ENTREVISTA O sócio do prazer Flávio Gikovate, pioneiro da terapia sexual no Brasil e estudioso do amor, exorta mulheres e homens ao erotismo livre de falsas expectativas O consultório imita o dono – e nem é preciso ser psicanalista para perceber que a semelhança passa longe da mera casualidade. Trata-se de uma bela casa nos Jardins, região nobre de São Paulo, mobiliada com a espécie de despojamento que induz à elegância. Em paredes alvíssimas, vêem-se quadros coloridos, delirantes, explosões de criatividade assinadas por pintores como Claudio Tozzi, Newton Mesquita, Gilberto Salvador, a nata da arte contemporânea brasileira. É nessa galeria do bom gosto que o psiquiatra e psicanalista Flávio Gikovate atende. Cumpre uma agenda semanal de 70 consultas em média, sentado, horas e horas a fio, numa austera poltrona de couro. Roberto Setton/Época O paulistano de 58 anos, nascido na Rua Oscar Freire, no mesmo bairro, ampliou a paciente capacidade de escuta em três décadas de trabalho no confessionário das aflições humanas. Ao deixar o consultório, no entanto, liberta a curiosidade para que ela possa vagar pelo mundo. Adora uma prosa e não foram poucas as vezes em que perdeu admiradores por não abrir mão de uma boa polêmica. Como pensador, milita no campo das paixões. Foi o primeiro sexólogo a atuar no Brasil, nos idos de 60, quando o planeta ainda decifrava pesquisas de William Masters e Virginia Johnson, médicos americanos que romperam o lacre em torno dos estudos sobre sexo. “Fiquei fascinado com o tema e tratei de fazer meu trabalho”, admite. O que fez foi construir uma teoria respeitável em 21 livros – fora as centenas de artigos publicados em jornais e revistas –, ao longo de 25 anos de escrita ininterrupta. Incentivado por Ceci, a companheira cheia de desvelos, cujos olhos estão sempre atentos aos originais, tornou-se um best-seller nas estantes de psicologia. Já vendeu mais de 500 mil exemplares para profissionais da área, educadores e gente, muita gente, disposta a desvendar impulsos reprimidos e desejos insondáveis. “Não faço psicologia barata”, informa o implacável crítico dos manuais de auto-ajuda. Formado em medicina pela Universidade de São Paulo, filho de pai trotskista e mãe esquizofrênica, Gikovate perdeu completamente a cerimônia com as origens. “Eu só poderia ter ido parar na psiquiatria”, ironiza. Nos piores momentos do regime militar, mergulhou no estudo das fobias na Universidade de Londres. De volta ao Brasil, preferiu escrever sobre amor e sexo, domínios dos quais não pretende se despedir tão cedo. É um otimista. Acredita que somente agora mulheres e homens estão aptos a viver as experiências libertárias dos anos 60. É disso que trata nesta entrevista concedida a Época, numa manhã de inverno. Época: Em seu livro mais recente, A Libertação Sexual, o senhor diz que hoje o sexólogo é uma espécie em extinção. Por quê? Flávio Gikovate: A figura do sexólogo surgiu há 30 anos, no mesmo período em que a jornalista americana Shere Hite publicou um trabalho instigante. Ela demonstrou que o orgasmo clitoriano não era uma afronta à maturidade feminina, como Freud afirmara. Reconheço que esse foi um marco, embora hoje eu veja Shere Hite como uma figura patética, uma escritora a serviço de regras tolas e fórmulas pasteurizadas. Mas, até os anos 70, o único orgasmo feminino possível era o vaginal. Ela ajudou a demolir esse tabu ao afirmar que o clitoriano poderia ser mais intenso. Comecei por aí, escrevendo para adolescentes. Época: Sobre que temas o senhor escrevia nesse período? Gikovate: Eu dizia que masturbação não é crime nem pecado, que orgasmo clitoriano existe, que ejaculações rápidas são manifestações naturais em meninos ansiosos, que o tamanho do pênis não é importante. Fui influenciado por Masters e Johnson. Eles propunham a utilização da mulher no tratamento das disfunções sexuais masculinas. Época: Como assim? Gikovate: Cheguei a sugerir a pacientes que fossem a prostíbulos para discutir dificuldades sexuais com as mulheres de lá. Alguns até vinham com as prostitutas a meu consultório. Nós conversávamos a três, sem problemas. Era uma técnica eficiente. Época: Esses pacientes eram casados? Gikovate: Eram, em geral, solteiros. Jamais estimulei um paciente a trocar a parceira estável por uma companhia reserva. Não tive tanta ousadia... Época: A técnica caiu em desuso? Gikovate: Sim. Houve um divisor de águas nas últimas três décadas. O ficar que os jovens inventaram no final dos anos 80 revolucionou o cenário das relações. Inúmeras terapias também foram abandonadas em conseqüência do avanço técnico-científico do mundo. Hoje mulheres e homens estão procurando o apoio da química. Essa é a reviravolta do século XXI, e, nela, o Viagra constitui o marco. Não foi à toa que se tornou o remédio mais vendido do mundo. Época: Remédio resolve tudo? Gikovate: De modo algum. Noto uma curiosa mudança de conduta por parte dos laboratórios. Eles não mais propagam remédios, agora fazem publicidade das doenças. Quando foi lançado o Prozac, os anúncios ensinaram o que é depressão. Laboratórios fizeram o mesmo com moléstias da próstata, ao pôr à venda o Proscar, e com as dificuldades de ereção, ao lançar o Viagra. Precisamos ficar atentos a esse comércio de doenças batizadas com rótulos novos. Época: O Viagra tem melhorado a vida sexual dos homens? Gikovate: Sim, especialmente dos mais velhos. Noto, contudo, que, depois que o homem atinge determinada idade, a relação sexual fica mais exigente e a ereção se dá em contextos favoráveis. Do ponto de vista físico, o Viagra é eficaz. Do ponto de vista psicológico, nem tanto. Época: Vem aí o Viagra feminino? Gikovate: Sim, mas será a Batalha de Waterloo dos laboratórios farmacêuticos: vai dar tudo errado. A mulher precisa de uma relação sexual ainda mais qualitativa que o homem. Depende de ajustes na parceria para ter prazer e não vai responder quimicamente. Época: Além de procurar as drogas, muitos apelam para a cirurgia plástica a fim de se tornar mais bonitos e desejáveis. Vivemos a era do bisturi? Gikovate: Vivemos a era das soluções fáceis. Vaidade não pode ser confundida com narcisismo. Vaidade é prazer erótico. Está relacionada à sexualidade, não ao ego. É a excitação que a pessoa sente quando é admirada, quando é objeto de olhares, quando alcança algum tipo de notoriedade. Época: Então somos todos vaidosos. Gikovate: Sim e desde sempre. O Eclesiastes, um dos textos do Antigo Testamento, começa justamente assim: “Vaidades das vaidades, tudo é vaidade”. Até o frade franciscano que renuncia a tudo é um tremendo vaidoso. Mulheres entendem muito do assunto, pois sabem se fazer cobiçadas para dominar os homens. É uma tecla em que venho batendo desde os anos 70: o homem é muito mais sensível ao estímulo visual que a mulher. Época: Isso está mudando? Gikovate: Não. Quando destaquei essa diferença, as feministas quase me espancaram. Disseram que os homens impediam as mulheres de desejá-los, quando eles jamais fariam isso, pois é algo contrário aos próprios interesses. Até nos países islâmicos, onde o machismo impera, os homens proíbem as mulheres de se exibir aos outros, mas jamais de se exibir para eles próprios. No mundo ocidental, o jogo é claro: o homem deseja a mulher atraente. Época: E a mulher? Gikovate: Ela valoriza o homem atlético, mas, no fundo, sente que beleza física não é tudo. Hoje vivemos a exacerbação do exibicionismo. Há corpos em exposição na televisão, no cinema, na publicidade, e esse fenômeno pode levar à banalização do desejo visual. É oferta demais, assim como num campo de nudismo. Existe lugar mais desmotivante que um campo de nudismo? Época: No livro, o senhor associa intimamente sexo e agressividade. Machões são bons amantes? Gikovate: Essa é uma questão delicada. É importante localizar em que momento o machismo desabrocha no homem. No passado, era comum meninas de 15, 16 anos desprezarem meninos da mesma idade, trocando-os por rapazes mais velhos, moços que muitas vezes já tinham carro, cursavam uma faculdade. Elas exercitavam o poder de sedução diante destes, humilhando aqueles. A frustração decorrente dessa discriminação não é banal. Muitos garotos, hoje homens feitos, cresceram com sentimentos de raiva e vingança em relação às mulheres. Época: A velha guerra dos sexos ainda não foi superada? Gikovate: Homens e mulheres ainda são rivais no terreno sexual, embora haja sinais de um futuro mais harmonioso com os jovens de hoje. Época: Que sinais são esses? Gikovate: O machismo perdeu um antigo aliado: a dramática iniciação sexual dos meninos. Eles foram submetidos a vestibulares nas camas das prostitutas. Eu vivi isso. Minha iniciação foi no cais do porto, em Santos. Fui com um primo para a zona, a fim de transar com uma pobre mulher que cheirava mal e outra que reclamava de uma gravidez já visível. Elas nos receberam no mesmo cômodo! Foi terrível porque, apesar de tudo, eu não falhei. E tinha a obrigação de falhar. Época: Como assim? Gikovate: Teria de ser minimamente delicado para não me submeter àquela situação. Mas eu tinha de funcionar e atacar aquela mulher. Ainda hoje, quando me lembro disso, falo com emoção. Época: A iniciação sexual ficou menos traumática? Gikovate: Na geração do ficar, meninas e meninos da mesma faixa etária se relacionam, trocam carícias, vivem experiências juntos. Bem recebidos, os garotos escapam à frustração da puberdade que leva ao machismo. E as garotas crescem com mais controle sobre sua sexualidade. Rapazes hoje chegam aos 20 anos sem tanta necessidade de encher a boca para dizer “gostooosa” para a mulher que passa. Eles não precisam ser tão fissurados. Época: Os homens estão mudando? Gikovate: Mais que as mulheres. Nos anos 60, com a invenção de pílula, elas inauguraram um tempo de mudanças. Agora é a vez deles. O feminismo acabou emancipando os homens. O que é o machismo? Um conjunto de mandamentos. Não posso chorar, tenho de ser bom de briga, estarei disponível sempre que a mulher estiver a fim de transar, não posso broxar, não posso deixar de preencher expectativas, tenho de ser protetor, provedor, sedutor etc. A vantagem que o machista julgava ter, nesse contexto, era chamar a mulher de burra! Hoje um rapaz pode beijar a moça, ou mesmo ir para a cama com ela, sem se comprometer ou, o que é melhor, sem pagar. Época: Sexo virou sinônimo de amor? Gikovate: Jamais! Há anos separo as duas coisas, ao contrário de muitos psicanalistas para os quais o amor é uma versão sublimada da sexualidade, como ensinou Freud. Discordo do mestre. Época: O que é o amor? Gikovate: Amor tem a ver com a experiência traumática do nascimento. O bebê registra, no útero da mãe, o bem-estar mais intenso e genuíno. Nascer é romper o aconchego, é defrontar- se com a definitiva sensação de desamparo. Vivemos, e amamos, sempre na tentativa de recuperar o elo perdido. Época: O que é o sexo? Gikovate: É inquietação auto-erótica. As pessoas buscam prazer para si mesmas. Na verdade, o sexo é uma experiência profundamente solitária. O orgasmo chega a travar o pensamento dos amantes. Daí os tântricos considerarem a prática sexual o melhor caminho para a meditação, pois ela desliga os indivíduos do mundo exterior. Época: O ideal não é unir sexo e amor? Gikovate: Todo humanista sonha com isso, mas não é assim que as coisas acontecem. Já ouvi de muitos pacientes a seguinte declaração: “Minha mulher jamais poderia ser minha melhor amiga”. Isso faz todo sentido. Se a mulher é amiga, não existe a tensão, a raiva intrínseca. Se não existe raiva, não há desejo. Sem desejo, não há sexo. Agora é que os jovens começam a propor o fim da aliança entre sexo e agressividade. Época: O que fazer então? Gikovate: Primeiro, as pessoas precisam entender a diferença entre sexo e amor. Ternura nada tem a ver com tesão. Claro, há procedimentos de transição entre uma situação e outra, como o beijo na boca. Mas, na hora do sexo, a experiência que se vive é única, pessoal e intransferível. Depois do orgasmo, tem-se uma sensação de vazio. O ideal, então, é que o amor volte a funcionar. Época: Dê um exemplo. Gikovate: Quando o casal atinge o clímax e, minutos depois, se abraça amorosamente, significa que ambos voltam a se aconchegar, a se amparar. É como se mudassem de registro. Parabéns para quem consegue. Mas não é fácil. Época: Suas teses não levam a um mundo mais individualista? Gikovate: Ao contrário. Estamos nos preparando para a boa intimidade. A má, ninguém mais agüenta. A boa intimidade pressupõe uma dose de individualismo para que as pessoas esperem menos das outras, se cobrem menos e se relacionem melhor. Não cabe mais, no mundo de hoje, a mulher-esposa que passa o dia em casa, esperando que o marido chegue para que sua vida, enfim, ganhe algum sentido. Época: O senhor estende suas teorias ao universo gay? Gikovate: Sim. A associação entre sexo e agressividade é ainda mais visível entre gays e lésbicas. O homossexual masculino é, em geral, aquele garoto delicado que foi objeto de chacota de outros meninos, às vezes do próprio pai. Como ele não preenche os requisitos do macho, cresce com raiva daquele que, mais tarde, e não por acaso, passará a desejar sexualmente. Sei que a tese é polêmica, mas insisto: aonde vai a raiva, segue o desejo. Ao contrário do que se pensa, o homossexual masculino não tem nada contra a mulher. O acerto de contas dele é com os homens. Época: Por essa lógica, gays e machões estariam próximos? Gikovate: Eles se aproximam justamente por não conseguir desvincular o desejo da raiva. Pense bem, os palavrões masculinos mais grosseiros tangenciam esse universo de homens com homens. Por isso soam tão estranhos na voz de uma mulher. Época: Em convivências mais harmoniosas, onde ficam o ciúme e a traição? Gikovate: Nas comunidades hippies, jovens libertários discutiam na cama o fim da propriedade privada. Tudo corria bem até o primeiro casalzinho se apaixonar. Daí, a conversa mudava de tom: a mulher é minha, ninguém mexe com ela. Ou, ele é meu, não divido. Felizmente, as gerações que vêm por aí perceberão com nitidez que amor é sentimento, casamento é sociedade e prazer é busca individual. Laura Greenhalgh