REVISTA LITTERIS
ISSN: 1983 7429 Número 3, novembro 2009
“O sertão é do tamanho do mundo” 1
Lizaine Weingärtner Machado (UFSC, Florianópolis, Brasil) 2
Resumo: O objetivo deste trabalho é analisar a obra Vidas secas de Graciliano Ramos
tendo a versão fílmica, de Nelson Pereira dos Santos, como contraponto. O trabalho
visa, também, mostrar a relação e a identificação das personagens com o meio árido,
típico do sertão nordestino, em ambas as versões, a literária e a cinematográfica.
Palavras- chave: Vidas secas; Graciliano Ramos; Sertão; Cinema Novo, Nelson Pereira
dos Santos.
Abstract: The aim of this paper is to analyse the work Vidas secas of Graciliano Ramos
as counterpoint to its filmic version of Nelson Pereira dos Santos. The work also aims to
show the relation and the identification of the characters with an arid milieu, typical of
the northeastern backlands, in both versions, the literary and the cinematographic.
Keywords: Vidas secas; Graciliano Ramos; Backlands; Cinema Novo, Nelson Pereira
dos Santos.
O romance Vidas secas (1938), do escritor Graciliano Ramos, constitui-se de
uma narrativa fragmentada onde há uma “autonomia absoluta” entre seus treze
capítulos, parecendo quase que um conjunto de contos. A obra de Graciliano narra,
basicamente, a luta pela sobrevivência da família de Fabiano e Sinhá Vitória,
personagens de uma história que enfoca as condições de existência de um povo
castigado pelo sol e pelas engenhosidades do poder no sertão nordestino.
Neste trabalho, pretendo analisar a referida obra de Graciliano Ramos, Vidas
Secas, tendo a versão fílmica da obra como contraponto. Tal análise visa discutir a obra
moderna de caráter neo-realista de Graciliano – que buscou mostrar o absurdo da
miséria e do embrutecimento do povo sertanejo – e perceber a relação das personagens
1
Trabalho proposto para a disciplina Textualidades Contemporâneas; Prof. Dr. Jair Tadeu da Fonseca;
Semestre 2008/2, Fragmento de Grande Sertão: veredas de João Guimarães Rosa.
2
Lizaine Weingärtner Machado é bacharelanda e licencianda do Curso de Letras – Língua Portuguesa e
Literaturas da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC); Pesquisa a poesia leminskiana sob
orientação do Prof. Dr. Jair Tadeu da Fonseca; E-mail: [email protected].
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com o meio árido que lhes cerceia e reflete em ambas as versões, a literária e a
cinematográfica.
Cada capítulo da obra de Graciliano apresenta uma perspectiva, às vezes a de
Fabiano, noutra a de Sinhá Vitória etc. e, desse modo, há sempre um novo foco a cada
ponto de vista das diferentes personagens, ou seja, o ponto de vista da narrativa é
sempre a de um “outro”, não há hegemonia por parte da figura do narrador. O leitor e,
veremos também, o espectador, partilham das aflições e da fadiga dos seres descritos,
mas também compartilham com eles de seus pequenos desejos, como a cama de couro
tão almejada por Sinhá Vitória ou a população de gordos preás do imaginário da
cachorra Baleia que “[...] era como uma pessoa da família, sabida como gente.”
(RAMOS, 2008, p.34). No entanto, nem o narrador, nem as personagens nos apontam
uma saída para eliminar a condição de oprimidos e meros “viventes” dos seres de
Graciliano, e isso não é um dado aleatório, pois “Se há algo a „cobrar‟ de cineastas e
escritores, é o sentido de suas invenções – incluído o narrador – no conjunto de relações
internas à obra, relações que definem a contribuição de cada aspecto para as
significações do filme ou do romance.” (XAVIER, 1983, p.14).
Em Vidas secas há uma absurda identificação das personagens com o mundo
que nos é narrado. A paisagem seca e árida confunde-se com as personagens e isso se
deve, em grande parte, ao método compósito da escrita de Graciliano. O autor utiliza
uma linguagem por vezes áspera, onde busca dizer-nos só o essencial, constitui-se de
modo “a palo seco”, como diria o poeta João Cabral de Melo Neto, aliás, a escrita de
Graciliano equipara-se à poesia de João Cabral quando o poeta nos diz que “Catar feijão
se limita com escrever: joga-se os grãos na água do alguidar e as palavras na folha de
papel: e depois, joga-se fora o que boiar.”
É notável a secura da família de retirantes que, fugindo da seca no nordeste
brasileiro, acaba incorporando os ares da paisagem em seus traços psicológicos, pois a
aspereza do ambiente é incorporada ao trato social por onde o meio determina a
linguagem. E é a linguagem a principal temática da obra, que salienta o processo de
animalização acarretado nos personagens “viventes, bichos” e também a quase ausência
dela, pois, muitas vezes, os grunhidos e o silêncio são as formas de provocar o outro em
Vidas secas.
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Há um íntimo diálogo entre o cinema novo (apoiado pelo neo-realismo italiano)
e o realismo moderno de Graciliano Ramos, prova disto é a bem sucedida adaptação
cinematográfica de Vidas secas feita por Nelson Pereira dos Santos. E que, segundo
Paulo Emílio Salles Gomes, em Cinema: Trajetória no subdesenvolvimento, “[...]
resultou num filme que, pesquisando e refletindo a condição subumana do vaqueiro
nordestino, coloca-se pela sua universalidade entre os melhores já realizados no Brasil.”
(GOMES, 2001, p.80).
A adaptação fílmica foi realizada entre 1962/3 em Alagoas e, posteriormente,
lançada em 1963 e tem, além da direção, roteiro de Nelson Pereira dos Santos e
fotografia de Luiz Carlos Barreto e José Rosa. E, segundo Glauber Rocha, foi com esse
filme que o diretor paulistano cinemanovista, Nelson Pereira dos Santos, “[...] dá um
salto [...] e se coloca na mesma pista por onde correm os grandes autores de hoje – no
caso e na maioria os italianos dos começos do neo-realismo e Jean-Luc Godard, que
introduz a dialética na desmontagem.” (ROCHA, 2004, p.63).
A sinopse da obra de Pereira dos Santos segue, basicamente, o romance de
Graciliano, onde nos é contada a saga de uma família de retirantes em meio a duas
grandes secas no sertão nordestino, no entanto, o filme apresenta-nos uma datação (a
luta pela sobrevivência da família de Fabiano acontece entre os anos de 1940-2, dado
que não é comum ao romance de 1938). Embora haja essa diferença de temporalidade
entre as duas obras, isso se torna apenas um mero fator de diferenciação entre elas, pois
o que realmente importa é a riqueza existente em ambas as obras, vistas de modo
independente, e o caráter de denúncia de uma realidade ainda existente, seja nos anos
30, época de escritura do romance; nos anos 60, período de feitura do filme, ou até
mesmo hoje: a da assustadora miséria que assola o país e acaba por gerar
embrutecimento aos milhares de “pobres-diabos” detentores de vidas castigadas pela
seca e pela injustiça social. E é essa veracidade que contribuiu para o reconhecimento
do livro e, posteriormente, do texto fílmico, pois como nos diz Glauber Rocha,
O que fez do cinema novo um fenômeno de importância internacional
foi justamente seu alto nível de compromisso com a verdade; foi seu
próprio miserabilismo, que, antes escrito pela literatura de 30, foi
agora fotografado pelo cinema de 60; e, se antes era escrito como
denúncia social, hoje passou a ser discutido como problema político.
(ROCHA, 2004, p.65).
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O filme de Nelson Pereira dos Santos resgata esse caráter denunciador da obra
de Graciliano, segundo Célia Aparecida Ferreira Tolentino em artigo publicado em O
rural no cinema brasileiro, já que a adaptação fílmica
[...] inicia-se com uma espécie de advertência, chamando o cidadão
comum, o espectador, às falas: „Esse filme não é apenas a
transposição fiel para o cinema de uma obra imortal da literatura
brasileira. É antes de tudo um depoimento sobre a dramática realidade
social de nossos dias e extrema miséria que escraviza 27 milhões de
nordestinos e que nenhum brasileiro digno, pode mais ignorar.‟ Isto
está colocado em letras brancas sobre um fundo negro antes mesmo
dos créditos da fita, conclamando o espectador a prestar atenção de
forma muito particular, pois a intenção do filme é a de ir para além do
espetáculo, é incomodá-lo em sua passividade indigna diante da
miséria e reclamar-lhe um posicionamento. (TOLENTINO, 2001).
Portanto, parto da idéia-base de que mesmo que uma obra seja baseada em outra,
são, ainda sim, obras distintas e independentes, onde a qualidade maior, não
necessariamente, é imposta sempre à obra antecessora, no sentido de que um livro
sempre será superior a uma adaptação fílmica por ter-lhe sido o texto-base. Trato, aqui,
de Vidas secas como obras independentes e tentarei aludir às diferenças entre esses dois
meios semióticos – a literatura e o cinema, pois partilho humildemente da idéia de
Randal Johnson que diz ser
[...] muito mais produtivo, quando se considera a relação entre
literatura e cinema, pensar na adaptação, como quer Robert Stam,
como uma forma de dialogismo intertextual; ou como quer James
Naremore, que vê a adaptação como parte de uma teoria geral da
repetição, já que narrativas são de fato repetidas de diversas maneiras
e em meios artísticos ou culturais distintos [...]; ou como Darlene
Sadlier, que propõe levar em consideração as circunstâncias históricas,
culturais e políticas da adaptação; ou ainda como José Carlos Avellar,
com a metáfora do desafio dos cantadores do Nordeste, que
improvisam livremente em torno de um determinado tema.”
(JOHNSON, 2003, p.44-5).
A literatura nacional foi relida pelo Cinema Novo e, assim, utilizada como base
para um projeto bastante engajado politicamente, no entanto, a grandiosidade desses
filmes não é tida só por esse fator, pois
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Se o Cinema Novo adaptou livros de Mário de Andrade, José Lins do
Rego, Graciliano Ramos e Jorge Amado, cada filme tratou de definir a
sua leitura da tradição literária, levando em conta que intervir no
processo cultural e, se possível, na sociedade nas décadas de 1960 ou
1970 não era a mesma coisa que escrever livros nos anos 1920, 1930,
1940. (XAVIER, 2003, p.62),
por isso e, por tantos outros fatores, Vidas secas (1963), baseado no romance homônimo
de Graciliano Ramos, pode e deve ser respeitado e, principalmente, prestigiado.
O filme de Nelson Pereira dos Santos apresenta um resgate da precisão narrativa
de Graciliano ao utilizar uma fotografia árida em preto e branco; economia de diálogos
e, principalmente, ao fazer uso do som direto com seus ruídos naturais (segundo o
diretor, só alguns diálogos foram dublados posteriormente). As falas desencontradas
também são um ponto alto do filme (como na cena em que Fabiano e Sinhá Vitória em
frente a uma fogueira protagonizam uma série de falas sobrepostas que quase
caracterizam um diálogo ininteligível). Essas medidas foram adotadas, segundo Randal
Johnson, pois “no filme, o monólogo interior no estilo indireto livre desaparece,
cedendo lugar a diálogos diretos e esparsos. A luta interna de Fabiano com a linguagem,
por exemplo, não existe; o que recebemos é o fato de sua inarticulação.” (JOHNSON,
2003, p.55).
Nelson Pereira dos Santos preocupou-se em expor a “riqueza da pobreza” por
meio dos detalhes, onde a fotografia em preto e branco dá uma dimensão bastante
realista do cenário escaldante do sertão nordestino e onde a câmera funciona como o
papel do narrador em terceira pessoa no romance e, assim, o filme apresenta uma
linearidade maior que a encontrada no texto literário, pois alguns capítulos do livro são
aglutinados no texto fílmico de modo a parecer uma história mais contínua, pois embora
seja uma adaptação intersemiótica, a narrativa fílmica lança mão do mesmo intuito da
narrativa literária: expor o contexto da injustiça social e salientar a circularidade e a
continuidade da exploração daqueles e tantos outros “viventes”.
A circularidade é a característica principal de Vidas secas – o texto fílmico data
esse período de 1940-2 –, onde a rotina da família de retirantes é regida pelo ciclo da
seca e o seu desfecho, tanto no livro quanto no filme, que pode ser dimensionado pelo
trecho seguinte:
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E andavam para o sul, metidos naquele sonho. Uma cidade grande,
cheia de pessoas fortes. Os meninos em escolas, aprendendo coisas
difíceis e necessárias. Eles dois velhinhos, acabando-se como uns
cachorros, inúteis, acabando-se como Baleia. Que iriam? Retardaramse, temerosos. Chegariam a uma terra desconhecida e civilizada,
ficariam presos nela. E o sertão mandaria para a cidade homens fortes,
brutos, como Fabiano, sinha Vitória e os dois meninos. (RAMOS,
2008, p.128)
Isso nos dá a idéia de que ainda há essa circularidade de sofrimento e opressão
(representados pelo fazendeiro, pelo soldado amarelo ou pelo ingrato destino), pois
O romance abre-se com a caminhada dos retirantes, em busca de um
lugar menos castigado pela seca. Encerra-se com outra, que, afinal, é o
mesmo caminhar. Tem-se, assim, o efeito de circularidade, pois se
prevê a retomada da mesma fuga. Nada se altera: „Mudança‟ e „Fuga‟
distinguem-se apenas no nome; são rotas de quem pretende desviar-se
da morte. O deslocamento para o Sul – miragem final – não é nem
confirmado nem negado. É apenas uma esperança, e isso é decisivo
para manter acesa a chama da vida. (CASTRO, 1997, p.50).
A quase ausência de diálogos e comunicação, muitas vezes feita através de
grunhidos onomatopaicos, dá uma dimensão da representatividade da família de
Fabiano no meio onde vivem – os indivíduos descritos quase não tem voz. São
oprimidos até pela natureza, onde a falta de perspectiva da família chega a ser
desconfortante para o leitor e ainda mais para o espectador. Fabiano, Sinhá Vitória e
seus meninos figuram quase sem expectativas em um meio altamente desolador – seco e
infindável – que chega a apresentar-se de forma desumanizada ao ponto de a cachorra
Baleia caracterizar-se de modo mais humano que eles nas duas narrativas – a literária e
a cinematográfica. Aliás, no romance, mas, em especial, no filme, a morte da cachorra
Baleia é um dos pontos mais emocionantes, onde ferida por Fabiano, a cachorra como
em uma miragem ainda vê preás (sua antiga caça), mas já não tem forças para capturálos – há uma ânsia de correr e os caçar –, mas já não há energias (só vertigens) e o som
dos carros de boi anunciam seu fim.
Em Vidas secas, o silêncio predomina: há sons apenas da escassa chuva, dos
animais, dos parcos diálogos e dos carros de boi, que abrem e encerram o filme, e que o
caracterizam sonoramente, já que o som oriundo dos carros de boi combina com a
paisagem da narrativa e são desconcertantes e aflitivos para o espectador, pois o som
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peculiar parece fundir-se com as imagens de luz estourada, propostas por Nelson Pereira
dos Santos.
Fabiano é o personagem mais refém da linguagem em Vidas secas e, em se
tratando dele, ela é por vezes ausente e quase sempre gutural. Maurice Blanchot, no
capítulo intitulado Literatura e o direito à morte em A parte do fogo, afirma que “[...]
falar é um direito estranho” (BLANCHOT, 1997, p. 311) e esse direito não é concedido
devidamente ao “vivente” Fabiano, pois ele apresenta uma complexa relação de
indignação e passividade diante do enigma da linguagem, da qual ele se mostra
desfamiliarizado e, sobretudo, temeroso. A personagem esboça um afastamento da
relação de poder promovida pela linguagem e isso faz com que ele seja explorado e se
encontre em uma situação aporética, já que não sabe se desafia a linguagem ou se
continua à margem dela e, eis aí, um dos principais tormentos de Fabiano, também
lexicalmente um pobre-diabo, pois “o que mais o atormenta é a impotência de não se
sentir „dono‟ da própria linguagem, que lhe é subtraída pela condição social adversa. O
que mais o anima é a perspectiva de que, algum dia, seus filhos possam vir a dominá-la”
(CASTRO, 1997, p.67) e, talvez, encerrem seu ciclo de dominação.
A secura sertaneja é enfatizada em ambas as obras pelo uso de uma linguagem
sem rodeios, onde o estilo “a palo seco”, anteriormente citado, pode ser aludido em
relação à ausência de trilha sonora, pois assim como os cantores da região de Sevilha –
que cantam sempre à capela dispensando o acompanhamento musical – o diretor e
roteirista de Vidas secas opta pela ausência de trilha sonora convencional e faz do som
desagradável dos carros de bois a sonoridade mais marcante da narrativa fílmica. Os
únicos momentos marcados por música são aqueles que assinalam para o espectador que
a família de Fabiano tem direito apenas ao som agoniante dos carros de bois, pois
enquanto a banda de músicos toca na praça (há a marca de não pertença de Fabiano e da
família àquele ambiente festivo, já que é aí que Fabiano é preso e leva uma surra de
facão por “desacatar” o soldado amarelo) e o mesmo ocorre no momento em que a filha
do fazendeiro, patrão de Fabiano, tem aulas de violino (que é justamente o momento em
que Fabiano é, descaradamente, roubado pelo patrão mais uma vez). Inegavelmente,
segundo Randal Johnson,
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A cultura de elite é representada pelas lições de violino clássico dadas
à filha do fazendeiro no começo do filme. Essa seqüência – que ocorre
quando Fabiano vai à vila num carro de boi – também oferece um
exemplo do sutil humor do diretor. A trilha sonora do filme é
engenhosa, proporcionando um momento de „uso estrutural do som‟.
O som não diegético das rodas do carro de boi acompanha os letreiros
do filme. Mais tarde o som é diegetizado quando vemos Fabiano no
carro de boi e ouvimos o som ao mesmo tempo. Nesse ponto o som
faz parte de um trocadilho aural no qual o ranger do carro de boi se
modula ao som do violino arranhado. No decorrer do filme, o som do
carro de boi torna-se uma espécie de sinédoque auditiva que encapsula
o Nordeste, por meio de sua denotação (o carro de boi evoca o atraso
da região) e de sua conotação: o som, que é muito desagradável,
constitui por si só uma estrutura agressiva. Simultaneamente, a roda
opera como metáfora, lembrando, em sua circularidade, os períodos
cíclicos de seca na região. Na seqüência do violino, o som do carro de
boi modulado ao som do violino equipara a cultura de elite com a
repressão. (JOHNSON, 2003, p.51).
A circularidade das narrativas de Vidas secas, em especial, a fílmica, representa,
de certo modo, o futuro da família de “viventes” e parece nos dizer que o ciclo de
opressão, infelizmente, não está em vias de extinção e quem nos dá a entender isso é a
cachorra Baleia na cena em que diante da afirmação de Sinhá Vitória de que no futuro a
família teria uma cama de couro – símbolo da prosperidade familiar – Baleia sentencia
sua descrença e enfado com um longo e “irônico” bocejo canino. No entanto, faço a
ressalva de que esse seja, talvez, só mais um dado cinematográfico, pois, efetivamente,
“[...] Vidas Secas caminha numa direção marcada pela cautela de quem não se permite
avançar conclusões.” (XAVIER, 1983, p.150).
Só é possível concluir, efetivamente, que ambas as narrativas de Vidas secas, a
literária e a cinematográfica, são propositadamente ásperas, “[...] mas a verdade que
carrega em sua dura poesia é tão densa, que o torna permeável a todas as
sensibilidades.” (CASTRO, 1997, p.90).
REFERÊNCIAS
BLANCHOT, Maurice. A parte do fogo. Rio de janeiro: Rocco, 1997.
CASTRO, Dácio Antônio de. Roteiro de leitura: Vidas secas de Graciliano Ramos.
São Paulo: Ática, 1997.
GOMES, Paulo Emílio Sales. Cinema: trajetória no subdesenvolvimento. São Paulo:
Paz e Terra, 2001.
REVISTA LITTERIS
ISSN: 1983 7429 Número 3, novembro 2009
JOHNSON, Randal. Literatura e cinema, diálogo e recriação: o caso de Vidas Secas. In:
PELLEGRINI, Tânia (org). Literatura, cinema e televisão. São Paulo: Senac/Itaú
Cultural, 2003.
MELO NETO, João Cabral de. Obras Completas. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995.
RAMOS, Graciliano. Vidas secas. Rio de Janeiro: Record, 2008.
ROCHA, Glauber. Revolução do Cinema Novo. São Paulo: Cosac Naify, 2004.
TOLENTINO, Célia Aparecida Ferreira. O rural no cinema brasileiro. São Paulo:
Editora da Unesp, 2001.
XAVIER, Ismail. Sertão mar: Glauber Rocha e a estética da fome. São Paulo:
Brasiliense, 1983.
XAVIER, Ismail. Do texto ao filme: a trama, a cena e a construção do olhar no cinema.
In: PELLEGRINI, Tânia (org). Literatura, cinema e televisão. São Paulo: Senac/Itaú
Cultural, 2003.
* Lizaine Weingärtner Machado é bacharelanda e licencianda do Curso de Letras –
Língua Portuguesa e Literaturas da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC);
Pesquisa a poesia leminskiana sob orientação do Prof. Dr. Jair Tadeu da Fonseca; Email: [email protected].
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