THE HOURS “If I was thinking clearly, Leonard, I would tell you, that I fight alone in the dark, in the deep dark. And that only I can know, only I can understand my own condition. You live with the threat, you tell me, you live with the threat of my extinction. Leonard, I live with it too.” The Hours (2002) é um filme de Stephan Daldry, traduzido do romance de Michael Cunningham, que por sua vez surge do romance de Virgínia Woolf, Mrs. Dalloway. Este filme retrata um dia na vida de três personagens (Virgínia Woolf, Laura Brown e Clarissa Vaughan) em épocas diferentes, sendo que todo o enredo é construído ao mesmo tempo, em paralelo e com uma continuidade que possibilita a existência de uma constante ligação entre as personagens. Uma delas escreve a obra, a segunda lê e a terceira vive. O filme começa com o suicídio de Virgínia Woolf, em “Sussex, Inglaterra 1941”, servindo esta imagem como delineadora dos destinos das três principais personagens (incluindo a própria). Contudo, a acção à qual a personagem é central desenrola-se em 1923, vivendo a escritora em Richmond (Inglaterra) com o seu marido Leonard. Virgínia sofre de Depressão, tendo tentado até à data o suicídio por duas vezes, e muda de cidade pela indicação dos médicos que estão constantemente a acompanhá-la, tendo na altura atribuído às causas dos sintomas que apresentava (states of spirit, dissipations, listening to voices), entre outras, a violenta agitação da cidade de Londres. A escritora, contrariada, muda-se então, para uma zona mais calma, onde pode ser vigiada e onde permanece sob cuidados constantes por parte do marido e dos médicos. O dia desta personagem começa com a vontade e capacidade criativa para começar a escrever o seu livro, a partir do qual toda a história se desenvolve. As histórias de cada personagem e o cruzar temporal ao longo do enredo apresentam ligações e aspectos comuns entre eles, como o estilo relacional apresentado e questões centrais, como as de liberdade em relação ao destino, depressão, os porquês da existência, e a homossexualidade. Cada um destes aspectos vai sendo vivido e retratado consoante a individualidade de cada personagem e pelas características históricas e sociais das diferentes épocas. Laura Brown vive em Los Angeles em 1951 com o seu marido Dan e com o seu filho Richard. Apesar de retratar a normalidade de uma família típica desta época, Laura, grávida do seu segundo filho e deprimida, vive sérias dificuldades relativamente às suas tarefas domésticas e com as suas funções maternas. Laura passa o dia a ler a obra Mrs. Dalloway, preparando também a festa de aniversário do seu marido. Incomodada e descontente com a vida que tem, Laura, influenciada também pela sua leitura, questiona a sua liberdade e reflecte sobre a possibilidade de abandonar a família. Clarissa Vaughan vive em Nova York em 2001 com a sua amante e com a sua filha. O dia de Clarissa é vivido a preparar uma festa para o seu amigo e ex-amante Richard (filho de Laura), com o intuito de comemorar a atribuição de um importante prémio à sua obra poética. Richard, nesta época, vive sozinho e tem Sida. Clarissa tendo uma ligação muito forte a Richard, desde os seus tempos de universidade, vive a vida em função dos cuidados que ele necessita. Richard, desde criança extremamente sensível, reconhece em Clarissa uma necessidade quase imposta de viver a vida num sentido trivial, ficando pela superficialidade das questões banais, factuais e práticas da rotina diária, para esconder uma realidade interna deprimida, ou talvez vazia. É evidente a ligação entre as histórias das três personagens. Primeiro, pela presença comum de flores e do despertador. As flores viriam anunciar o dia festivo e o despertador simboliza precisamente a importância da diferença entre as épocas e das horas em todo o enredo. As três personagens acordam ao mesmo tempo, tendo rituais que identificam quem escreve, quem lê e quem vive o romance. Virgínia e Clarissa estão diante do espelho, enquanto Laura está a ler. Outra evidência, acontece quando Virgínia inicia a sua escrita: Virgínia: “Mrs. Dalloway said…that she would buy the flowers, herself”. Laura: “Mrs. Dalloway said…that she would buy the flowers, herself”. Clarissa: “Sally, I think I will buy the flowers myself”. Após o ponto de partida, que anuncia desde logo uma relação, é no seu desenrolar que se vão descortinando todos os contornos da história e de ligação entre os personagens. A depressão é a marca central da problemática de Virgínia Woolf, autora da obra escrita ao longo do filme, e consequentemente estado comum aos personagens que a própria cria. Será realizada, após um enquadramento teórico adequado, uma análise aprofundada sobre o filme em questão, segundo uma visão psicanalítica. A Depressão – Da tristeza saudável à doença profunda A depressão é com frequência associada à tristeza. Contudo, não faz sentido chamar depressão a um único factor isolado no meio de tantos outros presentes na dinâmica global de cada indivíduo. Freud na sua obra Luto e Melancolia (1917 [1915]) faz uma distinção essencial que permite uma compreensão aprofundada sobre este tema. Freud pelo seu estudo aprofundado sobre sonhos, e destes como protótipo das perturbações narcisistas, debruçou-se posteriormente sobre o estudo da melancolia, diferenciando-a do luto. Segundo o autor, o “luto, de um modo geral, é a reacção à perda de um ente querido, à perda de alguma abstracção que ocupou o lugar de um ente querido, como o país, a liberdade ou o ideal de alguém, e assim por diante” (pp. 249). O que é vivido e sentido nesta condição de luto, retrata um estado de espírito penoso, uma perda de interesse pelo mundo externo, uma vez que o objecto já não lhe pertence, uma incapacidade de substituir e adoptar outro objecto de amor, e um desligar de actividades que não estejam relacionadas com ele. Considera, no entanto, que esta reacção normal a uma perda, marcada essencialmente pela tristeza, e sem perturbação da auto-estima, embora envolvendo graves afastamentos do que é considerado uma atitude normal na vida, nunca será considerada como condição patológica, se for superada num certo período de tempo. Porém, as mesmas condições de perda real ou de natureza mais ideal (em que o objecto não tenha verdadeiramente morrido) podem produzir melancolia em vez de luto, e é nessas que se assume uma disposição patológica, que necessita ser explorada. Os traços mentais principais da melancolia são muito semelhantes aos vividos no luto, apresentado como principal distinção “uma diminuição dos sentimentos de auto-estima a ponto de encontrar expressão em autorecriminação e auto-envilecimento, culminando numa expectativa delirante de punição” (pp. 250). O que acontece, a nível de dinâmica interna no trabalho que o luto realiza, é essencialmente a retirada da libido das ligações que tinha com o objecto que deixou de existir. Trata-se então de uma oposição forçada e intensa, com um inevitável afastamento da realidade, pelo apego ao objecto através de uma psicose alucinatória carregada de desejo. É um processo que envolve um grande dispêndio de energia catexial, dando a possibilidade de prolongar temporalmente, consoante a condição e necessidade interna individual, a existência do objecto perdido. Quando o trabalho do luto é terminado, pelo desligamento da libido em relação a cada lembrança e expectativa isolada vinculadas ao objecto, o ego fica de novo livre (Freud, 1917 [1915]). Relativamente à melancolia o processo parece mais enigmático, uma vez que, tratando-se de uma perda mais ideal, do amor do objecto, e não da sua verdadeira morte, não se sabe ao certo o que é que foi perdido, sendo uma perda retirada da consciência, com grande empobrecimento ao nível do ego. Este ego diminuído, produz consequentemente um delírio de inferioridade, que leva o melancólico a considerar-se desprezível, a lamentar-se por um passado sempre igual, sem valorização alguma, e a uma espécie de misericórdia pela ligação que os seus parentes estabelecem com uma pessoa tão degradada. Os sentimentos referidos, vividos pelo delírio de inferioridade são essencialmente provocados na perturbação do melancólico pelo julgamento crítico e sobretudo moral por uma parte do ego que se coloca contra a outra, tomando-a como seu objecto. Por outro lado, o autor pondera que as mais penosas auto-acusações e autocríticas que o melancólico exprime, raramente se aplicam ao próprio, mas antes ao objecto amado, que foram dele deslocados para o seu próprio ego. Criam-se então condições para chegar ao processo da melancolia. Após a destruição de determinada relação objectal, pela desconsideração ou desapontamento proveniente da pessoa amada, a libido é retirada da ligação a esse objecto e deslocada para um novo. No entanto, a novidade é que a catexia objectal foi pouco resistente e foi liquidada, sendo a libido retirada para o próprio ego, estabelecendo uma identificação do ego com o objecto abandonado. Este torna-se o agente especial que julga, dando sentido à existência, ao contrário da perda do objecto no luto, de uma perda do ego. Freud conclui que na melancolia existe uma “regressão da catexia objectal para a fase oral ainda narcisista da libido” (pp. 255). Pela sua regressão primária, a melancolia pode tornar-se extremamente perigosa pela auto-tortura e sadismo, que explica os numerosos casos de suicídio. Freud afirma na sua obra, que “se o amor pelo objecto (…) se refugiar na identificação narcisista, então o ódio entra em acção nesse objecto substitutivo, dele abusando, degradando-o, fazendo-o sofrer e tirando satisfação sádica de seu sofrimento. A autotortura na melancolia, sem dúvida agradável, significa, do mesmo modo que o fenómeno correspondente na neurose obsessiva, uma satisfação das tendências do sadismo e do ódio relacionadas a um objecto, que retornaram ao próprio eu do indivíduo nas formas que vimos examinando” (pp. 256-257). A mania é outra característica da melancolia, sendo que em nada difere do seu conteúdo, lutando ambas com o mesmo complexo. Enquanto na segunda, o ego sucumbe ao complexo, na mania domina-o. Para finalizar, é essencial falar da ambivalência que marca o conflito vivido com o objecto. Esta ambivalência ou é vivida como “elemento de toda relação amorosa formada por esse ego particular, ou provém precisamente daquelas experiências que envolveram a ameaça de perda do objecto (…) Travam-se inúmeras lutas em torno do objecto, nas quais o ódio e o amor se digladiam; um, procura separar a libido do objecto, o outro, defender essa posição da libido contra o assédio” (pp. 261). Concluindo os contributos de Freud, considera-se o luto como um estado penoso de tristeza proveniente de uma reacção natural à verdadeira perda do objecto, que apesar de constituir um desvio na norma de vida de alguém, não se apresenta como um estado patológico, mas antes inevitável à existência humana. A melancolia, por sua vez, um estado considerado patológico, traduz-se por um empobrecimento do ego, e por um processo bem mais complexo e primário que tem como pré-condições essenciais a perda do objecto, ambivalência e regressão da libido ao ego. Coimbra de Matos desenvolve no seu artigo Depressão: Estrutura e Funcionamento (1986), um contributo notável e actual sobre o tema. Numa visão psicanalítica, um pouco mais estruturante, descreve com clareza os aspectos essenciais que estão na base da sua estrutura, bem como os tipos de depressão que existem. Relativamente à sua estrutura, encontram-se, segundo o autor, três aspectos centrais como a Dependência Oral-Anaclítica, a Insuficiência da Compleição Narcísea e a Severidade do Super-Eu. Quanto ao primeiro aspecto, a dependência oral-anaclítica, verifica-se um tipo de relação de dependência infantil, que o deprimido cria, como necessidade e procura constante de alguém que os “cuide” ou “proteja” pela função anaclítica. Estes estilos relacionais que se verificam na depressão surgem da ideia de “falha básica” de Michael Balint, que se forma nas fases mais precoces do desenvolvimento, anteriores ao Complexo de Édipo, quando existe na vivencia primária do bebé uma discrepância entre as suas necessidades físicas ou afectivas e os cuidados desadequados prestados pela mãe (por falta ou por excesso). Desta forma, Coimbra de Matos sugere que existe uma coerência entre os tipos relacionais na organização depressiva que se expressam entre estados menos evoluídos, de organização mais psicótica, até aos mais evoluídos de tipo neurótico. Nos primeiros seria de esperar encontrar Personalidades Depressivas do tipo Melancólico, predominando relações simbióticas/adesivas, passando por relações de complementaridade (dominador/dominado, explorador/explorado), e num espectro mais evoluído, a Depressividade Neurótica. De uma forma geral, predomina na vivencia relacional do deprimido, medos de abandono, de perda ou de castigo por parte do objecto, que geram uma forte ansiedade depressiva de fundo, que impossibilita chegar a estados relacionais mais evoluídos, verificando-se regressão e fixação pré-genital, o que inibe os comportamentos de autonomia. Como consequência predominam as ideias de inferioridade, culpabilidade e de um auto-conceito diminuído, dando sentido às relações marcadas pela necessidade de um Eu auxiliar. O segundo aspecto, Insuficiência da Compleição Narcísea, remete mesmo para uma deficiência narcísica e um Self Real diminuído. Coimbra de Matos defende a importância da auto-estima, que em fases iniciais se alimenta através do olhar do outro (Narcisimo Dependente). No Depressivo, não existem condições para ocorrer uma transformação para um Narcisismo Autarcico, auto-governado, ficando assim com uma auto-imagem desinvestida. O último aspecto da estrutura da depressão é a severidade do Super-Eu, sendo implacável no castigo da transgressão. Relativamente a este aspecto, também se verifica uma evolução, sendo que as formas de maior regressão caracterizam a maior crueldade e limitação do Super-Eu de origem oral, passando por um Super-Eu de origem sádicoanal (moralidade esfincteriana), e numa esfera mais evoluída, de menor regressão, encontram-se as personalidades neuróticas depressivas onde o Super-Eu é menos cruel e restrito à moralidade genital. Segundo o autor, paralelamente a esta severidade do Super-Eu, encontra-se um ideal do Eu extremamente exigente, tornando-se, o depressivo, o objecto narcísico dos pais, buscando a perfeição que eles não atingiram. Este esquema tridimensional da organização da estrutura depressiva possibilita a distinção de três modelos clínicos de depressão. A depressão simples, onde predomina o estilo relacional oral é marcada pela dependência anaclítica e afectiva. A angústia de separação é evidente por estas características, sendo que a sua efectivação resulta no vazio depressivo. A depressão narcísica ou de inferioridade é marcada pelo conflito entre a autoimagem que o sujeito vive como real e o Ideal do Eu, tendo por base a desidealização do próprio e a idealização do outro. Este tipo de depressão surge, na sua maioria, de mães elas próprias com deficiências narcísicas, que esperam dos seus filhos colmatar esta falha pela necessidade de serem amadas. Estas relações criam uma elevada dependência patológica, que acaba por ser a origem da evidência depressiva dos mesmos em idades mais avançadas. No tipo de depressão de culpabilidade ou masoquista, o indivíduo responsabiliza-se pela perda do amor do objecto, como resultado da sua agressividade ou de ataques hostis dirigidos a este na realidade ou na fantasia. Dá-se então uma inflexão interna da agressividade e uma desculpabilização e idealização do objecto, pela identificação projectiva patológica. O indivíduo por introjecção maligna apropria-se das partes negativas do objecto, principalmente das suas injunções culpabilizantes. Coimbra de Matos justifica então o nome de depressão masoquista ao considerar que, pelo receio de abandono do objecto fica sujeito e submisso à sua agressividade (Coimbra de Matos, 1986). Para finalizar as ideias de Coimbra de Matos, será necessário realizar uma breve revisão dos aspectos centrais no funcionamento depressivo. O primeiro diz respeito ao investimento inconsciente no objecto de amor perdido, sendo que este absorve grande quantidade de energia libidinal, levando a um empobrecimento do Eu, à impossibilidade de fazer o luto desse objecto ideal e consequentemente, à retirada do investimento da energia libidinal no mundo objectal concreto. A compensação narcísica/ erotização do contacto é marcada pela dificuldade relacional que está na base do depressivo, devido à sua insegurança narcísica. No sentido de encobrir esta falha, os sujeito esconde os seus sentimentos de inferioridade erotizando o contacto, como forma de negação da perda do amor do objecto, portanto, como mecanismo anti-depressivo. A consequência desta compensação origina no sujeito a impossibilidade de fazer o luto, ou seja, a um adiamento da saída da depressão. O autor, num dos seus outros escritos “O Primeiro Amor” (1986), também atribui como defesa anti-depressiva, a homossexualidade, como consequente transformação derivada de uma estrutura masoquista depressiva. Coimbra de Matos defende que “a decepção, provocada pela mãe, reforça (…) naqueles que ainda se não libertaram do estado narcísico, o investimento homossexual. E é todo o problema da homossexualidade reactiva e defensiva nas estruturas narcísico-depressivas.” (Coimbra de Matos, 1986). Por fim, a reparação patológica, consiste na transformação do objecto abandonante, e idealiza-o com o intuito de procurar não sentir o abandono efectivo (Coimbra de Matos, 1986). Eduardo Sá (2009) vai de encontro à transversalidade da depressão, nas estruturas patológicas, defendendo a existência de uma depressão numa linha mais neurótica, borderline e psicótica. A depressão neurótica subjaz sempre uma angústia de castração, uma vez que os movimentos de autonomia e de construção da identidade sexual do filho ou da filha implicam sempre um confronto com o modelo identificatório. Ao mesmo tempo que as qualidades e atributos do pai/mãe servem de coordenadas ao desenvolvimento do filho/filha, podem desencadear também um sentimento de uma pequenez, e que por isso seja necessário desqualificá-los. Este movimento é no entanto, também um pedido de reacção dos pais pelos filhos, que lhes pedem movimentos de integração da própria ambivalência que estes processos identificatórios possuem. Quando as identificações acarretam um sofrimento acentuado, estas tornam-se incompatibilizáveis com o desenvolvimento saudável. Deste modo, uma atitude castrante dos pais, na espontaneidade e autenticidade dos filhos desencadeiam um “não posso ser como sou, nem quero ser igual a ti”, tornando o filho medroso, representando este o núcleo depressivo da fobia (núcleo da neurose). Num registo borderline, Sá, enfatiza a questão da falha básica que numa relação do tipo narcísico-narcisante, mascara, através de uma depressividade (sensação de vazio, angustia de abandono e vitimização recorrente), um mundo interior que, por não ter acedido à triangulação objectal, traduz-se num “quase nada” objectal. Esta vitimização sentida nestes quadros patológicos, escondem por sua vez, uma dimensão maníaca que surge como forma de iludir a retaliação narcísica do objecto; como arrogância e desprezo relativamente a todas as reparações reparadoras “a pena é o melhor que se pode esperar delas” já que o amor do objecto idealizado não existe; e como modo de camuflar a inveja narcísica. Na depressividade característica da patologia borderline, não é mais que o sentimento do vazio que surge como defesa à consciência do nada objectal, que na melancolia é sentido como uma morte iminente. Segundo o autor, no diagnóstico psicótico, a depressão melancólica surge quase na continuidade ou ampliação de uma depressividade, que ela própria não deixa emergir a verdadeira depressão. O autor aponta vários pontos em comum entre a depressividade e a melancolia, como seja, a falha básica, a solidão objectal, a culpa pela introjecção da malignidade do objecto, a incapacidade de fixar a libido de modo durável e positivo, a ausência de uma triangulação relacional, o predomínio de barreiras narcísicas, o controlo obsessional e omnipotente da angústia, que se verifica no controlo das relações e se estende ao controlo dos actos e das emoções (Sá, 2009). Uma possível análise – o encontro da(s) teoria(s) com a natureza da tristeza destas personagens recriadas em “The Hours” Apesar de várias críticas lidas sobre o filme se basearem na simples descrição das três personagens retratadas no filme, de certa forma separada, parece que Stephan Daldry, transmite de forma mais ou menos subtil, uma ligação muito evidente entre todas as personagens. A sensação que tivemos, foi a de que todas as cenas que surgiam para além da vida de Virgínia Woolf constituíam parte da história que ela própria estava a criar ao longo do enredo, projectando na sua obra características da sua própria estrutura e depressão. O que Daldry consegue realizar, com grande sucesso, é uma adequação na forma como os aspectos centrais da realidade interna de Virgínia, são vividos na época em questão e recebem outros contornos, quando se avança temporalmente pelos diferentes contextos históricos e sociais, dando espaço para uma dinâmica que confunde realidade e ficção, dentro do próprio filme. Virgínia Woolf parece sofrer de uma grave depressão, melancolia segundo Freud, pela sensação sempre patente de desaparecimento que a invade. Como foi constatado por Eduardo Sá, na melancolia o nada objectal é sentido como uma morte iminente, só sustido pela defesa maníaca. Num diálogo que tem com o marido, Leonard, é bem retratado este estado: “If I was thinking clearly, Leonard, I would tell you, that I fight alone in the dark, in the deep dark. And that only I can know, only I can understand my own condition. You live with the threat, you tell me, you live with the threat of my extinction. Leonard, I live with it too.” Talvez pela época em questão, Virgínia vive este estado melancólico com pouca possibilidade de liberdade ou de receber um tratamento adequado. Estando constantemente sob vigília do marido e limitada à ordem dos médicos que apenas lhe dão medicação e recomendam descanso e pouca agitação, a escritora fica confinada a uma vida dentro de casa e, de um modo geral, fechada no quarto, isenta de qualquer vida relacional. As suas capacidades relacionais estão assim bastante limitadas, pelo que a sua expressão é vincada por uma insegurança narcísica e pela consequente hostilidade e erotismo que se deixam transparecer. A hostilidade aparece representada no filme, quando confronta uma criada que criticava a indisponibilidade e estranheza da escritora: Virgínia: “you do remember that my sister is coming at 4 o’clock with the children?” Nelly: “Yes Madame, I haven’t forgotten.” Virgínia: “Chinese tea and jenjibre.” Nelly: “We would have to go to London for the jenjibre Madame. I haven’t finished this, and I should finish the rest of the lunch.” Virgínia: “The train of 12:30 will take you to London and it will arrive at 1 o’clock. If you return in the train at 2:30 it will be in Richmond before 3 o’clock. Or did I miscalculate?” Nelly: “No” Virgínia: “Well then, is there something entertaining you Nelly?” (Nelly, despe o avental e atira-o contra o chão em sinal de descontentamento) Virgínia: “I can’t think in anything more exhilerating than a trip to London.” Nesta cena do filme, além da hostilidade e provocação que parece surgir como máscara da própria fragilidade, também dá conta da contrariedade e da falta de liberdade e autonomia que Virgínia vive com sofrimento. Ao mesmo tempo que também condiciona a autonomia de Nelly, a tarefa que lhe dá implica ir a Londres, cidade de onde vivia e anseia por regressar mas está impedida. A homossexualidade em Virgínia, pode estar pouco explorada no filme, pelas restrições sociais da época em que vivia, ou então por aparecer apenas como anti-depressivo, como refere Coimbra de Matos, no sentido de tentativa de ocultar uma ameaça de perda do amor do objecto. Este retrato pode estar mais ou menos expresso na seguinte cena: (Virgínia ao despedir-se da sua irmã, dá-lhe um beijo na boca, e a seguir pergunta com algum desespero:) Virgínia: “Say something Nessa, Did you think I seemed better?” Nessa: “Yes Virgínia, you seemed better!” (Numa resposta em espelho que revela a urgência da função de anáclise) Virgínia: “Do you think I might one day escape?” Nessa: “One day…” Esta cena, vivida com grande intensidade é reveladora do sofrimento de Virgínia. A cena do beijo, para além de poder ser interpretada como defesa anti-depressiva, também surge quase por uma necessidade oral de incorporação do objecto. Dá a sensação de uma incorporação e de uma vivencia simbiótica, mais arcaica, provocada por uma intensa angústia de separação. Como sublinha Eduardo Sá, o sentimento melancólico, é sustentado, através de defesas maníacas (controle, desprezo e sentimentos de triunfo como referia Klein) de arrogância (Bion) da esquizoidia (Fairbain) do vício da quase morte (Betty Joseph) e de ideias de ruína, que escondem a parasitação pelo objecto de referência dos recursos vitais da criança que encontra neles a oportunidade para dramatizar conflitos infantis que se perpetuaram noutras relações, e que a projecção foi tornando suportáveis. Estas vivencias depressivas, de origem mais primária, são também vividas em grande semelhança com o personagem Richard, julgamos que de todos o que mais se parece com Virgínia Woolf. A forma como a autora cria o seu romance, dá possibilidade para construir uma história de vida e de relações mãe-filho mais completas, que parecem surgir como uma possibilidade de Virgínia projectar alguns dos seus afectos depressivos e vivencias de abandono na sua infância. A mãe de Richard, nesta história, aparece como uma mãe muito deprimida que não consegue realizar as suas tarefas, nem tem disponibilidade nenhuma para o seu filho. Uma ideia de Coimbra de Matos adequa-se às vivencias relacionais desta família retratada nos anos 50: “Um sistema relacional em que o elemento dominante (a mãe) faz uma constante rejeição libidinal do sujeito: porque este não é o pénis perfeito (não o simboliza) que lhe falta, e de cuja carência não abdicou, nem o parceiro edipiano que a decepcionou (o próprio pai) – mas serve, é utilizado para descarregar a raiva narcísica dessa decepção do seu (dela mãe) passado infantil”. Um sistema relacional que acaba por se traduzir numa depressão vivida pelo Richard, naquela altura, com características de depressão anaclítica quando se começa a perceber a dependência de uma proximidade objectal, que só assim ganha vida e se torna presente. Esta ideia está bem marcada por um diálogo com a mãe enquanto cozinham o bolo de aniversário do pai: Richard: “Mommy, this is not difficult.” Laura: “I know Richie, I just want to do this for daddy.” Richard: “Because it’s his birthday?” Laura: “That’s right. We are making the cake to show that we love him.” Richard: “Otherwise he won’t know that we love him?” Laura: “That’s right.” Richard é considerado como tendo visões na história, mas parece que a interpretação surge da sua enorme sensibilidade e intuição, que desenvolve também como forma de “sobreviver” à ausência e indisponibilidade afectiva da mãe. A mãe, que pela evolução na época, e influenciada pelo livro Mrs. Dalloway, pondera a possibilidade de abandonar a família, pelo suicídio, que acaba por não concretizar, uma vez que decide fugir da família e a autora Virgínia dá-lhe essa possibilidade, na construção da sua história. Richard é um personagem marcante ao longo do enredo, aparecendo também na época de Clarissa e sob os seus cuidados. A depressão, na forma como ele a vivencia, provocada pela falha básica (Balint) que vive e é retratada no filme, dá-lhe a possibilidade, através de formas de sublimação, de enveredar por uma carreira artística, de grande profundidade e expressão interna. Nesta obra, pela qual ganha um prémio de grande prestigio e pela qual se justifica a festa que Clarissa organiza, ele leva dez anos a criá-la e no fim de capítulos que parecem não ter grande importância, a mãe morre. Este desfecho é revelador da natureza penosa e da estrutura de depressão que foi nascendo, pela ausência materna (mãe morta – André Green) e pelo abandono efectivo. O objecto libidinal, porém, continua vivo no inconsciente libidinal nesse objecto, quando na realidade ele é um objecto perdido, e Richard demonstra através deste fim trágico, um desejo, ainda que inconsciente de matar de facto esse abandono e esse objecto interno, eternamente presente, que o levou a um empobrecimento progressivo do ego e ao seu final na história, pelo suicídio. Clarissa, vivendo na actualidade, em que o papel da mulher na sociedade sofreu grandes alterações desde a época da autora, apresenta uma dinâmica acentuadamente diferente das restantes personagens. O estado não é de uma gravidade que seja tão limitadora como nas outras personagens, mas parece existir a mesma problemática interna, embora mascarada por questões quotidianas, profissionais e mais factuais que encobrem o vazio que espreita. Esta problemática pode ser exemplificada pelo diálogo que Clarissa tem com a filha Julia, relativamente às suas sensações, às suas inquietações e a Richard: Clarissa: “He (Richard) gives me that look…” Julia: “what look?” Clarissa: “just saying: - your life, is trivial, you are so trivial, just daily stuff, schedules and parties, and details – that’s what he means.” Julia: “Mom, it only matters if you think that it´s true…Well, do you? Tell me.” Clarissa: “when I’m with him I feel – yes I am living- And when I’m not with him – yes, everything just seems sort of silly.” A análise deste filme poderia ser bastante mais vasta, e de maior interesse. Tem uma história com uma dinâmica própria, acabando por retratar as questões ligadas à depressão com grande riqueza e profundidade. A multiplicidade dos personagens, as diferentes épocas e a exposição em paralelo, dá uma mistura que embora seja brilhante, dificulta a possibilidade de realizar uma interpretação clara e resumida. Limitamo-nos a tentar compreender a essência de cada personagem, da sua ligação, e do sentido da história na globalidade. Sentimos também, que pelos afectos depressivos, que são constantes ao longo do filme, muitas das expressões, e essências de cada cena, ou mesmo de uma personagem seriam melhor retratadas pelo sentir que se transmite em toda a linguagem verbal e corporal, movimentos, mímicas, expressões, silêncios, posturas, e sons. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Coimbra-Matos A. (1986). Depressão: Estrutura e funcionamento. Revista Portuguesa de Psicanálise, 4, 75-85. Coimbra-Matos A. (1986). O primeiro amor. Psicologia, 1, 39-43. Freud, S. (1917). Luto e Melancolia. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, vol. XIV, 1914-1916. Imago: Rio de Janeiro. Sá, E. (2009). Esboço Para Uma Nova Psicanálise. Almedina: Coimbra Maria Joana Abreu dos Santos Janeiro