VII COLÓQUIO INTERNACIONAL MARX E ENGELS
SOBRE AS RELAÇÕES ENTRE FILOSOFIA E ECONOMIA EM DIALÉTICA DO
CONCRETO DE KAREL KOSIK
Pedro Leão da Costa Neto
Professor UTP
GT 2: Os marxismos
A história do marxismo no século XX está marcada por dois grandes momentos de intenso
desenvolvimento teórico associados a importantes acontecimentos históricos, que desencadearam
uma profunda crise no interior das duas grandes formações teóricas então hegemônicas no interior
do pensamento marxista - o marxismo da II Internacional e a “síntese filosófica marxistaleninista”. Estes dois momentos se caracterizaram por uma profunda reflexão sobre a teoria
marxista, sobre suas relações com a tradição teórica passada, como também, por uma tentativa de
elaborar um diálogo crítico e fecundo com as diferentes concepções teóricas burguesas, no intuito
de superar o nível teórico alcançado por estas últimas.
O primeiro momento é resultante da vitória da Revolução Russa e da definitiva falência do
marxismo da II Internacional (em particular das elaborações de Kautsky e Plekhanov); o que
desencadeou um período de intensa elaboração teórica, cujas primeiras manifestações já podemos
identificar nos Cadernos Filosóficos de Lenin:
1) Plekhánov critica o kantismo (e o agnosticismo em geral) mais de um ponto de vista
materialista vulgar que materialista dialético (...).
2) Os marxistas criticaram (no início do século XX) os kantianos e os humistas mais à maneira
de Feuerbach (e de Büchner) do que à de Hegel”. (LÉNINE, 1989, 163).
E acrescenta algumas linhas abaixo:
Não é possível compreender plenamente “O Capital” de Marx e particularmente o seu I
capítulo sem ter estudado a fundo e sem ter compreendido toda a Lógica de Hegel. Por
conseguinte, 1/2 século depois nenhum marxista compreendeu de Marx!! (LÉNINE, 1989,
164).
Entretanto, as criticas mais sistemáticas endereçadas a tradição do marxismo da II
Internacional partiram das obras de György Lukács, Antonio Gramsci, Karl Korsch.
O segundo momento foi desencadeado pela leitura do relatório de Kruschev frente ao XX
Congresso do PCUS (Sobre o culto à personalidade e suas consequências) e o subsequente
processo de desestalinização, que levou tanto na Europa Ocidental, como na Europa Oriental, a
2
elaboração das mais diversas criticas à “síntese filosófica oficial” e abriu intensos debates na
França, na Itália e em diferentes países da Europa Oriental. Em um primeiro momento surgiram
diferentes concepções, que se caracterizam por uma proximidade ou mesmo, por uma capitulação
frente as correntes filosóficas hegemônicas no ocidente (o neopositivismo e o existencialismo), e
que encontraram uma expressão na grande difusão das diferentes versões do “humanismo
socialista” e de retorno ao “jovem Marx” (importantes exemplos destes debates são a coletânea de
Erich Fromm dedicado ao Humanismo Socialista (FROMM, 1984)) e o número especial da revista
Recherches Internationales a la lumière du marxisme (Sur le Jeune Marx, 1960). Entretanto, ao
lado destas correntes, que muitas vezes se caracterizaram por um ecletismo teórico, apareceram
igualmente, concepções que procuraram repensar de forma radical e sistemática o pensamento de
Marx, a sua relação com as diferentes tradições teóricas, tanto com o patrimônio teórico prémarxista como marxista, como também com as grandes correntes teóricas contemporâneas.
Exemplos, destes grandes esforços reflexivos de superação do dogmatismo são, entre outros: o
pensamento de Althusser e da sua escola na França, , a reflexão de Galvano dela Volpe e da sua
escola (entre os quais se destacaram, entre outros, Lucio Colletti e o economista Giulio Pietranera)
e de Cesare Luporini na Itália, Evald Ilienkov na URSS, György Lukács na Hungria e Karel Kosik
e Jindřich Zelený na Tchecoslováquia, para nos determos apenas nos nomes mais expressivos. É
importante destacar, que entre estas elaborações teóricas, as reflexões de Althusser, de Ilienkov, de
Zelený e de Kosik passavam por uma tentativa releitura de O Capital, partindo de perspectivas
diversas.
O objetivo da presente comunicação é procurar problematizar as relações entre economia e
filosofia em uma destas elaborações, a saber, a desenvolvida por Karel Kosik em sua obra
Dialética do Concreto (KOSÍK, 1965; KOSIK, 1969)1, na qual, o filósofo tcheco procurou
justamente elaborar uma crítica de diferentes concepções teóricas que se desenvolveram desde os
finais do século XIX, entre as quais, a fenomenologia de Husserl e Heidegger, a teoria do “homo
oeconomicus”, a teoria dos fatores, assim como de diferentes leituras reducionistas da obra de
Marx. A problematização das relações entre filosofia e economia na referida obra, nos permitirá
destacar a importância central da retomada do projeto de “crítica da economia política”, tanto para
uma análise da obra de Marx, como para a elaboração de uma critica das limitações teóricas das
diferentes concepções teóricas burguesas.
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Em nossas referências, os primeiros números das páginas se referem à edição tcheca e os segundos à tradução
brasileira. Tomamos a liberdade, em algumas passagens, de introduzir pequenas modificações em relação à edição
brasileira, em particular, a tradução de “věc sama” (expressão tcheca referente ao conceito hegeliano “die Sache
selbst”) por “coisa mesma” e não como “coisa em si”; e a introdução de uma distinção mais rigorosa, entre os
conceitos constitutivos da tríade heideggeriana: Sorge/starost/cura, Besorgen/obstarávání/ocupação,
Fürsorge/starostlivosti/preocupação), muitas vezes ausentes na tradução portuguesa. Seguimos aqui a tradução dos
conceitos heideggerianos proposta por Márcia de Sá Cavalcante, em sua versão para o português de Ser e Tempo.
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Uma análise da estrutura do livro Dialética do Concreto nos permitirá compreender o lugar
central atribuído por Kosik às relações entre filosofia e economia no livro em questão. Dividido
em quatro capítulos, o primeiro, I: Dialética da Totalidade Concreta desenvolve os aspectos
teóricos e conceituais (totalidade, práxis), apresentando o programa teórico de compreensão e
destruição do mundo da pseudoconcreticidade; os dois capítulos sucessivos estão articulados em
torno das relações entre filosofia e economia: o capítulo II: Economia e Filosofia desenvolve um
conjunto de críticas aos conceitos de Sorge, homo oeconomicus e fator econômico, como
exemplos de concepções reificadas típicas do mundo da pseudoconcreticidade; o capítulo III:
Filosofia e Economia, procura retomar os fundamentos teóricos do projeto marxista, em particular,
partindo de uma leitura de O Capital, e por fim, o último IV: Práxis e Totalidade procura
sistematizar os conceitos de totalidade, práxis, trabalho para compreensão do homem.
Karel Kosik desde o início do seu livro avança um conjunto de pressupostos que vão
desempenhar um importante lugar no desenvolvimento da sua obra, a centralidade dos conceitos
de totalidade e práxis, e a afirmação que a atitude primeira do homem em relação à realidade é
uma atitude prática. Kosik inicia o seu livro observando: “A dialética trata da ‘coisa mesma’. Mas
a ‘coisa mesma’ não se manifesta imediatamente ao homem. Para chegar à sua compreensão, é
necessário fazer não só um certo esforço, mas também um desvio.” (KOSÍK, 1965, 10; KOSIK,
1969, 09). E, partindo da distinção inicial entre forma fenomênica da realidade e coisa mesma,
Kosik introduzirá uma série de outras distinções correlatas: entre representação e conceito da
coisa, entre o mundo da pseudoconcreticidade e totalidade concreta, entre duas formas de
conhecimento da realidade - a falsa consciência e a compreensão real da coisa. Da mesma forma, o
conceito de práxis é pensado no interior desta mesma distinção: “o mundo do tráfico e da
manipulação” – “a práxis fetichizada dos homens” e a “práxis crítica revolucionaria da
humanidade”. (KOSÍK, 1965, 11; KOSIK, 1969, 11). Para Kosik, esta distinção entre o mundo
fenomênico e a sua essência constitui uma distinção central de toda tradição do pensamento
filosófico:
O esforço direto para descobrir a estrutura da coisa e ‘a coisa mesma’ constitui desde tempos
imemoriais, e constituirá sempre, tarefa precípua da filosofia. As diversas tendências
filosóficas fundamentais são apenas modificações desta problemática fundamental e de sua
solução em cada etapa evolutiva da humanidade. A filosofia é uma atividade humana
indispensável, visto que a essência da coisa, a estrutura da realidade, a “coisa mesma”, o ser da
coisa, não se manifesta direta e imediatamente. (KOSÍK, 1965, 13; KOSIK, 1969, 13-14).
É no interior deste campo conceitual que a proposta de crítica e destruição da
pseudoconcreticidade assume uma importância decisiva:
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O complexo dos fenômenos que povoam o ambiente cotidiano e a atmosfera comum da vida
humana, que, com a sua regularidade, imediatismo e evidência, penetram na consciência dos
indivíduos agentes, assumindo um aspecto independente e natural, constitui o mundo da
pseudoconcreticidade. A ele pertencem:
- o mundo dos fenômenos externos, que se desenvolvem à superfície dos processos
realmente essenciais;
- o mundo do tráfico e da manipulação, isto é, da práxis fetichizada dos homens (a qual não
coincide com a práxis crítica revolucionária da humanidade);
- o mundo das representações comuns, que são projeções dos fenômenos externos na
consciência dos homens, produto da práxis fetichizada, formas ideológicas de seu movimento;
- o mundo dos objetos fixados, que dão a impressão de ser condições naturais e não são
imediatamente reconhecíveis como resultado da atividade social dos homens. (KOSÍK, 1965,
11; KOSIK, 1969, 11).
E referindo-se a proposta de destruição da pseudoconcreticidade observa:
Entretanto, a destruição da pseudoconcreticidade como método dialético-crítico, graças à qual
o pensamento dissolve as criações fetichizadas do mundo reificado e ideal, para alcançar a sua
realidade, é apenas o outro lado da dialética, como método revolucionário de transformação
da realidade. Para que o mundo possa ser explicado “criticamente”, cumpre que a explicação
mesma se coloque no terreno da “práxis” revolucionária. (KOSÍK, 1965, 16; KOSIK, 1969,
18).
Igual importância para o desenvolvimento da argumentação de Kosik é o pressuposto do
primado da atitude prática homem em relação à realidade:
A atitude primordial e imediata do homem, em face da realidade, não é a de um sujeito
abstrato cognoscente, de uma mente pensante que examina a realidade especulativamente,
porém a de um ser que age objetiva e praticamente, de um indivíduo histórico que exerce a sua
atividade prática no trato com a natureza e com os outros homens, tendo em vista a consecução
dos próprios fins e interesses, dentro de um conjunto determinado de relações sociais.
Portanto, a realidade não se apresenta aos homens, à primeira vista, sob o aspecto de um objeto
que cumpre intuir, analisar e compreender teoricamente, cujo polo oposto e complementar seja
justamente o sujeito abstrato cognoscente, que existe fora do mundo e apartado do mundo;
apresenta-se como o campo em que se exercita a sua atividade prático-sensível, sobre cujo
fundamento surgirá a imediata intuição prática da realidade. (KOSÍK, 1965, 10; KOSIK, 1969,
9-10).
Algumas páginas adiante, Kosik estabelecerá a estreita relação existente entre estes dois
pressupostos teóricos de sua obra e o seu alcance crítico:
Cada objeto percebido, observado ou elaborado pelo homem é parte de um todo, e
precisamente este todo não percebido explicitamente é a luz que ilumina e revela o objeto
singular, observado em sua singularidade e no seu significado. A consciência humana deve ser,
pois, considerada tanto no seu aspecto teórico-predicativo, na forma do conhecimento
explícito, justificado, racional e teórico, como também no seu aspecto antepredicativo,
totalmente intuitivo. A consciência é constituída da unidade de duas formas que se
interpenetram e influenciam reciprocamente, porque, na sua unidade, elas se baseiam na práxis
objetiva e na apropriação prático-espiritual do mundo. A recusa e a subestimação da primeira
forma conduzem ai irracionalismo (...); à recusa e a subestimação da segunda forma conduzem
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ao racionalismo, ao positivismo e ao cientificismo, os quais, em sua unilateralidade,
determinam o irracionalismo como complemento necessário. (KOSÍK, 1965, 21-22; KOSIK,
1969, 25-26).
Antes de nos ocuparmos destes argumentos, é importante destacar um aspecto paradoxal da
recepção do pensamento de Kosik no Brasil. Apesar do autor em suas inúmeras passagens afirmar
que os conceitos de totalidade e práxis, não deveriam ser entendidos apenas em seu aspecto
metodológico, portanto, de uma forma unilateral, esta compreensão redutiva foi, entretanto, em
muitos momentos a leitura hegemônica de sua obra, esquecendo que estes conceitos deveriam ser
entendidos em sua unidade ontológica e gnosiológica.2
Em seu segundo capítulo, como observamos acima, Kosik desenvolverá um conjunto de
críticas a diferentes concepções reificadas da Filosofia e das Ciências Humanas, procurando
demonstrar a indissociável relação destas teorias com as formas sociais de objetivação assumidas
pelo modo de produção capitalista. Kosik observa, por exemplo, referindo-se a diferentes
concepções filosóficas vigentes: “Para a filosofia contemporânea, é importante conseguir
distinguir – por detrás da variada, obscura e muitas vezes mistificadora terminologia de cada
escola e tendência – o real problema central e o conteúdo dos conceitos.” (KOSÍK, 1965, 32;
KOSIK, 1969, 39)3
Um importante exemplo desta articulação entre o desenvolvimento do pensamento
filosófico e as transformações nas formas de objetivação social é a passagem na qual, nosso autor,
aproxima o conceito de cura em Heidegger ao conceito de trabalho em Hegel:
A medida que se constata que a categoria do trabalho da filosofia clássica alemã foi
substituída, no séc. XX, pelo mero ocupar-se (obstarávání) – metamorfose em que se percebe o
processo de dissolução que caracteriza a passagem do idealismo objetivo de Hegel ao
idealismo subjetivo de Heidegger – nessa constatação é fixado um determinado aspecto
fenomênico do processo histórico. A substituição do “trabalho” pela “ocupação” (obstarávání)
não reflete uma particularidade de pensamento de um único filósofo ou da filosofia em geral,
mas exprime de certa maneira modificações da própria realidade objetiva. (KOSÍK, 1965, 49;
KOSIK, 1969, 63).
2
As análises sistemáticas dedicadas a obra de Kosik em português são relativamente escassas, uma grande maioria a
utiliza apenas como “referencial teórico” em teses e dissertações. Uma exceção é o artigo critico de Nildo Viana: Os
limites do marxismo fenomenológico de Karel Kosik. (VIANA, 2007, 79-94).
3
Referindo-se a fenomenologia, por exemplo, Kosik observa: “Os problemas estudados pela fenomenologia sob a
denominação de “intencionalidade para com alguma coisa”, “intenção significativa para com alguma coisa” ou então
de vários “modos de percepção” foram justificados por Marx sobre pressupostos materialistas, como diversos aspectos
de apropriação do mundo pelos homens: o prático-espiritual, o teórico, o artístico, o religioso, mas também o
matemático, físico e semelhantes”. Idem, ibidem, p.19-20; 23. Aliás, um dos momentos centrais de seu livro será
justamente as críticas que endereçará a concepção de cura (Sorge), no qual retoma indicações desenvolvidas por
Günther Anders em sua crítica contundente à filosofia de Heidegger desenvolvida no livro: On the pseudoconcreteness of Heidegger’s Philosophy publicado originariamente em1948. (ANDERS, 2003).
6
Semelhante crítica desenvolve, quando se analisa do “homo oeconomicus”, que expressaria
a passagem da economia política clássica a economia vulgar.
A passagem do homem como “cura” (starost) ao “homem econômico” não constitui uma
simples mudança de ponto de vista. O problema não está no fato de que, no primeiro caso, o
homem é visto como subjetividade que nada sabe da objetividade das conexões sociais, ao
passo que, no segundo caso, este mesmo homem é examinado do ponto de vista das conexões
supra-individuais. O problema principal está noutro ponto. Com a aparente mudança na
argumentação e no ponto de vista muda-se também o próprio objeto da análise e a realidade
objetiva se transforma na realidade objetual, a realidade dos objetos. (...) A economia vulgar
é a ideologia do mundo objetual. Ela não investiga suas conexões e leis internas; sistematiza as
representações que os agentes deste mundo objetual, isto é, os homens reduzidos a objeto, tem
de si próprios, do mundo da economia. A economia clássica se move do mesmo modo na
realidade objetual, mas não sistematiza as representações do mundo formulada pelos agentes,
ela procura as leis desse mundo reificado. (KOSÍK, 1965, 65-66; KOSIK, 1969, 87).
Semelhante articulação entre pensamento e formas de objetivação social, Kosik identifica
em sua análise sobre a ideologia dos fatores:
O fato originário e decisivo não consiste na insuficiência do pensamento científico ou no seu
aspecto limitado e unilateralmente analítico, mas na decadência da existência social, na
autonomização da sociedade capitalista. Os fatores não são originariamente um produto do
pensamento ou da investigação científica; são determinadas formas históricas de
desenvolvimento, nas quais as criações da atividade social do homem adquirem autonomia e
sob esse aspecto se tornam fatores e se transferem à consciência acrítica como forças
autônomas, independentes do homem e da sua atividade. (KOSÍK, 1965, 75; KOSIK, 1969,
100).
As considerações críticas endereçadas a teoria dos fatores e do fator econômico, permitirão
Kosik realizar, igualmente, uma crítica ao materialismo vulgar em suas diferentes formas de
manifestação:
Na história das teorias sociais podem-se citar dezenas de nomes (...) para os quais a economia
assume este oculto caráter autônomo. São os ideólogos do “fator econômico”. Desejamos
insistir em que a filosofia materialista nada tem a ver com a “ideologia do fator econômico”.
(KOSÍK, 1965, 84; KOSIK, 1969, 111).
E na sequência afirma:
O marxismo não é um materialismo mecânico que pretende reduzir a consciência social, a
filosofia e a arte a “condições econômicas” e cuja atividade analítica se fundamenta, por isso,
no desmascaramento do núcleo terreno das formas espirituais. Ao contrário, a dialética
materialista demonstra como o sujeito concretamente histórico cria, a partir do próprio
fundamento materialmente econômico, ideias correspondentes e todo um conjunto de formas
de consciência. Não reduz a consciência às condições dadas; concentra a atenção no processo
ao longo do qual o sujeito concreto produz e reproduz a realidade social; e ele próprio, ao
mesmo tempo, é nela produzido e reproduzido. (KOSÍK, 1965, 84; KOSIK, 1969, 111).4
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Neste parágrafo a referência a diferentes passagens da obra de Marx é evidente. Cf., por exemplo, tanto, as Teses
sobre Feuerbach (MARX, 1974, 57-59), como a decisiva nota metodológica desenvolvida por Marx em O Capital:
“Em realidade, é muito mais fácil descobrir o cerne terreno das nebulosas representações religiosas, analisando-as, do
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Concluindo este conjunto de críticas endereçadas a estas diferentes concepções reificadas
(cura, homo oeconomicus e de fator econômico), Kosik observa:
A análise crítica demonstrou que os vários aspectos reificados da economia são momentos
reais da realidade; demonstrou, ainda, que esses momentos reificados são fixados nas teorias
ou nas ideologias, e se manifestam como “cura” (starost), “homo oeconomicus” e “fator
econômico” nas várias etapas do desenvolvimento intelectual. (KOSÍK, 1965, 128; KOSIK,
1969, 169).
Após termos analisado este conjunto de críticas endereçadas as diferentes formas
fetichizadas de compreender a relação entre Economia e Filosofia, que Kosik desenvolveu no II
Capítulo de seu livro, podemos passar ao capítulo III, no qual Kosik retorna ao projeto teórico de
crítica a economia política desenvolvido por Marx, procurando problematizar, algumas, de suas
diferentes interpretações. É importante destacar que sua leitura se destaca pela utilização de uma
série de obras de Marx, até então, pouco utilizadas na bibliografia marxista como, por exemplo, a
ampla utilização dos Grundrisse, da 1a edição de O Capital de 1867 e das Notas Marginais sobre
Wagner. Igualmente importante são as referências a diferentes autores da tradição marxista.
Kosik inicia o Capítulo III de seu livro, realizando uma análise da “problemática de O
Capital de Marx”, desenvolvendo uma série de observações sobre, a recepção e interpretação desta
obra. Para o filósofo tcheco: “A história do texto em certo sentido é a história da sua
interpretação”. (KOSÍK, 1965, 107; KOSIK, 1969, 141). E acrescenta algumas páginas depois:
A história da interpretação de “O Capital” de Marx demonstra que por trás de toda
interpretação se oculta uma ou outra concepção de filosofia, da ciência, do real, da relação
entre filosofia e economia etc., a cuja luz se realiza tanto a interpretação dos conceitos e
intuições isolados quanto a da estrutura e conjunto da obra. (KOSÍK, 1965, 108-109; KOSIK,
1969, 143).
Kosik mostra igualmente a forte tendência presente, em inúmeros comentadores, a realizar
uma separação entre ciência e filosofia, entre concepção lógica e conteúdo econômico. Aliás, para
o nosso filósofo, uma mesma relação de exterioridade entre economia e filosofia caracterizaria
muitas das posições que marcaram outro importante debate desenvolvido naquele momento: o
debate em torno “do desenvolvimento espiritual de Marx”, da relação entre O Capital e o jovem
Marx, e o problema da realização e liquidação da filosofia. (KOSÍK, 1965, 113-114; KOSIK,
1969, 149).
Após este conjunto de observações preliminares, Kosik dedica um sub-capítulo do Capítulo
III, a análise do problema da “estrutura de “O Capital”” (KOSÍK, 1965, 121-128; KOSIK, 1969,
que, seguindo o caminho oposto, descobrir, partindo das relações da vida real, as formas celestiais correspondentes a
essas relações. Este último é o único método materialista e, portanto científico”. (MARX, 1968, 425).
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159-168); procurando responder, entre outras, a duas questões: “qual é a relação entre a estrutura
imanente de “O Capital” e a sua configuração exterior? Qual é a conexão entre o princípio
estrutural e a sua expressão literária? (KOSÍK, 1965, 122; KOSIK, 1969, 160)5. Após discutir
algumas das diferentes tentativas de aproximar O Capital, ora, da Ciência da Lógica, ora, da
Fenomenologia da Espírito, Kosik comparará a estrutura da obra de Marx, à odisséia, ao “romance
de formação” - ao Bildungsroman:
O conhecimento do sujeito só é possível na base da atividade do próprio sujeito sobre o
mundo; o sujeito só conhece o mundo na proporção em que nele intervém ativamente, e só
conhece a si mesmo mediante uma ativa transformação do mundo. (KOSÍK, 1965, 126;
KOSIK, 1969, 165).
E acrescenta algumas linhas na sequência:
A “história de um coração humano” de Rousseau (“Emílio ou Da Educação”) o
Bildungsroman alemão na clássica versão do “Wilhelm Meister” de Goethe ou na versão
romântica do “Heinrich von Ofterdingen” de Novalis, a “Fenomenologia do Espírito” de Hegel
e “O Capital” de Marx são exemplos do motivo da “odisséia” nos vários campos da criação
cultural. (KOSÍK, 1965, 126; KOSIK, 1969, 166).
E associando a estrutura das obras Fenomenologia do Espírito de Hegel e O Capital de
Marx, afirma:
“O Capital” se manifesta como “a odisséia” da práxis histórica concreta, a qual passa do seu
elementar produto de trabalho através de uma série de formas reais, nas quais a atividade
prático-espiritual dos homens é objetivada e fixada na produção, e termina a sua peregrinação
não com o conhecimento daquilo que ela é por si mesma, mas como a ação práticorevolucionária que se fundamenta neste conhecimento. (KOSÍK, 1965, 127; KOSIK, 1969,
166).
O Capital representa, portanto, para Kosik uma descrição do sistema capitalista, que parte da
sua forma elementar – a Mercadoria – para alcançar a compreensão da totalidade e a sua crítica.
Concluindo o seu raciocínio observa: “O conhecimento ou a tomada de consciência da natureza do
próprio sistema, como sistema de exploração, é condição necessária para que a odisséia da forma
histórica da práxis chegue a termo na práxis revolucionaria”. (KOSÍK, 1965, 128; KOSIK, 1969,
168).
Após ter problematizado, nos capítulos II e III, distintas relações entre economia e filosofia,
Kosik retornará, mais uma vez, a análise dos conceitos de Práxis e Totalidade, para concluir sua
obra, retornando suas palavras iniciais:
5
Sobre este aspecto consultar igualmente as observações desenvolvidas sobre a especificidade do texto. (KOSÍK,
1965, 109-110; KOSIK, 1969, 144-145).
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A dialética trata da “coisa mesma”. Mas a “coisa mesma” não é uma coisa qualquer, e
na verdade, não é nem mesmo uma coisa: a “coisa mesma”, de que trata a filosofia, é o
homem e o seu lugar no universo, ou (o que em outras palavras exprime a mesma coisa):
a totalidade do mundo revelada pelo homem na história e o homem que existe na
totalidade do mundo. (KOSÍK, 1965, 173; KOSIK, 1969).
Analisando, um aspecto da obra principal de Karel Kosik, procuramos contribuir dentro
das nossas possibilidades, a retornar a um dos altos momentos alcançados pela tradição marxista, e
que hoje, ao lado de outras inúmeras contribuições significativas, encontra-se injustamente
esquecida.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ANDERS, Günther, Sur la Pseudo-concrétude de la Philosophie de Heidegger. Paris: Sens &
Tonka, 2003.
FROMM, Erich (Org.), Humanismo Socialista. 2a ed. Barcelona: Paidos, 1984.
KOSÍK, Karel. Dialektika Konkrétního Studie o problematice člověka a světa. 2a ed. Praga:
Českolovenské Akademie Věd, 1965.
KOSIK, Karel. Dialética do Concreto. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1969.
LÉNINE, V. I. Conspecto do livro de Hegel “Ciência da Lógica”. In: LÉNINE, V. I. Obras
Escolhidas. Vol. 6 (Cadernos Filosóficos). Liboa/Moscou: Editorial Avante/progresso, 1989.
Sur le Jeune Marx. In: Recherches Internationales a la lumière du marxisme, Paris, no. 1, 1960.
MARX, Karl. O Capital Crítica da Economia Política. Livro I, Volume I. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1968.
MARX, Karl. Teses contra Feuerbach. In. MARX. Os Pensadores. São Paulo: Abril, 1974.
VIANA, Nildo. Os limites do marxismo fenomenológico de Karel Kosik, em VIANA, Nildo. O
fim do marxismo e outros ensaios. São Paulo: Giz editorial, 2007.
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