Marco Antônio e Cleópatra derrotados por Baco e Eros (mais Baco que Eros) Esqueça a Elizabeth Taylor e o Richard Burton: a vida de Cleópatra e Marco Antônio foi muito mais quente que qualquer filme. E, se Marco Antônio não bebesse tanto, a história teria sido outra. Há um período de cem anos de história do Egito e de Roma, de cinqüenta antes a cinqüenta depois e Cristo, tão rico, turbulento e magnífico, que se desdobra em milhares, sem exagero, de histórias e estórias, de fatos e invenções, de cenários reais ou imaginados. Estudiosos sérios quebram a cabeça para pesquisar, catalogar e contar o que houve de verdade nessa época, enquanto romancistas e roteiristas, sem compromisso, a não ser o de divertir o leitor e o telespectador, criam fantasias variadas. E isso, que já dura mais de dois mil anos, vai continuar por mais dois milênios. Afinal, temos personagens gigantescos a serem desvendados. Se apenas um dia na vida de uma pessoa comum já rende um livro inteiro, quando bem contado, o que dizer de figuras como Cleópatra e Marco Antônio? E de os dois, juntos, tentando dominar o mundo? E desse impressionante casal tendo de se suicidar por uma incrível trapalhada que só pode ser creditada às brincadeiras de mau gosto de Baco, o deus do vinho, e Eros, o deus do amor? Para voltarmos no tempo, esqueçamos a Cleópatra linda, alta, voluptuosa e de alva pele imortalizada no cinema e na literatura. Fiquemos com a maior autoridade de Plutarco, historiador grego quase contemporâneo da rainha (nasceu quando ela morreu). Ela não era egípcia, mas grega. Também não era bonita, mas atarracada, nariguda e usava óculos (lupas talhadas em ouro, combinando com cada roupa e ocasião). Tinha sim voz musical, encanto e força de caráter, além de cultura excepcional: falava mais de dez idiomas, discutia de igual para igual com os sábios da corte sobre astronomia, matemática e filosofia. Quanto mais conhecemos sobre sua vida, mais fica evidente que Cleópatra tem sido injustiçada pela visão machista da história. Nada aponta, por exemplo, que ela conquistasse os grandes homens da época na cama. Sexo farto e de qualidade variada não faltava para os poderosos: eles eram, além de reis, considerados deuses, aos quais tudo era permitido e oferecido em bandeja de prata, inclusive vaginas nobres ou plebéias. Cleópatra era, ela mesma, simplesmente a rainha absoluta do Egito e de muitos outros reinos da Ásia e, pela religião egípcia, a encarnação da deusa Ísis na Terra. Esse rótulo de fêmea fatal, fútil e promíscua foi provavelmente inventado pelos romanos que a odiavam e temiam. De factual mesmo, Cleópatra só teve dois amantes: Júlio César e Marco Antônio. E a ambos devotou sua imensurável riqueza, sua companhia leal, filhos e, no final, sua vida. Tanta abnegação sempre coincidindo com seus interesses como governante. E o leitor deste livro deve estar se perguntando: onde entra a bebedeira entre tantas virtudes? Daqui a pouco, tome mais uma por nossa conta e aprecie. No ponto que nos interessa, o mundo está assim: o imenso império romano governado por um triunvirato onde cada qual queria ver a caveira do outro: Júlio César, Otávio e Marco Antônio. E Cleópatra lá no Egito, único reino a brilhar tanto quanto Roma. Júlio César foi até o Egito para liberar a rota do trigo (que vinha de lá e era essencial para os romanos) e, em pouco mais de duas semanas (ave, grande César!), fez bem mais que isso: guerrinhas contra os partas (ganhou todas, rapidinho) que atrapalhavam o embarque do trigo, um filho de Cleópatra, justamente chamado Cesáreon, super-herdeiro de Egito e Roma e, de quebra, aproveitou para matar o irmão da rainha que havia usurpado seu trono. Meses depois, Cleópatra desembarcava gloriosamente (e bota glorioso aí, já que nunca viajava com menos de vinte navios ricamente adornados) em Roma, a convite de César. Mas Otávio, que, sendo sobrinho de Júlio César, via muito bem o perigo que representava o filho no ventre da egípcia, armou o assassinato do tio, de comum acordo com o Senado. Viúva e hostilizada, Cleópatra voltou para casa. Pouco tempo se passou, e era novamente procurada por outro romano, Marco Antônio. O exército romano, sempre metido em guerras de conquista ou de repressão e em revoltas de seus povos colonizados, precisava urgentemente de dinheiro. Só existia um “banco” com ouro suficiente para emprestar: o Banco Cleópatra. Marco Antônio, mais ambicioso que patriota, achou melhor casar com a banqueira, com quem teve um casal de gêmeos, a quem deu sua parte no Império Romano (quase um terço de todo o território conhecido na época!), apaixonou-se, e fez grandes planos para o futuro do casal. Por outro lado, Otávio, também um grande general, não iria ficar quietinho, claro. Durante anos cercou, com a frota romana, a costa do Egito para que os pombinhos não atacassem Roma. Enquanto isso, Cleópatra usou seu tesouro para construir e equipar quase quinhentos barcos, todos longos, de 100 a 120 metros, mais de mil remadores em cada um. Um espetáculo; jamais se vira uma esquadra como aquela! Cada navio seu equivalia a quatro navios de ataque romano. O exército egípcio seria imbatível em alto-mar, qualquer um via isso. Qualquer um, menos Marco Antônio. Anos de vida desregrada na corte de Cleópatra o transformaram num velho barrigudo, meio zureta, envelhecido em tonéis de carvalho (mil dias de esbórnia acabam com qualquer um!). Esperando os navios ficarem prontos, Marco Antônio apenas bebia e fornicava com as centenas de escravas sexuais de seu harém. Daí esqueceu o plano que traçara com Cleópatra, simples e genial: ela sairia rumo ao alto-mar com uma “pequena” flotilha de “apenas” trinta barcos leves. Otávio, achando que ela estava fugindo, iria a toda em sua captura. Daí, Marco Antônio avançaria com os quinhentos barcões recém-construídos, cercaria os barquinhos de Otávio e os esmagaria como moscas sob as patas de elefantes. Tudo aconteceu quase como o previsto. Cleópatra fez sua parte (fazer de conta que desertara), Otávio a dele (ir atrás dela) e Marco Antônio… Bem, esse foi o problema. Marco Antônio simplesmente estava bêbado demais para se lembrar do plano e acreditou mesmo que sua amada rainha estava fugindo... dele! Não hesitou em se lançar na primeira galera de quatro fileiras de remadores (equivalente ao barquinho dos criados), atrás de Cleópatra, chorando e se maldizendo por sua desgraça. Seus milhares de homens, em barcos pesadões que de nada serviam ali no raso, perto da costa, por sua vez, vendo seu amado (e ex-valentíssimo) comandante fugir, abandonando-os ali, desistiram de brigar. Choravam como crianças, aos milhares, espalhados pelo convés da mais fantástica máquina de guerra do período. Não diz o historiador Plutarco, mas outros, romanos, anotaram que Otávio comentou, compreendendo a situação, a colossal besteira cometida por seu ex-amigo e membro do triunvirato romano: “Justo agora que tinham tudo para ganhar...”. E assim Cleópatra e Marco Antônio saíram da vida para entrar na história. Ela, com a dignidade de uma rainha, deixando-se picar por uma áspide, cobra de veneno rápido e mortal, após enviar seus filhos em segurança para longe do Egito. Ele, desprezado pelo povo e por seus guerreiros, sem coragem de se matar a seco, pede que um criado lhe crave a espada. Mas só depois de dormir sob o efeito de duas jarras de vinho. E assim foi feito. É, literalmente, no que dá comemorar tanto uma vitória antes de ela acontecer.