edição amaury menezes | ano 8 | r$ 15,00 0 700083 260123 o Anjo cAído A insurreição de lúcifer, o inimigo do bem teoria do aCaso teilhard de Chardin: é possível conciliar ciência e religião? músiCa talento e diversidade nos acordes clássicos da américa latina humor magazilda, entre poucas e boas - por mariosan antropologia An Raízes Jornalismo Cultural 2 antropologia nuncio Raízes Jornalismo Cultural 3 editoriAl editoriAl A edição Amaury Menezes ponteia suas páginas com matérias que percorrem o tempo no expressionismo da pintura do artista e na música eterna a reverberar os sons do Universo. Se pensarmos de acordo com o que pontua a filósofa e escritora Lúcia Helena Galvão Maya, a revista que você tem em mãos já estava no “Plano das Ideias” de Platão. Da forma como Raízes Jornalismo Cultural é feita, o conteúdo diversificado traz temas de interesse do leitor exigente: Estratégias Fantásticas para Sobreviver, as Faces de Lúcifer, o humor gráfico no cartoon de Mariosan, O Ponto Ômega de Chardin, A Arte da Fofoca e uma entrevista com a musicista Andréa Teixeira. Bravo! EDITORA EDITORA EDITORA LIVRES PENSADORES LIVRES PENSADORES LIVRES PENSADORES LIVRES LIVRES Raízes Jornalismo Cultural é uma publicação PENSADORES PENSADORES EDITORA EDITORA da Editora Livres Pensadores Ltda., filiada à ANER Avenida Anhanguera, 5.674 - Edifício Palácio do Comércio, Conjunto 1003, Centro CEP 74.043-906 - Goiânia -GO. Fone (62) 3945-4744 e-mAil [email protected] redAção Doracino Naves, Clara Dawn Naves, Celso Moraes F. editor-cheFe Doracino Naves - JP. 1661 ProdutorA-de-conteúdo Clara Dawn Naves editor de Arte Celso Moraes F. cheFe-de-rePortAGem Humberto Wilson diAGrAmAção Thálitha Miranda Projeto GrÁFico DoisZ Publicidade PrÉ-imPressão DoisZ Publicidade imPressão Revista Raízes Jornalismo Cultural é impressa pela Poligráfica Ltda., em papel pólen bold 90 gramas, nas capas, e pólen soft 70 gramas, no miolo. Tiragem desta Edição: 5.000 exemplares comerciAlizAção e distribuição [email protected] Distribuição Nacional Dirigida e em bancas. É permitida a reprodução do conteúdo desta revista, desde que citada a fonte. Todas as matérias e opiniões publicadas são de inteira responsabilidade de seus autores, não refletindo, necessariamente, a opinião desta revista. As informações divulgadas nos anúncios publicitários são de responsabilidade dos anunciantes. WWW.REVISTARAIZES.COM.BR CrÔniCas de GoiÁs Pouso alto... a ProGressista PiraCanjuba teoria do aCaso o Ponto ÔmeGa de Chardin meio ambiente estratéGias FantÁstiCas Para sobreViVer Gastronomia trio Gourmet restaurante uma delíCia de se Ver! memÓria o Piano FranCÊs de nhanhÁ do Couto entreVista andréa teiXeira músiCa, artilharia Para as VitÓrias e derrotas CaPa queda inFinita 30 40 eXPediçÕes sinFÔniCas 45 PinCéis musiCais 46 a arte da FoFoCa 50 Cartas dos leitores 52 Cartoon Por mariosan Foto da capa: Lamento de Ícaro - de Herbert James Draper -1898. Embora a imagem de Draper seja uma alegoria sobre a morte de Ícaro e não sobre a queda de Lúcifer, os dois temas são equivalentes, pois consideramos que ambos mostram a soberba e a ambição em voar mais alto do que se deve. Quem Fez? jÁVier Godinho Queda Infinita - Espiritismo É jornalista, redator da Hora do Ângelus desde a inauguração da TV Anhanguera, em 1963, até 2013. Completou, em 2015, 61 anos de jornalismo diário e, aos 79 anos, diz que não pretende parar de trabalhar tão cedo. jAdir de morAis PessoA Queda Infinita - Cultura Popular Na universidade, já fez coisas gratificantes: um doutorado na UNICAMP, que lhe propiciou o cargo de professor titular na UFG. Já pode até se aposentar. Mas o que não aposenta jamais é a pesca e a folia. Getúlio tArGino limA Queda Infinita - Neoteosofia É advogado, professor e escritor, não sabe qual das três atividades mais ama. Sabe que ama. Do interior, fica encantado com a natureza, a arte e a beleza, chegando ao cúmulo de fazer versos. Um dia, não se sabe como, passou a compor. Mais de cem músicas na capanga... lÁzAro euríPedes silVA Queda Infinita - Umbanda É Chefe de Terreiro desde 1970, tendo começado seu desenvolvimento em 1958. É um dos ícones da Capoeira Angola (O Mestre Mancha), Presidente e Capitão do Terno Moçambique e seu compromisso é o de transmitir a fé em Nossa Senhora do Rosário. VAldiVino brAz Queda Infinita - Literatura É jornalista, escritor e poeta. Articulista sarcástico, crítico de humor ácido, quer um mundo “realmente melhor”. É maníaco por livros. De modestas pretensões, almeja apenas o Prêmio Nobel de Literatura! Publicou 18 livros “imperfeitos” (diz ele), nove dos quais premiados em concursos. lúciA helenA GAlVão O Ponto Ômega de Chardin É voluntária e professora de Filosofia, palestrante e escritora. Fez filosofia porque rende «assunto» para todas as demais coisas. O voluntariado desperta-lhe uma vontade de crescer para ajudar a reescrever um pouco da História. cArmen cruz Crônicas de goiás - Reportagem É jornalista radicada em Goiânia desde o ano 2000. Trabalha como repórter na Secretaria de Desenvolvimento Econômico do Estado de Goiás. Ex-editora do periódico Porantim, do Conselho Indigenista Missionário. É teosofista. Adora falar com estranhos, andar descalça, assobiar por aí. Raízes jornalismo Cultural 6 Px silVeirA Pincéis musicais - Amaury Menezes É escritor, jornalista e gestor cultural. Estudou na França, onde também se dedicou à música. Recebeu vários prêmios por suas relevantes contribuições à cultura, dentre eles o Prêmio Mario Pedrosa 1998, da Associação Brasileira de Críticos de Arte/UNESCO. Tem a mania de achar que nunca fez nada e sonha em fazer tudo o que acha que não fez. leonArdo teixeirA A Arte da Fofoca É pós-graduado em direito. Tem sete livros publicados. Lançou em Portugal a obra ‹Poeira Vermelha›. Foi cronista do jornal O Popular de 2002 a 2005, e desde então escreve às quintas-feiras no jornal Diário da Manhã. É cinéfilo, adora ler e andar de bicicleta. FernAndA xAVier Ilustrações É ilustradora. Mineira do norte, do sertão visto e fechado, longe. Pois a lonjura ensinou a ser quase, porque sempre há espaço para se tornar um outro. Por isso, seu rabisco também pode acontecer no cinema ou na literatura. É quase muitas coisas, até professora uma vez por semana. cícero rodriGues Crônicas de Goiás - Piracanjuba Sempre se encantou com a arte de representar e, aos 15 anos, decidiu subir aos palcos. Foi feliz ali por anos, mas com o tempo se encantou mais ainda com a Educação. Pedagogo, pesquisou o universo da Psicanálise dos contos de fadas, muito próximo à sua primeira paixão. Hoje é o Secretário de Cultura de Piracanjuba. isAbelA Pistelli Ilustrações Tem o sobrenome italiano, mas o rosto é oriental e a naturalidade é paulista. Confessa-se apaixonada pelo desenho desde os seis anos de idade e por isso estuda artes plásticas na UFG. Sonha viajar pelo mundo e viver de sua arte. edGAr FrAnco Ilustrações Tem formação em arquitetura e urbanismo, mas prefere mesmo é produzir quadrinhos, música e arte performática. É escritor e estudioso de hqtrônica. Doutor em Artes, leciona na Universidade Federal de Goiás. rAriAnA FerreirA A música clássica na América Latina É uma jornalista vilaboense que, assim como Clarice Lispector, se autodefine como “tímida ousada”. Refez, apagou e consertou esta minibiografia incontáveis vezes. nelson jorGe dA silVA jr. Meio Ambiente Professor universitário, biólogo e historiador. Movido pela paixão por trabalhar com serpentes venenosas há mais de 30 anos. Às vezes reúne-se, a trabalho, nos botecos mais deslocados da cidade. AnnunziAtA sPencieri Nhanhá do Couto É pianista, especialista em música e em técnica pianística, doutora em crítica literária, professora aposentada da Escola de Música e Artes Cênicas da UFG e, dentre inúmeras funções, foi presidente do Conselho Estadual de Cultura. GoiAnA VieirA Crônicas de Goiás - Progressista Piracanjuba É graduada em canto e licenciada em música pela UFG. Representou Goiás na l’Église de La Madeleine, em Paris. Cantou para Pedro Ludovico Teixeira e Juscelino Kubitschek. Tanta elegância não lhe rouba o sonho de ensinar música para crianças carentes. mAriosAn Cartoon Sonhava em ser design de automóveis em São Paulo. Infelizmente – ou felizmente – isso não se concretizou e ele acabou se identificando com as charges, caricaturas e ilustrações jornalísticas. Já caricaturou meia Goiânia e ilustrou vários livros, cartilhas, folders… FeliPe toGnoli Ilustrações Ilustrador paulista, noivo da Amanda, é com o desenho que mais se diverte. Desenha desde os 5 anos, mas o que despertou seu desenho depois de “velho” foi sua maior inspiração, o cartunista Henfil. No humor, é fã de Ronald Golias. Na vida, é fã da própria avó. AndrÉ FrAnco Crônicas de Goiás - Reportagem É jornalista, mestrando e doutorando em Cinema Latino-Americano pela Universidade da Geórgia, nos Estados Unidos. Atualmente, é Gerente de Artesanato no Governo de Goiás (SED/GO) e Coordenador do Programa do Artesanato Brasileiro em Goiás (PAB/GO). Cultura Cultura • Biblioteca Saúde Saúde • Nutrição Educação Educação • Educação Infantil • Educação Infantil • Educação Fundamental • Educação Fundamental • Ensino Médio • Ensino Médio • Cursos de Idiomas de Idiomas • Cursos e Qualificação • Nutrição • Odontologia • Odontologia • Ações Educativas Ações Educativas • em Saúde em Saúde • Biblioteca • Atividades • Atividades Artístico-Culturais Artístico-Culturais e Oficinas e Oficinas • Cursos • Cursos Lazer Lazer • Modalidades • Modalidades esportivas e esportivas academia e academia • Recreação • Recreação • Hospedagem, Hospedagem, • excursões e excursões passeios e passeios Assistência Assistência • Trabalho Social Social • Trabalho com Idosos com Idosos Comunitária Comunitária • Ação • Ação e Qualificação Raízes Jornalismo Cultural 7 Foto FÁbio alVes Pouso Alto... Raízes jornalismo Cultural 8 crônicas de goiás ...A progressista Piracanjuba U m mundo de lembranças imerge no mistério do tempo e nos faz recordar nossa infância, as suaves manhãs, as tardes de bochorno e as noites enluaradas de nossa Piracanjuba. Assim como o céu límpido dessa terra do guarda-mor Francisco José Pinheiro expõe garbosamente o firmamento prenhe de estrelas qual manto cravejado de diamantes, nosso coração se enche de luz ao contato com nossa terra e nossa gente. Piracanjuba da infância e primeira juventude e de onde, na verdade, nunca nos afastamos. A alegoria do filho pródigo não cabe em nossa história. A antiga Pouso Alto, hoje metamorfoseada na progressista Piracanjuba, nada fica a dever às outras comunas goianas quanto às letras e às artes. Terra de Léo Lynce, cognominado o príncipe dos poetas goianos e talvez o mais fecundo escritor nascido no século XIX na terra do Anhanguera, tem arraigada, em si, excelente tradição cultural. Uma plêiade de homens e mulheres dedicados à literatura, às artes cênicas, musicais e plásticas orgulha esta terra. Para não correr o risco de esquecer tantos nomes, lembro aqui os que já não estão, fisicamente, entre nós: Léo Lynce, Eduardo Rossi, João Accioli, Professor David da Silva Mauriz, Virgílio Soares, Heulália das Graças Roza Calzada, Ely Rocha da Silva, Sebastião Francisco de Oliveira, Manoel Alves de Souza, Noêmia Honorato da Silva e Souza, Francisca Faleiro de Souza, a atriz Thelma Salim Reston e Benedito Braz dos Reis que, com Caçula, formou a famosa dupla Caçula e Marinheiro. Não poderíamos deixar de mencionar o nome da cantora lírica Mione por Goiana Vieira Amorim, que nos anos 40 e 50 abarrotou as plateias do teatro municipal no Rio de Janeiro. Chegando à então capital federal, de imediato se apresentou no programa de calouros de Renato Murce, na Rádio Nacional. Cantou e venceu o concurso, conquistando o primeiro lugar sem fazer sequer uma aula de canto. Após o sucesso, Mione foi convidada para se apresentar no Teatro Carlos Gomes, em uma festa para artistas como Emilinha Borba e Ângela Maria. Foi outro sucesso que abriu ainda mais as portas para a jovem artista piracanjubense. No auge, ela foi convidada para um projeto pioneiro, passando a integrar o elenco da novela “Adeus às armas”, na TV Tupi. Tanto agradou que foi convidada para outras produções. Trabalhou ao lado de artistas consagrados, como Manoel de Nóbrega, Ronald Golias e Chico Anysio. Apresentou um programa chamado “Artistas Mirins”, na TV Rio. Piracanjuba expressa a arte, não só no estro de poetas e escritores, mas pontifica na música, arte à qual nos entregamos desde nossa infância. Com que saudade lembro das missas e quermesses por ocasião da festa de agosto, quando toda a população da cidade e da zona rural se encontrava para o louvor à excelsa padroeira Nossa Senhora da Abadia. Lembro-me, co- movida, de frei Leônidas Flores da Cunha, excelente latinista que nos auxiliava na pronúncia para os cantos litúrgicos. Na pintura, diversos piracanjubenses se notabilizam, transportando para as telas em cores diversas, de cambiantes matizes, paisagens, temas locais ou não, de características tradicionais, algumas quase conservadoras ou que se podem classificar entre os diversos estilos da arte de pintar. Artistas plásticos de Piracanjuba têm exposto seus trabalhos não só fora de Goiás, mas, também, no exterior. Nossa cidade é hoje uma das mais importantes referências da orquidofilia brasileira. O Círculo Orquidófilo de Piracanjuba promove salões com participação de expositores brasileiros e estrangeiros, com exibição de três a quatro mil plantas. Piracanjuba, por meio das expressões do belo, congrega os que têm o mesmo ideal e coopera para o resgate da cidadania em sua relação com a identidade, a memória e a história de uma comunidade que enobrece Goiás. Goiana Vieira Cantora lírica P iracanjuba é também representada pela Academia Piracanjubense de Letras e Artes (APLA), fundada em 26 de outubro de 1990. Congrega escritores, artistas plásticos, escultores, historiadores, músicos... Tem por missão incentivar, divulgar, resgatar e produzir cultura. A cantora lírica Goiana Vieira da Anunciação é a atual presidente, assumindo assim um “cargo que já foi ocupado por Léo Lynce, Maria Augusta de Santana Morais e Ney Teles de Paula. A alma de um quilombo Remanescentes da comunidade Tamarindo, em Piracanjuba, têm no artesanato um dos maiores instrumentos de reafirmação da identidade quilombola N os crivos abertos no linho, a delicadeza de quem borda um novo dia. Mãos habilidosas que vão tecendo fuxicos para as cabeleiras das bonequinhas pretas, enchendo de graça e de cores a vida das crianças. Mulheres determinadas a fazer das tramas dos teares o aconchego merecido, mas que a vida, quase sempre, lhes furtou. Dias a fio, fiando novos caminhos. Despertando no barro o sopro de esperança que vai se erguendo na reconstrução de um passado de dores e de sonhos. Quando essas mulheres se reúnem para coser, bordar, cantar e tecer, elas buscam mais que a produção de peças artesanais a serem comercializadas. Essas mulheres negras se juntam para forjar, ponto a ponto, um novo destino para as suas gerações, valorizando e recontando a história e a luta dos seus antepassados, de homens e mulheres valentes que disseram não à violência da escravidão e souberam conservar, mesmo guardada a sete chaves, a cultura de resistência, com suas congadas e capoeiras, seus quitutes e cantos. São mulheres de todas as idades. E, também, alguns homens. Vivem em diferentes bairros do município goiano de Piracanju- Por Carmen Cruz ba, a 85 quilômetros da capital, e até pouco tempo atrás estavam dispersos. Muitos nem se conheciam, embora tivessem em comum as raízes, fincadas na Comunidade Tamarindo, um dos núcleos originais de formação da cidade. Tamarindo foi uma comunidade que se formou a partir de famílias de escravos fugidos das minas de Santa Cruz e, bem antes, das minas de ouro encravadas nas montanhas gerais. Com o crescimento da cidade, as famílias quilombolas foram migrando para a periferia. Grande parte delas vivia até meados do século passado sob os limites de Raízes Jornalismo Cultural 9 Crônicas de goiás Artesã quilombola mostra sua arte Foto de André Saddi um silencioso apartheid no bairro chamado Macambira, onde, segundo relatos da presidente da Associação Quilombola Ana Laura, Lucy Helena Roza Tavares, ninguém se aventurava a ficar na rua após as seis da tarde, temendo a repressão. No Macambira, a população predominantemente negra vivia em condições precárias e sob suspeição. E foi há meio século que os vicentinos de Piracanjuba construíram um bairro, que leva o nome da congregação, para transferir e dar melhores condições à comunidade que vivia literalmente apartada e sofrendo toda a sorte de discriminação. A Associação Quilombola H á três anos, a Associação Quilombola Ana Laura vem reacendendo nessas famílias a alegria de uma identidade que une, que agrega, que fortalece. Criada por Eulália Roza Tavares, a entidade congrega cerca de 150 famílias remanescentes da Comunidade Tamarindo. Com a morte, no ano passado, da fundadora, a irmã de Eulália, Lucy Tavares, assumiu a Associação, disposta a manter o vigor da luta que visa despertar a consciência do povo quilombola e pôr fim ao racismo e à discriminação contra o negro. Inicialmente se reunindo na cozinha da própria casa das fundadoras, a Associação Quilombola Ana Laura ocupa há cerca de um Raízes Jornalismo Cultural 10 ano as instalações do antigo centro comunitário do Setor São Vicente de Paulo, cedidas pelos vicentinos em regime de comodato. Um divisor de águas para a comunidade, que agora tem lugar para se reafirmar e apresentar a toda a população de Piracanjuba e às centenas de visitantes os resultados dessa recente trajetória de reconstrução da própria identidade quilombola. A entidade ganhou o nome de Ana Laura em homenagem a uma escrava que muito lutou contra o regime escravagista nos garimpos de Minas Gerais. Dois netos dela são associados da entidade e dão suporte aos trabalhos que a Associação Quilombola vem realizando: Anastácio Jacinto, 69 anos, e Ana Maria da Cruz Dias, 58 anos, são primos e estão sempre na sede da entidade, contando histórias e repassando aos mais novos o que eles viveram na infância na Comunidade Tamarindo, onde o 13 de Maio era ocasião de muita festa, em que se enterravam os tamarindos e se dançava o dia inteiro. Para Ana Maria, a Associação é muito importante: “Dá mais alegria pra gente, que convive com outras pessoas sem ser discriminada”, diz. Fátima de Souza Mendonça, outra associada, é filha de Juarez de Souza, um dos cinco irmãos de tocadores e cantadores do 13 de Maio. “Eu me lembro de ajudar a enterrar os tamarindos, mas como era muito pequena não podia dançar não, só observava”, afirma ela, lembrando que sua família ajudou a manter a tradição das festas na Comunidade Tamarindo. “Minha mãe ainda mora lá, porque era uma área grande e foi sendo dividida para toda a família”, acentua. A entidade hoje tem o apoio da Secretaria Municipal de Cultura de Piracanjuba e, também, a atenção da Gerência de Artesanato da Secretaria de Desenvolvimento Econômico, Científico e Tecnológico e de Agricultura, Pecuária e Irrigação (SED) do estado de Goiás. O gerente André Franco esteve recentemente na comunidade para a entrega das Carteiras Nacionais do Artesanato a todos os artesãos quilombolas naquele município. Ao fazer a entrega, André Franco destacou que Piracanjuba é o sexto município goiano em número de artesãos cadastrados. Já foram entregues 91 carteiras naquela cidade, 22 delas a artesãos quilombolas. O artesanato A inclusão de representações da cultura negra na produção artesanal é uma das preocupações da Associação Quilombola Ana Laura. Para a confecção das bonequinhas pretas, a entidade formou um grupo chamado “As Lalinhas”, em homenagem à Eulália, fundadora da Associação. As Lalinhas costuram feltros ou pintam estruturas plásticas para os corpos das bonecas e tecem vestidos de chita. Enchem de enfeites as graciosas pequenas, que vão fazer brilhar os olhinhos de muitas meninas. “Não encontramos bonecas negras para comprar e decidimos investir com toda a criatividade para oferecer o melhor às nossas crianças”, declara Lucy Roza. “São brinquedos que representam a nossa cor, a nossa gente, as nossas raízes”, frisa ela. crônicas de goiás Dentre as bonecas criadas, uma se destaca e é motivo de festa no grupo: Lucy, com cabeleira exuberante e mesclada com cores de castanha e mel, como o cabelo da presidente da associação, a professora Lucy. “Já fizemos mais de 40 bonecas e vamos agora diversificar, criar outros modelos”, diz a líder da comunidade. As tradicionais “namoradeiras”, para serem colocadas nas janelas, são outras peças em produção pelas mulheres quilombolas de Piracanjuba. Os bordados em linhas brancas com crivos e pontos cheios embelezam peças para toda a casa, como forros, panos de prato, caminhos de mesa e outros itens que encantam os visitantes. Peças de teares de prego e outras tecidas em teares maiores também são atração para os que vão à Associação Quilombola Ana Laura, assim como as máscaras em papel machê ou em barro. Há também as cerâmicas feitas em oficinas coordenadas pela ceramista Lourdes Jordão, que buscam resgatar as originais pe- ças utilitárias das famílias quilombolas que continham traços feitos com tinta branca sobre o barro ou cores fortes. Às tradições, essas mulheres vão incorporando sementes e flores secas do Cerrado brasileiro, criando uma identidade única também para o artesanato que ressurge com força e determinação. “Creio que ainda não há condições para que elas tenham o retorno financeiro que deveriam ter, mas que esse encontro delas aqui na associação faz muita diferença na vida de cada uma delas, ah, isso faz!”, afirma Lucy. “Quando nós estamos bordando ou costurando nossas bonecas, nossos panos, estamos na verdade colocando nossos sentimentos pra fora em forma de arte, de amor, e é isso que nos torna pessoas melhores, mais felizes, e é dessa forma que vamos ser reconhecidos”, diz Lucy, que é professora aposentada e que durante toda a vida profissional teve que lutar contra o preconceito em sala de aula. “Muitas crianças desis- tiram de estudar porque eram negras e não tiveram a base que eu tive para ter orgulho de suas origens”, comenta, reforçando que o trabalho da Associação Quilombola tem como maior objetivo deixar um legado às crianças e aos jovens negros, fortalecendo -os na luta contra o preconceito. Hoje, ao invés de ir às escolas falar de negritude, a entidade recebe estudantes, professores e pesquisadores na sua sede. E ao som das caixas do grupo de dança Dandara ou do berimbau do mestre Rato, da capoeira, que agrega mais de 20 jovens negros da comunidade, as mulheres quilombolas de Piracanjuba seguem tramando e acalentando sonhos de um mundo melhor, mais humano e igualitário, com mais respeito à diversidade e mais oportunidades para todos. Carmen Cruz Jornalista Piracanjuba “Terra eleita da pródiga natura” Por Cícero Rodrigues Pinheiro O verso no título é do príncipe dos poetas goianos, Léo Lynce, heterônimo de Cyllenêo Marques de Araujo Valle, nascido na antiga Pouso Alto, hoje Piracanjuba. Bendiz a terra natal, de exuberante natureza, que serviu muitas vezes de inspiração para os textos do príncipe-poeta. Piracanjuba é considerada um celeiro da cultura goiana; terra de grandes escritores, artistas plásticos, músicos e vários outros de todos os setores culturais. A Cultura, que antes, devido a diversos fatores, não era valorizada como deveria, abriu espaço para a criação da Secretaria Municipal de Cultura, o Sistema Municipal de Cultura e o Fundo Municipal para o incentivo público aos projetos culturais. A Secretaria de Cultura do município, com o apoio do prefeito Amauri Ribeiro, desenvolve ações no sentido de proteger, preservar, incentivar todas as manifestações da cultura local. Com essa estrutura administrativa garante aos cidadãos o acesso irrestrito aos bens culturais, um direito inalienável. Foram realizados mais de trinta espetáculos teatrais, além de oficinas para jovens e educadores, além do Festival “Piracanjuba-Uçu”, que atraiu um público estimado em 6.000 pessoas. Mais três mostras de cinema, espetáculos de dança, três edições do Brejo Festival, importante ação de valorização da música independente, além do incentivo aos projetos locais, ligados à Secretaria de Cultura, ilustração felipe Tognoli como as Associações Quilombola, Fiandeiras e Orquestra Sertaneja, Projeto de Música “Cordas, Canto e Encanto”, e Orquestra Sinfônica de Piracanjuba. Diante desse novo cenário que se criou para a Cultura de Piracanjuba, foi possível repensar efetivamente nossa cidade como um berço da cultura, com a formação de novas plateias, descobrindo artistas que antes ficavam restritos às suas famílias e agora contam com recursos da prefeitura e espaços adequados para a fruição dos seus trabalhos. Piracanjuba conta, enfim, com uma Secretaria reservada aos fazedores de arte de nosso município. Isso é um marco muito importante para todos aqueles que se preocupam com a preservação e o estímulo aos valores culturais de nossa cidade”. Cícero Rodrigues Secretário de Cultura da Prefeitura de Piracanjuba Raízes Jornalismo Cultural 11 Ilustração Edgar Fra nco Raízes Jornalismo Cultural 12 filosofia O Ponto Ômega de Chardin Teilhard de Chardin e o enlace entre religião e ciência N ão é incomum que tenhamos ouvido falar do Renascimento Cultural, e da grande “inimizade” criada nessa época entre a ciência nascente e a negativa da Igreja recém-saída da Idade Média em revisar seus dogmas. Mas todos sabemos o quanto essa discussão se acirrou quando Charles Darwin publicou sua “A Origem das Espécies”, em 1859 (acentuada pela posterior publicação de “A Descendência do Homem”, em 1871). A chamada “seleção natural”, um processo em que, através do tempo, as características mais positivas para a sobrevivência vão se firmando e os espécimes que as contêm vão sendo “selecionados” para prosperar, ocorrendo assim com todos os seres (inclusive o Homem), parecia confrontar a ideia de um Universo criado diretamente por Deus. Em meio a essa dissociação aparente, sempre surgirão conciliadores. Um dos mais bem sucedidos pelo brilhantismo de suas ideias e pelo fato de pertencer aos Por Lúcia Helena Galvão Maya “dois mundos” simultaneamente (era sacerdote jesuíta e brilhante paleontólogo) foi o francês Pierre Teilhard de Chardin, nascido em Orcines em 1881. Chardin teve uma vida bastante intensa, pontuada por posturas que foram assumidas e sustentadas até o final dos seus dias: ordenado sacerdote pela Companhia de Jesus em 1911; doutorado em paleontologia pela Sorbonne em 1922. Nesse mesmo ano, acusado de questionar o dogma do pecado original em seus escritos, é enviado para Tianjing, na China, onde permanece por 24 anos. Aí, alcança seu momento mais relevante como paleontólogo, participando do achado do fóssil do Sinantropo ou Homem de Pequim, e é também nesse período que atinge seu maior brilhantismo filosófico com a redação de sua obra maior, “O Fenômeno Humano”. Segue para os Estados Unidos, a convite, em 1950, onde falece, em 1955, na cidade de Nova York, sem ver nenhum livro seu publicado em vida. Outrora, carregava-se para vosso Templo a primícia das colheitas e a flor dos rebanhos. A oferenda que esperais, agora, aquela de que tendes, misteriosamente, necessidade, a cada dia, para aplacar vossa fome, para acalmar vossa sede, não é nada menos do que o crescimento do mundo impelido pelo devir universal”. Chardin, “A Missa sobre o Mundo” Raízes Jornalismo Cultural 13 filosofia Criação e evolução sem rivalidades E artista homenageado amaury menezes (divulgação) volução vem do latim evolutio, “ato de desenrolar um livro” (na época dos pergaminhos em rolo), formado por ex-, “fora”, mais volvere, “enrolar”. Ou seja, a evolução torna visível, como criação, como “Verbo”, aquilo que já se encontrava escrito no “pergaminho enrolado” da criação: a semente do Universo, a Mônada, o “plano das ideias” de Platão. Na chave hermética egípcia, o princípio do mentalismo diz: “Tudo é Mente; o Universo é Mental”, ou seja, a criação seria uma ideia na mente de Deus, que, em seu tempo, evolui precisa e elegantemente segundo leis criadas por Ele mesmo; criação e evolução seriam partes complementares de um mesmo processo. Essas leis do mundo observável, “braços de Deus estendidos sobre o Cosmos”, segundo a filosofia hindu, são o objeto da ciência; mas, indo além daquele horizonte cien- “Tudo o que sobe, converge” C Ilustração Felipe Tognoli Raízes Jornalismo Cultural 14 hardin pensa a manifestação aproximadamente da seguinte maneira. um Ponto Alfa, Deus, que faz o Universo existir e “explodir” em formas de vida que tendem para uma perfeição cada vez maior, segundo leis que também são obra de Deus. Depois, num fluxo de convergência, a vida vai se unindo em formas cada vez mais complexas (vide átomo, moléculas, células), até chegar à vida e, depois, ao cume da vida, o ponto de consciência reflexiva, que é o Homem. A mesma convergência deveria seguir, unindo os homens entre si, unificando todos os seres, até voltarem “à casa do Pai”, o Ponto Ômega, onde tudo se encaixa novamente. A energia utilizada para este processo seria o amor. Chardin enuncia: “Tudo o que sobe, converge”. Se escalamos uma pirâmide, sabemos que estamos todos subindo, se estamos ficando mais próximos uns dos outros. Para ele, a energia atrativa desse processo é o Amor. Para o grego Hesíodo, em sua Teogonia, quando o Universo, ao nascer, se divide, surge Eros, o antigo, o Amor que faz com que as coisas se movam buscando a Unidade perdida. E o testemunho tífico de singularidade que impulsionou o Big Bang, o “Ponto Alfa” desde onde as leis conhecidas começam a atuar, há o mistério de como o “nada” tornou-se “algo” (criação). Como dizia Santo Agostinho, em suas “Confissões”: “Meu Deus, que sois o Criador de tudo o que foi criado. Se pelo nome de ‘céu e terra’ se compreendem todas as criaturas, não temo afirmar que antes de criardes o céu e a terra não fazíeis coisa alguma. Pois se tivésseis feito alguma coisa, que poderia ser senão criatura vossa?” Ou seja, o tempo é gerado no momento da criação, como repete Chardin. Nada pode ser feito num cenário em que tempo e espaço ainda não estavam presentes. Mas as teorias sobre evolução não se detém aqui; ainda há muitos pergaminhos a desenrolar. de que esse Amor é real é o quanto nos tornamos mais unos, fraternos e humanos: Diante da bela sugestão de Teilhard de Chardin sobre a necessidade de um amor desse nível para que a evolução humana siga seu curso e cumpra seu papel, talvez não seja demais concluir este breve artigo com a etimologia da própria palavra Amor: proveniente do indo-europeu ama, crê-se que nasceu do balbucio do bebê chamando pela mãe, ou seja, clamando por um amor desinteressado, que alimenta, protege e ajuda a crescer. Um amor purificado de qualquer egoísmo, que permite que a vida se manifeste e se expanda através dele. A visão idealista e profunda de Chardin prenunciava a possibilidade do exercício desse amor por todos os seres humanos, numa demonstração inspiradora de fé e de esperança na humanidade. Um homem capaz de elevar a si mesmo até Deus através do mérito da construção de si próprio e da mística do amor: eis a evolução humana, para Chardin. Lúcia Helena Galvão Maya Filósofa e escritora Raízes Jornalismo Cultural 15 estrAtÉGiAs FAntÁsticAs PArA sobreViVer A vida na terra é o resultado de um longo processo evolucionário, que produziu milhões de formas, em resposta a processos adaptativos únicos e complexos conhecidos como seleção natural Raízes jornalismo Cultural 16 Por nelson jorGe da silVa jr. Raízes Jornalismo Cultural 17 meio ambiente artista homenageado amaury menezes (divulgação) A Amplitude da Biodiversidade A biodiversidade não é a definição de um inventário das formas viventes na terra, mas também de suas inter-relações entre espécies semelhantes e as demais em suas áreas de vivência, sejam microrganismos, fungos, plantas ou animais. Nesse processo de adaptação, os seres vivos desenvolveram estratégias fantásticas para sobreviver em ambientes extremos (temperatura, salinidade, altitude, profundidade), se locomover, se reproduzir (sexuada ou assexuadamente), se defender e se alimentar. Todos esses aspectos são extremamente relevantes e, somados à diversidade propriamente dita, resultam na necessária valoração e conservação desses atributos. O ser humano (Homo sapiens) está inserido nesse procedimento, como uma espécie animal extremamente bem sucedida, que faz uso da biodiversidade em toda a sua ação evolutiva. Entretanto, essa importância é muito negligenciada ou pouco compreendida pela população em geral. Assim, poderíamos tratar, de forma sim- Raízes Jornalismo Cultural 18 plificada, da relevância da biodiversidade em quatro níveis: a) alimentos; b) drogas e medicamentos; c) recursos hídricos; d) respeito à vida. A Revolução Neolítica A s grandes descobertas tecnológicas da pré-história humana incluem a invenção e o desenvolvimento de ferramentas, a descoberta e o controle do fogo, as invenções da agricultura e da roda. O período Neolítico (7 a 10.000 a.C) marcou a história da humanidade, onde a transição de caçadores-coletores para agricultores primitivos ocorreu tão abruptamente que o período é geralmente conhecido como Revolução Neolítica. A agricultura deve ser interpretada como uma série de descobertas envolvendo a domesticação de animais e plantas e o seu manejo. A origem precisa do primeiro centro de agricultura é muito debatido, mas evidências apontam para o período entre 8.000 e 10.000 a.C. no vale dos rios Tigre e Eufrates (Mesopotâmia = Iraque), Indo (Índia-Paquistão) e Nilo (África). A evidência mais antiga do desenvolvimento da agricultura ocorreu em uma área conhecida como o Crescente Fértil (Iraque – Síria – Líbano – Israel). A curiosidade e a capacidade de observação permitiram ao homem primeiramente a coleta das mudas de plantas e seu traslado para locais mais próximos e, subsequentemente, o aprendizado do uso das sementes. Esse processo é chamado de domesticação, ou seja, como ocorre com os animais, aprender os cuidados do plantio e a manutenção de culturas que formaram a base da alimentação humana no mundo todo, representada principalmente pelo trigo. De forma semelhante, foi a domesticação de animais hoje incorporados às nossas vidas, como vacas, cavalos, cabras e galinhas. Com o desenvolvimento da agricultura, o homem também foi aprendendo aos poucos que os solos se exauriam facilmente com o uso constante e que as culturas sofriam com pragas e baixa adaptabilidade quando transportadas para outros ambientes. Isso daria origem a cruzamentos entre plantas e entre animais procurando melhores opções de adaptabilidade. Atualmente fazemos o mesmo que nossos antepassados. Empresas como a EMBRAPA (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária) pesquisam sobre a melhoria de sementes de várias culturas para um cultivo mais independente do uso de agrotóxicos. Entretanto, antes dessa manipulação genética, vem a estruturação de um enorme banco de sementes nativas, que são utilizadas para a melhoria dessas características, mantendo certa variabilidade genética necessária. Além disso, envidam esforços no conhecimento de espécies de todos os biomas brasileiros, desvendando os processos de quebra de dormência das sementes e as melhores características para o plantio e manejo de culturas. Um grande exemplo de domesticação e uso de plantas do Brasil é a mandioca (Manihot esculenta), dominada pelos indígenas brasileiros antes da chegada dos portugueses, sendo hoje a terceira maior fonte de carboidratos nos trópicos, depois de arroz e milho. Dessa forma, todas as plantas e animais que estão incluídos na dieta humana tiveram origem nessa biodiversidade explorada desde o período da Revolução Neolítica. Muitos são pesquisados hoje com alta tecnologia e incorporados com enorme eficiência e respaldo nutricional. Um ótimo exemplo é a semente (ou castanha) do baru (Dipteryx alata), uma árvore do cerrado (baruzeiro) que, por muito tempo foi utilizada como mistura em rações para o gado e hoje tem comprovada a sua importância nutricional e de controle do colesterol, por meio de uma pesquisa extremamente importante desenvolvida pela Universidade Federal de Goiás. À semelhança desses exemplos, temos inúmeras outras pesquisas em andamento em vários polos da EMBRAPA e outras instituições de ensino no Brasil. Tudo em torno da biodiversidade de plantas nativas diretamente aproveitáveis na agricultura. A sele- meio ambiente ção natural produziu as formas iniciais das plantas e hoje se produz um tipo de seleção artificial na busca por espécies mais adaptáveis a outros ambientes. Com animais, a lógica é a mesma e basta relatar três seres importantes na história do homem: vaca, cavalo e cachorro. De uma espécie de gado primitivo (Bos primigenius), duas ou três domesticações foram possíveis. O grupo taurino (Bos taurus) foi domesticado no Crescente Fértil (aproximadamente 8.500 anos a.C.), no sul da Turquia, em uma região contida no complexo das Montanhas Taurus. Com o tempo, o gado taurino se espalhou junto com as migrações humanas, alcançando o nordeste da Ásia há 5.000 anos a.C. O grupo indiano (Bos indicus), também conhecido como zebuíno, foi domesticado no vale do Rio Indo há cerca de 7.000 a.C., com duas formas conhecidas. Uma terceira possiblidade de domesticação pode ter acontecido na África (Bos africanus), entre 6.500 e 8.000 a.C. Provavelmente utilizado a princípio como tração animal, esse grupo ajudou muito a Evolução Neolítica também com a produção de leite, carne e couro. Todas as raças variantes manipuladas por cruzamentos e melhoramentos genéticos tiveram a sua origem nesses grupos inicialmente domesticados da natureza. A domesticação do cavalo também não foi diferente. A princípio caçado para obtenção de carne, o cavalo (Equuus caballus) foi domesticado para uso em tração, transporte e obtenção de leite por muitos grupos humanos das estepes da parte oeste da Eurásia entre 3.500 e 4.000 a.C. Todas as raças conhecidas foram derivadas dessa espécie. Outros exemplos de animais domesticados importantes incluem o porco (Sus scrofa – 9.000 a.C.), a ovelha (Ovis aries – entre 9.000 e 11.000 a.C.), a cabra (Capra aegagrus – 8.000 a.C.) e a galinha (Gallus gallus – 6.000 a.C.). Dentre esses exemplos, o mais emblemático é o cão (Canis domesticus). Inúmeras teorias tentam explicar como ocorreu essa domesticação a partir do lobo europeu (Canis lupus), sendo que todas convergem para o afeto, companheirismo e guarda. Tão importante na história do homem que precede os acontecimentos da Revolução Neolítica, com sua domesticação ocorrendo entre 25.000 e 30.000 a.C. Esses exemplos ilustram um aspecto da biodiversidade, que é a observação direta de organismos no ambiente envolvente do ser humano e o aprendizado de seu uso, o que permeia todas as outras formas de uso desses recursos naturais, lembrando que esses processos de domesticação (plantas e animais) foram extremamente lentos. Preocupações com pragas, doenças e manejo genético vieram muito depois. Sob uma lógica estritamente biológica, as espécies são produzidas através de um processo evolutivo de especiação onde a seleção natural é o único esclarecimento para a adaptação. Nesse sentido, para ser produzido por seleção natural, um órgão precisa ser vantajoso para seu possuidor artista homenageado amaury menezes (divulgação) em todas as fases de sua evolução. Alguns órgãos (ou novas combinações genéticas) evoluem por modificações contínuas de um órgão preexistente, porque a função é contínua. Outros evoluem por modificações contínuas, mas com uma mudança em sua função. Essa é uma forma de valoração da biodiversidade. Os seres vivos estão na face da terra por um motivo lógico e merecedor de sua trajetória evolutiva. “Nem tudo que macaco come pode servir de alimento ao homem” A herbivoria é uma estratégia alimentar muito bem estabelecida, onde as plantas são o cardápio de um grande grupo de animais. Como em qualquer relação organísmica, as plantas tendem a desenvolver defesas mecânicas (espinhos, folhas menores ou ausência de folhas) ou químicas (substâncias tóxicas) para se defender. Como exemplos, a lignina e o tanino são substâncias que diminuem a digestibilidade dos produtos vegetais, a cafeína inibe a síntese de ácidos nucleicos; digitálicos são esteroides que causam náuseas, vômitos, alucinações, convulsões e morte; alcaloides são tóxicos e também diminuem a digestibilidade dos produtos vegetais. De outro lado, na corrida armamentista entre predador e presa, o predador tende a desenvolver defesas contra as defesas da presa o que, na verdade, se traduz no ditado que “nem tudo que macaco come pode servir de alimento ao homem”. Esses animais herbívoros desenvolvem uma altíssima tolerância a essas defesas químicas e é exatamente nessas observações que o ser humano mais se beneficia da biodiversidade vegetal. Da ação tóxica do alcaloide foram descobertas substâncias como a cafeína, cocaína, heroína, morfina, pilocarpina e codeína, que correspondem aos principais terapêuticos naturais com ação anestésica, analgésica, psico-estimulante e neurodepressora. O salgueiro branco (Salix alba) é uma árvore de porte médio comum na Europa, América do Norte, Ásia e África. Desde os tempos do Egito Antigo (3.000 a.C.), Suméria (2.500 a.C.), Assíria (1.200 a.C.) e dos escritos de Hipócrates (400 a.C.) é conhecido o uso da tintura do salgueiro como analgésico que, de fato contém uma substância denominada salicina, que deu origem ao ácido acetil salicílico, vulgarmente conhecido como “aspirina”. Amplamente utilizado pelos egípcios (aproximadamente 2.000 a.C.) o orégano (Origanum vulgare), que é um condimento muito comum, era utilizado como medicamento, o que foi confirmado com o isolamento do carvacrol, que tem características germicidas. Sendo uma estratégia defensiva, plantas sem um parentesco diretamente estabelecido (convergência) podem desenvolver defesas semelhantes. É o caso da substância conhecida como timol (que é um isômero do carvacrol). É encontrado em arbustos da Europa, conhecidos como arnica (Arnica montana). No Brasil, é encontrado na arnica do Cerrado (Lychnophora ericoides) e utilizado sob a forma de infusões alcoólicas ou pomadas, com ação fungicida e anti-inflamatória. De observações etnográficas de tribos indígenas da América do Sul descobriu-se, dos extratos de plantas do gênero Strychnos e Chondrodendron (utilizados para caça), o curare, derivado de vários alcaloides, principalmente da curarina e tubocurarina. Trata-se de um potente inibidor da contração da musculatura esquelética, atuando como competidor da acetilcolina pela ligação aos receptores nicotínicos, que deu origem a um grupo extremamente eficiente de anestésicos hospitalares. Infelizmente, a perda ou descaracterização dos povos indígenas brasileiros nos priva de um conhecimento empírico da Raízes Jornalismo Cultural 19 meio ambiente Natureza que provavelmente nunca iremos recuperar. Além da perda do conhecimento da biodiversidade sob o olhar dos nativos, perdemos também a diversidade humana e cultural do Brasil. Perdemos o que nunca conhecemos. Triste realidade. Esse conhecimento popular é tão relevante que até o período da Guerra Civil Americana (1861–1865) tudo o que se tinha para tratar doentes eram extratos de raízes, laxantes e unguentos, derivados desses grupos de plantas já conhecidos na Europa e Ásia. As sintetizações e pesquisas químicas aplicadas são muito mais recentes, mas ainda dependem de até 80% de produtos derivados de minerais, plantas, animais e microrganismos. Um exemplo importante advindo da observação direta foi o descobrimento de antibióticos. Algumas plantas e fungos possuem uma relação desarmônica com outras espécies denominada amensalismo, antibiose ou alelopatia. Isso faz com que os indivíduos dessa população secretem substâncias que inibem ou impedem o desenvolvimento de outras espécies. Essa estratégia é adotada pelo eucalipto (Eucalyptus sp.), capim braquiária (Brachiaria decumbens) e fungos. Em 1928, o médico escocês Alexander Fleming descobriu por acaso um crescimento do fungo Penicillium notatum em uma de suas culturas de bactérias. No entorno do crescimento fúngico havia um halo que inibiu o crescimento bacteriano, sendo exatamente a substância utilizada pelo fungo para impedir o crescimento de outras espécies. Uma defesa do fungo que levou ao desenvolvimento do primeiro antibiótico, denominado penicilina. Nessa linha de fungos, outros dois antibióticos foram eventualmente desenvolvidos, sendo a eritromicina (do fungo Saccharopolyspora erythraea) e a estreptomicina (do fungo Streptomyces griseus). Temos uma tendência mórbida e antropocêntrica de interpretar aspectos desconhecidos da natureza como sendo negativos e quase um castigo divino. Nessa categoria se encaixam os animais venenosos. Entretanto, muito do que sabemos do próprio funcionamento do corpo humano se deu à custa de pesquisas com esses animais. As cobras possuem estratégias muito bem estabelecidas para matar as suas presas, que incluem o desenvolvimento de neurotoxinas, toxinas hemorrágicas e toxinas hipotensoras. Impressionantemente, seus venenos são ativos em seres humanos, mas como defesa. Nenhuma cobra venenosa no mundo se utiliza do veneno para matar e se alimentar de humanos. Os estudos dos componentes dos venenos de várias espécies permitiram uma melhor compreensão do nosso sistema de coagulação e do sistema complemento (um componente do sistema de defesa imunológica). No aspecto das possíveis ações hipotensoras descobriu-se uma toxina que inibe a conversão da angiotensina I que, em sua forma ativada (angiotensina II), promove a vasoconstrição e, consequentemente, o aumento da pressão sanguínea. Dessa descoberta originou-se o fármaco captopril, vendido amplamente para o tratamento da hipertensão arterial. Somente de derivações de toxinas de cobras existem no mercado Raízes Jornalismo Cultural 20 mais de 20 medicamentos e mais 20 ou 30 em fase de testes clínicos. Os anfíbios (sapos, rãs e pererecas) são testemunhas da transição água-terra no processo evolutivo. Nessa linha ficaram testemunhos ainda relictuais. Um deles é a respiração. A maior parte das espécies tem pulmões muito rudimentares e pouco eficientes, com o uso da respiração cutânea para complementar essa função fisiológica. A pele desses animais (a exemplo dos pulmões) é úmida para facilitar as trocas gasosas, mas não podem ter comprometimentos com infecções bacterianas ou fúngicas. Atualmente, um enorme esforço de pesquisa pretende desvendar as estratégias desenvolvidas para manter essa integridade, o que muito provavelmente dará origem a fármacos extremamente eficientes. Além disso, esses animais produzem toxinas para defesa contra predadores. Essas toxinas são alcaloides de ação neurotóxica. O seu estudo e caracterização de mais de 20 toxinas permitiram o conhecimento profundo do funcionamento de canais iônicos de sódio, cloro e potássio, permitindo uma melhor compreensão de várias doenças. Essas descobertas e caracterizações ainda envolvem o veneno de lagartas, formigas, abelhas, vespas, marimbondos, escorpiões, aranhas, bem como a saliva de morcegos hematófagos e o veneno do lagarto monstro-do-gila (Heloderma suspectum). A vida em ambientes extremos M esmo na exploração de ambientes extremos temos exemplos fantásticos da biodiversidade. Ensinados a nos contentar com o óbvio, nunca, ou quase nunca, nos deparamos com informações sobre organismos denominados extremófilos, com uma capacidade adaptativa extrema. Nesse sentido, microrganismos se adaptam a extremos de temperatura (acima de 90°C), salinidade, gás metano, gás sulfídrico e ambientes com alto teor de óleos e graxas. Entre as descobertas mais importantes do século passado se encontra a bactéria Thermus aquaticus, nos lagos quentes do Parque Nacional de Yellowstone (USA), de onde se isolou uma enzima chamada de Taq-polimerase, que permitiu o desenvolvimento de uma técnica revolucionária na pesquisa genética, com o advento do sequenciamento de DNA. Outras bactérias foram manipuladas em suas atribuições naturais para o uso de processos despoluidores de ambientes contaminados com produtos e subprodutos oleosos. Nessas adaptações ainda se encaixam mamíferos e aves que vivem nos círculos polares, com características fisiológicas únicas. Em uma comparação direta, até os seres humanos apresentam características adaptativas marcantes, como os esquimós que, na ausência de qualquer tipo de alimento vegetal, consomem carne e gordura invejáveis, mas possuem um ritmo meta- bólico que chega a ser 20% mais acelerado que o normal. Esses poucos exemplos justificam olharmos a noção de biodiversidade sob um ângulo diferente. Perder essa diversidade de vida implica em perdermos um universo de conhecimento do qual nos beneficiamos desde o período Neolítico. A conservação dos recursos hídricos (rios, lagos, lagoas e oceanos) é também um reflexo da manutenção da biodiversidade. Desse meio a humanidade também obtém alimento, drogas, medicamentos e, mais importante, dos oceanos são obtidos mais de 90% do oxigênio que respiramos. A relação da água com a vegetação terrestre se estabelece no ciclo de chuvas e regulação da temperatura. A relação da vegetação com a água é a de manter esse meio sem processos erosivos e servir de um fixador dos ambientes úmidos. Além disso, é a vegetação que permite a retirada de gases do efeito estufa (gás carbônico) da atmosfera. O processo de ocupação irracional do espaço e a urbanização provocam outros inúmeros problemas: uma combinação de perda da vegetação devido ao processo de urbanização e o comprometimento dos recursos hídricos com ações poluidoras. Respeito à vida E ntretanto, resta outro aspecto tão importante quanto tudo o que foi apresentado: o respeito à vida. Todos os seres vivos merecem o direito de viver. O ser humano não é o dono da natureza. Tudo o que aprendemos e desenvolvemos até o presente dependeu de inúmeros outros organismos vivos e a sua preservação é um direito ético e moral de estarmos juntos neste planeta. Nenhum ser vivo está inserido na natureza sem um propósito, uma função, em equilíbrio. Doenças humanas aparecem pela intromissão em habitats onde a relação parasita-hospedeiro já existia entre outras espécies viventes. A entrada do ser humano no ciclo passa a ter outra conotação, mas não é culpa dos organismos preexistentes. As relações organísmicas de polinizadores e dispersores de sementes desaparecem com a injustificada prática da caça esportiva, afetando outras espécies que se beneficiam desses parceiros, acelerando processos de extinção. Biodiversidade é vida e vida é sinônimo de harmonia. É possível compatibilizar o crescimento e desenvolvimento humanos e o respeito e a conservação dos demais seres vivos. Nessa equação, o que não cabe é a intolerância e a atitude antropocêntrica de acharmos que somos seres superiores. Nelson Jorge da Silva Jr. Biólogo e historiador