ARTIGOS
Fogo ao invés da palavra: a fantasmagoria da RAF (1)
Wolfgang Bock∗
Para Gunter Langer
Resumo
O texto analisa alguns aspectos subjetivos do grupo de guerrilheiros alemães Baader Meinhof.
Mostra que a rebelião dos estudantes nos anos sessenta, à qual esse grupo está ligado, participa
ainda de um dispositivo constituído na Segunda Guerra Mundial. Inscrevem-se neste dispositivo
tanto o governo restaurador alemão quanto os estudantes que a ele se opunham: nascidos nos
últimos anos da guerra, esses estudantes pertencem a uma geração traumatizada e poderiam ser
chamados de crianças das cinzas. Esse ambiente traumático desenha o horizonte de suas
fantasmagorias e ideias utópicas, que ainda contêm a violência, da qual eles tentam se afastar.
Palavras-chave: Terrorismo, subjetividade, fantasmagorias, geração pós-guerra, trauma.
Abstract
The text looks at the subjectivity of German terrorists of the so called Baader Meinhoff group
from a position after the cold war. It shows that the rebellion of the students in the sixties still
belongs to a dispositive of the Second World War conditions. This impacts the restorative
German government of the 1950ies and 1960ies as well as their student opponents: Born in the
last years of war, they also belong to a traumatized generation, which might be called children of
the ashes. This background also influences their horizon of phantasmagorias and their utopian
ideas, which still are containing the violence they try to withdraw.
Keywords: Red Army Fraction, subjectivity, phantasmagorias, post war generation, trauma.
Doutor em Filosofia (Universität Bremen. Alemanha). Professor da Faculdade de Arte e
Desenho na Bauhaus-University of Weimar. Professor visitante na Universidade Federal do Rio
de Janeiro (UNIRIO). Autor de Vom Blickwispern der Dinge. Sprache, Erinnerung und
Ästhetik bei Walter Benjamin. Würzburg. 2010. Obra em Portugues: Do murmúrio das coisas.
Linguagem, memória e estética em Walter Benjamin, Contra Capa. Rio de Janeiro. 2010;
Numerosos artigos sobre arte, midia, desenho, literatura, filosofia e estudos culturais. Coeditor of
the Zeitschrift für kritische Theorie. [email protected]
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I. As fronteiras da sobriedade
Perspectivas
No discurso da esquerda e da APO (Oposição Não Parlamentar) na Alemanha Ocidental,
nos anos 60, a violência passa de um estado latente a um manifesto e, com ele, a uma prática
política. Para os protagonistas do movimento estudantil, a partir de um determinado momento
histórico – a morte do estudante Benno Ohnesorg, em 2 de junho de 1967, baleado por um
policial durante uma manifestação contra o xá do Irã, em visita a Berlim –, a prática política
passa a se exercer por meio de ações violentas, ao invés da difusão de ideias que se realizava
pelo discurso nos confrontos políticos civis. O modelo de uma ação imediata se torna mais forte
do que as posições indiretas e críticas, até então predominantes.
As operações militares da RAF, como também de outros grupos terroristas – o
Movimento 2 de Junho, as Células Revolucionárias ou a Zora Vermelha – deixam de ser atos
simbólicos para se tornarem ações concretas que deveriam reverberar para gerar um clima
revolucionário.
Isso afeta o próprio conceito da realidade em que essas ações deveriam acontecer, e a
subjetividade dos protagonistas se apresenta aí como um fator objetivo. Pretende-se mostrar
como as fantasmagorias e fantasias de seus participantes – algumas mais luminosas e outras mais
sombrias – desempenham neste processo um papel importante. São fantasmagorias nas quais se
fundem
momentos
utópicos e repressivos,
e é a partir dessa fusão
que se desenrola a
ação política. Elas
também inspiram uma
combinação complexa
de discursos oficiais e
oficiosos permeados
pelas ideias de ações
violentas,
que
aí
insistem de forma
clara e consistente.
O conceito de
fantasmagoria
foi
utilizado por Karl
Marx
e
Walter
Benjamin, tendo por
referência
um
conjunto de imagens
ilusórias produzidas
por
uma
falsa
consciência,
que
mascara o modo pelo
qual as coisas se
apresentam,
confundindo-as com
aquilo
que
elas
deveriam ser. Marx
teria detectado uma
transformação
dos
produtos do trabalho
em “aparências de
coisas”: esses produtos do trabalho seriam fantasmagorias que mascaram sua relação com os
sujeitos que os produziram, de forma que os produtos parecem ser tornar senhores e os
produtores, seus servos, já que necessitam comprá-los. Benjamin retoma o conceito de Marx e o
reinterpreta, enfatizando sua dimensão de ambivalência e seu caráter onírico. Fala, assim, de
figuras proféticas através das quais uma geração visualiza seu futuro. Presente e futuro se
misturam, aparecendo sob a forma de imagens ambivalentes, ilusões que desenham o horizonte
de uma determinada época. Tanto em Marx quanto em Benjamin, as fantasmagorias são
mistificações que dificultam um julgamento claro da situação real, impedindo a ação política
adequada.
É neste ambiente fantasmagórico que avançam os protagonistas da RAF (sigla que
representa a Facção Exército Vermelho e, curiosamente, também a Força Aérea Real Britânica):
um misto de agitação invisível, teatro dadaístico e filme de gângster – alimentado pelas
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guerrilhas palestinas, sul-americanas e algerianas que, para eles, são muito parecidas. Esses
protagonistas são capazes de expressar e transmitir imagens e fantasmagorias arraigadas no
espírito da geração pós-guerra, ainda afetada pela guerra. É neste aspecto subjetivo que eles são
bem-sucedidos.
A publicação coletiva da revista “Konkret” desempenha, desde o final dos anos
cinquenta, um papel importante para a esquerda alemã: nela se discute exaustivamente se os
militantes devem pegar em armas. O editor Klaus Rainer Röhl dirige essa discussão; sua esposa,
contudo – Ulrike Marie Meinhof –, abandona rapidamente o plano do discurso e do jornalismo
sóbrio para tornar-se uma terrorista da primeira geração da RAF. O poeta e autor hamburguês
Peter Rühmkorf participa da revista, mas termina sendo vítima do primeiro ataque dos
simpatizantes da RAF, estudantes a favor da luta armada, contra a Konkret, que persistia na luta
através do discurso e da palavra. Em seus diários recentemente publicados, Rühmkorf reflete o
clima artístico e político dos anos 60.
Uma mente forte
Já foi descrita muitas vezes a maneira pela qual Ulrike Marie Meinhof, jornalista de rara
inteligência, caminhou para a clandestinidade e para a assim chamada luta armada. Pode-se
acompanhar este processo no modo pelo qual Meinhof vai transformando suas avaliações da
situação política: trata-se de fato de uma
mudança, refletida em suas colunas e
contribuições para a revista “Konkret” – na
versão mais antiga, quando o editor era seu exmarido Klaus Rainer Röhl e quando ela própria
era a editora-chefe, entre 1961-62, até que seu
trabalho foi limitado pelo nascimento dos filhos
e, mais tarde, por um tumor cerebral
(MEINHOF, 1972, 1994, 1995). Os primeiros
textos abordam os temas sobre os quais ela
escreve continuamente: a democracia ameaçada
de extinção na jovem República Federal Alemã,
o estado de exceção, o Vietnã e o protesto de
estudantes, o empobrecimento da população,
especialmente das crianças e mulheres
(BRÜCKNER, 1995). Ulrike Meinhof atrai a
atenção com sua argumentação clara e sóbria.
Possui um estilo marcante: seu pensamento consegue abarcar situações contraditórias, e o faz por
meio de uma lógica política muito bem construída. Demonstra um julgamento seguro e sabe
entrar em contato com contradições argumentativas, conseguindo pesar bem as principais
reivindicações e as considerações de ordem prática. Em outras palavras, Meinhof se mostra
atenta às ambivalências do período pós-guerra (MEINHOF, 1994, p. 148, 149, 151-152).
Encenações
Ambivalências do período pós-guerra: isso implica que Ulrike Meinhof é capaz de
combinar bastante bem uma atitude fundamentalmente pacífica com a posição estratégica de
militante leninista do Partido Comunista, nessa época proibida. Combinação que provoca
algumas tensões. Meinhof se tornou membro do Partido em 1958, enquanto seu marido, Klaus
Rainer Roehl, nele ingressou em 1956, após a proibição do KPD (Partido Comunista Alemão) na
Alemanha Ocidental (RÖHL, 1974, p.132). Rainer Roehl narra em seu livro “Five fingers are no
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fist”, de 1974, que a revista foi, entre 1955 e 1964, completamente financiada pelo Serviço
Secreto da Alemanha Oriental (Stasi) – órgão que se tornou conhecido através do filme “A Vida
dos Outros”, de Donnersmark (BOHNSACK; BREHMER, 1992). O financiamento cessou
quando a opinião veiculada pela revista se tornou demasiadamente crítica para os padrões
comunistas; no entanto, seus laços estabelecidos com a Stasi ainda permaneceram fortes.
O casal Roehr viajou junto até sua separação, em 1967. Mais tarde, os dois viajaram
individualmente e de forma incógnita a fim de apresentar relatórios à Stasi, discutir estratégias e
realizar treinamentos em Berlim Oriental. Isso indica que ambos viviam como membros ilegais
da KPD (Partido Comunista Alemão), isto é, sempre disfarçados, sofrendo a ameaça de serem
presos por no mínimo três anos se algum deles ou um dos seus companheiros fossem
desmascarados. Sob estas condições, a entrada de Ulrike Meinhoff-Roehl no submundo terrorista
não implica uma ruptura tão séria como foi posteriormente assumido.
Aqui pode ficar mais clara uma determinada situação, com seus aspectos subjetivos e
objetivos. Escolher conscientemente a ilegalidade pode ser uma decisão racional, visando
alcançar certos objetivos estratégicos. Contudo, o que termina por se alcançar é um modo de vida
sustentado numa eterna ambivalência. Pode-se, também, inverter a leitura dessa escolha de vida,
de modo que a consequência se torna sua causa: é preciso mostrar uma disposição psíquica
especial para esse tipo de encenação, trabalhando inconscientemente, como um motor, para que
alguém escolha a passagem para a ilegalidade, racionalizando depois os seus motivos. Falar em
período pós-guerra supõe viver num tal campo de tensão entre os motivos disfarçados,
inconscientes e os motivos visíveis, expressando a racionalidade da ação. Isso põe em jogo o
embate entre política formal e informal. Trata-se, na verdade, da relação entre desejo e ato que
nos faz perguntar por que, em certas circustâncias, o fogo parece ser mais interessante do que a
mediação pela palavra.
Uma Coluna
Estas conexões formam o pano de fundo para
a coluna de Ulrike Meinhof intitulada “Colocando
fogo em uma revista”, publicada em Konkret número
14, de 18 de novembro de 1968. Em 3 de abril desse
ano, Andreas Baader, Gudrun Ensslin, Thorwald
Proll e Horst Söhnlein haviam ateado fogo em duas
lojas de departamento, Schneider e Kaufhof, na
principal rua de comércio, Zeil, causando um
prejuízo de quase dois milhões de marcos. Esta foi
considerada a primeira ação de “guerrilha” na
Alemanha. Os protagonistas foram presos um dia
após a ação e foram condenados a três anos de cadeia
cada um, em outubro de 1968. Para a imprensa de
esquerda, o processo foi visto como um escândalo.
Um de seus advogados era Horst Mahler, atualmente
ideólogo chefe do partido neonazista NPD, e Otto
Schilly, o último Ministro do Interior alemão
(anteriormente membro do Partido Verde, depois do
SPD - Partido Social Democrata).
Ulrike Meinhof voa para Frankfurt como
repórter de “Konkret”, para escrever sobre o
processo. O resumo do texto é publicado em novembro, e marca uma transição em sua forma de
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avaliação da conjuntura política: seu julgamento, antes mais distanciado, se torna mais concreto
(AUST, 2008, p. 77; RÖHL, 1974, p. 348-350). Ela simpatizava com os acusados e os visitava
na prisão antes do julgamento. Em seu texto, desenvolve uma argumentação para defendê-los,
demonstrando que a violência da ação era apenas relativa: no incêndio, ninguém havia sido
ferido e as leis burguesas protegiam o proprietário, já que ele receberia o seguro das mercadorias
(MEINHOF, 1994, p.153). Além disso, continua Meinhof, nesse tipo de loja, só havia objetos
luxuosos e inúteis. Neste caso, o ato político não deveria ser julgado como um ato contra a lei,
pois essa lei favorecia somente os proprietários e não os trabalhadores, que precisariam comprar
novamente as mercadorias de seus empregadores.
Neste ponto, Meinhof se apoia na noção marxista de fetiche da mercadoria e também no
livro de Franz Fanon (“Os Condenados da Terra”), no qual este defende o uso de alguma
violência para abrir a consciência das pessoas (MEINHOF, 1994, p.154-155; MARX, 1984, p.
85-98; FANON, 1981). No final do texto, ela se reporta ao estudante berlinense Fritz Teufel,
autor de uma paráfrase de uma frase de Brecht, na ópera “Three Penny”: “O que é o roubo de um
banco comparado à sua fundação?” – “É melhor incendiar uma loja de departamento do que abrir
uma.” (MEINHOF, 1994, p.155; BRECHT, 1997, p. 257).
Atualmente, com a queda do Lehmann Bank de Nova York e a perda mundial de bilhões
de dólares pela especulação, a sentença de Brecht se torna novamente razoável. Também é
razoável chamar a atenção para a diferença entre a punição de pequenos ladrões, que vão para a
cadeia por roubo de amendoim, enquanto os grandes especuladores se mantêm protegidos pelo
Estado.
Na situação política alemã daquela época, muitos dos antigos nazistas ainda ocupavam
altos postos nos campos da política, da medicina, no comércio e na esfera jurídica, o que
alimentava uma opinião como a de Meinhof. Isso especialmente entre os estudantes que lutavam
contra os velhos poderes na universidade e na sociedade como um todo, onde essas antigas
forças ainda se manifestavam – por exemplo, num jornal como “Bild Zeitung”, do editor de
direita Axel Springer, que tentava se aproximar do estilo do jornal nazista “Der Sturmer”. Havia,
portanto, razão suficiente para a polêmica.
Contudo, a frase que Teufel usa e que Meinhof repete não apresenta nenhuma alternativa
real, mantendo-se apenas na esfera do roubo. A frase mostra, além disso, a fragilidade
argumentativa do autor. E nisso Meinhof não estava sozinha. Atear fogo a uma loja de
departamento se torna, nesse momento, uma ideia fixa para a subcultura de esquerda. A sentença
de Teufel surge no contexto dos panfletos escritos por ele e Walter Langhans na comunidade
Kommune 1, em Berlim. Os panfletos foram distribuídos em 24 de maio de 1957, em frente à
cafeteria da Universidade Livre de Berlim. A causa foi o incêndio ocorrido dois dias antes na
loja de departamento L’Innovation, em Bruxelas, Bélgica, onde morreram 251 pessoas. Esta ação
foi imputada aos simpatizantes do protesto contra a Guerra do Vietnã pelos Estados Unidos, e
imitada em Berlim. Ao final do panfleto número 8, eles escrevem:
Se houver um incêndio em qualquer lugar no futuro próximo, se barracas explodirem,
não se surpreendam. [...] esta é a resposta ao bombardeio do centro de Hanói, à invasão
da China pelos Marines. Bruxelas nos deu a única resposta para isto: queime, loja de
departamento, queime! (PETERS, 2004, p.103; HAKEMI, 2005, p. 69-71)
Teufel e Langhans foram a julgamento, mas obtiveram a liberdade argumentando que
seus panfletos eram apenas charges políticas. Aqui, mais uma vez, a conexão com o mundo real
foi sacrificada em prol de uma fantasmagoria: a ação não teria se dado porque seus autores, de
fato, desejavam queimar uma loja de departamento; ao invés disso, foi construída uma
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racionalização de motivos que conectavam uma loja em Bruxelas à Guerra do Vietnã. Nesse
caso, a existência ou não de vítimas civis tornava-se um problema menor, um tipo de prejuízo
colateral da situação.
II. Dentro do Cavalo de Tróia - Elementos do dispositivo do pós-guerra. Um sobrevive, o
outro não. Entre crianças soldados e loucos armados.
Com 14 anos manuseávamos as armas. Com 15 controlávamos: a carabina 98, a
carabina de fogo rápido 41, a metralhadora 42, além da bazooka para assustar os
tanques. Nada podia assustar-nos. (RÖHL, 1974, p.78-79)
Não foi apenas por causa da morte de Benno Ohnesorg, em 2 de junho de 1967, que a
ideia de pegar em armas se difundiu nos círculos da esquerda. O marido de Ulrike Meinhof,
Klaus Rainer Röhl, afirma que a morte de outro estudante já o havia marcado profundamente:
em 1952, o jovem Phillip Müller fora baleado por um policial durante uma demonstração contra
o rearmamento da Alemanha Ocidental organizada pela KPD (Partido Comunista Alemão)
(RÖHL, 1974, p.310-313). Contudo, essa afirmação de Röhl talvez pudesse ser encarada como
uma racionalização produzida para mascarar sua ambivalência em relação às armas de fogo –
desejo e medo de ter contato com elas –, já que as armas estiveram sempre ao seu alcance. Em
seu livro, observa-se inúmeras descrições desse tipo de atitude sob a forma de um subtexto que
fala de uma fantasmagoria mesclando desejo, medo e loucura, subtexto frequente na relação
entre criminosos, vítimas e fugitivos, dando conta de qual era então o preço da sobrevivência
(RÖHL, 1974, p.78-79).
Ulrike Meinhof era, nessa época, uma pacifista, e odiava a atitude de seu marido, que,
juntamente com o irmão, carregava armas por todo lado, algumas vezes atirando só por diversão.
Mas no final dos anos 60, o tema pode ser visto sob uma outra ótica.
Röhl poderia ser chamado de louco armado, sendo capaz de fazer da pobreza uma
virtude: como um soldado-criança da Waffen-SS (tropa de elite que servia a Hitler) nos últimos
anos da guerra, ele conseguiu escapar do front e da morte quase certa. Ao falar de um amigo que
cometera suicídio após um longo período de depressão e dúvidas, Röhl descreve algumas
atuações que, nele mesmo, talvez estivessem também se gestando, ainda que de forma mais
branda:
Ele não se livrou daquela marca indelével embaixo do braço – SS – da qual eu escapei
por acaso. Ele era conhecido como um sujeito vivo e engraçado, bom companheiro, um
estudante trabalhador, e sempre nos divertíamos muito. Apenas em algumas ocasiões
uma estranha tristeza o acometia; sim, fúria. Ele se movimentava com liberdade em
pubs para trabalhadores, e com outro amigo abusava das pessoas, lutava e era
horrivelmente espancado no final. Mais tarde, seu companheiro de guerra tcheco e a
mulher também tiraram suas vidas (RÖHL, 1974, p. 107).
E então nós celebramos nossa primeira festa. A festa de verão da “Studentenkurier”
(primeira versão da futura revista “Konkret”). O primeiro colocado seria premiado com três
garrafas de champagne e uma rodada em reconhecimento ao vencedor da grande competição de
nossa revista. A pergunta prêmio era: quem financia a “Studentenkurier”? O vencedor chamavase Wolfram, e a resposta correta era a seguinte: o jornal é financiado pelo lucro das vendas, pelos
anúncios, por doações de igrejas e de grupos pacifistas e por uma boa porção de idealismo
(RÖHL, 1974, p. 107).
De qualquer forma, um sobrevive, o outro não. Mas o sobrevivente também sofre de um
ferimento invisível, que não aparece apenas na mentira sobre o financiamento da revista. Como
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John Lennon colocaria mais tarde: “One thing you can hide is when you are crippled inside” (Se
há algo que você esconde é quando está avariado por dentro).
Mas este não era o mundo de Röhl; apesar de ser o chefe de uma revista de estudantes de
esquerda, ele se denominava ainda um alemão nacionalista, o que, depois das palavras de
Nietzsche, tornou-se sinônimo de chauvinismo. Sua posição e comportamento apresentavam, sob
uma máscara liberal, a síndrome genuína de direita de uma personalidade autoritária, próxima do
que Adorno denominou de caráter manipulador (ADORNO, 1982).
Na aparência oficial, os
participantes da revista eram liberais e pacifistas mas, numa perspectiva não oficial, seguiam
modelos militares, afinados com a síndrome nacionalista.
Röhl sempre portava diversas armas e, em suas moradias, costumava ter salas de tiro.
Conta, em seu livro, muitas histórias a este respeito, vangloriando-se de como ele e seu irmão
eram ótimos atiradores (RÖHL, 1974, p. 310-313).
Uma situação estratégica
Um fato, finalmente, não pode deixar de ser mencionado neste contexto: o de que Röhl e
Meinhof, por terem sua revista financiada pela Stasi (o Serviço Secreto da Alemanha Comunista)
funcionaram, para Berlim Oriental, como uma espécie de Quinta Coluna – algo que, diga-se de
passagem, foi sempre veiculado pela imprensa de direita na Alemanha Ocidental.
O termo Quinta Coluna provém da Guerra Civil Espanhola; o general fascista Mola
atacou Madrid com quatro colunas; havia, porém, dentro da cidade uma quinta coluna escondida,
tendo sido esta a responsável pela vitória final – estratégia que se assemelha àquela utilizada por
Odysseus com suas tropas, escondidas dentro do Cavalo de Tróia. Analogamente, se pode dizer
que havia um Cavalo de Tróia em torno de Ulrike Meinhof e seu grupo enquanto eles se
movimentavam livremente no Ocidente. Para além de todas as implicações psicológicas, isso
significa que o grupo dispunha de um exército poderoso na retaguarda, com cujo apoio ele
poderia contar caso fosse necessário.
Este Cavalo de Tróia protetor termina por contaminar a relação do grupo com a
população da Alemanha Ocidental. A opinião do povo passa a desempenhar um papel de menor
importância no pensamento estratégico da RAF. Oficialmente, as massas deveriam ser
convencidas a apoiar e a se unirem ao que eles chamavam de situação revolucionária. Mas na
prática, a RAF não deu muita atenção a isto – muito menos que outros grupos na Itália ou na
França, que atuavam por meios violentos, mas também pela palavra. Na França e na Itália, era
preciso conquistar o apoio da população por todos os meios possíveis. Não foi esse, porém, o
caso da RAF. Seus militantes sabiam que dispunham do exército soviético na retaguarda e, por
este motivo, persuadir a população não se mostrou tão necessário (KRAUSHAAR, 2005, p. 13).
O modo pelo qual a RAF desenvolveu suas estratégias, montando o cenário de uma tropa
de luta solitária, estaria mais condizente, paradoxalmente, com a ideia de um golpe de estado de
direita. E, de fato, o estado de espírito da população da Alemanha Ocidental neste momento
inclinava-se mais para a direita do que para a esquerda. A direita se encontrava no poder na
época e, até 1966, compunha a classe governante. O que aumenta o paradoxo quanto ao modo de
atuação da RAF: o grupo não se portava como um grupo de direita porque fazia oposição ao
governo, mas também não se portava como um grupo de esquerda porque não estava preocupado
em convencer e receber o apoio da população.
Os militantes de esquerda, contudo, podiam alcançar apenas poucas pessoas fora da
subcultura da APO (Oposição Não Parlamentar) na Alemanha Ocidental. Ao contrário da França
e Itália, onde parte da população apoiava e se inclinava para a esquerda, na Alemanha Ocidental,
a população se colocava contrária à esquerda, que para ela era a posição da Alemanha Oriental.
O que a RAF visava, através de seus atos violentos, era despertar a violência adormecida do
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povo contra o capitalismo. No entanto, a violência adormecida da população naquele momento
só poderia se dirigir à própria esquerda. Dificilmente a esquerda poderia ser vista como o sujeito,
ao invés de objeto da violência. A maioria da população via na esquerda seus inimigos
tradicionais, sob a influência dos russos e de comunistas; esta era a ideologia oficial nazista que,
de modo não oficial, permaneceu de algum modo como linha geral na Alemanha Ocidental até o
final dos anos 60. A esquerda era exatamente o inimigo que deveria ser enfrentado
continuamente, com a ajuda da imprensa de direita.
O voo das cinzas
A descrição da era pós-guerra pode, a partir das considerações de Michel Foucault e
Gilles Deleuze, ser chamada de dispositivo (FOUCAULT, 1977; DELEUZE 1992, p. 99-130). É
possível considerar o dispositivo do pós-guerra, na Alemanha, como um conjunto no qual o
desejo, a violência e a institucionalização se misturam. Para os combatentes, que determinam
nesse momento a política da jovem República Federal, desejo, violência e institucionalização
formam um continuum. Da guerra, ainda sobram restos de um incêndio, e estes compõem a
atmosfera que rodeia as crianças do pós-guerra, crescidas em sua presença. São as chamadas
crianças das cinzas. As mais velhas, que participaram das últimas batalhas da guerra como
crianças-soldado, tiveram suas experiências traumáticas com o mundo. As mais novas
observaram suas mães impotentes diante dos ataques aéreos; ficavam sentadas em pânico nas
áreas de proteção aos ataques e fugiam das cidades em chamas como sobreviventes.
Esses traumas vêm à tona inconscientemente, perturbando o horizonte de seus desejos e
afetando as suas possibilidades de criar utopias. Pode-se dizer que as vivências traumáticas
constituem o modo de subjetividade social que se encontra na raiz das práticas sociais e políticas
do período (BOCK 1995, p. 159-162; BOCK 2005, p. 107-130).
Este período tem suas raízes no começo do século vinte e ainda antes disso: experiências
perdidas dos séculos dezoito e dezenove, da época do Imperador Alemão e da Primeira Guerra
Mundial levaram ao período Weimar, seguido pelo fascismo e pela Segunda Guerra Mundial.
Formou-se, assim, um dispositivo que punha em relação o nacionalismo, a cultura folclórica, o
fascismo e o socialismo, vetores que atravessavam as pessoas interna e externamente,
desenhando suas perguntas, possibilidades de respostas e soluções dos problemas políticos na
sociedade.
Os protagonistas do conflito entre o Estado da Alemanha Ocidental contra o grupo
Baader-Meinhof, e também os ativistas da APO (Oposição Não Parlamentar) pertencem às
gerações posteriores, formadas a partir desta constelação. Os resultados de pesquisas a respeito
da sobrevivência da violência em crianças que haviam sido vítimas diretas dos criminosos
mostram que essas causas não se dissolvem e podem assumir formatos concretos. A
sobrevivência da violência aparece na disposição para ideias autoritárias, para o nacionalismo e
as armas, e também para práticas supersticiosas aparentemente inofensivas, como o ocultismo, o
esoterismo e a astrologia (BOCK 1995; BOCK 1996, p. 120-122).
Por isso, pode não ser mera coincidência que ambos, Andreas Baader e Ulrike Meinhof,
tenham crescido sem um pai – o primeiro morreu na guerra, o outro pouco antes dela. A maioria
da geração estudantil da APO vem, como a namorada de Baader, Gudrun Ensslin, e também
Bernward Vesper, de famílias dos nazistas do alto escalão, de pequenos seguidores que
expandiram esse ambiente em suas famílias. Talvez isto os tenha tornado predispostos a um
determinado contexto de violência interna e externa, descrito pelo psicanalista alemão Alexander
Mitscherlich como “a incompetência da lamentação” (MITSCHERLICH/MITSCHERLICH,
1967; MARCUSE 1936/1987, p. 140-160; VINNAI 1999, p. 18-53). Mas aqui se trata de
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hipóteses. É preciso deixar claro que não se pode derivar positivamente uma regra a partir destes
dados (SCHMIDTCHEN 1981, p. 13-77).
Se, contudo, se olha as biografias da primeira geração da RAF, pode-se ver que muitas
destas crianças cresceram sem um pai ou com um pai autoritário, o que, em termos de cuidado,
pode ser mais ou menos a mesma coisa. O resultado disso não é necessariamente a violência;
contudo, no horizonte de fantasias do qual esses modos de ação derivam, a violência está
presente de forma latente, ameaçando transformar-se em violência manifesta.
Nesse contexto, a escolha de pertencer a grupos de esquerda ou direita se torna menos
importante comparada ao que esses grupos têm em comum. Um exemplo: as primeiras compras
de armas de fogo para a RAF foram feitas por notórios radicais de direita.
Esta constelação muda lentamente com a grande coalizão e com a modernização
sociopolítica ocorrida nos anos de 1960 e 1970, a partir das ações dos estudantes. O final da
Guerra Fria e a queda do muro de Berlim devolvem ao Oriente uma nova e transformada
configuração de poder. Agora, nem a esquerda nem os sindicalistas buscam tomar o poder.
Porém uma nova mistura de populismo e liberalismo desregulado – globalizado – ataca a
democracia de uma outra forma. A antiga esquerda, especialmente depois da queda do
socialismo real da Alemanha Oriental, perde todas as expectativas utópicas, se vê enredada em
clichês antiamericanos ou num mau populismo, cujas bases são ainda as do antigo GDR
(República Democrática Alemã – Alemanha Oriental) (GUMBRECHT, 2004, p. 1).
A esquerda não luta mais pelo poder. O que permite se recolocar a questão da fascinação
da RAF, tendo como pano de fundo o término da era pós-guerra. Frente a uma nova constelação
do poder, o dispositivo anterior pode ser reconhecido mais facilmente.
Uma anedota pode resumir a questão. Quando estive na Suécia, no início dos anos 70,
momento em que começou o ataque da RAF à embaixada alemã em Estocolmo, uma senhora
idosa me disse: “Isto é típico dos alemães, incendiar e destruir tudo – como fizeram no norte da
Escandinávia no final da guerra”. Eis aí o fogo, novamente. Para esta senhora, pouco importava
se a violência partia da esquerda ou da direita, de nazistas ou guerrilheiros: os alemães estavam
necessariamente associados à violência bruta; os alemães eram inimigos da civilização.
III. Em meus sonhos, passeio com você.
Sobre sonho e encenações. Adentrando
a área dos sonhos coletivos.
Adentrando a área dos sonhos coletivos
Houve muita especulação sobre as
relações de simpatia entre a RAF e os
estudantes, assim como sobre as relações
de antipatia entre esses dois grupos e a
imprensa de direita. Contudo, simpatia e
antipatia se encontravam em um
determinado espaço que pode ser
chamado de espaço fantasmagórico dos
sonhos. Neste, encontramos figurações
mesclando realidade política, anseios
Andreas
Baader
utópicos e categorias estéticas. O poeta
hamburguês Peter Rühmkorf realizou
uma pesquisa sobre estas figuras e nos proporcionou um quadro razoável sobre as relações entre
seus atores e simpatizantes (RÜHMKORF 2004, 243, p. 395-396).
A esposa de Rühmkorf, Eva Maria, trabalhou como diretora de prisão, o que lhe permitiu
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ARTIGOS
um certo distanciamento da visão romântica a respeito dos guerrilheiros. Além disso, Rühmkorf
foi vítima de simpatizantes da RAF, que tentaram destruir a sala do jornal “Konkrete” na época
da separação entre Röhl e Meinhof. Em sua biografia, “The years, that you know/Os anos, que
você sabe”, de 1972, e posteriormente em seus diários “Taboo I e II”, ele descreve a complexa
relação entre a realidade, os sonhos, a política e a estética que determina as ações dos
protagonistas da RAF e seu entorno. Rühmkorf retrata a transição de Meinhof para a luta armada
como uma complexa combinação entre uma crise no casamento e uma crise da esquerda.
Registra também uma nova tendência para a violência nas últimas colunas de Meinhof. Essas
ideias estavam no final de 1950 e no início dos anos 60.
Meinhof as levou ao extremo, deixando seu marido e partindo com as filhas para Berlim a fim de
se juntar a um grupo radical. Andreas Baader foi libertado em maio de 1970. Dois oficiais de
justiça foram baleados e um funcionário, seriamente ferido. Ulrike Meinhof viveu na
clandestinidade até sua prisão, em 1972 (MEINHOF 1994, p. 167; RÜHMKORF 1972/1999, p.
331-332).
Dois grupos não oficiais
Rühmkorf descreve o modo pelo qual dois grupos não oficiais tentaram criar condições
para um golpe de estado. Esses dois grupos – o “Bildzeitung” (principal jornal alemão de direita)
e a RAF – repeliam-se mutuamente, já que possuíam orientações políticas opostas. Contudo, a
prática de ambos conduzia a República Alemã, segundo Rühmkorf, a inclinar-se, reativamente,
para a direita (RÜHMKORF, 2004, p. 220-221). Aqui nos vemos diante de um espaço comum,
no qual os oponentes, que compartilham a linguagem da força, comunicam-se uns com os outros.
Este é o caso ainda hoje na Palestina, no Iraque e na Tchetchênia: os adversários têm
informalmente mais em comum do que eles admitem oficialmente (RÜHMKORF, 2004, p. 372373).
No palco móvel
Rühmkorf não se refere à RAF como uma organização militar, como eles próprios se
denominavam, nem como uma gang, como fazia oficialmente a polícia; ele a considera um
grupo de teatro itinerante, que usa as áreas da BRD (República Federal da Alemanha –
Alemanha Ocidental), da GDR (República Democrática Alemã – Alemanha Oriental), do oriente
próximo e do norte da África como seu palco de representação (RÜHMKORF, 2004, p. 29, 38).
Esse grupo de teatro inclui também um coro ativo de simpatizantes. A partir dessa
premissa, Rühmkorf se permite inverter o ponto de vista habitual a respeito da atuação da RAF e
dos grupos de guerrilheiros. Ele se pergunta se os ativistas não poderiam estar fazendo
justamente o que os simpatizantes desejavam que acontecesse. Nesse caso, os ativistas não
estariam lutando simplesmente em prol de determinados anseios políticos, mas servindo para
atuar fantasmagorias de um grupo mais amplo: em nome de uma política estratégica, haveria
uma indistinção entre fantasmagoria e realidade. (RÜHMKORF 2004, p. 42).
Imagens mágicas do horizonte da revolução
Por outro lado, admitir que a RAF se transformou num instrumento para a satisfação dos
desejos inconscientes de seus simpatizantes implica mostrar como os ativistas não se distinguiam
eles próprios ou seu próprio desejo deste outro, formando com ele uma figura única: eis aí o
modo pelo qual os contornos do desejo no dispositivo pós-guerra se delineiam. Neste dispositivo,
pintam-se os quadros de uma quimera, situados na tensão entre os desejos e os objetivos adiados,
a regressão e as forças da utopia.
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ARTIGOS
São quadros nos quais as imagens
da destruição e da violência – como a dos
soldados da SS, dos participantes da
Quinta Coluna e de outros – não parecem
se distinguir entre si. Alguns desses
quadros, entretanto, são mais leves e mais
fáceis de nomear, devido a sua conexão
com a juventude, os livros de aventuras e
os filmes que os retratam.
Entre os espaços da aventura
estariam a Floresta Amazônica, a savana
africana, as montanhas dos Andes ou o
deserto palestino. Nestes lugares, vivem
árabes heróicos e nativos sul-americanos,
como os Tupamaros do Uruguai, os
Marighelas brasileiros – personagens de
seu “manual de guerrilha na cidade” – ou
ainda personagens descritas nos textos de
Franz Fanon sobre a revolução africana na guerra da Algéria (Alves, Detrez, Marighela,
1970/1971; KRAUSHAAR, 2005; FANON, 1972). Anarquistas, revolucionários e colocadores
de bombas, juntamente com suas parceiras, também são figuras presentes, tais como no filme
“Viva Maria”, de Louis Malle (F/I 1965). Estes influenciaram particularmente os membros da
Kommune 1, dando nome ao seu grupo precursor (RÖHL, 1974, p. 246-247). As figuras de
ladrões, como Zorro, Robin Hood, Bonnie e Clyde também têm um lugar importante na
constituição dessas imagens. Autores bastante heterogêneos, como Ernst Junger, Carl Schmitt,
Walter Benjamin possuem aí um papel importante, tendo sido lidos avidamente na prisão pela
primeira geração da RAF (MÜNCKLER, 1990; MÜNCKLER, 1989).
Essas figuras são quimeras; sobre elas, é depositada uma intenção utópica combinada aos
clichês produzidos pela indústria cultural. Peter Rühmkorf observa também a produção de um
novo culto revolucionário da Virgem Maria, articulado a um amálgama de imagens da selva e da
guerrilha das cidades:
Che Guevara – Franz Fanon – Marighela – Malcolm X – Rudi Dutschke – RAF –
figuras inacabadas de santos decorando a superestrutura de nossos ativistas do
underground. Um traço de Jesus combinado a um culto anárquico-utópico a Maria
(RÜHMKORF, 2004, p. 340).
Essa forma de culto, criada a partir de demandas mal direcionadas de seus partidários,
está de volta hoje. Ela aparece no espaço público, sendo fomentada também pelas agências de
propaganda e design.
Revolucionários como esses já foram criticados por Karl Marx. Para ele, o rebelde que
pretende instaurar um golpe de estado representa bastante bem a figura do político que deve ser
criticado:
Antecipar o desenvolvimento do processo revolucionário, empurrá-lo artificialmente
para a crise artificial, realizar uma revolução arriscada, sem as condições de uma
revolução [...] Estes são os alquimistas da revolução, que compartilham totalmente as
ideias fixas dos antigos alquimistas, suas ideias de ruptura e sua mente estreita (MARX,
ENGELS, 1884).
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ARTIGOS
No contexto do projeto da Arcada Benjaminiana, que fez uma pesquisa a respeito deste
tipo de personalidade dos sonhos do século dezenove, contudo, não é possível negar estas
personalidades; elas devem ser vigiadas como dialéticas. É necessário que se acorde deste tipo de
sonho (BENJAMIN, 1983).
___________________________________________________________________________
Nota do Tradutor
1.A RAF (Rote Armee Fraktion, Facção Exército Vermelho) foi um grupo guerrilheiro de extremaesquerda, fundado em 1970 na Alemanha Ocidental. O grupo passou a ser chamado de Baader-Meinhof
pela polícia e pela imprensa conservadora, numa combinação dos nomes de seus integrantes mais
conhecidos: Andreas Baader e a jornalista Ulrike Meinhof.
As raízes da RAF podem ser encontradas no movimento estudantil dos anos 60. Os estudantes
eram contrários ao uso de armas e de energia nuclear pelo governo alemão e criticavam também situações
internacionais, como a Guerra do Vietnã e a pobreza do Terceiro Mundo. Por ocasião de um protesto
estudantil, realizado em 2 de junho de 1967 contra a visita do xá do Irã a Berlim, um dos estudantes –
Benno Ohnesorg – foi morto por um policial, tornando-se, a partir de então, um mártir do movimento.
Indignada com a morte deste estudante, uma das manifestantes – Gundrun Ensslin – declarou que
a violência só poderia ser respondida com violência. No mesmo ano, começou a namorar Andreas Baader
e, juntos, decidiram passar à luta armada. Em 1968, Esslin e Baader foram presos por terem colocado
bombas e incendiado duas lojas de departamento em Frankfurt, auxiliados por dois companheiros – Horst
Sönhlein e Thoerwald Proll. Condenados à prisão, Baader, Ensslin e Proll conseguiram fugir, mas Baader
foi novamente capturado. Uma conhecida jornalista – Ulrike Meinhof – interessou-se pelo caso a ponto
de participar de sua fuga em 1970, juntamente com Ensslin e mais duas cúmplices. No dia seguinte,
surgiram cartazes com a fotografia de Baader e Meinhof como procurados pela polícia. Pouco tempo
depois, foi publicado num jornal anarquista um comunicado anunciando a criação do grupo Rote Armee
Fraktion (RAF). Entre seus membros se encontravam a jornalista Meinhof e o advogado Horst Mahler,
que tinha defendido Baader durante o julgamento.
O grupo realizou diversas ações armadas e, para isso, realizou um treinamento na Jordânia, sob
orientação da Frente Popular para a Libertação da Palestina. Em junho de 1972, cinco integrantes do
grupo – Andreas Baader, Gudrun Ensslin, Ulrike Meinhof, Holger Meins e Jan-Carl Raspe – foram
detidos e enviados a uma prisão de segurança máxima – Stammheim – construída especialmente para
abrigá-los em celas isoladas. Lá organizaram diversas greves de fome que redundaram na morte de
Meins, o que gerou muitos protestos públicos. O julgamento dos quatro integrantes, conhecido como
Julgamento de Stammheim, começou em 1975. No dia das mães do ano seguinte, Meinhof foi encontrada
morta em sua cela. Em 1977, os três membros restantes foram condenados à prisão perpétua, e no mesmo
ano, após o sequestro de um avião da Lufthansa por um grupo árabe que exigia a libertação dos três
prisioneiros, Baader, Esslin e Raspe foram encontrados mortos em suas celas. Durante sua estada na
prisão, o grupo conquistou simpatizantes que terminaram por constituir a segunda e terceira gerações da
RAF. O grupo sobreviveu até 1998, tendo sido responsável por 34 assassinatos e perdido, por morte, 27
de seus integrantes.
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Fogo ao invés da palavra: a fantasmagoria da RAF