Rudolf Smend e os direitos fundamentais como integração:
esboço para uma crítica da fundação axiológica dos direitos.
Paulo Sávio Peixoto Maia*
1. Introdução: a atualidade de Rudolf Smend.
Nos últimos tempos a República de Weimar passou a receber notável atenção
acadêmica. Um interesse que em muito se deve à qualidade do debate instaurado na
Alemanha a partir de 1919. Um debate que tinha a seguinte questão de fundo: o que é
uma Constituição? Como ela pode acoplar direito e política sem que estes domínios não
percam as suas respectivas identidades1? As soluções para tanto, fornecidas pelo
“laboratório Weimar”, foram inúmeras. A busca pela melhor descrição de uma ordem
constitucional baseada na soberania popular em um tempo de democracia de massas deu
luz a uma fábrica de idéias das mais ricas que a história constitucional dá notícia 2. A
esse debate intenso se costuma chamar Methodenstreit, “luta pelo método”3.
Os constitucionalistas, de todos os lugares, têm valorado esse debate, que tem
se mostrado fértil na tarefa de problematizar o tempo presente. Os debates agônicos dos
*
Mestre e Bacharel em Direito pela Universidade de Brasília (UnB). Professor na Universidade de
Fortaleza (UNIFOR). Advogado.
1
LUHMANN, Niklas. “La Costituzione come acquisizione evolutiva”. In: ZAGREBELSKY, Gustavo.
PORTINARO, Pier Paolo. LUTHER, Jörg (orgs.). Il Futuro della Constituzione. Torino: Einaudi, 1996,
pp. 83-128.
2
FROSINI, Tommaso Edoardo. “Costituzione e sovranità nella dottrina della Germania di Weimar”. In:
Il Politico: Rivista Italiana di Scienze Politiche. Ano LXI, nº 1. Pavia: Università degli Studi di Pavia,
janeiro-março de 1996, pp. 96-97. Para o leitor brasileiro, a introdução mais acessível e de excepcional
qualidade é: BERCOVICI, Gilberto. Constituição e estado de exceção permanente: atualidade de
Weimar. Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2004, pp. 25-50 (nas quais o autor analisa como os direitos
fundamentais, mormente aqueles que disciplinavam a ordem econômico-social, foram percebidos em
Weimar, por seus juristas coevos).
3
STOLLEIS, Michael. A History of Public Law in Germany 1914-1945. Trad. Thomas Dunlap. Oxford:
Oxford University Press, 2004, pp. 139-145.
2
publicistas de Weimar foram objeto de várias obras de alento, como a de David
Dyzenhaus4, ou de coletâneas como a de Carlos-Miguel Herrera5 e a de Jean-François
Kérvegan6. Em comum a todas elas: nenhum capítulo sequer é devotado a Rudolf
Smend. Isso seria um indício de que o autor a ser estudado neste ensaio não mais possui
atualidade ou utilidade? Decididamente, não. O fato de pouquíssimos livros e artigos
serem voltados a Smend talvez apenas signifique que aquilo que não foi esquecido não
precisa ser lembrado: Smend não foi “resgatado” porque não deixou de ser utilizado.
Com efeito, as contribuições teoréticas de Smend balizam tanto a doutrina
quanto a jurisprudência alemãs7. Um exemplo é o conceito de “lealdade federal”
(bundesfreundliches Verhalten), cunhado por Smend em escrito de 1916 e que é
utilizado como razão de decidir em questões federativas enfrentadas pelo Tribunal
Constitucional Alemão (Bundesverfassungsgericht – BVerfG)8. Um outro exemplo,
decididamente o mais importante, é fornecido pela noção de “ordem concreta de
valores”: em nenhum outro lugar o legado de Smend foi tão influente.
O BVerfG tem uma autocompreensão de que é sua missão institucional
concretizar uma ordem concreta de valores; ordem essa que se encontra subjacente ao
arcabouço constitucional do Estado ao mesmo tempo que lhe confere legitimação. Essa
crença irracional torna possível ao Tribunal se desvincular da lei e, assim, utilizar-se de
qualquer argumento para a decisão de um caso concreto9. Tal postura teve início tão
4
DYZENHAUS, David. Legality and Legitimacy: Carl Schmitt, Hans Kelsen and Hermann Heller in
Weimar. Oxford: Oxford University Press, 1999.
5
HERRERA, Carlos-Miguel. Le droit, le politique: autour de Max Weber, Hans Kelsen, Carl Schmitt.
Paris: L’Harmattan, 1995.
6
KÉRVEGAN, Jean-François (org.). Crise et pensée de la crise en droit: Weimar, sa république et ses
juristes. Paris: ENS Éditions, 2002.
7
Em sua polêmica com Jürgen Habermas acerca da (des)necessidade de uma Constituição para a Europa
(ante a realidade da integração que já acontece no âmbito do mercado), Dieter Grimm se vale
precisamente do conceito de integração, embora com significado um pouco diverso daquele utilizado por
Smend: GRIMM, Dieter. “Integration by Constitution”. In: International Journal of Constitutional Law.
Volume 3, Números 2 & 3. Oxford, New York: Oxford Jounals; New York University School of Law,
2005, pp. 193-208.
8
Disse o tribunal por ocasião do acórdão BVerfGE 12, 205: “No Estado federal alemão, a totalidade das
relações constitucionais entre a Federação e seus Estados, assim como as relações entre os Estados,
devem ser regidas pelo princípio constitucional – não escrito – do dever recíproco, por parte da Federação
e dos Estados, de um comportamento leal (ver Smend, Ungeschriebenes Verfassungsrecht im
monarchischen Bundesstaat, Festschrift für Otto Mayer, 1916, pp. 247 e ss.). O Tribunal Constitucional
tem desenvolvido sobre esse ponto uma série de deveres legais concretos”. Cf. SCHWABE, Jürgen (org.).
Cincuenta años de jurisprudencia del tribunal constitucional federal alemán. Trad. Marcela Gil. Bogotá:
Ediciones Jurídicas Gustavo Ibañez; Sankt Augustin bei Bonn: Konrad Adenauer Stiftung, 2003, p. 347.
Cf., também, sobre a “lealdade federal” as observações de: KOMMERS, Donald P. The Constitutional
Jurisprudence of the Federal Republic of Germany. 2ª ed. Durham: Duke University Press, 1997, pp.
69-75.
9
HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Vol. I. Trad. Flávio Beno
Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997, pp. 315 e 321.
3
logo o BVerfG foi instalado, em 195110. Em um primeiro momento, o BVerfG chegava
ao ponto de falar que haveria um direito suprapositivo, consubstanciado em uma ordem
concreta de valores, a ser identificada pelo Tribunal, que tornaria possível jogar na vala
da inconstitucionalidade até mesmo artigos da Lei Fundamental (Grundgesetz) de
194911.
Em um segundo momento, inaugurado pela sentença-Lüth (1958), o Tribunal
começa a adotar uma posição menos megalomaníaca, mas não menos metafísica: a
ordem concreta de valores é personificada nos direitos fundamentais12. Robert Alexy
consiste, concomitantemente, no grande entusiasta, expositor e fundamentador dessa
posição13. Segundo ele, a importância da sentença-Lüth reside no fato de que ela “une
três idéias que enformaram (sic) fundamentalmente o Direito Constitucional Alemão”14:
A primeira é que a garantia jurídico-constitucional de direitos
individuais não se esgota em uma garantia de direitos de defesa do
cidadão clássicos (sic) contra o Estado. Os direitos fundamentais
personificam, como diz o tribunal constitucional federal, “também um
ordenamento de valores objetivos”. (...). A segunda idéia, estritamente
unida com a primeira, é que os valores jurídico-fundamentais ou
princípios valem não somente para a relação entre o Estado e o
cidadão, mas muito além disso “para todos os âmbitos do direito”.
(...). A terceira idéia resulta da estrutura dos valores e dos princípios.
Valores como princípios são propensos a colidir. Uma colisão de
princípios somente por ponderação pode ser resolvida. A mensagem
mais importante para a vida cotidiana jurídica da decisão-Lüth diz, por
isso: “torna-se necessária, por conseguinte, uma ponderação de
bens”15.
10
Para uma descrição da institucionalização do BVerfG, Cf. MENDES, Gilmar Ferreira. Jurisdição
constitucional: o controle abstrato de normas no Brasil e na Alemanha. 4ª ed. São Paulo: Saraiva, 2004,
pp. 3-6.
11
BACHOF, Otto. Normas constitucionais inconstitucionais? (1951) Trad. José Manuel Cardoso da
Costa. Coimbra: Ed. Almedina, 2008, pp. 18-35, principalmente.
12
Uma profunda desconstrução dessa postura do BVerfG e do Supremo Tribunal Federal, foi feita por
Juliano Zaiden Benvindo, Professor Adjunto da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília por
ocasião de sua tese de doutorado (que fora orientada por Bernhard Schlink na Humbolt Universität zu
Berlin, Alemanha, e aprovada com a menção summa cum laude). Tese recém-publicada no idioma de
Shakespeare: BENVINDO, Juliano Zaiden. Towards a concept of limited rationality in constitutional
adjudication: a critical response to balancing in German and Brazilian constitutional cultures.
Heildelberg: Springer Verlag, 2009.
13
Para uma crítica do posicionamento teorético de Alexy, adotado pelo Supremo Tribunal Federal à
condição de seu “marco teórico oficial”, Cf. BARBOSA, Leonardo A. de Andrade. “Notas sobre colisão
de direitos fundamentais e argumentação jurídica: um diálogo entre Robert Alexy e Klaus Günther”. In:
Novos Estudos Jurídicos. Vol. 13, Nº 2. Itajaí: Univali, julho-dezembro de 2008, pp. 23-37.
14
ALEXY, Robert. “Direitos fundamentais, ponderação e racionalidade”. Trad. Luís Afonso Heck.
Revista de Direito Privado. Ano 6, vol. 24. São Paulo: Ed. RT, outubro-dezembro de 2005, p. 336.
15
ALEXY, Robert. “Direitos fundamentais, ponderação e racionalidade”. Trad. Luís Afonso Heck.
Revista de Direito Privado, pp. 336-337.
4
O nexo interno entre a doutrina de Rudolf Smend e o método decisório do
BVerfG, que por meio de uma ponderação “revela” a ordem concreta de valores, é
traçado por ninguém menos que o próprio Robert Alexy. A posição de proeminência
dos tribunais constitucionais, aduz Alexy, é resultado da conjugação de uma força de
validade formal com uma densidade de normatização material16. Do ponto de vista
formal (isto é, da força cogente de suas decisões) a fundamentação dos tribunais
constitucionais se deve a Hans Kelsen17. De um ponto de vista material, todavia, foi
Smend quem deu a melhor contribuição. Foi com a sentença-Lüth que o BVerfG
conseguiu unir forma e matéria: “Com isso, o postulado de Kelsen da força de validade
formal foi, com a intepretação de Smend do catálogo de direitos fundamentais como
expressão de um ‘sistema de valores ou de bens, um sistema de cultura’, unido”18. Para
Alexy, são estes os pressupostos da supremacia dos tribunais constitucionais pelo
mundo; entre eles o nosso Supremo Tribunal Federal, que há algum tempo realiza a
“ponderação”, principalmente quando é o caso de desrespeitar direitos fundamentais
(como mostra o exemplo da Ação Declaratória de Constitucionalidade nº 9)19.
Tudo isso faz revelar a importância da teoria da integração de Smend para a
conformação do conceito de direitos fundamentais. Neste trabalho, problematizaremos
esse senso comum do direito constitucional contemporâneo. Para tanto, propomos um
roteiro. Primeiro, teceremos algumas palavras sobre o pano de fundo teológico e
conservador existente nos escritos de Smend. Segundo, descreveremos o conceito
central do pensamento de Smend, a “integração”. Terceiro, situaremos a “integração”
no contexto histórico da “desintegrada” República de Weimar. Quarto, abordaremos o
conceito de Constituição de Smend, e sua busca por uma “matéria constitucional”,
16
ALEXY, Robert. “Direito constitucional e direito ordinário. Jurisdição constitucional e jurisdição
especializada”. Trad. Luís Afonso Heck. Revista dos Tribunais. Ano 91, volume 799. São Paulo: Ed. RT,
maio de 2002, p. 33.
17
Alexy cita, como contribuição decisiva de Kelsen, para o tema, sua comunicação apresentada por
ocasião do encontro de 1928 da Vereinigung der Duetschen Staatsrechtlehrer (Associação dos
Professores Alemães de Direito Público). Como tal exposição de Kelsen foi publicada um pouco antes em
Francês – fruto de palestra proferida no Institut International de Droit Public, no mesmo ano de 1928, em
sessão presidida por Raymond Carré de Malberg – ela fez fortuna pela América Latina. Cf. KELSEN,
Hans. “La garantie jurisdictionelle de la Constitution (La justice constitutionelle)”. In: Revue de Droit
Public et de la Science Politique en France et a l’Étranger. Tomo 35, Ano 35. Paris: E. Brière, 1928, pp.
197-257. Há tradução para o português: KELSEN, Hans. “A jurisdição constitucional” (1928). In:
Jurisdição Constitucional. São Paulo: Martins Fontes, 2003, pp. 121-186.
18
ALEXY, Robert. Direito constitucional e direito ordinário. Jurisdição constitucional e jurisdição
especializada. Trad. Luís Afonso Heck. Revista dos Tribunais, pp. 34-35.
19
Trata-se de uma repaginação da raison d’État medieval: em um juízo (irracional) de ponderação, o
Código de Defesa do Consumidor foi derrogado judicialmente por meio de um terrorismo argumentativo
que previa o colapso do país em caso de decisão contrária àquela postulada pela Advocacia-Geral da
União.
5
concebendo-o como uma resposta ao seu contexto histórico. Quinto, veremos o porquê
de Smend acreditar que os direitos fundamentais são aptos a doar “materialidade”: isso
é percebido quando analisamos a polêmica palestra de Smend de 1933, na qual critica
Carl Schmitt abertamente. É aí que encontraremos um ponto em comum que muito diz
sobre a teoria dos direitos fundamentais.
2. Projeções biográficas na teoria: entre autoritarismo e iconoclastia.
Nascido em uma família composta por vários teólogos e juristas, a tensão entre
“igreja” e “Estado” sempre se fez presente na vida de Smend. Conquanto tenha
conseguido importantes cargos de professor de Direito Público (Staatsrecht) em
universidades como Tübingen (1911), Bonn (1915), Berlin (1922) e Göttingen (1935),
Smend também ocupou, entre 1945-1955, assento no Conselho da Igreja Protestante na
Alemanha (Rat der Evangelischen Kirche in Deutschland), que é o órgão de direção da
Igreja Protestante20. Smend exerceu, também, atividade político-partidária, uma vez que
pertenceu, até 1930, ao DNVP, sigla de Deutschsnationale Volkspartei21: um partido de
extrema-direita que sempre assumiu uma postura anti-República de Weimar, desde a
constituinte de 1919 até o golpe nazista de 193322.
Quando se leva em consideração essas esquemáticas notas acerca das opções
políticas da vida de um literato, não é de se assustar caso se encontre, em sua produção
bibliográfica, uma ou outra declaração favorável ao fascismo:
Uma das grandes virtudes do fascismo (independentemente da
valoração que se faça do fascismo como um todo) é precisamente a de
ter sabido detectar a necessidade de uma integração global. Não
obstante a recusa do liberalismo e do parlamentarismo, o fascismo
soube manejar com maestria as técnicas de integração funcional, e
soube substituir conscientemente a integração substantiva do
socialismo por outros elementos muito eficazes, tais como o mito da
Nação, o Estado coorporativo, etc.23
20
KORIOTH, Stefan. “Rudolf Smend: introduction”. In: JACOBSON, Arthur. SCHLINK, Bernhard
(orgs.). Weimar: a jurisprudence of crisis. Berkeley: University of California Press, 2002, p. 208.
21
CALDWELL, Peter C. Popular sovereignty and the crisis of the German constitutional law: the theory
and practice of Weimar constitutionalism. Durham: Duke University Press, 1997, p. 123.
22
Cf. GRAIG, Gordon A. Germany: 1866-1945. Oxford: Oxford University Press, 1978, pp. 505-511.
23
SMEND, Rudolf. “Constitución y Derecho Constitucional” (1928). In: Constitución y Derecho
Constitucional. Trad. José Maria Beneyto Pérez. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1985, pp.
112-113.
6
E quando o pano de fundo teológico que subjaz à formação de Smend é
conduzido ao primeiro plano, o leitor não pode se assombrar com o conceito de
democracia de Smend, delineado em Protestantismus und Demokratie (1932). Em tal
escrito Smend entende a democracia a partir de um raciocínio puramente religioso,
quando afirma que “também na democracia há a necessidade de crença: em si mesma,
nos próprios valores, na própria dignidade”. O protestantismo poderia contribuir com a
democracia na medida em que poderia “dar aquele grau de homogeneidade espiritual
que constitui o pressuposto de uma democracia internalizada”24.
De se ressaltar que a doutrina de Smend não é ontologicamente autoritária.
Entretanto, é fato que seus escritos se prestam muito bem a um uso antidemocrático 25.
Por mais que Smend não tenha colaborado pessoalmente com o III Reich26, quando a
democracia é definida como a “homogeneidade espiritual de uma comunidade de
valores”, isso em quase nada difere, por exemplo, da pretensão do Partido NacionalSocialista dos Trabalhadores alemães (NSDAP) de ser o “elemento de ordem da
comunidade”, ante o surgimento do völkischer Führerstaat inaugurado com o assalto
nazista ao poder27. Isso porque tanto os conceitos de “democracia” dos totalitarismos do
século XX quanto o conceito smendiano de democracia tem uma coisa em comum:
buscam a homogeneidade com o mesmo vigor em que abominam as diferenças, o
“outro”28.
Entretanto, por mais que as consequências reacionárias das escolhas de Smend
saltem aos olhos, Peter C. Caldwell mostrou-se perspicaz quando vislumbrou que o iter
24
LUTHER, Jörg. “Rudolf Smend: genesi e sviluppo della dottrina dell’integrazione”. In: GOZZI,
Gustavo. SCHIERA, Pierangelo (orgs.). Crise istituzionale e Teoria dello Stato in Germania dopo la
Prima Guerra mondiale. Bologna: il Mulino, 1987, p. 196.
25
CALDWELL, Peter C. Popular sovereignty and the crisis of the German constitutional law: the theory
and practice of Weimar constitutionalism, p. 126.
26
KORIOTH, Stefan. “Rudolf Smend: introduction”. In: JACOBSON, Arthur. SCHLINK, Bernhard
(orgs.). Weimar: a jurisprudence of crisis, p. 208
27
STOLLEIS, Michael. “Que signifiait la querelle autour de l’État de droit sous le Troisième Reich”. In:
JOUANJAN, Olivier (org.). Figures de l’État de droit: Le Rechtsstaat dans l’histoire intellectuelle et
constitutionnelle de l’Allemagne. Strasbourg: Presses Universitaires de Strasbourg, 2001, p. 377.
28
Uma reflexão acerca do conceito de democracia na contemporaneidade, chamando a atenção para os
riscos dos “democratas” que desconsideram as diferenças ao acreditarem que a vontade da maioria é
sempre democrática por antonomásia, pode ser encontrada em: MOUFFE, Chantal. “Pensando a
democracia moderna com, e contra, Carl Schmitt”. Trad. Menelick de Carvalho Netto. In: Cadernos da
Escola do Legislativo. Ano 1, Vol. 2. Belo Horizonte: Assembléia Legislativa, julho-dezembro de 1994,
pp. 91-107. Cf. também, na mesma linha de valorização das diferenças para a confecção da identidade
constitucional de um país: ROSENFELD, Michel. A identidade do sujeito constitucional. Trad. Menelick
de Carvalho Netto. Belo Horizonte: Editora Mandamentos, 2003.
7
acadêmico de Smend também ostenta um quê de iconoclastia29. Mormente no plano da
epistemologia jurídica.
Em um ambiente dominado pelo positivismo legalista, Smend, desde seus
primeiros escritos, tomou como missão sua a de criticar essa compreensão teorética que
entende que todo o direito está contido em regras gerais e abstratas. Essa postura é
perfeitamente ilustrada quando se observa a sua trajetória acadêmica. Sua tese de
doutorado, defendida em Göttingen, aos 22 anos, tratou de fazer uma comparação entre
a Constituição da Prússia de 1850 e a Constituição belga, de 183130. Essas duas
constituições têm muitas regras que são absolutamente idênticas; caso o intérprete adote
um enfoque legalista que se prende somente ao texto, acredita Smend, as diferenças
passam por alto: entrementes, é a valorização do contexto subjacente a cada texto que
faz surgir diferentes significados para cada um dos dois textos 31. Ele aponta, então, que
as diferenças só se fazem perceber quando se leva em conta que a Constituição belga é
do tipo “revolucionária abstrata” – pelo fato de ser baseada no princípio da soberania
popular – por sua vez a da Prússia é do tipo “histórica”, porquanto assentada no
princípio monárquico32.
Já em sua tese de livre-docência (Habilitationschrift), aos 24 anos em Kiel,
Smend confeccionou um estudo de história do direito, acerca do Reichskammergericht,
sob a orientação de Albert Hänel, que era um dos mais destacados críticos do teóricochefe do positivismo jurídico daquela época: Paul Laband33. Ainda no que toca a seus
escritos de juventude, seu artigo de 1916, Ungeschriebenes Verfassungsrecht im
monarchischen Bunsdesstaat, conclui que as relações entre o ente federal central
(Reich) e os Estados (Länder) não são regidas pelas regras contidas na Constituição de
1871, mas sim por um “direito não-escrito” oriundo de uma práxis constitucional
informada por uma “lealdade federal” (Bundestreu)34.
O que essas três obras noticiam? Diríamos que elas exemplificam a postura,
encampada por Smend, de combate ao positivismo. Uma “interpretação autêntica”
29
CALDWELL, Peter C. Popular sovereignty and the crisis of the German constitutional law: the theory
and practice of Weimar constitutionalism, p. 122.
30
Trata-se de: Die preuβische Verfassungsurkunde im Vergleich mit der Belgischen, de 1904.
31
KORIOTH, Stefan. “Rudolf Smend: introduction”. In: JACOBSON, Arthur. SCHLINK, Bernhard
(orgs.). Weimar: a jurisprudence of crisis, p. 207.
32
LUTHER, Jörg. “Rudolf Smend: genesi e sviluppo della dottrina dell’integrazione”. In: GOZZI,
Gustavo. SCHIERA, Pierangelo (orgs.). Crise istituzionale e Teoria dello Stato in Germania dopo la
Prima Guerra mondiale, pp. 178-179.
33
KORIOTH, Stefan. “Rudolf Smend: introduction”. In: JACOBSON, Arthur. SCHLINK, Bernhard
(orgs.). Weimar: a jurisprudence of crisis, p. 208.
34
KORIOTH, Stefan. “Rudolf Smend: introduction”. In: JACOBSON, Arthur. SCHLINK, Bernhard
(orgs.). Weimar: a jurisprudence of crisis, p. 208.
8
confirma isso: em escrito de 1973, aos noventa e um anos, Smend interpretou que os
seus esforços, durante a República de Weimar, se inseriam em um contexto de uma
Kampfgemeinschaft (comunidade de luta) contra o positivismo jurídico35. Comunidade
integrada por Carl Schmitt, Hermann Heller e todos os juristas que buscavam superar o
positivismo36.
A sua obra-prima, Verfassung und Verfassungsrecht (1928), se insere nessa
assim-chamada “luta”; seu caráter “polêmico” se mostra com nitidez. Nela, Smend
busca refundar a teoria do Estado com um enfoque material, para além do positivismo
jurídico, para além do mero texto constitucional37. Suas palavras, nesse sentido, são bem
claras:
O que a teoria jurídica do Estado precisa é, por isso, de uma teoria
material do Estado. Uma teoria do Estado que, independentemente de
toda aquela anterior, possua uma justificação própria, enquanto
ciência do espírito que abarca o âmbito cultural e espiritual da
dinâmica estatal. Nesse ponto, em grandes linhas, usualmente se está
de acordo: claro, desde que não se venha de Viena.
Há duas coisas a serem valorizadas nessa transcrição. A primeira é a
enunciação do método geisteswissenschaftlich, “próprio às ciências do espírito”, para
compreender a “dinâmica estatal”. A segunda é o caráter polêmico existente no tempo
Weimar entre, de um lado, Hans Kelsen – identificado como o grande representante do
positivismo formalista – e, de outro lado, a Kampfgemeischaft, isto é, todos os outros
teóricos que buscavam uma materialização da teoria do Estado, para além e contra o
positivismo. Isso fica evidenciado na sentença “desde que não se venha de Viena”.
Esses dois elementos – centrais não só na transcrição supra, mas em todo o pensamento
de Smend – se entrelaçam: o método geisteswissenschaftlich é o modo de doar
“substância” à teoria do Estado e, ao mesmo tempo, a mais eficaz forma de combater o
positivismo “de Viena” (rectius, de Kelsen)38. Vejamos.
35
ZAGREBELSKY, Gustavo. “Introduzione”. In: SMEND, Rudolf. Costituzione e diritto costituzionale.
Trad. F. Fiore e J. Luther. Milano: Giuffrè, 1988, p. 5.
36
BISOGNI, Giovanni. Weimar e l’unità politica e giuridica dello Stato: saggio su Rudolf Smend,
Hermann Heller, Carl Schmitt. Napoli: Edizioni Scientifiche Italiane, 2005, p. 87.
37
GUSY, Christoph. “Le principe du Rechtsstaat dans la République de Weimar: crise de l’État de droit
et crise de la science du droit public”. In: JOUANJAN, Olivier (org.). Figures de l’État de droit: Le
Rechtsstaat dans l’histoire intellectuelle et constitutionnelle de l’Allemagne. Strasbourg: Presses
Universitaires de Strasbourg, 2001, pp. 335-337.
38
BISOGNI, Giovanni. Weimar e l’unità politica e giuridica dello Stato: saggio su Rudolf Smend,
Hermann Heller, Carl Schmitt, pp. 58-73, passim.
9
As inquietações de Smend se voltam contra o predomínio da impostação
formalista que “proíbe considerar o Estado como um âmbito autônomo da realidade”.
Impostação inaugurada por Georg Jellinek, que esvazia as grandes questões da filosofia
do Estado por meio de um “enfoque gnoseológico cético, carente, ademais, de qualquer
justificação e seriedade”; impostação seguida por Hans Kelsen, que prossegue nessa
“lamentável história dos erros humanos”39.
Smend aponta como principal erro de Kelsen aquele de não considerar o
Estado como uma realidade social40. Esse “niilismo” se deve ao fato de Kelsen “apoiarse em uma teoria do conhecimento amplamente superada” 41. A crise na teoria do Estado
seria devida, aliás, não à derrota alemã na I Guerra ou mesmo à Revolução Alemã (que
proclamou a República), mas sim ao predomínio da “teoria do conhecimento” adotada
por Kelsen, qual seja o neokantismo: “com razão buscaram derivá-la da crise do
neokantismo ou, mais genericamente, da concepção científica cuja manifestação
filosófica é o neokantismo”42. No juízo de Smend, Kelsen dá continuidade à postura
alemã “estática” de se considerar que a “união dos membros de um grupo juridicamente
normatizado” seria um dado, um fenômeno natural, automático, derivado da
deontologicidade das normas43. Daí, Smend acredita no método “próprio às ciências do
espírito” para se fazer um contraponto ao neokantismo:
É missão deste trabalho mostrar como uma filosofia do Estado que
atua assim passa por alto do objeto que lhe é próprio, construindo-se –
tal como se criticou justamente – sob a base de um conceito jurídico
de Estado puramente normativo, que é também interpretado em
sentido meramente estático, espacialista e mecanicista, o que
impossibilita qualquer elaboração de uma metodologia própria no
marco das ciências do espírito. Essa construção equivocada é
trasladada posteriormente à teoria jurídica do Estado, o que acarreta
também a perda do seu objeto imediato e – como conseqüência do
abandono de sua temática essencial e, por fim, da sua sistematicidade
39
SMEND, Rudolf. “Constitución y Derecho Constitucional” (1928). In: Constitución y Derecho
Constitucional. Trad. José Maria Beneyto Pérez. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1985, p.
44.
40
As teses de Kelsen nesse sentido estão expostas em: KELSEN, Hans. Il concetto sociologico e il
concetto giuridico dello Stato: studio critico sul rapporto tra Stato e diritto (1922). Ed. Agostino Carrino.
Napoli: Edizioni Scientifiche Italiane, 1997. Smend critica essa obra em várias oportunidades.
41
SMEND, Rudolf. “Constitución y Derecho Constitucional” (1928). In: Constitución y Derecho
Constitucional, p. 57.
42
SMEND, Rudolf. “Constitución y Derecho Constitucional” (1928). In: Constitución y Derecho
Constitucional, p. 44.
43
SMEND, Rudolf. “Constitución y Derecho Constitucional” (1928). In: Constitución y Derecho
Constitucional, p. 52-61.
10
própria – a consideração exclusiva de questões muito secundárias da
realidade constitucional normatizada.44
No diagnóstico de Smend, a superação do paradigma positivista que, apoiado
na rígida separação neokantiana entre ser e dever-ser, entre norma e realidade, aborda o
Estado de uma forma “estática” é conseguida quando se percebe que a integração
consiste na principal tarefa do Estado. A centralidade que esse conceito assume para o
pensamento de Smend faz merecer o seu exame neste estudo.
3. Integração como teologia constitucional.
O embrião da “teoria da integração” se encontra em escrito da lavra de Smend
que data de 1919. Nele, Smend critica o sistema eleitoral proporcional instituído pela
Constituição de Weimar. Utilizando-se de argumentos um tanto reacionários e bem
semelhantes aos de Carl Schmitt, Smend sutilmente acusa a Constituição de Weimar de
não ter decidido entre as “difusas tendências político-constitucionais” da época45;
afirma, ainda, que o parlamentarismo é uma mera “fachada”46, instrumentalizado pelo
liberalismo47. Tudo isso se traduz, no plano jurídico, por um positivismo jurídico
estático e cético. Seria necessária, ante esse estado de coisas, uma “ótica distinta, que
considere primariamente não a anatomia do Estado, mas sim a sua fisiologia” 48.
Destarte, “a base necessária para uma nova teoria do Estado na nova Alemanha não se
encontra em construções conceituais e sistematizadoras, nem em uma hermenêutica
atrelada ao legalismo, mas sim em uma teoria do Estado fundamentada
sociologicamente”49.
Essa teoria do Estado “fundamentada sociologicamente” tem seu início em
artigo publicado em 1923, no qual Smend lança o termo “integração”50. Já a partir daí o
44
SMEND, Rudolf. “Constitución y Derecho Constitucional” (1928). In: Constitución y Derecho
Constitucional, p. 61-62.
45
SMEND, Rudolf. “La transformación del orden constitucional liberal por el sistema proporcional”
(1919). In: Constitución y Derecho Constitucional. Trad. José Maria Beneyto Pérez. Madrid: Centro de
Estudios Constitucionales, 1985, p. 35.
46
SMEND, Rudolf. “La transformación del orden constitucional liberal por el sistema proporcional”
(1919). In: Constitución y Derecho Constitucional, p. 30
47
SMEND, Rudolf. “La transformación del orden constitucional liberal por el sistema proporcional”
(1919). In: Constitución y Derecho Constitucional, p. 31
48
SMEND, Rudolf. “La transformación del orden constitucional liberal por el sistema proporcional”
(1919). In: Constitución y Derecho Constitucional, p. 35.
49
SMEND, Rudolf. “La transformación del orden constitucional liberal por el sistema proporcional”
(1919). In: Constitución y Derecho Constitucional, p. 36.
50
Trata-se de: “Die politische Gewalt im Verfassungsstaat und das Problem der Staatsform”. In: Festgabe
der Berliner Juristischen Fakultät für Wilhelm Kahl, Vol. III, 1923, pp. 16 e ss. Citado pelo próprio:
11
termo se converte em expressão de grande uso no direito alemão. Mas foi em
Verfassung und Verfassungsrecht (1928), que Smend explicitou a integração, ao mesmo
tempo em que a alçou à condição de Leitmotiv de seu pensamento constitucional. Isso
porque foi em tal oportunidade que Smend concebeu a integração como a razão de ser
do Estado, o seu fundamento; em um duplo sentido: (i) o Estado tem a missão de
integrar as diversas realidades nele contidas e (ii) o Estado existe e se desenvolve a
partir de uma integração que nada mais é que uma permanente renovação, um
“plebiscito que se renova a cada dia”51.
A integração, por isso, serviria para combater o “ceticismo” jurídico propiciado
pelo positivismo jurídico. Hans Kelsen era particularmente intransigente com esse traço
da doutrina da integração; para o jurista de Viena, a irritação com a postura relativista e
cética do positivismo é expressão de um ranço teológico que também não aceita os
homens que não crêem, os “agnósticos”; era por isso que Kelsen afirmava: “Smend
representa um caso clássico de teologia política e, em sua natureza mais íntima, ele é
um teólogo do Estado”52. Com efeito, o matiz teológico apontado por Kelsen é
plenamente verificável. Em 1959, Smend confeccionou verbete no Evangelisches
Staatslexikon, no qual as raízes teológicas de seu conceito-chave ficaram mais que
evidenciadas (até pelo título da publicação). Nas palavras de Smend, a integração:
(...) é o ponto de partida material para uma ética protestante do
indivíduo no Estado. Esta deve tomar a frente do processo vital no
qual o indivíduo é solicitado a se empenhar na comunidade: em
particular na comunidade estatal.53
O “protestantismo prussiano” de Smend advoga a utilização dessa
manifestação de teologia política, no âmbito da República de Weimar, uma vez que na
democracia, assim como na religião, existe a necessidade não de agnosticismo, mas de
SMEND, Rudolf. “Constitución y Derecho Constitucional” (1928). In: Constitución y Derecho
Constitucional, p. 63. Para uma genealogia mais profunda do conceito de integração – coisa que escapa
aos modestos limites deste ensaio – dando atenção aos “escritos de juventude” de Smend, Cf. LUTHER,
Jörg. “Rudolf Smend: genesi e sviluppo della dottrina dell’integrazione”. In: GOZZI, Gustavo.
SCHIERA, Pierangelo (orgs.). Crise istituzionale e Teoria dello Stato in Germania dopo la Prima
Guerra mondiale, pp. 177-187.
51
SMEND, Rudolf. “Constitución y Derecho Constitucional” (1928). In: Constitución y Derecho
Constitucional, p. 63.
52
KELSEN, Hans. O Estado como integração: um confronto de princípios. Trad. Plínio Toledo. São
Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 44.
53
SMEND, Rudolf. “Integrazione” (1959). In: SMEND, Rudolf. Costituzione e diritto costituzionale.
Trad. F. Fiore e J. Luther. Milano: Giuffrè, 1988, p. 288.
12
crença54. Para formar essa comunidade de crença, Smend sustenta que a integração pode
agir em três frentes: (i) integração pessoal, (ii) integração funcional e (iii) integração
material.
Necessário realizar duas ressalvas antes de examinar cada uma das
“integrações”. A primeira: é vã a procura por um conceito preciso de integração.
Utilizando-se de um estilo um tanto “pendular”, “oscilante” para assim dizer, Smend
não se preocupa em dar definições rígidas e precisas. Sintomático dessa impostação é o
exemplo dado pelo próprio Smend: convidado para confeccionar um verbete sobre o
que vem a ser a “teoria da integração”, ele sublinhou bem o caráter oscilante desse
conceito ao afirmar que em seus escritos a integração é definida de modo “ora mais
intransitivo enquanto conexão de experiências vividas, ora mais transitivo enquanto
atividade ou efeito dos fatores que animam (sorregono) o Estado”55.
Smend colheu desafetos por causa da sua postura “oscilante”. Kelsen, o
principal afetado pela postura belicosa de Smend, era particularmente intransigente com
esse estilo. Ao ponto de dar-se o trabalho de redigir livro no qual exclusivamente critica
a teoria da integração exposta no Verfassung und Verfassungsrecht (1928). Quando
Kelsen justifica a extensão de sua crítica, é desferido um forte ataque a Smend:
O que obriga o crítico a uma análise mais pormenorizada do que o
normal é, sobretudo, a peculiaridade da exposição de Smend: uma
total falta de uniformidade sistemática, uma certa insegurança da
concepção, que se desvia das posições claras e unívocas e permanece
em insinuações vagas sobrecarregando qualquer posição inteligível
com prudentes limitações, daí um estilo de linguagem obscuro, difícil,
inçado de palavras estrangeiras.56
A segunda ressalva a ser feita avisa que essas três modalidades de integração
não devem ser entendidas como tipos-ideais no sentido weberiano, uma vez que não são
passíveis de isolamento: a unidade do sistema de integração só é percebida caso se
observe que as frentes de integração se influenciam reciprocamente57. Bem explicado, o
sucesso da integração, pelo medium do Estado, depende dessa conjugação das técnicas
54
LUTHER, Jörg. “Rudolf Smend: genesi e sviluppo della dottrina dell’integrazione”. In: GOZZI,
Gustavo. SCHIERA, Pierangelo (orgs.). Crise istituzionale e Teoria dello Stato in Germania dopo la
Prima Guerra mondiale, p. 197.
55
SMEND, Rudolf. “Dottrina dell’integrazione” (1956). In: SMEND, Rudolf. Costituzione e diritto
costituzionale. Trad. F. Fiore e J. Luther. Milano: Giuffrè, 1988, p. 272.
56
KELSEN, Hans. O Estado como integração: um confronto de princípios, p. 2.
57
GOZZI, Gustavo. “La crisi della dottrina dello Stato nell’età di Weimar”. In: GOZZI, Gustavo.
SCHIERA, Pierangelo (orgs.). Crise istituzionale e Teoria dello Stato in Germania dopo la Prima
Guerra mondiale. Bologna: il Mulino, 1987, p. 145.
13
de integração: Smend não tem nenhum pudor em afirmar que “uma das grandes virtudes
do fascismo” consiste precisamente nisso58. Passemos à análise de cada uma delas,
ainda que sem nenhuma pretensão de exaustão.
A integração pessoal é aquela que é feita por meio de líderes. Smend valoriza,
aqui, aquelas pessoas capazes de gozar da confiança daqueles que são dirigidos59. Esse
tipo de integração – diz ele – é desqualificado pela “mentalidade tipicamente liberal”,
que, influenciada por Max Weber, a denomina de “caudilhagem” 60. O que o liberalismo
desconhece, aduz Smend, é que “não há vida do espírito sem um princípio reitor”, de
sorte que o Estado precisa dessas pessoas que, por meio de suas qualidades pessoais
(Weber diria: carismáticas61), conseguem uma coesão no âmbito do grupo político62. Em
uma passagem que ostenta nítido culto à personalidade do Presidente Paul von
Hindenburg, Smend aponta a importância dessa função para a integração no Estado: “os
Chefes de Estado cumprem uma função similar àquela realizada (...) pelas bandeiras,
brasões e pelos hinos nacionais”, porquanto seu sentido reside “na ‘encarnação’ da
unidade política do povo”63
Por sua vez, a integração funcional é realizada por “processos que tendem a
produzir uma síntese social”64. Processos sociais como uma parada militar, uma
manifestação popular. Até mesmo uma linha de produção de uma fábrica: tudo isso gera
um processo, uma concatenação que tem como produto “uma contínua restauração da
comunidade política enquanto agrupamento de vontades”65. Smend faz uma importante
ressalva – e que é mostra fiel de seu conservadorismo. Ele acredita que o processo
legislativo não consiste em um meio integrador, uma vez que o parlamento nada mais é
do que uma “dialética teatral e retórica dos acontecimentos políticos, tão cara à
58
SMEND, Rudolf. “Constitución y Derecho Constitucional” (1928). In: Constitución y Derecho
Constitucional, p. 113.
59
SMEND, Rudolf. “Constitución y Derecho Constitucional” (1928). In: Constitución y Derecho
Constitucional, p. 72.
60
SMEND, Rudolf. “Constitución y Derecho Constitucional” (1928). In: Constitución y Derecho
Constitucional, pp. 70-71.
61
WEBER, Max. Economia e Sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. Trad. Regis Barbosa
e Karen Barbosa. Brasília: Ed. Universidade de Brasília, 2000, pp. 158-161.
62
SMEND, Rudolf. “Constitución y Derecho Constitucional” (1928). In: Constitución y Derecho
Constitucional, p. 72.
63
SMEND, Rudolf. “Constitución y Derecho Constitucional” (1928). In: Constitución y Derecho
Constitucional, p. 73.
64
SMEND, Rudolf. “Constitución y Derecho Constitucional” (1928). In: Constitución y Derecho
Constitucional, p. 78.
65
SMEND, Rudolf. “Constitución y Derecho Constitucional” (1928). In: Constitución y Derecho
Constitucional, pp. 79-80.
14
burguesia latina”66 – Smend se refere, aqui, à França, que sob a égide das Leis
Constitucionais de 1875 se pautava, praticamente, pelo princípio da supremacia do
parlamento67.
Por último, a integração material é aquela que valoriza os objetivos comuns do
Estado, que leva em consideração que o Estado é uma “comunidade cultural ativa” e
que, por isso, “a condição para que os valores tenham uma eficácia e vida próprias é a
mesma comunidade na qual eles são vividos e na qual se atualizam”. E vice-versa:
também a comunidade depende dos valores que a sustentam. Os valores históricos,
culturais, símbolos políticos, o território nacional, bandeiras, hinos, isso produz uma
base institucional, material, que integra o indivíduo ao Estado68 e que faz com que a
ordem jurídica seja válida69.
Por tudo isso, podemos verificar que, do ponto de vista epistemológico, o
significado da integração smendiana traduz-se por uma tentativa de superação da
perspectiva “estática” que é própria ao positivismo jurídico que dominava o ambiente
intelectual da República de Weimar. A integração assim o faria porquanto encara o
Estado como uma “realidade” alinhavada de forma “dinâmica”. Entretanto, o
significado de uma teoria constitucional não é percebido com uma mera análise das
categorias que a constitui. Qualquer texto sempre tem um contexto, que é constitutivo
para a sua significação; no que toca aos textos constitucionais essa impostação é ainda
mais verificável70. O que se vai perquirir, no próximo item, é o significado histórico,
contextual, da integração. O que existia no contexto de Smend que, em seu juízo, urgia
ser integrado?
4. A “desintegrada” República de Weimar como aquilo a ser “integrado”.
66
SMEND, Rudolf. “Constitución y Derecho Constitucional” (1928). In: Constitución y Derecho
Constitucional, p. 83.
67
Daí porque Carré de Malberg não aceitava a idéia de “lei em sentido material” para a França da
República de 1875, ou seja, um elenco de matérias que consistiria no domínio material da lei. Segundo
ele, “le domaine de la loi est sans bornes, comme celui de la volonté générale”. O que o Parlamento
decide, é lei. CARRÉ DE MALBERG, Raymond. La Loi, expression de la volonté générale. Étude sur le
concept de la loi dans la Constitution de 1875. Paris : Librarie du Recueil Sirey, 1931, p. 54.
68
SMEND, Rudolf. “Constitución y Derecho Constitucional” (1928). In: Constitución y Derecho
Constitucional, pp. 96-97.
69
SMEND, Rudolf. “Constitución y Derecho Constitucional” (1928). In: Constitución y Derecho
Constitucional, p. 101.
70
FARR, James. “Conceptual change and constitutional innovation”. In: BALL, Terence; POCOCK, John
G. A. (orgs.). Conceptual change and the Constitution. Lawrence: University Press of Kansas, 1988, pp.
15 e ss., principalmente.
15
A teoria da integração vem a lume em um período extremamente conturbado
da história alemã; um período de transição: com todas as angústias e inseguranças daí
decorrentes. O povo alemão debitou quase que exclusivamente na conta da monarquia a
responsabilidade pela derrota militar advinda com o termo da I Guerra: o desgaste foi
tão severo que lhe custou a existência71. Com a queda da monarquia, a Alemanha se
parlamentariza e a República é proclamada72. Independentemente do juízo de valor que
um ou outro constitucionalista fazia acerca do regime de Weimar, eles precisavam
assumir o suposto de que aquilo se tratava de uma república, e não de uma monarquia73.
Quantas consequências para o direito público teve essa assunção inicial. Como
apontou Michael Stolleis, “tudo teve que ser repensado”, pois “o desaparecimento das
monarquias, em particular, destruiu o ponto de referência intelectual e a legitimação
interna de muitas instituições”74. O princípio monárquico fazia com que o monarca fosse
entendido como centro e vértice do Estado, a ponto de poder considerar os direitos
fundamentais como bondosas concessões unilaterais por parte do monarca75 e o
Parlamento como uma “simples comissão legislativa”76. O art. 1º da Constituição de
Weimar confronta esse referencial histórico da dogmática do direito público, uma vez
que adotou, explicitamente, o princípio da soberania popular: “o Reich alemão é uma
república. O poder do Estado emana do povo”77.
Ante esse contexto, à publicística se impôs a seguinte questão: como é possível
observar a unidade do Estado em um Estado cujo ápice não é o monarca, mas o povo?
Um problema que, por um lado, é muito hobbesiano, pois quer saber como unir a
multidão em uma unidade monolítica de poder denominada “Estado”78; por outro, é
71
Cf. LOUREIRO, Isabel. A Revolução Alemã (1918-1923). São Paulo: Unesp, 2005.
LANCHESTER, Fulco. Alle origini di Weimar: il dibattito costituzionalistico tedesco tra il 1900 e il
1918. Milano: Giuffrè, 1985, pp. 153, 154, 184-188.
73
STOLLEIS, Michael. A History of Public Law in Germany 1914-1945, p. 142.
74
STOLLEIS, Michael. A History of Public Law in Germany 1914-1945, p. 47.
75
SCHÖNBERGER, Christoph. “État de droit et État conservateur: Friedrich Julius Stahl”. In:
JOUANJAN, Olivier (org.). Figures de l’État de droit: Le Rechtsstaat dans l’histoire intellectuelle et
constitutionnelle de l’Allemagne. Strasbourg: Presses Universitaires de Strasbourg, 2001, p. 183. Stahl foi
um dos grandes arquitetos conceituais para esse esvaziamento do caráter “prospectivo” dos direitos
fundamentais, em sua condição de Kronjurist do Rei da Prússia quando da Restauração de 1850, ocasião
histórica em que os postulados liberais do “Pré-Março” foram (militarmente) derrotados.
76
BARTHÉLEMY, Joseph. “Les théories royalistes dans la doctrine allemande contemporaine: sur les
rapports du Roi et des Chambres dans les Monarchies particulières de l’Empire”. In: Revue du Droit
Public et de la Science Politique en France et a l’étranger. Tomo 22, 12º Ano. Paris: E. Brière, 1905, pp.
744-745, especialmente.
77
Edição utilizada: “La Costituzione di Weimar dell’11 agosto 1919” (Reichsgesetzblatt, n. 152, p.
1383)”. In: LANCHESTER, Fulco. Le Costituzione tedesche da Francoforte a Bonn: introduzione e testi.
Milano: Giuffrè, 2002, pp. 189-230.
78
HOBBES, Thomas. Leviatã ou matéria, forma e poder de um Estado eclesiástico e civil. Trad. João
Paulo Monteiro e Maria Silva. São Paulo: Abril Cultural, 1974, p.109. Trata-se do célebre Cap. XVII. Em
De Cive, Hobbes expressa tal diferença de modo bem direto: “Em último lugar, constitui um grande
72
16
muito hegeliano, porquanto parte do suposto de que sem um Estado que encarna um
momento superior da eticidade, somente se tem o irracional, uma potência informe, um
vulgus, mas não um populus79.
A unidade do Estado, assim, é o problema que desafia os publicistas. Até aqui
nenhuma novidade, porquanto o problema da unidade do Estado também era o principal
desafio dos juristas quando do regime constitucional de Bismarck, normatizado pela
Constituição de 187180. Todavia, o regime constitucional de Weimar traz desafios novos
ao constitucionalismo alemão. Ao contrário da Constituição de 1871, a Constituição de
Weimar possui superioridade jurídica em relação à legislação ordinária, uma vez que
estipula processo diferenciado de emenda (art. 76(1) WRV). Não se limita, também, a
traçar obrigações para os súditos, porquanto possuía um catálogo de direitos
fundamentais. O tempo era diferente do regime bismarckiano de 1871, em que
“questões constitucionais” eram reduzidas a meras “questões de poder”81. Como lidar
com essa Constituição dotada de supremacia e que, por ser assentada no princípio da
soberania popular, não considerava direitos fundamentais como concessões outorgadas
do monarca, mas sim algo que é inerentemente de pertença do cidadão?
Smend aceita esse desafio. Ele parece perceber que a função dos direitos
fundamentais não mais se reduz àquela de ser um limite negativo ao poder; mostra-se
cônscio de que a ordem constitucional de Weimar expressa – conjuntamente com a sua
coetânea, a Constituição do México de 1917 – um deslocamento semântico da noção de
direitos fundamentais. Direitos fundamentais agora traduzem, também, meios
juridicamente aptos para se requerer que o sistema da política adote certas
programações decisórias82. Quando contextualizado historicamente, podemos ver o
porquê dessa oscilação semântica: o Estado deveria compensar a imensa exclusão social
perigo para o governo civil, em especial o monárquico, que não se faça suficiente distinção entre o que é
um povo e o que é uma multidão. O povo é uno, tendo uma só vontade, e a ele pode atribuir-se uma ação;
mas nada disso se pode dizer de uma multidão. Em qualquer governo é o povo quem governa. Pois até
nas monarquias é o povo quem manda (porque nesse caso o povo diz sua vontade através da vontade de
um homem), ao passo que a multidão é o mesmo que os cidadãos, isto é, os súditos.” HOBBES, Thomas.
Do Cidadão. Edição de Renato Janine Ribeiro. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998, pp. 189-190.
79
HEGEL, Georg Friedrich Wilhelm. Enciclopédia das ciências filosóficas em compêndio III: a filosofia
do Espírito (1830). Trad. Paulo Meneses. São Paulo: Edições Loyola, 1995, § 544, p. 316.
80
SCHLINK, Bernhard. JACOBSON, Arthur J. “Introduction – Constitutional Crisis: The German and
the American Experience”. In: SCHLINK, Bernhard. JACOBSON, Arthur J. (orgs.). Weimar: a
Jurisprudence of Crisis. Berkeley: University of California Press, 2002, p. 20.
81
HUMMEL, Jacky. Le constitutionnalisme allemand (1815-1918): le modèle allemand de la monarchie
limitée. Paris: Presses Universitaires de France, 2002, p. 301.
82
DE GIORGI, Raffaele. “Semântica da idéia de direito subjetivo”. In: Direito, democracia e risco:
vínculos com o futuro. Porto Alegre: Sergio Antônio Fabris Editor, 1998, pp. 109-110; LUHMANN,
Niklas. Teoría Política en el Estado de Bienestar. Ed. Fernando Vallespín. Madrid: Alianza Editorial,
1997, pp. 47-52.
17
herdada pelo liberalismo econômico do Oitocentos83. E, dessa forma, “o desafio que se
colocava ao Estado em termos de direitos fundamentais era, sem dúvida alguma,
imenso, transformar aquela massa de desvalidos, antes vista como sociedade civil, em
cidadãos”84.
O fardo que a história colocou sob os ombros do Estado tem seu peso ainda
mais evidenciado quando se recorda que a vida política e econômica da República de
Weimar foi uma constante crise. O Tratado de Versalhes (1919) imposto pelos
vencedores da I Guerra só dificultou a recuperação econômica alemã, de modo que o
Estado simplesmente não conseguia suprir as prestações mais básicas dos indivíduos.
Um autor representativo do pensamento conservador da época, Carl Schmitt, costumava
dizer que a Alemanha não existia mais como Estado, mas sim como “uma unidade de
pagamento de reparações”85, porquanto o Tratado de Versalhes não passava de um
artifício que tinha por finalidade manter uma situação intermediária que nem era de paz
e nem de guerra declarada e que fazia da Alemanha a grande prejudicada 86. A ausência
do poder público era aproveitada por agrupamentos sociais fortemente organizados que
faziam as funções que em tese caberiam ao Estado alemão, gerando assim o que os
“modernistas reacionários” do tempo chamavam de “pluralismo”87.
Os constitucionalistas da época descreviam esse “rito de passagem” alemão
com palavras um tanto negativas – e Smend, aqui, não se afigurava como exceção. Era
comum se falar que a República de Weimar tinha trazido uma “desintegração” social,
isto é, a queda da monarquia tinha provocado uma autonomização do indivíduo em
relação ao todo social88.
83
PINTO, Cristiano Paixão Araujo. “Arqueologia de uma distinção: o público e o privado na experiência
histórica do direito”. In: PEREIRA, Cláudia Fernanda Oliveira (org.). In: O novo direito administrativo
brasileiro: o Estado, as agências e o terceiro setor. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2003, p. 40.
84
CARVALHO NETTO, Menelick de. “A hermenêutica constitucional e os desafios postos aos direitos
fundamentais”. In: SAMPAIO, José Adércio Leite (org.). Jurisdição constitucional e os direitos
fundamentais. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 149.
85
SCHMITT, Carl. “The Liberal Rule of Law” [Der bürgerliche Rechtsstaat] (1928). In: JACOBSON,
Arthur. SCHLINK, Bernhard (orgs.). Weimar: a jurisprudence of crisis. Berkeley: University of
California Press, 2002, p. 300.
86
SCHMITT, Carl. “The status quo and the Peace” (1925) In: JACOBSON, Arthur. SCHLINK, Bernhard
(orgs.). Weimar: a jurisprudence of crisis. Berkeley: University of California Press, 2002, pp. 290-294.
87
BERCOVICI, Gilberto. Constituição e estado de exceção permanente: atualidade de Weimar, p. 107: a
superação desse pluralismo tinha a etiqueta “Estado Total” e era desejada por teóricos reacionários como
Heinz Ziegler e Carl Schmitt.
88
MANGIAMELI, Agata C. Amato. “Lo Stato tra diritto e politica. A partire dall’integrazione di Rudolf
Smend”. In: Rivista internazionale di filosofia del diritto. IV Série, Volume LXVI, Número 2. Milano:
Giuffrè, abril-junho de 1989, p. 360.
18
Transformado no “arquiteto que erige a catedral para o culto da sua própria
personalidade”89, o indivíduo ocupava esse novo status por causa da dissolução dos
estamentos sociais (Stände)90, que, ao tempo do Império, organizavam as pessoas em
grupos a partir de sua ascendência, sendo assim o critério para inclusão/exclusão dos
cidadãos no aparato decisório do Estado. Esse critério estamental lembrava que o
fundamento da vontade do povo “não pode ser a vontade atomizada de cada um dos
indivíduos, pois a vontade de todo o povo não é nunca o resultado da soma das vontades
individuais”, mas sim dos estamentos, aqueles “órgãos coletivos”, “entes supraindividuais”, “forças vivificantes sobre as quais se constrói a comunidade”91.
Só que, com o advento da República de Weimar, os estamentos caíram por
terra, ante a instalação do princípio da igualdade formal entre os cidadãos. Smend
analisa esse estado de coisas como uma transformação na “mentalidade alemã frente ao
Estado”; estava presente entre os indivíduos uma espécie de “sentimento de
distanciamento em relação ao Estado”, uma atitude absenteísta em relação ao Estado92:
no seio da sociedade havia a crença de que o cidadão (Bürger) estava reduzido a um
mero “burguês” (Bourgeois), “o egoísta calculista e argentário da era capitalista,
incapaz de qualquer ato heróico ou valoroso”93, porquanto preocupado unicamente com
os seus próprios interesses privados.
Pois bem. Esse contexto histórico – informado por uma tradição monárquica,
recessão econômica e insegurança frente aos efeitos oriundos das novas instituições
republicanas (efeitos amiúde descritos como “pluralismo”, “atomismo burguês”) – gera
89
SCHMITT, Carl. Romanticismo politico (1924, 2ª ed.). Ed. Carlo Galli. Milano: Giuffrè, 1981, p. 24.
Para uma erudita análise de como os diplomas normativos organizavam uma sociedade disciplinada em
estamentos, Cf. KOSELLECK, Reinhart. La Prussia tra riforma e rivoluzione (1791-1848). Trad. Marco
Cupellaro. Bolonha: il Mulino, 1988, pp. 55-83, 131-164, 323-372, principalmente.
91
SMEND, Rudolf. “Criterios del derecho electoral en la teoría alemana del Estado del siglo XIX”
(1911). In: SMEND, Rudolf. Constitución y Derecho Constitucional. Ed. José Maria Beneyto Pérez.
Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1985, p. 9. De se conceder que em tal escrito – ocasião em
que a Alemanha ainda se pautava pelo princípio monárquico – Smend critica o tradicional método
estamental (das três classes) da Prússia, e advoga a adoção do critério proporcional. Contudo, foi só a
República de Weimar se instalar, e implementar o sistema proporcional, que Smend publica estudo, em
1919, com ácidas considerações acerca do novo método de voto universal e com sistema proporcional.
Em seu juízo, esse método enfraquece o Parlamento porquanto o transforma em uma mera “fachada atrás
da qual se realizam com toda liberdade as negociações entre os partidos” (p. 30), sendo nada mais que um
“abstruso racionalismo” típico do liberalismo (p. 31). Cf. SMEND, Rudolf. “La transformación del orden
constitucional liberal por el sistema proporcional” (1919). In: Constitución y Derecho Constitucional, pp.
27-36.
92
SMEND, Rudolf. “Constitución y Derecho Constitucional” (1928). In: Constitución y Derecho
Constitucional, p. 46.
93
SMEND, Rudolf. “Ciudadano e burgués en el derecho político alemán” [Bürger und Bourgeois im
deutschen Staatsrecht] (1933). In: SMEND, Rudolf. Constitución y Derecho Constitucional. Ed. José
Maria Beneyto Pérez. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1985, p. 251.
90
19
questionamentos à ordem constitucional. Smend enfrentou, diretamente, essas questões.
É o que será tratado a seguir.
5. Constituição em sentido material: contraponto à “dissolução social”.
Toda a produção acadêmica de Smend no período de Weimar tem como
hipótese de trabalho esse cenário, acima descrito, de queda da monarquia, e consequente
instalação da república. Sob sua ótica, é com o início do regime democrático que o
quadro de dissolução social se instala e a necessidade de “integrar” começa a se fazer
presente94. Verifica-se isso quando se leva em conta os copiosos elogios que Smend faz
ao passado monárquico alemão.
A monarquia não precisa se preocupar com um processo “dinâmico”,
“espiritual” de integração, porque a integração já é de sua essência; afinal, o “efeito
integrador da monarquia atua através de um conjunto de valores que, no essencial, são
indiscutíveis; valores que ela mesma simboliza e representa, através dos quais se
legitima”95. O fascínio com o passado imperial alemão é tão incontrolável que Smend
chega a afirmar que, entre as Constituições modernas que ele conhece, aquela de
Bismarck, de 1871, é a única que “responde conscientemente à sua função
integradora”96, “apesar de sua escassa reflexão teórica”97.
Mas a Alemanha, agora, é uma república; a Constituição de 1871, assentada no
princípio monárquico, deixou de viger porquanto foi substituída pela Constituição
republicana de 1919. O Estado continua com a sua tarefa de integrar, porém não possui
mais, ao seu auxílio, a forma monárquica. Smend lembra que a “eficácia integradora é
condicionada à existência de uma comunidade de valores que não é questionada pela
luta política uma vez que se mantém a salvo dela”98 (grifamos). Na monarquia o não
questionamento da “ordem concreta de valores” é conseguido com facilidade, mediante
a integração pessoal realizada pelo monarca, aliado ao simbolismo da cultura
94
Aliás, o só fato de se confeccionar uma teoria que busca “integrar a realidade social” já consiste em um
atestado de que essa ordem é considerada “fragmentada” e que por isso faz-se necessário conjugar as
partes em um todo. Consoante apontou: MANGIAMELI, Agata C. Amato. “Lo Stato tra diritto e política.
A partire dall’integrazione di Rudolf Smend”. In: Rivista internazionale di filosofia del diritto, p. 365.
95
SMEND, Rudolf. “Constitución y Derecho Constitucional” (1928). In: Constitución y Derecho
Constitucional, p. 172.
96
SMEND, Rudolf. “Constitución y Derecho Constitucional” (1928). In: Constitución y Derecho
Constitucional, p. 134.
97
SMEND, Rudolf. “Constitución y Derecho Constitucional” (1928). In: Constitución y Derecho
Constitucional, p. 69.
98
SMEND, Rudolf. “Constitución y Derecho Constitucional” (1928). In: Constitución y Derecho
Constitucional, p. 87.
20
monárquica (integração material) que cria ritos (integração funcional) que doam o
Estado de substância. Mas: e numa república? Como se conseguir aquela “crença” que
Smend reputa como imprescindível a uma democracia?
Mesmo em uma república o Estado continuará com a séria tarefa de forjar uma
realidade cultural integradora; porque o Estado consiste em uma “forma espiritual
coletiva” em constante “processo de atualização funcional”, e que “existe e se
desenvolve exclusivamente nesse processo de contínua renovação e permanente
renascimento”99. Assim, citando Renan, Smend acredita que o Estado “vive de um
plebiscito que se renova a cada dia”100.
Essa característica “dinâmica” do Estado faz com que a insuficiência dos
enfoques positivistas da Escola de Viena e da “Teoria Geral do Estado” (allgemeine
Staatslehre) do século XIX se revelem, porquanto são vítimas de um pensamento
profundamente “estático e territorial” que reduz o Estado a um conjunto de “homens,
território e poder”101. Nesse marco de idéias, essa tradicional postura positivista
“estática” da allgemeine Staatslehre – que insiste em fechar os olhos para os fatos em
nome de uma exclusiva valoração do dever-ser – não consegue responder àquele desafio
colocado à publicística da República de Weimar, qual seja, transformar o vulgus em
populus.
Por tudo isso é que Smend, fazendo coro a Carl Schmitt 102, acredita que é hora
de substituir a Teoria Geral do Estado por uma Teoria da Constituição103. E a passagem
99
SMEND, Rudolf. “Constitución y Derecho Constitucional” (1928). In: Constitución y Derecho
Constitucional, pp. 62-63.
100
SMEND, Rudolf. “Constitución y Derecho Constitucional” (1928). In: Constitución y Derecho
Constitucional, p. 63.
101
SMEND, Rudolf. “Constitución y Derecho Constitucional” (1928). In: Constitución y Derecho
Constitucional, p. 52. Para a descrição clássica desses três elementos, Cf., por todos: JELLINEK, Georg.
Teoría General del Estado. Trad. Fernando de los Rios. Cidade do México: Fondo de Cultura Económica,
2004, pp. 368-400.
102
No relevante “prólogo” da Teoria da Constituição de Carl Schmitt, verificamos: “É necessário, aliás,
esforçar-se para erigir também uma Teoria da Constituição e considerar o âmbito da Teoria da
Constituição como um ramo especial da Teoria do Direito Público. Este importante e autônomo setor da
literatura não experimentou cultivo algum na última geração. Suas questões e matérias foram discutidas,
mais ou menos esporádica e incidentalmente, seja no Direito Político, como diversos temas do Direito
Público, seja na Teoria Geral do Estado. Isto se explica historicamente pela situação do Direito Político
na monarquia constitucional; talvez também pela peculiaridade da Constituição de Bismarck, cuja genial
concepção reunia simplicidade elementar e complicada torpeza”. SCHMITT, Carl. Teoría de la
Constitución. Trad. Francisco Ayala. Madrid: Alianza Editorial, 2001, p. 21.
103
Diz Smend: “não se pretende, a seguir, desenvolver um esquema de uma teoria do Estado, mas sim de
expor simplesmente os pressupostos filosóficos de uma teoria da Constituição”. SMEND, Rudolf.
“Constitución y Derecho Constitucional” (1928). In: Constitución y Derecho Constitucional, p. 52. Para
uma explicitação acerca da transição da Teoria Geral do Estado para a Teoria da Constituição, é
imprescindível, ainda: CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 5ª
ed. Coimbra: Almedina, 2002, pp. 1315-1318; VERDÚ, Pablo Lucas. “Lugar de la Teoría de la
Constitución en el marco del derecho político”. In: Revista de Estudios Politicos. Nº 188. Madrid:
21
da Teoria do Estado para a Teoria da Constituição é um atestado de que Smend enxerga
na Constituição republicana um ponto de partida promissor para se construir a tão
desejada “integração”. Para que isso seja possível, Smend acredita ser necessária uma
mudança conceitual de “Constituição”. Em franca oposição à tradição alemã positivista,
Smend não conceituará a Constituição como um documento jurídico que se resume a
separar os poderes do Estado, a demarcar competências e instituir órgãos104. Sua
definição é mais abrangente, ou como apraz Smend, “dinâmica”:
A Constituição é a ordenação jurídica do Estado, melhor dizendo: da
dinâmica vital na qual se desenvolve a vida do Estado, quer dizer, de
seu processo de integração. A finalidade desse processo é a perpétua
recolocação da realidade total do Estado: e a Constituição é a
modelagem legal ou normativa dos aspectos singulares desse
processo105.
Smend prossegue:
Enquanto direito positivo, a Constituição é norma, mas também
realidade; enquanto Constituição, é também realidade integradora,
integração que se realiza historicamente (...). A natureza da
Constituição – como realidade integradora permanente e contínua –
enquanto pressuposto especialmente significativo da eficácia
integradora de toda a comunidade jurídica, resulta evidente (...). Essa
eficácia integradora não é fruto da Constituição, quando entendida
como um “momento estático e permanente da vida do Estado”, mas
sim da contínua criação e renovação da dinâmica constitucional.106
Nos excertos acima transcritos, podemos observar que Smend paga um preço
quando tecer um nexo interno entre “Constituição” e “integração”: uma certa
“oscilação” conceitual. Ao definir, concomitantemente, a Constituição como norma e
realidade, Smend transita entre o “mundo do ser” (Sein) e o “mundo do dever-ser”
Instituto de Estudios Políticos, marzo-abril de 1973, pp. 5-10, principalmente. Realizando o caminho
inverso, o erudito Gilberto Bercovici se recusa a conceber a Teoria do Estado como uma disciplina
meramente “histórica”, e advoga a sua atualidade: “a compreensão das relações entre política, direito e
economia, buscando a supremacia da soberania popular e da democracia sobre o poder econômico
privado é um bom motivo para entender possível, e necessária, hoje, uma Teoria do Estado”, Cf.
BERCOVICI, Gilberto. “As possibilidades de uma Teoria do Estado”. In: LIMA, Martonio Mont’Alverne
Barreto. ALBUQUERQUE, Paulo Antonio de Menezes (orgs.). Democracia, direito e política: estudos
internacionais em homenagem a Friedrich Müller. Florianópolis: Fundação Boiteux; Conceito Editorial,
2006, p. 343.
104
SMEND, Rudolf. “Constitución y Derecho Constitucional” (1928). In: Constitución y Derecho
Constitucional, p. 129.
105
SMEND, Rudolf. “Constitución y Derecho Constitucional” (1928). In: Constitución y Derecho
Constitucional, p. 132.
106
SMEND, Rudolf. “Constitución y Derecho Constitucional” (1928). In: Constitución y Derecho
Constitucional, p. 136.
22
(Sollen) a todo instante, sem nenhum pudor. Uma atitude que pode tirar um positivista
do sério107, mas que não é nenhum problema para o método geisteswissenschaftlich, que
parte do suposto de que “toda realidade espiritual contém (...) uma estrutura inteligível e
ideal, um princípio de formalização imanente e atemporal”108.
Esse modo “oscilante” mediante o qual Smend definiu a Constituição levou a
doutrina a desencontros de compreensão. É verdade que há um certo consenso no seio
da doutrina constitucional em afirmar que Smend não só possui um conceito material de
Constituição como é um dos idealizadores dessa noção109. Contudo, há vozes
dissonantes. Um contemporâneo de Smend, o italiano Costantino Mortati – um dos
grandes artífices e propagadores do conceito material de Constituição no Ocidente
latino – não consegue vislumbrar uma “matéria” na descrição smendiana de
Constituição: e o critica por isso. A seu juízo, Smend falha ao entender a Constituição
como o “princípio dinâmico do devir do Estado” precisamente no momento em que não
explica de que maneira essa integração é realizada e, tampouco, de que maneira a
integração poderia ser um elemento específico da Constituição estatal 110. Essa vacilação
faz com que a integração não seja nada “material”, mas sim “processual”, um “processo
de fazer-se”, de contínuo recriar-se111. E quando se compara essa Constituição – que
pretende continuamente atualizar os valores políticos – com o Estado, a impressão que
assalta Mortati é a de que essas duas ordens, Estado/Constituição, permanecem – no
discurso de Smend – como “justapostas, momentos distintos de realidade, expressões de
107
Nos termos da ácida crítica de Hans Kelsen, o esse “oscilar do pensamento” de Smend (por sua vez
inspirado em Theodor Litt) nada mais é do que cair na mesma vala da tradicional Teoria Geral do Estado
(allgemeine Staatslehre), uma vez que essa “recaída na teoria dualista” do Estado de Jellinek. Isso porque
Smend “não tem uma sílaba a mais para dizer do que, anteriormente, já havia sido dito por Jellinek,
quando este afirmava que o Estado tem um aspecto sociológico-real e um jurídico-ideal, ficando assim,
porém, devedor de uma resposta à pergunta sobre como esses dois aspectos, que, em princípio,
representam contradições conceituais, podem ser conceitualmente ligados”. KELSEN, Hans. O Estado
como integração: um confronto de princípios, p. 22.
108
SMEND, Rudolf. “Constitución y Derecho Constitucional” (1928). In: Constitución y Derecho
Constitucional, p. 131.
109
No Brasil, Cf., por todos, BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 11ª ed. São Paulo:
Malheiros, 2001, pp. 147 e 154. Na Alemanha, um autor como Otto Bachof, quando vai definir o
conceito de Constituição em sentido material, simplesmente abre aspas e transcreve Smend: BACHOF,
Otto. Normas constitucionais inconstitucionais? (1951), p. 39. Nesse sentido, também: JOUANJAN,
Olivier. “Présentation”. In: JOUANJAN, Olivier (org.). Figures de l’État de droit: Le Rechtsstaat dans
l’histoire intellectuelle et constitutionnelle de l’Allemagne. Strasbourg: Presses Universitaires de
Strasbourg, 2001, p. 49.
110
MORTATI, Costantino. La Costituzione in senso materiale (1940). Milano: Giuffrè, 1998, p. 39.
111
Possivelmente Smend rebateria esse argumento de Mortati afirmando que forma e conteúdo nada mais
são que “momentos de um fenômeno único”. SMEND, Rudolf. “Constitución y Derecho Constitucional”
(1928). In: Constitución y Derecho Constitucional, p. 95.
23
dois mundos, aquele do ser e do dever-ser, entre eles não comunicantes e por isso
incapazes de exprimir aquela plenitude da vida que deveria resultar de sua síntese”112.
Destarte, na crítica de Mortati, Smend aparece como portador de um conceito
de Constituição que a teoria do direito contemporânea adjetiva de “procedimental”, e
que tem em Jürgen Habermas seu grande representante. Mas será adequado
compreender Smend uma espécie de Habermas avant la lettre? De maneira alguma. Isso
porque, segundo a pena do próprio Habermas, a teoria do discurso “concebe os direitos
fundamentais e princípios do Estado de direito como uma resposta consequente à
pergunta sobre como institucionalizar as exigentes condições de comunicação do
procedimento democrático”113. Por seu turno, em Smend os direitos fundamentais
cumprem a função de doar materialidade à Constituição114, pois são havidos como “um
sistema de valores concretos, que resumiria o sentido da vida estatal na Constituição” 115.
É precisamente esse o fio condutor que, a um só tempo, justifica que a doutrina veja em
Smend um conceito material de Constituição e mostra o erro de Mortati em descrever
um Smend “procedimental”: na construção smendiana, direitos fundamentais consistem
no “conteúdo material de caráter integrador das Constituições”116.
Por mais que a busca por uma integração tenha sido explicitada desde 1923
(conquanto insinuada em 1919), foi só com Verfassung und Verfassungsrecht, de 1928,
que Smend confeccionou o nexo interno entre os direitos fundamentais e essa função
“material integradora”. A data é relevante; é a época em que a República de Weimar
começa a anunciar seu crepúsculo. Um período final – que tem como fecho o fatídico
24 de março de 1933, ocasião em que o Parlamento (Reichstag) alemão aprovou a “Lei
para a cura do infortúnio do Povo e do Reich” (Gesetz zur Behebung der Not von Volk
und Reich), que concedera plenos poderes a Hitler117 – que é marcado por um profundo
radicalismo do debate político. É um tempo em que agremiações políticas, como o
112
MORTATI, Costantino. La Costituzione in senso materiale (1940), p. 40-41.
HABERMAS, Jürgen. “Três modelos normativos de democracia”. In: A inclusão do outro: estudos de
teoria política. Trad. George Spenber e Paulo Soethe. São Paulo: Edições Loyola, 2002, p. 280.
114
O que é bem diferente de enxergar nos direitos fundamentais a função de institucionalização dos
pressupostos da comunicação social, como faz Habermas apoiado em Niklas Luhmann – por mais que
Habermas e muito menos os habermasianos nunca estejam em condições psicológicas de assumir essa
influência. As primeiras consideração teóricas desse “giro procedimental” foram lançadas em:
LUHMANN, Niklas. I diritti fondamentali come istituzione. Ed. Gianluigi Palombella e Luigi Pannarale.
Bari: Dedalo, 2002.
115
BERCOVICI, Gilberto. Constituição e estado de exceção permanente: atualidade de Weimar, p. 37.
116
SMEND, Rudolf. “Constitución y Derecho Constitucional” (1928). In: Constitución y Derecho
Constitucional, p. 225.
117
STOLLEIS, Michael. A History of Public Law in Germany 1914-1945, p. 332.
113
24
Partido Nacional-Socialista, começam a exercer funções paramilitares118, beneficiandose da profunda anomia política causada, em grande parte, pelos partidos políticos com
assento no Reichstag que, em sua imaturidade, eram incapazes de qualquer acordo,
porquanto agiam como verdadeiras “comunidades de crença”119.
Foi nessa época que finalmente Smend cessa os seus ataques àquela República
de Weimar que ele tanto combateu, e passa a ver nos direitos fundamentais um
expediente apto a gerar a integração por meio da Constituição. E mais. Smend se sentiu
tão confortável na sua novel posição de “defensor republicano” que proferiu palestra,
em 18 de janeiro de 1933, na qual explicitamente criticou o decisionismo jurídico de
Carl Schmitt. Na mesma oportunidade, sustentou a manutenção da Constituição de
Weimar e, especialmente, de sua 2ª Parte, que elencava aqueles direitos fundamentais
que agiam como “laço de união” entre o cidadão e o Estado120, e que, assim,
salvaguardavam “o conteúdo essencial da Constituição, qual seja, o de formar um
povo”121.
A pergunta que advém não é outra: essa defesa quase que póstuma da
República de Weimar, que levou Smend, inclusive, a se contrapor a Carl Schmitt, é
capaz de fazer com que a sua noção de direitos fundamentais possa ser tida como
“democrática”?
6. Direitos fundamentais em Smend: contra ou com Carl Schmitt?
Em conferência realizada na Universidade Friedrich-Wilhelm de Berlin, em 18
de janeiro de 1933, Smend deixou claro qual seria a “missão histórica” da sua
concepção de direitos fundamentais enquanto ordem concreta de valores. O título da
palestra em muito auxilia na sua interpretação: “cidadão e burguês no direito público
alemão” (Bürger und Bourgeois im deutschen Staatsrecht)122.
118
MARABINI, Jean. Berlim no tempo de Hitler. Trad. Marina Appenzeller. São Paulo: Companhia das
Letras, 1998, pp. 17-19.
119
SCHLINK, Bernhard. JACOBSON, Arthur J. “Introduction – Constitutional Crisis: The German and
the American Experience”. In: SCHLINK, Bernhard. JACOBSON, Arthur J. (orgs.). Weimar: a
Jurisprudence of Crisis. Berkeley: University of California Press, 2002, p. 12.
120
SMEND, Rudolf. “Ciudadano e burgués en el derecho político alemán” [Bürger und Bourgeois im
deutschen Staatsrecht] (1933). In: SMEND, Rudolf. Constitución y Derecho Constitucional, p. 258.
121
SMEND, Rudolf. “Ciudadano e burgués en el derecho político alemán” [Bürger und Bourgeois im
deutschen Staatsrecht] (1933). In: SMEND, Rudolf. Constitución y Derecho Constitucional, p. 266.
122
SMEND, Rudolf. “Ciudadano e burgués en el derecho político alemán” [Bürger und Bourgeois im
deutschen Staatsrecht] (1933). In: SMEND, Rudolf. Constitución y Derecho Constitucional. Ed. José
Maria Beneyto Pérez. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1985, pp. 249-268.
25
A data era muito significativa para os alemães, porquanto consistia no
aniversário de fundação do Reich de Bismarck, o que aconteceu em 1871. Reich que
finalmente conseguiu forjar a tão almejada unidade para os alemães. Às vésperas do
coup nazista, Smend denunciava a falta de honestidade intelectual de uma parcela da
intelectualidade alemã que, comprometida com os movimentos de extrema-direita,
interpretavam o presente alemão como uma vítima do Reich de Bismarck.
Para esses pensadores, 1871 teria sido “o momento histórico no qual a
burguesia alemã e o Estado alemão se confundem definitivamente”123. Isso teria
inaugurado uma mentalidade burguesa que consistiu “no ponto de onde partem a
industrialização e o materialismo, a esterilidade espiritual e moral, a mecanização e
massificação”124. Ou seja: o princípio do fim. E Smend não tem dúvidas em apontar Carl
Schmitt – que em poucos meses ocuparia a posição de Kronjurist do III Reich, este
fundado sob os cuidados de Adolf Hitler125 – como o grande representante deste
posicionamento no âmbito da doutrina constitucional da República de Weimar:
O ponto culminante desta interpretação é, coerentemente, uma das
teorias mais discutidas atualmente [1933] no âmbito do Direito
Público e da política: a teoria da Constituição de Carl Schmitt, na
qual, a partir da história constitucional do século XIX, os direitos
fundamentais e a divisão de poderes são concebidos como a Carta
Magna do individualismo burguês e apolítico, como parte apolítica
123
SMEND, Rudolf. “Ciudadano e burgués en el derecho político alemán” [Bürger und Bourgeois im
deutschen Staatsrecht] (1933). In: SMEND, Rudolf. Constitución y Derecho Constitucional, p. 250
124
SMEND, Rudolf. “Ciudadano e burgués en el derecho político alemán” [Bürger und Bourgeois im
deutschen Staatsrecht] (1933). In: SMEND, Rudolf. Constitución y Derecho Constitucional, p. 250.
Jeffrey Herf cunhou o conceito “modernismo reacionário” para descrever essa postura ambígua desses
teóricos alemães, mencionada nas lamentações de Smend, frente à modernidade: os modernistas
reacionários entendiam os problemas alemães como uma decorrência necessária de um excesso de
intelectualismo ocidental e burguês. À procura de uma “barbárie revigorante”, os modernistas
reacionários atacavam as conseqüências da modernidade, usualmente descrita como Zivilization, ao
associá-la ao Ocidente, à racionalidade fria da técnica, ao artificial, ao comércio, aos judeus, à democracia
parlamentar, à Inglaterra e França, ao individualismo, aos limites ao poder. Essa Zivilization
supostamente afeminada e frágil deveria ser substituída pela Kultur germânica, um conceito mediante o
qual se descreve o instinto, o orgânico, a alma, a guerra, a virilidade, o primado da política, as qualidades
de uma comunidade eticamente coesa que pode exigir o sacrifício da vida. A “decadência do Ocidente”
devia ser combatida, então, com um ataque à racionalidade ocidental, que deveria ser negada. HERF,
Jeffrey. O modernismo reacionário: tecnologia, cultura e política na República de Weimar e no 3º Reich.
Trad. Cláudio Ramos. Campinas: Unicamp; Editora Ensaio, 1993, pp. 24, 26, 27, 34, 49-50, 65.
SPENGLER, Oswald. La decadencia de Occidente: bosquejo de una morfologia de la historia universal.
Trad. Manuel Morente. Vol. IV. Madrid: Espasa-Calpe, 1937, pp. 349-350. Cf., também, SPENGLER,
Oswald. El hombre y la técnica: contribuición a una filosofía de la vida. 2ª ed. Trad. Manuel Morente.
Madrid: Espasa-Calpe, 1934, pp. 13, 20, 28.
125
Para um perfil biográfico de Schmitt nesse período, Cf. BENDERSKY, Joseph. “The Expendable
Kronjurist: Carl Schmitt and National Socialism, 1933-1936”. In: Journal of Contemporary History. Vol.
14. London: Sage, 1979.
26
das Constituições e como a própria essência do Estado de Direito –
dito mais radicalmente como Estado “burguês” de Direito.126
Rudolf Smend estava bem correto quanto a Carl Schmitt; de fato, ele foi um
dos principais mandarins do “modernismo reacionário”127. Embora já mencionadas
incidentalmente em escritos do tempo Weimar128, as teses de Schmitt em relação ao II
Reich foram explanadas de forma mais incisiva em uma publicação de 1934:
Staatsgefüge und Zusammenbruch des Zweiten Reiches: der Sieg des Bürgers über den
Soldaten (“Estrutura estatal e colapso do Segundo Reich: a vitória do cidadão sobre o
soldado”). Nesse estudo, Schmitt aduz que o Reich de Bismarck não era uma forma
política determinada, mas sim intermediária, que evitou tomar uma decisão entre
monarquia e parlamentarismo. Essa forma política aparentemente mista revela, contudo,
uma derrota do “princípio monárquico”, pois o conflito que realmente existia aí era
travado entre “Estado-soldado prussiano” e “Estado constitucional burguês”, sendo este
último o grande vencedor intelectual (e por isso político, também) desse embate129.
Essa apropriação da história por parte de Schmitt, que desconsidera que a
Alemanha durante o século XIX – e o Reich de Bismarck não é exceção – foi um
regime semi-absolutista130, tinha um objetivo certo, como Smend muito bem percebeu:
Schmitt entendia o passado e o presente constitucional alemão como um Estado de
Direito “burguês”, com um intuito “polêmico”, para assim advogar a passagem para um
126
SMEND, Rudolf. “Ciudadano e burgués en el derecho político alemán” [Bürger und Bourgeois im
deutschen Staatsrecht] (1933). In: SMEND, Rudolf. Constitución y Derecho Constitucional, p. 254.
127
A caracterização de Schmitt como modernista reacionário é possível não só pela utilização das mesmas
categorias de autores como um Spengler e Ernest Jünger, mas sim pela semelhança de objetivo. A esse
respeito, cumpre afirmar que já em 1914 Schmitt fazia coro ao gênero de autores que não se conforma
com o predomínio do “dinheiro e da técnica”, que aliás seria algo característico da época moderna, Cf.
SCHMITT, Carl. La valeur de l’État et la signification de l’individu (1914). Edição de Sandrine Baume.
Genève: Librarie Droz, 2003, p. 64.
128
Schmitt acreditava que a Alemanha do século XIX não se dirigia politicamente pelo “princípio
monárquico”, uma vez que o regime político daquele tempo era notoriamente “pactuado”. O “centro de
gravidade” da política não estava exclusivamente nas mãos do monarca, porquanto o parlamento tinha
peso igual nessas formas políticas: Cf. SCHMITT, Carl. “Neutralité et neutralisations. À propôs de:
Christoph Steding, Das Reich und die Krankheit der europäischen Kultur” (1939). In: SCHMITT, Carl.
Du Politique: “légatité et légitimité” et autres essais. Puiseaux: Pardès, 1990, pp. 103-115. A tese não
possui sustentação histórica. Para uma refutação dessa corrente historiográfica do direito constitucional
Cf. JOUANJAN, Olivier. “Le contrôle incident des normes et les contradictions de l’État monarchique en
Allemagne (1815-1860). In: JOUANJAN, Olivier (org.). Figures de l’État de droit: Le Rechtsstaat dans
l’histoire intellectuelle et constitutionnelle de l’Allemagne. Strasbourg: Presses Universitaires de
Strasbourg, 2001, pp. 268-287, principalmente.
129
BÖCKENFÖRDE, Ernst-Wolfgang. “The German Type of Constitutional Monarchy in the Nineteenth
Century”. In: State, Society and Liberty: Studies in Political Theory and Constitutional Law. New York:
Berg, 1991, p. 89.
130
BERGHAHN, Volker R. Imperial Germany, 1871-1914: Economy, Society, Culture and Politics.
Oxford: Berghahn Books, 1994, p. 190. Com mais ênfase ainda, compreendendo o II Reich como um
semi-absolutismo pseudoconstitucional: WEHLER, Hans-Ulrich. The German Empire 1871-1918. Trad.
Kim Traynor. Leamington Spa: Berg Publishers, 1985, pp. 52-55.
27
Estado “total”131. A crítica de Schmitt ao Reich de Bismarck era a mesma tecida para a
República de Weimar: uma fórmula de compromisso que dissolve a substância política
devido à aposição de elementos “ocidentais”, “liberais”. No caso da Constituição de
Weimar, seu defeito de nascença foi a sua filiação ao conceito burguês de Constituição,
uma vez que nela predominava a separação dos poderes e os direitos individuais
contidos na segunda parte da Constituição e que nada mais eram do que uma forma “de
proteção da liberdade burguesa frente ao Estado”132.
Até 1928, Smend compartilhava da mesma opinião quanto ao traço
“liberalesco” da Constituição de Weimar133; mas a partir daquela data, munido de sua
interpretação “integradora”, Smend não mais vai concordar com a descrição que
Schmitt faz dos direitos fundamentais. No entender de Smend, os direitos fundamentais
contidos na 2ª Parte da Constituição de Weimar não consistem em um “mosaico das
mais variadas cores políticas”, uma indecisão entre burguesia ou socialismo, ou mesmo
um “programa apolítico”134. A seu sentir, direitos fundamentais não podem ser
compreendidos como “uma barreira ou reserva que separa o cidadão do Estado, mas sim
um laço de união com ele”135.
No marco da teoria da integração, direitos fundamentais formam um povo no
mesmo instante em que dão forma a um determinado sistema cultural de uma nação.
Smend aduz que isso pode ser facilmente vislumbrado nos artigos que compõem a 2ª
Parte da Constituição. Eles começam com fórmulas do tipo “Todos os alemães...”,
“Cada alemão...”136. É dessa forma que os direitos fundamentais:
(...) expressam de forma unívoca os dois elementos que compõe o
sentido do catálogo dos direitos fundamentais, o qual pretende regular,
por uma parte, uma série material autônoma, quer dizer, um sistema
de valores, de bens, um sistema cultural e, por outra parte, o regula
enquanto sistema nacional, isto é, o sistema de todos os alemães, o
qual afirma o caráter nacional de valores mais gerais (...). Nesses dois
sentidos, o de fundamentação de um sistema cultural e no de
131
SMEND, Rudolf. “Ciudadano e burgués en el derecho político alemán” [Bürger und Bourgeois im
deutschen Staatsrecht] (1933). In: SMEND, Rudolf. Constitución y Derecho Constitucional, p. 255.
132
SCHMITT, Carl. Teoría de la Constitución (1928), p. 62, de forma clara e concisa.
133
Cf., por todos: SMEND, Rudolf. “La transformación del orden constitucional liberal por el sistema
proporcional” (1919). In: Constitución y Derecho Constitucional. Trad. José Maria Beneyto Pérez.
Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1985, várias vezes citado, acima.
134
SMEND, Rudolf. “Ciudadano e burgués en el derecho político alemán” [Bürger und Bourgeois im
deutschen Staatsrecht] (1933). In: SMEND, Rudolf. Constitución y Derecho Constituciona, p. 259.
135
SMEND, Rudolf. “Ciudadano e burgués en el derecho político alemán” [Bürger und Bourgeois im
deutschen Staatsrecht] (1933). In: SMEND, Rudolf. Constitución y Derecho Constitucional, p. 258.
136
SMEND, Rudolf. “Constitución y Derecho Constitucional” (1928). In: Constitución y Derecho
Constitucional, p. 230.
28
integração popular, reside a orientação positiva dos direitos
fundamentais (...).137
Dessa maneira, a integração material, aquela que busca produzir uma base
institucional que, ao valorizar os objetivos comuns do Estado, une o indivíduo à
comunidade na qual ele se situa, consegue ser realizada. Aquilo que os rituais e o
simbolismo monárquico faziam no passado pré-republicano tem seu equivalente nos
direitos fundamentais trazidos na 2ª Parte da Constituição de Weimar. Daí Smend não
concordar com os primeiros escritos de Schmitt que concebiam os direitos fundamentais
como meros elementos burgueses que propiciariam o atomismo liberal que assolava a
República de Weimar. Pelo contrário.
A diferença entre Smend e Schmitt pode ser demarcada de modo mais eficiente
quando nos atemos a um mote mais concreto: o direito fundamental à liberdade de
expressão é o exemplo aqui escolhido.
No entender de Carl Schmitt, a liberdade de expressão não passa de um
requisito para que a burguesia possa confrontar livremente opiniões, o que se pauta na
crença liberal de que a verdade emerge entre a melhor das vontades confrontadas 138.
Smend tem outra interpretação. Diz ele que “essa liberdade, enquanto direito
fundamental, não constitui uma forma de emancipação burguesa com relação ao Estado;
ao contrário, trata da fundamentação cidadã do mesmo [Estado]”139. Citando – e se
contrapondo a – Staatsethik und pluralistischer Staat140, de Carl Schmitt, Smend aduz
que direitos fundamentais somente podem ser tidos como uma ordenação que permite a
cada indivíduo perseguir o seu bem particular (sem se sentir obrigado com o todo
social) caso se desconheça que, na verdade, os direitos fundamentais da Constituição
“constituem” um cidadão moralmente ligado ao Estado141.
Em síntese: os direitos fundamentais não são estruturas pré-estatais
pertencentes ao indivíduo abstratamente considerado. Direitos fundamentais são
transubjetivos, porquanto externos ao indivíduo, consistem em uma ordem concreta142.
137
SMEND, Rudolf. “Constitución y Derecho Constitucional” (1928). In: Constitución y Derecho
Constitucional, p. 230-231.
138
SCHMITT, Carl. The Crisis of Parliamentary Democracy (1926). Ed. Ellen Kenedy. Cambridge: MIT
Press, 1994, p. 35.
139
SMEND, Rudolf. “Ciudadano e burgués en el derecho político alemán” [Bürger und Bourgeois im
deutschen Staatsrecht] (1933). In: SMEND, Rudolf. Constitución y Derecho Constitucional, p. 259.
140
SCHMITT, Carl. “State Ethics and the Pluralist State” (1930). In: JACOBSON, Arthur. SCHLINK,
Bernhard. Weimar: a jurisprudence of crisis. Berkeley: University of California Press, 2002, pp. 300-312.
141
SMEND, Rudolf. “Ciudadano e burgués en el derecho político alemán” [Bürger und Bourgeois im
deutschen Staatsrecht] (1933). In: SMEND, Rudolf. Constitución y Derecho Constitucional, pp. 264-265.
29
E mais: somam esforços no sentido de evitar uma dissolução atomista da sociedade,
pois só têm sentido no Estado.
E aqui aparece o lado perverso da “integração”: uma vez que os direitos
fundamentais encontram o seu fundamento de validade em uma ordem concreta de
valores mediada pelo Estado, os direitos fundamentais só valem no Estado, não
podendo consistir em um elemento que possa ser antagônico ao Estado. Assim, direitos
fundamentais não se contrapõem ao Estado. O paradoxo é curioso. Na busca por
superar a atitude “agnóstica” e “cética”143 dos positivistas representantes da Teoria
Geral do Estado do século XIX, o “protestantismo prussiano” de Smend propõe uma
“crença” nos direitos fundamentais. Todavia, “agnósticos” e “crentes” incidem no
mesmo “pecado capital”: a estatolatria.
Destarte, por incrível que pareça, não há nada de efetivamente novo na atitude
de Smend de querer valorizar o “caráter político dos direitos fundamentais” e propor,
para tanto, “uma interpretação distinta do seu conteúdo material e uma nova
caracterização do sentido formal de sua validade”144. Há, aqui, a mesma postura da
dogmática do direito público alemão de alçar o Estado à condição de centro e vértice da
sociedade145.
Como percebeu Michael Stolleis, esse anti-positivismo na verdade guarda
traços anti-democráticos. Não é obra da “astúcia da Razão” o repentino interesse dos
publicistas alemães pelo tópico direitos fundamentais. Em um primeiro momento
(1919-1924) os juristas alemães com “um misto de criticismo e descaso” concebiam
direitos fundamentais como “declarações políticas” desprovidas de conteúdo jurídico.
Entretanto, quando as conseqüências da parlamentarização da Alemanha começaram a
se fazer sentir, principalmente após 1924, “os direitos fundamentais providenciaram um
meio de contenção de legisladores socialistas ou extremamente reformistas”. Foi assim
que os direitos fundamentais se transformaram em um sistema de “valores
legislados”146.
142
SAMPAIO, José Adércio Leite. Direitos fundamentais: retórica e historicidade. Belo Horizonte: Del
Rey, 2004, pp. 77 e 82.
143
SMEND, Rudolf. “Constitución y Derecho Constitucional” (1928). In: Constitución y Derecho
Constitucional, p. 235.
144
SMEND, Rudolf. “Constitución y Derecho Constitucional” (1928). In: Constitución y Derecho
Constitucional, p. 229.
145
LUHMANN, Niklas. I diritti fondamentali come istituzione, pp. 47-50.
146
STOLLEIS, Michael. “Judicial review, administrative review, and constitutional review in the Weimar
Republic”. In: Ratio Juris. Vol. 16, nº 2. Oxford: Blackwell, junho de 2003, p. 273.
30
Com isso fica mais fácil de perceber porque os “direitos fundamentais” tiveram
como grandes divulgadores, durante a República de Weimar, juristas reacionários. É o
exemplo de Heinrich Triepel, Gerhard Leibholz, Hans-Carl Nipperdey, Erich Kauffman
etc. É o caso de Smend, um autor que de maneira audaz propugnava uma submissão de
tudo que é legislado à observância de uma ordem concreta de valores: “este
ordenamento positivo é válido somente enquanto representa esse sistema de valores”147.
A tese é audaz porque a formulação é inédita; entrementes, o efeito buscado não é
inovador: a neutralização do potencial democrático que uma República tem. Aqui,
nenhuma distância em relação ao decisionismo jurídico de Schmitt: metodologias
diversas, conciliações reacionárias.
7. Conclusão
Há uma atitude conservadora, notoriamente contraposta ao constitucionalismo
moderno148, no conceito smendiano de “direitos fundamentais”. Tal como os expoentes
do pensamento monárquico do século XIX e consoante aos publicistas da República de
Weimar, Smend rejeita claramente a afirmação de que cidadãos têm direitos inatos. Na
verdade, os direitos derivam de um meio comum, de um ethos, uma ordem concreta da
qual o Estado é o grande porta-voz. Aceitar que os cidadãos sejam portadores de
direitos levaria a uma dissolução da unidade do Estado, ao atomismo burguês: direitos
existem no Estado. Por expressar os valores de um Estado-Nação, os direitos
fundamentais teriam, também, antecedência em relação ao ordenamento jurídico
positivo, pois este deve a sua validade à ordem concreta de valores que o antecede e o
legitima. O legislador democrático é um perigo: a “ordem de valores” controla-o.
Consoante a abalizada análise de Peter C. Caldwell149, afigura-se possível
afirmar que Rudolf Smend, com sua teoria da integração, foi a principal referência
intelectual no cenário alemão pós-guerra. Seu seminário na Universidade de Göttingen
foi freqüentado por uma audiência composta de nomes como Peter Häberle, Horst
147
SMEND, Rudolf. “Constitución y Derecho Constitucional” (1928). In: Constitución y Derecho
Constitucional, p. 232.
148
Cf. DIPPEL, Horst. “O surgimento do constitucionalismo moderno e as primeiras constituições latinoamericanas”. Trad. Paulo Sávio Peixoto Maia. In: Notícia do Direito Brasileiro. Nº 13 (nova série).
Brasília: Faculdade de Direito da Universidade de Brasília, 2006, p. 64: um dos componentes do
constitucionalismo moderno é a noção de que os indivíduos têm direitos que lhes são inerentes. Esse
elemento é esvaziado quando se concebe que os direitos seriam, na verdade, outorgados.
149
CALDWELL, Peter C. Popular sovereignty and the crisis of the German constitutional law: the
theory and practice of Weimar constitutionalism, p. 142.
31
Ehmke e Konrad Hesse. Smend formou, portanto, a “doutrina dominante”, que pauta,
como foi demonstrado na introdução, a autocompreensão do BVerfG de que sua tarefa é
“concretizar” a ordem de valores que funda o ordenamento jurídico positivo, o que é
feito com o auxílio metodológico do princípio da proporcionalidade150.
Esse posicionamento, que conjuga o conceito smendiano de direitos
fundamentais enquanto decorrência de um ethos, com a noção de que cabe aos tribunais
constitucionais (monoliticamente) a decisão acerca de qual é a correta ordem dos
valores, fez fortuna pela Europa Continental e América Latina – Brasil, inclusive 151. A
esse posicionamento, a doutrina do Ocidente latino denomina neoconstitucionalismo.
Esse rótulo, o neoconstitucionalismo, anuncia “novos tempos para o
constitucionalismo”152. A novidade consistiria em uma refundação do “Estado de
Direito”, o Rechtsstaat, que agora é “Estado Constitucional”, Verfassungsstaat. A
mudança efetiva residiria no seguinte: com o neoconstitucionalismo, abandona-se a
concepção, própria ao século XIX, de que um Estado só é politicamente limitado caso
todo o direito que afeta a vida dos cidadãos seja oriundo exclusivamente do Poder
Legislativo. O Verfassungsstaat teria a (pretensa) qualidade de não considerar a unidade
do ordenamento jurídico como um dado natural – oriundo do Poder Legislativo – mas
sim como uma tarefa a ser desenvolvida pela concretização dos valores que informam
os princípios contidos na Constituição153. O Verfassungsstaat, portanto, consiste na
superação de um positivismo jurídico cego aos valores que (supostamente) informam a
ordem constitucional154.
Só que, muito antes de ser a descoberta da “quadratura do círculo” o que essa
“passagem para o Verfassungsstaat” denota, a rigor, é a atitude de alçar à posição de
vértice da sociedade uma corte constitucional que, tal como escabinos medievais, vão
dizer quais são os “valores” corretos a se seguir e quais os malditos155.
Pelos motivos mais tortos possíveis, portanto, a doutrina da integração sofre
uma mutação. Antes o seu problema era o de como construir uma significação em
150
NEUMAN, Gerald L. “The U.S. constitutional conception of the rule of law and the
Rechtsstaatprinzip of the Grundgesetz”. In: Columbia Law School – Public Law & Legal Theory Working
Paper Group. Paper nº 5. New York: University of Columbia, 15 de junho de 1999 (manuscrito), p. 22.
151
Cf. BARROSO, Luís Roberto. “Neoconstitucionalismo e constitucionalização do direito”. In: Revista
de Direito Administrativo. Vol. 240. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 2005, pp. 1-42.
152
CARBONELL, Miguel. “Nuevos tiempos para el constitucionalismo”. In: CARBONELL, Miguel
(org.). Neoconstitucionalismo(s). Madrid: Editorial Trotta, 2003, p. 9.
153
ZAGREBELSKY, Gustavo. Il diritto mitte: legge, diritti, giustizia. Torino: Einaudi, 1992, pp. 20-50.
154
ALEXY, Robert. Concetto e validità del diritto. Trad. Fabio Fiore. Torino: Einaudi, 1997, pp. 3-10.
155
MAUS, Ingeborg. “Judiciário como superego da sociedade: o papel da atividade jurisprudencial na
‘sociedade órfã’”. In: Novos Estudos. Trad. Martonio Mont’Alverne Lima e Paulo Albuquerque. N° 58.
São Paulo: Cebrap, novembro de 2000, p. 192.
32
comum aos vários indivíduos que integram um Estado em situação de anomia;
atualmente, a integração de Smend sobrevive para garantir um verniz teorético a “um
suposto ordenamento de valores pré-estabelecido, reduzindo-a a uma degeneração do
direito natural”156. É de se questionar, portanto, se vale a pena simplesmente transferir a
posição do legislador decimonônico europeu para tribunais que se colocam como um
super-ego da sociedade, para assim gerar paternalisticamente cidadania aos seus
tutelados, olvidando, dessa forma, que a tutela paternalística elimina precisamente
aquilo que ela promete preservar: a cidadania157.
Com efeito, cumpre ressaltar que não estamos a afirmar que os direitos
fundamentais no marco smendiano sejam ontologicamente anti-democráticos. Contudo,
se prestam muito bem a um uso autoritário sim. Isso porque, a “dinamização” que
Smend promove em seu conceito de Constituição – uma vez que a concebe como
realidade e norma – acaba dissolvendo a normatividade constitucional. Porque a
Constituição será aquilo que o “leitor da ordem concreta de valores” disser que é. A
normatividade descamba em voluntarismo porque aquele que guarda os valores os tem
como “disponíveis”158.
Ao fim e ao cabo, o que a doutrina e a praxis judicial precisa perceber é que a
força normativa da Constituição não depende de uma mística “vontade de Constituição”
tal como propagada pelo jusnaturalismo voluntarista de Konrad Hesse. Ao contrário, a
força de uma Constituição é tanto maior quanto mais a cidadania conseguir determinar a
pauta daquilo que vai ser direito positivo, a programação decisória do Poder
Legislativo. A Constituição é tanto mais vivenciada quanto mais a Administração
Pública for lembrada, pela cidadania, de que a população é também co-autora das
políticas públicas, e não meramente uma massa passiva, informe e sem voz. A
Constituição é tão mais forte quanto mais o Poder Judiciário, como um todo, puder
debater qual é a conformação de um direito fundamental, e não somente um tribunal
superior da capital federal a milhas distante da produção da prova. A Constituição será
tanto mais forte quanto mais os direitos fundamentais sejam havidos como conquistas
históricas da cidadania e não uma mera outorga tribunalesca, a qual se chega após uma
mítica ponderação de valores cuja prática jurisprudencial denuncia sua função precípua:
ser uma capa teorética para um decisionismo irracional que neutraliza, assim, o
156
LUHMANN, Niklas. I diritti fondamentali come istituzione, p. 91.
CARVALHO NETTO, Menelick de. “Apresentação”. In: ROSENFELD, Michel. A identidade do
sujeito constitucional. Trad. Menelick de Carvalho Netto. Belo Horizonte: Mandamentos, 2003, p. 11.
158
SAMPAIO, José Adércio Leite. Direitos fundamentais: retórica e historicidade, p. 82.
157
33
potencial prospectivo e até contramajoritário que é inerente ao constitucionalismo
moderno159, porquanto vive a serviço dos setores conservadores que não descansam em
sua tarefa de neutralizar as conquistas da Constituição de 1988.
8. Bibliografia citada.
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