll, misturado à homenagem à tradição
gauchesca do músico Gaúcho da fronteira. Em 1992 o grupo lança Gessinger, Licks & Maltz,
mesclando elementos da MPB ao rock progressivo. Uma guinada para o que viria a ser
sucesso no final dos anos 1990 foi a gravação de um disco semi-acústico Filmes de guerra,
canções de amor, gravado na sala Cecília Meirelles, no Rio de Janeiro, no ano de 1993,
seguindo o ideal de se gravar um disco ao vivo a cada 3 álbuns, como praticava a banda Rush.
Os arranjos traziam a tendência dos Blues, música tradicionalista e erudita.
A partir de 1993, discussões acerca dos rumos da banda causaram a desagregação de
seus membros e uma batalha jurídica pelo nome Engenheiros do Hawaii. Em 1995, o grupo,
com novos componentes, grava o álbum Simples de coração. Um som mais pesado, tendendo
para o tradicionalismo gaúcho, a inclusão de um instrumento inédito para o grupo: o
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acordeão, em diversas músicas e letras auto reflexivas, como a da música A promessa. Sem o
sucesso de outrora o grupo lança o disco Humberto Gessinger trio, em 1996. No ano seguinte,
após a troca de nome da banda e perda do baterista, ressurge o nome original, com novos
integrantes, e a manutenção de Gessinger, com o lançamento de Minuano. A volta das
tendências eletrônicas e a inclusão do violino, demonstram um toque de folk. Alguns anos
mais tarde, 1999, já em nova gravadora, lançam Tchau radar, com novas e reflexivas
composições.
A fase mais contemporânea da banda vem já nos anos 2000, com mais um disco ao
vivo 10.000 destinos, com a participação do músico Paulo Ricardo. Seguindo uma tendência
de mercado, e mais uma vez com nova formação, Gessinger – herdeiro constante da banda
Engenheiros do Hawaii – lança com novos músicos o CD Surfando Karmas & DNA (2002),
com influências do punk rock. Em 2003 surge Dançando no campo minado, no qual
Gessinger demonstra sua preocupação com os temas atinentes à globalização, suas
preocupações com a ideologia e política. Em 2005, vinte anos após o início da banda, surge
Acústico MTV e, em 2007, Acústico II: novos horizontes. Em 2008, Gessinger interrompe as
atividades da banda Engenheiros do Hawaii para trabalhar em projetos próprios.
Como podemos perceber a banda é encabeçada e sustentada ideologicamente por
Humberto Gessinger que, com suas letras fortes e marcadamente ideológicas, reflete as
dúvidas da juventude; reflexões acerca da indústria cultural pós-moderna, abusando dos
trocadilhos, antíteses, paralelos e paradoxos, desconstruindo clichês, slogans e desafiando a
crítica e o pensamento estabelecido. Diante da profusão apresentada pelo vasto quadro
estético da lírica do grupo, encontramos rico material para demonstrar aos alunos as
interessantes aplicabilidades da filosofia pós-moderna em sua rotina.
Alteridade, socialismo libertário, alienação e consumo: as aulas de filosofia por meio da
análise lírica
Assim como é possível no texto literário, nos apoiamos na teoria de Hans Robert Jauss
– que reflete a atualização constante do sentido do texto por parte do leitor – para analisar o
poder refletido das letras da banda Engenheiros do Hawaii no ensino da filosofia no Ensino
Médio de uma escola pública da cidade de Cascavel. Jauss (1994) prega a tese de que o
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horizonte de expectativa do leitor se destrói lentamente ao avançar da observação do texto
alvo como objeto estético. A reconstrução desse horizonte é concluída por meio das
experiências do leitor que provocam nele novas sensações estéticas. É a partir da
profundidade dessa reconstrução e das sensações provocadas que temos o nível estético do
texto. Ao trabalhar a letra das músicas, apoiada pela melodia do rock – que encanta aos jovens
– percebemos alto nível de sensações estéticas nos alunos, que aclaram os saberes discutidos
em sala de aula ao atrelar sua profundidade ao conteúdo exposto canonicamente por meio dos
livros didáticos.
Um dos temas trabalhados com os alunos em sala de aula foi o socialismo em
contraponto ao anarquismo. Percebemos que alguns jovens cultuavam símbolos anárquicos e
visuais punk. Para refletir sobre o tema, além de textos pesquisados pelos alunos a pedido do
professor, propusemos a audição da música “Toda forma de poder” (1986), extraída do
primeiro álbum da banda Engenheiros do Hawaii. Expusemos aos alunos a discussão acerca
do clichê que prega que o anarquismo relembra a popular bagunça e o fato de que não há uma
definição sistemática para o tema. Trabalhamos com os alunos o conhecimento acerca do fato
de que o anarquismo surgiu como uma espécie de dissidência do marxismo, que analisava a
ditadura do proletariado como a solução ao problema de um possível retorno da burguesia.
Foi discutido com os alunos a problemática apresentada por Bakunin (1814-1865) de que uma
“ditadura do proletariado” causaria a construção de uma hierarquia elitizada, derrubando a
tese da passagem do socialismo ao comunismo.
A música “Toda forma de poder” foi apresentada aos alunos como interpretação do
fato de que mesmo aos que pregam o socialismo-comunismo como uma teoria perfeita e
aplicável, surge o contraponto anárquico - objeto de reflexão de Gessinger e dos Engenheiros
do Hawaii. Debatemos com os alunos o equilíbrio entre as teorias, expresso na música “Eu
presto atenção ao que eles dizem, mas eles não dizem nada. Fidel e Pinochet tiram sarro de
você que não faz nada. E eu começo a achar normal que algum boçal atire bombas na
embaixada” (Gessinger, 1986). Na letra trabalhamos a crítica evidente às tentativas de
aplicação do socialismo que falharam ao longo da história. Foi apresentado aos alunos a teoria
sobre o movimento Hippie e sua proposição durante a Guerra do Vietnã, em 1967. Por meio
da exposição teórica os alunos foram motivados a buscar, na letra da música, após ouvir sua
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melodia, elementos que contrapusessem o socialismo ao anarquismo. Localizamos e
debatemos a partir da letra da música o trecho “Toda forma de poder é uma forma de morrer
por
nada.
Toda
forma
de
conduta
se
transforma
numa
luta
armada.
A história se repete, mas a força deixa a história mal contada” (Gessinger, 1986). Após
trabalhar as teorias pregadas pelo socialismo debatemos em classe outro contraponto
importante extraído da letra da música “O fascismo é fascinante, deixa a gente ignorante e
fascinada.
É
tão
fácil
ir
adiante
e
esquecer
que
a
coisa
toda
tá
errada
Eu presto atenção no que eles dizem, mas eles não dizem nada”. (Gessinger, 1986). A
atividade, desenvolvida ao longo de duas aulas aprofundou os conteúdos teóricos sugeridos a
uma turma de segunda série do Ensino Médio, trazendo alto grau de satisfação a grande
maioria dos alunos que expressavam sua vontade em cantar a música outras vezes.
Em outra aula foi apresentada aos alunos a música “Guardas da fronteira” (1987). A
letra, que apresenta versos fortes e complexos como “Acontece que eu não tenho escolha. Por
isso mesmo eu sou livre. Não sou eu o mentiroso. Foi Sartre que escreveu o livro. Não sou
afim de violência, mas paciência tem limite” (Gessinger, 1987), foi trabalhada com os alunos
através de seus contrapontos poéticos, da posição do eu-lírico e explorando a biografia do
filósofo Jean Paul Sartre. Trabalhamos os conceitos de Alteridade, discutidos pelo filósofo
Antonio Gramsci e sua relação com o outro. A partir de sua dialética e a ideia de que o rosto
do outro é o que nos provoca, fomentamos o debate sobre a alteridade.
Observamos os preceitos da interação entre texto e leitor na análise da música
“Guardas da fronteira” (1987)
[...] o ponto de vista em movimento do leitor não cessa de abrir os dois
horizontes interiores do texto, para fundi-los depois. Esse processo é
necessário porque, como vimos, somos incapazes de captar um texto num só
momento (ISER, 1999, p. 17).
Ao discutir a música com os alunos após sua audição coletiva percebemos que a interpretação
do conteúdo Alteridade apresentou-se mais rica, ampliando após uma segunda audição. Novos
horizontes foram abertos e os alunos questionaram trechos como “Além do dia-a-dia. Que
esvazia a fantasia. Além do mito que limita o infinito. Além do dia-a-dia”. (Gessinger, 1987).
Foi questionada a relação do mito clássico grego e do mito moderno e aproveitamos para
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trabalhar a questão do tédio juvenil pós-moderno surgido no pós-guerra, ampliando o
conteúdo ao filósofo Éric Hobsbawm e trabalhando a questão do bem material e dos objetos
apresentados na canção, a partir das palavras do filósofo e historiador e de sua auto análise
acerca da própria obra, trazendo ao aluno a possibilidade da reflexão ampliada
Se eu me arrependo? Não, não creio. Tenho plena consciência de que a
causa que abracei revelou-se infrutífera. Talvez não devesse ter seguido esse
caminho. Mas, por outro lado, se os homens não cultivam o ideal de um
mundo melhor, eles perdem algo. Se o único ideal dos homens é a busca da
felicidade pessoal, por meio do acúmulo de bens materiais, a humanidade é
uma espécie diminuída. (HOBSBAWM, 1999, p. 28).
Ampliando a questão dos temas subjetivos e objetos concretos trabalhados por meio da
segunda música em outras duas aulas o gênero musical roxk foi apresentado como solução de
discussão ampliada ainda na quinta e sexta aulas (terceira semana) para os alunos da segunda
série do Ensino médio. A música trabalhada então foi “A promessa” (1995), que apresenta
uma ruptura cronológica em relação às outras duas anteriores.
Questões pós-modernas latentes como a alienação e o consumo foram localizadas com
facilidade através de duas audições e leituras da letra da música. O consumo da nossa era
contemporânea ficou evidente para discussão por meio dos versos “Propaganda é a arma do
negócio. No nosso peito bate um alvo muito fácil. Mira à laser. Miragem de consumo. Latas e
litros de paz teleguiada. Estou ligado à cabo a tudo que eles têm pra oferecer” (Gessinger,
1995). Por meio da notoriedade propositada pelos alunos destacamos a teoria da mais-valia,
na qual Karl Marx observa o alcance da mercadorização da sociedade
no capitalismo, o mercado surge dotado do poder mágico de produzir valor,
mais valor, caindo-se, assim, no fetichismo da mercadoria. O valor da
mercadoria deixa de estar dependente do seu valor de uso e, a partir daí, as
relações pessoais entre os indivíduos transformam-se em relações entre
coisas (Marx, 1979, p. 49)
Ampliamos ainda as relações entre a teoria da alienação por meio do consumo ao tema
tratado nas duas aulas anteriores: a alteridade. Observamos os versos “Tu me encontrastes de
mãos vazias. E eu te encontrei na contramão. Na hora exata, na encruzilhada, na highway da
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Superinformação. Estamos tão ligados, já não temos o que temer” (Gessinger, 1995).
Trabalhamos então, com os jovens, o paralelismo construído pelo autor entre a relação de
consumo, tão forte na era pós-moderna e a relação entre humanos, muito menos fetichizada.
Ainda foram explorados os versos iniciais que demonstram a teoria da rejeição do
socialismo por uma via anárquica, observada pelos estudantes nos versos “Não vejo nada (o
que eu vejo não me agrada). Não ouço nada (o que eu ouço não diz nada). Perdi a conta das
pérolas e porcos que eu cruzei pela estrada.” (Gessinger, 1995).
Para não concluir: o rock na análise da filosofia contemporânea – uma via de mão dupla.
O sucesso esperado ao propor a audição e a leitura das letras de rock entre jovens de
faixa etária dos 15 aos 18 anos foi tão certo quanto à proposta. A ideia da expectativa de
horizontes dos adolescentes foi cumprida com alegria. A teoria de Jauss (1994), trazida da
leitura do texto literário, se configura tranquilamente na leitura lírica do texto musical, afinal,
os dois são textos escritos de alto apelo emocional enquanto objeto estético. Os estudantes
realizaram no objeto estético sua consolidação, reconhecendo no mundo contemporâneo
inúmeras discussões ampliadas para o campo dos historiadores, sociólogos, filósofos e até
psicólogos. Neste sentido configurou-se alto aproveitamento das aulas, com maior prazer
estético e aprendizado efetivo durante as aulas de filosofia, sociologia e história.
A proposição de Iser (1996), que dá conta das “brechas” abertas no texto para a
inserção das vivências do leitor se mostrou eficiente na leitura da lírica musical do rock. Os
jovens acrescentaram suas visões e aflições de mundo, “preenchendo” o objeto estético com
suas visões e dialética contemporânea. O reflexo das aflições de mundo demonstrou que o
jovem sai do ostracismo e do tédio que sentia em relação às aulas para o protagonismo em
relação ao curriculum.
Para não concluir um trabalho planejado para seis aulas, divididas em três blocos
surgiu, por sugestão dos alunos, a ampliação da discussão por mais duas aulas. O interesse
pelo rock inteligente de Humberto Gessinger e dos Engenheiros do Hawaii trouxe à luz, por
inserção de um dos adolescentes, a curiosidade quanto a uma profunda e reflexiva letra, a da
música “Ninguém = ninguém” (1992). Planejamos então mais duas aulas e exploramos mais a
fundo a letra produzida nos primeiros anos de carreira do grupo.
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Observamos que a letra de Gessinger (1992) dialoga fortemente com o texto literário
de George Orwel, A revolução dos bichos. O trecho literário “Todos os animais são iguais,
mas uns são mais iguais que os outros”. (Orwell, 2006 p.135.). Na letra de Gessinger (1992),
São todos iguais. E tão desiguais. Uns mais iguais que os outros. (Gessinger, 1992). Ao
analisar estes dois trechos intertextuais os alunos verificaram que tratava-se de uma análise
fria da Revolução Russa e dos desvios dos caminhos propostos pelo socialismo-comunismo
onde, quando todos deveriam apresentar-se como iguais, foram desigualizados pela formação
de uma hierarquia interna que fazia uns mais importantes e com mais privilégios do que os
outros companheiros.
Os jovens puderam então experimentar seu horizonte de expectativas quebrado e a
teoria do efeito estético consolidado ao observar mais trechos reveladores do gênero rock
“Há pouca água e muita sede. Uma represa, um apartheid.” (Gessinger, 1992), onde
demonstra a quebra da promessa do socialismo russo, ampliando o contexto para uma
pesquisa nos livros de história acerca do que ocorreu para a morte de milhões de pessoas na
antiga União Soviética.
Outros trechos da lírica do rock foram experimentados “Me assusta que justamente
agora. Todo mundo (tanta gente). tenha ido embora”. No trecho os alunos perceberam tratarse de uma análise da fuga buscada pelos povos russos e até cubanos que fugiam do regime
socialista/comunista. Ainda chamou a atenção e foi trazido para o debate o excerto “O que me
encanta é que tanta gente. Sinta (se é que sente) ou minta (desesperadamente). Da mesma
forma” (Gessinger, 1992), que demonstra a hipocrisia humana e o cerceamento de
informações, descoberto pelos alunos ao ler a história acerca da antiga URSS, Alemanha
Oriental e outras repúblicas socialistas, frente à realidade levantada pela teoria anarquista já
debatida nas duas primeiras aulas. Longe de representar uma crítica a outros regimes
governamentais, analisou-se o ponto de vista de diversos outros filósofos citados por
Gessinger e sobre as próprias acusações que sofreu pelos posicionamentos ideológicos.
Leituras e audições que encantaram aos alunos e trouxeram o rock, tão apreciado por eles,
para sua rotina de estudos por aproximadamente quatro semanas.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
GASPARI, Elio. “A roda de Aquarius” In: A Ditadura Envergonhada. São Paulo:
Companhia das Letras, 2002. p.234
GESSINGER, Humberto. “Toda forma de poder” In: Longe demais das capitais. RCA.
1986. CD.
GESSINGER, Humberto. “Guardas da fronteira” In: A revolta dos dandis. RCA. 1987. CD.
GESSINGER, Humberto. “Ninguém = ninguém” In: Gessinger, Licks & Maltz. BMG. 1992.
CD.
GESSINGER, Humberto. “A promessa” In: Simples de coração. BMG. 1995. CD.
HAUSER, Arnold. Sociología del arte. Barcelona: Labor, 1977.
ISER. Wolfgang. O ato da leitura: uma teoria do efeito estético, volume II. Tradução de
Johannes Kretschmer. São Paulo: Editora 34, 1999.
JAUSS, Hans Robert. A história da literatura como provocação à teoria literária.
Tradução de Sérgio Tellaroli. São Paulo: Editora Ática, 1994.
MARX, K., 1979 [1867], O Capital. Lisboa, Edições 70.
MIRANDA, Melissa de. Inércia: a Geração Y no limite do tédio. Aparecida: Ideias &
Letras, 2011.
ORWELL, George. A Revolução dos Bichos. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
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Os poderes constituídos e a fuga da alienação.