LEITURA E ESCRITA: SENTIDOS DE TEXTO NARRATIVO NA SALA DE AULA Leilane Gusmão ¹ Ariadne Donatti Chinarello ² Soraya Maria Romano Pacífico ³ Lucília Maria Sousa Romão 4 Resumo: Este trabalho tem por objetivo refletir sobre os desafios da intervenção pedagógica no processo de construção do texto narrativo pelo sujeito-escolar, aqui nomeado como aluno. A partir do programa de estágio do curso de Pedagogia, da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto, desenvolvemos um projeto de intervenção em Língua Portuguesa, numa segunda série, em uma escola da rede estadual, tendo como horizonte provocar os sujeitos-escolares a produzirem textos narrativos lidando com a pluralidade de sentidos. Palavras-chave: leitura; escrita; sujeito; narrativa Este trabalho tem por objetivo refletir sobre os desafios da intervenção pedagógica no processo de construção do texto narrativo pelo sujeito-escolar, aqui nomeado como aluno. A partir do programa de estágio do curso de Pedagogia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto/USP, desenvolvemos um projeto de intervenção em Língua Portuguesa, em uma turma de segunda série, em uma escola da rede estadual de Ribeirão Preto-SP, tendo como horizonte provocar os sujeitos-escolares a produzirem textos narrativos, trabalhando com a polissemia. No que diz respeito à produção textual, estudos (SILVA; PACÍFICO, 2007) apontam que o livro didático apresenta aos alunos roteiros de como proceder, indicando o caminho a ser seguido para escrever, isto é, o livro didático apresenta ao aluno um texto narrativo e limita-se a questioná-lo sobre quais são os personagens do texto; onde se passa a ação ou qual é o tempo de duração do enredo. Ou, ainda, se a proposta é de produção de um texto narrativo, temos um personagem dado; muitas vezes, o início da história já está feito e cabe ao aluno dar continuidade à escrita de um outro, o que interdita o sujeito-aluno à possibilidade de produzir seu próprio texto, situação em que ele poderia escolher os elementos da narrativa e inseri-los numa sequência cronológica de sentido, característica essencial da narrativa, de tal modo que lhe fosse interessante. Educação em Destaque Juiz de Fora, v. 1, n. 2, p. 87-101, 2. sem. 2008 88 Recorreremos à Análise do Discurso de ‘linha’ francesa (AD) para sustentar nosso artigo. Segundo essa teoria, sujeito e sentidos se constroem junto com o texto; por isso, não se pode controlar todos os sentidos possíveis de um texto. Todavia, ainda presenciamos práticas pedagógicas permeadas por livros didáticos que direcionam, a partir das mesmas perguntas, aquilo que tais materiais chamam de “compreensão” do texto, o que, para nós, não passa de uma leitura parafrástica (ORLANDI, 1996a). Este fazer pedagógico deflagra graves consequências para o processo de aprendizagem do aluno, já que este não consegue desenvolver habilidades de questionamento, análise, criação e posicionamento diante dos textos que o cercam, dentro e fora da escola. Observamos que, muitas vezes, o sujeito-aluno escreve a partir de um tema previamente definido por outro sujeito, seja ele o professor, o autor do livro didático ou da apostila. Desse modo, não há envolvimento do sujeito-aluno com a atividade da escrita, ele o faz apenas para cumprir uma obrigação escolar (CORACINI, 1999). A esse respeito, nossas pesquisas com crianças, nas séries iniciais do Ensino Fundamental, apontam que elas entendem que “ler é copiar a lição da lousa”, ou ainda pior, “ler é importante para não ficar burro”. Queremos enfatizar que, para a AD, a noção de sujeito não é nem o sujeito gramatical, nem o sujeito psicológico, ou seja, coincidente consigo mesmo (indivíduos empíricos). Para o analista do discurso, existem posições sujeito, isto é, o indivíduo pode ocupar várias posições (ou lugares sociais, tais como: patrões, funcionários, professores, alunos, juízes, etc) e, a partir delas é que vai produzir seu discurso. Essas considerações iniciais sustentarão nossa reflexão sobre a relação do sujeito-aluno com a linguagem na escola, mais especificamente enfocando a produção e interpretação de textos, e em que medida tais atividades trabalhadas numa perspectiva discursiva promovem o ensino da leitura e da escrita. Ao longo deste artigo, muitas referências serão feitas à escola; por isso é muito importante antecipar que não nos referimos a todas as escolas, mas sim, contemplamos a escola enquanto instituição na qual circula o discurso pedagógico autoritário (ORLANDI, 1996a), conforme será discutido. De acordo com Pacífico (2002), para que o sujeito-autor realize um trabalho ativo na construção de sentidos do texto, ele precisa assumir a função-leitor e não a fôrma-leitor como o livro didático determina. O sujeito que assume a função-leitor duvida da transparência da linguagem e, a partir daí, poderá atribuir outros sentidos para o texto e, consequentemente, produzir novos outros textos, numa constante tessitura textual, marcada pelo dialogismo, pela polifonia, pela criatividade e não produtividade (ORLANDI, 1996a). Deste modo, entende-se que o sujeito na Educação em Destaque Juiz de Fora, v. 1, n. 2, p. 87-101, 2. sem. 2008 89 posição de professor deve proporcionar aos seus alunos a leitura de diversos textos que tratem do mesmo tema, mas que atribuem diferentes sentidos e possibilitam outras interpretações, construindo aquilo que Pêcheux (1997) chama de arquivo, que será fundamental para o aluno poder ocupar a posição discursiva de sujeito-autor. Refletindo sobre a autoria, Orlandi (1996b) mostra que o autor é o responsável pela organização e historicidade dos sentidos, bem como pela unidade do texto. Para que o aluno possa ocupar o lugar de autor na construção de seu próprio texto, faz-se necessário que a escola instaure o discurso polêmico (ORLANDI, 1996a), pois os alunos precisam estar em contato e em confronto com os vários tipos de textos e com vários pontos de vista sobre os temas que aí circulam, visto que a possibilidade de disputa do referente, desde as séries iniciais, a nosso ver, é que sustentará uma produção textual baseada na polissemia e não na paráfrase, como vemos acontecer nas propostas de leitura e escrita encontradas nos livros didáticos. Diante do exposto, este projeto propõe aos alunos atividades de leitura e escrita em que a polifonia circule, que os temas sejam disputados e os sentidos sejam construídos pelos sujeitosalunos, sem a imposição do que pode e deve ser dito. Para isso, é fundamental que os alunos compreendam o processo de construção do texto narrativo, percebendo a presença de uma sequência cronológica dos temas que sustentam a tessitura textual, que compreendam como se dá a coesão e a coerência textuais, no texto narrativo, que não é a mesma do texto descritivo e do dissertativo, os quais obedecem a uma outra sequência de enunciados, que não a cronológica. Enfim, o professor tem de analisar muitos textos narrativos com os alunos, para depois solicitar a produção textual, e não apenas apontar o personagem, o espaço, o tempo e a ação e considerar que isso é suficiente para o entendimento do que caracteriza um texto narrativo. O modo como são construídos os sentidos, o processo de amarração (ou não) da rede significativa ao longo dos fatos, a teia de relações estabelecidas pelos personagens e pelas suas representações, poucas vezes são explorados nas aulas de leitura e interpretação de textos, nem nas atividades de produção textual. Isso promove alguns equívocos que temos diagnosticado em nossa prática como pesquisadoras (ROMÃO; PACÍFICO, 2005), a saber, o efeito parafrástico e repetitório das respostas dos alunos a copiarem fragmentos dos textos, a contenção dos discursos polêmico e lúdico (ORLANDI, 1996a), o desinteresse pelos exercícios de leitura e pela ida à biblioteca escolar (ROMÃO, 2008) e, por fim, a redução dos atos de linguagem a exercícios que engaiolam a criatividade e o desejo por dizer de modo original, silenciam o sujeito tentando banir a sua singularidade. Educação em Destaque Juiz de Fora, v. 1, n. 2, p. 87-101, 2. sem. 2008 90 Relato de uma trajetória em sala de aula: o trabalho com narrativas em discurso O relato que se segue refere-se à experiência de estágio curricular em Língua Portuguesa de duas alunas, Leilane Gusmão e Ariadne Donatti Chinarello, do curso de Pedagogia, da FFCLRP/USP. As alunas construíram, sob a orientação da docente responsável pela disciplina Metodologia de Ensino da Língua Portuguesa, um projeto de intervenção em Língua Portuguesa para ser desenvolvido junto aos alunos de uma segunda série, em uma escola da rede estadual de Ribeirão Preto, São Paulo. Os pressupostos teóricos que sustentaram o projeto são da Análise do Discurso. Primeiramente, as alunas iniciaram uma discussão com as crianças acerca do texto narrativo, construindo uma narrativa sobre os encontros que teriam com a classe estagiada. Neste momento, apresentaram a história seguindo a ordem cronológica dos fatos e, depois, buscaram provocar os sujeitos-alunos para que pudessem socializar seus conhecimentos a respeito do texto narrativo. Para tanto, utilizaram algumas narrativas curtas com o objetivo de enfatizar as principais características deste tipo de texto. Após as contribuições da sala, as estagiárias sistematizaram, na lousa, tudo o que foi dito durante a discussão. Em seguida, propuseram aos alunos a leitura de outro texto narrativo; porém, nesta etapa, o mesmo texto narrativo foi trabalhado três vezes e com três formas diferentes: primeiro, a partir de uma narrativa curta; em seguida, a partir da mesma narrativa expandida e, por fim, com a narrativa completa: isto possibilitou uma discussão a respeito das principais características do tipo de texto que elas estavam estudando com a segunda série. Disseram às crianças que elas iriam conhecer a história de duas meninas chamadas “Ana e Ana”. Entregaram-lhes uma narrativa curta, adaptada por elas próprias, do texto Ana e Ana, de Célia Godoy. Fizeram a leitura com as crianças que logo levantaram questões sobre o texto, dizendo que faltavam partes da história. E este era, justamente, o objetivo dessa atividade, ou seja, fazer com que as crianças percebessem que a ausência de certos elementos responsáveis pela coesão textual causa problemas na coerência, interferindo na compreensão do que se lê; logo, na sequência cronológica do texto. Por isso, as estagiárias criaram condições para que os sujeitos-alunos ficassem inquietos e curiosos com o que iria acontecer no decorrer da narrativa, como seria o processo de produção dos sentidos. Por fim, realizaram a última leitura do texto Ana e Ana, mas, desta vez, com a narrativa completa. As estagiárias foram retomando as narrativas curta e expandida, o que auxiliava os alunos a estabelecerem comparações entre os textos e, também, a tecerem comentários sobre a construção Educação em Destaque Juiz de Fora, v. 1, n. 2, p. 87-101, 2. sem. 2008 91 textual. Ao final da atividade, as crianças puderam compreender que a ausência de certos elementos prejudica a organização dos textos. Portanto, a partir desta atividade os alunos aprenderam a importância dos elementos que compõem a narrativa, como a existência de personagens, a ordem cronológica dos acontecimentos, a presença dos conectivos interfrásticos que amarram as partes do texto. Essa postura metodológica, para nós, vem numa direção oposta ao que Orlandi (1996a) considera ser o discurso pedagógico que, segundo a autora, com a qual concordamos, é do tipo autoritário. Isso significa dizer que neste tipo de discurso a polissemia é contida, não há disputa do referente; logo, o sentido único é imposto. Entendemos que, ao possibilitar aos alunos a participação na construção dos sentidos sobre texto narrativo, por meio de vários gestos de leitura e de interpretação, estamos instaurando o discurso polêmico, o tipo de discurso que, a nosso ver, deve circular por trás dos muros escolares. Após a conversa com os alunos a respeito dos elementos do texto narrativo e retomando os aspectos já discutidos na aula anterior, as estagiárias deram continuidade à atividade de linguagem, distribuindo “tirinhas” de textos não-verbais, ou seja, a narrativa seria estudada com base nos textos visuais. Defendemos que toda manifestação de linguagem (verbal oral e escrita; visual; pictórica; musical; fílmica) tem de ser explorada e estudada em sala de aula, pois os textos que circulam fora da escola trabalham sempre com um sincretismo de linguagens. Assim, foi solicitado aos alunos que montassem a sequência das figuras que compunham as narrativas curtas e, em seguida, eles puderam pintá-las. Esta atividade contribuiu para que a criança compreendesse uma das características da narrativa, que é, como estamos apontando, a ordem cronológica dos acontecimentos. É preciso esclarecer que as estagiárias não pretendiam com esta atividade direcionar o texto da criança; elas objetivaram reforçar a idéia de sequência cronológica e apresentar uma outra possibilidade de narrar, em que pese o uso dos traços, das linhas, das formas, ou seja, do imagético, pois consideramos que “o trabalho de interpretação de imagem vai pressupor também a relação com a cultura, o social, o histórico e a formação social do sujeito” (SOUZA, 1998, p. 08). Dessa forma, destacamos que a mesma imagem pode possibilitar a emergência de diferentes gestos de leitura, pois, como sabemos, os sujeitos ocupam posições heterogêneas e, também desta forma, são distribuídos os saberes e poderes na sociedade. Então, considerando a pluralidade dos sentidos e dos sujeitos, ressaltamos que uma mesma imagem pode ser significada de modo diferente. “A questão da imagem encontra assim a análise de discurso por um outro viés: não mais Educação em Destaque Juiz de Fora, v. 1, n. 2, p. 87-101, 2. sem. 2008 92 da imagem legível na transparência, porque um discurso a atravessa e a constitui” (ORLANDI, 1999, p. 65). Sustentamos a posição de que a escola deve garantir o acesso ao verbal e ao nãoverbal, provocando os sujeitos-escolares ao contato com diferentes materialidades e, assim, a diferentes modos de produção e inscrição de sentidos, mesmo porque, nas séries iniciais, muitas crianças ainda não dominam a escrita, mas já sabem, há tempos, produzir textos. Diante de tais considerações, vejamos algumas produções visuais, lembrando que, para nós, texto deve ser concebido em sentido amplo; por isso, podem ser construídos a partir de diversas materialidades simbólicas, a saber, pintura, linguagem oral, escrita, dança, uma poesia, uma aquarela, ou seja, toda materialidade que produza sentido e seja passível de interpretação. Como podemos notar, a criança produziu uma sequência cronológica por meio dos quadrinhos; de acordo com a teoria discursiva, não estamos procurando o sentido para o texto, uma vez que ele não é único, nem predeterminado. Podemos, sim, analisar algumas possibilidades de interpretação, que dizem respeito ao lugar ocupado pelo sujeito para falar sobre ser menina, as cores preferidas das meninas (o vestido rosa); os cabelos lisos e compridos, sentidos tão valorizados pela mídia e que acabam funcionando como dominantes no imaginário feminino; o encontro de duas meninas, talvez a disputa pela bola, bexiga e, depois, uma briga que terminou com a queda de uma delas. Temos, aqui, as meninas representando as crianças; a bola representando um brinquedo muito presente no universo infantil e, depois disso, a briga, resultado da disputa pelo brinquedo. Essa é apenas uma das múltiplas possibilidades de interpretação para este texto visual. No texto abaixo, temos outros sentidos muito presentes no universo infantil, isto é, a travessura, o subir em árvores, os tombos infantis, as quebraduras, o hospital. O sujeito obedeceu, Educação em Destaque Juiz de Fora, v. 1, n. 2, p. 87-101, 2. sem. 2008 93 coerentemente, à sequência cronológica dos fatos narrados, pois primeiro o menino subiu na árvore, depois levou um tombo, foi parar no hospital, observando que ficou no apartamento 209 e saiu de lá curado, pronto para novas brincadeiras, o que é sugerido pela presença do carrinho, à sua espera. A partir disso, as estagiárias fizeram, então, uma discussão acerca da atividade realizada, conversando sobre a “tirinha” produzida: o que aconteceu? Como aconteceu? Os fatos aconteceram ao mesmo tempo ou primeiro aconteceu isso, depois aquilo? Pediram, por fim, para que as crianças construíssem sua própria história não-verbal, apenas com desenhos. A importância do discurso da oralidade aqui é destacada, pois segundo as teorias que defendem o modelo ideológico do letramento (STREET, 1989), sabemos que há uma interdependência entre oralidade e escrita; tais teorias questionam a supremacia desta em relação àquela; além disso, podemos investigar a autoria tanto em textos orais, quanto em textos escritos (TFOUNI, 1995; 2001), o que passa a conferir à oralidade um lugar privilegiado nos estudos da linguagem. Somente após a realização dessas duas atividades, as estagiárias sistematizaram informações sobre a estrutura do texto narrativo, suas características, as regras de composição de uma história e o quanto elas podem ser deslocadas do escrito para o não-verbal e vice-versa. Em seguida, utilizaram a linguagem fílmica para mostrar aos alunos uma história que envolve outra percepção da relação da criança com o livro e a leitura. O filme selecionado foi Pagemaster: o mestre da fantasia. Foi feita uma discussão a partir de algumas questões, como: “Qual o problema que existe Educação em Destaque Juiz de Fora, v. 1, n. 2, p. 87-101, 2. sem. 2008 94 no filme? Existe um problema ou vários no decorrer do filme? Existem personagens? Como eles são? Existe ordem dos acontecimentos? Vocês costumam ir à biblioteca? Vocês conhecem diferentes bibliotecas? O menino do filme gosta de ler? E vocês?”. E assim foram postos em jogo comentários gerais dos alunos sobre o filme; eles puderam expor seus pontos de vista acerca dos sentidos que circularam neste texto. Foi possível fazer conexões entre a linguagem fílmica com aquilo que havia sido aprendido sobre texto narrativo nas modalidades verbal e não-verbal. Novamente, as estagiárias sistematizaram na lousa as informações trazidas pelos alunos a respeito do texto narrativo. Após esta etapa, mostraram-lhes outros textos narrativos que não por acaso versavam sobre o mesmo tema: a relação da criança com o livro e a leitura. Foram contadas duas histórias: Com prazer e alegria, de Ana Maria Machado e Histórias de um livro aberto, de J. L. Diego. As estagiárias procederam, então, nas aulas seguintes, voltando às narrativas e propondo que as crianças retomassem seus textos, relendo-os e até reescrevendo-os se necessário, compondo um processo de revisão que ajuda o aluno a compreender certos aspectos que lhe passaram despercebidos e, assim, a voltar à sua própria escrita, retroagir sobre o que ficou disperso (TFOUNI, 2001), amarrar com mais propriedade o seu dizer. Discordamos da metodologia docente de sugerir ao aluno “escrever rapidamente” um texto em sala e entregá-lo ao professor; julgamos necessário que o sujeito-autor volte ao seu escrito, retorne a suas palavras, releia o seu próprio texto, observando as marcas lingüísticas, debruçando-se sobre os pontos de fuga dos sentidos e entendendo-se com o seu próprio dizer. Esta atividade é suporte ao professor também para que ele identifique, a partir dos textos dos alunos e dos retornos a eles, o quanto estes ainda não compreenderam acerca daquilo que está sendo estudado, o quanto não puderam perceber de deriva em sua própria voz. Após a revisão dos textos, as crianças foram orientadas para produzir um livreto composto de suas narrativas. Para isso, as estagiárias organizaram as crianças em duplas; em seguida, propuseram-lhes que elaborassem um texto narrativo (em duplas), cujo tema era livro e leitura, tema trabalhado, até então, em sala de aula. Ressaltamos que os alunos deveriam escrever sem a preocupação de repetir um sentido já estruturado pelo outro, no caso, pelos autores lidos, instigando-os a ocuparem o lugar de autor de seu próprio texto, controlando os pontos de fuga dos sentidos, historicizando o dizer. Foi-lhes explicado que, para escrever um texto em dupla, é preciso conversar com o amigo, discutir as idéias de ambos e chegar a um consenso sobre o que seria escrito, prática que reclama trabalhar o caráter dialógico da linguagem (BAKHTIN, 1979). Esta Educação em Destaque Juiz de Fora, v. 1, n. 2, p. 87-101, 2. sem. 2008 95 dinâmica permeou a atividade da maioria das crianças, exceto de algumas duplas que fizeram uma divisão de trabalho por conta própria. Grande parte das crianças seguia a atividade discutindo, escrevendo, apagando, escrevendo de novo... As estagiárias tentaram não interferir, mas em alguns momentos surgiam dúvidas sobre como escrever certas palavras e, nesse caso, havia uma intervenção mais direcionada. Porém, o foco desta atividade não eram as questões gramaticais, mas sim, o texto narrativo. Esta atividade foi finalizada com as ilustrações das crianças para suas próprias histórias. As produções textuais mostraram que os alunos compreenderam o funcionamento do texto narrativo, bem como a proposta de intervenção que fora realizada, pois, nos textos, os alunos não repetiram os sentidos lidos em classe, e sim, criaram e recriaram novos textos. As estagiárias aproveitaram o momento para conversar sobre como os livros são feitos (páginas e capa), o que são as editoras, os ilustradores, como eram os livros na antiguidade, quem podia ler e escrever nessa época da história, como se constrói um título, a importância do título para a construção do sentido do texto e, principalmente, assinalaram que os sujeitos-alunos seriam autores de seus próprios textos, o que lhes causou tamanha admiração, encanto e espanto, uma vez que, para eles e, acreditamos para muitos professores, também, o lugar de autor está reservado só para os autores consagrados da literatura, aqueles que lemos e nunca os conheceremos, ou seja, um lugar que só é conhecido pela imaginação. Defendemos (PACÍFICO, 2002), em concordância com Tfouni (1995; 2001); Pfeiffer (1996); Gallo (1992), que a escola deve permitir ao aluno a assunção da autoria, que ele tem de sair da posição discursiva de copista, de escrevente e passar a ocupar a posição discursiva de autor, a partir da qual ele duvidará da transparência da linguagem, da ilusão de sentido único e realizará gestos de interpretação e de escrita considerando a relação da linguagem com a exterioridade, com a história e com a memória (PÊCHEUX, 1999). Sobre isso, entendemos que há sempre um já-dito anterior e exterior ao dizer que sustenta a possibilidade da leitura e da escrita, enfim, do discurso do sujeito, visto que o sujeito não é a origem das palavras, tampouco promove a inauguração da linguagem a cada momento em que enuncia. Nessa direção do estofo conceitual da teoria discursiva, as palavras são atravessadas por sentidos que já circularam em outros contextos sociais, são sustentadas pelo que delas já foi dito e legitimado como sentido dominante ou marginal. E tudo isso é fundamental para observarmos a constituição histórica dos sentidos e dos sujeitos, sujeitos estes que colocam em curso dizeres que, ora repetem e reafirmam, ora contestam outros dizeres, que calam sentidos, que Educação em Destaque Juiz de Fora, v. 1, n. 2, p. 87-101, 2. sem. 2008 96 discursivizam outras tantas maneiras de dizer aqueles sentidos já-ditos, nessa eterna narrativa que é a voz do sujeito, a linguagem, enfim, a vida. Contribuições fundamentais sobre o estudo da autoria trazem os trabalhos de Tfouni (1995; 2001) e Gallo (1992), mostrando que não é condição necessária ter domínio do discurso da escrita para instalar a autoria nos textos, mas que há a necessidade de o sujeito estar implicado no seu texto, de se constituir como responsável pelo seu dizer, criando um novo dizer a partir do já-dito, ou seja, assumir a função-autor além da de escritor (passar da paráfrase para a polissemia). Com base nessas considerações, analisaremos as produções escritas, observando se os alunos ocuparam, ou não, a posição discursiva de autor. Como podemos observar neste texto, a criança marca a importância do livro para a Magali. Podemos interpretar que o trabalho com os vários tipos de textos que abordavam o tema livro e leitura ecoou e reverbera na produção infantil, de um modo coeso e coerente, características fundamentais para que o princípio de autoria se instale. A paixão pela biblioteca, tratada no filme, também aparece, não como repetição, mas numa outra situação, com outros personagens que se articulam entre história em quadrinhos e contos de fada, os quais devem ser significantes para o sujeito-autor, que não repete as histórias em quadrinhos de Magali, tampouco reconta os contos de Educação em Destaque Juiz de Fora, v. 1, n. 2, p. 87-101, 2. sem. 2008 97 fadas citados em seu texto. Ao contrário, constrói, a partir do já-lá (interdiscurso) um intradiscurso e historiciza o fio discursivo que está tecendo. De acordo com Orlandi (1996b, p. 69): a função-autor se realiza toda vez que o produtor da linguagem se representa na origem, produzindo um texto com unidade, coerência, progressão, não-contradição e fim. (...) A nosso ver, a função-autor é tocada de modo particular pela história: o autor consegue formular, no interior do formulável, e se constituir, com seu enunciado, numa história de formulações. O que significa que, embora ele se constitua pela repetição, esta é parte da história e não mero exercício mnemônico. Podemos dizer também que, além de escrever sobre o tema proposto, o sujeito produz um texto narrativo, tipo de texto trabalhado durante a intervenção, e elege, para sua produção, um tipo específico de narrativa, um conto de fadas, começando com “era uma vez”. Apesar de não usar o final previsível nos contos tradicionais “foram felizes para sempre”, deixa implícita essa felicidade, uma vez que a menina “nunca se esquesseu o caminho da biblioteca”, sentido que nos faz lembrar da personagem de Clarice Lispector, no conto Felicidade Clandestina, que compara o livro a um amante, a uma felicidade jamais experimentada. Para nós, os sujeitos que produziram esse texto assumiram a autoria, pois mobilizaram sentidos que foram trabalhados em aula e, possivelmente, outros tantos aos quais os sujeitos têm acesso por meio da memória discursiva e a partir disso, produziram um texto criando o efeito de sentido de unidade, com começo, meio e fim amarrados e coerentes com a proposta de produção de um texto narrativo. Educação em Destaque Juiz de Fora, v. 1, n. 2, p. 87-101, 2. sem. 2008 98 O título do texto já sugere ao leitor uma nova possibilidade de leitura, porque não é uma nomeação dos contos tradicionais. Os autores, como no texto analisado anteriormente, não recorrem à repetição, mas sim, constroem o intradiscurso a partir do diálogo com o personagem de Bob Esponja e os sentidos que foram tecidos, durante a intervenção das estagiárias, sobre os livros. O “tapa”, que faz parte das brigas infantis, que é criticado pelos adultos, pais e professores, e o livro, tão valorizado durante a intervenção, aparecem como condensadores dos sentidos que serão expandidos no texto. Porém, os sujeitos-alunos ainda estão na fase inicial da aquisição da escrita; logo, não apresentam um longo desenvolvimento para as ações dos personagens, o que não nos impede de percebermos a progressão textual e a sequência cronológica, próprias do texto narrativo. Além disso, o texto apresenta marcas próprias da linguagem escrita, como o uso do travessão indicando a fala dos personagens, confirmando a concepção de muitos teóricos do letramento, dentre eles Tfouni (1995; 2001), Kleiman (1995), Rojo (2001), defendem que o sujeito pode ter um conhecimento sobre a escrita mesmo antes de aprender escrever. Observamos que, para os autores deste texto, o livro pode ser compreendido como algo que tem o poder de educar, de instruir, de promover a paz, sentidos que foram privilegiados e materializados no texto. Com relação à estrutura textual, temos um texto que começa com “era uma vez” e acaba com um “fim”, o que é encontrado nos contos de fadas, ou seja, mais um indício de que os autores infantis têm conhecimento sobre a linguagem escrita, mesmo sem terem produzido um texto longo, com parágrafos bem-definidos e desenvolvidos. O importante, para nós, não são os desvios da chamada língua culta ou padrão, tampouco o número de linhas; o que valorizamos é a escrita historicizada, nova e única nessa produção; os sujeitos não copiaram outro texto, mas sim, produziram um novo. A proposta de produção de uma narrativa foi compreendida, temos um texto narrativo e a assunção da autoria por parte dos sujeitos. Considerações finais Defendemos, com base em nossa experiência escolar, tanto na posição de alunas, quanto na posição de docentes, que o uso da língua culta e o desenvolvimento do texto oral ou escrito estão atrelados à leitura, pois quanto mais os alunos estiverem em contato com a leitura, a interpretação e a produção de textos, com as mais variadas materialidades simbólicas, mais próximos eles estarão de construírem textos interessantes, coesos, coerentes, uma vez que o acesso ao arquivo, como Educação em Destaque Juiz de Fora, v. 1, n. 2, p. 87-101, 2. sem. 2008 99 vimos, e o trabalho com o discurso polêmico, em sala de aula, são os alicerces de toda relação do sujeito com a leitura e a escrita, que ultrapassam, e muito, a reduzida atividade escolar baseada em preenchimento de lacuna, de cópia, de famílias silábicas descontextualizadas, em outras palavras, ultrapassam a visão de uma língua que só tem vida dentro das cartilhas e livros didáticos. No caso apresentado, se as estagiárias, em apenas quinze horas de intervenção, possibilitaram aos sujeitos-alunos condições para que produzissem seus textos, os quais deram corpo a um livro da segunda série, fica certo, para nós, que uma prática pedagógica que tenha como fundamentação os conceitos de autor, leitor, arquivo, memória, e reconheça que sujeitos e sentidos constroem-se junto com o texto, formará leitores e autores autorizados a usarem a linguagem, dentro e fora da escola. READING AND WRITING: SENSES OF NARRATIVE TEXT IN THE CLASS ROOM Abstract: That work has for objective to contemplate on the challenges of the pedagogic intervention in the process of construction of the narrative text for the subject-school, here nominated as student. Starting from the program of apprenticeship of the course of Pedagogy, of University of Philosophy, Sciences and Letters of Ribeirão Preto, we developed an intervention project in Portuguese Language in a second series in a school of the state net tends as horizon to provoke the subject-school ones produce her/it narrative texts working with the plurality of senses. Key words: reading; write; subject; narrative Notas: ¹ Aluna do Curso de Pedagogia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FFCLRP/USP). ² Aluna do Curso de Pedagogia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FFCLRP/USP). ³ Profa. Dra. da Graduação em Pedagogia e da Pós-Graduação em Psicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FFCLRP/USP). 4 Profa. Dra. da Graduação em Ciências da Informação e da Documentação e da Pós-Graduação em Psicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FFCLRP/USP). Professora colaboradora da Pós-Graduação em Ciência, Tecnologia e Sociedade da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Bolsista CNPQ. Educação em Destaque Juiz de Fora, v. 1, n. 2, p. 87-101, 2. sem. 2008 100 Referências Bibligráficas: BAKHTIN, Mikail. Problèmes de la poétique de Dostoïevski. Lausame: L’Âge d’Home, 1979. CORACINI, Maria José. A redação no livro didático e na sala de aula: criatividade e avaliação. p. 143-151. In: _____ (org). Interpretação, autoria e legitimação do livro didático. Campinas: Pontes, 1999. DIEGO, J. L. Histórias de um livro aberto. São Paulo: Editora Scipione, 2002. GALLO, Solange Leda. Discurso da escrita e ensino. Campinas: Editora da UNICAMP, 1992. GODOY, Célia. Ana e Ana. São Paulo: Editora DCL, 2003. KLEIMAN, Angela. (org.) 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