Uma introdução ingênua à questão da cardinalidade Pertença Tomemos o conjunto x = {a, b, c, d, {e}}. Diremos que a x pertencem (∈) a, b, c, d, {e} - é importante notar que não é e que pertence a x, mas o conjunto que contém somente e, {e}. Portanto, 5 elementos pertencem a x: a ∈ x, b ∈ x,..., {e} ∈ x. Inclusão Além disso, é também possível discernirmos as partes de x - isso é, não os elementos, mas suas combinações, ou sub-conjuntos, que estão incluídos (⊂) em x. Por exemplo: {a, b, {e}} ⊂ x, ou {d, c, a} ⊂ x. No entanto, há também uma parte vazia, isso é, x também contém, como subconjunto, Ø, que é, justamente o conjunto que não tem elementos [que escrevemos (∃x) (∀y) (¬y ∈ x)]. Notamos, assim: a) que todo conjunto é sempre sub-conjunto de si mesmo. Para z = {1, 2, 3}, temos que {1, 2, 3} ⊂ z; b) que o conjunto vazio Ø é parte de todo conjunto. Para z = {1,2,3}, temos que {Ø} ⊂ z. Conjunto potência Usaremos a notação P(x) para nomear o conjunto de todas as partes ou sub-conjuntos de x, chamado também de conjunto potência. O conjunto z = {1, 2, 3} possui, portanto, os seguintes sub-conjuntos: Ø, (1}, {2}, {3}, {1,2}, {2,3}, {1, 3}, {1, 2, 3}. O conjunto de todas as partes de z, P(z), contém, portanto, 2z em que z = {1,2,3}, Ou seja, P(z)= 8. Por definição, P(x) = 2x. Vemos, assim, que qualquer conjunto finito x, inclui mais partes do que lhe pertencem elementos. Cardinalidade Considere agora o conjunto infinito ω (ou N), composto de todos os números naturais - isso é, ω = {1, 2, 3, 4....n+1}, onde n+1 é uma forma simplificada de escrever a função de sucessão (S(n)) que garante que, para qualquer número posto n existe o número natural n+1 que o sucede - e cuja definição formal seria, na verdade, S(n)= n ∪ {n}, isso é, o conjunto que une (∪) n aos elementos agrupados sob n, de modo que, se 2 = {0,1}, então S(2), isso é, 3 = 2 ∪ {0,1}= {0,1,2}. Note que a letra ω não é nenhum número n+1: assim como Ø, ele é um número que não sucede a nenhum outro (não é um resultado de S(n)=n+1). Em outros termos, tanto Ø quanto ω dependem de uma nomeação. O conjunto ω contém infinitos elementos. Imaginemos agora o sub-conjunto I(ω), que contém todos os números ímpares incluídos em ω. Ora, para cada dois elementos n e n+1 de ω um deles pertencerá à I(ω). Poderíamos dizer, então, que I(ω) tem metade dos elementos de x? Não - pois tanto o conjunto de números naturais quanto o conjunto de números naturais impares são infinitos. Não só isso, mas são equipotentes (tem o mesmo “tamanho”), pois podemos associar, para cada elemento de ω um elemento em I(ω): ω: Ø 1 2 3 4 5 6 7 ... n I(ω): 1 3 5 7 9 11 13 15 ... I(n) = 2n+1 Diremos que dois conjuntos infinitos equipotentes possuem a mesma cardinalidade k. No caso, a cardinalidade k mínima, ℵ0. Conjunto potência de um conjunto infinito Consideremos agora o conjunto potência de ω, isso é P(ω) = 2ω . O teorema de Cantor demonstra - surpreendentemente - que, apesar de ambos serem conjuntos infinitos, o conjunto infinito de números naturais é menor que seu conjunto potência, ω < P(ω) - ou seja: não podemos associar para cada n que pertence a ω um e somente um elemento correspondente em P(ω). Portanto, ω e P(ω) possuem diferentes cardinalidades, ℵ0 e 2ℵ0, respectivamente. Cantor demonstra que a infinitude de P(ω) não pode ser reduzida à infinitude enumerável (a cardinalidade k dos números naturais, ℵ0) de ω por meio de uma prova complexa e original, cujos dois passos principais são: a) demostrar que o conjunto infinito dos números naturais (ω ou N) não é equipotente ao conjunto infinito de todos os números reais (R, o conjunto que inclui também todos os números expressos com infinitas, e não repetidas, casas decimais, por exemplo, o número π); de maneira intuitiva, isso significa mostrar que a própria ordenação de R com N em uma função bijetora (que garante a equipotência entre os conjuntos) por si só produz novos números em R, números que ficaram sem ordenamento na função, apesar de termos equiparado os dois conjuntos um a um. b) demostrar que R é equipotente a P(ω). Isso é, que esse excesso não enumerável - pois não pode ser transcrito em termos de números ordenados, tal como em ω - pode ser expresso tal como o conjunto potência de ω, isso é, 2ℵ0. De onde se conclui que, se k(N) < k(R), então ω < P(ω) - ou seja, P(ω) possui outra cardinalidade. O teorema, em sua forma mais geral, demonstra que k < 2k, o que abre caminho para a produção de diferentes cardinalidades - ℵ0, ℵ1, ℵ2,... ℵn, os chamados números transfinitos - e, portanto, para diferentes “tamanhos” ou “densidades” de infinitude. Bibliografia Sousa Pena, Fernando & Miranda, Virgínia (2006) Teoria dos Conjuntos Instituto Piaget (Lisboa) Introdução nada ingênua a questão do estado da situação Para Badiou, o termo “situação” é sinônimo daquele de um conjunto infinito, de modo que, ser apresentável como existente significa “pertencer a uma situação”. De acordo com Ser e Evento, todas as situações são definidas como infinitas e que o infinito é “a realidade banal de toda situação enquanto tal e não um predicado de transcendência (...) Na verdade, toda situação, em seu ser, é um múltiplo composto de uma infinidade de elementos, cada um sendo ele mesmo um múltiplo”. A noção extraordinariamente vaga de situação é definida, portanto, somente pelo fato de conter um número infinito de componentes distintos. Esses podem ser “palavras, gestos, violências, silêncios, expressões, agrupamentos, corpúsculos, estrelas, etc” - não faz diferença ontológica alguma. Sabemos, ainda, que “como nada que é apresentado não é contado [como um], é impossível apreender, de dentro da situação, uma inconsistência inacessível à contagem”. O que quer que seja que é apresentado numa situação, é de fato governado pelo princípio leibniziano: “o que não é um ser, não é um ser”. A estrutura de uma situação é o que a especifica como uma situação particular, isso é, o que assegura que ela apresenta certos elementos e não outros. É o que distingue aqueles elementos como seus elementos. A situação é simplesmente o resultado de tal estruturação. O que Badiou chama de “estrutura da situação” é “o mecanismo existente de conta-por-um que qualifica a situação como sendo aquela situação particular”. A estrutura da vida, por exemplo, é composta de todas aquelas operações que distinguem os elementos do conjunto de coisas vivas dos elementos do conjunto de coisas bio-mecânicas, não-vivas (e que, na verdade, compõe as coisas vivas); a estrutura da nação é o que quer que seja que garante a pertença de seus próprios elementos enquanto exclui o resto, e etc. Em oposição à verdade, Badiou chama a função de “estrutura e saber” de “meramente verificável”, isso é, a aplicação correta das leis pelas quais a situação reconhece seus elementos e classifica suas partes: “Dos enunciados estruturais admissíveis em uma situação, nós não diremos que são verdadeiros, mas apenas que são verificáveis. Trata-se de uma questão de saber, e não de verdade”. O papel do estado é um pouco mais complicado. Sabemos que o número de partes ou subconjuntos de um conjunto sempre excede o número de seus elementos, e que para um conjunto infinito esse excesso é radicalmente incomensurável. A mera estrutura de um conjunto não prescreve nenhuma ordenação para esse excesso de partes sobre elementos. O que Badiou chama de “saber” operacional em uma situação é o que provê a medida de como arranjar e organizar essas partes. O saber é “um classificador de sub-conjuntos”; sua tarefa é discernir ou “nomear os sub-conjuntos de uma situação”.Mas o saber por si só não produz nenhuma organização global para esses arranjos: “nada é mais errante do que a ideia geral de a ‘parte’ de um conjunto”. Como esses não podem ser ordenados em nenhuma maneira óbvia, o excesso das partes sobre os elementos é propriamente anárquico e potencialmente perigoso. Ele arrisca, por assim dizer, introduzir uma desordem elementar. Além disso, no meio dessa desordem dos subconjuntos em excesso, não existe nada para garantir que o vazio fundante da situação - aquele “algo” não-estruturável que assombra a situação, do além de seu horizonte não apresentável, uma indicação da própria “substância” do seu ser - não venha a irromper dentro da situação ela mesma, como algo incontável, anárquico e ameaçador. O emblema histórico clássico de tal irrupção é um levante das massas. Tais interrupções na lei e na ordem são possíveis em princípio a partir do ponto não-estruturado de dentro da situação. E existe sempre pelo menos um desses pontos em cada situação, já que a operação que estrutura a situação não pode estruturar a si mesma. A estrutura não é ela mesma contada-por-um como elemento na situação que estrutura: sua existência é exaurida pelo efeito operacional que produz. Em outras palavras, há sempre o risco que o vazio poderia de alguma maneira emergir, como o colapso ou ausência de estrutura, através da própria operação que estrutura a situação. O espectro do vazio, consequentemente, só pode ser exorcizado através da operação de um segundo princípio estruturante. Essa operação unificará ou contara-como-um a operação que estrutura a própria situação, e o fará através da estruturação de todos os possíveis modos de arranjar seus elementos. Isso é, ela contara-como-um não os elementos da situação, mas os diferentes modos que esses elementos são agrupados em sub-conjuntos ou partes da situação. O estado ou meta-estrutura de um conjunto garante que a conta-para-um “se aplica à inclusão [das partes], assim como a primeira estrutura se aplica à pertença [dos elementos]”. O estado - e Badiou usa o termo em seu sentido político e ontológico ao mesmo tempo - é aquilo que discerne, nomeia, classifica e ordena as partes da situação. Em nosso exemplo de uma nação, o estado é evidentemente aquilo que organiza as partes da situação como residentes legais, contribuintes, soldados, motoristas licenciados, criminosos, etc. A preocupação do estado é sempre com as partes ou sub-conjuntos da situação porque, já que os elementos são somente aquilo que são, é só a configuração das partes da situação que pode abrir caminho para a transformação radical da situação. Em particular, o fato de que, apesar de que o vazio nunca pode aparecer como um elemento da situação, ele pode ainda assim aparecer como uma parte “inexistente” e indeterminada da situação; o estado é o que garante que esse sub-conjunto inexistente, mas que é universalmente incluído como, permaneça inexistente. Uma ontologia “conjuntista” confirma, portanto, como uma lei do ser-estruturado, um insight fundamental da análise marxista do Estado: a tarefa do Estado não tem a ver com os indivíduos per se (com os elementos) mas sim com os grupos ou classes de indivíduos (com as partes), e isso na medida que os elementos dessas classes já estão apresentados na própria situação. Que o Estado é sempre o estado da classe dominante significa que ele re-(a)presenta, ou arranja, os elementos existentes da situação de tal maneira a reforçar a posição de suas partes dominantes. O estado é, portanto, algo como uma resposta primordial à anarquia. A imposição violenta de uma ordem, poderíamos dizer, é uma característica intrínseca do ser enquanto tal. O estado mantém a ordem entre os sub-conjuntos, isso é, em última análise, ele agrupa os elementos de modo a mantê-los em seus lugares estabelecidos na situação. O estado não apresenta coisas, nem meramente copia a sua apresentação, mas, ao invés, “através de uma operação de conta inteiramente nova, re-presenta-os”, e os representa de modo a agrupá-los em categorias relativamente fixas e claramente identificáveis. Como o estado é ele mesmo o excesso imensurável das partes sobre os elementos objetivos ou ordenados, em uma situação “normal” ou “natural” existe realmente o “imensurável excesso de poder do estado” sobre os indivíduos que ele governa (a saber, o imensurável excesso de 2ℵ0 sobre ℵ0). Dentro da rotina situacional, do dia a dia, é estritamente impossível saber por quanto o estado excede seus elementos. Em circunstâncias normais, realmente não há real possibilidade de resistir “o estado de coisas como são”. Esse excesso é essencial para a eficiência das operações rotineiras do estado. Quaisquer que sejam as circunstâncias, a luta pela verdade ocorre no terreno primeiramente ocupado pelo estado. Essa luta tem a ver com um modo de conceber e realizar o excesso das partes sobre os elementos de uma maneira propriamente revolucionária (ou desordenada, ou inconsistente), uma maneira que permitirá que a igualdade aberta da livre associação se sobreponha à integração designada a preservar a unidade transcendental. Então, enquanto a distinção entre estrutura e meta-estrutura, ou entre apresentação e re-presentação, pode sugerir que a análise começa com o primeiro termo de cada par, na prática (isso é, de dentro de uma dada situação), os habitantes da situação sempre começam pelo segundo, com a normalidade regulada pelas classificações e discernimentos do estado. De dentro da situação é impossível apreender a individualidade “intrínseca” apresentada dos elementos que pertencem à situação. Para que tal apreensão tenha alguma chance de sucesso, é preciso primeiro que os mecanismos de classificação e discernimento que definem o estado sejam primeiro suspendidos. Tradução das páginas 94 à 97 do livro ‘Badiou: A Subject to Truth’, de Peter Hallward Bibliografia Hallward, Peter (2003) Badiou: A subject to truth Minnesota University Press