Universidade de Marília Programa de Pós-Graduação em Comunicação Marisol Gelamos Ruiz Morales METAMORFOSE DE ALICE: da literatura para o cinema e histórias em quadrinhos UNIMAR Marília 2011 Marisol Gelamos Ruiz Morales METAMORFOSE DE ALICE: DA LITERATURA PARA O CINEMA E HISTÓRIAS EM QUADRINHOS Dissertação apresentada ao curso de Pós Graduação da Universidade de Marília (UNIMAR) para obtenção do Título de Mestre em Comunicação, área de concentração: Mídia e Cultura sob orientação da Profª Dra. Heloisa Helou Doca. Marília 2011 Marisol Gelamos Ruiz Morales METAMORFOSE DE ALICE: da literatura para o cinema e histórias em quadrinhos Dissertação apresentada ao curso de PósGraduação da Universidade de Marília (UNIMAR) para obtenção do Título de Mestre em Comunicação, área de concentração: Mídia e Cultura, sob orientação da Profª Dra. Heloisa Helou Doca. Aprovado em 16 de dezembro de 2011 BANCA EXAMINADORA Profª Dra. Heloisa Helou Doca (Orientadora – UNIMAR) Avaliação: __________________ Assinatura: ___________________________ Profª Dra. Cleide A. Rapucci (Membro externo – UNESP/Assis) Avaliação: __________________ Assinatura: ___________________________ Profª.Dra. Rosangela Marçolla (Membro interno – UNIMAR) Avaliação: __________________ Assinatura: _______________________ METAMORFOSE ... Lembro-me de uma manhã em que eu havia descoberto um casulo na casca de uma árvore, no momento em que a borboleta rompia o invólucro e se preparava para sair. Esperei bastante tempo, mas estava demorando muito e eu estava com pressa. Irritado, curvei-me e comecei a esquentá-lo com meu hálito. Eu o esquentava, impaciente e o milagre começou a acontecer diante de mim, a um ritmo mais rápido do que o natural. O invólucro se abriu, a borboleta saiu se arrastando e nunca hei de esquecer o horror que senti então: suas asas ainda não estavam abertas e com todo o seu corpinho que tremia, ela se esforçava para desdobrá-la. Curvando por cima dela, eu a ajudava com o meu hálito, em vão. Era necessária uma paciente maturação, o desenrolar das asas devia ser feito lentamente ao sol; agora era tarde demais. Meu sopro obrigara a borboleta a se mostrar toda amarrotada antes do tempo. Ela se agitou desesperada e alguns segundos depois, morreu na palma da minha mão. Aquele pequeno cadáver é, eu acho, o peso maior que tenho na consciência. Pois, hoje, entendo bem isto: é um pecado mortal forçar as grandes leis. Temos que não nos apressar, não ficarmos impacientes, seguir com confiança e ritmo eterno. Nikos Kazantzaki AGRADECIMENTOS Foram muitos os que me ajudaram a concluir esse trabalho: Meus sinceros agradecimentos... ... a Deus, de forma especial, por ter dado força, saúde e vontade no decorrer de todo esse processo; ... ao meu esposo, pelo carinho, empenho, paciência e apoio tecnológico, que muito auxiliou para que a presente pesquisa se tornasse possível; ... aos meus filhos: Luiz, Laynara e Lyan pelo amor e compreensão no tempo que deixei de dispensar a eles em função das horas de estudo; e por viverem junto comigo a “minha” Alice; ... a minha mãe pelo cuidado com meus filhos nos meus momentos de ausência; ... à Prof. Dra. Heloisa Helou Doca que conduziu, com muito carinho, as orientações auxiliando na condução e no desenvolvimento do trabalho; ... ao Prof. Dr. Altamir Botoso e Profª. Dra. Rosangela Marsolla pelas valiosas sugestões na banca de qualificação; ... aos colegas de curso pelo companheirismo e troca de ideias nos grandes “almoços filosóficos” sempre acompanhados pela nossa professora Heloisa; ... aos secretários do Programa de Pós-graduação Andréia e Augusto, pela constante disposição, amizade e alegria em nos atender; ... à direção, aos professores e aos alunos que participaram deste trabalho; ... e a todos os que de alguma forma me ajudaram na realização deste trabalho. RITOS DE PASSAGEM Engenheiros do Havaí Medo de voltar pra casa Medo de sair de casa E encontrar tudo no mesmo lugar Medo de abrir os olhos Medo de fechar os olhos E enxergar o que não quer nem imaginar Quanto tempo faz? Uma semana atrás? No topo do mundo, na crista da onda Numa euforia de se estranhar Pouco tempo faz! Uma semana atrás! No topo do mundo, na crista da onda Um mergulho em busca de ar Tudo mudou, ela acordou Estava onde nunca quis estar Livre para ir e vir Para ficar onde está É outro modo de ver a queda Livre como sempre quis Livre como nunca imaginou Só outro modo de ver o muro desabar Tudo mudou, ela acordou Estava onde nunca quis estar Ela mudou, tudo acabou Ela está pronta pra recomeçar. RESUMO O presente trabalho objetiva analisar os processos de adaptação a partir do clássico literário Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carroll. O livro, envolto a criaturas peculiares, lógicas inexistentes, paródias de contos de fadas vitorianos, piadas típicas da época, produz um vasto repertório de possibilidades criativas para a contextualização em diferentes épocas, linguagens e mídias. A pesquisa realiza um estudo comparativo entre a narrativa literária, a fílmica e a história em quadrinhos, buscando mostrar que as diferentes adaptações e transmutações não necessitam de total fidelidade à obra de base, sendo submetidas às técnicas e processos de criação das diferentes linguagens. Para tanto, investiga-se os recursos narrativos dando especificidade a cada linguagem, propondo que as adaptações e transmutações estabelecem um diálogo intertextual, propiciando que sejam executadas em diferentes épocas e contextos alterando-se os conflitos existentes sem que se perca o fio condutor da obra de referência. Tal investigação baseou-se em autores como Linda Hutcheon, Gérard Genette, Syd Field, Marcel Martin, dentre outros. A metodologia utilizada fundamentou-se em pesquisa bibliográfica e estudos comparativos entre o texto de Lewis Carroll, o filme dirigido por Tim Burton e as histórias em quadrinhos, de Mauricio de Sousa. Palavras-chave: Lewis Carroll. Alice no país das maravilhas. Adaptação. Transmutação. Literatura. Cinema. história em quadrinhos. ABSTRACT The aim of this study is to analyze adaptation processes having as source Lewis Carroll’s Alice in Wonderland. The book brings along its peculiar characters, nonsense phrases, Victorian fairy tales, current jokes able to produce a huge repertory of creative possibilities to contextualization in different ages, languages and media. The research compares literary, filmic and comic book narratives, highlighting that the different adaptations and transmutations do not have to be faithful to the basic work following the techniques of the creation process of the distinct communicative languages. Thus, the investigation goes on the narrative resources specifying each kind of communicative language proposing that adaptation and transmutation establish an intertextual dialogue which allows that they can be used in such different periods and contexts just by altering the existing conflicts without missing the conductor line of the referred work. As theoretical support we used books by Linda Hutcheon, Gérard Genette, Syd Field, Marcel Martin, among others. The methodology was the bibliographical research and comparative studies among Lewis Carroll’s text, the movie directed by Tim Burton and the comic book written by Mauricio de Sousa. Key-words: Lewis Carroll. Alice in Wonderland. Adaptation. Transmutation. Literature. Film. comic book. SUMÁRIO METAMORFOSE............................................................................................................................. 4 AGRADECIMENTOS........................................................................................................................ 5 RITOS DE PASSAGEM ..................................................................................................................... 6 RESUMO ........................................................................................................................................ 7 ABSTRACT ...................................................................................................................................... 8 INTRODUÇÃO .............................................................................................................................. 14 CAPÍTULO 1 ................................................................................................................................. 18 1. O processo de construção textual ....................................................................................... 19 1.1. Fidelidade na adaptação .............................................................................................. 19 1. 2. O adaptador e a adequação às mídias ........................................................................ 28 CAPÍTULO 2 ................................................................................................................................. 34 2. A narrativa literária ............................................................................................................. 35 2.1. O autor ......................................................................................................................... 35 2.2. Espaço e tempo: leitura do mundo vitoriano .............................................................. 41 2.3. Trama e Conflito: a história de Alice no País das Maravilhas ...................................... 44 2.4. Personagens: personificação da obra .......................................................................... 51 2.5. O ilustrador e a narrativa não verbal ........................................................................... 60 CAPÍTULO 3 ................................................................................................................................. 67 3. Processos de adaptação ...................................................................................................... 68 3.1. A adaptação cinematográfica....................................................................................... 69 3.2. Narrativa cinematográfica ............................................................................................ 70 CAPÍTULO 4 ............................................................................................................................... 109 4. Histórias em quadrinhos ................................................................................................... 110 4.1 A narrativa das histórias em quadrinhos .................................................................... 111 4.2. A adaptação para histórias em quadrinhos............................................................... 115 CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................................ 154 REFERÊNCIAS ............................................................................................................................. 157 FONTES DIGITAIS ....................................................................................................................... 161 ANEXO – Fonte: Jornal da Cidade – Bauru – em 11/11/2011 ................................................... 162 LISTA DE FIGURAS (Figura 1 - Lewis Carroll) ........................................................................................................... 37 (Figura 2 - Christ College, em Oxford, Inglaterra) ..................................................................... 38 (Figura 3 - As irmãs Liddell – Edith, Lorina e Alice) ................................................................. 39 (Figura 4 - Martin Gardner e os personagens de Alice no país das maravilhas) ......................... 41 (Figura 5 - Alice aos 7 anos, aos 18, 38 e 80 anos) ..................................................................... 44 (Figura 6 - Alice com o líquido de diminuição) .......................................................................... 52 (Figura 7 - Coelho Branco) ......................................................................................................... 53 (Figura 8 - O rato e os animais)................................................................................................... 53 (Figura 9 – Poema) ...................................................................................................................... 54 (Figura 10 - Alice e o Dodô) ....................................................................................................... 55 (Figura 11 – Lagarta) .................................................................................................................. 56 (Figura 12 - O Gato Risonho / Figura 13 - O Gato Risonho) ...................................................... 57 (Figura 14 - O Chapeleiro Maluco) ............................................................................................. 57 (Figura 15 - A rainha de Copas com Alice) ................................................................................ 58 (Figura 16 - O Rei de Copas) ...................................................................................................... 59 (Figura 17 - O Grifo) ................................................................................................................... 60 (Figura 18 - John Tenniel – 1820-1914) ..................................................................................... 61 (Figura 19 - Carta de Tenniel a Dodgson)................................................................................... 63 (Figura 20 - Carta de Tenniel a Dodgson)................................................................................... 64 (Figura 21 - Carta de Tenniel a Dodgson)................................................................................... 64 (Figura 22 - Tim Burton)............................................................................................................. 74 (Figura 24 - Alice e seu pai Charles)........................................................................................... 76 (Figura 23 - Charles Kingsleigh – Pai de Alice)...................................................................... 76 (Figura 25 - Alice com sua mãe) ................................................................................................. 77 (Figura 26 - Margareth – irmã de Alice) ................................................................................. 78 (Figura 27 - Lowell – marido de Margareth) .......................................................................... 78 (Figura 30 - Hamish Ascot) ......................................................................................................... 79 (Figura 28 - Lord Ascot) ........................................................................................................... 79 (Figura 29 - Lady Ascot) ........................................................................................................... 79 (Figura 31 - Convidados à espera do pedido de casamento) ....................................................... 80 (Figura 33 - Retrato do pedido) ................................................................................................... 80 (Figura 32 - Pedido de Casamento) ......................................................................................... 80 (Figura 34 - Alice correndo ......................................................................................................... 81 (Figura 35 - Coelho aguardando Alice na árvore).................................................................. 81 (Figura 36 - Pegando a lagarta) ............................................................................................... 81 (Figuras 42 a 55 (1) - Sequência da queda de Alice pelo buraco) ............................................... 82 (Figuras 56 a 58 [1] - Chegada de Alice ao Jardim das Maravilhas) .......................................... 83 (Figura 59 [1] - Marmota, Tweedle-Dum, Tweedle-Dee e coelho) ............................................ 84 (Figura 60 [1] - Flores falantes) .................................................................................................. 84 (Figura 61 [1] - Mallymkum, a marmota) ................................................................................... 85 (Figura 62 [1] - Tweedle-Dum e Tweedle-Dee) ......................................................................... 85 (Figura 63 [1] - Coelho Branco) .................................................................................................. 86 (Figura 64 [1] - Floresta dos Cogumelos) ................................................................................... 87 (Figura 65 [1] - Fumaça envolvendo Absolem) Figura 66 [1] – Absolem) .......................... 87 (Figura 65 [1] - Fumaça envolvendo Absolem) Figura 66 [1] – Absolem) .......................... 87 (Figura 67 [1] – Capturandam) (Figura 68 1 – Rainha Vermelha) (Figura 69 [1] – Jaguadarte) .................................................................................................................................. 88 (Figura 67 [1] – Capturandam) (Figura 68 1 – Rainha Vermelha) (Figura 69 [1] – Jaguadarte) .................................................................................................................................. 88 (Figura 67 [1] – Capturandam) (Figura 68 1 – Rainha Vermelha) (Figura 69 [1] – Jaguadarte) .................................................................................................................................. 88 (Figura 70 [1] - Chapeleiro Maluco e Gato de Cheshire) (Figura 71 [1] – Rainha Branca) ........................................................................................................................................ 89 (Figura 70 [1] - Chapeleiro Maluco e Gato de Cheshire) (Figura 71 [1] – Rainha Branca) ........................................................................................................................................ 89 (Figuras 72, 73 e 74 [1] - Castelo da Rainha Branca) ................................................................. 90 (Figuras 75 a 83 [1] - Sequência de cenas de flashback de Alice) .............................................. 92 (Figuras 84 a 89 [1] - Sequência de cenas da batalha final) ........................................................ 93 (Figuras 90 a 101 [1] - Sequência de cenas finais)...................................................................... 95 (Figura 102 [1] – As gêmeas) (Figura 103 [1] - Tweedle-Dee e Twedle-Dum) ...... 97 (Figura 102 [1] – As gêmeas) (Figura 103 [1] - Tweedle-Dee e Twedle-Dum) ...... 97 (Figura 104 [1] – Mãe de Alice) (Figura 105 [1] – Rainha Branca) ........... 97 (Figura 104 [1] – Mãe de Alice) (Figura 105 [1] – Rainha Branca) ........... 97 (Figura 106 [1] – Mãe do noivo) (Figura 107 [1] – Rainha Vermelha) .................. 98 (Figura 106 [1] – Mãe do noivo) (Figura 107 [1] – Rainha Vermelha) .................. 98 (Figura 108 [1] – Rosas Brancas) (Figura 109 [1] – Alice menina pintando as rosas) ..... 98 (Figura 108 [1] – Rosas Brancas) (Figura 109 [1] – Alice menina pintando as rosas) ..... 98 (Figura 110 [1] – Alice no Salão Redondo) ................................................................................ 99 (Figura 111 [1] – Alice na floresta) ........................................................................................... 100 (Figura 112 [1] – Floresta de cogumelos) ................................................................................. 101 (Figura 113 [1] – Chapeleiro Maluco na batalha) (Figura 114 [1] – Lebre de Março) ... 101 (Figura 113 [1] – Chapeleiro Maluco na batalha) (Figura 114 [1] – Lebre de Março) ... 101 (Figuras 115 a 119 [1] – Sequência de criação do personagem Gato de Cheshire) .................. 102 (Figura 120 [1] – Jardim da Mansão dos Ascot) ....................................................................... 103 (Figuras 121 a 126 [1] – Cenas do filme Alice no País das Maravilhas) ................................. 104 (Figuras 127 e 128 [1] – Alice) ................................................................................................. 104 (Figuras 129 a 136 [1] – Cenas do filme Alice no País das Maravilhas) ................................. 105 (Figuras 137 e 138 [1] – Alice, seu pai e amigos) ..................................................................... 106 (Figuras 139 a 145 [1]) .............................................................................................................. 108 (Figura 146 [1] - Chamada da primeira versão para o cinema de Alice no País das Maravilhas) ................................................................................................................................................... 108 (Figura 147 [1] - Mauricio de Sousa) ........................................................................................ 115 (Figura 148 [1] - Mauricio de Sousa em Brasília [julho de 2003] durante abertura da exposição “História em Quadrões”. Na foto, Maurício mostra a reprodução de “Lição de Anatomia”, de Rembrant.)................................................................................................................................. 118 (Figuras 149 a 153 [1] - Quadrões Mauricio de Souza) - Fonte: www.historiasemquadroes.com.br ............................................................................................ 119 (Figura 154 [1] - Retrato de Alice Liddell) (Figura 155 [1] – Capa da revista Turma da Mônica) ..................................................................................................................................... 122 (Figura 154 [1] - Retrato de Alice Liddell) (Figura 155 [1] – Capa da revista Turma da Mônica) ..................................................................................................................................... 122 (Figura 156 [1] – Monicalice) ................................................................................................... 123 (Figuras 157 a 160 [1] - A queda na toca do coelho) ................................................................ 124 (Figura 161 [1] - Monicalice e o Coelho Branco) ..................................................................... 126 (Figura 162 [1] - O choro de Monicalice) ................................................................................. 127 (Figura 163 [1] - Explicações do Coelho Branco) .................................................................... 128 (Figuras 164 e 165 [1] - Monicalice e o Dodô) ......................................................................... 129 (Figuras 166 e 167 [1] - Monicalice, o Papagaio e o Pato) ....................................................... 130 (Figura 168 [1] - Monicalice à procura do caminho) ................................................................ 131 (Figura 171 [1] - O Gato) .......................................................................................................... 134 (Figuras 172 a 177 [1] - Sequência de Quadros referentes ao Gato)......................................... 139 (Figuras 178 a 183 [1] - Sequência de Quadros referentes ao Chapeleiro Maluco) .................. 141 (Figura 184 [1]- O Grifo e a Tartaruga Falsa) ........................................................................... 142 (Figuras 185 a 187 [1] - Sequência de Quadros sobre as Cartas) .............................................. 144 (Figura 188 [1] - Rainha Vermelha) .......................................................................................... 145 (Figuras 189 a 193 [1] - Jogo de Futebol entre Cartas) – Fonte: www.livrosgratis.rg.com.br.. 146 (Figura 194 [1] - Sequência de desenhos da Rainha Vermelha) ............................................... 147 (Figuras 195 e 196 [1] - A Vela Primordial) ............................................................................. 148 (Figuras 197 a 199 [1] - De volta ao Limoeiro) ........................................................................ 151 14 INTRODUÇÃO A necessidade do homem em se comunicar fundamenta-se na ideia de que o homem é um ser social e seu desenvolvimento se dá a partir da vida em grupo. Sua identidade forma-se na relação com o OUTRO. Portanto, entende-se o homem como produto e produtor da cultura da sociedade em que está inserido (VELHO, 2004). Observa-se a necessidade do mesmo em usar diferentes instrumentos no processo de comunicação. Ora para alavancar seu desenvolvimento, ora para comunicar-se de forma mais efetiva com o OUTRO, ora para repassar suas ideias e entendimento do mundo para as outras gerações. Dentro desse contexto, surge a construção da oralidade ou, pode-se dizer, do texto oral. A transmissão oral de indivíduo a indivíduo foi a primeira manifestação da construção textual. Isso pelo fato da contação de histórias ser a prática mais antiga entre os homens e que permanece até nossos dias. Por meio dessa, transmitiu-se e ainda transmite situações vividas, imaginadas e contidas no dia a dia da evolução humana. Por meio desse tipo de comunicação, a cultura do grupo é transmitida assim como os modos de pensamento, crenças e valores internalizados. A partir dessa oralidade, crianças e adultos levam, gravadas em sua memória, toda uma gama de ideias e desejos que posteriormente foram sendo grafadas nas inúmeras literaturas também chamadas de clássicos. Tornaram-se clássicos porque considera-se que são imortais. Transportam tempos e ultrapassam os muros de diferentes sociedades, galgando o imaginário popular, coletivo e individual. Estas ideias, inicialmente orais e posteriormente grafadas, foram, na realidade, recontadas por escrito sendo que dessa forma, cada qual era organizada de acordo com a sociedade e os acontecimentos vividos pelo escritor. Teve início a chamada Literatura. Literatura; essa palavra é um desses termos vagos tão frequentes em todas as línguas [...] a literatura designa em toda a Europa um conhecimento de obras de gosto, um verniz de história, de poesia, de eloquência, de crítica [...] (VOLTAIRE, apud AGUIAR E SILVA, 1988, p.4). 15 Pensando-se a Literatura de forma global, pode-se inferir a ela o caráter de texto bem escrito, aquele que trabalha a linguagem de forma criativa utilizando os interstícios para o enriquecimento da leitura proposta. Sabe-se que esta é criada dentro de um contexto social, de uma determinada cultura, baseando-se no olhar do escritor. Olhar esse que determina a época e a maneira em que ela é produzida. Embora o autor do texto contextualize-o de acordo com seu ponto de vista, devese considerar que o leitor terá outra recepção de acordo com o seu próprio entendimento e sua cultura social. A cada leitura, dependendo do contexto e da época vivida, tem-se uma ideia diferenciada do texto lido. Mesmo sem mudar o leitor, apenas lendo-se o texto em diferentes épocas, pode-se observá-lo e entendê-lo de forma diferenciada. Exemplificando, o formato do texto não muda, não há adaptação pelo autor, porém a leitura modifica-se pelo fato do leitor estar em um outro momento de sua vida. Entendese, então, que o leitor é peça fundamental de todo o processo. Dessa forma, este deve ser considerado no ato de produzir uma narrativa. Além do contexto sociocultural e do leitor, no processo de construção textual não se pode deixar de situar a questão da interligação entre literatura e imagem. A relação entre a palavra e a imagem se faz notória desde quando os hieróglifos tornaram-se símbolos da escrita egípcia. Pode-se observar também essa relação nas iluminuras da Idade Média, em que os livros escritos a mão, eram decorados minuciosamente com pinturas. Esse paralelismo entre as letras e as artes plásticas, em geral, atinge o seu ponto culminante nos séculos XV e XVI, respectivamente. Entre as inúmeras preocupações dos humanistas italianos, destaca-se o conselho de Leone Battista Alberti (1404-1472) aos pintores, sugerindo uma familiarização com os poetas e retóricos, que resultasse no recebimento da inventio ou no estímulo à descoberta de temas pictóricos. (CORTEZ, 2002, p. 355). Tem-se a intertextualidade sendo aplicada. Pensa-se ser o início dos processos adaptativos onde a escrita transforma-se em pictórica e a comunicação dá-se por meio da sinésica (ciência da gestualidade) por meio da linguagem visual. 16 Como é de todos conhecido, está dentro do centro de interesse do homem, a escrita e a imagem. Porém, na sociedade contemporânea, essa relação intensificou-se extraordinariamente. A partir dessa intensificação, outras linguagens foram sendo criadas e as obras, anteriormente literárias, foram sendo adaptadas não somente à pintura, mas ao cinema, televisão, teatro, história em quadrinhos e outras mídias, contextualizando ainda mais as histórias a serem contadas. Dentro dessa perspectiva, o processo de adaptação e transmutação torna-se notório para que, a partir deste, invista-se em novas linguagens que facilitem a recepção, interpretação e interpelação do receptor. O presente trabalho procura enfocar as formas de transposição de linguagens considerando que o autor de uma obra literária tem a sua disposição a riqueza da linguagem verbal, o cineasta trabalha com outros recursos como a imagem em movimento, a iluminação, a linguagem oral (diálogos), sons, ruídos, músicas, movimentos de câmera, enquadramento, plano, ângulos, cores entre outros elementos. Já o autor de histórias em quadrinhos possui outros instrumentos como a imagem do desenho figurativo, expressões corporais e faciais, intensidade de cores, onomatopeias e outros recursos. Com recursos diferenciados certamente a obra que se originará apresentará novas características mesmo que partindo do mesmo objeto literário de estudo. Para que se desenvolva esse estudo, elabora-se o presente trabalho em três capítulos organizados de acordo com os seguintes assuntos, que a seguir se comentam. No primeiro capítulo abordou-se o processo de construção textual focando-se a questão da fidelidade na adaptação, a função do adaptador objetivando-se compreender quem ele é, qual seu papel no processo e os diferentes pontos de vista. Abordou-se também, a importância da adaptação em diferentes mídias. Para isso, buscou-se a pesquisa em teorias sobre literatura e processo de adaptação utilizando principalmente autores como Hutcheon, Gérard Genette, Syd Field, dentre outros. No segundo capítulo, investigou-se o livro original Alice no país das Maravilhas de Carroll, observando-se o contexto em que este foi escrito, a época dos acontecimentos, a leitura de mundo feita pelo autor, os personagens e suas origens e as características da obra no contexto social e cultural vivido pelo autor. 17 Para essa pesquisa, utilizou-se como literatura base Gardner apud Carrol (2002) em Alice edição comentada, auxiliando na compreensão dos diferentes aspectos envoltos a diversidade dessa narrativa. No terceiro capítulo, analisou-se a adaptação as mídias especificando-se a narrativa cinematográfica e a história em quadrinhos. Para essa análise, utilizou-se como objeto de estudo o filme de Tim Burton e a história em quadrinhos, estilo mangá, de Mauricio de Souza. A pesquisa desse capítulo terá como foco, nas duas adaptações, a forma como se dá a relação tempo/espaço, a simbiose de elementos, e os recursos técnicos utilizados em cada obra. O presente trabalho não tem a pretensão de esgotar o assunto, porém procura compreender os processos de adaptação de uma obra literária para outras formas de comunicação partindo do pressuposto de que a adaptação é uma forma de contextualizar uma obra e, até mesmo, dar-lhe maior visibilidade a partir de outras linguagens que poderão conduzir diferentes receptores ao acesso ao texto de partida. 18 CAPÍTULO 1 19 1. O processo de construção textual 1.1. Fidelidade na adaptação Segundo Field (2001), em seu livro Screenplay, posteriormente traduzido para o português por Álvaro Ramos, Manual do Roteiro, “adaptar” significa transpor de um meio para outro. A adaptação é definida como a habilidade de “fazer corresponder ou adequar por mudança ou “ajuste” – modificando alguma coisa para criar uma mudança de estrutura, função e forma, que produz uma melhor adequação (FIELD, 2001, p. 174). Uma adaptação deve ser vista como original partindo-se da concepção de que se utilizará um livro, um artigo, uma peça, uma música como fonte, ponto de partida. Dessa forma, pode-se narrar fatos utilizando-se diferentes formas de registro. Este pode ser um sistema de códigos verbais, como é o caso da literatura, ou códigos audiovisuais, como no cinema. Também se utilizam códigos verbais e visuais como o caso das histórias em quadrinhos. Exemplifica-se o fato pensando na literatura como narrativa por meio do código verbal apoiado no alfabeto gráfico. O cinema utiliza-se de sucessão de imagens e o uso de sons, código audiovisual. As histórias em quadrinhos unem o verbal, através da grafia e o visual, através dos desenhos. Utiliza-se também dos sons através de onomatopeias. Os três tipos de narrativas citados têm estruturas familiares, apesar da utilização de códigos diferentes. Isso se dá pelo fato de que uma narrativa é uma forma de organizar o texto. Essa organização pode ser por palavras, como no caso dos livros; pode ser por movimentos de atores, como no teatro ou cinema; por movimentos de dança, como o balé, como em desenhos, como no caso dos quadrinhos. Até mesmo a mímica torna-se uma narrativa a partir do momento em que transmite, de forma organizada, a mensagem sugerida, ou seja, a fala e a escrita não são os únicos sistemas de comunicação. O que se torna conclusivo é o fato de existirem narrativas em qualquer parte do mundo e nas mais variadas culturas. Estas se definem pelos recursos utilizados de 20 acordo com o período histórico, a sociedade ou a cultura em que estão inseridas. Podese afirmar que a comunicação é uma prática cultural. Sob esse olhar, não se pode deixar de pensar nas estruturas de linguagens. Estas podem ser verbais ou não verbais sem que se descaracterizem como formas comunicativas. A importância de entender essas manifestações coexiste com o fato de que em processos de adaptações, as narrativas são manifestadas através de linguagens diferenciadas, porém complementares. O texto de partida pode utilizar-se de linguagem verbal, porém no processo de adaptação pode-se necessitar de recursos que incluem a linguagem não- verbal para uma melhor adequação do quadro a ser configurado. [...] Essa estrutura informacional não precisa ser, nem é exclusivamente verbal. O traje usado para cobrir o corpo, o meio de transporte adotado, não são de ordem estritamente funcional, ao contrário, dizem, sem palavras, nossas preferências, explicitam nossos gostos. [...] Esses signos falam sem palavras, são linguagens não-verbais altamente eficientes no mundo da comunicação humana (FERRARA, 1986, p.7). Segundo Lucrécia Ferrara, a apresentação não-verbal torna a ideia de quem o vê desvencilhada da linearidade e lógica porque não é imposto um significado, este lhe é atribuído dependendo dos sentidos do leitor. [...] Desvencilhando-se da centralidade lógica e consequentes linearidade e contiguidade do sentido, o texto não-verbal tem uma outra lógica, onde o significado não se impõe, mas pode se distinguir sem hierarquia, numa simultaneidade; logo, não há um sentido, mas sentidos que não se impõem, mas que podem ser produzidos (FERRARA, 1986, p.16). Da mesma forma como a leitura do não-verbal constitui-se em diferentes representações mentais, de acordo com o momento e a sociedade do leitor, a linguagem verbal pode traduzir-se em significados diferenciados. Para Peirce (1977, p. 159-60) citado em Ferrara (1986, p. 17), uma palavra possui um significado para nós, na medida em que somos capazes de utilizá-la. Essa utilização se faz mediante um conjunto de associações referentes ao universo social e cultural do indivíduo. 21 Dessa forma, uma mesma narrativa pode ser (re)contada em diversos meios sem perder suas características básicas através do processo de adaptação. As diferenças começam no transportar o imaginário da literatura para a imagem concreta por meio de recursos técnicos, inseridas em diferentes tipos de linguagens. Necessita-se para um melhor entendimento, exemplificar da seguinte forma a organização desse processo: a literatura utiliza palavras, frases; a pintura, cores e/ou nuances de luzes quando representa algo monocromático; a música, som; o cinema, palavras, luzes, sons e imagens em movimento. Observa-se que a sociedade contemporânea está impregnada com obras adaptadas. As adaptações estão em todos os lugares hoje em dia: nas telas da televisão e do cinema, nos palcos do musical e do teatro dramático, na internet, nos romances e quadrinhos, nos fliperamas e também nos parques temáticos mais próximos de você. (HUTCHEON, 2011, p. 22). Segundo Hutcheon, as adaptações são tão fundamentais à cultura ocidental que parecem confirmar a assertiva de Walter Benjamin (1992, p.90), segundo o qual “contar histórias é sempre a arte de repetir histórias”. Segundo a Gazeta do povo on-line, em relação ao cinema, o processo de adaptação propriamente dito, iniciou-se somente a partir do cinema falado, na década de 30. A partir daí Hollywood contratou escritores como William Faulkner e Scott Fitzgerald, para a escrita de roteiros geralmente baseados em literaturas. Mesmo assim, a iniciativa não foi no todo bem sucedida. Na mesma década, a França também iniciou o processo de adaptação realizando filmes baseados em clássicos da literatura francesa. A partir da década de 60 e 70 é que se realizou, por Pier Paolo Pasolini, adaptações que despontaram como “inspiradas”. Essas adaptações fizeram parte de seu projeto “Cinema de Poesia”. Na mesma época, o diretor Stanley Kubrick, dos Estados Unidos, adaptou obras que ficaram famosas como Laranja Mecânica (A Clockwork Orange, 1971) e 2001: Uma Odisseia no Espaço (2001: A Space Odyssey, 1968) entre outros. A partir de 1980, o processo de adaptação havia se consolidado em suntuosos filmes de época. Estes eram adaptações de literaturas clássicas, populares e até mesmo 22 de histórias em quadrinhos (HQ) como o caso do Homem-Aranha, Super Man e Batman. Histórias que anteriormente não chamavam atenção, aos poucos ganhavam terreno com novas versões como Orlando, de Virginia Woolf. Não se pode deixar de citar a adaptação muito comentada intitulada As horas (The Hours, 2002). O filme baseou-se no livro de Michael Cunningham que, por sua vez, inspirou-se no romance “Mrs. Dalloway” de Virginia Woolf. A relação entre as artes não se dá apenas em uma mão única, dá-se, ao contrário, de várias formas. A comparação entre a literatura e o cinema pode ilustrar a dimensão intertextual das artes, sendo que filmes também podem gerar romances, como é o caso de O Piano (1993). Por outro lado, o cinema também pode redimensionar a importância de obras literárias menores, como na adaptação de Uma janela indiscreta, filme dirigido por Alfred Hitchcock em 1954. O filme se tornou um clássico do cinema enquanto que o conto homônimo de Corner Woolrich (1942) foi praticamente esquecido. O Auto da Compadecida (minissérie adaptada inicialmente do teatro para a TV) geram filmes para o circuito comercial (CORSEUL, 2009, p. 371). Sabe-se que não foi o cinema que inventou a adaptação. Esta se faz presente desde os antigos gregos. Shakespeare adaptava ao formato de teatro histórias que tinham origem histórica ou literária. Posteriormente suas peças também foram adaptadas à ópera. Mesmo dentro desse contexto, quando há o processo de adaptação de uma obra literária para outros instrumentos de comunicação, têm-se comentários a respeito da fidelidade nesse processo. Alguns críticos vêem as adaptações como secundárias e inferiores. Em 1926, Virginia Woolf comentou a arte do cinema lamentando-se por simplificar a obra literária em sua transposição para a mídia visual. Considerou o filme um “parasita” e a literatura sua “presa” e “vítima” (WOOLF, 1926, p.309 apud HUTCHEON, 2011, p. 23). A autora se referia ao problema de como transportar o texto literário para imagens sem que o mesmo se torne apenas ilustrações da narrativa original, sem que transmita também os sentimentos. Autores renomados possuem opiniões diversas sobre a questão da adaptação. Segundo André Bazin, 23 [...] A adaptação, considerada mais ou menos como um mal vergonhoso pela crítica moderna, é uma constante da história da arte. Malraux mostrou aquilo que o Renascimento pictórico devia, na sua origem, à escultura gótica. Giotto pintava em alto-relevo: Michelangelo voluntariamente renunciou ao recurso da pintura a óleo, dado que o afresco convinha mais a uma pintura escultórica. E esta foi apenas uma etapa logo superada na direção de uma “pintura pura”. Mas se dirá por isso que Giotto é inferior a Rembrandt? (BAZIN, 1999, p.55). Assim posto, as adaptações não são cópias e cada autor tem autonomia para transitar diferentes possibilidades em sua obra. Esse fato não descaracteriza um em relação a outro. Em seu livro Uma teoria da adaptação, Linda Hutcheon questiona as críticas, sobre as adaptações, por meio de indagações precisas. Se as adaptações são, por definição, criações tão inferiores e secundárias, por que estão assim presentes em nossa cultura e, de fato, em número cada vez maior? Por que, de acordo com as estatísticas de 1992, 85% de todos os vencedores da categoria de melhor filme no Oscar são adaptações? Por que as adaptações totalizam 95% de todas as minisséries e 70% dos filmes feitos para a TV que ganham Emmy Awards? (HUTCHEON, 2011, p. 24). Pode-se notar que, as adaptações para o cinema, causam mais indignação e críticas do que para outros meios. Pensa-se ser pelo fato das mesmas terem textos literários como principal fonte. Além desse fato, os riscos com adaptações são menores do que com textos escritos diretamente para o cinema. Percebe-se que as adaptações são trabalhadas sobre clássicos que foram tidos como fenômeno na literatura e, portanto, há um risco menor destes serem fadados ao fracasso. O que historicamente se observa é que no início do cinema os argumentos chamados originais, aqueles escritos para o cinema, eram os mais comuns. Com o passar dos tempos e a evolução do cinema, as adaptações foram crescendo em número em relação aos originais. Mesmo havendo um crescimento no processo adaptativo, sabe-se que este exige um estudo detalhado do fenômeno a ser adaptado incluindo as especificidades de cada mídia. 24 Quanto ao cinema, por exemplo, levantam-se características presentes na maioria dos filmes que garantem a continuidade de um processo narrativo segundo suas especificidades. Estas são divididas da seguinte forma: Técnicas: Sistema de iluminação, com três focos de luz e com iluminação difusa (frontal, contraluz de ângulo oposto e luz oblíqua); edição/montagem analítica (tende a obedecer ao princípio da continuidade do espaço); trilha sonora; enquadramento centrado da imagem. Esta e outras técnicas fazem parte de um estilo próprio do cinema clássico hollywoodiano; Sistemas ou categorias: [...] as técnicas cinematográficas fazem sentido e têm um significado quando elas desempenham certas funções. Por exemplo, a fusão entre diferentes tomadas pode indicar passagem de tempo. [...] as diferentes técnicas cinematográficas como: iluminação, som, montagem e composição da imagem tendem a obedecer ao sistema de representação contínua do espaço, sem cortes abruptos, de forma que os espectadores possam reconstruir o espaço e o tempo da história narrada (CORSEUIL, 2009, p. 374). Sempre que se pensa em um processo de adaptação, declara-se que a mesma possui uma ligação com o texto de partida. Mesmo tendo a adaptação um novo olhar e estando em um novo contexto social e cultural, faz-se necessário manter o fio condutor da obra na relação existente entre ambas. Isso se dá pelo fato de que as adaptações devem ser mostradas nas diferentes mídias de forma que o receptor consiga situar-se na história. Quando dizemos que a obra é uma adaptação, anunciamos abertamente sua relação declarada com outra(s) obra(s). É isso que Gerard Genette (1982, p.5) entende por um texto em “segundo grau”, criado e então recebido em conexão com um texto anterior. Eis o motivo pelo qual os estudos de adaptação são frequentemente estudos comparados. Isso é bem diferente de dizer que as adaptações não são trabalhos autônomos e que não podem ser interpretados como tais; conforme vários teóricos têm insistido, elas obviamente o são (HUTCHEON, 2011, p. 27). Por serem trabalhos autônomos, não se operam com a cópia do texto de partida. Cada adaptação tem sua vida própria baseada no contexto em que está inserida, na época em que será transmitida, no veículo que o fará e no contexto de vida do adaptador. 25 Outro fator determinante do formato da adaptação principalmente em relação ao cinema, é a necessidade de operar dentro de um determinado orçamento. Os recursos disponíveis para a adaptação dependem do fator monetário. Esse fator pode influenciar diretamente sobre a forma como determinada obra será adaptada. Ela pode ser ampliada ou simplificada, tendo um tempo maior ou menor de execução dependendo do orçamento. Portanto, ela será única, individual e criativa ao passo que virá a ter uma nova roupagem, esta específica ao veículo utilizado, ao tempo e ao orçamento destinado a mesma. Existe uma cultura de adaptações “fidedignas” que pode ser extremamente problemática, uma vez que muitos filmes adaptados esvaziam-se de significado próprio, quando tendem simplesmente a repetir diálogos intermináveis. [...] Ocorre que tais filmes nem sempre atualizam os temas tratados nos textos literários, dando a impressão de que o filme é um teatro filmado, inerte e sem expressão própria (CORSEUIL, In: BONNICI; ZONIN, 2009, p.369). Torna-se difícil estabelecer juízo comparativo entre a literatura e sua adaptação a outro meio. O próprio fato de ser uma adaptação implica algum tipo de modificação do conteúdo anterior. Em outras palavras, um romance é um romance, uma peça de teatro é uma peça de teatro, um roteiro é um roteiro. Adaptar um livro para um roteiro significa mudar um (o livro) para outro (o roteiro), e não superpor um ao outro (FIELD, 1995, p. 174). Pode-se dizer que as versões adaptadas tentam aprimorar a literária, com a utilização de recursos próprios, a fim de auxiliar o receptor na compreensão da mesma. A adaptação pode ser executada por motivos diversos, tanto positivos quanto críticos. Pode-se comprovar essa ideia com os comentários de Norton e Mcdougal (apud HUTCHEON, 2011, p. 28 e 29). E há claramente várias intenções possíveis por trás do ato de adaptar: o desejo de consumir e apagar a lembrança do texto adaptado, ou de questioná-lo, é um motivo tão comum quanto a vontade de prestar 26 homenagem, copiando-o. Adaptações como as refilmagens podem inclusive expor um propósito misto: “homenagem contestadora” (GREENBERG, 1998, p.115), edipianamente ciumenta e, ao mesmo tempo, veneradora. Conforme o dicionário de língua portuguesa Soares Amora (2009), adaptação é o ato ou efeito de adaptar-se. Têm-se, ainda, os significados de adaptar como ajustar, amoldar, acomodar, harmonizar, adequar. Observando-se esses aspectos, pode-se contemplar a adaptação como uma transposição, uma mudança, uma interpretação da obra original. Esta pode ser vinculada entre diferentes mídias – da narrativa literária para a cinematográfica, para a televisiva, para a história em quadrinho, para a tela pictórica. Ou mesmo o processo inverso pode ser obtido – da tela para a literatura. A adaptação requer um processo criativo, um novo olhar, um interpretar e solidificar de ideias e fatos. Portanto, segundo Hutcheon (2011, p. 31), a adaptação pode ser descrita como uma transposição de uma obra para outra; um ato criativo e interpretativo; um engajamento intertextual com a obra original. Assim, a adaptação é uma derivação que não é derivativa, uma segunda obra que não é secundária – ela é a sua própria coisa palimpséstica1. Pode-se afirmar, baseando-se nos autores já mencionados, que para que se pense em adaptação faz-se necessário pensar nas especificidades de cada meio, além das similaridades das narrativas adaptadas. Tomando por referência o autor Vanoye (apud Brito, 2006, p. 20), devem-se considerar alguns aspectos quanto ao processo adaptativo para outras mídias. Em relação ao texto, os diálogos se modificam, resumem-se, concentram-se, ampliam-se ou se eliminam. Quanto à organização, a estrutura dramática pode desaparecer em parte ou com significados equivalentes. Quanto ao espaço e o tempo, esses podem sofrer uma transformação estabelecendo novas coordenadas. Isso se dá pelo fato da história que foi o ponto de partida, ser o ponto inicial do processo adaptativo. A partir deste, busca-se diferentes elementos para incluir-se no novo processo de criação – a adaptação. Elementos motivadores como um novo 1 Do grego “palimpsestos” = riscar de novo. Nomenclatura dada por Gérard Genette. 27 contexto, símbolos, imagens e personagens movidos por outro movimento de olhar redirecionando a ação da história. Segundo Hutcheon (2011), a adaptação pode ser definida a partir de três perspectivas distintas, porém inter-relacionadas: como entidade ou produto formal, como processo de criação e como processo de recepção. Enquanto entidade ou produto formal, a adaptação pode ser vista como uma transposição de uma ou mais obras. [...] Essa “transcodificação” pode envolver uma mudança de mídia (de um poema para um filme) ou gênero (de um épico para um romance), ou uma mudança de foco e, portanto, de contexto: recontar a mesma história de um ponto de vista diferente. [...] Também pode significar uma mudança, em termos de ontologia, do real para o ficcional, do relato histórico ou bibliográfico para uma narrativa ou peça ficcionalizada (HUTCHEON, 2011, p. 29). Quanto ao processo de criação, a adaptação sempre envolve uma (re)interpretação, podendo ser chamado de apropriação ou recuperação. [...] Há sempre um recuperador paciente para cada apropriador expulso por um oponente político. Priscila Galloway, adaptadora de narrativas míticas e históricas para jovens e crianças, disse que se sente motivada pelo desejo de preservar relatos que são valiosos, mas que pouco comunicarão a um público novo sem certa “reanimação” criativa (GALLOWAY, 2004), e essa é a sua tarefa. As adaptações cinematográficas africanas de lendas orais tradicionais também são vistas como uma maneira de preservar uma rica herança num modo visual e auditivo (CHAM, 2005, p. 300 apud HUTCHEON, 2011, p. 30). Partindo da perspectiva do processo de recepção, a autora considera a adaptação como uma forma de intertextualidade e as mesmas se colocam como palimpsestos pela lembrança de outras obras ressoando como repetições com variações. De forma resumida, pode-se dizer que o processo de adaptação torna-se uma transposição de obras, ato criativo e interpretativo e um engajamento intertextual com a obra adaptada. [...] Com as adaptações, parece que desejamos tanto a repetição quanto a mudança. Talvez seja por isso que, aos olhos da lei, a adaptação é uma “obra derivativa” – isto é, baseada numa ou mais 28 obras preexistentes, porém (HUTCHEON, 2011, p. 31). “reencenada, transformada”. Necessita-se que haja por meio do receptor uma identificação ou identidade com o fio condutor da história para que haja o engajamento do mesmo com a narrativa. Porém, novos elementos podem surpreender o receptor levando-o a transpor limites de sua imaginação, contextualizar esses mecanismos e “viajar” na exploração de algo novo. A empatia entre o receptor e o fenômeno narrado pode vir por meio de uma nova ordem, um novo contexto, um ritmo de tempo e espaço transformados pela nova mídia que executa a adaptação. Da mesma forma que não é possível que haja uma tradução literal, não é possível um mesmo processo de interpretação por parte do adaptador. Segundo Hutcheon (2011), a novidade está no que se faz com o outro texto. O adaptador trabalha com autonomia e a partir dessa exige-se que haja criatividade e habilidades suficientes para tornar o texto adaptado – novo. A adaptação deve ser vista como uma nova obra que começou com a narrativa “original”, teve seu ponto de partida nela, porém, desenvolve uma nova linguagem própria para o meio de transmissão que será utilizado. Pode-se constatar, dessa forma, a importância do adaptador. Este colocará em outro formato a obra a ser adaptada, oferecendo experiências de vida para a história. 1. 2. O adaptador e a adequação às mídias O adaptador pode ser o próprio autor da obra original, como o roteirista de um determinado filme, o escritor de um musical, o compositor, o diretor, ou seja, a adaptação torna-se um processo coletivo. Esse processo depende de para qual mídia o fenômeno está sendo adaptado. A adaptação de uma narrativa necessita estar ligada às especificidades do gênero e também aos intertextos do adaptador, considerando seu temperamento, talento, história e intenções. A complexidade em se relatar quem é o adaptador está justamente no fato de que todo o processo de adaptação tem a intervenção de vários profissionais. O roteirista no papel inicial, cria ou recria a história a ser novamente interpretada por outros. Os atores, 29 os figurinistas, os musicistas, o cenógrafo e outros profissionais envolvidos no processo, tornam-se co-adaptadores pelo fato de, a partir do roteiro, ter de interpretar a forma de utilizá-lo diante do seu trabalho, expectativa e individualidade. No caso do cinema, por exemplo, o diretor torna-se o responsável pelo formato e pelo impacto que a obra causará. Sob esse olhar, esse também torna-se adaptador por não estar sujeito a outro autor. Seu trabalho transpõe essa ideia a ponto de produzir uma obra radicalmente diferente da chamada original, impondo suas características sem eximir o fio condutor da narrativa. As artes formativas como o cinema são, de fato, definitivamente colaborativas: como no caso da construção de uma catedral gótica, há vários trabalhadores e, por conseguinte, pode-se dizer, vários adaptadores. Esses vários adaptadores, entretanto, situam-se a diferentes distâncias do texto adaptado. (HUTCHEON, 2011, p.121, 122). Segundo Field (1995), roteirista autônomo, escritor-produtor para a David L. Wolper Productions e chefe do departamento de histórias na Cinemobile Systems, a melhor maneira de se fazer uma adaptação é não sendo fiel ao original. Um livro é um livro, uma peça é uma peça, um artigo é um artigo, um roteiro é um roteiro. Uma adaptação é sempre um roteiro original. São formas diferentes. Simplesmente como maçãs e laranjas. (FIELD, 1995, p. 185). Pode-se pensar o roteiro como sendo o estágio intermediário entre a obra a ser adaptada e a adaptação propriamente dita. Ele é o esqueleto, a descrição de como deverá ser a obra. Porém, não é o produto final porque não se encontra completo. Compara-se o roteiro a uma bula, ou seja, instruções para a realização da obra final. A partir dela, muitos elementos são acrescentados, muitos colaboradores são utilizados, ampliando-se ideias. O adaptador tem sobre seus ombros a difícil arte de traduzir em outras linguagens, principalmente em imagens, as ideias que foram elaboradas com seu sentido em palavras. Essa experiência exige um grau de concentração elevada que transpõe os limites da vida real. 30 Quando você está passando pela experiência de escrever, está perto de seus entes queridos em corpo, mas sua mente e concentração estão a milhares de quilômetros de distância. [...] você não pode perder a concentração para lidar com petiscos, refeições, lavanderia e compras que faz normalmente (FIELD, 1995, p. 145). Para que a adaptação faça sentido aos leitores, necessariamente ela precisa ter feito sentido para o adaptador. Este elabora um difícil trabalho de ir além da leitura superficial de uma obra para se embrenhar em todos os seus aspectos. Faz-se necessário a compreensão da cultura estabelecida, dos costumes da época, das características pessoais de cada personagem e do envolvimento destes na trama. A partir desse aprendizado, imprimem-se novos elementos ampliando o contexto dependendo da criticidade e criatividade do adaptador. Pensando-se que o adaptador elenca uma obra que traz todos os elementos citados acima e a partir dela considera a chamada “globalização cultural”, cada vez mais presente em nossos dias, faz-se necessário que este inclua uma mudança de linguagem, muitas vezes de tempo histórico, de associações culturais ocorridas com o passar dos tempos. O adaptador torna-se um mediador. Enquanto adaptador sua tarefa é a de aproximar a obra aos espectadores contemporâneos à época em que esta será transmitida utilizando, para isso, um novo formato. A responsabilidade de mediar algo está delimitada justamente no aguçar da curiosidade para aquele novo texto, tendo-se em mente que esta pode ser buscada posteriormente em sua íntegra. Também se trabalha com a possibilidade de enriquecer culturalmente ou levar uma visão geral da cultura envolvida na obra. A escritora Adriana Falcão, em entrevista publicada na revista Panorama Editorial, fala dos caminhos e descaminhos da adaptação de obras literárias para outras linguagens. Ela comenta que ideia é ouro e ter num produto um monte de ideias é fantástico, uma inspiração que pode ser transposta para uma outra linguagem. Segundo ela, mesmo que o adaptador faça algo fiel ao livro, ao transformá-lo em filme, peça ou programa de televisão, está criando uma nova obra diferenciando o resultado. Pode-se notar que a leitura torna-se um exercício individual e que a partir dela cada leitor cria uma imagem mental própria. 31 A adaptação segue esse mesmo princípio, sendo que o adaptador pode ter sua atenção voltada a um determinado elemento do texto e dar a este uma ênfase independente do contexto original. Uma imagem refletida no imaginário do adaptador pode representar uma história não contada que merece um novo foco, um novo olhar. Reforça-se a ideia de que o processo de adaptação envolve a leitura do adaptador assim como suas habilidades e criatividade. Sob esse olhar ainda trabalha-se com a questão de que a tarefa do roteirista é muito ingrata, sendo o escritor de uma história e da sequência narrativa da adaptação e, principalmente, no caso do cinema, o diretor acaba por ser considerado o autor. O roteiro não é a última fase de uma aventura literária, mas a primeira fase de um filme. [...] O roteirista é mais cineasta do que romancista. Evidentemente, nunca lhe será prejudicial saber escrever (inclusive pode lhe resultar muito útil, e não apenas no mundo do cinema), mas isso que denominamos “escrita cinematográfica” é um exercício específico e muito difícil que não se parece com qualquer outro. Tratase de uma escrita que deve se lembrar a cada instante a si mesma, com insistência quase obsessiva, que está destinada a desaparecer, a sofrer uma inevitável metamorfose. (CARRIÈRE, apud HUTCHEON, 2001). O papel do adaptador também envolve o conhecimento do público alvo e principalmente da idade e preferências desse público. Uma adaptação fílmica de uma obra literária é completamente diferente de uma adaptação para história em quadrinhos. Os universos culturais são diferenciados, além da faixa etária a ser atingida. Observa-se a veracidade desse fato nas diferentes adaptações da obra de Carrol – Alice no país das maravilhas. Esta, envolta em uma cultura vitoriana do século XIX, passou e ainda passa por diferentes adaptações. Teatro, cinema, televisão e história em quadrinhos estão entre os instrumentos utilizados para a realização dessas adaptações. O adaptador responsável pelas mesmas necessita considerar o público a quem se destina e a linguagem de cada meio. O cinema, por exemplo, apresenta algumas características específicas, como as técnicas de iluminação, trilha sonora, enquadramento de imagens, funções que indicam 32 passagem de tempo, articulações do espaço físico, o processo de narração pela edição de imagens ou mesmo a utilização da posição de câmeras como narrativa. Já na adaptação para a história em quadrinhos, outros elementos criadores são necessários. A adaptação da linguagem com a utilização de frases mais curtas, onomatopeias e expressões faciais e corporais dão vida e elementos novos a esse tipo de produção. Nele não se pode contar com a narrativa musical e a passagem de tempo dáse pelo processo estético e pictórico. O tempo também é fator considerável no processo de adaptação. Uma obra literária cujo leitor tem a seu favor o tempo para apreciar, necessita ser elaborada de forma a traduzir temporalmente seu formato para a nova mídia. Dessa forma, nota-se que o trabalho de adaptação é árduo e complexo, dependendo de diferentes contextos e histórias de vida para que seja objetivado. A função do adaptador vai além do conhecimento de determinada obra. Há a necessidade de um aprofundamento de pesquisa quanto a todos os aspectos oferecidos pela obra com o objetivo de aprimorá-la dentro de seu contexto profissional. Pode-se dizer que se faz necessário o respeito pela narrativa a ser adaptada, visto que foi escolhida porque suscitou interesse primeiramente em quem produzirá a adaptação. O mesmo interesse ou até mesmo um interesse ainda maior, deve ser suscitado nos leitores e/ou expectadores da adaptação. Portanto, esta deve ser interessante, instigante. Partindo-se desse pressuposto, faz-se necessário pensar e evidenciar as diferentes opções e enfoques que podem ser dados a obra original. Segundo Field (1995), o adaptador convive, durante todo o processo, com inúmeras sensações e emoções sobre o objeto de seu estudo. Quanto este é finalizado, a experiência é inundada por outros sentimentos que movem sua função. É hora de celebração e alívio. Ao terminar, você experimentará todos os tipos de reação emocional. Primeiro, satisfação e alívio. Alguns dias depois, você estará triste, deprimido, e não saberá o que fazer com o seu tempo. Você poderá dormir um bocado. Ficar sem energia. Isto é o que eu chamo de período de “depressão pós-parto”. É como dar a luz a uma criança; você trabalhou em algo por um período substancial de tempo. Tem sido parte de você. Algo que o despertava pela manhã e o mantinha acordado à noite. Agora acabou. É natural ficar triste e deprimido. O final de algo é sempre o início de outra coisa (FIELD, 1995, p. 153). 33 Pode-se notar que a adaptação de uma narrativa embute percepções da vida pessoal do adaptador, influenciado e influenciando o seu contexto social. A obra acaba por fazer parte de seu contexto particular de vida, envolvendo-o na história. Dessa forma, constata-se que as adaptações não podem partir de uma fidelidade total porque nelas estão envoltos sentimentos, perspectivas e culturas diferenciadas. No capítulo dois, verificar-se-ão aspectos relacionados à narrativa literária envolvendo o autor sob seus aspectos de vida e sociedade e os personagens que transitam na obra. Utilizar-se-á como ponto de partida, a obra Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carroll. 34 CAPÍTULO 2 35 2. A narrativa literária Para que a narrativa literária se desenvolva, faz-se necessária a presença de alguns elementos essenciais como: o espaço, a trama, personagens, conflito, tempo e o autor. 2.1. O autor Quando se busca analisar o processo de adaptação de uma obra a outras linguagens, faz-se necessário que se tenha conhecimento aprofundado sobre a obra a ser adaptada, seu contexto e seu autor, lembrando que a figura do autor não é a mesma do narrador. Gérald Genette, em seu livro Discurso da Narrativa (1972) define a narrativa sob três aspectos: [...] a narrativa designa o enunciado narrativo, o discurso oral ou escrito que assume a relação de um acontecimento ou de uma série de acontecimentos; [...] a sucessão de acontecimentos, reais ou fictícios, que constituem o objeto desse discurso, e as suas diversas relações de encadeamento, de oposição, de repetição. [...] um acontecimento: não aquele que se conta, mas aquele que consiste em que alguém conte alguma coisa (GENETTE, 1972, p. 255). Genette, enquanto crítico literário estruturalista, coloca que quando se analisa uma determinada obra, a mesma deve permanecer como objeto de crítica independente de sua gênese, fontes ou autor. Não que os contextos não interfiram nela, porém o que interessa é o discurso que essa obra apresenta. A narrativa, segundo o autor, pode pertencer a dois tipos de narratários: o autodiegético (aquele que narra as suas próprias experiências como personagem central da história) e o heterodiegético (aquele que não sendo personagem principal da história, narra os acontecimentos a ela inerentes), conforme ele pertença ou não à diegese. Segundo Barthes (1972, p.24), a literatura possui relação com a linguagem e devese considerá-la enquanto narrativa. [...] não é mais possível conceber a literatura como uma arte que se desinteressa de toda relação com a linguagem, já que a usa como um instrumento para exprimir a ideia, a paixão ou a beleza: a linguagem 36 não cessa de acompanhar o discurso estendendo-lhe o espelho de sua própria estrutura (BARTHES, 1972, p.24). Já Corseuil (2009, p. 374) afirma que: Diferentemente da forma sucinta como uma história pode ser resumida – geralmente centrada no conflito de duas forças opostas -, as técnicas narrativas empregadas, ao se contar uma história para uma plateia ou para leitores, são elementos cruciais na caracterização de diferentes obras artísticas. Para que se determine a inclusão de uma obra em um determinado gênero, para um direcionamento de sua recepção e para uma melhor compreensão de seus significados, é necessário que todos os elementos que compõem a narrativa sejam devidamente analisados. Até mesmo a forma de narração modifica-se frente aos diferentes usos de um narrador mediante o instrumento utilizado para efetivar a obra. [...] o realismo marca o apagamento ou a neutralização do narrador para alcançar seus efeitos característicos, a presença do narrador em um texto literário é evidente para o leitor [...] No cinema, o fato de as palavras serem substituídas por imagens, como se a plateia estivesse vendo a ação sem a interferência de um narrador ou de sua voz, produz a impressão de que não há narração, mas apenas um processo de mostrar [...] pode-se dizer que a presença do narrador no cinema se dá pela edição de imagens, reveladora da interferência do narrador na organização dos eventos da história [...] A montagem, determinada pela forma como um história é contada, aponta para a existência de um mediador que organiza os eventos da história no tempo e no espaço: o narrador (CORSEUIL, 2009, p. 374). A presente pesquisa toma como base a obra Alice no país das Maravilhas de Lewis Carroll e para tanto, necessita-se conhecê-la melhor. Esse conhecimento prévio inicia-se pelo autor. Faz-se necessário conhecer as características do autor para entender suas obras, mesmo que para os críticos literários, centra-se na narrativa propriamente dita, o interesse real. 37 (Figura 1 - Lewis Carroll) Fonte: belleliteratura.blogspot.com Lewis Carroll é o pseudônimo de Charles Lutwidge Dodgson, nascido em 27 de janeiro de 1832 em Daresbury, no condado de Cheshire, Inglaterra. Carroll morreu em 14 de julho de 1898, em decorrência de uma bronquite. O autor era um solteirão tímido e excêntrico, que lecionava matemática no Christ College, em Oxford. Gostava muito de brincar com matemática, lógica e palavras, de escrever textos nonsense e da companhia de menininhas, consideradas por ele, como encantadoras. De certa maneira essas paixões se amalgamaram magicamente para produzir duas histórias imortais, escritas para a mais amada de suas amigas crianças, Alice Liddell, filha do deão do Christ Church. Ninguém suspeitou na época que esses livros se tornariam clássicos da literatura inglesa. E ninguém teria sido capaz de adivinhar que a fama de Carroll acabaria por suplantar a do pai de Alice e a de todos os seus colegas de Oxford. (GARDNER, 2002, p. xvii). Carroll era o terceiro dos onze filhos do casal Frances Jane Lutwidge e o reverendo Charles Dodgson. Carroll e os irmãos viviam num vilarejo isolado e tinham poucos amigos, porém não tinham dificuldade em se divertir, pois Carroll gostava de inventar jogos e brincadeiras. Por outro lado, sua timidez o fez sofrer durante seus anos na escola pública. 38 Sua infância foi marcada também por várias doenças, entre as quais uma que lhe deixou surdo de um dos ouvidos. Carroll tinha uma aparência vistosa e assimétrica – dois fatos que, segundo Martin Gardner (2002), podem ter contribuído para seu interesse por reflexos especulares. Um ombro era mais alto que o outro, seu sorriso era ligeiramente torto e o nível dos seus olhos azuis não era exatamente o mesmo. Era de estatura mediana, magro, mantinha sempre um porte rigidamente ereto e tinha uma maneira abrupta e peculiar de andar. Após passar um período tendo o pai como tutor, Carroll tornou-se aluno da Christ Church, em Oxford. Seu talento para a matemática floresceu e ele ganhou bolsa de estudos. Após se graduar, foi nomeado “Master of the house”, que significa o Principal, Presidente. Virou tutor e foi ordenado como diácono da Igreja da Inglaterra em 1861. Embora ordenado, raramente pregava em função de sua deficiência de fala e nunca foi ordenado pastor. (Figura 2 - Christ College, em Oxford, Inglaterra) Fonte: mini-panda.ovh.org Quanto à arte, Carroll reprovava a linguagem indecorosa dos palcos apesar de ser um frequentador entusiasmado de ópera e teatro numa época em que estes eram vistos com reserva pelas autoridades eclesiásticas. Reprovava vigorosamente a linguagem indecorosa e os diálogos picantes no palco, e um de seus muitos projetos inacabados foi o de superar Bowdler [crítico literário] preparando uma edição de 39 Shakespeare apropriada para meninas. Planejava fazê-lo retirando certas passagens que até Bowdler julgara inofensivas. (GARDNER, 2002). Desde a infância, como tinha oito irmãos e irmãs mais jovens do que ele para cuidar, Carroll desenvolveu uma facilidade para se relacionar com crianças. A gagueira com a qual padecia desde jovem também o ajudou a ter mais empatia com crianças que fossem portadoras de alguma deficiência. Isso fez com que naturalmente ele fosse um dos mais aptos para entreter as crianças onde quer que estivesse. Entre elas estavam sempre a seu redor as três filhas de Henry George Liddell, chefe da Christ Church, as crianças do escritor George Macdonald e os filhos do poeta Alfred Lord Tennyson. Mas foi em um dos passeios com as irmãs Alice, Lorina e Edith Liddell que Carroll começou a criar uma das mais fantásticas histórias de todos os tempos. (Figura 3 - As irmãs Liddell – Edith, Lorina e Alice) Fonte: cool.conservation-us.org Em 4 de julho de 1862, ele e seu amigo Robinson Duckworth, professor do Trinity College, foram com as três crianças de barco pelo rio Tâmisa, de Oxford até Godstow, para um piquenique. Foi nesse passeio que Carroll contou para as crianças um “conto de fadas” que inventou e ao qual deu o nome de “As aventuras de Alice no Subterrâneo”. A narrativa encantou tanto Alice que esta solicitou a Carroll que a escrevesse. Ao passar para o papel, Carroll adicionou várias novas aventuras e algumas 40 ilustrações feitas por ele mesmo. O texto foi lido pelo escritor Henry Kingsley durante uma visita a casa dos Liddell. Este gostou tanto que solicitou à família convencer Carroll a publicar a história. Surpreso com a ideia, Carroll, após consultar o amigo e escritor George Macdonald, fez novas alterações no que havia escrito, adicionou histórias, contratou um ilustrador – John Tenniel – e em 1865 foi lançada a primeira edição já com o nome de “Alice no País das Maravilhas”. O livro foi um sucesso ao ponto de, no ano seguinte, Carroll começar a pensar numa sequência que seria lançada seis anos depois como “Através do Espelho e O que Alice encontrou Lá”, tão bom ou para alguns até melhor do que o primeiro livro. Cerca de meio século após seus lançamentos, seus livros já estavam consagrados como dois dos livros infantis de maior sucesso no mundo. Além do talento como escritor, Carroll foi reconhecido como um excelente fotógrafo, principalmente pelos retratos da atriz Ellen Terry, do poeta Alfred Lord Tennyson e do poeta e pintor Dante Gabriel Rossetti, entre outros. As fotos de crianças também se destacaram em sua obra, principalmente os ensaios de nudez, que mais tarde provocaram várias polêmicas. Carroll produziu também vários outros textos e poemas, além de trabalhos acadêmicos sobre matemática nos quais assinava com seu nome de batismo. Seus livros sobre lógica e matemática foram escritos de maneira curiosa, com muitos problemas divertidos, mas são de nível elementar e raramente lidos hoje. Morreu solteiro e sem filhos, em 14 de janeiro de 1898, pouco antes de completar 66 anos de idade. As informações acima citadas, basearam-se em estudos de Martin Gardner, responsável pela introdução e notas do livro Alice, edição comentada (2002). Gardner, reconhecido por sua cultura – que abrange desde a matemática até Sherlock Holmes -, é considerado um dos maiores especialistas em Carroll e sua obra. Durante vinte anos foi editor de problemas matemáticos da revista Scientific American. É autor de diversos livros sobre matemática e lógica e organizador de Annotated Alice e More Annotate Alice. 41 (Figura 4 - Martin Gardner e os personagens de Alice no país das maravilhas) Fonte: www.brasillewiscarroll.blogspot.com No tópico 2.2, estudar-se-á como se deu a leitura do mundo vitoriano para embasamento da obra de Carroll. 2.2. Espaço e tempo: leitura do mundo vitoriano Segundo Dreguer e Toledo (2006), define-se a era vitoriana como o período em que a rainha Victoria assumiu o reinado da Grã-Bretanha e da Irlanda, entre 1837 e 1901. A época traz à mente as imagens da burguesia, reis e rainhas, casamentos arranjados pelos pais e extrema preocupação com a moralidade. Observando-se a sociedade vitoriana da época em que Carroll escreveu seus livros, percebe-se que a mesma era regida pela ideia de culpa e punição. Sociedade esta, extremamente conservadora e regrada, que impunha as normas e regras para o comportamento social, e que se mantivesse a boa aparência da família. A sociedade dessa época vivia sob a rigidez vitoriana. Esta era sustentada pelas virtudes como a disciplina, a limpeza, a retidão, a seriedade, o trabalho árduo e o patriotismo. Tinha-se na literatura uma das maiores formas de lazer e esta condenava qualquer tipo de excesso, auxiliando na imputação dos valores morais. Eram frequentes os serões e a leitura em voz alta nos lares vitorianos. Os autores da época eram impelidos a produzir obras que ampliassem a ideia de moralidade. 42 A educação era pautada pela rigidez e disciplina, tentando aproximar as crianças à figura dos adultos. Dessa forma, as crianças eram educadas a repetir gestos e posturas “corretas” perante a sociedade, independente de seus sentimentos e de suas convicções. Os impulsos e sentimentos tinham de ser controlados diante do mundo de aparências vivido. Por outro lado, a época vivia o início de grandes transformações movida, principalmente, pela Revolução Industrial. A iminente transformação pela qual toda sociedade passaria, acaba por causar ainda mais preocupação em manter a ordem ou o “status quo” da sociedade por meio das inúmeras formalidades exigidas. Para as mulheres esse caráter formal e autoritário era muito mais exigido. A ideia era de que a ambição maior das mulheres, seu objetivo de vida, deveria ser a de tornarem-se boas esposas e mães, sonhando com um casamento perfeito. Necessário a elas era aprender a cuidar da casa, lidar com empregados e educar os filhos, ou seja, a economia doméstica. Compromissos sociais somente na organização e participação em bailes, visitas à igreja ou chá da tarde com outra respeitável dama. Tudo que pudesse despertar sentimentos contraditórios para a mulher, era abolido como, por exemplo, a música. Mulheres que desenvolvessem habilidades musicais eram tidas como vulgares. A sociedade vitoriana era centrada no homem, sendo as mulheres consideradas inferiores, passíveis de serem possuídas por eles. O homem era o detentor de toda a autoridade. As mulheres eram como borboletas presas em vidros, apesar da metamorfose pela qual todas passam a partir da vida infantil, adolescência e vida adulta, estariam sempre presas ao vidro – conduta rígida da sociedade vitoriana. O recato imposto a elas aparece até mesmo em suas roupas. Era necessário utilizar corpetes e anáguas, saias com armação, espartilho e chapéu. Esse aparato era usado inclusive por crianças a partir de 3 ou 4 anos de idade. O objetivo, além de esculpir um corpo semelhante a um violão, era dar a mulher um aspecto vulnerável, frágil, inocente. O ideal de beleza era mulheres com cabelos cacheados, pequenas, ombros caídos e boca pequena demonstrando submissão e apatia. O puritanismo devia estar sempre presente, 43 assim como a moralidade e a harmonia da vida doméstica. Submissas e belas, assim deveriam ser as mulheres vitorianas. O amor era algo supérfluo, estava submetido aos interesses da família. O casamento arranjado pelos pais tinha por objetivo a riqueza, posição social ou acordo mútuo. Honrar ao marido era dar-lhe herdeiros e submeter-se a seus desejos. Outro dever da mulher era decorar passagens bíblicas para citá-las para os filhos e o marido. Quando a mulher não tinha posses para a busca de um casamento na alta sociedade, esta tornava-se governanta. Liberdade era improvável, imoral e inaceitável para uma mulher na sociedade da época. Portanto, pode-se observar os elementos da sociedade vitoriana são parodiados nos textos de Lewis Carroll como forma de interpretação e crítica à sociedade da época. 44 2.3. Trama e Conflito: a história de Alice no País das Maravilhas (Figura 5 - Alice aos 7 anos, aos 18, 38 e 80 anos) Fonte: Portfolio Project – Department of Rare Books and Special Collections 45 Alice, onde estás? Curiosa criança, remota Alice, empresta-me teu sonho; Eu desprezaria os contadores de histórias de hoje. Seguiria contigo o riso e o fulgor: Estou fatigado, esta noite, de santos e pecadores. Somos amigos desde que Lewis o velho Teniel Encerraram tua imortalidade em vermelho e dourado. Vem! Tua ingenuidade é uma fonte perene. Deixe-me ser jovem de novo antes de ser velho. És um espelho de juventude: esta noite escolho Perder-me profundamente em teus labirintos mágicos, Em que a Rainha Vermelha vocifera em esplêndidas nuances E o Coelho Branco segue apressado seu caminho. Vamos mais uma vez nos aventurar, de mãos dadas: Faze-me de novo acreditar – no País das Maravilhas! Vincent Starrett, em Brillig, 1949. O poema acima foi traduzido da edição francesa Alice au pays des merveilles (1980), por Geir Campos. Alice no País das Maravilhas (Alice’s Adventures in Wonderland) tornou-se a obra mais conhecida de Lewis Carroll. A narrativa de Carroll teve início em 1862 durante um passeio de barco pelo rio Tâmisa. Gardner (2002, p.7) cita um trecho do artigo “Alice on the Stage, onde Carroll escreveu: Havíamos remado juntos muitos dias naquelas águas tranquilas as três pequenas donzelas e eu – e muitos contos de fadas haviam sido improvisados em benefício delas, quer em momentos em que o narrador estava “inspirado”, e fantasias involuntárias o assaltavam aos bandos quer em outros em que a Musa esfalfada era estimulada a agir, e se deixava arrastar resignada, mais porque tinha de dizer algo do que porque tivesse algo a dizer; no entanto, nenhuma dessas muitas histórias foi escrita: viviam e morriam, como maruins de verão, cada uma em sua própria dourada, até que chegou o dia em que, por acaso, uma de minhas pequenas ouvintes suplicou que a história fosse escrita para ela. Isso foi há muitos anos, mas lembro nitidamente, agora enquanto escrevo, como, numa tentativa desesperada de chegar a um conto de fadas diferente, eu, para começar, tinha despachado minha heroína diretamente por uma toca de coelho, sem a mínima ideia do que deveria acontecer depois. 46 Nota-se que outras narrativas surgiram durante os passeios com as três meninas sendo que, por ser Alice sua musa inspiradora, não teve como negar-lhe o pedido da escrita da história contada oralmente. Gardner (2004, p. 9) transcreve o trecho de um artigo do filho de Alice, Caryl Hargreaves, escrevendo na Cornhill Magazine (jul 1932), citando a mãe, nos seguintes termos: […] Acho que as histórias que ele nos contou essa tarde devem ter sido melhores que de costume, porque tenho uma lembrança bem nítida da excursão, e também porque, no dia seguinte, comecei a importuná-lo para escrever a história para mim, o que nunca tinha feito antes foi por causa do meu “vamos lá, vamos lá” e da minha importunação que, depois de dizer que ia pensar no assunto, acabou por fazer a hesitante promessa que o impeliu a escrevê-la. O livro conta a história de uma menina chamada Alice, que cai numa toca de coelho, que a transporta para um lugar fantástico povoado por criaturas peculiares e antropomórficas. Está repleto de alusões satíricas, paródias a poemas populares infantis ingleses ensinados no século XIX e também de referências linguísticas e matemáticas por meio de enigmas. As ilustrações do livro foram feitas por John Tenniel, que não utilizou a aparência real de Alice, que tinha cabelo escuro e franja curta. O livro provocou inúmeras interpretações sendo a mais aceita a do Rito de Passagem, ou seja, a entrada na adolescência – entrada esta súbita e inesperada como a queda na toca do coelho, iniciando uma nova aventura, indo ao extremo das diversas mudanças de tamanho de Alice, causando nesta a não identificação de si mesma após tantas transformações. Os personagens que brotavam da mente de Carroll, estavam inseridos na realidade que cercava o autor. As irmãs Liddell que participavam do passeio foram citadas com outros nomes em poema introdutório do próprio Carroll. Imperiosa, Prima estabelece: Começar já; enquanto Secunda, Mais brandamente, encarece: “Que não tenha pé nem cabeça!” 47 E Tertia um ror de palpites oferece Mas só um a cada minuto. A maior parte das aventuras foram baseadas e influenciadas por pessoas, situações e edifícios de Oxford. Carroll por ser exímio matemático e adepto da lógica, utilizava com frequência analogias em relação a seus personagens e situações narrativas. Alguns exemplos podem ser vistos no capítulo 1 do livro de Carroll, quando há o processo de encolhimento da altura, Alice faz referência acerca de seu tamanho final com medo de desaparecer totalmente como uma vela refletindo o conceito do limite de uma função. Já no capítulo 5 do mesmo livro, o Pombo afirma serem as meninas espécie de serpentes, por ambas comerem ovos. Dá-se aí o conceito de abstração ocorrido em diversos âmbitos da ciência como a substituição de variáveis, na matemática, segundo Gardner (2002). Tem-se conceitos matemáticos da geometria nãoEuclidiana, álgebra abstrata no capítulo 6 e 8 quando o gato desaparece deixando somente seu largo sorriso, suspenso no ar. Alice revela que já viu um gato sem um sorriso, mas nunca um sorriso sem o gato fazendo a abstração dos conceitos matemáticos citados – o sorriso aparentemente pertencente ao gato, é separado conceitualmente do resto do corpo físico. Carroll utilizava-se de seus maiores interesses na execução da trama de Alice. De acordo com Gardner (2002), na época do autor, havia considerável especulação popular quanto ao que aconteceria se alguém caísse num buraco. Plutarco havia formulado a pergunta e muitos pensadores, como Francis Bacon e Voltaire, haviam-na discutido. Alusões são descritas em toda a narrativa. No capítulo 8, três cartas pintam as rosas brancas de vermelho porque plantaram uma roseira de rosas brancas acidentalmente e a Rainha as odeia. O simbolismo se faz presente quando rosas vermelham referem-se à Casa Inglesa de Lancaster, enquanto as rosas brancas são símbolo da casa rival York – alusão à Guerra das duas Rosas. Uma escultura de um grifo presente na Catedral de Ripon, onde o pai de Carroll foi um membro, forneceu a inspiração para o personagem do Grifo, amigo da Falsa Tartaruga, grifo que é também o símbolo do Trinity College. Outras inspirações vieram da vida real de Carroll como a nogueira onde aparece o Gato de Cheshire, o gato que sempre ri, ainda hoje ela pode ser vista no jardim do Colégio de Deanery. 48 Os poemas e os versos que Alice recita, e que parecem não ter sentido nenhum, são sátiras aos poemas que as crianças inglesas daquela época tinham que saber de cor. Foi o sobrinho de Lewis Carrol, Stuart Dodgson Collingwood, que escreveu o poema que Alice descobre no Livro do Espelho, e que só se consegue ler quando está refletido no espelho porque está escrito ao contrário. O dia do Lanche Maluco não é uma data escolhida ao acaso e sim o verdadeiro dia do aniversário de Alice Liddell, 4 de maio. A história que o Chapeleiro e a Lebre de Março contam a Alice sobre as três irmãs que vivem num poço de mel – Elise, Lacie e Tillie – refere-se as três irmãs Liddell, respectivamente, Lorina, Edith e Alice. O capítulo sobre o Leão e o Unicórnio foi inspirado nos símbolos das bandeiras da Inglaterra e Escócia. A utilização da chavezinha de ouro na abertura da porta era uma metáfora de eventos que poderiam ter ocorrido, caso se tivessem aberto certas portas da vida. Em um dos trechos de sua narrativa, Carroll coloca Alice indecisa quanto à ideia de beber o líquido de uma garrafinha e dizendo que primeiro iria olhar para ver se não estava escrito veneno porque havia lido muitas “historinhas divertidas”. As “historinhas divertidas” fazem alusão aos contos de fadas tradicionais, cheios de episódios de horror e em geral com uma moral piedosa. Ao por de lado a moral, os livros de Alice inauguram um novo gênero de ficção para crianças, pois na época vitoriana a literatura infantil impunha os valores da sociedade por meio do medo e intimidação. Pode-se demonstrar a influência do entorno social em Carroll pela narrativa do trecho onde Alice questiona-se sobre sua identidade, comparando-se com crianças conhecidas. Carroll utiliza-se dos nomes de Gertrudes e Florence, primas de Alice, em sua versão original. Foi assim que, bem devagar, O País das Maravilhas foi urdido, Um episódio vindo a outro se ligar – E agora a história está pronta, Desvie o barco, comandante! Para casa! O sol declina, já vai se retirar. Com o modo diferenciado de escrever e a utilização de tamanhos recursos, Alice no País das Maravilhas tornou-se um fenômeno e exemplo de narrativa com extrema 49 criatividade e irreverência, mostrando a criança por um ângulo diferenciado, não somente como um adulto em miniatura, “antes do século XVII as crianças não eram percebidas como um ser singular, mas sim, como um adulto em miniatura” (ZIL BERMAN, R. & LAJOLO, 1986) A narrativa de Carroll oferece um mundo de brincadeiras mesmo que estas sejam de difícil compreensão em um contexto contemporâneo, por estarem em grande parte envoltos em eventos e costumes vitorianos desconhecidos dos leitores da contemporaneidade. [...] Nenhuma piada tem graça a menos que se possa entendê-la, e às vezes o sentido tem de ser explicado. No caso de Alice, estamos lidando com uma espécie de nonsense muito curioso, complicado, escrito para leitores britânicos de outro século, e precisamos apreender todo o seu espírito e sabor. É até mais grave que isso, porque algumas das piadas de Carrol só podiam ser compreendidas por quem residia em Oxford [...] (GARDNER, 2002, p. 1). Pode-se considerar a narrativa de Carroll como um grande quebra-cabeça que o leitor pode percorrer, se estiver aberto ao nonsense e aos jogos de raciocínio, dessa forma embarcando na aventura intelectual de Alice. Segundo Motta (2004), as narrativas são fatos culturais (não apenas literários). Partindo desse pressuposto, pode-se afirmar que a forma narrativa de Carroll foi organizada sobre fatos e crenças de sua época. Pode-se observar a “transgressão” narrativa de Carroll na desconstrução da linguagem referente à personagem da Falsa Tartaruga (Mock Turtle), dando-se como referência a sopa de falsa tartaruga, na realidade preparada com vitela, comum na culinária inglesa. Outras expressões da língua inglesa são deslocadas de seu sentido em considerável percentagem por toda obra de Carroll. Outra diferença considerável da narrativa de Alice em relação a outras histórias tradicionais é que, dentro de um raciocínio bastante peculiar, os personagens questionam a validade da lógica em seu discurso. Um mundo surreal se sobrepõe a mundos perfeitos das histórias então contadas. 50 Pode-se dizer que Alice no País das Maravilhas garantiu sua imortalidade pelo fato de despertar interesse de adultos, suscitando diferentes interpretações simbólicometafóricas. As crianças hoje se sentem aturdidas e às vezes apavoradas pela atmosfera de pesadelo dos sonhos de Alice. É apenas porque adultos – cientistas e matemáticos em particular – continuam a apreciá-los que os livros de Alice têm sua imortalidade assegurada (GARDNER, 2002, p. 1). Deve-se pensar no foco narrativo onde, no caso de Alice no País das Maravilhas, faz-se presente o chamado narrador heterodiegético por relatar uma história da qual não participa, expressando-se, predominantemente, em 3ª pessoa. O narrador em terceira pessoa pode ser tanto observador, narrando simplesmente os fatos, como o conhecedor de tudo (onisciente). D’Onofrio (2007) aborda em seu livro Forma e Sentido do texto literário, o conceito de Norman Friedman sobre o narrador em terceira pessoa, chamado de narrador pressuposto. Este pode ser observador – narrador-câmera – chegando a atingir a imparcialidade total, contando os fatos de maneira realista. Pode também ser onisciente. Nesse caso, Friedman( apud D’ONOFRIO, 2007, p. 51-52), divide a tipologia do narrador em onisciente neutro, intruso ou seletivo. [...] Onisciente neutro: a história parece contar-se a si própria, prescindindo da figura do narrador. Esse tipo de narrador sabe o que se passa no presente e no passado e no íntimo de cada personagem. [...] Onisciente intruso: assemelha-se à focalização anterior, com a diferença de que o narrador interrompe a narração para tecer comentários e julgamentos. [...] Onisciente seletivo: o narrador apresenta o ponto de vista de algumas personagens diretamente, no momento da ação. Dá-se por meio da utilização do discurso indireto livre. Dá-se na narração de uma história, a inserção de processos intrínsecos ao ser humano. O autor torna-se refém de sua personalidade, suas crenças, seus valores. No processo narrativo colocam-se os fatos correlacionados, podendo ser factuais ou imaginários. 51 Toda e qualquer narrativa é enunciação dos estados de transformação. É a enunciação dos estados de transformação que organiza o discurso narrativo de uma determinada maneira, que produz certas significações e dá sentido às coisas e aos nossos atos (MOTTA, 2003, p. 19). A cultura desenvolvida pelo autor da obra literária, o contexto e o período em que ela ocorre influencia diretamente a finalização da mesma. No tópico 2.4, esplanar-se-á a personificação da obra Alice no País das Maravilhas por meio de seus personagens principais. 2.4. Personagens Tem-se em Alice, a personagem principal. Racional e corajosa, e que faz diferentes considerações no seu modo de ser e agir, modificando-se no decorrer da obra. Essa modificação se dá a partir de um processo de metamorfose emocional que leva a personagem a um autoconhecimento e, a partir deste, a um amadurecimento enquanto pessoa. A partir dessa metamorfose, dá-se um posicionamento forte e enriquecedor de sua personalidade. No Dicionário de Símbolos (1993), o conceito de metamorfose vem expresso da seguinte forma: [...] Poder-se-ia concluir, de um ponto de vista analítico, que as metamorfoses são expressões do desejo, da censura, do ideal, da sanção, saídas das profundezas do inconsciente e tomando a forma na imaginação criadora. [...] A metamorfose é um símbolo de identificação, em uma personagem em via de individualização que ainda não assumiu a identidade de seu eu nem atualizou todas as suas potencialidades (CHEVALIER; CHEERBRANTE, 1993, p. 608). Na obra de Carrol, a metamorfose exemplifica-se na transformação ocorrida com a Lagarta, evoluindo à borboleta e principalmente na personagem principal, Alice, que amadurece emocionalmente durante o desenrolar do enredo. 52 (Figura 6 - Alice com o líquido de diminuição) Fonte: wordmistery.blogspot.com Outro personagem interessante é o Coelho Branco. Este é o contraste de Alice. Tem medo de tudo, das pessoas e das situações. Carrega consigo um relógio e parece estar sempre atrasado. Mesmo porque, a simbologia trazida pela lebre ou coelho, liga-se a um processo dúbio. É preciso pensar na extrema importância do bestiário lunar nesta tapeçaria subjacente da fantasia profunda, onde estão inscritos os arquétipos do mundo simbólico, para compreender a significação das inúmeras lebres e coelhos, misteriosos, familiares e companheiros muitas vezes inconvenientes dos luares do imaginário. Povoam todas nossas mitologias, nossas crenças, nossos folclores. Até em suas contradições todos se parecem, como também são semelhantes às imagens da Lua. Com ela, lebres e coelhos estão ligados à velha divindade Terra-Mãe, ao simbolismo das águas fecundantes e regeneradoras, ao da vegetação, ao da renovação perpétua da vida sob todas as suas formas. Este é o mundo do grande mistério, onde a vida se refaz através da morte. O espírito que é somente diurno nele se choca, preso, ao mesmo tempo, de inveja e de medo diante das criaturas que, necessariamente, assumem para ele significações ambíguas (CHEVALIER; CHEERBRANT, 1993, p. 540, grifos dos autores). Considera-se o coelho, por sua reprodução rápida e abundante, o representante da continuidade da vida. No livro de Carroll, o coelho faz com que Alice o siga levando-a a, simbolicamente, participar desse processo de continuidade de vida 53 enfrentando seus medos e inseguranças para ganhar novas possibilidades, um amadurecimento que se transforma em um novo estilo de vida. (Figura 7 - Coelho Branco) Fonte: library.kiwix.org No capítulo três, encontra-se a figura do Rato. Ele conta sua história tentando deixar Alice e os outros personagens secos e menos aborrecidos. Baseado numa governanta da casa das irmãs Liddell. (Figura 8 - O rato e os animais) Fonte: Lerry’s Alice in Wonderland site Sua história, no livro original, surge através do chamado Poema emblemático – poemas impressos de tal maneira que se assemelham a algo relacionado a seu tema. No caso do livro de Carroll, o poema vem no formato do rabo tortuoso do Rato, como transcrito a seguir. 54 (Figura 9 – Poema) O Dodô parece ser a caricatura de Carroll. Isso pelo fato do nome ter sido usado por ele numa paródia referindo-se à forma como pronunciava o próprio nome por ser gago (Do... do... Dodgson). O personagem parece ser intelectual e utiliza palavras muito complicadas. Segundo o Dicionário dos Símbolos, o pássaro Dodô era um pombo 55 gigante da família Raphidae, que desapareceu no século 17, com a chegada dos colonizadores ao seu habitat, a ilha Maurício. (Figura 10 - Alice e o Dodô) Fonte: bio-cult.blogspot.com O Pato é outro personagem – caricatura. Dessa vez, do reverendo Robinson Duckworth, amigo íntimo de Carroll que estava presente no passeio com as irmãs Liddell pelo rio Tâmisa. Um dos personagens que chama muito a atenção é a Lagarta. Personagem inquietante, que vive sentado em um cogumelo, fumando calmamente um cachimbo de água. Responde as perguntas de Alice de forma enigmática e monossilábica. Na narrativa aparece como um “guia”, um ser sabedor do passado e futuro que perturba Alice questionando-a sobre sua própria vida. A lagarta costuma estar relacionada com a metamorfose por se transformar posteriormente em borboleta. Segundo o dicionário de símbolos, a lagarta: [...] sinônimo de transmigração, em função da maneira pela qual ela passa de uma folha à outra, e do estado de larva aos de crisálida e borboleta, assim como a vida passa de uma manifestação corporal a outra. [...] O símbolo da lagarta propõe a discussão de toda a doutrina da transmigração, sem explicitá-la claramente em si mesma (CHEVALIER; CHEERBRANT, 1993, p. 532, grifo do autor). 56 (Figura 11 – Lagarta) Fonte: mashpedia.com.br No capítulo oito, encontramos a Duquesa que representa a sociedade vitoriana, concordando com tudo o que Alice diz e buscando uma moral para todos os acontecimentos. Já o Gato de Cheshire ou Gato Risonho é um gato da raça British Shorthair. A forma de sua boca representa um sorriso. Na história, consegue aparecer e desaparecer, desafiando a lógica que é tão importante para Carroll. 57 (Figura 12 - O Gato Risonho / Figura 13 - O Gato Risonho) Fonte: brasillewiscarroll.blogspot.com Um dos mais famosos personagens da história é o Chapeleiro Maluco. Referência a Teófilo Carter, conhecido comerciante de móveis em Oxford pelas suas invenções pouco ortodoxas e pelo uso de uma cartola na parte de trás da cabeça à porta de sua loja. A figura do Chapeleiro Maluco foi retirada de expressões no período vitoriano da língua inglesa – maluco como um Chapeleiro – devido ao vapor de mercúrio usado na fabricação de feltro, possível causador de efeitos psicóticos. (Figura 14 - O Chapeleiro Maluco) Fonte: library.kiwix.org 58 Outro personagem interessante, Arganaz (Dormouse) dorme constantemente acordando somente em algumas ocasiões para contar a história de três irmãs – Elsie, Lacie e Tillie – referindo-se às irmãs Liddell. A Rainha de Copas (Queen of Hearts) é uma provável caricatura da mãe das irmãs Liddell por se extremamente autoritária e impulsiva, estando constantemente a dar ordens aos seus soldados (cartas). A rainha de copas é frequentemente confundida com a Rainha Vermelha da história Alice do Outro Lado do Espelho, porém não se trata da mesma personagem. A rainha de Copas pertence a um baralho de Copas presente no primeiro livro de Carroll, enquanto a Rainha Vermelha é representada por uma peça de xadrez vermelha no segundo livro. (Figura 15 - A rainha de Copas com Alice) Fonte: fantasticaazeitona.blogspot.com Alguns personagens aparentemente são secundários, porém, no universo de Carroll, cada um exercia sua importância no convício e no crescimento de Alice. O Valete de Copas é o criado que transporta a coroa do Rei. O Rei de Copas tem menor influência e vive à sombra da rainha. Por isso considerou-se ser uma possível caricatura do pai de Alice Lindell pelo fato de sua esposa ser autoritária e comandar a organização da casa e das filhas (GARDNER, 2002). 59 (Figura 16 - O Rei de Copas) Fonte: Lerry’s Alice in Wonderland site O Grifo foi inspirado no brasão de armas do Trinity College, em Oxford, e aparece em seu portão. Trata-se da caricatura dos estudantes do colégio onde estudava o autor. O grifo é um monstro fabuloso com cabeça e asas de águia e a parte inferior do corpo de leão. No Purgatório, canto 29, da Divina Comédia de Dante, o coche, carruagem da igreja é puxada por um grifo. O animal que foi um símbolo medieval comum da união entre Deus e o homem em Cristo. Ave fabulosa, com bico e asas de águia e corpo de leão. O grifo da emblemática medieval participa do simbolismo do leão e da águia, o que parece ser uma duplicação da sua natureza solar. Na realidade, ele participa da terra e do céu, o que faz dele um símbolo das duas naturezas – humana e divina – do Cristo. Evoca, igualmente, a dupla qualidade divina de força e de sabedoria. Quando se compara a simbologia própria da águia com a do leão, pode-se dizer que o grifo liga o poder terrestre do leão à energia celeste da águia. Inscreve-se, desse modo, na simbólica geral das forças da salvação. [...] Para os gregos os grifos são iguais aos monstros que guardam tesouros. [...] Simbolizam a força e a vigilância, mas também o obstáculo a superar para chegar ao tesouro (CHEVALIER; GHEERBRANT, 1993, p. 478). 60 (Figura 17 - O Grifo) Fonte: Lerry’s Alice in Wonderland site A narrativa refere-se também à Tartaruga Falsa (Mock-Turtle). Seu nome tem origem na Sopa de Tartaruga Fingida (em inglês: Mock-Turtle Soup) muito comum na Inglaterra. Esta era um caldo verde feito com cabeça de vitela imitando sopa de tartaruga. A partir daí, Tenniel ilustrou a figura com uma cabeça de bezerro, cauda e pernas. Este personagem faz referência a um crítico de arte chamado John Ruskin que ensinava desenho e pintura a óleo às irmãs Liddell uma vez por semana. O personagem também canta “Sopa de Tartaruga”, paródia a Beautiful Star (Bela estrela) que foi executada em trio pelas irmãs Liddell para Carroll durante o mesmo verão em que foi contada a história de As Aventuras de Alice Debaixo da Terra. Pode-se observar, com o elencar dos personagens, a forma característica da narrativa de Carroll. A mesma remete a um turbilhão de imagens, em que o leitor se emociona e vive a história intensamente. 2.5. O ilustrador e a narrativa não verbal A narrativa recebe a colaboração de um ilustrador inglês chamado John Tenniel (1820-1914), responsável pelos desenhos dos livros originais de Carroll. Nascido em Londres, colaborou com a revista satírica Punch, para o qual produziu mais de 2.000 61 ilustrações e caricaturas. Ilustrou diversos livros também, como uma edição de 1848 das Fábulas de Esopo, mas seu trabalho mais importante foram talvez as ilustrações que fez para Aventuras de Alice no País das Maravilhas e Alice através do Espelho. Apesar de ser cego de um olho, John Tenniel possuía uma memória fotográfica prodigiosa e desenhava sem modelos. (Figura 18 - John Tenniel – 1820-1914) Fonte: www.en.bestpicturesof.com Tenniel era uma pessoa importante para Carroll. Segundo Gardner (2009), era seu amigo pessoal e Carroll submetia suas ideias à apreciação de Tenniel. Trocavam informações e interferiam respectivamente em suas obras. Prova disso é um relato de Gardner, no comentário em Alice no País das Maravilhas, edição comentada, onde um dos capítulos relata sobre o episódio O Marimbondo de Peruca, “suprimido” de Através do Espelho e o que Alice encontrou por lá. No prefácio desse capítulo, relata-se sobre o episódio nunca publicado e que, os estudiosos da língua inglesa, sequer tinham conhecimento até que, Stuart Dodgson Collingwood, sobrinho de Lewis Carroll, relatara a respeito na biografia do tio, que publicou em 1898, The Life and Letters of Lewis Carroll. Collingwood escreveu: A história, como originalmente escrita, continha treze capítulos, mas o livro publicado consistia de apenas doze. O capítulo omitido introduzia um Marimbondo, no personagem de um juiz ou advogado, suponho, já que o Sr. Tenniel escreveu que “um marimbondo de peruca está inteiramente além dos instrumentos de arte. Afora as dificuldades de ilustração, o capítulo do “Marimbondo” não foi considerado à altura do restante do livro (GARDNER, 2009, p. 272) 62 Segundo Gardner (2009), estas observações eram seguidas por um fac-símile de uma carta, datada de 1º de junho de 1870, que John Tenniel enviara a Carroll. A carta retrata a amizade entre eles e como Carroll aceitava as sugestões de Tenniel. Abaixo a transcrição da carta, seguida de seu original, contida em Gardner (2009, p. 273, 274, 275). FAC-SÍMÍLE DA CARTA DE TENNIEL A DODGSON Meu caro Dodgson, Penso que, quando acontece o pulo na cena da estrada de ferro, você poderia certamente fazer Alice agarrar a barba da Cabra como sendo o objeto mais próximo de sua mão – em vez de o cabelo da velha senhora. O solavanco naturalmente as arremessaria juntas. Não me considere brutal, mas sinto-me obrigado a dizer que o capítulo do “marimbondo” não me interessa em absoluto, e não consigo imaginar como ilustrá-lo. Se quer encurtar o livro, não posso deixar de pensar – com toda submissão – que aí está a sua oportunidade. Aflito em pressa, Sinceramente seu, J. Tenniel 63 (Figura 19 - Carta de Tenniel a Dodgson) 64 (Figura 20 - Carta de Tenniel a Dodgson) (Figura 21 - Carta de Tenniel a Dodgson) 65 Pode-se perceber a importância da comunicação entre o autor e o ilustrador para que a obra final tenha perfeita harmonia. Segundo Cortez (2009), a ligação entre a palavra e a imagem possui uma relação constante desde os tempos mais remotos, exercendo uma espécie de complementação mútua, sendo que “desde os mais remotos tempos, essa ideia de fraternidade das artes esteve presente no pensamento humano, justificando algo muito mais profundo do que a mera especulação”. [...] Na Era Clássica, os textos místicos, dramáticos e científicos também foram ilustrados do mesmo modo que as iluminuras complementaram a escrita na Idade Média, atendendo às necessidades de comunicação da época. [...] Esse paralelismo entre as letras e as artes plásticas, em geral, atinge o seu ponto culminante nos séculos XV e XVI, respectivamente (CORTEZ, 2009, p. 355). Sob esse olhar, pode-se perceber que essa relação pode ser considerada inerente ao ser humano. Iniciou-se na Idade Antiga, passando por filósofos como Platão e Aristóteles e exerce poder evidente na sociedade contemporânea. [...] Essa fundamentação da analogia literatura/pintura suscitou, mais modernamente, alguns estudos bastante pertinentes. Praz (1982) afirma que a obra de arte mantém-se por si própria e recorre a exemplos históricos que comprovam a sua subsistência, a despeito de guerras e destruições. Aborda, primeiramente, a questão das “artes irmãs”, como uma ideia permanente no homem. Ilustra a aliança entre poesia e a pintura, também apresentando Horácio como uma autoridade que iniciou esse conflito harmonioso. Esclarece que a expressão ut pictura poesis, de sua Arte poética, interpretada como um preceito, muito embora o poeta estivesse explicando o fato de que certas pinturas e certos poemas agradam uma única vez, tem resistido a leituras e a exames críticos exaustivos e minuciosos, ao passo que a expressão muta poesis, eloquens pictura tem auxiliado a prática de poetas e pintores no decorrer de muitos séculos (CORTEZ, 2009, p. 366). A ilustração adquire um papel cada vez mais importante no sentido de que se promove, através dela, um interligar de linguagens que possuem função, facilitando o entendimento do leitor. Situa-se o leitor no contexto apresentado pelo autor, até mesmo, 66 como um hipertexto. Tornou-se um recurso que se utiliza para complementar e exemplificar o texto escrito. No livro Alice no País das Maravilhas, a relação entre texto e ilustração deu-se de maneira harmoniosa apesar de que, em alguns momentos, o processo criativo de Tenniel ultrapassa a realidade. Vê-se esse fato quando ilustrou Alice como loira, de longos cabelos, enquanto a verdadeira possuía cabelos curtos e pretos. Pode-se contemplar que a partir dessa narrativa e de sua complexidade e sugestividade, milhares de dissertações, tratados literários, peças teatrais, filmes e histórias em quadrinhos já foram protagonizados a luz da sátira, metafísica, política, filosofia, psicologia e psicanálise, discutindo-se diferentes possibilidades e interpretações dadas à história. Inúmeras adaptações foram feitas e passaremos a discutir a cinematográfica no próximo capítulo, por meio do filme dirigido por Tim Burton. A ilustração que se segue faz uso da metalinguagem para demonstrar o processo de criação literária de Lewis Carrol. (Figura 25 – O sonho de Alice) Fonte:histórica.com.br 67 CAPÍTULO 3 68 3. Processos de adaptação No presente capitulo, dar-se-á a pesquisa sobre a adaptação cinematográfica buscando maior compreensão dos fatores que interferem ou modificam a apresentação de uma obra com base na diferenciação de linguagens por ela utilizadas. Abordar-se-á, em primeiro lugar, a visão de Walter Benjamin em relação ao cinema. A concepção benjaminiana de cinema é derivada de sua noção de meios de comunicação de massa abordada a partir da discussão sobre a reprodutividade técnica. Benjamin parte de uma determinada interpretação de Marx (1818-1883) para apresentar sua tese fundamental: Quando Marx empreendeu a análise do modo de produção ainda estava em seus primórdios. Marx orientou suas investigações de forma a dar-lhes valor de prognósticos. Remontou às relações fundamentais da produção capitalista e, ao descrevê-las, previu o futuro do capitalismo. Concluiu que se podia esperar desse sistema não somente uma exploração crescente do proletariado, mas também, em última análise, a criação de condições para sua própria supressão (BENJAMIN, 1994, p. 165). Ainda segundo Benjamin, as mudanças do modo de produção demoram para chegar à superestrutura, já que esta se desenvolve mais lentamente. Ele enfatiza a reprodutividade técnica para discutir a questão da obra de arte, elemento da superestrutura. Segundo ele: Em sua essência, obra de arte sempre foi reprodutível. Os que os homens faziam sempre podia ser imitados por outros homens. Essa imitação era praticada por discípulos, em seus exercícios, pelos mestres, para a difusão das obras, e finalmente por terceiros, meramente interessados no lucro. Em contraste, a reprodução técnica da obra de arte representa um processo novo, que se vem desenvolvendo na história intermitentemente, através de saltos separados por longos intervalos, mas com intensidade crescente. (BENJAMIN, 1994, p. 166). 69 Dando continuidade à compreensão de tais fatores que interferem ou modificam a apresentação de uma obra e sua adaptação para o cinema e diante dos preceitos benjaminianos, o processo torna-se ainda mais interessante, quando utiliza-se de uma história tão consagrada na literatura, Alice no país das maravilhas. Soma-se ao fato da mesma contar com uma personagem emancipada, irreverente, à frente do seu tempo, rejeitando as marcas da literatura infantil da época vitoriana cuja intenção era de formar a criança, ensinar comportamentos modelares e atitudes concordantes com a ordem instaurada. Outros personagens, assim como Alice, tiveram esse posicionamento como o caso de Emília, de Monteiro Lobato, Harry Potter, de J.K. Rowling, Mary Lennox de Hodgson Burnett, Doroty de L.Frank Baum entre outros. Alice, como os outros personagens citados, torna-se emancipada pelo fato de se fazer sozinha – sem a ajuda de pessoas mais velhas. Torna-se relevante o fato de que a mesma Alice, menina emancipada do livro de Carroll, revive, no filme dirigido por Tim Burton, enquanto adulta, irreverente com a mãe e os preceitos da sociedade vitoriana. Assim, apresenta-se emancipada no sentido de que contesta os posicionamentos pré-determinados e busca um novo destino, mesmo que este não esteja de acordo com a sociedade vigente. 3.1. A adaptação cinematográfica Na sociedade contemporânea, valoriza-se aquele que utiliza diferentes habilidades na execução de uma tarefa, a fim de tornar-se competente. Sob esse olhar, estimula-se o uso da criatividade como fio condutor do desenvolvimento profissional, acompanhando a evolução no processo de comunicação da sociedade. Considerando tais pressupostos, o estudo A Metamorfose de Alice: da literatura ao cinema e as histórias em quadrinhos, visa demonstrar a importância de se trabalhar com a liberdade de criação dentro dos processos adaptativos, proporcionando-se o entendimento das diferentes linguagens no processo de comunicação, busca também analisar as metamorfoses ocorridas com o texto literário original, quando adaptado para outras linguagens. 70 Um mundo tão encantador é o que a narrativa de Alice no País das Maravilhas nos proporciona e faz com que crianças e adultos manifestem seus sentimentos, apaixonem-se e se coloquem em um “País” onde não se reprimem as fantasias. Onde fica o “País das Maravilhas”? A beleza desse clássico reside na resposta a essa questão. Pode-se interpretá-lo de diversas maneiras, a partir da história de vida de cada observador, dependendo do conflito apresentado. Vive-se com a esperança de existir um País das Maravilhas, onde tudo dê certo por si só. Quando se percebe que essa forma de vida é utópica, corre-se o risco de se sentir a “queda no buraco”. Demonstra-se no clássico de Carroll, pelo personagem de Alice, a existência de uma força interior nas pessoas chamada superação. A partir dela, cada observador encontra seu “País das Maravilhas” por meio do enfrentamento de riscos, desafios e amadurecimento de ideias. Nesse “País” têm-se alegria, dúvida, aventura, choro, desafios e mudanças, momentos inevitáveis na vida de qualquer pessoa. Esses se traduzem pela luta em “sair do buraco” e voltar para casa, teor constante do clássico de Carroll. Proporcionam-se, nas diferentes interpretações dadas pelas adaptações dessa maravilhosa obra, uma infinidade de olhares que se relacionam com o universo pessoal daquele que se faz responsável pelo processo adaptativo – cineastas, roteiristas, escritores e os demais colaboradores no processo. A partir dessa infinidade de possibilidades, tratar-se-á da adaptação da narrativa literária Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carroll para a cinematográfica, representada pelo filme de Tim Burton, verificando-se a relação de dependência do novo texto em relação ao original. 3.2. Narrativa cinematográfica Roland Barthes (1998) escreveu sobre as “narrativas do mundo”: não há sociedade sem narrativas, estas se multiplicam sem cessar, desempenhando funções fundamentais que se desdobram na vida das pessoas e das culturas. 71 Segundo Motta (2004), os seres humanos têm uma predisposição cultural primitiva e inata para organizar e para compreender a realidade de modo narrativo. Pode-se notar nesses depoimentos que a busca por diferentes formas de narrativas torna-se uma constante na existência humana. Partindo-se desse pressuposto. pensa-se que a narrativa parte da necessidade do homem de observar e relembrar fatos, exteriorizando-os. Quem narra evoca eventos conhecidos, seja porque os inventa, seja porque os tenha vivido ou presenciado diretamente. Revela, assim, uma tendência para a exteriorização [...] Narrar não é, portanto, apenas contar ingenuamente uma história, é uma atitude argumentativa, um dispositivo persuasivo de linguagem. Narrar é uma atitude, quem narra quer produzir certos efeitos de sentido [...] (MOTTA, 2004, p. 7). O autor de uma obra cinematográfica faz uso, em sua narrativa, de uma estrutura peculiar a ela, dependendo do contexto em que está inserido, como visto anteriormente na obra de Carroll, “Alice no País das Maravilhas”. O cinema constitui-se, também, como uma narrativa. Sobre isso Anelise Reich Corseuil (2009, p. 372) cita, conforme explicitado por Chatman (1992), em seu trabalho sobre a narrativa no cinema e na literatura: “qualquer narrativa apresenta uma mesma estrutura de base ou o que se denomina como deep structure. Essa estrutura é comum a todas as formas narrativas, independentemente de seu meio de expressão”. A narração cinematográfica amplia-se por possuir técnicas como o sistema de montagem, fotografia, som, cenografia e ponto de vista narrativo que privilegiam a execução da obra. Pode-se dizer que o cinema é o hipertexto do hipotexto original. Hipertextualidade, segundo Genette (1972) é toda relação que une um texto B (chamado hipertexto) a um texto anterior A (chamado hipotexto). O autor, em sua obra Palimpsestos (2005), afirma que “o objeto da poética não é o texto, mas sua transcendência textual, isto é, sua ligação textual com outros textos”. No cinema pode-se ver o “fazer coletivo”, enquanto que a literatura é centrada somente em uma pessoa, o autor. Dá-se, nesse contexto, um crescente processo de adaptação de obras literárias à fílmica. 72 Quando ocorre um processo de adaptação fílmica, verificam-se inúmeros comentários ou análises a respeito da “fidelidade” à obra. Leitores de um romance vão assistir sua adaptação para o cinema com certas expectativas, dentre as quais pode se incluir uma hierarquia de valores que definem o romance como obra original, legítima e representativa de uma certa época ou sociedade. O filme, por sua vez, é visto como obra que pode ser até certo ponto criativa, mas que está necessariamente em condição de dependência ao romance adaptado (CORSEUIL, 2009, p. 369). A cultura da fidelidade faz-se presente em muitas análises, apesar de que a contemporaneidade trouxe mudanças significativas nessas teorizações. Na adaptação da literatura para a linguagem cinematográfica, propõe-se que o receptor consiga situar-se na trama mesmo com aprimoramentos e modificações, sem que haja o cerceamento de significados. Mesmo que o leitor não possua conhecimento suficiente do sistema literário, poderá entender a versão cinematográfica, não prejudicando, assim, a leitura do hipertexto, podendo nele identificar e interpretar os signos literários presentes. Já o leitor que conhece a obra decodificada para a versão fílmica ou televisiva, poderá entender mais profundamente todos os signos linguísticos e suas sequências de combinações (AGUIAR E SILVA, 2002, p. 9). Sendo a literatura anterior ao cinema, torna-se fato normal que a mídia cinematográfica se aproprie da mesma, podendo obter uma sincronia entre as duas linguagens. Tem-se o século XX como o “século do cinema”, pelo fato do crescimento e da sofisticação de sua narrativa. Portanto, em pleno século XXI, o diálogo entre a literatura e o cinema ocorre de maneira ainda mais efetiva e conclusiva. Dessa forma, neste estudo, parte-se de uma perspectiva crítica, considerando os elementos específicos da linguagem cinematográfica para a construção da adaptação de uma obra literária. Para uma adaptação ser considerada criativa, original, tendo a obra literária como fio condutor, deve-se considerar as especificidades e similaridades de cada uma. Faz-se necessário observar a expressão da mesma obra em outra linguagem. 73 No filme dirigido por Tim Burton, Alice no País das Maravilhas (Alice in Wonderland) lançado em 2010, buscou-se na adaptação, uma recriação. Através de uma leitura forte do texto literário original, tem-se uma obra que transcende a mera transposição dos signos verbais aos visuais. O termo adaptação, apesar de muito popular, não responde às questões que permitem o trânsito de um sistema de signos a outro, assim posto, utilizar-se-á também o termo transmutação, compreendido como o processo que objetiva promover a interpretação de um signo linguístico a outro e a alteração do mesmo, no caso, das obras literárias às fílmicas, uma vez que, “a passagem de um texto literário para um texto fílmico pressupõe uma operação intertextual específica [...]” (BALOGH, 2005, p. 48). Assim, os caminhos da transmutação propõem a instauração de um processo, e “[...] este processo pressupõe a passagem de um texto caracterizado por uma substância homogênea – a palavra -, para um texto no qual convivem substâncias da expressão heterogênea, tanto no que concerne ao visual, quanto ao que concerne ao sonoro.” (BALOGH, 2005.p.48). Tim Burton, baseando-se no roteiro de Linda Woolverton, permanece com o fio condutor da narrativa original (Carroll) onde Alice, ainda criança, cai em um buraco que a leva para uma terra encantada e misteriosa, surreal. Nesta, a personagem passa por inúmeras transformações físicas e emocionais, interagindo com personagens fantásticos em que a razão e o conhecimento comum deixam de fazer sentido. Deve-se atentar para o fato de que em todas as narrativas a personagem Alice inicia suas aventuras com uma queda terrível, mas libertária, como se finalmente conseguisse atravessar o universo que a sufocava. A personagem é levada a um universo onde os próprios problemas mudam de perspectivas. A partir desse fio condutor, o filme dirigido por Tim Burton é envolvido por características pessoais como cineasta, como o gosto por histórias de terror, conforme será comentado a seguir. 74 (Figura 22 - Tim Burton) Fonte: www.infoescola.com Timothy William Burton nasceu em Burbank, Califórnia, Estados Unidos, no dia 25 de agosto de 1958. Primogênito do casal Bill Burton e Jean Erickson, viveu sua infância de forma peculiar. Não se adaptava bem ao cotidiano tanto familiar como escolar. Vivia mergulhado em um mundo de fantasia e reflexão envolto em leituras de Edgar Allan Poe e suas obras arrepiantes (www.disney.com.br). Culturalmente prematuro, levou consigo essas características que transpõem em suas obras, tornando-as diferenciadas. Quando concluiu o colégio, ganhou uma bolsa de estudos nos estúdios da Disney e passou a cursar o Instituto das Artes da Califórnia. Concluiu o curso de Animação e passou a trabalhar na Disney como aprendiz de animador. Nisso, elaborou seu primeiro curta-metragem, Vincent. Depois, partiu para realizar outros curtas e acabou aliando sua inclinação para o terror com sua veia cômica. Tem-se aí a união perfeita de sua mente fantástica com a de Lewis Carrol, além da superprodução Disney para produzir o filme Alice no país das maravilhas de forma tão peculiar. FICHA TÉCNICA DE ALICE NO PAÍS DAS MARAVILHAS Diretor: Tim Burton Elenco: Mia Wasikowska, Johnny Depp, Michael Sheen, Anne Hathaway, Helena Bonham Carter, Matt Lucas, Alan Rickman, Christopher Lee, Crispin Glover, Stephen Fry 75 Produção: Richard Zanuck, Joe Roth, Jennifer e Suzanne Todd Roteiro: Linda Woolverton Fotografia: Dariusz Wolski Duração: 109 minutos Ano: 2010 País: Estados Unidos Gênero: Fantasia Cor: Colorido Distribuidora: Disney Classificação: 10 anos Burton apropriou-se do aspecto surreal da obra original e da espinha dorsal da mesma para envolvê-la em uma situação em que a sociedade vitoriana continua sendo explorada como contexto social, porém com o toque renovador e contemporâneo de uma Alice jovem e contestadora, que se torna ainda mais forte após voltar do País das Maravilhas. Parte-se do pressuposto de que a adaptação fílmica passa pelo momento de tradução feita primeiramente pelo roteirista e depois pelo cineasta. Adaptação esta que não está vinculada somente à linguagem original. Também se considera a transformação de sentidos que a narrativa original oferece ao novo leitor. No momento em que não se considera mais a tradução como mimese, cópia do original, mas sim como atividade voltada para as condições de produção e recepção, a tradução passa a ser vista como uma transformação. Esta pode ocorrer a partir da cultura receptora, que passa a ser o foco das atenções. (DINIZ, 2003, p. 37) O ritual de passagem sugerido na narrativa de Burton não se faz somente pelas mudanças decorrentes da adolescência, mesmo porque a Alice de Burton já é adulta quando cai no buraco. Consolida-se o amadurecimento da mesma em função de decisões que necessita tomar e a apropriação da coragem necessária para que isso ocorra. 76 Em sua narrativa, Burton, sem esquecer o texto de partida, trabalha com conceitos sociais trazendo as ideias da sociedade contemporânea e colocando-as em “choque” em relação à sociedade vitoriana. O filme tem início com Alice, ainda criança, chamando seu pai por estar tendo novamente o sonho de sempre – com os personagens do País das Maravilhas. Alice e seu pai eram muito ligados. Alice, às vezes, achava que ele era a única pessoa no mundo que a compreendia. Charles, seu pai, ensinou-lhe que tudo é possível e que as pessoas mais interessantes em geral são um pouco amalucadas. Também dizia que sonhar não faz mal a ninguém. Pai e filha eram muito parecidos. Charles Kingsleigh era dono de uma firma exportadora. Seus colegas acharam que ele tinha perdido o juízo, quando decidiu expandir seus negócios até a Ásia. No entanto, Charles sempre acreditou que “a única forma de alcançar o impossível é acreditar que é possível”, uma convicção que transmitiu para sua filha Alice. (Figura 23 - Charles Kingsleigh – Pai de Alice) (Figura 24 - Alice e seu pai Charles) Após a morte do pai, Alice se sente deslocada. Cresce e se torna uma jovem tentando descobrir quem realmente é. Alice ama sua mãe, mas não gosta que ela fique lhe dizendo o que fazer. Isso por que a mãe de Alice segue rigorosamente as convenções da sociedade da época e Alice acha que as pessoas só deviam fazer aquilo em que acreditam. Ela nunca foi de se sujeitar à opinião alheia e seu grande sonho é ter independência, estando determinada a conquistá-la, contrariando as convenções da 77 sociedade da época. Sua mãe espera que ela se case com um jovem aristocrata e more nas redondezas, porém Alice quer mais da vida. Cada pessoa da família de Alice tem uma opinião sobre o que ela deve fazer da vida, e parece que todos já mapearam seu futuro. Helen, sua mãe, teve que educar a filha sozinha após a morte do marido. Quer o melhor para Alice, e muitas vezes tem de lutar contra a natureza teimosa e decidida da filha. Helen acha que Alice não vai conseguir prosperar se não se adequar – e recusar-se a usar corpete e meias compridas não era exatamente a ideia que a sociedade fazia de um comportamento “adequado”. Por muitas vezes Alice se punha a questionar: Quem decide o que é adequado? (Figura 25 - Alice com sua mãe) A irmã de Alice acredita que tem um casamento perfeito e quer que a irmã tenha o mesmo. Ela crê que Alice fará um maravilhoso casamento com Ascot, filho de Lorde e Lady Ascot, chegando a dizer a Alice que deveria estar feliz, pois seu rostinho bonito não irá durar para sempre. Novamente podem-se observar as normas e regras que a sociedade vitoriana impunha quanto à função da mulher, ou seja, a mulher não possuía voz social, a mesma era vista como uma propriedade do homem, o que pode ser chamado de coisificação da mulher. 78 O marido de Margareth, irmã de Alice, parece um perfeito cavalheiro, e Margareth não tem a menor dúvida quanto a isso. Porém, Alice surpreende-o beijando outra mulher na festa de seu suposto noivado. Definitivamente, não é um comportamento “adequado”. O filme questiona as convenções e regras tão rígidas da sociedade, mostrando que estas são superficiais e hipócritas. Pode-se notar esse questionamento na figura de Margareth que, colocando-se em um posicionamento social desejado, questiona as ideias de Alice, alegando ter um casamento e um marido perfeitos. (Figura 26 - Margareth – irmã de Alice) (Figura 27 - Lowell – marido de Margareth) 79 O casamento arranjado por interesses sociais, costume na sociedade vitoriana, cai-lhe nas mãos como “um presente”, ideia reforçada pelas famílias da época, onde a única realização da mulher estaria em um bom casamento e na criação dos filhos. Reforça-se essa ideia pela própria família do noivo. Os nobres Lorde e Lady Ascot oferecem uma recepção para o noivado de seu filho e Alice. Há vinte anos Lady Ascot começou a planejar esta festa de noivado e fazia questão de que tudo saísse absolutamente perfeito, como os costumes da época em que a mulher era responsável pelo planejamento das recepções e bailes. Lord Ascot comprou a empresa de Charles Kingsleigh, pai de Alice. Os dois eram bons amigos, e o único arrependimento de Lord Ascot foi não ter investido nos planos expansionistas de Charles, quando este era vivo. Os Ascot prepararam uma festa espetacular no jardim, com jogo de críquete, quarteto de cordas e danças, que evidenciava a boa postura que deveriam ter como personagens da alta sociedade. Apesar de todas as aparências, Lady Ascot almejava ter Alice como nora porque seu maior medo era o de ter netos feios. Com a beleza de Alice, segundo a própria personagem, não haveria risco de isso acontecer. Seu filho Hamish era muito diferente de Alice. Arrogante, queria impor a Alice a ideia de que sonhar era total perda de tempo. (Figura 29 - Lady Ascot) (Figura 28 - Lord Ascot) (Figura 30 - Hamish Ascot) 80 (Figura 31 - Convidados à espera do pedido de casamento) (Figura 32 - Pedido de Casamento) (Figura 33 - Retrato do pedido) Durante o pedido de casamento, Alice avista uma lagarta no ombro de Hamish e pega-a delicadamente, colocando-a em outro lugar, enquanto o noivo faz cara de nojo. Nesse momento, há uma referência da correlação da lagarta com Absolem, criatura mais sábia do Mundo Subterrâneo, que é uma lagarta azul. Após o pedido de casamento, Alice relutante vê o Coelho Branco e sai correndo atrás dele. 81 (Figura 36 - Pegando a lagarta) (Figura 34 - Alice correndo atrás do Coelho) (Figura 35 - Coelho aguardando Alice na árvore) Tem-se inicio o rito de passagem, agora ligado ao casamento, não aceito de uma forma tranquila por Alice, que foge para pensar no conflito que lhe foi imposto, “caindo no buraco”. 82 (Figuras 42 a 55 (1) - Sequência da queda de Alice pelo buraco) 83 Alice mergulha por entre bolas de cristal, crânios humanos, piano e livros. Está acostumada a sonhos bizarros, mas este é o mais esquisito de todos. Cai num salão redondo rodeado por diversas portinhas. O grande salão redondo no fundo da toca do coelho é de fato misterioso. Como é habitual no mundo subterrâneo, há diversas portas, cada qual com um formato e tamanho diferentes, e ninguém sabe se todas levam ao mesmo lugar. Estão trancadas, mas há uma minúscula chave sobre uma mesa de vidro. Alice experimenta a chave em todas as portas até que, por fim, uma serve. Do outro lado da porta, ela avista um belo e estranho jardim. Após diminuir e crescer com o auxílio do líquido de uma garrafinha e do bolinho chamado Altestrudel, Alice consegue adentrar-se no imenso jardim. (Figuras 56 a 58 [1] - Chegada de Alice ao Jardim das Maravilhas) Podem-se perceber os efeitos de iluminação e posicionamento de câmaras narrando os acontecimentos. Primeiramente na queda pelo buraco, vai-se escurecendo aos poucos, conforme Alice adentra mais o buraco, deixando a claridade do céu como fundo, quando a câmara foca o início da queda. Nas figuras 56 a 58, observa-se um lindo jardim colorido, porém com nuvens se juntando, formando um ambiente nebuloso, misterioso. Esse fato intensifica-se com o posicionamento em que foi colocada a árvore (fig.57), como se fosse agarrar Alice. Um portal imponente e imenso em relação ao tamanho de Alice também auxilia na ideia de se colocar Alice em posição de insegurança frente a uma situação desconhecida. 84 Da mesma forma como na narrativa original de Lewis Carroll, no País das Maravilhas para onde ela é transportada, Alice depara-se com inúmeras situações estranhas, que necessitam de um amadurecimento pessoal para que encontre forças para enfrentá-las. A situação mais conflitante que lhe é colocada é a busca da própria identidade como Alice. Na trama de Burton, a mesma não se recorda de já ter estado no País das Maravilhas e das lutas e vitórias ali alcançadas. O retorno torna-se uma nova busca interior, um novo amadurecimento em outra fase de sua vida. Alice, aos poucos, conhece os habitantes desse estranho lugar. Depara-se inicialmente com o Coelho Branco, Tweedle-Dum e Tweedle-Dee e a Marmota, além de Flores Falantes com feições humanas. Cada personagem possui características distintas em muito se assemelhando aos personagens “reais” da sua festa de noivado. (Figura 59 [1] - Marmota, TweedleDum, Tweedle-Dee e coelho) (Figura 60 [1] - Flores falantes) Mallymkum, a Marmota, pode ser uma espécie de rato, porém certamente não age como um rato. Esta arrojada marmota é uma criatura valente e decidida, que está sempre em guarda. Quando não está tomando chá com o Chapeleiro Maluco, está afiando seu alfinete, cuidando de seus trajes de luta e se preparando para a próxima batalha. É corajosa e ousada. Uma marmota que jamais se dá por vencida, seja na hora de enfrentar um brutamontes ou de planejar a fuga de uma prisão. Destemida das patas às orelhas, Mallymkum nunca pede clemência. Seu alfinete, que ganhou do Chapeleiro Maluco, é pequenino, mas mortal, e também muito versátil. Serve para acordar quem está sonhando, espetar olhos e arrombar fechaduras. A marmota é a melhor amiga do 85 Chapeleiro. É ela quem o faz voltar à realidade quando ele tem um ataque nervoso. O papel da marmota no filme dirigido por Burton, parece ser o de ensinar Alice a ser destemida, acreditando no que necessita ser feito e em seus sonhos. (Figura 61 [1] - Mallymkum, a marmota) Tweedle-Dum e Tweedle-Dee são irmãos e é praticamente impossível diferenciálos. Esta discordante dupla pode parecer igual e falar igual, mas isso não significa que os dois pensem da mesma maneira. Discordar é um traço de família e serem briguentos também. Quando não estão falando ao contrário, Dee e Dum estão se cutucando e implicando um com o outro. Na verdade, o único momento em que esses dois não brigam entre si é quando precisam entrar numa briga. Os dois formam uma dupla surpreendentemente boa e lutam em perfeita harmonia. Mostram a Alice que o trabalho em equipe funciona e que, apesar das pessoas terem opiniões diferentes, podem se ajudar mutuamente. (Figura 62 [1] - Tweedle-Dum e Tweedle-Dee) 86 O Coelho Branco, McTwisp, está sempre saltitante, correndo de um lado para o outro. Elegante, melindroso e sempre pontual é o pajem da corte, nunca sai de casa sem seu relógio de bolso e sem um colete bem chique. Ninguém é mais confiável que o Coelho Branco para fazer um trabalho de responsabilidade. Por isso, foi escolhido para subir ao mundo real e encontrar Alice. Não é uma tarefa fácil, pois poderia ser comido por outros animais. Além de seu relógio de bolso, o Coelho Branco leva sempre consigo uma trombeta, que faz soar nas cerimônias oficiais, para anunciar a chegada de convidados e para marcar o início de batalhas. Rápido, eficiente e organizado, McTwisp é um excelente pajem da corte. Serviu à Rainha Branca como seu criado pessoal. (Figura 63 [1] - Coelho Branco) Alice é levada para conhecer Absolem, o absoluto. Absolem, sendo o sábio do Mundo Subterrâneo, é procurado por todos que vão em busca de seus criteriosos conselhos. É o guardião do Oráculo. Oráculo designa tanto o ser que guarda inspirações divinas como o lugar sagrado onde está a resposta das indagações. No filme, o Oráculo é um antigo pergaminho que descreve todos os dias desde o começo dos tempos. Absolem guarda o pergaminho a sete chaves. A maioria das pessoas acha Absolem muito sério ao vê-lo pela primeira vez. Este é um filósofo que gosta de ficar sentado em cima de um cogumelo envolto em fumaça criando um ambiente tão misterioso quanto a sua pessoa. Na realidade ele não é uma pessoa, é uma lagarta que, brevemente, entrará no processo de metamorfose e se transformará em borboleta. O mesmo tipo de metamorfose que Alice passará durante sua estadia no mundo subterrâneo, a transformação. 87 (Figura 64 [1] - Floresta dos Cogumelos) (Figura 65 [1] - Fumaça envolvendo Absolem) Figura 66 [1] – Absolem) Absolem mostra a Alice, através do Oráculo, o seu verdadeiro destino, porém ela ainda não se convenceu de quem é e para que veio. Burton deixa claro em sua narrativa o processo lento que é a metamorfose de Alice e por quantas diferentes personalidades ela terá de passar para crescer e se conhecer melhor. Ela necessita entender que, para que haja amadurecimento, muitos “monstros” deverão ser derrotados. Na narrativa de Burton, os monstros são representados pelo poder, força e medo como o Capturandam, a Rainha Vermelha e o Jaguadarte. O Capturandam é um ser imenso e horripilante que apavora todos os moradores do Mundo Subterrâneo. Com um rugido de trovão e dentes afiados como navalhas, é uma visão que aterroriza qualquer um. Tudo no Capturandam é grande e forte. Seu fedor é tão potente que faz desmaiar qualquer um que respire perto dele, e seu rugido é tão monumental que deixa abobalhado quem o ouve. 88 O Jaguadarte é o preferido da Rainha Vermelha e também sua arma mais poderosa. Só pode ser morto pela Espada Vorpal, porém ninguém ousa se aproximar por ser assustador e ter presas afiadas. Uma chicotada da cauda longa e pontuda do Jaguadarte é suficiente para derrubar uma pessoa; sua habilidade de lançar chamas faz dele um ser invencível. Além disso, não é um matador sem inteligência. O monstro sabe falar e é eloquente, disseminando muito mais o medo. A Rainha Vermelha tornou-se uma líder temida; seu grito recorrente de “Cortemlhe a cabeça” faz com que seus súditos obedeçam cegamente a todos os seus comandos. A preocupação da Rainha em relação à cabeça, possivelmente se deve ao fato do tamanho impressionante de sua cabeça inchada. Ela é tão obcecada com a questão que arranjou um espelho que faz sua cabeçorra parecer menor e tem um quarto só para guardar os chapéus que usa para escondê-la. Raramente vê algo pelo lado positivo e sua reação frente às situações contrárias ao seu comando é sempre impiedosa. Para se sobreviver na corte da Rainha Vermelha, existe um único critério: ter alguma parte do corpo inflado. Diante desse fato muitos dos súditos enganam a rainha com partes do corpo falsas. Os súditos também devem ter os rostos sempre muito bem maquiados para combinar com o da Rainha. Nesse caso, o olhar do diretor conduz seu espectador a traçar um paralelo entre a personalidade autoritária da Rainha Vermelha com Lady Ascot pelo fato de exigirem que sua vontade sobressaia sobre todos. (Figura 67 [1] – Capturandam) (Figura 68 1 – Rainha Vermelha) (Figura 69 [1] – Jaguadarte) 89 Alguns personagens não podem deixar de ser citados. Isso pelo fato de, apesar de não serem os protagonistas, dão vida à trama, envolvendo e abrilhantando o entorno de Alice. É o caso do Chapeleiro Maluco, do Gato de Cheshire e da Rainha Branca. (Figura 70 [1] - Chapeleiro Maluco e Gato de Cheshire) (Figura 71 [1] – Rainha Branca) O Chapeleiro Maluco vive no Mundo Subterrâneo e procura tranquilizar as pessoas ao redor, dizendo que está “muito bem”, mas o fato de estar sempre à beira de um ataque de nervos sugere exatamente o contrário. Contudo, como costumava dizer o pai de Alice,” as pessoas mais legais são sempre meio amalucadas”. O Gato de Cheshire está sempre preguiçosamente refestelado em algum lugar, com um sorriso estampado no focinho. Pode aparecer e desaparecer à vontade. Mirana, a Rainha Branca é bonita, gentil e bondosa. Quer sua coroa, roubada pela irmã, de volta. Para isso, basta que algum herói se disponha a matar o Jaguadarte. Ele mesma não o faz. Nesse momento, Burton faz um paralelo entre a Rainha Branca e a mãe de Alice. Ambas querem mudanças, porém encontram-se em sua zona de conforto. Alguém tem de fazer a mudança por elas. O castelo da Rainha foi todo construído em mármore branco sob o tema “xadrez”. Há gigantescas peças de xadrez assentadas sobre rochas e até o jardim é demarcado como um tabuleiro de xadrez. 90 (Figuras 72, 73 e 74 [1] - Castelo da Rainha Branca) É válido destacar a subversão da linguagem que ocorre na história de Alice. Marginalês é a língua falada no Mundo Subterrâneo. A Resistência Secreta do Subterrâneo adotou essa antiga língua, cheia de palavras esquisitas e maravilhosas, como língua oficial de seu grupo político. A seguir, apresentamos um glossário de Marginalês para melhor compreensão dos leitores. Glossário de Marginalês Altestrudel: bolo que faz as pessoas crescerem Briluz: quatro horas da tarde, quando as pessoas começam a preparar o jantar. Cabrincabrin: dia da celebração à Rainha Branca, em que todo o povo do mundo subterrâneo veste branco, bebe leite e só conta mentirinhas brancas. Capturandam: feroz criatura controlada pela Rainha Vermelha Carmesin: a área central do Mundo Subterrâneo, onde há as Flores Vivas Charco Grudento: pântano perigoso, feito de lama grossa e pegajosa. Dia de Horunvindictum: dia em que a Rainha Vermelha deu o golpe e tomou o poder do Mundo Subterrâneo Dia de Lubriz: dia em que Alice volta ao Mundo Subterrâneo Espertal: região ocidental de Subterrâneo, terra do Chapeleiro e do Gato de Cheshire FelFel: pássaro controlado pela Rainha Vermelha Fora, Cabeçuda: abaixo a Rainha Vermelha; lema da Resistência Secreta do Subterrâneo Frumioso: sujo e mal cheiroso Gloriandei: o dia em que Alice mata o Jaguadarte e liberta o Mundo Subterrâneo do jugo da Rainha Vermelha 91 Jaguadarte: monstro assassino, a arma mais poderosa da Rainha Vermelha Marginália: região selvagem a oeste de Espertal Marmoreal: local onde fica o castelo da Rainha Branca Mata Brava: local onde Alice luta contra o Jaguadarte Miolomoles: loucos, doidos, malucos Mundo Subterrâneo: nome real do lugar que Alice chama de “País das Maravilhas” Oráculo: o calendário de todos os dias no Mundo Subterrâneo desde o Início. Cada dia tem seu próprio título e ilustração. Passomaluco: a dança com que os moradores do Mundo Subterrâneo expressam seus sentimentos de alegria desenfreada. Quebratudo: dia em que a Rainha Branca foi para o exílio em Marmoreal Salazem Grum: cidade portuária onde mora a Rainha Vermelha Suco Minimizador: poção de gosto intragável que faz as pessoas encolherem. Podem-se perceber as características de contemporaneidade colocadas no filme dirigido por Burton, permanecendo as similaridades com o texto original. Vê-se um diálogo fantástico entre a narrativa cinematográfica e a literária, ocorrendo entre elas um abismo temporal. Burton utiliza-se de um recurso cinematográfico chamado flashback para retomar a história de Alice ainda criança, assim como no livro de Carroll. Na última conversa que Alice tem com Absolem, ela se recorda da primeira vez que veio ao País das Maravilhas. 92 (Figuras 75 a 83 [1] - Sequência de cenas de flashback de Alice) 93 O clímax do filme, ponto culminante da ação dramática, é a grande batalha de Alice com o Jaguadarte. (Figuras 84 a 89 [1] - Sequência de cenas da batalha final) Após a vitória final e o encontro consigo mesma, Alice retorna de “seu sonho” para a vida real onde encontra forças para rejeitar o noivo considerado por sua família como “bom partido” e enfrentar o marido adúltero da irmã. Mostra-se uma mulher forte, longe de ser ingênua e sonhadora, como mostrada no início, perfil esse comum às mulheres da época vitoriana. Assume o posicionamento de trabalhadora e lutadora, ao invés da esposa submissa representada pela sociedade da época. Apesar de a história continuar sendo narrada na sociedade vitoriana, mostra uma Alice muito mais engajada em uma sociedade moderna, capitalista. Colocam-se em xeque as convenções e o moralismo, observando-se um convite ao questionamento moral e social, uma crítica às frivolidades da aristocracia vitoriana que remete o pensamento para a sociedade atual. Alice torna-se uma jovem confiante que sabe muito bem o que deseja. Ela diz para Hamish que não pode se casar com ele; conta para Lady Ascot que, ao contrário dela, 94 adora coelhos, e deixa claro para Lowell que está de olho em seu comportamento, ou seja, diz o que pensa, algo inconcebível para a sociedade vitoriana. Todos ficaram perplexos por seu vestido estar todo rasgado e sujo e seu cabelo estar despenteado. Alice não liga mais para o que pensam dela e por estarem chocados por sua aparência e comportamento. O único que parece compreendê-la é Lord Ascot, o qual ponderou que, como Alice não seria sua nora, poderia ser aprendiz em sua empresa, que era anteriormente de seu pai. Ela sobe ao escritório e juntos traçam novas metas, seguindo as ideias de seu pai. O ápice do filme e seu encerramento dão-se, justamente, no cais do porto, onde os familiares se despedem de Alice, que embarca rumo a novas conquistas comerciais viabilizando sua postura de “querer algo a mais da vida”. Quando está no topo da embarcação, pousa em seu ombro uma borboleta azul, que Alice cumprimenta como sendo Absolem já transformado. A cena, além de poética, deixa claro que Alice não se esqueceu do Mundo Subterrâneo e dos amigos deixados por lá. 95 (Figuras 90 a 101 [1] - Sequência de cenas finais) Pode-se observar que, na narrativa de Burton, a contextualização se faz presente em relação ao universo feminino e a forma de vivê-lo. Trabalha-se com a ideia de que as relações necessitam de fundamento para coexistir, ideia essa proveniente de uma sociedade moderna. Segundo Diniz (2007, p.14), quando uma cultura se traduz de um texto para outro, tanto o passado como o presente estarão permeando o novo texto. Apesar da temática contemporânea, Burton trabalha, com muita propriedade, dentro de um contexto de vida vitoriano, próprio da literatura original. Vê-se uma recuperação do passado instigado pela transformação do texto para o presente. O filme, repleto de efeitos especiais, realizado com tecnologia 3D, consegue intensificar a fantasia e inspiração da narrativa original, promovendo um diálogo entre a modernidade e a era vitoriana. O filme, dirigido por Tim Burton, apresenta uma nova leitura do texto literário renovando seus significados para o cinema contemporâneo. Na obra fílmica não se pode deixar de pensar que o processo de adaptação tem início no roteirista (Linda Woolverton), porém se desenrola nas diversas adaptações 96 concebidas pelo diretor (Tim Burton), pela equipe de produção (Richard Zanuck, Joe Roth, Jennifer e Suzanne Todd), culminando na produção do elenco de atores (Mia Wasikowska, Johny Depp, Michael Sheem, Anne Hathaway, Helena Bonham Carter, Matt Lucas, Allan Rickman, Christopher Lee, Crispin Glover, Stephen Fry). Todos têm participação no processo adaptativo da obra imprimindo-lhe seu olhar e sua interpretação. O eixo estrutural da narrativa de Carroll permanece, enquanto a intertextualidade se faz presente na mudança de concepção por todos aqueles que o interpretam além da alteração da linguagem literária para a fílmica. Uma estrutura similar entre as duas linguagens que se diferenciam pelo tratamento distinto dado a elas. O primeiro fato que nos ocorre é o do enorme fosso semiótico que separa, aparentemente de modo inconciliável, essas duas formas de expressão, fundadas, cada uma, em espécies de signos e códigos tão diferentes. A literatura acredita-se, não vai ter nunca a mobilidade plástica do cinema, e este, por sua vez, nunca o nível de abstração da literatura. (BRITO, 2006, p. 131-132). O cinema faz uso da imagem juntamente com a música, a chamada comunicação audiovisual, de forma a articular o processo para produzir uma narrativa dinâmica, dando significado à narrativa literária que foi modificada, até mesmo resumida ou ampliada como é o caso do filme Alice no País das Maravilhas. A versão cinematográfica uniu os livros Alice no País das Maravilhas e Através do Espelho e O que Alice Encontrou lá, de Lewis Carroll. Tal adaptação foi além da adaptação convencional, imprimindo o estilo do diretor Tim Burton, que ficou conhecido por sua criatividade e universo imaginário. O diretor, assim como Carroll, não subestima as crianças com historinhas aparentemente adequadas às normas sociais. Tornou-se costumeiro ao diretor Burton nortear seus filmes por temas ligados à opressão da sociedade, aos sentimentos de inadequação frente a ela e à falta de crença na imaginação. Em Alice, ele retoma esse formato já visto anteriormente em outras de suas obras como Edward Mãos de Tesoura (Edward Scissorhands, 1990), O Estranho Mundo de Jack (The Nightmare Before Christmas, 1993), Peixe Grande (Big Fish, 2003, A 97 Fantástica Fábrica de Chocolate (Charlie and The Chocolate Factory, 2005) e A Noiva Cadáver (Corpse Bride, 2005). No processo adaptativo do filme, a roteirista Linda Woolverton recriou os clássicos de Carroll dando nome a personagens que antes não o tinham e caracterizando os participantes da festa do início do filme, fazendo um paralelo com personagens do “País das Maravilhas”. As gêmeas, que estavam na festa do noivado de Alice, completavam simultaneamente suas falas assim como Tweedle-Dee e Tweedle-Dum. (Figura 102 [1] – As gêmeas) (Figura 103 [1] - Tweedle-Dee e Twedle-Dum) Fonte: Cenas do filme Alice no País das Maravilhas de Tim Burton (2010) A mãe de Alice, mulher doce, porém sem atitude, pode ser representada pela Rainha Branca, pessoa bondosa e amorosa, mas que não consegue sozinha posicionar-se em suas opiniões. (Figura 104 [1] – Mãe de Alice) (Figura 105 [1] – Rainha Branca) Fonte: Cenas do filme Alice no País das Maravilhas, de Tim Burton (2010) 98 A mãe do noivo, autoritária, soberana em seus desejos e ações, tem seus atos retomados pela Rainha Vermelha. (Figura 106 [1] – Mãe do noivo) (Figura 107 [1] – Rainha Vermelha) Fonte: Cenas do filme Alice no País das Maravilhas, de Tim Burton (2010) Até mesmo as rosas do lindo jardim do palácio onde a festa está sendo realizada aparecem no País das Maravilhas, justamente no palácio da Rainha Vermelha que, da mesma forma que a mãe do noivo, quer pintar suas rosas de vermelho porque foram plantadas por engano. A fala da cena em que a mãe do noivo expõe seus propósitos à Alice e comenta que plantaram rosas brancas por engano porque ela as queria vermelhas, repete-se com a Rainha Vermelha, no País das Maravilhas. (Figura 108 [1] – Rosas Brancas) (Figura 109 [1] – Alice menina pintando as rosas) Fonte: Cenas do filme Alice no País das Maravilhas, de Tim Burton (2010) Segundo Field (2001), o roteiro é uma obra contada em imagens, diálogos e descrições, localizada no contexto da estrutura dramática. 99 Pode-se ver, nesse momento, a importância da figura do roteirista como mediador e formatador de uma ideia inicial para um outro texto. O cenário também merece destaque por interferir na obra, completando-a, inclusive contextualizando as diferentes épocas, sequência de cenas, e estruturas temporais. Enquanto o livro necessita de muitas explicações e detalhamentos para inserir um cenário ao texto, a narrativa cinematográfica não necessita de amplas descrições pelo fato de visualizar-se prontamente o cenário. O fator iluminação, efeitos sonoros e de câmeras tornam-se cruciais para transportar o hipotexto para o hipertexto. Pode-se notar, na figura que se segue, a utilização do cenário e da iluminação difusa, proporcionando um ambiente intimista, clássico, antigo que mostra a busca de algo novo através da abertura de uma das portas. As portas diferentes em seu formato, altas em relação à personagem, para demonstrar a insegurança frente a novos desafios. (Figura 110 [1] – Alice no Salão Redondo) Fonte: Cenas do filme Alice no País das Maravilhas, de Tim Burton (2010) As técnicas de iluminação interagem com o trabalho das câmaras, com a trilha sonora e com outras técnicas cinematográficas, intensificando o efeito dramático, alegre, noturno ou diurno de uma determinada cena. 100 No cinema, a luz é ideologia, sentimento, cor, tom, profundidade, atmosfera, história. Ela faz milagre, acrescenta, apaga, reduz, enriquece, anuvia, sublinha, alude, torna acreditável e aceitável o fantástico, o sonho, e ao contrário, pode sugerir transparências, vibrações, provocar uma miragem na realidade mais cinzenta, cotidiana. [...] Com a luz se escreve o filme, se exprime o estilo. (FELLINI, 2000). Nas figuras subsequentes, nota-se claramente a utilização perfeita da iluminação para ambientalizar o personagem. A iluminação modifica-se conforme o clima que quer se dar à cena. Na primeira figura pode-se verificar o clima tenso e de insegurança sendo quebrado pelo feixe de luz, mostrando o caminho a ser seguido. (Figura 111 [1] – Alice na floresta) Fonte: www.laxantecultural.com Nota-se a riqueza plástica valorizada pela iluminação, obtendo-se uma expressão de grandiosidade do cenário. 101 (Figura 112 [1] – Floresta de cogumelos) Fonte: www.laxantecultural.com Nas duas cenas que se seguem, o cenário e a iluminação completam-se, dando a sensação de perigo iminente através do ambiente sombrio e esfumaçado. Essa ambientação leva o espectador a esperar algo difícil e amedrontador para os personagens. (Figura 113 [1] – Chapeleiro Maluco na batalha) Fonte: www.laxantecultural.com (Figura 114 [1] – Lebre de Março) Fonte: www.laxantecultural.com 102 Nas figuras abaixo, pode-se ver o cuidado nas diferentes fases de criação do personagem do gato considerando-se nelas a iluminação em diferentes momentos e a plástica pictórica. (Figuras 115 a 119 [1] – Sequência de criação do personagem Gato de Cheshire) Fonte: www.laxantecultural.com O transportar de ideias para o hipertexto pode ser visualizado de maneira mais efetiva através do posicionamento de câmeras. Segundo Bernardet (1991), utilizam-se cenas com plano geral, contra-plongeé (posicionamento de câmera que focaliza o objeto e/ou personagem de baixo para cima) ou plongeé (projeção da câmera posicionada 103 acima do nível do objeto e/ou ator), as quais promovem a caracterização da cena. A efetivação dessas características intensifica-se com a utilização da trilha sonora. Percebe-se, na figura que se segue, uma das cenas com plano geral (Long shot), plano que inclui todo o cenário, mostrando um grande ambiente, em que apresenta-se e contextualiza-se a época em que se passa a ação. Mostra-se a beleza do local e o costume da época em que as mulheres eram responsáveis por organizar grandes bailes com pessoas da alta sociedade. A iluminação auxilia nessa narrativa que coloca as pessoas distribuídas alegremente em um ambiente saudável, extremamente iluminado, claro, levando ao espectador a sensação de alegria, do belo e do perfeito. (Figura 120 [1] – Jardim da Mansão dos Ascot) Fonte: Cena do filme Alice no País das Maravilhas, de Tim Burton (2010) Segundo Jorge Machado (2005), organizador do Dicionário e Glossário sobre Roteiro e Cinema, o posicionamento das câmeras permanece agindo como narrador tanto para diminuir como para aumentar o poder do personagem. Na figura que segue abaixo, a câmera é posicionada em plongée, enquadramento da imagem com a câmara focalizando a pessoa ou o objeto de cima para baixo, imprimindo ao personagem uma posição inferior, um momento de indecisão frente à situação vivida ou mesmo uma situação de ameaça eminente. Esse posicionamento é também chamado de ângulo alto. 104 (Figuras 121 a 126 [1] – Cenas do filme Alice no País das Maravilhas) A câmera posicionada frente à personagem produz um “zoom”, intensificando a expressão da mesma. Esse tipo de posicionamento produz clareza à ação e elimina o cenário de fundo. Esse posicionamento na linguagem cinematográfica é chamado de close-up. Trata-se do plano que enfatiza um detalhe. Com o uso do primeiro plano ou plano de pormenor, toma-se a figura humana como base e este plano enquadra apenas os ombros e a cabeça de um ator, tornando bastante nítidas suas expressões faciais. (Figuras 127 e 128 [1] – Alice) Fonte: Cenas do filme Alice no País das Maravilhas, de Tim Burton (2010) 105 A câmera posicionada em contra-plongée proporciona a narrativa contrária, ou seja, imprime superioridade, poder ao personagem. Trata-se do ângulo baixo que é o enquadramento da imagem com a câmara focalizando a pessoa ou objeto de baixo para cima. (Figuras 129 a 136 [1] – Cenas do filme Alice no País das Maravilhas) 106 O filme dirigido por Tim Burton trabalha com as mesmas personagens da história de Carroll, emprega em seu início o mesmo tempo histórico, produzindo uma discussão sobre as normas e regras da sociedade vitoriana e, em seu término, faz com que a personagem retorne a sua origem, saindo do País das Maravilhas e voltando a sociedade. Utiliza-se do mesmo contexto nas duas narrativas, inclusive em seu término quando Alice, antes insegura, volta forte e determinada passando pelo desenvolvimento e crescimento pessoal que a torna diferente, segundo os padrões vitorianos. A diferença consiste na idade da personagem e no tipo de “rito de passagem”, outrora da adolescência ocorrido no livro de Carroll e no filme o amadurecimento da jovem frente a um possível casamento. (Figuras 137 e 138 [1] – Alice, seu pai e amigos) Fonte: Cena do filme Alice no País das Maravilhas, de Tim Burton (2010) Segundo Martin, os procedimentos técnicos do flashback são pouco numerosos por estarem condicionados à sua necessária inteligibilidade, a passagem de uma a outra temporalidade deve ser compreendida pelo espectador, e por esse motivo a introdução do flashback conta essencialmente com dois procedimentos: o travelling para a frente, que define mais acima como indicativo da passagem à inferioridade e, portanto, à duração subjetivamente vivida – e a fusão, que representa, materialmente e sugere psicologicamente uma espécie de fusão entre dois planos de realidade, como se o passado invadisse pouco a pouco o presente da consciência, convertendo-se também em presente, como pode-se ver na figura acima. (MARTIN, 2009, p. 230) 107 As duas narrativas, literária e fílmica, colocam a personagem principal com a personalidade semelhante à da verdadeira Alice. Esta, ainda menina, já demonstrava uma personalidade diferenciada de suas irmãs. Irrequieta, contestadora, com padrões avessos à época em que viveu. Esse mesmo contexto foi demonstrado nas duas narrativas, porém cada uma com suas especificidades. Nota-se que, enquanto na narrativa literária tem-se no imaginário do leitor as cenas narradas, na narrativa fílmica, a diversidade dos posicionamentos de câmara facilita a percepção do estado físico ou mental do personagem. Fonte: www.cinemaeaminhapraia.com.br Fonte: www.ziggi.uol.com.br Fonte: www.compartilhandoasletras.com.br 108 Fonte: www.carademacaco.com Fonte: www.carademacaco.com (Figuras 139 a 145 [1]) O processo adaptativo cinematográfico tem tamanha importância para a atualização do olhar do espectador sobre a literatura original que, simultaneamente ao lançamento mundial da Alice, de Tim Burton, foi restaurada pelo Arquivo Nacional do British Film Institute a primeira versão para o cinema de Alice no País das Maravilhas, de 1903. A restauração foi realizada a partir de vários fragmentos de uma cópia do longa-metragem 37 anos após o lançamento do clássico de Lewis Carroll. (Figura 146 [1] - Chamada da primeira versão para o cinema de Alice no País das Maravilhas) Fonte: www.gazetadopovo.com.br No capítulo quatro, explanar-se-á sobre as características da narrativa das histórias em quadrinhos, tendo como base a obra de Mauricio de Souza em estilo mangá. 109 CAPÍTULO 4 110 4. Histórias em quadrinhos O depoimento de Marcondes Serotini, cronista do Jornal da Cidade, em anexo, demonstra a influência que as histórias em quadrinhos têm no imaginário infantil e a significância das mesmas em diferentes faixas etárias, servindo, até mesmo, como mediadores pedagógicos e incentivadores para o ensino da língua materna. No artigo, Marcondes comenta de que forma a leitura de diferentes histórias em quadrinhos proporcionou e provocou a faísca vibrante da leitura, não somente nele, mas em toda uma geração. Essa faísca ainda percorre o imaginário das crianças e dos adultos contemporâneos demonstrando a significância de caminhar-se por diferentes estratégias objetivando a instrução, diversão, a formação cultural e educacional. As diferentes linguagens têm a capacidade de invadir o mundo dos indivíduos proporcionando um universo de possibilidades de leituras, verbais e não-verbais. Segundo Waldomiro Vergueiro, O entendimento da importância social das histórias em quadrinhos implica na aceitação da premissa de que elas cresceram e se multiplicaram porque vão ao encontro das necessidades do ser humano, na medida em que utilizam um elemento de comunicação que esteve presente na história humana desde o seu início: a imagem (VERGUEIRO, 2005, p. 15). As histórias em quadrinhos possuem características próprias que, muitas vezes, podem auxiliar o leitor na compreensão do texto. Estas atraem pelo fato de terem imagens desenhadas aliadas a textos, e, em muitas, encontrar-se referências a mitos, citações de textos clássicos e informações atualizadas, o que pode seduzir o leitor. Exemplo dessa dinâmica pode-se encontrar em histórias em quadrinhos mundialmente famosas como Asterix e Obelix, que situam o leitor em fatos que se repetem hoje em dia, apesar de suas aventuras se passarem na antiguidade romana. Também em Chico Bento, de Maurício de Sousa, que reproduz fielmente os usos e costumes dos povos. No presente capítulo, verificar-se-á a trajetória das histórias em quadrinhos e a leitura que Maurício de Sousa faz do clássico Alice no país das maravilhas transportando-o ao universo dos quadrinhos e utilizando, para isso, a personagem Mônica, enquanto Alice, pelo fato da mesma ser também uma personagem emancipada, 111 assim como outras já citadas anteriormente. Ver-se-á a identificação entre a personagem Mônica (HQ) e a Alice de Carroll física, emocional e a interrelação entre o mundo vitoriano e a contemporaneidade, com seus costumes e linguagem. 4.1 A narrativa das histórias em quadrinhos Como não se tem registros anteriores de histórias em quadrinhos, os estudiosos se referem ao início da mesma na pintura rupestre do período paleolítico quando os desenhos pictográficos de cenas de caça e dança davam-se em sequência. Esse fato reincidiu-se nas pinturas sacras das catedrais, ilustrando paredes com motivos religiosos, também em sequência. Na Idade Média, um único painel pintado podia representar uma sequência narrativa como ocorre, hoje, nas histórias em quadrinhos, tendo-se o mesmo personagem que aparece várias vezes e unifica uma paisagem. Segundo Santos (2002), apesar desse histórico, as histórias em quadrinhos como objeto literário só sistematizaram a partir do final de 1800 e início de 1900 com a publicação em tablóides. O enfoque original deu-se com o olhar na infância e na família. A partir de 1900, embutiram-se do teor adulto com situações de humor familiar. A partir de 1930, os quadrinhos passaram a tratar de temas heróicos ou de aventuras. Perceberam-se novos conceitos a partir de 1970, obtendo-se um teor artístico e acabando por atrair a atenção de pesquisadores como Umberto Eco, Edgar Morin entre outros. A partir do século XX, os quadrinhos conceituaram-se como artísticos e educativos, apresentando inúmeras informações úteis a exemplificações no ensino secular. Podem-se chamar as histórias em quadrinhos de arte que conjuga texto e imagens com o objetivo de narrar histórias dos mais variados gêneros e estilos. A linguagem nas histórias em quadrinhos foi sendo desenvolvida conforme a criatividade dos autores que, ao se apropriarem de diversos meios e de diversas formas de expressão, criaram uma linguagem específica do gênero. O meio que mais emprestou recursos de linguagem aos quadrinhos foi o cinema, o que propiciou certa proximidade entre esses gêneros. 112 Quanto à questão visual, faz-se relevante falar sobre a representação gráfica dos personagens. Caracteriza-se a personagem com expressões corporais e faciais, que auxiliam a compreensão de seu estado de espírito na história. Atribui-se à história em quadrinhos diferentes nomes. É conhecida por comics nos Estados Unidos, bande dessinée na França, fumetti na Itália, tebeos na Espanha, historietas na Argentina, muñequitos em Cuba, mangá no Japão, manhwas na Coreia do Sul, manhuas na China e por outras várias designações pelo mundo afora. No Brasil, as histórias em quadrinhos são também conhecidas como quadrinhos ou HQ, e as revistas que as publicam são genericamente nomeadas de gibis. Pode-se pensar a história em quadrinhos como o representar do social, expressando-se de diversas formas, tendo a função de estruturar a comunicação, o conhecimento, o comportamento e as práticas culturais de um povo ou grupo, para o conhecimento deles próprios. [...] tanto os assuntos abordados, quanto o modo com que são abordados, quanto o estilo em que são desenhadas, as histórias dos personagens são reflexo do social, não apenas devido à menção de acontecimentos e ideias que permitem ao leitor identificar o espaço ou época em que se passam as histórias, mas principalmente porque, no caminho que a construção artística percorre entre a mente do artista e a obra acabada, fatores externos como o gosto popular, a tecnologia disponível ou a maior ou menor aceitação social de certas opiniões tomam parte no processo criativo (CAVALCANTE, 2001, p.13). Nos dias atuais, as histórias em quadrinhos inserem-se em outras linguagens como a do cinema, vídeo, TV e virtual. Além disso, utiliza-se desse para divulgar objetos impressos como as obras clássicas, distribuindo-as em um novo formato com o objetivo de contribuir para que clássicos sejam mais facilmente entendidos pelo leitor. No Brasil, tem-se como referência na arte de produzir histórias em quadrinhos – Mauricio de Souza, que é considerado um dos mais famosos cartunistas do país. Segundo informações do site oficial de Mauricio de Sousa, sabe-se que a empresa iniciada por um simples cartunista cresceu intensamente, sendo que Maurício quase não desenha mais e nem inventa as histórias. Apesar dos muitos roteiristas e desenhistas que desenvolvem as histórias, nenhuma é publicada sem antes passar por sua aprovação. As histórias em quadrinhos possuem uma estrutura que possibilita o diálogo com a mente humana, trazendo mais fantasias por meio dos desenhos, cores e estilos 113 distintos dos personagens. Os quadrinhos têm como objetivo principal a narração de fatos e procurar reproduzir uma conversação natural, na qual os personagens interagem face a face, expressando-se por palavras e expressões faciais e corporais. Todo o conjunto do quadrinho é responsável pela transmissão do contexto enunciativo ao leitor. Esse contexto é obtido pela dicotomia do verbal/não verbal, na qual tanto os desenhos quanto as palavras são necessárias ao entendimento da história. Nesse contexto, dá-se igual importância as duas linguagens. Esse tipo de narrativa é muito aceito entre as crianças e os jovens, porém não são somente lidos por eles. Manifesta-se há algum tempo o interesse no processo de adaptação dos clássicos da literatura para outras linguagens. O cinema e o teatro há muito procuram resgatar, cada um a seu modo, as maravilhas que povoam as páginas de uma grande obra literária. Por meio das histórias em quadrinhos, mostra-se uma forma diferente, uma releitura criativa de clássicos da literatura. Mesmo em um processo de adaptação de uma obra literária, pode-se, através da estrutura das histórias em quadrinhos (HQ), permear o imaginário através da adaptação do clássico ao estilo atual do personagem da história. No momento em que não se considera mais a tradução como mimese, cópia do original, mas sim como atividade voltada para as condições de produção e recepção, a tradução passa a ser vista como uma transformação. Essa pode ocorrer a partir da cultura receptora, que passa a ser o foco das atenções. (DINIZ, 2003, p.37). Percebe-se claramente tal fato na adaptação de Mauricio de Souza para o clássico “Alice no País das Maravilhas”, de Lewis Carrol. Adaptação essa que, de forma ousada, utilizou-se da linguagem própria do jovem contemporâneo, aproveitando-se do estilo mangá. O quadrinho de origem japonesa (mangá) apresenta as características de sua cultura. Partindo da linguagem, com emprego de expressões idiomáticas (fala), os comportamentos sociais, a estrutura social, noção de tempo etc. Não se mostraram, de início, modificações na introdução do mangá no Brasil permanecendo a direção da leitura, da direita para a esquerda, seus elementos sinópticos e suas onomatopeias. 114 Porém, Mauricio de Souza utilizou-se, também nesse aspecto, do processo de adaptação cultural, introduzindo o formato mangá, história feita em preto e branco, a partir da leitura ocidental (da esquerda para a direita). Segundo Moline (2003), mangá, histórias em quadrinhos japonesa, que teve origem nos séculos XI e XII com um tipo de desenho que era pintado sobre um grande rolo e aberto à medida que o narrador contava a história referente ao desenho. Intitulava-se e-makimono. Os e-makimonos eram muitos populares no século XII e nesse período introduziu-se seu exemplar mais famoso: o Chôjûgiga (desenhos caricatos de animais e pássaros). Por ser o budismo muito presente no Japão, várias obras tinham direcionamento religioso. Com o passar do tempo, outras temáticas foram se desenvolvendo. Foi Katsushita Hokusai (1760-1849) que utilizou, dentro de sua obra, pela primeira vez, o termo mangá, além de ser ele um dos primeiros a utilizar as imagens em sucessão, base das histórias em quadrinhos. Os desenhos, quase sempre, tinham estilo caricatural, afirma Moline. Com o passar do tempo, muitos produtos começaram a se mesclar na cultura japonesa como livros, jornais e periódicos. A partir desse fato, pode-se remeter à ideia de hibridismo, concebendo-se a cultura como resultante da mistura e interrelação entre as produções dos mais variados grupos humanos. Vê-se o processo de hibridismo em uma tendência contemporânea, devido à globalização das culturas. De acordo com Luyten (2000), na época em que os primeiros mangás chegaram ao Brasil, tinha-se em Osamu Tezuka (1928-1989), uma grande influência entre os produtores japoneses e seu estilo com desenhos de olhos grandes, pernas longas e quase sempre alguma outra parte do corpo estilizada, tornou-se padrão para o que no Brasil ficou conhecido como mangá. Conclui-se que a inserção do mangá no Brasil não é simplesmente um fenômeno de reprodução, mas também um acontecimento resultante de um processo de hibridização em que estão inseridas todas as sociedades na pós-modernidade. 115 4.2. A adaptação para histórias em quadrinhos Entende-se que não se pode falar da obra sem falar do autor. Portanto, necessita-se conhecer melhor Mauricio de Sousa. (Figura 147 [1] - Mauricio de Sousa) Fonte: www.monica.com.br O autor nasceu no Brasil, em uma pequena cidade do estado de São Paulo denominada Santa Isabel, conforme informações obtidas em seu site: www.monica.com.br/mauricio-site. Seu pai era poeta e barbeiro, Antonio Mauricio de Sousa. Sua mãe, Petronilha Araújo de Sousa, era poetisa. O casal teve mais três filhos, além de Maurício. Com poucos meses, Maurício foi levado pela família para a cidade de Mogi das Cruzes, onde passou parte da infância. Outra parte foi vivida em São Paulo, onde seu pai trabalhou em estações de rádio, algumas vezes. Suas primeiras aulas foram no externato São Francisco, ao lado da Faculdade, de mesmo nome, no centro de São Paulo. Depois continuou estudos no primário e no ginásio, dividindo-se entre as duas cidades. Enquanto estudava, trabalhou em rádio, no interior, onde também ensaiou números de canto e dança. Para ajudar no orçamento doméstico, desenhava cartazes e pôsteres. Contudo, seu sonho era se dedicar ao desenho profissionalmente. Segundo informações de seu site oficial, chegou a fazer ilustrações para os jornais de Mogi. No entanto, queria desenvolver técnica e arte. Para isso, precisava procurar os grandes centros, onde editoras e jornais pudessem se interessar por seu trabalho. 116 Dirigiu-se para São Paulo em busca de emprego, tendo conseguido apenas vaga como repórter policial no jornal Folha da Manhã. Ficou, por cinco anos, escrevendo reportagens policiais. Entretanto, chegou um tempo em que tinha de decidir entre a polícia e a arte. Ficou com sua velha paixão. Criou uma série de tiras em quadrinhos com um cãozinho e seu dono – Bidu e Franjinha – e ofereceu o material para os redatores da Folha. As historietas foram aceitas, o jornalismo perdeu um repórter policial e ganhou um desenhista (1959). Nos anos seguintes, Maurício criou um serviço de redistribuição que atingiu mais de 200 jornais ao fim de uma década. A partir daí, partiu para as revistas de banca (1970). Mônica foi lançada com uma tiragem de 200 mil exemplares. Dois anos depois, lançou-se o Cebolinha e nos anos seguintes publicaram o Chico Bento, Magali, Pelezinho e outros. Durante todos esses anos, Maurício desenvolveu um sistema de trabalho em equipe que possibilitou, também, sua entrada no licenciamento de produtos. Seus trabalhos começaram a ser conhecidos no exterior e em diversos países surgiram revistas com a Turma da Mônica. Nos anos 80 Mauricio resolveu enfrentar o mercado de desenhos para televisão. Abriu um estúdio de animação – a Black & White – com mais de 70 artistas realizando oito longas-metragens. Infelizmente, a inflação do país impedia projetos a longo prazo (como tem que ser as produções de filmes sofisticados como as animações), a bilheteria sem controle dos cinemas que fazia evaporar quase 100% da receita, e o pior: a lei de reserva de mercado da informática, que impedia o acesso à tecnologia de ponta necessária para a animação moderna. Maurício, então, parou com o desenho animado e concentrou-se somente nas histórias em quadrinho e seu merchandising, até que a situação se normalizasse. Após esse período difícil, voltou aos antigos projetos e engajou-se em novos. Dentre esses projetos está o seu primeiro parque temático (o Parque da Mônica, no Shopping Eldorado, em São Paulo). Ainda prevê a construção de outros, inclusive no exterior. As revistas são vendidas aos milhões. Isso se dá pelo fato da Turma da Mônica e de todos os demais personagens criados por Mauricio de Sousa levarem uma mensagem sempre carinhosa, alegre, descontraída que é dirigida às crianças e aos adultos de todo o mundo que queiram ter alguns minutos para sorrir. 117 Os quadrinhos de Mauricio de Souza têm fama internacional, tendo sido adaptados para o cinema, televisão e para video games. Alguns de seus filhos, que inspiraram seus personagens, passaram a trabalhar com Maurício como Mônica, responsável pela divisão comercial de alimentos e produtos licenciados; Magali colabora como roteirista e Marina, ajuda na criação de novas histórias. Em 2007, Mauricio de Sousa foi tema da escola de samba Unidos do Peruche com o enredo: “Com Mauricio de Sousa a Unidos do Peruche abre alas, abre livros, abre mentes e faz sonhar”. Tema muito apropriado para quem cria um universo de diversão e sonhos. No dia 13 de maio, de 2011, Maurício tomou posse na Academia Paulista de Letras, tornando-se o primeiro quadrinista a ser empossado por esta Academia. Além de quadrinista, Maurício é um excelente pintor. Nos anos 80, em visita ao MASP (Museu de Arte de São Paulo), se encantou pelo quadro Rosa e Azul, de August Renoir. A partir desse dia, teve a ideia de fazer a releitura de quadros famosos utilizando sua turma. Surgiu a exposição História em Quadrões, realizada na Pinacoteca do Estado de São Paulo, em 2001. 118 (Figura 148 [1] - Mauricio de Sousa em Brasília [julho de 2003] durante abertura da exposição “História em Quadrões”. Na foto, Maurício mostra a reprodução de “Lição de Anatomia”, de Rembrant.) Fonte: www.wikipedia.org Mauricio de Sousa inicia um processo de adaptação de quadros famosos internacionais e nacionais. Esse trabalho ampliou-se para o livro História em Quadrões: pinturas de Mauricio de Sousa que posteriormente foi transformado em CD-ROM. 119 (Figuras 149 a 153 [1] - Quadrões Mauricio de Souza) - Fonte: www.historiasemquadroes.com.br 120 Outra empreitada de Mauricio de Sousa foram as histórias em quadrinhos estilo Mangá, dentre elas a Turma da Mônica Jovem. Seu interesse pelo estilo Mangá surgiu da amizade com Osamu Tezuka, considerado o pai do Mangá, no Japão. Segundo Maurício, foi uma ideia inquietante e excitante que surgiu das conversas com Tezuka. Segundo ele, na ocasião da conversa, falaram sobre a abertura real das possibilidades de encontro dos personagens da turma com as criações do mestre Osamu Tezuka. Queriam levar mensagens de concórdia, de paz, passando por indicações de cuidados com o meio ambiente. Houve um hiato, provocado pela morte de Tezuka. Porém, felizmente, sua obra sobreviveu. Maurício viajou pela Amazônia detectando os lugares por onde ele e os roteiristas iriam viajar para colher impressões vivas. Dessa forma, começaram os estudos do roteiro, desenhos e detalhes dos artistas que fariam a composição das obras literárias. E a Turma foi parar no País das Maravilhas. Os adolescentes Mônica, Cebola, Magali, Cascão e seus amigos foram parar no incrível mundo da personagem Alice. Foi lançado em 2010 o gibi Turma da Mônica Jovem no País das Maravilhas. A história de 124 páginas foi dividida em duas edições com distribuição nacional. Na revista em quadrinhos, Mônica faz aniversário, mas seu dia acaba contando com muita confusão. A personagem terá diversas surpresas e uma enorme responsabilidade: será a única capaz de resolver o problema dos jovens que ficaram presos no País das Maravilhas. Deu-se, através da adaptação para HQ, um novo olhar para a obra de Carroll, transpondo-a a um universo juvenil, voltando-se sua linguagem ao público jovem. A obra original de Lewis Carrol, traduzida como Alice no País das Maravilhas, permeia-se de uma linguagem vitoriana, além de retratar aspectos peculiares à sociedade da época. Além disso, o clássico embute-se de processos surrealistas. Torna-se, portanto, de difícil compreensão para os leitores contemporâneos. Entre os livros escritos para crianças, não há um que requeira mais explicação do que os livros de Alice. Grande parte de sua graça está entretecida com eventos e costumes vitorianos desconhecidos dos leitores americanos de hoje, e até dos leitores da Inglaterra. Muitas piadas nos livros só podiam ser apreciadas por residentes de Oxford, e outras eram piadas íntimas, destinadas exclusivamente a Alice (GARDNER, 2002). 121 Proporciona-se, com o processo adaptativo desse clássico para a história em quadrinhos de Mauricio de Souza, uma infinidade de possibilidades interpretativas sem que se fuja do fio condutor da narrativa de partida. Além disso, a adaptação possibilita ao leitor, criança ou adulto, fazer associações entre as características dos personagens originais e as dos personagens da Turma da Mônica, utilizados por Mauricio de Souza em sua narrativa. Devido ao surrealismo contido no roteiro, esse tipo de história em quadrinhos estimula, ainda mais, o processo imaginativo, além de capacitar a leitura apropriada acostumando-se às grafias e sonoridades das palavras, relacionando-as à vivência pessoal do leitor. Sendo essa adaptação elaborada de forma criativa e intercultural, Mauricio de Souza conseguiu ampliar o público para além dos jovens já interessados nas leituras da “Turma Jovem”. Atingiu-se o público adulto por meio do cruzamento das diferentes linguagens – mangá e clássico da literatura – através de uma história que já permeava a imaginação dessa faixa etária e que se concretizou na contemporanização dos fatos apresentados. Na história em quadrinhos No País das Maravilhas – Turma da Mônica Jovem, nota-se, logo de início, a semelhança física entre a personagem Mônica – que posteriormente é confundida com Alice – e a verdadeira Alice (fonte inspiradora de Lewis Carrol). Essa semelhança dá-se principalmente nos cabelos curtos e escuros – diferenciando-se do desenho de Alice na obra original de Carroll, feito por John Tenniel. 122 (Figura 154 [1] - Retrato de Alice Liddell) (Figura 155 [1] – Capa da revista Turma da Mônica) Fonte: www.incrivelmente-perto.blogspot.com Fonte: www.maisdeoitomil.wordpress.com Tem-se uma narrativa contemporânea, em estilo mangá, na qual Mônica é levada por “Ângelo” (anjinho) ao Morro da Coruja para uma festa surpresa de aniversário dedicada a ela. Não encontrando “a turma”, causa estranheza o fato dos “comes e bebes” estarem dispostos em formato de piquenique. Nesse momento, Mônica encontra o Sr. Coelho que se apresenta dizendo ter vindo através do Portal Mágico – mostrando o livro Alice no País das Maravilhas. Abrindo-se o livro, encontra-se uma porta mágica por onde, supostamente, seus amigos entraram. Mauricio de Souza adaptou o clássico utilizando o próprio livro de histórias como sendo a árvore e uma portinha desenhada no livro, o buraco onde Alice caiu. A contemporaneidade se faz presente nas falas de “Ângelo”, destacando os procedimentos do C.S.I. (Crime Scene Interrogation) – programa exibido por TV a cabo, pela Sony, desvendando crimes por meio de experimentos científicos, como forma de descobrir o mistério do desaparecimento dos amigos. O Sr. Coelho explica que veio em busca de três espiões enviados pela Rainha de Copas para a captura da Alice, por ela ter fugido do julgamento real. Ele diz que os espiões encontraram Alice nesta nova realidade, porém ela agora é oriental – referindose a Alice, mãe de Marina, dona do livro Alice no País das Maravilhas. Ao aprisionarem a filha de Alice por engano, os que estavam nessa realidade foram levados juntos. 123 Decidida, Mônica resolve salvar seus amigos e, diante da informação de que somente Alice poderia salvá-los, se intitula “Monicalice” e inicia a aventura pelo País das Maravilhas ao lado do Sr. Coelho. Este, através de magia, transforma o look moderno de Mônica no estilo Alice (Alice style). (Figura 156 [1] – Monicalice) Fonte: www.livrogratis.rg.com.br “Caindo” pelo “portal do livro”, Monicalice e o Sr. Coelho passam por inúmeros objetos, misturando-se os do livro original de Carroll com outros modernos como Notebook, onde Monicalice checa seus e-mails, enquanto o Sr. Coelho assiste, em uma TV de plasma, a terceira divisão de futebol de lesmas. 124 (Figuras 157 a 160 [1] - A queda na toca do coelho) Fonte: www.livrosgratis.rg.com.br Percebe-se pelas cenas como os efeitos são diferentes do cinema. O movimento de cair, por exemplo, consegue-se através de linhas verticais e da superioridade de elementos como os cabelos que parecem estar voando, o chá indo para cima e as demais 125 coisas flutuando. Utilizam-se muitas vezes as onomatopeias juntamente com expressões corporais e faciais. Mostra-se nas cenas seguintes, o mesmo roteiro seguido na literatura original, onde se têm que passar pela portinha e para isso tomar o líquido do frasco. A brincadeira se faz presente na fala do coelho, referindo-se ao conhecimento do livro original. Percebe-se de maneira clara a referência à história de Carroll. O linguajar também é alterado, próprio para o público jovem e contemporâneo, quando Monicalice refere-se ao coelho como “Cara”. 126 (Figura 161 [1] - Monicalice e o Coelho Branco) Fonte: www.livrosgratis.rg.com.br Em todo o tempo, o coelho relaciona os fatos da narrativa original com as características dos personagens de Mauricio de Souza. Um exemplo disso é quando Monicalice lê no bilhetinho do frasco: “Beba-me e fique baixinha” e fica furiosa pela conotação de “baixinha” dada a sua personagem nos quadrinhos como pode ser visto na figura anterior. Outras caracterizações são elencadas durante toda narrativa como a comparação com a “outra Alice” que chorava tanto quanto a Monicalice. 127 (Figura 162 [1] - O choro de Monicalice) Fonte: www.livrosgratis.rg.com.br Fazem-se, de forma criativa e engraçada, as relações entre os personagens originais e a Turma da Mônica. Exemplificando melhor: podem-se notar essas comparações no diálogo entre Monicalice e o Coelho, quando esta pergunta como irá reconhecer seus amigos e trazêlos de volta, sendo que os mesmos tinham sido transformados em personagens do livro e somente se os reconhecesse o encanto acabaria. 128 O Coelho responde que somente dizendo o nome verdadeiro deles é que a magia se desfaz. Vê-se nesse momento, o paralelo novamente sendo feito – entre os personagens originais e as características dos personagens da Turma. (Figura 163 [1] - Explicações do Coelho Branco) Fonte: www.livrosgratis.rg.com.br Partindo-se desse pressuposto, Monicalice inicia o processo de reconhecimento pelo personagem Dodô que, na história em quadrinhos, inventa uma geringonça para deixá-los secos e que, ao invés de funcionar, explode. Imediatamente Monicalice 129 reconhece no Dodô as características de seu amigo Franginha (inventor que geralmente explode suas máquinas). (Figuras 164 e 165 [1] - Monicalice e o Dodô) Fonte: www.livrosgratis.rg.com.br Monicalice continua fazendo relações entre os personagens da narrativa original de Carroll e as da Turma da Mônica. Identifica o Titi no “Papagaio” porque fala muito. O Xaveco é identificado no “Pato” porque sempre “paga o pato” no final das histórias. 130 (Figuras 166 e 167 [1] - Monicalice, o Papagaio e o Pato) Fonte: www.livrosgratis.rg.com.br Monicalice e o Sr. Coelho continuam o caminho para o Castelo. Para saber o caminho correto, utiliza-se o relógio com GPS do Sr. Coelho, transpondo-se a contemporaneidade para a história vitoriana original. Ao GPS, o Coelho dá o nome de GPSN (Guia de Personagem sem noção). 131 (Figura 168 [1] - Monicalice à procura do caminho) Fonte: www.livrosgratis.rg.com.br No caminho encontram-se com a “Lagarta”, que possui uma lanchonete onde serve chá verde e cardápio “verdetariano”. Monicalice compara a Lagarta e seu cardápio com a atual fase de dieta e comida saudável pela qual Magali está passando, conseguindo transformá-la. 132 (Figuras 169- Monicalice, o Coelho Branco e a Lagarta) Fonte: www.livrosgratis.rg.com.br 133 Como o coelho está sempre com pressa, a correria continua, porém não antes do mesmo transformar a vestimenta da Magali nas da Lagarta. Pode-se verificar nesse quadrinho que a sensação de movimento dos personagens dá-se pelo posicionamento de braços e pernas, além das simbologias muito utilizadas como pequenas nuvenzinhas de pó próximo aos pés e sinais de expectativa em formato triangular ao lado dos rostos. (Figura 170- A pressa) Fonte: www.livrosgratis.rg.com.br 134 O próximo encontro dá-se com a “Duquesa”, que entende muito de perfume francês falso, possibilitando que Monicalice reconheça Denise. Durante todo o processo, a adaptação de Mauricio de Souza baseia-se na interligação das características de seus personagens com características dos personagens de Carrol. Além disso, o vocabulário, ao longo da história, adapta-se à fala dos jovens de hoje. No encontro com o “Gato Risonho”, Monicalice questiona a localização do Castelo da Rainha de Copas e a resposta vem através de uma bola de cristal, trazida pelo gato que, segundo ele, é conectada à “Wondernet” – a Internet do País das Maravilhas. (Figura 171 [1] - O Gato) Fonte: www.livrosgratis.rg.com.br Pelas atitudes tomadas pelo gato como cobrar pela informação e lamber-se porque não gosta de banhos, Monicalice identifica o Cascão. Novamente, elementos do 135 cotidiano moderno entram em ação como a utilização de um caixa eletrônico para a retirada do dinheiro para pagar o gato, pois ele havia pedido “dez paus” como pagamento, o coelho retira do caixa uma carta de baralho, 10 de paus, fazendo analogia às cartas soldado da Rainha Vermelha. 136 137 138 139 (Figuras 172 a 177 [1] - Sequência de Quadros referentes ao Gato) Fonte: www.livrosgratis.rg.com.br 140 Pode-se notar que, para as transformações feitas pelo Coelho, o desenhista utiliza linhas retas na transversal ou angulares, como arabescos, para provocar a sensação de movimento. Cebolinha é identificado posteriormente no personagem “Chapeleiro Louco”. 141 (Figuras 178 a 183 [1] - Sequência de Quadros referentes ao Chapeleiro Maluco) Fonte: www.livrosgratis.rg.com.br Assim como na linguagem cinematográfica, no desenho utiliza-se o foco no personagem, objetivando evidenciá-lo. No caso da figura acima, o foco nos olhos, empregando o olhar distendido, torna o personagem maquiavélico e assustador, louco. Outro aspecto da adaptação para o mangá jovem é o romance. Os jovens contemporâneos esperam cenas de romance. O processo de adaptação permite que o autor crie novos aspectos para contentar o público alvo, levando-o a maior curiosidade na leitura. É o caso da figura em que Mônica transforma o Chapeleiro Maluco no Cebolinha através de um beijo apaixonado. Em outro quadro, o mesmo processo de transformação se dá por meio de linha retas diagonais, porque no País das Maravilhas os personagens da Turma necessitam estar adaptados à obra original. 142 A história adaptada segue com a finalização das identificações feitas por Monicalice, sendo que no mangá usa-se a mesma separação de capítulos feita no livro original. Há um capítulo para o Chapeleiro Maluco, outro para o Grifo e a Tartaruga Falsa e assim por diante. O fio condutor da obra permanece. (Figura 184 [1]- O Grifo e a Tartaruga Falsa) Fonte: www.livrosgratis.rg.com.br 143 O Sansão identifica-se com a “Lebre Azul”. Nos personagens, Grifo e Tartaruga Falsa, que muito brigavam, Monicalice identificou Bidu e Mingau. Enquanto isso, Marina – confundida com Alice pela Rainha de Copas – era levada a julgamento. Durante a narrativa, Mauricio de Souza trabalha a ideia do “politicamente correto”, a Rainha de Copas, mandando cortar a cabeça de Marina, sente-se questionada quanto aos termos que não mais caem bem, trocando-o por “Cortem-lhe a cabeleira” e posteriormente para “Cortem-lhe as unhas”. Ainda, durante o julgamento, a linguagem moderna se sobrepõe à linguagem vitoriana, no momento em que o rei pede para que “cortem a onda” da falação e recomecem o julgamento. A rainha de Copas acha hilário referindo-se ao “cortar” a onda como o “cortar a cabeça” de sua fala. Quando finalmente, Monicalice chega ao Castelo de Copas, é reconhecida pelas “Cartas”. Estas estavam pintando os corações da árvore como se fossem as rosas da Rainha Vermelha. As mesmas comentam que achavam que Alice era loira e não dentuça, fazendo referência, novamente, às diferentes características das personagens. 144 (Figuras 185 a 187 [1] - Sequência de Quadros sobre as Cartas) Fonte: www.livrosgratis.rg.com.br Quando Monicalice adentra o salão do trono, a rainha de Copas a reconhece como sendo a verdadeira Alice. Monicalice pergunta baixinho para o Sr. Coelho a sequência correta do livro original e o mesmo diz que é o jogo de Críquete. Dessa forma, Monicalice propõe à Rainha de Copas uma partida de Críquete em troca de um prêmio. Nesse momento, o rei fala para a rainha: - Corta essa. A mesma, enfurecida por não conseguir fazer piadas com “cortar”, assim como o rei, infla sua cabeça, fato que a deixa parecida com a cabeça da Rainha Vermelha de Carroll. 145 (Figura 188 [1] - Rainha Vermelha) Fonte: www.livrosgratis.rg.com.br Contextualizando a história, o jogo de críquete é substituído pelo de futebol que se torna o jogo oficial do reino. O prêmio é a liberdade de Marina. Durante o jogo, o aspecto contemporâneo novamente toma forma quando, no time da Rainha de Copas, os jogadores são do naipe de ouros, tendo jogadores como Pelé, Maradouros, Zidanouros, Zicouros – todos remetendo à ideia do número 10. Apesar disso, a garra, a fé e o coração jogam através dos personagens da turma. Percebe-se novamente a contextualização do brasileiro Mauricio de Sousa, colocando a paixão nacional, o futebol, como jogo principal no lugar do críquete, jogo típico da sociedade inglesa da era vitoriana. 146 (Figuras 189 a 193 [1] - Jogo de Futebol entre Cartas) – Fonte: www.livrosgratis.rg.com.br 147 Na história em quadrinhos, a turma da Monica vence o jogo dando direito à liberdade de Marina. Porém, a Rainha de Copas inconformada, prende a todos. Marina, relembrando a história original, manifesta-se dizendo que conhece bem as leis daquele país e que, no País das Maravilhas, faz-se a comemoração dos desaniversários 364 dias, porém, no último dia que sobra, o do aniversário, a rainha é obrigada a conceder um desejo. Como era o dia do aniversário de Mônica, deveria conceder um desejo a ela. Nota-se, na figura abaixo, como o autor desenhou a sequência de “rainhas” para demonstrar os movimentos – da raiva para o início do choro, para o choro desesperador, mostrando a frustração da mesma por ter perdido o controle da situação. Também nesse momento, verifica-se o paralelo com a Rainha Vermelha do filme de Burton por tentar, pela força, manter o poder. Esse detalhe não aparece no livro original de Carroll pelo fato de pertencer a seu segundo livro, Alice atrás do Espelho. Tanto no filme, como na HQ, houve a junção dos dois livros de Carroll. (Figura 194 [1] - Sequência de desenhos da Rainha Vermelha) Fonte: www.livrosgratis.rg.com.br 148 A vela primordial foi pedida e Mônica expressou seu desejo em voz alta, assoprando-a, fato que levou a turma de volta ao Morro do Limoeiro. No filme, esse mesmo desejo seria concedido após Alice beber o sangue do animal que havia matado. Novamente há o movimento sendo demonstrado por arabescos e a luminosidade pelas linhas paralelas, imitando a luz do sol. Os dois sons onomatopaicos complementam a cena do soprar da vela e do desaparecimento dos personagens que retornam ao seu mundo. (Figuras 195 e 196 [1] - A Vela Primordial) Fonte: www.livrosgratis.rg.com.br A história em quadrinhos termina ao traçar um paralelo entre os dois mundos. Mônica, em plena confraternização por seu aniversário, declara ao Cebolinha que olhando os amigos, as brincadeiras e a união entre eles, vê aquele como sendo o seu País das Maravilhas. 149 150 151 (Figuras 197 a 199 [1] - De volta ao Limoeiro) Fonte: www.livrosgratis.rg.com.br Percebe-se que a história em quadrinhos, para que evolua, necessita ter uma relação narrativa entre os quadros para que o imaginário do leitor preencha o espaço temporal, sem que haja fragmentação. Segundo Eisner (2005), “ao conferir movimento ao todo, os quadrinhos se diferenciam de textos ilustrados, os quais se limitam a comentar em imagens a narrativa verbal. Enquanto quadrinhos, a narrativa pressupõe o entendimento do leitor por meio de sua percepção e isso somente é possível frente a uma construção social, ou seja, a linguagem utilizada relaciona-se com a idade e o desenvolvimento social do leitor. 152 Como se pode notar, a história em quadrinhos, estilo mangá, de Mauricio de Souza, emprega processos oriundos do mangá japonês. Estes se referem a outras manifestações de sua cultura como o Teatro de Sombras ou Oricom Shohatsu, histórias contadas com fantoches. Essas formas de narrativa, segundo Eisner (2001), eram transcritas em rolos de papel e posteriormente ilustradas. Nelas, assim como nos mangás brasileiros, há uma estética inconfundível. Pode-se notar a influência da estética japonesa em alguns elementos como os olhos brilhantes, muitas linhas que enfatizam o movimento, enquadramentos que remetem ao cinema. A partir desse repertório, Mauricio de Souza novamente revolucionou o mercado nacional da comunicação. Maurício e sua equipe de criadores preparam um material com temáticas apropriadas ao público escolhido e elaboram um produto com características semelhantes às dos quadrinhos procedentes do Oriente – decisão editorial amplamente divulgada nas capas das revistas e em matérias promocionais identificando os novos produtos como tendo sido elaborados “em estilo mangá” (VERGUEIRO; D”OLIVEIRA, 2009, p.11). Na adaptação de Alice no País das Maravilhas para a turma da Mônica Jovem, Mauricio de Souza conseguiu reunir a tendência atual do público, representada pelos mangás, a ligação dos personagens jovens com as características anteriormente consolidadas da turma quando criança e a interiorização, por parte dos personagens, das características dos personagens do clássico nonsense. Percebe-se que Maurício ultrapassa a ideia de produção de histórias em quadrinhos para enveredar-se na trajetória de campanhas educativas, utilizando-se da “força de comunicação da Turma da Mônica para desenvolvimento de programas nas áreas de saúde, educação, meio ambiente e cultura”.2 Segundo ECO (2000), “a produção de histórias em quadrinhos é um exemplo de mescla de aspectos populares próprios das sociedades modernas com arquétipos antigos”. 2 Fonte: Site do Instituto Cultural Mauricio de Souza. <http://www.monica.com.br/institut/fwelcome.htm>. Último acesso em 08/09/2011. Disponível em: 153 No caso da narrativa em questão, o processo de adaptação para a história em quadrinhos foi elaborado como uma hibridização de elementos clássicos (nonsense) e contemporâneos. Pode-se perceber que, segundo o autor, os leitores da sociedade contemporânea interagem com a narrativa das histórias em quadrinhos de maneira que facilite o seu entendimento e utilizam para isso sua bagagem própria, ou seja, as narrativas clássicas que fazem parte de seu repertório cultural. Na finalização do presente trabalho de pesquisa, apresentar-se-ão as considerações finais referentes aos objetivos propostos para o mesmo. 154 CONSIDERAÇÕES FINAIS A escolha da obra Alice no País das Maravilhas como suporte para a pesquisa sobre adaptação e transmutação, deu-se pela narrativa não convencional, a busca do inesperado, do criativo. Desde a capa, procurou-se trabalhar a ideia da busca pelo inesperado a ponto de tentar-se passar por uma minúscula porta que poderia levar a um universo maior. Universo esse que não pode ficar trancado na figura feminina que não tem voz, como as mulheres na época vitoriana, representada pela tarja com o nome da presente pesquisa, em sua boca. Buscou-se inspiração na música Ritos de Passagem (Engenheiros do Havaí) que vem ao encontro da perspectiva de mudanças, do abrir dos olhos, do abrir da boca, do tornar-se livre na busca de sua própria identidade. E isso se dá também no processo de adaptação. A presente pesquisa pretendeu identificar e estudar o processo de adaptação de uma narrativa para diferentes suportes. Parte-se da ideia de que a obra conhecida como original, pode gerar propostas interessantes e criativas dependendo do aparato tecnológico e artístico inserido na mesma. Pensa-se que a sociedade contemporânea busca novas formas narrativas e estas poderão obter sucesso, dependendo da faixa etária a quem se destina, a sociedade em que o leitor está inserido e a metamorfose pela qual a narrativa de partida passa, utilizando a linguagem adequada a cada contexto. Estabeleceu-se que as adaptações não necessitam ser fidedignas, reproduções idênticas. As mesmas podem se transformar, transmutar, ampliando-se em seus significados, modificando épocas e apropriando-se da linguagem de cada narrativa. Para isso, utilizou-se como universo de pesquisa o nonsense, Alice no País das Maravilhas de Carroll. Buscou-se refletir e analisar o filme de Tim Burton e a história em quadrinhos de Mauricio de Souza enquanto adaptações e transmutações da obra de partida. Percebeu-se que mediante um novo veículo, o contexto da história ganha autonomia, porém, o fio condutor permanece. Desta forma, buscou-se primeiramente analisar, com base nos referenciais teóricos, o processo de adaptação observando sua definição, os tipos de narrativas e suas estruturas, os elementos utilizados como a linguagem verbal ou não verbal e seu desenvolvimento histórico até chegar-se ao processo de comunicação por ela utilizado, 155 ou seja, as especificidades de cada linguagem. Observaram-se, também, opiniões divergentes de teóricos e autores quanto à ideia que se faz da adaptação e os problemas por eles encontrados nesse processo. Outro objeto de reflexão foi a relação entre o receptor e o fenômeno narrado, considerando-se que deve haver identificação entre ambos, incluindo a utilização de linguagem apropriada àquele processo adaptativo. Ainda no primeiro capítulo, procurou-se aprofundar os conhecimentos e a reflexão em torno do adaptador buscando-se respostas para o posicionamento do mesmo em relação à obra. Percebeu-se que há uma estreita relação entre o profissional, adaptador, e sua história de vida pessoal e profissional, além do mesmo necessitar ter um profundo conhecimento da obra de partida para melhor desenvolvê-la, dentro de seu contexto. Concluiu-se que o processo de adaptação e transmutação são complexos e necessitam de estudos aprofundados para que haja o recriar de uma nova obra pautado na ideia de aprimoramento da mesma, respeitando-a. No segundo capítulo, refletiu-se sobre a obra Alice no País das Maravilhas partindo-se do conhecimento do contexto em que a mesma foi escrita, das ideias e peculiaridades do autor, Carroll. Buscou-se observar o processo narrativo de Carroll, iniciando-se pela definição de narrativa, os tipos de narratário e a literatura enquanto linguagem. Sob esse olhar, estudou-se o papel do narrador e seus diferentes posicionamentos na obra, dependendo do suporte em que é vinculado. Percebeu-se por meio das reflexões e pesquisas que a narrativa de Carroll baseouse em seu contexto de vida, no seu modo de ser e agir. Por ser lógico e matemático, utilizou-se dessa linguagem em sua narrativa nonsense além de envolver as características de amigos e de lugares de Oxford em suas descrições e personagens. No mesmo capítulo, pôde-se constatar a importância das ilustrações no contexto da narrativa, assim como a necessidade de autor e ilustrador estarem unidos nos propósitos e perspectivas para a finalização da mesma. Refletiu-se, também, sobre a sociedade no mundo vitoriano, observando-se seus costumes e como estes interferiram na narrativa de Carroll. Relataram-se essas ideias através da descrição dos personagens utilizados na obra e alguns de seus significados de acordo com os dicionários dos símbolos, personificando a obra. 156 O terceiro capítulo revelou o processo de adaptação fílmica, por meio da narrativa cinematográfica utilizada por Tim Burton, sua relação com a narrativa literária e a análise dos recursos utilizados pelo diretor como os diferentes posicionamentos de câmera, efeitos de iluminação e flashback para intensificar a ação dramática do enredo. Também se caracteriza a figura do roteirista quanto a sua função e importância. O quarto capítulo investigou o processo de narrativa a partir das histórias em quadrinhos. Tomou-se como base a adaptação de Mauricio de Sousa, explicitando-se as características dessa narrativa, além da análise do mangá em questão, quadro a quadro, relacionando-o com a narrativa de Carroll. Conclui-se que, quaisquer que sejam os processos de adaptação/transmutação, tornam-se uma metamorfose no sentido de transformação, transposição, modificação de elementos narrativos mesmo que mantenha o material de partida como fio condutor. Constatou-se a metamorfose. Não somente a de Alice menina passando pelo rito da adolescência, a de Alice jovem pelo rito de passagem ao amadurecimento; a de uma narrativa literária nonsense com sua estrutura inglesa, vitoriana e repleta de significados próprios, metamorfoseando-se, transformando-se em hipertextos que se utilizam de recursos próprios para “crescer” em outro formato. A metamorfose da pesquisa que se iniciou sem direção exata e caminhou pelo rito de passagem que inclui a experiência de professores/doutores. Experiências teóricas, filosóficas, de vida. Junta-se a estas, a metamorfose de conhecimentos adquiridos pelo contato com outros pesquisadores que, em situações de conflitos pessoais, emanam experiências em “almoços filosóficos” que contribuem para o enriquecimento de todo o processo. Nenhuma metamorfose é melhor ou pior, porém, no caso dessa pesquisa, inicia-se no processo de adaptação narrativa. Adaptação/transmutação que se dão na linguagem verbal e não verbal. Acontece no momento de escrita e nos momentos em que nada se escreve: olha-se, interpreta-se e sente-se. 157 REFERÊNCIAS ACEVEDO, J. Como fazer Histórias em Quadrinhos. São Paulo: Global, 1990. __________________. Teoria da Literatura, 8ª Ed. Coimbra: Livraria Almedina, 1988. ADAMI, A. Mídia, Cultura e Comunicação. São Paulo: Arte e Ciências, 2003. AGUIAR E SILVA, V. M. Teoria e Metodologia Literárias. Lisboa: Universidade Aberta, 2002. AMORA, A. S. Mini dicionário Soares Amora da língua portuguesa. 19ªed. São Paulo: Saraiva, 2009. ANGELONI, M. T. 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