1 A funcionalidade do Sistema Interamericano de Direitos humanos: os casos de violência no campo levados à Comissão Interamericana de Direitos Humanos Deisy Ventura1 e Raísa Cetra2 Introdução O Sistema Interamericano de Direitos Humanos (SIDH) mantém uma constante preocupação em melhorar sua atuação na promoção e proteção dos direitos humanos nas Américas. Algumas reformas foram essenciais para o aumento de sua eficiência, a exemplo das ocorridas em 2009. Entretanto, desde meados de 2011, o SIDH é alvo de propostas de reformas que, sob o pretexto de visarem o seu fortalecimento, refletem interesses de alguns dos países membros da OEA, especialmente os que foram contrariados por recomendações e sentenças recentes, e ora buscam reduzir seu âmbito de atuação. Exemplo claro desse descontentamento político com relação ao SIDH foram as declarações e ações do governo brasileiro frente à medida cautelar expedida pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CmIDH) acerca das obras de construção da usina hidroelética de Belo Monte, além das declarações dos governos venezuelanos e equatorianos sobre a Relatoria de Liberdade de Expressão da CmIDH. Assim, surgiu, durante a Assembleia Geral da OEA de 2011, ocorrida em El Salvador, um Grupo de Trabalho destinado a refletir sobre o funcionamento do Sistema Interamericano e mais especificamente da CmIDH. A perspectiva de reforma torna urgente o aprofundamento das discussões tanto sobre o próprio funcionamento do SIDH, como de seu impacto na vida das populações americanas, e, mais especificamente, das vítimas de violações de direitos humanos que a ele recorreram. Este será o foco do presente artigo. O enfraquecimento do SIDH, mais do que um tropeço na evolução do direito internacional dos direitos humanos, constitui uma perda para as lutas sociais internas das jovens democracias latino-americanas. Ao menos no Brasil, parece ser consenso o reconhecimento do crescente papel que o sistema interamericano vem desempenhando no plano nacional. É o que preconizou, por exemplo, o Chanceler dos dois mandatos 1 Professora do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo (IRI/USP). Graduanda em Relações Internacionais do IRI/USP, bolsista de iniciação científica da FAPESP com orientação do professor Dr. Yi Shin Tang (IRI/USP). 2 2 presidenciais de Luís Inácio Lula da Silva, atualmente Ministro da Defesa do Brasil, Celso Amorim: “São reais os impactos que esses mecanismos de garantia podem provocar no cotidiano das pessoas dos países que reconhecem sua competência. Os principais temas levados ao sistema interamericano têm relevância direta na vida de grande número de pessoas, como segurança pública, condições carcerárias, racismo, direitos indígenas e proteção de defensores de direitos humanos. Ao sistema interamericano podem ser atribuídas mudanças concretas em vários países da região, inclusive no Brasil. A política nacional de erradicação do trabalho escravo, a legislação de prevenção e sanção da violência contra as mulheres, conhecida por Lei Maria da Penha, e a mudança do modelo assistencial em saúde mental são exemplos emblemáticos de políticas públicas que têm inspiração em acordos e decisões geradas no âmbito do sistema interamericano [grifo nosso]”3. Adicionamos a tal citação os casos de violência no campo que chegaram ao SIDH com relação ao Brasil. Primeiro, porque a situação dos direitos humanos no campo brasileiro, sobretudo as situações de conflito existentes no meio rural, são fortes exemplos de ausência de uma democracia e de um Estado de Direito consolidados, expressos, entre outros aspectos, pela densa litigância junto ao SIDH. Apenas com relação às situações de violência no meio rural, excluindo-se as graves denúncias de trabalho escravo, há um total de quinze casos aceitos pela CmIDH desde 1992, dos quais sete já foram analisados pela CmIDH. Destes, dois foram alvo de sentença condenatória emitida pela CrIDH com relação ao Brasil, representando a metade de todas as condenações do Estado, o que mostra a relevância desse recorte. Verificou-se que cinco entre as referidas demandas eram provenientes do Paraná, tendo quatro delas merecido a análise da CmIDH, especificamente da região Noroeste do Estado. Frente a essa relevante litigância e à jurisprudência do SIDH, buscamos entender quais os resultados da combinação de ambas: quais são as mudanças que verificadas a partir de uma ampla litigância no SIDH, somada a uma importante quantidade de respostas do SIDH, inclusive da Corte. Por isso, sintetizamos a jurisprudência do SIDH acerca dessas questões, e realizamos entrevistas com os atores que nele litigam. Especificaremos tanto o papel do SIDH para esses atores, o que expressaria o motivos da litigância, quanto a influência desse sistema, identificando os efeitos causados pelas respostas do SIDH. Assim, este artigo divide-se em 2 etapas. Primeiro, problematizaremos a violência no campo (1.1), analisando a atuação do SIDH em tais casos por meio de sua 3 O Brasil e os Direitos Humanos: em busca de uma agenda positiva”, Política Externa vol. 18, n. 2, 2009. 3 jurisprudência (1.2). Em seguida, analisaremos as entrevistas e a pesquisa empírica acerca do papel e da influência do SIDH no combate a violência no campo (2.1), para então problematizarmos a reforma em curso no SIDH (2.2), pensando nos impactos do enfraquecimento do SIDH para o conjunto da população brasileira a partir dos casos de violência no campo. 1.1. O SIDH e a questão agrária no Brasil A violência no campo, no Brasil, gerada por uma complexa questão agrária, engendra graves violações de direitos humanos no país. Trata-se de um fenômeno que pode ser compreendido conjuntamente com a evolução institucional do Estado brasileiro pós-redemocratização e sua contínua adequação ao crescente quadro internacional de proteção dos direitos humanos. Os direitos humanos, então, e mais especificamente, o DIDH ganharam importância maior durante o processo de redemocratização do país, bem como com o posterior processo de consolidação do regime democrático. O país buscava, para além da consolidação e concretização desses valores, maior legitimidade interna e internacional por meio da demonstração de mudanças profundas na conduta do Estado. Assim, de um lado, o Brasil retomou suas mais lúcidas posições nas arenas políticas internacionais no que diz respeito à necessidade de salvaguarda internacional dos direitos humanos e nas proposituras de sua concretização. Ratificou inúmeras convenções de direitos humanos, tanto no âmbito global como regional, a exemplo da ratificação da Convenção Americana, em 1992 e do reconhecimento da Corte Interamericana em 1998 (nota explicativa sobre o sistema). De outro, tratou de estabelecer também no direito interno, por meio da promulgação da Constituição Federal de 1988, um extenso rol de direitos e garantias fundamentais na proteção dos setores mais vulneráveis da população, bem como no estabelecimento de normas cujos princípios norteadores se encontravam a justiça e igualdade social. (PIOVESAN, 2011; TRINDADE; 2000). A compreensão da importância do SIDH no combate a violência no campo, requer, então, tanto uma análise das salvaguardas internas, como a compreensão dos âmbitos aos quais se tem recorrido no plano regional. 4 + 1.1 A faceta extrema da desigualdade: a violência no campo brasileiro A Constituição Federal de 1988 prevê como postulado da justiça social no meio rural brasileiro, em seus artigos 184 a 1864, a função social da propriedade, como requisito necessário e simultâneo para a manutenção da propriedade. A ausência de seu cumprimento acarretaria, então, a desapropriação do imóvel e o seu destino para fins de Reforma Agrária. Os requisitos do cumprimento da função social da propriedade rural perpassam aspectos econômicos, como a produtividade, ambientais, com a finalidade de proteção do meio ambiente e considerações sobre o valor do ser humano com relação a legislação trabalhista. Tais critérios facilitariam a desapropriação agrária e uma melhor realocação das terras disponíveis, contribuindo para a consolidação da democracia no campo e para a busca de uma maior igualdade no meio rural (MANIGLIA, 2001). A Reforma Agrária derivaria, então, de análises estatais a respeito da propriedade, reduzindo os conflitos sociais gerados pela disputa de terras no Brasil. Entretanto, a aplicação real e eficiente destes critérios e consequentemente da realização de uma Reforma Agrária eficiente ainda estão, mesmo já passados 14 anos de regime democrático, seja devido a demora dos processos desencadeados pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) ou pela omissão Estatal frente a essa realidade, longe de tornarem pequenos os altos índices de desigualdade rural ainda existentes no país. 4 Conforme o art. 184, “Compete à União desapropriar por interesse social, para fins de reforma agrária, o imóvel rural que não esteja cumprindo sua função social, mediante prévia e justa indenização em títulos da dívida agrária, com cláusula de preservação do valor real, resgatáveis no prazo de até vinte anos, a partir do segundo ano de sua emissão, e cuja utilização será definida em lei. § 1º - As benfeitorias úteis e necessárias serão indenizadas em dinheiro. § 2º - O decreto que declarar o imóvel como de interesse social, para fins de reforma agrária, autoriza a União a propor a ação de desapropriação. § 3º - Cabe à lei complementar estabelecer procedimento contraditório especial, de rito sumário, para o processo judicial de desapropriação. § 4º - O orçamento fixará anualmente o volume total de títulos da dívida agrária, assim como o montante de recursos para atender ao programa de reforma agrária no exercício. § 5º - São isentas de impostos federais, estaduais e municipais as operações de transferência de imóveis desapropriados para fins de reforma agrária”. Já o art. 185 assegura que “São insuscetíveis de desapropriação para fins de reforma agrária: I - a pequena e média propriedade rural, assim definida em lei, desde que seu proprietário não possua outra; II - a propriedade produtiva. Parágrafo único. A lei garantirá tratamento especial à propriedade produtiva e fixará normas para o cumprimento dos requisitos relativos a sua função social”. Por fim, o art. 186 reza: “A função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos: I - aproveitamento racional e adequado; II - utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente; III - observância das disposições que regulam as relações de trabalho; IV - exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores”. 5 Para que se tenha uma idéia da relevância deste enfoque, basta observar um rápido panorama da questão agrária no Brasil. Por razões históricas, a distribuição de terras foi marcada por grandes desequilíbrios: cerca de 1% da população controla aproximadamente 46% de todas as terras; todos os estabelecimentos rurais com mais de 1000 hectares dominam 43% do total, enquanto os pequenos, com menos de 10 hectares, perfazem apenas 2,7% desse total (FILHO, 2010); o país possui cerca de 600 milhões de hectares cultiváveis, dos quais 250 milhões são as chamadas terras devolutas, terras que não são próprias nem destinadas a qualquer uso público federal, estatal, territorial ou municipal e não se incorporam ao domínio privado, e 285 milhões são latifúndios, na maior parte, improdutivos; dos 400 milhões de hectares titulados como propriedade privada, apenas 60 milhões, ou seja, apenas 15%, destinam-se a cultivos, o restante é utilizado para a pecuária, está subutilizado ou ocioso. Esses dados sugerem que os grandes detentores de terras no Brasil são a monocultura, os latifúndios, bem como o agronegócio com a presença das empresas transnacionais (CANUTO, 2010, CARALO, 2005). Além disso, segundo dados do INCRA, existem cerca de 100 milhões de hectares de terras ociosas no Brasil, constitucionalmente aptas para a expropriação. Ao mesmo tempo, segundo o Movimento dos Sem-Terra (MST), cerca de 12 milhões de pessoas, ou seja, 4,5 milhões de famílias rurais, não possuem terra e vivem em um estado de pobreza extrema. Já o Ministério da Reforma Agrária estima esse número em 2 milhões de famílias. De qualquer maneira, trata-se de um grande número de brasileiros que vivem hoje sem as condições mínimas para a sua sobrevivência.5 Nesse contexto, muitos trabalhadores têm se articulado, seja em sindicatos, movimentos sociais ou outros tipos de associações, a fim de buscar soluções para a questão do acesso a terra, com a estratégia de ocupar terras improdutivas ou subempregadas. Dentre os movimentos organizados, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) é o de maior expressão nacional. Surgiu na região sul do país no final da década de 70, estendendo-se a todo o país ao longo dos anos ao iniciar ocupações para reclamar terras. Em 1984, foi criado formalmente com o objetivo de defender a Reforma Agrária e uma mudança estrutural ampla de base. No decorrer dos anos, essa organização foi responsável por estabelecer 350.000 famílias em 5 Disponível em <www.acaoterra.org>. 6 assentamentos, os quais proporcionam moradia e oportunidades de prática de produção coletiva, educação e sustento (FILHO,2010). A atual configuração econômica, social e política do campo brasileiro, acaba, então, por gerar um cenário onde a violência se tornou costumeira e onde os direitos humanos são amplamente desrespeitados. Pois foi exatamente dentro deste cenário de profunda exclusão e distribuição desigual de recursos que a Comissão Interamericana, no “Informe sobre la situación de los derechos humanos en Brasil’’ de setembro de 1997, concluiu que essas desigualdades são as principais fontes nas quais se criam condições propícias para a ocorrência dos enfrentamentos sociais e violações dos direitos humanos no campo. A violência de tais conflitos “evidencia a persistência da reprodução de um modelo agrário-agrícola baseado na concentração de terra, da riqueza e de poder”86. A CmIDH, concluído: “Existe no Brasil uma situação histórica de grave desigualdade na distribuição de terras e nas oportunidades econômicas nas áreas rurais. Apesar da capacidade constitucional do Estado e de autoridades para resolver tal situação, esta se mantém. Embora a atual administração tenha iniciado programas para reduzir a gravidade do problema e facilitar o acesso a terra e crédito aos pequenos produtores, o alcance de tais medidas é reduzido e, especialmente o Norte e Nordeste do país mantêm situações de pobreza e desigualdade generalizadas no gozo dos direitos básicos. Os atritos e as situações de tensão provocados pela desigualdade na distribuição de terras e de crédito, dão origem a confrontos que criam condições para que sejam cometidos excessos na repressão e violações de direitos humanos. A mesma situação de pobreza e de falta de oportunidades provocadas pela má distribuição de oportunidades de acesso a terra e serviços, leva a exploração, em condições de servidão, dos trabalhadores rurais” (RELATORIO, 1997). Dessa forma, podemos problematizar a violência existente no campo brasileiro de duas maneiras distintas segundo Juarez Cirino dos Santos (in MANIGLIA, 2001): violência estrutural e violência institucional. A violência estrutural diz respeito às condições tanto de acesso a terra como de acesso a condições econômicas mínimas de sobrevivência da maior parte da população rural e que foram explandas anteriormente. “A violência estrutural sobre esse segmento de trabalhadores agrícolas assume, simultaneamente, formas econômicas e financeiras, quer pela impossibilidade de resistirem ao avanço do capitalismo no campo, formando grandes latifúndios, quer pela necessidade de assalariamento temporário para complementar seus rendimentos, quer pela ausência de créditos agrícolas que os expulsa da terra que mantém para subsistir e produzir. (MANIGLIA, 2001)”. Por seu turno, a violência institucional é produzida direta ou indiretamente pelas instituições políticas e jurídicas do Estado, e que se constituem como conseqüência da 7 violência estrutural. Tal violência, como já foi colocado, pode dizer respeito a uma ordem jurídica não aplicada à realidade, formando uma falsa representação da realidade social, ponto principal para Juarez. Entretanto, outros autores identificaram outros aspectos da violência institucional, nas quais a dinâmica das relações de dominação entre as classes e os grupos sociais se tornam latente. Dentre elas, João Pedro Stédile (in MANIGLIA, 2001) destaca três. A violência do latifúndio, gerada em decorrência da mobilização social na luta por uma distribuição de terra mais eqüitativa. A pressão causada por esses grupos e seus aliados, acaba sendo, dentre todos os motivos citados para a ocorrência de violências no campo, a condição propícia que mais diretamente desperta as ações que violam os direitos humanos. Tais enfrentamentos são caracterizados por terem, em geral, de um lado os latifundiários, as milícias armadas ou representantes estatais, como a polícia, e de outro os trabalhadores organizados, cujas vítimas principais são suas lideranças. Destaca-se também a violência direta do Estado, empreendida pela polícia e pelo exército quando de suas ações no meio rural, principalmente em sitações de despejo forçado. Aliado a essas violências, surge a chamada violência do preconceito que serve para encobrir a violência estrutural, para justificar e apoiar a violência dos fazendeiros, e do Estado e para tirar a legitimidade e argumentos dos movimentos a favor da terra. Além disso, segundo Maniglia (2001) e José Tavares (2000) é possível identificar mais um tipo de violência no meio rural: a violência do judiciário tanto quando descumprem sua função de primar pela Constituição e a função social da terra, como quando ignoram os processos criminais decorrentes dos enfrentamentos nas disputas de terra no Brasil. Segundo dados da Comissão Pastoral da Terra, entre 2000 e 2008 foram despejadas pelo judiciário em média 20.000 famílias por ano. Além disso, por conta de ações do Ministério Público Federal, 130 crianças do assentamento rural Oziel Alves ficaram sem escola (CANUTO, 2010). Segundo Tavares (2000), podemos traçar, então, as seguintes características da violência no campo: “Trata-se de uma violência difusa, de caráter social, político e simbólico, envolvendo tanto a violência social como a violência política. Neste caso, ela se exerce, freqüentemente com alto grau de letalidade, contra alvos selecionados (contra as organizações dos camponeses e trabalhadores rurais) e seus agentes são membros da burguesia agrária, fazendeiros e comerciantes 8 locais, mediante o recurso a "pistoleiros" e milícias organizadas. Também se registra a presença do aparelho repressivo estatal, comprovado pela freqüente participação das polícias civis e militares. Enfim, a omissão de membros do Poder Judiciário reforça o caráter de impunidade. Como resultado, produz-se a carência do acesso ao Poder Judiciário para as populações camponesas e dos trabalhadores rurais, resultando em uma descrença na eficácia da Justiça para resolver conflitos ou mesmo para garantir direitos constitucionais, como o direito da função social da terra”. Neste artigo, os principais casos em questão abarcarão todos os tipos de violência aqui elencados, mas destacarão a violência física gerada nos contextos de conflitos sociais na disputa por terra, envolvendo proprietários, movimento social e polícia e que se configuram como conflitos por “Conflitos por terra são ações de resistência e enfrentamento pela posse, uso e propriedade da terra e pelo acesso a seringais, babaçuais ou castanhais, quando envolvem posseiros, assentados, quilombolas, geraizeiros, indígenas, pequenos arrendatários, pequenos proprietários, ocupantes, sem terra, seringueiros, camponeses de fundo de pasto, quebradeiras de coco babaçu, castanheiros, faxinalenses, etc.” (CANUTO, 2012). Tal violência recoloca o direito à vida como questão limite dos camponeses e trabalhadores rurais. Ainda mais, porque ela se configura como uma rotina de violência, expressando-se por um ritual de dominação que se exerce por uma anatomia política do suplício, uma anatomia do dilaceramento do corpo. Segundo dados da Comissão Pastoral da Terra (CPT), no período entre 1999 a 2008 ocorreram cerca de 13.165 conflitos no campo, com o número de pessoas envolvidas variando entre 502.390 em 2008 e 1.190.578 em 2003; nesse período também registra-se 365 assassinatos. Em 2011, os dados mostram que os conflitos e a violência no campo se mantêm em patamares elevados. No ano passado foram registrados 1.035 conflitos, envolvendo cerca de 458.675 pessoas, somando aproximadamente 91.735 famílias, das quais 2.137 foram expulsas e 7.033 despejadas. Também registraram-se 347 ameaças de morte, 29 assassinatos e 38 tentativas de assassinatos6. Segundo afirma a CPT e o Instituto Carioca de Criminologia, o estado do Paraná pode ser considerado como um dos estados brasileiros onde mais ocorrem violações de direitos humanos contra os trabalhadores rurais, tendo essas se concentrado na década de 1990, como se verá mais adiante. A CPT registrou 75 conflitos no campo envolvendo 35.791 pessoas em 1997 e 53 conflitos em 1996 envolvendo 46.021 6 Relatórios Anuais, disponíveis em <www.cpt.com.br>. 9 pessoas. Também em 1997, houve quatro assassinatos e quatro tentativas de assassinatos em conflitos rurais no estado, enquanto em1996 ocorreram sete tentativas (RELATORIO NACIONAL: PARANÁ). Diante de todo este cenário de violência, a Comissão Interamericana também afirma no relatório de 1997 que um sistema processual inoperante e o medo das autoridades interessadas no problema de adotarem medidas mais efetivas contribuem para a diminuição da capacidade da população brasileira de exercer seus direitos civis e políticos, bem como seus direitos sociais, econômicos e culturais, dentre eles o direito de reunião, associação, liberdade de comércio e trabalho e liberdade política, uma vez que se pode constatar a existência do poder paralelo de empresas e proprietários rurais. Segundo a CPT, entre 1985 e 2002, foram registrados 1280 assassinatos. Destes, apenas 121 foram levados a julgamento, sendo que apenas 14 mandantes foram efetivamente julgados e somente 7 condenados. Neste período também foram julgados 96 executores e apenas 58 foram condenados7. As circunstâncias econômicas, políticas e sociais no campo brasileiro descritas acima demonstram a grave situação vivida por grande parte da população rural brasileira. Direitos humanos não são violados diariamente apenas no que diz respeito a não garantia de direitos como o direito à propriedade ou à livre iniciativa e outros garantidos no artigo 5° da Constituição Federal de 1988, mas são também constantemente violados quando as reclamações por tais direitos são ignoradas pelo Estado devido à estrutura política e social do país. Com isso, essa situação se torna mais complexa e urgente, uma vez que esses direitos estão intimamente ligados à proteção dos grupos mais vulneráveis, enquanto vítimas primárias da exclusão, destacando a questão da integração social e da distribuição de terra e renda. Torna-se, importante, então, diante desse quadro compreender como as vítimas e a sociedade civil tem enfrentado essa realidade na qual o Estado não só se configura como o agente dessas violações, como quando não o é se omite em relação às garantias que deveria proteger. Nesse sentido encontra-se a litigância perante o Sistema Interamericano de Direitos Humanos. Buscaremos, então, compreender na seção seguinte as características dos casos de violência no campo que chegam ao SIDH, bem 7 Relatórios Anuais, disponíveis em <www.cpt.com.br>. 10 como a maneira como esse sistema tem atuado diante das petições, atuando, então, concretamente de maneira subsidiária e complementar. 1.2 A violência no campo no SIDH 8 Considerando-se os casos admitidos ou analisados pela CmIDH a partir de 1992, quando da ratificação da Convenção Americana pelo Brasil, identificou-se 15 casos relacionados a violações de direitos humanos no campo brasileiro, excluindo-se os casos de trabalho escravo. Aqui, optamos por efetuar um recorte dos casos chegados ao SIDH, identificando apenas os relacionados com situações de violência física. Assim, excluiu-se do levantamento o relacionado à intercepção telefônica ilegal (caso conhecido como “Escher e outros”, n.12353), somando, então, 14 casos de violência no campo. A seguir, elaboramos a Tabela 1, que contém o número e nome de cada caso, e o Estado no qual os fatos ocorreram; e a Tabela 2, que contém anos de admissibilidade (sigla A) e análise de mérito (sigla M) dos casos a partir do primeiro caso considerado admissível depois de 1992 (em 1996) até o último (que ocorreu em 2009). Casos Nome Estado 11287 João Canuto Pará 11405 Newton Coutinho e outros Pará 11517 Diniz Bento da Silva Paraná 11556 Corumbiara Rondônia 11820 Eldorado dos Carajás Pará 12200 Trindade Mato Grosso 12310 Sebastião Camargo Paraná 12332 Margarida Alves Paraíba 12478 Sétimo Garibaldi Paraná 462-02 Francisco de Assis Maranhão 641-03 Manoel Luis da Silva Paraíba 1290-04 José Dutra da Costa Pará 236-06 Gabriel Sales Pimenta Pará 4-04 Antonio Tavares Pereira e outros Paraná Tabela 1: Casos de violência no campo que foram demandados perante o SIDH desde 1992 8 Para um relato completo desta pesquisa, v. Raísa Ortiz Cetra, O SIDH e as violações dos direitos do homem ocorridas na zona rural brasileira. Relatório Final de junho de 2012 aprovado. Pesquisa financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), sob a orientação de Yi Shin Tang (IRI/USP). 11 Nome 1996 João Canuto 1997 1998 A Newton Coutinho e outros Diniz Bento da Silva Corumbiara 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 M A M A/M A M Eldorado dos Carajás Trindade A A Sebastião Camargo Margarida Alves Sétimo Garibaldi Francisco de Assis Manoel Luis da Silva José Dutra da Costa Gabriel Sales Pimenta Antonio Tavares Pereira e outros A/M A A/M A A A A A Tabela 2: Ano de admissibilidade (A) e de análise de mérito (M) dos casos perante a CmIDH. Optamos, então, por estudar as características das seis petições já admitidas pela CmIDH (Tabela 3), das recomendações (Tabela 4) e análises emitidas por esse órgão. Caso João Canuto Newton Coutinho e outros Diniz Bento da Silva Corumbiara Sebastião Camargo Filho Sétimo Garibaldi 1994 e 1995 1993 1995 1997 1998 ONGs CPT, CEJIL e Human Rights Watch/Américas CPT, CEJIL e Human Rights Watch/Américas Líder sindical Liderança do MST Direitos Demandados I, V; 8, 25 Ocupantes ou defensores da ocupação de terra 4,5,8,25 MST,CPT, RENAP, Justiça Global, International Human Rights Law Group Ocupante do MST Justiça Global, RENAP e MST Vítimas CDDH da Arquidiocese de Porto Velho, CTV, MST, CEJIL e Human Rights Wacht/Américas Ocupantes do MST 4,5,8,11,25 4,5,11 4;5;8;25 4,8,25 Direitos violados I, XVIII; 8, 25 4,5,8,25 4;8;25 4,5,8,25; 1,6,8 CPST 4;8;25 4,8,25 Ano dos fatos Peticionários Tabela 3: Características dos casos de violência no campo analisados no mérito pela CmIDH. Ocupante do MST 12 Dessa forma, quanto aos demandantes, ao todo identificamos nove diferentes peticionários, sendo todos organizações da sociedade civil ou movimentos sociais, ausente qualquer demanda direta dos indivíduos relacionados ao caso. É importante destacar a presença do MST e da CPT como peticionários, uma vez que não são atores habituais perante as instâncias internacionais. Sua presença deles demonstra que outros atores, além da sociedade civil especializada em litigância estratégica, passaram a “empoderar-se” desta instância como alternativa. No que diz respeito às vítimas, todas eram ocupantes ou defensores da ocupação de terras, sendo que em pelo menos quatro dos seis casos analisados as vítimas eram membros do MST. No caso João Canuto, por sua vez, a vítima era líder sindical, e com relação ao caso Newton Coutinho e outros não foi possível identificar relações concretas das pessoas assassinas ou presentes na lista de execução com o MST. Assim, em pelo menos cinco dos seis casos, as vítimas tinham alguma relação com movimentos sociais, o que demonstra, em conjunto com o fato de que nenhum dos peticionários eram as próprias vítimas, a importância destes movimentos para o combate à violência no campo, uma vez que a organização aparenta permitir maior articulação na busca pela justiça e respeito aos direitos humanos. Com relação aos direitos demandados, apresentou-se na petição reclamações de violações do direito à vida, artigo 4º da Convenção Americana sobre Direitos Humanos e I da Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem (DADDH); de violações dos direitos a garantias judiciais (artigo 8º da Convenção) e a proteção judicial (artigo 25 da Convenção); bem como foram demandados os direitos à integridade física (artigo 5º da Convenção) e à honra e dignidade (artigo 11 da Convenção e V da DADDH). A Comissão entendeu, em 100% dos casos, que os direitos à vida, a garantias judiciais e à proteção judicial foram efetivamente violados. Por outro lado, entendeu que o direito à integridade física foi transgredido em 50% dos seus pedidos, e o direito à honra e à dignidade, pela interpretação da Comissão, não foi violado em nenhum dos casos analisados. Os motivos que permeiam esses entendimentos da Comissão, e que expressam não só suas maiores preocupações como também o seu próprio entendimento acerca do seu papel na busca pelo respeito aos direitos humanos nos casos de violência no campo, serão expostos a seguir, centrando-se nos três direitos que foram 13 considerados violados em todos os casos (direito à vida, às garantias judiciais e à proteção judicial). Direito à vida Com relação ao direito à vida, segundo o qual toda pessoa tem o direito de que respeitem sua vida, não podendo ser dela privado arbitrariamente, a Comissão destacou ao longo dos relatórios a sua especial importância, uma vez que é pressuposto essencial para a realização dos demais direitos. Trata-se, então, na visão do órgão, respaldado também pela jurisprudência da Corte Interamericana, de um direito que o Estado deve não só garantir diretamente, ou seja, deve garantir que os agentes estatais não o violem na ausência de justificativas plausíveis, como deve agir de maneira a garantir que terceiros não o violem. Da mesma forma, a Comissão destaca que o respeito ao direito à vida pelo Estado também envolve a prevenção de que as violações não ocorram ou não tornem a ocorrer. A geração de responsabilidade internacional por parte do Estado ocorre, então, tanto em casos de violações diretas, por meio da ação dos agentes estatais, como de violações indiretas, relacionadas à omissão. Dentre as medidas preventivas destacam-se: as garantias e proteção judiciais e a proteção dos indivíduos ameaçados de sofrerem violência. Neste caso último, de não proteção, a violação de direitos humanos por particulares não é imediatamente atribuída ao Estado, pois deve atender a circunstâncias particulares: conhecimento de risco real e imediato por parte do Estado, no caso de denúncias e a não adoção de medidas razoáveis para evitá-lo. Tal situação foi encontrada em três dos seis casos analisados (João Canuto, Newton Coutinho e Sebastião Camargo Filho). Por outro lado, as garantias judiciais se relacionam com o direito à vida na medida em que a Comissão entende que a situação no campo brasileiro está inserida em um padrão de violações e impunidade no país, que cria um ambiente que facilita a violência, por não existirem evidências da vontade e da efetividade do Estado tanto em processar como em punir, enfim, como representante da sociedade, para sancionar esses atos. Tal violação do direito à vida relacionada à falta de investigação e sanção dos agentes perpetradores é recorrente nas situações de violência na zona rural, estando em 100% dos casos analisados, o que indica uma necessidade urgente de mudanças na 14 estrutura do judiciário brasileiro, tanto na fase de investigação, como na fase processual, que seria, no entendimento da Comissão, um forte aliado no combate à violência no campo. No caso Newton Coutinho, cuja análise teve influências de uma visita in locus da Comissão, a decisão do órgão expressa bem essa relação entre o direito à vida e a necessidade de prevenir, bem como os direitos a garantias e proteção judicial: “108³. Pese a tener pleno conocimiento de la situación y haber enviado comisiones investigadoras tanto del Poder Ejecutivo como del Legislativo estaduales y federales que pudieron evaluar la gravedad e ilegalidad de la situación, no se han adoptado medidas dentro del marco constitucional y legal eficaces para evitar la continuidad de la campaña de violencia, ni para prevenir sus efectos, ni para procesar a sus responsables, ni para reformar las estructuras y reglamentos policiales y judiciales, ni para reparar a las víctimas de los sucesos. En este sentido la violación al derecho a la vida está íntimamente ligada al derecho a las garantías judiciales y a la protección judicial reconocidos por los artículos 8 y 25 de la Convención.” (INFORME n°59/99). Um panorama geral dos casos se faz necessário para que seja possível a compreensão de como se deram as violações do direito à vida em cada um deles. Destacam-se a necessidade de analisar se tais violações foram frutos da ação direta de agentes estatais ou se foram consequência de agente privados, sendo a responsabilidade internacional do Estado atribuída por omissão da justiça ou de prevenção, além da importância de se identificar se foram resultado de execuções sumárias ou de ações de despejo, sejam judiciais ou extrajudiciais. Na demanda João Canuto, a vítima foi morta por dois pistoleiros após constantes ameaças que foram notificadas às autoridades. Dessa forma, foi atribuída a responsabilidade internacional ao Estado pela violação do direito à vida pela ausência de proteção e de garantias legais após sua morte. Já no caso Newton Coutinho e outros, as mortes e agressões, como reconhece a Comissão, eram decorrentes de uma lista de execução elaborada por um grupo de extermínio local e, por isso, a responsabilidade internacional pelo direito à vida foi resultado da omissão de prevenção e investigação dos fatos, o que permitiu a continuidade da existência desse grupo de extermínio. Diniz Bento da Silva, por sua vez, foi morto por policiais, sendo a violação, portanto, direta e também indireta pela omissão estatal em investigar os fatos e punir os culpados. Destaca-se a opinião da Comissão nesse caso: “35. En el caso de autos, la responsabilidad del Estado va mucho más allá del patrón de tolerancia y apoyo a la violación del derecho a la vida, pues fueron 15 los propios agentes del Estado, bajo la égida de la autoridad y portando elementos constitutivos y demostrativos de la misma, como armas, uniformes, etc., quienes decidieron, planificaron y ejecutaron el asesinato de Diniz Bento da Silva y posteriormente encubrieron los hechos a través de una investigación irregular e ineficaz en el ámbito de la justicia militar” (INFORME n°23/02). Por outro lado, os casos Corumbiara, Sebastião Camargo e Sétimo Garibaldi foram casos de despejos. No primeiro caso, a ação foi decorrente de um despejo judicial, no qual a Comissão entendeu que houve violação do direito à vida e à integridade física das famílias que estavam no local pelas ações dos agentes estatais após o controle da situação por parte dos policiais. Eles teriam empreendido ações violentas e desproporcionais, inclusive de tortura, além da ausência de investigação e punição. Com relação às ações diretas de agentes estatais, portanto vinculadas a decisões judiciais, a Comissão pronunciou-se no caso Corumbiara da seguinte maneira: “169. Previamente debe señalarse que el desalojo compulsivo de una hacienda invadida, efectuado con el auxilio de la fuerza pública y el empleo racional de fuerza, en cumplimiento de una orden judicial, no es contrario per se a la Convención Americana sobre Derechos Humanos, que incluye más bien el derecho de propiedad como uno de los derechos protegidos.(…) Sin embargo, los agentes estatales no pueden actuar en forma ilimitadamente discrecional al realizar sus funciones de hacer cumplir la ley. (…)Cuando se usa fuerza excesiva, no se respeta la integridad personal, y toda privación de la vida resultante es arbitraria.” (INFORME n°32/04). Já nos casos Garibaldi e Sebastião Camargo, as ações de despejo se deram de maneira extrajudicial e por ações de milícias privadas, sendo a responsabilidade internacional do Estado atribuída pela não prevenção e não respeito às garantias e proteções judiciais. Em síntese, as violações do direito à vida ocorreram em dois dos seis casos analisados por ação de violência direta dos agentes estatais e nos outros quatro as ações de violência se deram por meio da ação de terceiros, entre eles pistoleiros ou milicias privadas. Por outro lado, a violação indireta, que diz respeito à prevenção das ações, seja com relação à investigação e punição ou à proteção em caso de risco, esteve presente em todos os casos. Garantias jurídicas e proteção judicial Ao lado do direto à vida, outros dois direitos, interligados entre si, estão em todas as demandas e aparecem em todos os relatórios analisados como direitos violados pelo Estado nas situações de violência no campo: o artigo 8, direito à garantia jurídica, e 16 o artigo 25, direito à proteção judicial. Conforme a jurisprudência da Corte Interamericana, presente no relatório do caso Sebastião Camargo Filho: “103. (...) Toda pessoa afetada por uma violação de direitos humanos tem o direito de obter esclarecimentos dos órgãos estatais acerca dos atos violadores e o estabelecimento das responsabilidades correspondentes, através da investigação e julgamento que estabelece os artigos 8 e 25 da Convenção Americana”. Em consequência, os Estados têm a obrigação de tomar todas as medidas necessárias para que ninguém seja privado da proteção judicial e do exercício do direito a um recurso simples e eficaz. Ademais, a razão principal dessa preocupação da Comissão diz respeito à situação de impunidade criada no campo, que permite a continuidade dos atos de violência (RELATÓRIO, n°25/09). No cerne deste problema, destaca a Comissão, encontram-se a falta de imparcialidade das autoridades locais ao longo tanto das fases de investigação policial como no processo judicial, além da morosidade que permeia todo o processo. A esse respeito, a Comissão, respaldada na jurisprudência da Corte, esclarece que ao artigo 25 da Convenção se incorpora o princípio da efetividade ou eficácia dos meios ou instrumentos processuais destinados a garantir os direitos protegidos. Assim, a inexistência de tais recursos deixa os indivíduos em situação de violação e, portanto, justifica a existência de proteção internacional. Seguindo princípios internacionais, a Comissão analisa nos informes se a maneira de conduzir o processo, e principalmente a investigação, foi eficaz ou não, e a partir disso, imputa a responsabilidade internacional do Estado. Segundo o órgão no relatório do caso Corumbiara: “254. (...) [el proceso] debe emprenderse con seriedad y no como una simple formalidad condenada de antemano a ser infructuosa. Debe tener un sentido y ser asumida por el Estado como un deber jurídico propio y no como una simple gestión de intereses particulares, que dependa de la iniciativa procesal de la víctima o de sus familiares o de la aportación privada de elementos probatorios, sin que la autoridad pública busque efectivamente la verdad. Esta apreciación es válida cualquiera sea el agente al cual pueda eventualmente atribuirse la violación, aun los particulares, pues, si sus hechos no son investigados con seriedad, resultarían, en cierto modo, auxiliados por el poder público, lo que comprometería la responsabilidad internacional del Estado” (INFORME n°32/04). Outra característica primordial de uma investigação para a Comissão é que seja efetuada por um órgão independente e autônomo, e que no decorrer do processo se preserve a competência, independência e imparcialidade dos tribunais. Para além dos alegados envolvimentos de agentes da polícia, da justiça e do governo nos casos, a falta de imparcialidade na condução da investigação preocupa a Comissão. 17 Outra preocupação da Comissão com relação às garantias legais e à sua eficiência diz respeito à investigação e ao estabelecimento de processos não só dos agentes que executam os atos de violência, mas também dos agentes intelectuais das violações de direitos humanos: “256. La mencionada obligación de investigar y sancionar todo hecho que implique violación de los derechos violados por la Convención requiere que se castigue no sólo a los autores materiales de los hechos violatorios de derechos humanos, sino también a los autores intelectuales de tales hechos” (INFORME n◦ 32/04). As recomendações do SIDH As recomendações, por sua vez, expressam as principais preocupações da Comissão diante dos fatos apresentados. Ao todo se identificou 23 recomendações, sendo que elas podem ser agrupadas em nove diferentes grupos de acordo com seus objetivos: 1) realizar uma investigação completa, imparcial e efetiva; 2) modificação de legislação; 3) identificar e se for o caso castigar os responsáveis pelas irregularidades comprovadas na investigação; 4) reparar adequadamente seus familiares; 5) adotar medidas gerais para a efetivação dos direitos consagrados na Convenção; 6) adotar uma política global de erradicação da violência rural; 7) adotar medidas específicas para o estado da federação em questão cumprir a Convenção; 8) adotar medidas efetivas para desmantelar os grupos armados ilegais; 9) adotar uma política pública contra a impunidade de violações de direitos humanos às pessoas envolvidas em conflitos agrários. Tais recomendações, por sua vez, podem ser separadas em três grupos com medidas relacionadas a: a) investigações (que dizem respeito às recomendações 1, 2 e 3); b) reparações (item 4); e c) e prevenções (recomendações 5, 6, 7, 8 e 9). A Tabela 4 mostra as recomendações que foram emitidas pela CmIDH em cada caso analisado e a Tabela 5 sintetiza a frequência com que cada uma dessas reparações esteve presente nos casos analisados. Caso João Canuto Recomendações 1;3;4;7 Newton Coutinho e outros 1; 4; 5 Diniz Bento da Silva Corumbiara 1; 4; 6 1;2;4;6; Sebastião Camargo Filho 1; 4;6;8;9 Tabela 4: Recomendações emitidas pela CDH em cada caso analisado Sétimo Garibaldi 1;4;5;8; 18 Objetivo Total % Medidas Total % Investigações 8 34,8% sem reforma legal 6 26,1% com reforma legal 1 4,35% Sanção 1 4,35% sem especificação 2 8,7% política contra a violência no campo 3 13% direcionada para o estado em questão 1 4,35% política contra a impunidade 1 4,35% política contra os grupos armados ilegais 2 8,7% sem especificação 6 26,1% Prevenção Reparação 9 6 39,1% 26,1% Tabela 5: Frequência em que cada categoria de recomendação incorreu nos relatórios analisados As medidas relacionadas à investigação ocupam a preocupação da Comissão em 34,8% do total de recomendações relacionadas a casos de violência no campo, à situação de impunidade no campo. Por sua vez, as medidas de prevenção são as frequentes nos relatórios da Comissão, aparecendo em 39,1% do total, o que indica a preocupação da Comissão com relação, principalmente, ao desenvolvimento de políticas públicas que permitam que os direitos humanos sejam efetivamente respeitados no campo. Ocupando as principais preocupações estão medidas que efetivamente combatam a violência no campo de maneira direta, com 13% das recomendações tendo aparecido na metade dos casos analisados e a preocupação com os grupos armados de maneira ilegal, que ocupa 8,7% do total de recomendações do órgão. Depreende-se, então, das opiniões e preocupações da CmIDH que estão presentes nos relatórios analisados que a própria visão da Comissão acerca do seu espectro de ação com relação à violência existente no campo brasileiro centra-se na busca de melhores garantias jurídicas a esses cidadãos brasileiros, o que contempla também a preocupação com o respeito ao direito à vida. Em um plano secundário, e mais fortemente nos últimos relatórios, a Comissão tem tentado incentivar que o país implemente políticas públicas de combate à violência no campo, o que demonstra sua tentativa de agir em outros âmbitos, ampliando o seu próprio papel. 19 2. A quem a reforma do SIDH atingirá O SIDH não constitui, nem de longe, um escore das violações de direitos humanos perpetradas pelos Estados Partes. Como mecanismo subsidiário em relação às garantias nacionais de proteção aos direitos humanos, o acesso ao sistema depende da capacidade de litigância além-fronteiras dos indivíduos e, sobretudo, das organizações sociais, que só podem a ele recorrer quando esgotam as vias nacionais de recurso. Portanto, os números que já citamos neste artigo talvez digam mais sobre o crescente grau de organização e de internacionalização das sociedades latino-americanas do que sobre o comportamento dos Estados. Por conseguinte, acreditamos que o melhor diapasão para compreender e avaliar criticamente a atuais propostas de reforma do SIDH é o da transversalidade das lutas sociais, que se expressa, entre outras formas, na litigância estratégica transnacional (CARDOSO, 2012) Com efeito, recentes decisões da CmIDH e da CrIDH têm irritado Estados como Brasil, Equador e Venezuela. Ao interpretar os compromissos convencionais de modo a pôr em xeque a legalidade de interesses políticos e/ou econômicos prioritários de governos, o SIDH acaba por incidir em disputas internas nas quais, não raro, há uma confrontação direta do governo com movimentos sociais, com a oposição ou com a opinião pública. Ora, conformar-se ao controle de convencionalidade exercido pelo SIDH em relação a estas questões que ocupam, devidamente ou não, o primeiro plano na política interna, significaria aceitar o primado das normas de direitos humanos como critério de solução destes conflitos domésticos. É o que procuraremos demonstrar a seguir, em duas sub-partes: a análise do papel e da influência do SIDH pelos atores que nele litigam (2.1) e pela profundização das propostas de mudança do SIDH que está em curso (2.2). 20 2.1 O papel do Sistema Interamericano no combate à violência no campo para os atores que nele demandam 9 O papel do SIDH A sessão anterior buscou compreender, então, a maneira como a própria CmIDH compreende o seu papel no combate à violência no campo. Entretanto, sua própria ação está vinculada à ação e demanda dos peticionários, e, assim, à maneira como eles compreendem que o SIDH influencia os objetivos da litigância, o que determina a elaboração de suas petições e de alguma maneira direciona a análise a Comissão. Assim, as entrevistas foram realizadas tanto com os membros da ONG que litiga perante o SIDH no estado do Paraná, a Terra de Direitos, como membros do MST e com as vítimas da violência no campo a fim de verificar como esses atores compreendem o papel do sistema regional. É importante ressaltar que a opinião acerca da capacidade de ação do SIDH por esses atores não foi constante ao longo dos anos. Segundo Ney Stozake, membro da Secretaria Nacional de Direitos Humanos do MST, a litigância do MST perante a OEA começou apostando-se no pedido de medidas provisórias em situações de grande risco. Entretanto, tais demandas não foram bem sucedidas, o que gerou uma forte descrença com relação ao sistema. Simultaneamente, os casos foram sendo submetidos para análise de mérito, e depois de longos anos, quando as primeiras análises foram sendo emitidas, a aposta do movimento nesse tipo de demanda aumentou, sendo finalmente reforçada com as duas sentenças da Corte, o caso “Escher e outros” e o caso “Sétimo Garibaldi”. O Sistema Interamericano apareceu, então, como outro âmbito de disputa confiável para o movimento. Além disso, identificou-se nas entrevistas que, para o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, o Sistema Interamericano possui três papeis principais, os quais dizem tanto respeito à produção de justiça quanto estão relacionados com as suas próprias lutas. São eles: fiscalização dos processos judiciais no Brasil; problematização da realidade da violência no campo na sociedade brasileira; e último 9 Para um relato completo desta pesquisa de campo, v. Raísa Ortiz Cetra, O SIDH e as violações dos direitos do homem ocorridas na zona rural brasileira. Relatório Final de junho de 2012 aprovado. Pesquisa financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), sob a orientação de Yi Shin Tang (IRI/USP). 21 recurso de amparo quando as instituições brasileiras apoiam, em determinadas regiões, as ações repressivas. O primeiro dos objetivos do movimento ao demandar no sistema internacional, a busca por uma fiscalização do poder judiciário foi apresentada por Claudio, da secretaria regional do MST do Paraná. Ele destaca que tanto as situações de violência no campo como as situações de luta pela reforma agrária por meio das ocupações de terra que geram processos de reintegração de posse aproximaram o movimento do judiciário brasileiro, quando antes a luta se concentrava no poder executivo. Entretanto, essas demandas e os resultados das mesmas mostraram ao longo do tempo para o movimento que muitos dos magistrados brasileiros corroboravam essas situações e permitiam a continuidade dessa violência no campo. Para eles, então, o Sistema Interamericano cumpre o papel de verificar se os andamentos dos processos não estão violando os direitos humanos em si. Para ele: “Atuar no judiciário hoje eu diria que não é uma estratégia, mas deve ser uma opção tática dos movimentos sociais. Pra nós anteriormente não tinha porque vir cobrar a reforma agrária no judiciário. Primeiro porque não é o judiciário que tem obrigação de fazê-la, quer dizer, tem a garantia legal, mas é o poder executivo que tem que fazer. Acontece que cada vez mais o judiciário tem se tornado um ator nesse processo, tá intervindo com as liminares de reintegração de posse, ações criminais atingindo militantes do MST. (...) Então não acho que o movimento tem que atuar de maneira a pressionar o judiciário, mas tem que se aproximar cada vez mais do judiciário. Especialmente porque é o poder mais corrompido que tem. As fundamentações de alguns juízes é quase que desumana só pela argumentação do cara, é uma violência só pela argumentação do cara, fora como o cara justifica o Estado não fazer a reforma agrária, a forma como ele compreende aqueles trabalhadores como bandidos, baderneiros. (...) Uma decisão dessa só pode estar ligada a uma defesa ideológica do cara, o cara tá casado com o latifúndio. A atuação do MST aqui no judiciário não vai descasar, mas pelo menos a gente vai fiscalizar o judiciário. Então levar pra Corte a gente também faz isso, fiscaliza o judiciário brasileiro, é uma forma da gente mostrar que o Estado de uma forma geral e, especialmente aqui nesse caso, que o judiciário não tá observando as previsões legais” (Entrevista realizada no dia 6/10/2011 em Curitiba). O segundo papel que o Sistema Interamericano cumpre na visão dos MST é, além de possibilitar que os fatos alcancem outras instâncias, contribuir para o debate com a sociedade de que o movimento social, que é visto como violento, na verdade sofre mais violência do que causa, o que contribui para o apoio da sociedade nas lutas pautadas pelo movimento. Segundo Cláudio: “Mas tem uma posição geral do movimento diante desses casos. E ela está calcada basicamente na questão da disputa da reforma agrária dentro da sociedade. Então veja, é taxado pela mídia, pela grande imprensa, pelo 22 latifúndio, como um movimento violento, de pessoas violentas, diante de um quadro que aponta justamente o contrário. Se você pegar os números dos conflitos no campo, você vai ver que a esmagadora maioria, é bem maior o número de trabalhadores assassinados do que eventualmente dos agentes estatais ou fazendeiros. (...) Então nós precisamos saber como nós vamos nos defender na sociedade, como nós vamos debater lá na sociedade que nós não somos violentos, que o latifúndio é violento. (...) Quando a gente leva o caso pra lá, o objeto específico é aquela violação, é a vida do Sebastião Camargo Filho, é a vida do Sétimo Garibaldi, que foi tirada aqui num contexto de conflito pela terra e foi por uma milícia privada contratada por fazendeiros (...). Então quando a Corte julga em favor da demanda apresentada lá, ou seja, contra a milícia privada e contra o distanciamento do Estado em resolver esses conflitos, ela é uma parcela desse debate que a gente pretende fazer na sociedade. (...) Tira os fatos da nossa cidade e do nosso estado e leva ela pra quantas instâncias a gente puder a nível internacional” (Entrevista realizada no dia 6/10/2011 em Curitiba). O terceiro aspecto dos motivos pelos quais o MST recorre ao Sistema Interamericano demonstra não só a importância desse sistema, mas também a sua responsabilidade diante de Estados que faltam com a garantia de direitos humanos básicos, uma vez que as instituições estatais, sejam elas políticas, jurídicas ou militares, estejam corrompidas por interesses e ideais dos indivíduos e não construam suas ações visando o bem-estar da população e, principalmente, respeitando os direitos humanos. A entrevista realizada com o Giovani Braum, líder do MST na região noroeste do Paraná e atualmente Secretário do Desenvolvimento da Prefeitura de Querência do Norte, demonstrou como o Sistema Interamericano era não só o último recurso, como a última esperança de uma parcela da população que foi privada dos seus direitos e garantias estatais. “Então assim, o fato de se recorrer à Corte Internacional é tudo isso. Então quer dizer, o que que eu consigo buscar aqui? Sendo que há uma parceria do Estado, do latifúndio e da justiça? Que dizer, todos contra o MST. Então você não tinha o mecanismo de confiar. (...) Por que esses processos? Porque aqui você não tinha a quem recorrer. Você chegava no Fórum e corria o risco de ser preso pelo fato de você ser do movimento” (Entrevista realizada no dia 8/10/2011 em Curitiba). Para a Organização Não Governamental Terra de Direitos, que age em conjunto com outra ONG, conhecida como Justiça Global, no Sistema Interamericano, tal sistema cumpre um papel importante em fazer os processos internos caminharem, além de servir como um instrumento político dos movimentos sociais. Para Fernando Prioste e Thiago Hoshino, advogados da organização, litigar no Sistema Interamericano não é apenas demandar justiça, uma vez que envolve processos de escolha dos casos a serem enviados, levando em consideração os fatos políticos e uma avaliação da conjuntura 23 que, no que diz respeito aos conflitos fundiários, está relacionada com a busca pela democratização da terra. Nesse contexto, se insere, portanto, segundo eles, a apresentação de demandas perante o Sistema Interamericano, e seus resultados são avaliações importantes da realidade e, assim, instrumentos políticos dos movimentos sociais. Trata-se, para eles, de mudar o canal de diálogo interno da luta a partir das decisões internacionais, as quais podem inclusive influir nos processos judiciais internos. De outro lado está o que buscam as vítimas quando recorrem aos sistemas de proteção, sejam eles internos ou internacionais. Para as pessoas sobreviventes e que estão relacionadas com os casos de violência no campo, a necessidade de produção de justiça é latente. Durante as entrevistas foi possível constatar isso, tanto na conversa com o senhor Aleixo, que presenciou o despejo no qual o Sebastião Camargo Filho foi assassinado, quanto para a senhora Iracema, viúva do trabalhador Sétimo Garibaldi, que também faleceu em situação de despejo forçado. O senhor Aleixo expressou a sua opinião acerca da falta de julgamento dos acusados da morte do Sebastião: “Eu acho que eles devem pagar pelo que fizeram. Minha opinião é essa. Quando a gente comete um erro tem que pagar pelo que fez”. Já, dona Iracema, segundo afirmou Giovani, “(...)era o sonho dela: “eu quero um dia que tenha justiça”. E nóis falava pra ela: “enquanto nóis tive força e tive condição de fazer o trabalho, a gente vai luta junto. Podemo não ter sucesso, mas enquanto tive mecanismo legal de fazer nois vai faze”. E foi isso que a gente fez”. (Entrevista realizada no dia 8/10/2011 em Querência do Norte) Nas falas da dona Iracema e do seu Aleixo também foi possível identificar a relação da questão agrária com a violência no campo, e a sensação de que somente através da luta, aguentando essas situações de violência extrema, é que é possível conseguir esse direito, que é o acesso à terra. Segundo dona Iracema, que foi até a Costa Rica Na sede da Corte Interamericana prestar depoimento: “Na hora lá [na Corte] me deu bem essa idéia de falar assim. É, a gente ficou apavorado, não queria que acontecesse isso, mas se o povo não tivesse coragem de enfrentar o que que tivesse, ninguém tinha um pedaço de terra hoje, porque o governo não faz nada. Graças a Deus que ele [o Sétimo Garibaldi] teve coragem de enfrentar, de lutar ali. Não foi só o Sétimo que perdeu a vida” (Entrevista realizada no dia 8/10/2011 em Querência do Norte). 24 Por sua vez, o Seu Aleixo, ao falar das ações de despejo e das consequências, destacou: “A gente não tem pra onde correr, então tem que aguentar (...). A gente tem que lutar, porque se a gente não lutar não chega em lugar nenhum, porque sem luta não consegue nada” (Entrevista realizada no dia 8/10/2011 em Querência do Norte). Dessa forma, percebe-se que os atores que demandam no SIDH compreendem o papel de tal sistema tanto como um instrumento político das lutas sociais nas quais eles atuam, bem como um instrumento de auxílio frente às exclusões produzidas internamente no país, principalmente com relação à produção de justiça e de não respeito aos direitos humanos dessa parcela vulnerável da população rural por parte das instituições brasileiras. A influência: o contexto específico do noroeste do Paraná Os casos de violência no campo admitidos no SIDH cuja origem é o noroeste do Paraná não são um fato isolado. Trata-se de um contexto de violência de uma época específica e que gerou movimentações particulares. Tampouco é um fato isolado o recurso ao Sistema Interamericano de Direitos Humanos na região, que conta com pelo menos mais três casos já analisados pela CmIDH, o que foi averiguado durante a primeira parte deste artigo. Trata-se dos casos Diniz Bento da Silva, Sétimo Garibaldi e Arlei Escher , tendo os dois últimos sido motivo de condenação do Brasil pela Corte Interamericana. O caso Arlei Escher e outros, embora não configure um caso de violência no campo, está relacionado com o contexto no qual culminam os atos de violência e por isso foi incluído na presente etapa da análise, embora não tenha sido considerado na primeira parte. Assim, as perguntas que nortearão a próxima análise, serão: 1) Por que esses atores tanto litigam no SIDH? 2) Há algo específico na região? 3) A frequência de litigância está relacionada com alguma mudança sentida pelos atores que nele litigam? E 4) O SIDH é um mecanismo importante no combate à violência no campo para a região em questão? Dessa forma, cumpre destacar que o ápice da violência no campo no noroeste do Paraná diz respeito a um período específico de sua história e, por isso, gerou reações distintas no movimento, quando comparado a situações similares em outros estados, 25 como no Pará, onde a violência no campo atinge seus maiores números segundo dados da Comissão Pastoral da Terra. Reações essas que inclusive alcançaram o campo do direito e são de grande importância para análise aqui pretendida.Trata-se de meados da década de 90, majoritariamente durante o governo de Jaime Lerner, durante os anos 1995 e 2002. A repressão, segundo eles, nunca foi tão forte: ocorreram 16 assassinatos de trabalhadores rurais, 49 foram ameaçados de morte e 325 foram feridos em ações de despejo4. Segundo Giovani, essa situação de violência no noroeste do Paraná se gerou, então, por dois fatores: uma pressão e um avanço nos processos de reforma agrária, ocasionada por uma vistoria por parte do INCRA pra saber a quantidade de terras improdutivas na região noroeste, como destacado acima, e uma política de repressão ao MST na década de 1990 Segundo ele: “Aqui nós já temos duas condenações do Estado brasileiro em processos de violação aqui em Querência. O Garibaldi e o de grampos telefônicos, do Arlei Escher. E outro que é o caso do próprio Sebastião. Mas assim, isso acabou acontecendo por quê? Em função do quê? O porque no governo Lerner ficou muito claro. (…) Aí dentro desse período houve muita vistoria por parte do INCRA, muito latifúndio improdutivo. E era uma necessidade [a reforma agrária nessa região porque havia] muitos acampamentos. E então o MST foi fazendo as ocupações. O governo não deu conta de ir fazendo, então o MST foi forçando as desapropriações. Em função disso e outras questões, a repressão foi muito forte aqui, principalmente em Querência do Norte. Em 99 chegaram a montar uma operação aqui com 2000 policiais. Nós vivemos momentos aqui talvez piores do que em muitos lugares onde teve a ditadura militar. Aonde [ninguém] poderia andar na rua com boné, com camisetas ligadas ao movimento ou qualquer símbolo em relação [ao MST]. (...) Pra poder fazer essa repressão eles decretaram a prisão preventiva de todas as lideranças do movimento. Entre eles eu estava . Nós ficamos 76 dias foragidos no meio do mato pra poder não ser preso e ao mesmo tempo correndo o risco de ser assassinado no mato pela forma que a polícia estava agindo. Só em Querência despejaram 13 acampamentos e prenderam 45 lideranças, coordenadores internos. E pra fazer tudo isso que que eles fizeram? Foi onde eles montaram os grampos telefônicos na cooperativa, os grampos ilegais” (Giovani Braun, entrevista realizada em Querência do Norte em 08/10/2011). Violência essa que, para as lideranças do MST no Paraná, se configurou como uma situação inusitada no estado, o que, segundo eles, está intrinsecamente relacionado com a busca de justiça e com a criação de um aparato de direitos humanos do movimento, no qual se insere o Sistema Interamericano. “Acredito que a essa altura você já deve ter percebido que todos os casos teve um período específico [década de 90]. Que é justamente os oito anos do governo Lerner aqui no Paraná e do governo Fernando Henrique no governo federal. Não se associa diretamente ao governo, mas aqui no Paraná especificamente esse governo (..) não só deixou as milícias privadas agindo livremente como também promoveu, incitou, as polícias do estado a 26 cometerem atos de violência. O caso do Antonio Tavares foi morto por policiais, o caso do Diniz Bento, foi morto por policiais, o caso Sebastião Camargo Filho e o caso Eduardo Aghinoni são casos que têm indícios fortes que embora tenha sido realizada por uma milícia privada tenha ligação com a policia do estado (...) Você comentava que nós estamos com a metade dos casos que foram levados até a Corte [até o SIDH]. A razão, o que pesa, se você olhar pro norte e pro nordeste [do país é que] esse tipo de violência é mais comum lá. Mas se você excluir o norte, e olhar pros outros estados, e especialmente pra esse período da história do Paraná, você vai perceber que o Paraná despontou efetivamente na violência no campo. (...) E consequentemente a reação a se esperar da sociedade ou dos movimentos sociais aqui no Paraná diante de uma situação dessas é, acredito, muito mais incisiva do que lá no norte, porque lá no norte isso é uma situação que já vem de longa data e que não tem nenhum indício que vai acabar (...) Aqui no Paraná tem essa tendência de tolerar menos essa violência” (Claudio de Oliveira, entrevista realizada em Curitiba em 06/10/2011) [grifo nosso ]. Dessa forma, o contexto de repressão instalado no Paraná nessa época, devido às condições regionais, tanto territoriais como políticas, produziu uma necessidade jamais vista na região de se disputar também no âmbito jurídico a produção de justiça e amparo frente às graves violações de direitos humanos que ocorriam na região. Entretanto, outra característica se somou a essas, para então termos como resultado a necessidade do recurso a um sistema internacional de justiça: a ausência de amparo do sistema de justiça interno brasileiro. Tal situação, reconhecida pela CmIDH nos relatórios dos casos que a ela chegaram, pode ser expressa primeira e principalmente pela demora injustificada dos processos, como destacado pelo próprio órgão. O caso Garibaldi, analisado pela CmIDH, por exemplo, está há 13 anos com o inquérito policial arquivado e o Sebastião Camargo está em processo há 12 anos e ainda não foi concluído. Em segundo lugar, essa omissão do Estado ficou clara no relatório da CmIDH no caso Sebastião Camargo, quando tal órgão reconhece a conivência das autoridades locais com relação aos casos de violência, uma vez que não o conduzem com seriedade e imparcialidade dado o alto grau de relação entre elas e os mandantes do crime, o que, segundo os atores da região noroeste foi um fator decisivo para a litigância no sistema internacional. Exemplos também podem ser destacados das entrevistas realizadas in loco. Giovani, durante sua entrevista, mostrou diversos momentos nos quais a abstenção da justiça brasileira ou a ação contrária às garantias legais da mesma, muitas vezes devido às condições políticas da região, colocaram como única alternativa possível o âmbito 27 internacional. Entre essas situações se encontra a seguinte, relacionada ao caso dos grampos telefônicos ilegais (Arlei Escher e outros): “Então um caso claro foi os grampos telefônicos, no qual não se instaurou o inquérito [...] Outro caso assim de violação bem clara, e aí como é que você vai confiar na justiça local. Primeiro, quem pediu, quem solicitou a quebra de sigilo telefônico foi um tenente da polícia militar, que em tese não tem competência. É papel do delegado, da polícia civil. E a juíza deferiu. Foi a primeira ilegalidade. (...) Então assim, o fato de se recorrer à Corte Internacional é tudo isso. Então o que que eu consigo buscar aqui? Sendo que há uma parceria do Estado, do latifúndio e da justiça. Quer dizer, todos contra o MST. Então vc não tinha um mecanismo de confiança. E assim também foi o caso do Sétimo Garibaldi [no qual o inquérito foi arquivado] (Entrevista realizada com Giovani Braun, em Querência do Norte, em 08/10/2011)”. Assim, conclui-se que uma conjunção de fatores específicos regionais e temporais, relativos principalmente a um agravamento da situação dos direitos humanos na região, e o elo entre o judiciário e os interesses dos fazendeiros fez com que os atores da região noroeste do Paraná recorressem tão frequentemente ao Sistema Interamericano de Direitos Humanos. Tantos os advogados quanto os membros do movimento apresentaram a perspectiva de quem lida com a justiça interna e que, ao mesmo tempo, também está relacionado com o SIDH, podendo, portanto, expressar a diferença percebida entre os casos que vão para Washington (CmIDH) ou Costa Rica (Corte Interamericana), e aqueles que somente possuem tramitação interna. Para eles, há uma diferença latente, a qual estaria fortemente relacionada com as vaidades dos tribunais e comarcas internos que não querem ser alvo de críticas nacionais devido a âmbitos internacionais. Para os atores litigantes no SIDH no noroeste do Paraná talvez essa influência seja ainda mais forte, uma vez que se trata de uma região que foi alvo de quatro pareceres da CmIDH, dos quais dois acabaram resultando em sentenças da Corte Interamericana. Isto torna o risco de outras sentenças ainda mais temido pelos atores judiciais da região. A fala seguinte de Giovani expressa a importância do SIDH simplesmente pelo fato de que, para o andamento do processo internacional do caso Sebastião Camargo, a Comissão Interamericana pediu a cópia dos autos do processo interno, o que em si já teria causado desconforto na comarca interna: “[depois de nomeado outro procurador] também começou a ter um pouco de desdobramento porque foi percebido que o negócio não estava avançando na velocidade que precisava e foi aí que foi provocado o processo na Corte [no SIDH]. Só pelo fato deles terem pedido cópia do processo começou a ter uma movimentação também no fórum, começou a ter uma preocupação 28 por parte do juiz e do cartório. Porque era muito isso que tinha, né? Aqui no interior, se tinha um processo que prejudicava fazendeiro ia pra gaveta, desaparecia dentro do fórum, ninguém conseguia a cópia. Então assim, a partir disso começou a ter uma movimentação.” (Entrevista realizada com Giovani Braun, em Querência do Norte, em 08/10/2011)” [grifo nosso]. Outro exemplo no qual se pode perceber a influência do SIDH nos processos internos ocorreu em outro caso, o Sétimo Garibaldi, arquivado na fase do inquérito policial. No dia da audiência na Corte Interamericana, em 2009, portanto mais de 10 anos depois do assassinato, o Estado brasileiro anunciou a reabertura do caso: “O Garibaldi foi diferente. O dele foi arquivado o inquérito. E foi impressionante pra nóis também. Primeiro, porque quando aconteceu o fato do assassinato dele, o Brasil ainda não tinha assinado o tratado internacional. Alguns dias depois que foi assinado. Eu fui arrolado como testemunha no processo. Como eu entrei no processo [internacional]? A gente teve um trabalho, um acompanhamento que a gente fez em conjunto com a Terra de Direitos a gente teve um acompanhamento com as vítimas de violência , com as viúvas e seus familiares. Então quer dizer, como tá a situação delas, se elas tão acampadas ou não e a gente tirou dentro do movimento também de fazer uma pauta e pressionar o INCRA de fazer o acampamento dessas viúvas, até pelo sentido delas ficarem desamparadas. E dentro disso eu fui a pessoa que acompanhei a família. Porque pelo Sétimo ter sido assassinado eles ficaram isolados na região, com medo, com trauma, e foi bem difícil até a gente conseguir conquistar a confiança da família e fazer o trabalho. E a gente tinha que ir buscar a justiça, essa era a principal questão que a gente tava discutindo. E era o sonho dela [da viúva do Sétimo, dona Iracema Garibaldi]: “Eu quero um dia que tenha justiça”. E nós falo, enquanto nóis tive força e tive condições de fazer o trabalho a gente vai lutar junto. Podemo não ter sucesso, mas enquanto tive mecanismo legal de fazer nois vamo tenta buscar. E foi isso que a gente fez. Então com base nisso eu fui e dei meu depoimento sobre essa dificuldade e colocando mais alguns elementos regionais de envolvimento de pessoas. E antes mesmo de já acontecer a sentença o próprio Estado já chamou pra reabrir o caso. Pra dizer, nois vamos sair na frente pra dize que a gente tá fazendo alguma coisa. Foi uma estratégia do Estado, mas reabriu rapidamente (Entrevista realizada com Giovani Braun, em Querência do Norte)” [grifo nosso]. Além disso, no caso Diniz Bento também foi percebida uma mudança na condução do processo interno. Nos autos do processo penal interno do caso Sebastião, nas folhas 115 e 116, é possível constatar a opinião dos advogados de acusação Sebastião: “após a decisão da OEA, acima transcrita, retomou as investigações sobre o crime, que agora se encontra sob apreciação do Superior Tribunal de Justiça, segundo determinação do Supremo Tribunal Federal.” Entretanto, essa visão de que os processos no SIDH influenciariam o andamento dos processos internos foi contrastada pela opinião do desembargador da ação penal do caso Sebastião, Jonny de Jesus Campos Marques. Ele afirmou que, embora fosse do seu 29 conhecimento que o caso estivesse no SIDH, não o tratou com diferença, uma vez que deve prezar pela imparcialidade. “A primeira pergunta que você me falou é se eu tomei conhecimento de que esse fato ou de algum outro fato que tenha chegado em alguma corte internacional. Nesse caso específico lá de Marilena eu tomei conhecimento, mas por notícias dos jornais simplesmente. A decisão em si ela não chegou às minhas mãos. E pelo que eu li através da imprensa a principal razão que levou a corte internacional a censurar a conduta da justiça brasileira foi a morosidade. A morosidade nesse caso especificamente ocorreu devido a demora na investigação policial (...). Eu não me recordo de que tivesse nos autos nenhuma referência a esse julgamento [internacional]. Eu soube que o poder judiciário do estado do Paraná foi condenado através dessa decisão e que uma das punições impostas foi a publicação dessa decisão no site do tribunal, embora eu não tenha lido o seu inteiro teor. E eu não vejo a necessidade, sinceramente, de ter lido até para não influenciar. Eu acho que esse tipo de coisa não pode servir de influência para a decisão jurídica. (...) Eu tratei esse processo como tratei todos os demais. (...) (Entrevista realizada com o desembargador Campos Marques, em Curitiba, em 07/10/2012)[grifo nosso]”. Assim, as influências no andamento efetivo do processo interno citadas acima, parecem tratar-se predominantemente de influências informais, efetivamente percebidas pelos atores litigantes, mas que não estão claramente colocadas por todos os atores do processo. Tal constatação não exclui a importância dessa influência e do papel do SIDH para as lutas sociais internas, na busca de uma maior consolidação da democracia, nesse caso na zona rural, e de uma maior efetivação do Estado de Direito na garantia da legalidade. Enfraquecer o SIDH é atingir concretamente essas lutas, que, assim como as relacionadas à terra, poderiam ser concernentes à saúde, como no caso Ximenes Lopez, ou da real justiça de transição no país, como no Caso Araguaia, ou ainda pelo respeito aos direitos humanos acima do desenvolvimento a qualquer custo, exemplificados por Belo Monte. 2.2 A reforma Cerca de dois meses após o imbróglio de Belo Monte, a 41ª Assembleia Geral da OEA, de 2011, ocorrida em El Salvador, foi palco de mais uma ofensiva da diplomacia brasileira contra o SIDH. Nos bastidores da Assembleia, circulavam propostas que iam da modificação do regulamento da CmIDH, retirando-lhe a possibilidade de adotar “medidas cautelares”, até sua simples extinção. Mas a Assembleia de El Salvador decidiu “continuar o amplo processo de reflexão sobre o Sistema Interamericano de Promoção e Proteção dos Direitos Humanos”, em especial sobre os seguintes assuntos: 30 “i. Principais desafios enfrentados pelo Sistema Interamericano para promover e proteger os direitos humanos no Hemisfério; ii. Possíveis ações para fortalecê-lo e aperfeiçoá-lo; e iii. Pertinência da convocação de uma Conferência Interamericana sobre Direitos Humanos”[grifo nosso]10. A alusão a uma eventual conferência intergovernamental serviu para aventar a possibilidade de modificação do texto da Convenção. Em 29 de junho de 2011, o Conselho Permanente da OEA decidiu criar um Grupo de trabalho especial de reflexão sobre o funcionamento da CmIDH para o fortalecimento do SIDH [grifo nosso]. Apesar do nome, a sociedade civil, o mundo acadêmico e a própria CmIDH suspeitavam de que o seu verdadeiro escopo fosse o enfraquecimento do sistema. De fato, ao definir a agenda de trabalho, “somente foram incluídos os temas que evidentemente representam um incômodo para os Estados e não outros que são prioritários para o fortalecimento do SIDH, como o cumprimento e a implementação das decisões, a eleição de autoridades e integrantes tanto da CmIH como da CrIDH, ou o acesso das vítimas ao sistema, entre outros. Finalmente, a agenda incluiu os seguintes temas: a designação do Secretário Executivo da CmIDH, os desafios e objetivos de médio e largo prazo, as medidas cautelares, os assuntos de procedimento na tramitação de casos e petições individuais, as soluções amistosas, os critérios para construção do Capítulo IV do relatório anual da CmIDH, a promoção dos direitos humanos e o fortalecimento financeiro do SIDH”[grifo nosso] (AMATO,2012). Cabe esclarecer que o Capítulo IV acima referido refere-se à parte do relatório anual dedicada à situação dos direitos humanos nos países membros que foram objeto de especial atenção da CmIDH. “Nenhum Estado gosta de aparecer neste capítulo, destinado a chamar atenção sobre aqueles países em que a CmDH registra maior número de violações de direitos humanos ou aqueles em que as violações possuem uma magnitude maior”167. O Capítulo IV do Relatório de 2011, por exemplo, consagrou-se à Colômbia, Cuba, Honduras e Venezuela168. Não por acaso, Colômbia e Venezuela dominaram o debate sobre as mudanças na metodologia e nos critérios de construção deste capítulo. Em outubro de 2011, entidades da sociedade civil apresentaram um documento fundamental para a compreensão dos desafios do processo de reforma, não apenas reivindicando a participação social ampla e inclusiva, mas propondo igualmente uma correção de rumo na pauta do grupo de trabalho: “es fundamental que los Estados desarrollen mecanismos adecuados para el cabal cumplimiento de las reparaciones dispuestas por la Comisión y la 10 AG/RES. 2675 (XLI-O/11) Fortalecimento do SIDH em cumprimento dos mandatos emanados das Cúpulas das Américas, 07/06/2011. 31 CrIDH en el marco del trámite de casos concretos, así como para que ambos órganos del Sistema mejoren sus actuales herramientas de supervisión y seguimiento de sus decisiones. Sumar el análisis de estas cuestiones en el marco de la agenda del Grupo de Trabajo es un objetivo impostergable para poner en acción las intenciones de fortalecimiento vertidas hasta hoy” 11. Mais de seis meses e vinte reuniões depois, notou-se que o grupo trabalho deu lugar a um grande “exercício de catarse” por parte dos Estados, no qual a “reação desmedida do Brasil” sobre Belo Monte “abriu a porta para que outros Estados apresentassem propostas que debilitam gravemente o sistema”; foi o caso do Equador, que atacou fortemente a Relatoria para a Liberdade de Expressão.12. Assim, para obter apoio de outros países para a reforma da CmIDH, entre eles dos Estados Unidos, o Brasil terminou por conferir legitimidade a propostas semelhantes às suas, ainda que por motivos distintos, apresentadas pelos governos Colômbia, do Equador e da Venezuela (SOTERO, 2012). O descontentamento deste grupo de países com o trabalho da CmIDH está relacionado a diversos episódios. Um deles é a decisão da CrIDH que ordenou à Venezuela, e particularmente ao seu Conselho Nacional Eleitoral, que suspendesse qualquer impedimento ao exercício dos direitos políticos de López Mendoza, adversário do Presidente Hugo Chavez. Outro foi a outorga de medidas cautelares, pela CmIDH, em favor da liberdade de expressão dos diretores do jornal equatoriano El Universo, réus num processo por injúria e calúnia que contra eles moveu o Presidente do Equador, Rafael Correa. Para Correa, “a CmIDH está totalmente influenciada pelos países hegemônicos, pelo oenegeísmo e pelos interesses do grande capital”.13 Em junho de 2012, a 42ª Assembleia Geral da OEA abriu-se sob forte pressão, em Cochabamba, Bolívia. Alguns Estados não hesitaram em acenar com a possibilidade de extinção da organização: “Anfitrião do encontro, o presidente boliviano Evo Morales disse na abertura da Assembleia que este é o melhor momento para reformar a OEA. Criticando as origens da Organização como instrumento dos Estados Unidos desde a sua fundação, Morales considera que existem apenas dois caminhos para a instituição: ‘ou ela morre a serviço do ‘Império', ou ela renasce para servir aos povos do continente americano’. Outros países também se alinham 11 Aportes para una agenda integral para el fortalecimiento del Sistema Interamericano de Derechos Humanos, p.6. Disponível em <http://www.conectas.org/arquivos/Aportes_FortalecimentoSIDH_docconjunto.pdf>. 12 “El propósito de cada una de las propuestas de Ecuador estaba dirigido a debilitar la Relatoría y a quitarle las funciones que tiene desde su creación hace más de diez años”, (AMATO, 2012) 13 AFP, “Violento ataque de Correa a la prensa en la OEA”, El Comercio, 04/06/2012. Disponível em <http://www.elcomercio.com>. 32 aos pedidos para uma revisão profunda da entidade. ‘Ou a OEA promove uma reforma ou ela está condenada a desaparecer’, afirmou o ministro das Relações Exterior do Equador, Ricardo Patiño. O chanceler brasileiro Antonio Patriota também manifestou a defesa por ‘reformas que garantam a legitimidade do trabalho da CmIDH e da CrIDH. (...) O presidente do Equador, Rafael Correa, convidado por Evo Morales para participar da Assembleia nesta segunda-feira, disse que irá ao evento para denunciar ‘a burocracia internacional que se considera acima dos interesses dos governos’” [grifo nosso]14. Ao menos por enquanto, as propostas do Grupo de Trabalho, embora aprovadas pelo Conselho Permanente da OEA181, não foram aprovadas pela Assembleia. Estimase que sejam discutidas numa assembleia extraordinária da OEA, prevista para o primeiro trimestre de 2013. Sem a pretensão de esgotar a profunda análise que tais propostas merecem, é fundamental que façamos ao menos alguns comentários a respeito. Em primeiro lugar, embora não figure nos documentos do grupo, é amiúde referida em bastidores a extinção da CmIDH, por vezes apresentada como um avanço em matéria de acesso à jurisdição regional. Evoca-se para tanto o exemplo do sistema europeu, em que uma comissão também funcionava como filtro das demandas junto à Corte Europeia de Direitos Humanos (situada em Estrasburgo, França). Por meio de um protocolo adicional à Convenção Europeia de Direitos Humanos, de 1998, a comissão foi extinta e os particulares passaram a ter acesso direto à jurisdição15. A comparação inspira cuidados, eis que, no caso das Américas, se a CmIDH fosse extinta, os países que não aceitam a jurisdição obrigatória da CrIDH, entre eles os Estados Unidos, ficariam desprovidos de controle. Por outro lado, permitir o acesso irrestrito à jurisdição interamericana sem dotá-la de meios materiais à altura de uma vertiginosa multiplicação de demandas, resultaria em seu descrédito. Ou seja, extinguir a CmIDH poderia significar, ainda que indiretamente, o colapso da CrIDH. Do mesmo modo, não pode haver debate sério sobre o fortalecimento do SIDH quando não se prioriza a questão orçamentária: atualmente, apenas cerca de 4% do orçamento da OEA é destinado à CmIDH183 e 2% à CrIDH184. No contexto da grave crise financeira que sufoca a OEA, e diante da rigidez de seu orçamento, a 14 “Comissão de Direitos Humanos gera polêmica em Assembleia da OEA”, RFI, 04/06/2012, disponível em <http://www.portugues.rfi.fr>. 15 Para comparação entre os sistemas europeu e interamericano, ver Kathia Martin-Chenut e Elisabeth Lambert Abdelgawad (orgs.), Réparer les violations graves et massives des droits de l’homme: la Cour intéramericaine, pionnière et modèle? Coleção UMR de Direito Comparado, vol.20. Paris: Société de législation comparée, 2010; . 33 sustentabilidade das capacidades adquiridas converteu-se no principal desafio do SIDH (PULIDO,2012). Quanto às repetidas acusações de que o SIDH não é independente, cumpre resgatar a responsabilidade dos Estados na apresentação de candidatos idôneos para os cargos da CmIDH e da CrIDH. Devem ser pessoas “verdadeiramente especialistas em direitos humanos, que reconheçam e entendam o sistema, e que ademais tenham traquejo político em relação aos temas sensíveis”, pois as decisões do SIDH nada mais são do que “o produto do que decidem aqueles que compõem estes órgãos” (AMATO, 2012) indicados pelos Estados e eleitos pela Assembleia Geral da OEA. Outra questão crucial da reforma é o debate em torno dos direitos sociais e coletivos. Entre as propostas do Grupo de Trabalho em relação às “medidas cautelares” da CmIDH, encontra-se a de “melhorar os mecanismos para determinar e individualizar os beneficiários” (CP/DOC.4675/12). Uma reforma neste sentido poderia coibir medidas que se destinam a proteção de coletivos, como é o caso de Belo Monte: “Imponer a la CmIDH que otorgue medidas cautelares individuales en contextos que implican un conjunto de personas, le impone tener que emitir un número sucesivo de medidas con la grave potencialidad de que se concreten violaciones de derechos humanos que los enfrenten a casos ante el SIDH. Esta perspectiva es contraria a la naturaleza de protección preventiva del mecanismo y al sentido y fin del sistema de protección” (MONZÓN, 2012) Por fim, uma reforma do SIDH que não fosse pautada pelos melindres dos Estados, e sim pela preocupação com a proteção dos direitos humanos, abordaria como tema prioritário o déficit de cumprimento pelos Estados das decisões da CmIDH e da CrIDH. Um estudo quantitativo recente indica que “o descumprimento das medidas exigidas pelo SIDH parece notavelmente difundido. A metade das medidas recomendadas, acordadas ou ordenadas nas decisões pesquisadas se encontra descumpridas e apenas 36% delas foram cumpridas integralmente. Além disso, salvo casos excepcionais, o cumprimento total ocorre depois de um longo período de tempo. Em média, os processos interamericanos demandam mais de sete anos desde que uma petição ingressa no Sistema até a decisão de mérito. A isso se acrescenta o prazo médio levado pelos Estados para cumprir total ou parcialmente as medidas exigidas. Quando cumprem as medidas exigidas, fazem-no em aproximadamente dois anos e meio para os relatórios finais [da CmIDH] e em um pouco mais de um ano e meio para as sentenças da CrIDH” (BASCH, 2010). 34 Para garantir a efetividade do SIDH, é urgente que os Estados reformem não apenas a OEA, mas as suas ordens internas, dotando-as de mecanismos de implementação das decisões da CmIDH e da CrIDH190: “quanto mais tais decisões passarem a fazer parte da engrenagem institucional do sistema doméstico, mais eficaz será o sistema interamericano”. Uma proposta de grande inteligência, centrada na cooperação entre jurisdições de distintas esferas, seria a da criação do reenvio prejudicial interamericano. Infelizmente, ela não se encontra em pauta. Conclusão Apesar de seus limites, o SIDH tem cumprido a sua principal função: mais do que chamar a atenção para violações de direitos humanos, o sistema gera tensões em torno delas. O caráter transversal destas tensões eleva a capacidade de interlocução das vítimas e de seus representantes junto ao Estado. Assim, o SIDH contribui para criar ocasiões, fortalecer protagonismos e desequilibrar equações de poder internas, inclusive entre atores estatais, a favor das vítimas. Por isto, o grande incômodo causado pelo SIDH aos Estados é, em nossa opinião, a necessidade de tratar de determinados assuntos fora do conforto doméstico e, pior ainda, ser obrigado a abordá-los sob a perspectiva do direito. Logo, parece-nos que o Brasil, “Estado heterogêneo” por excelência, comete um erro substancial ao atacar publicamente e boicotar o SIDH, mas sobretudo ao propor (ou ser conivente com) mudanças que restrinjam as competências de seus órgãos. Lucia Nader e Camila Asano observam que o pragmatismo político não pode negligenciar a prevalência dos direitos humanos na política externa: “No caso do Brasil, isso não é meramente uma escolha, mas sim uma obrigação constitucional - decorrente do artigo 4º, II [Art. 4º A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios: (...) II prevalência dos direitos humanos] - bem como responsabilidade adquirida pelo país ao ser parte de diversos tratados internacionais de direitos humanos” [grifo nosso]193. Finalmente, as recentes deposições sumárias dos presidentes de Honduras e do Paraguai comprovam que medidas como as “cautelares” da CmIDH são mais necessárias do que nunca em nosso continente. A Presidenta Dilma Roussef é testemunha histórica do que significa a falta de um órgão internacional, especializado 35 em direitos humanos, capaz de reagir prontamente a graves violações. Na época da ditadura civil-militar brasileira, a debilidade do SIDH em formação, somada à parcialidade de uma OEA refém da guerra fria, ocasionaram uma omissão histórica da comunidade internacional diante da barbárie que grassava em nosso país. Não se trata de esperar uma ação unilateral, fundada numa seletiva “responsabilidade de proteger”, mas de contar com um sistema regional que poderia inibir ímpetos golpistas e evitar que eles restassem impunes. A complexidade dos golpes contemporâneos, forjados em parlamentos avessos a mudanças estruturais, exige não apenas um sistema internacional de controle, mas que este seja prestigiado, tecnicamente qualificado e altamente institucionalizado. Por tudo isto, o Brasil, apesar das pontuais divergências, naturais no seio de qualquer mecanismo de controle, deveria ser o maior defensor do SIDH. Bibliografia AFP. Violento ataque de Correa a la prensa en la OEA. El Comercio, 04/06/2012. Disponível em <http://www.elcomercio.com>. AMATO, Victoria. 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