INTERPRETANDO A GEOMETRIA DE RODAS DE UM CARRO: UMA EXPERIÊNCIA COM MODELAGEM MATEMÁTICA Marcos Leomar Calson – Mestrando em Educação em Ciências e Matemática, PUCRS Helena Noronha Cury – Doutora em Educação – PUCRS RELATO DE EXPERIÊNCIA Resumo Este trabalho relata uma experiência realizada com alunos de Ensino Médio Técnico, em aula de Matemática, com os quais foi desenvolvido um trabalho de modelagem matemática, elaborado como tarefa final da disciplina Fundamentos de Educação Matemática, do Mestrado em Educação em Ciências e Matemática da PUCRS. A disciplina tem, entre seus objetivos, oportunizar a produção de textos sobre abordagens de ensino de Matemática, com exemplos de atividades de ensino ou pesquisa realizadas sob um determinado enfoque. Dessa forma, a modelagem matemática foi escolhida como abordagem e a geometria de rodas de um carro, como tema. Após a construção da fundamentação teórica, o projeto foi elaborado e, no semestre seguinte, aplicado em uma turma de Matemática de Ensino Médio Técnico, de uma escola pública de Porto Alegre. Os alunos participantes, após visitarem uma oficina mecânica, trabalharam com conceitos relativos a ângulos, tendo desenvolvido os conceitos prévios na atividade de modelagem. A experiência mostrou que é possível encontrar situações do cotidiano que motivem os alunos e que lhes permitam trabalhar conceitos matemáticos sob um novo enfoque metodológico. Palavras-chave: Modelagem, Ensino Médio, Trigonometria. Introdução Em cursos de mestrado da área de Ensino de Ciências e Matemática, consideramos que seus alunos, em geral professores de Ensino Fundamental e Médio, devem conhecer as abordagens de ensino de Matemática que vêm sendo mais apontadas atualmente, em comunicações científicas, palestras ou livros didáticos, como aquelas que vão ao encontro das sugestões dos Parâmetros Curriculares Nacionais (BRASIL, 1998, 2002). Assim, na disciplina de Fundamentos de Educação Matemática do curso de Mestrado em Educação em Ciências e Matemática da PUCRS, são apresentados pressupostos teóricos que subsidiam diferentes vertentes metodológicas, a saber: modelagem na Educação Matemática, resolução de problemas, uso da História da Matemática, uso de Tecnologias de Informação e Comunicação. Entre os trabalhos realizados por uma turma de mestrandos, propusemos o planejamento de uma experiência com modelagem, visto que já havíamos trabalhado especificamente com esse tema em outra disciplina, em anos anteriores, com resultados muito satisfatórios. (CURY, 2003). A modelagem matemática é uma abordagem metodológica que vem se firmando entre as tendências atuais do ensino de Matemática. Segundo as Orientações Complementares aos PCN (BRASIL, 2002, p. 111), As situações e os desafios que o jovem do ensino médio terá de enfrentar no âmbito escolar, no mundo do trabalho e no exercício da cidadania fazem parte de um processo complexo, no qual as informações são apenas parte de um todo articulado, marcado pela mobilização de conhecimentos e habilidades. O trabalho com modelagem é adequado para despertar o interesse dos alunos para problemas da vida cotidiana e do mundo do trabalho, pois permite que informações numéricas ou geométricas sejam traduzidas em modelos matemáticos, para cuja elaboração são disponibilizadas habilidades e competências desenvolvidas em Matemática. Em geral, ao trabalhar com modelagem, o professor está propondo um ambiente de sala de aula que é diferente do que o aluno está acostumado a vivenciar. Barbosa (2004) considera que [...] o ambiente de Modelagem está associado à problematização e investigação. O primeiro refere-se ao ato de criar perguntas e/ou problemas enquanto que o segundo, à busca, seleção, organização e manipulação de informações e reflexão sobre elas. Ambas atividades não são separadas, mas articuladas no processo de envolvimento dos alunos para abordar a atividade proposta. (p. 3). Ao analisar os diferentes estudos sobre modelagem e sua inserção em ambientes de aprendizagem, Barbosa (2001) aponta três “casos”. No primeiro, o professor encarrega-se de trazer a situação-problema e os dados e os alunos buscam resolver. No segundo caso, o professor traz o problema, mas a busca dos dados e da solução ficam a cargo dos estudantes. Finalmente, no terceiro caso, os alunos propõem os problemas a serem modelados e encarregam-se de todas as etapas, sob orientação do professor. Tendo sido proposto a professores em formação continuada, a atividade de modelagem, planejada pelos alunos do mestrado em Educação em Ciências e Matemática, é uma forma de levá-los a refletir sobre seu papel em sala de aula, pois, em um ambiente de modelagem, os docentes devem proporcionar a seus alunos, em qualquer nível de ensino, oportunidades de discussão sobre as dificuldades que surgem na resolução dos problemas, estimulando o desenvolvimento do espírito crítico e da argumentação. (ALMEIDA, 2004). A seguir, apresentamos a proposta de atividade de modelagem, elaborada pelo primeiro autor deste texto e, posteriormente, a efetiva implementação em uma turma de Ensino Médio Técnico. A proposta de atividade para modelar a geometria de rodas de um carro Em qualquer nível de ensino, os estudantes, em geral, questionam a necessidade de estudar Matemática, por não se darem conta da presença dessa disciplina no seu cotidiano. Justificam seu desinteresse dizendo que não irão empregá-la em sua vida nem em sua futura profissão (quando não pretendem seguir cursos na área de Ciências Exatas). Assim, buscar maneiras de mostrar aos estudantes que a Matemática está presente nas mais variadas atividades é uma forma de despertar seu interesse pelos conteúdos trabalhados em sala de aula. Além disso, a busca de novas metodologias de ensino possibilita o desenvolvimento de atitudes investigativas, de modo que as soluções sejam encontradas pelos alunos em um ambiente de aprendizagem rico em estímulos, não restrito apenas à exposição do conteúdo no quadro-negro. Assim, ao recebermos o laudo da geometria realizada em um carro, foi possível perceber quantos elementos de Matemática estavam presentes no relatório do alinhamento. As unidades de medida empregadas (grau, minuto e milímetro) para expressar a situação das rodas antes e depois de realizar a geometria já são indicativos de que há conceitos matemáticos embutidos naqueles diagnósticos. Estimulados por essa experiência, vivenciada fora da sala de aula, pensamos que seria interessante apresentar uma proposta de modelagem matemática para trabalhar medidas de ângulos com alunos da 1a série do Ensino Médio. Planejamos o desenvolvimento da experiência em duas etapas, empregando os casos 1 e 2 citados em Barbosa (2001), propondo aos estudantes o seguinte problema: O que é preciso saber para interpretar o laudo de geometria de um carro? Em uma primeira etapa, trazemos as idéias para a sala de aula, promovendo uma discussão sobre os seguintes pontos: • Você já leu, em placas de oficinas mecânicas, a frase “Faça aqui a geometria do seu carro”? • Qual o significado da expressão “geometria de um carro”? • O que é laudo de geometria de um carro? • Como vamos medir ângulos para obter os dados? • O que é balanceamento de rodas? • De quanto em quanto tempo se faz geometria nas rodas? Em uma sala de aula de Ensino Médio, possivelmente vamos encontrar alunos que já estiveram em uma oficina mecânica e leram a expressão, outros que sabem o que significa e outros, ainda, que não conhecem o assunto. De qualquer forma, a possibilidade de trazer um tema que não está sendo apresentado por meio de fórmulas e de resolução de exercícios padronizados, já deve ser um elemento motivador para o desenvolvimento da atividade. Com certeza muitas perguntas ficarão sem resposta, surgindo então a necessidade de planejar uma investigação específica sobre o problema proposto, em que, primeiramente, os alunos vão analisar alguns laudos fornecidos pelo professor e depois vão coletar dados em uma oficina mecânica especializada. Durante a análise dos relatórios de alinhamento (laudos) trazidos pelo professor, os alunos se darão conta dos elementos matemáticos exigidos para solucionar o problema; neste momento, o conteúdo formal introdutório será trabalhado em aula. Este conteúdo inclui definição de ângulo e tipos de ângulos, unidades de medidas de ângulos e transformações de unidades. Entendemos ser necessário apresentar essas primeiras noções para que os estudantes, ao receberem as informações dos mecânicos, possam entender quais dados estão envolvidos nos laudos coletados. Para planejar a visita à oficina mecânica especializada, é necessário tomar algumas medidas, tais como: obter a autorização dos pais e direção da escola, para ausentar-se; verificar a disponibilidade de horário do técnico da oficina e marcar a visita; elaborar, em conjunto com os alunos, as perguntas que são necessárias para a coleta de dados. Já de volta à escola, o primeiro passo é estabelecer uma discussão inicial sobre a visita, de forma que os alunos mostrem se são capazes de conceituar, com suas palavras, os seguintes elementos, que vão fazer parte de seus relatórios de modelagem: caster, camber, convergência, convergência total, divergência, diferença entre caster e camber. Uma boa fonte de informações, que pode ser sugerida aos estudantes para a elaboração do trabalho, está no site do Clube do carro antigo de Londrina, no item “Dicas”. (http://www.carroantigo.com/portugues/conteudo/info_dicas_alinhamento.htm.) De posse dos dados e das informações técnicas, e com a orientação do professor, os estudantes podem, então, estabelecer um modelo simples de laudo, em que, a partir das medidas coletadas, são encontrados os elementos que permitem, a um técnico, dizer como está um carro e o que deve ser feito para que suas rodas fiquem alinhadas. Assim, já há elementos para resolver o problema inicial: o que é preciso saber para interpretar o laudo de geometria do carro? Talvez alguns alunos respondam que é preciso saber medir e transformar ângulos, outros comentem que é preciso saber operar com as medidas de ângulos, outros, ainda, digam apenas que é preciso geometria ou Matemática. De qualquer forma, a partir dessa experiência, acreditamos ser possível fazer o estudo desses conteúdos de uma maneira contextualizada, pois poderemos, na maior parte dos itens apresentados, fazer referência ao modelo construído em sala de aula a partir dos dados obtidos. A aplicação da proposta em uma turma de Ensino Médio Técnico A proposta de modelagem “Interpretando a geometria de rodas de um carro”, cujo planejamento é descrito acima, foi desenvolvida com uma turma de alunos de um curso Técnico em Nutrição e Dietética de uma Escola Estadual de Porto Alegre, no segundo semestre de 2006, devido à preocupação em motivá-los a aprender Trigonometria. Os alunos formados no curso Técnico em Nutrição e Dietética da referida escola cursam o Ensino Médio e o Técnico concomitantemente; assim, eles não valorizam da mesma forma as disciplinas de formação comum e as de formação específica, preferindo as segundas. O assunto Trigonometria, em particular, a introdução às medidas de ângulos, as transformações de unidades e as operações básicas, não vêm ao encontro de suas necessidades. Para eles, os conteúdos de maior importância são aqueles abordados nas disciplinas técnicas. Não bastando esse problema, ainda refletimos sobre a adequação de trazer uma atividade sobre geometria e balanceamento de rodas de um carro para uma turma composta por apenas um aluno do sexo masculino, sendo os demais do sexo feminino. Teriam as moças o mesmo interesse que, em geral, é demonstrado por rapazes, ao lidar com carros? No entanto, exatamente esse desafio nos levou a implementar a atividade já planejada, para verificar as potencialidades da modelagem no estudo da Matemática, assunto que, de qualquer forma, parecia distante do interesse de todos os alunos do curso. Foi feita a contextualização da proposta, com exposição dos objetivos e procedimentos que seriam desenvolvidos, no caso, as quatro etapas do trabalho. Foi apresentado um relatório de geometria de rodas, aqui reproduzido na figura 1, no qual os estudantes puderam verificar os resultados expressos em graus e minutos, outros em milímetros. Figura 1 – Relatório de geometria de rodas de um carro Foi marcado o dia da visita da turma a uma oficina mecânica especializada, onde poderíamos constatar na prática a necessidade de saber “ao menos” a leitura e definição de ângulos. Nesse momento, a animação foi geral, pois os alunos logo encararam a atividade como um “passeio”. Contatada a oficina escolhida, para verificar a disponibilidade do técnico em nos atender, a visita se realizou. O que parecia, inicialmente, um problema – a possível falta de interesse das alunas em relação ao tema – mostrou-se uma fonte de prazer e interesse para o público proposto, pois as moças se interessavam por carros, algumas delas já dirigiam, e conhecer um assunto que, culturalmente, é considerado masculino lhes trouxe uma motivação adicional. A partir dos dados coletados e das explicações, foi relevante o aproveitamento da turma e o estudo dos conteúdos foi valorizado por todos os estudantes. Em função de termos apenas dois períodos semanais de Matemática, não foi solicitado que fizessem o relatório da visita, respondendo apenas as perguntas específicas de geometria e balanceamento de rodas, mas comentamos no grande grupo, principalmente a linguagem técnica da geometria computadorizada. Além disso, analisamos e conferimos, durante a aula, os resultados de alguns relatórios de geometria que obtivemos na oficina. Nesse momento, os alunos concluíram que havia necessidade em saber a transformação de medidas e operações com ângulos, devido à aplicação direta da Matemática aprendida em sala de aula na solução de problemas práticos do seu cotidiano. Considerações finais Consideramos que tanto a proposta feita aos alunos do mestrado, como a desenvolvida com os estudantes de Ensino Médio, tiveram êxito. Para os mestrandos, houve a possibilidade de aprofundar a leitura de textos relativos à modelagem na Educação Matemática e a discussão das várias propostas por eles elaboradas, algumas, inclusive, aplicadas em suas turmas. Para o primeiro autor deste texto, a comprovação da possibilidade de levar a modelagem para aulas de Matemática de qualquer tipo de curso, bem como a facilidade com que os seus estudantes se envolveram na busca de respostas para o problema proposto e a motivação para o estudo de Matemática, fizeram com que já esteja planejando uma nova aplicação, com outras turmas de Ensino Médio. A expansão da experiência poderá tomar outro enfoque, pois podem ser mais explorados os termos técnicos da geometria de rodas, os conceitos trigonométricos e suas aplicações na solução de outras situações problemas. Referências ALMEIDA, L. M. W. Modelagem matemática e formação de professores. In; ENCONTRO NACIONAL DE EDUCAÇÃO MATEMÁTICA, 8., 2004, Recife. Anais...Recife: SBEM, 2004. 1 CD-ROM. BARBOSA, J. C. Modelagem na educação matemática: contribuições para o debate teórico. REUNIÃO ANUAL DA ANPED, 24., 2001, Caxambu. Anais... Disponível em: http://www.anped.org.br/reunioes/24/T1974438136242.doc . Acesso em: 10 maio 2007. BARBOSA, J. C. Modelagem matemática: O que é? Por quê? Como? Veritati, n. 4, p. 73-80, 2004. BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais: terceiro e quarto ciclos do ensinoMatemática. Brasília, 1998. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/matematica.pdf . Acesso em 20 maio 2007. BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Média e Tecnológica. Orientações Educacionais Complementares aos PCN: Ciências da Natureza, Matemática e suas tecnologias. Brasília, 2002. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/CienciasNatureza.pdf . Acesso em 20 maio 2007. CLUBE do carro antigo de Londrina. Disponível em: http://www.carroantigo.com/portugues/conteudo/info_dicas_alinhamento.htm. Acesso em 10 maio 2006. CURY, H. N. Modelagem matemática e problemas em ciências: uma experiência em um curso de mestrado. Revista Perspectiva, v.27, n. 98, p. 75-86, 2003.