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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ
CENTRO DE ESTUDOS SOCIAIS APLICADOS
MESTRADO ACADÊMICO EM POLÍTICAS PÚBLICAS E SOCIEDADE
DOS LABIRINTOS DA MARAVILHA AO SONHO DA CASA PRÓPRIA:
Uma análise de “táticas” e “estratégias” na Política de Habitação de Interesse Social
em Fortaleza
Andréa Sobreira Cialdini Borges
FORTALEZA
2012
2
ANDRÉA SOBREIRA CIALDINI BORGES
DOS LABIRINTOS DA MARAVILHA AO SONHO DA CASA PRÓPRIA:
Uma análise de “táticas” e “estratégias” na Política de Habitação de Interesse Social
em Fortaleza
Dissertação submetida à Coordenação
do Mestrado Acadêmico em Políticas
Públicas e Sociedade da Universidade
Estadual do Ceará, como requisito
parcial para obtenção do título de
Mestre.
Orientação: Prof. Dr. João Bosco Feitosa
dos Santos
FORTALEZA
2012
3
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação
Universidade Estadual do Ceará
Biblioteca Central Prof. Antônio Martins Filho
B732l
Borges, Andréa Sobreira Cialdini
Dos labirintos da Maravilha ao sonho da casa própria: uma
análise de “táticas” e “estratégias” na política de Habitação de
Interesse Social em Fortaleza / Andréa Sobreira Cialdini Borges .
– 2012.
144f. : il. color., enc. ; 30 cm.
Dissertação (Mestrado) – Universidade Estadual do Ceará,
Centro de Estudos Sociais Aplicados, Curso de Mestrado
acadêmico em Políticas Públicas e Sociedade , Fortaleza, 2012.
Área de concentração: Políticas Públicas.
Orientação: Prof. Dr. João Bosco Feitosa dos Santos
1. Política habitacional. 2. Habitação de Interesse Social. 3.
Moradia. I. Título.
CDD:363.5
4
5
A Deus, minha força e inspiração.
Aos meus filhos, Ana Clara e João Pedro, alegrias do meu viver.
AGRADECIMENTOS
6
E aprendi que se depende sempre, de tanta muita diferente gente.
Toda pessoa sempre é a marca das lições diárias de outras tantas pessoas.
Gonzaguinha
Ao meu bom Deus, por ser a pedra fundamental de todos os meus projetos.
À minha mãe, Ana Júlia, por sempre acreditar em mim e por eu saber que seu colo é
o meu refúgio mais certo.
Ao meu marido, Jean, por compreender os momentos de ausência e por tornar-se
presente quando nossos filhos mais precisavam.
Aos meus filhos, Ana Clara e João Pedro, por suportarem essa ausência, trazendo
alegria nos dias mais difíceis, quando, já cansada, eles se aproximavam com um
carinho, um beijinho e um abraço.
Ao meu irmão, Alexandre, por sempre incentivar meu crescimento acadêmico e
profissional. Você é exemplo para mim e para os meus filhos. A bibliografia deste
trabalho não seria a mesma sem o seu apoio e investimento.
Ao meu irmão, Zezinho, pela sua força e pelas suas orações.
Ao meu orientador, Prof. Dr. João Bosco Feitosa dos Santos, que me fez caminhar
com tranquilidade e objetividade durante toda a feitura deste trabalho.
A todos os componentes do Laboratório de Estudos da Cidade (LEC) da
Universidade Federal do Ceará, em especial à Profª Linda Gondim, que me fez o
convite para participar deste grupo, o qual trouxe grandes reflexões para o
desenvolvimento da pesquisa.
Aos professores e colegas de turma do Mestrado Acadêmico em Políticas Públicas,
pelos momentos prazerosos de crescimento e aprendizagem.
Às Professoras Doutoras Rosemary Almeida e Linda Gondim, pela contribuição
dispensada durante a qualificação e por terem aceitado compor a banca de defesa
da dissertação.
À Olinda Marques, por ter sido a principal responsável pelo meu interesse em
pesquisar o tema da habitação e por sempre me mostrar diferentes visões,
respondendo às minhas indagações da seguinte forma: "Veja bem: Uma coisa é
uma coisa; e outra coisa é outra coisa. Não misture alhos com bugalhos".
7
Aos moradores da Maravilha, que prontamente abriram suas portas para mim. Esse
trabalho é uma produção coletiva, sobretudo porque é parte de suas histórias.
À HABITAFOR, pelo aprendizado e vivência durante o período em que atuei como
assistente social; e, posteriormente, pela acolhida como pesquisadora, fornecendo
informações importantes para o desenvolvimento deste trabalho.
Aos colegas de trabalho da SER III, pela torcida nos momentos de desânimo.
Enfim, quero agradecer a todos os que contribuíram de alguma forma,
especialmente às amigas Herliene Cardoso, Sandra Costa, Zelma Madeira, Larissa
Rolim, Karol Fernandes, Vaneza Ferreira e Rebeca Freitas, grandes incentivadoras,
que em momentos diferentes, foram apoiadoras do meu projeto e me incentivaram a
seguir, fazendo-me acreditar no quanto eu sou capaz.
RESUMO
8
As práticas de comercialização das unidades habitacionais pelos usuários da
Política de Habitação de Interesse Social em Fortaleza, de forma a desvendar os
motivos que os levam a negociar seu imóvel constitui o tema principal deste
trabalho. A pesquisa partiu do Projeto Integrado de Urbanização da Comunidade
Maravilha, assentamento precário localizado no Município de Fortaleza e que foi
alvo de intervenção urbanística com recursos do Programa Habitar Brasil - BID e do
Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). Tendo como suporte teórico a
análise dos conceitos de “estratégias” e “táticas” de Michel de Certeau, busca-se
compreender as “táticas” utilizadas pelos moradores para burlar as “estratégias”
utilizadas pela Prefeitura a fim de impedir a comercialização. Optou-se pela pesquisa
de natureza qualitativa. Além da busca bibliográfica e documental, recorreu-se à
observação direta, entrevistas semiestruturadas e registros no diário de campo como
principais ferramentas de captação de informações junto aos informantes. Destacase como resultados que a distância entre o local de origem e o novo lugar de
moradia, bem como o tempo de residência ainda na favela constituem fatores
importantes na permanência das famílias nos conjuntos habitacionais entregues pelo
Poder Público, haja vista o estabelecimento de uma rede de solidariedade
estabelecida por meio dos elos de vizinhança e de uma estrutura de vida local
organizada. Para garantir a adesão e permanência dos moradores, o Poder Público
adota “estratégias”, tais como: titularidade feminina, cadastro único de beneficiários,
trabalho social, dentre outras. Os moradores, por sua vez, passam a utilizar “táticas”
como trocas, aluguéis, reformas, “puxadinhos” e outras alterações, a fim de
(re)significar o novo espaço de moradia e facilitar a identificação e a adaptação. A
casa, por si, não garante a permanência da família. Portanto, considera-se
imprescindível a articulação de políticas públicas que possam subsidiar a mudança
de vida das famílias, ocasionadas pelo novo tipo de morar.
Palavras-chaves: Política Habitacional. Habitação de Interesse Social. Moradia.
ABSTRACT
9
The practices of housing units commercialization by Home Policy of Social Interest
users in Fortaleza, in order to untangle the reasons that lead them to negotiate their
houses is the main subject this work. In this sense, the research started by the
Integrated Project of Urbanization by the Maravilha Community, poor settlement
located in Fortaleza and that has suffered urban intervention by the Living Program –
IDB and by the Growth Acceleration Program (GAP). Theoretically supported by the
analyses of the conceptions of “strategies” and “tactics” by Michel de Certeau, we
have looked forward to understanding the “tactics” used by dwellers to cheat the
“strategies” used by the City Hall to stop the trading. In this sense, we have chosen
the qualitative research. Beyond literature and documental research, we have
chosen the direct observation, interviews semi-structured and records on daily field
report as the main tools of getting information by informers. We can highlight as
results that the distance between the former home an the new one, as well as the
residence time in slums are important factors for the permanence of families on
housing complex given by the government, owing to the establishment of a solidarity
web established through neighborhood links and a structured organized local life. To
ensure adherence and retention of residents, the government adopts “strategies”,
such as female ownership, single register, social work, among others. Residents, on
the other hand, begin to use “tactics” such as trade, rents, home
improvement,“puxadinhos” and other changes in order to (re) meaning the new home
and to get it easier the process of identification and adaptation. The house itself does
not ensure the family staying. So, we consider necessary the articulation of public
policies that could contribute to the changing on families lives, caused by the new
type of living.
Keywords: Housing Policy. Social Housing. House.
LISTA DE SIGLAS E ABREVIAÇÕES
10
BIC - Boletim de Informações Cadastrais
BID - Banco Interamericano de Desenvolvimento
BNH - Banco Nacional de Habitação
BPC - Benefício de Prestação Continuada
CAGECE - Companhia de Água e Esgoto do Ceará
CAP’s - Caixas de Aposentadorias e Pensões
CAS - Célula de Atendimento Social
CDRU - Concessão de Direito Real de Uso
COELCE - Companhia de Eletricidade do Ceará
COMHAP - Conselho Municipal de Habitação Popular
DI - Desenvolvimento Institucional
DOU - Diário Oficial da União
HABITAFOR - Fundação de Desenvolvimento Habitacional de Fortaleza
IAB - Instituto de Arquitetos do Brasil
IAP’s - Instituto de Aposentadorias e Pensões
IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
IPEA - Instituto de Pesquisas Aplicadas
MNRU - Movimento Nacional de Reforma Urbana
OGU - Orçamento Geral da União
ONU - Organização das Nações Unidas
PAC - Programa de Aceleração do Crescimento
PEMAS - Plano Estratégico Municipal para Assentamentos Subnormais
PLANDIRF - Plano de Desenvolvimento Integrado para Região de Fortaleza
PMF - Prefeitura Municipal de Fortaleza
PNHIS - Política Nacional de Habitação de Interesse Social
POUSO - Posto de Orientação Urbanística e Social
PPC - Projeto de Participação Comunitária
PREURBIS - Programa de Requalificação Urbana e Inclusão Social
PTTS - Projeto de Trabalho Técnico Social
SEINF - Secretaria de Infraestrutura e Controle Urbano
SER - Secretaria Executiva Regional
SFH - Sistema Financeiro de Habitação
11
SMDS - Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social
UAS - Urbanização de Assentamentos Subnormais
UEM - Unidade Executora Municipal
SUMÁRIO
12
1 INTRODUÇÃO.........................................................................................................13
2 DESENHOS, REDESENHOS E FIOS METODOLÓGICOS....................................29
2.1 Subsídios ao desenho metodológico....................................................................29
2.2 O locus da pesquisa – os labirintos de uma favela chamada Maravilha..............31
2.3 Proposta de investigação......................................................................................40
2.4 Os fios metodológicos no labirinto da Maravilha..................................................43
3 A QUESTÃO URBANA NO BRASIL E SUAS IMPLICAÇÕES NA POLÍTICA DE
HABITAÇÃO EM FORTALEZA...................................................................................53
3.1 Um olhar no Brasil urbano com o foco em Fortaleza............................................53
3.2 A comunidade Maravilha e sua história................................................................62
3.3 O Projeto Integrado de Urbanização da Comunidade Maravilha.........................74
4 QUANDO A FAVELA VIRA CONJUNTO.................................................................87
4.1 As mudanças decorrentes da casa nova..............................................................87
4.2 “Não troco minha casa por nada”..........................................................................97
4.3 “Táticas” e trajetórias na garantia do sonho da casa própria.............................111
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS...................................................................................134
BIBLIOGRAFIA..........................................................................................................142
APÊNDICE................................................................................................................148
1 INTRODUÇÃO
13
Nossa experiência de trabalho na área da política de habitação foi o
marco fundamental para que chegássemos a uma seleção de mestrado após 16
anos de conclusão do curso de graduação em Serviço Social. Já havíamos
caminhado por diversas áreas, como educação, saúde e assistência social, porém a
habitação foi para nós uma experiência instigante, que nos levou novamente aos
bancos da academia com sede de fazer pesquisa. De fato, este tema suscitava-nos
a cada dia questionamentos sobre o “sonho da casa própria” como um paradoxo, do
qual, após a realização do desejo, algumas famílias se desfazem com certa
facilidade. Esta era a principal questão que nos instigava a pesquisar.
Dois anos depois que fomos aprovada em concurso público para
Secretaria de Assistência Social do Município de Fortaleza em 2004, recebemos o
convite para gerenciar a equipe responsável pela elaboração do trabalho social1 dos
projetos habitacionais desenvolvidos na Fundação de Desenvolvimento Habitacional
de Fortaleza - HABITAFOR, principal órgão executor da política de habitação no
Município da Capital.
Aceitamos o convite acreditando que nossa experiência em outras áreas,
aliada à vontade de aprender, nos ajudariam a enfrentar este desafio. Evocamos
que, nos primeiros dias de trabalho, compramos logo um “tênis”, pois notamos que
as visitas às comunidades eram intensas e tínhamos necessidade de conhecer as
áreas que já vinham sendo trabalhadas pela Prefeitura.
A comunidade Maravilha2 foi a primeira área que visitamos. E como foi
marcante aquele momento! Na época, as famílias já tinham sido cadastradas in loco
pela equipe social e estávamos em um momento de conferência dos cadastros. O
cadastramento na HABITAFOR é uma ação que possibilita a elaboração do
diagnóstico social da comunidade que irá receber intervenção do Poder Público.
Havia certeza, por parte da Prefeitura quanto à urbanização e construção
de moradias para as famílias da Maravilha, pois os recursos já estavam garantidos
1
2
De acordo com a instrução normativa nº 8, de 26 de março de 2009, do Ministério das Cidades, o
trabalho social em conjuntos habitacionais para famílias de baixa renda consiste no “conjunto de
ações que visam promover a autonomia, o protagonismo social e o desenvolvimento da população
beneficiária, de forma a favorecer a sustentabilidade do empreendimento, mediante a abordagem
dos seguintes temas: mobilização e organização comunitária, educação sanitária e ambiental e
geração trabalho e renda”. DOU de 07/04/2009 (nº 66, Seção 1, pág. 42)
14
junto ao Ministério das Cidades, porém havia uma grande expectativa por parte das
famílias que tinham sido cadastradas em várias gestões e enfrentado diversas
ameaças de remoção.
FIGURAS 1 e 2 – Localização da favela Maravilha em 2006, já iniciado o Projeto de Urbanização com
a construção do Complexo Esportivo e remoção de 144 famílias que viviam nas proximidades do
riacho Tauape (Canal).
Fonte: http://www.edconconstrucoes.com.br/maravilha.htm
As figuras 1 e 2 identificam a favela localizada no Bairro de Fátima,
considerado de classe média da cidade, de fácil acesso tanto ao Centro como a
diversos pontos importantes, tais como a Base Aérea de Fortaleza, o terminal
rodoviário, o aeroporto Pinto Martins e o Hospital da UNIMED. A comunidade era
caracterizada pela Prefeitura como “assentamento subnormal”3, em virtude das
condições insuficientes de habitabilidade (falta de saneamento, tipologia precária
das unidades habitacionais - taipa, madeira, plástico - proximidade à linha férrea e
ao riacho Tauape) que apresentavam as 595 famílias moradoras da favela4.
Ficamos impressionada com a forma como a equipe adentrava a favela,
entre becos tão estreitos por onde mal passava uma pessoa. Lembro-me do cheiro
3
4
Conceito utilizado pela Prefeitura de Fortaleza para classificar as diversas situações em que se
encontram aqueles que não usufruem do direito à moradia digna, inclusive a não conformidade a
padrões mínimos de segurança e conforto, como os assentamentos em áreas de risco,
construídos com materiais inadequados e ausência de infraestrutura adequada. No quadro dessas
situações, encontram-se as favelas, cortiços, loteamentos clandestinos, áreas de risco, conjuntos
habitacionais em situação de degradação (antigos, em construção, invadidos etc).
Informações provenientes do Projeto de Participação Comunitária, documento que inclui o
diagnóstico social da comunidade com base no cadastramento das famílias in loco pela equipe
social da Prefeitura, realizado em 2005.
15
forte de esgoto e urina, de crianças nuas e sujas sentadas no chão de piso batido de
alguns barracos, do som alto que vinha de dentro de algumas casas, mas também
de crianças fardadas, retornando da escola, de mãos dadas com sua mãe, ou na
garupa de uma bicicleta.
Na comunidade Maravilha, percebemos que a favela é um misto de
situações que vão desde a tipologia das casas, feitas com taipa, plástico, madeira ou
alvenaria, até pelo modo de vida das pessoas. A visão que tínhamos ao passar pela
BR-116 e avistar ao longe a Maravilha acostada a um grande canal com barracos de
madeira de várias formas e tamanhos impedia que enxergássemos a diversidade da
favela, que não era só feita de barracos precários, mas também possuía casas de
alvenaria amplas e bem estruturadas.
A origem da Maravilha remonta ao início dos anos 1960, portanto, neste
lapso, algumas famílias, principalmente aquelas mais antigas, foram melhorando
suas moradias, trocando madeira por taipa, depois taipa por tijolo, rebocando suas
casas e melhorando dia a dia suas condições de habitabilidade. A respeito das
construções nas favelas, Marcos Alvito (2006), destaca:
Embora seja verdade que todo espaço habitado pelo homem é um produto
socialmente construído, no caso da favela isso assume uma dimensão
radical. É um espaço que não somente foi construído pelo homem – termo
genérico que, nos bairros de classe média, equivale a organizações
privadas, como uma construtora, ou governamentais, como a companhia de
eletricidade – mas, no caso das favelas (...) pelos mesmos homens que lá
habitam: com suas próprias mãos, lentamente, durante anos. (P. 198-199).
Lembramo-nos de mulheres conversando nas portas das casas que se
entrecruzavam em razão do emaranhado dos becos da favela. Algumas apareciam
nas portas e janelas com um olhar questionador, querendo saber qual o motivo
daquela
visita,
e
outras
nos
cumprimentavam,
traziam
dúvidas,
faziam
esclarecimentos sobre casas fechadas, enfim, já interagiam de forma amigável com
a equipe da HABITAFOR.
16
Como estávamos numa visita para revalidar alguns cadastros 5, a equipe
procurava identificar casas fechadas, saber sobre o paradeiro de algumas pessoas
ora ausentes na comunidade, registrar trocas e a chegada de novas famílias.
Durante a visita, nossa visão estava desfocada de qualquer fato isolado, ou seja,
aquelas informações eram apenas um tópico, naquele momento, nem menos nem
mais significante no calidoscópio das nossas observações e curiosidades. Mal
sabíamos que aquele momento seria um marco na escolha do locus da pesquisa do
mestrado acadêmico em Políticas Públicas e Sociedade, pois nem imagináramos
que um dia a mobilidade e a negociação das unidades habitacionais se tornariam
premissas das nossas inquietações na academia, o nosso objeto de pesquisa.
Curiosidade e medo, no entanto, eram sentimentos que se dividiam ao
observarmos algumas esquinas, becos estratégicos e algumas figuras que
compunham este quadro e nos olhavam de forma ameaçadora. Erguíamos, porém,
a cabeça e procurávamos imitar a tranquilidade das técnicas que já tinham
familiaridade com o local, além do que eu tinha a preocupação em aparentar um ar
de naturalidade com algumas situações - como, por exemplo, a exibição de drogas
de forma explícita - que, apesar de serem comuns para os moradores, para nós só
eram conhecidas por meio de jornais, filmes e novelas, de fato, estranhas ao nosso
cotidiano.
Em virtude dos anos de atuação como assistente social, já tínhamos
visitado muitas famílias residentes em situações de vulnerabilidade social, mas
nunca havíamos percorrido o interior de uma favela na área urbana da forma como
percorremos a Maravilha, entrando e saindo em becos, o que nos fazia sentir num
labirinto da miséria.
Muitos outros labirintos foram visitados durante o nosso trabalho na
HABITAFOR, conforme identificado na Figura 3: Goiabeiras, Pau Fininho, Favela do
Rato, Maria Moura, Vila Cazumba, Lagoa da Zeza, Buraco da Velha e Rosalina,
dentre outras áreas de risco que ocupam os quatro cantos de Fortaleza e
5
O cadastro é um instrumento utilizado constantemente pelo Poder Público como forma de
identificar as famílias que serão implicadas na intervenção, bem como de controle destas, até que
o projeto esteja em atuação em determinada área. A revalidação do cadastro, portanto, tem como
objetivo verificar se as famílias cadastradas permanecem na área, se não houve chegada de
outras famílias, vendas, trocas ou qualquer tipo de mudança que possa interferir no
desenvolvimento do projeto.
17
contrastam com as belas áreas de potencial turístico existente na Cidade, tais como
a Praia de Iracema, a Av. Beira-Mar, o Parque do Cocó e a Praia do Futuro.
FIGURA 3 – Mapa de Fortaleza, com identificação das favelas em vermelho. 2006.
Fonte: Fundação de Desenvolvimento Habitacional de Fortaleza - HABITAFOR.
As diversas visitas às comunidades eram realizadas principalmente pelo
setor que gerenciávamos e que tinha a denominação oficial de Célula de
Atendimento Social - CAS, terminologia que questionávamos pelo fato de que não
fazíamos apenas atendimento social, mas éramos responsáveis pela elaboração,
execução e acompanhamento de todos os projetos sociais que, juntamente com o
projeto físico (engenharia) e jurídico (regularização fundiária), compunham os
projetos habitacionais.
A equipe da CAS, juntamente com a equipe de Engenharia e Arquitetura
fazia a primeira visita à comunidade quando do reconhecimento da área, delimitação
e mapeamento. O primeiro contato com as famílias, porém, ocorria por meio da
CAS, responsável pelo cadastramento das famílias e elaboração do diagnóstico
social que deveria subsidiar o projeto físico. O diagnóstico continha informações
referentes ao número de pessoas, à composição familiar, aos pontos comerciais,
18
aos equipamentos públicos utilizados pelas famílias, à tipologia das casas, aos
serviços de infraestrutura e diversas outras informações que pudessem ser partes
dos projetos.
A CAS era composta por uma equipe técnica social, sendo 12 assistentes
sociais, duas sociólogas e 20 estagiárias, que dividiam a responsabilidade pelo
acompanhamento ou execução de 22 projetos sociais de habitação em Fortaleza.
Essa equipe configurou um marco na HABITAFOR no que se refere à interlocução
da academia com o tema da habitação. O gosto pela pesquisa, o interesse por
estudar algumas temáticas referentes ao nosso trabalho foi se intensificando, e com
o estímulo de colegas que dividiam as mesmas inquietações, resolvemos participar
da seleção do mestrado acadêmico em Políticas Públicas e Sociedade pela
Universidade Estadual do Ceará.
Ressalto que fomos convidada a participar de algumas bancas de
conclusão do curso de Serviço Social da Universidade Estadual do Ceará na
temática relacionada ao nosso trabalho. A última banca de que participamos tratava
da incidência da comercialização das unidades habitacionais e que muito nos
chamou a atenção pela coragem da pesquisadora em enfrentar esse problema tão
questionado por todas nós, técnicas e estagiárias da HABITAFOR 6. Começamos a
nos envolver com a questão e considerar interessante a possibilidade de investigála. A respeito de pesquisas que possuem temas semelhantes, Becker (2007)
defende a necessidade de “aumentar o alcance de um conceito” e refere que
Nada permanece igual. Nada é igual a coisa alguma. (...) Nenhuma de
nossas substâncias é algo puro. Todas são combinações historicamente
contingentes, geograficamente influenciadas, de uma variedade de
processos, não havendo duas combinações iguais. Assim nunca podemos
ignorar um tema apenas porque alguém já o estudou. (...) por isso estudar
“a mesma coisa” muitas vezes não é em absoluto estudar a mesma coisa,
apenas algo que as pessoas decidiram chamar pelo mesmo nome. (P.122).
No espaço temporal entre a decisão de estudar para o mestrado e o
processo
de
seleção,
um
novo
fato
aconteceu
que
poderia
interferir
significativamente nos nossos planos. Houve mudança da gestão na Prefeitura, haja
vista o início do segundo mandato da prefeita Luizianne Lins (2009-2012) que decide
6
Monografia de Andreia Cavalcanti Coelho de Almeida com o título “A política habitacional de
Fortaleza: um estudo da incidência de comercialização das unidades habitacionais do Projeto
Integrado de Urbanização da comunidade Maravilha e seu entorno”, pela Universidade Estadual
do Ceará em outubro de 2009.
19
fazer uma “dança das cadeiras” na Administração Municipal, o que envolveu
também a HABITAFOR: a então presidente do órgão desde 2006, a socióloga
Olinda Marques, passou a ser a titular da Secretaria Executiva Regional III,
enquanto o secretário de esportes, Roberto Gomes, assumiu a Presidência da
HABITAFOR.
Como ocupávamos um cargo de confiança e estávamos na gerência de
uma célula importante, que atua diretamente com o social, solicitamos transferência
para a Secretaria Executiva Regional III, pois o afastamento da HABITAFOR poderia
nos conceder melhores condições para realizar a pesquisa. Acreditamos que isto
possibilitaria maior aproximação do objeto na qualidade de pesquisadora, ao passo
que iríamos nos distanciar deste na condição de executora da política.
A respeito dessa necessidade de estranhamento, Da Matta (1978)
classifica as percepções do pesquisador de forma exótica ou familiar. Relata que o
exótico depende invariavelmente da distância social que tem como componente a
marginalidade que, por consequência, se alimenta de um sentimento de segregação
e desemboca na liminaridade e no estranhamento. O autor refere sobre a
necessidade do etnólogo em transmutar o exótico em familiar e transformar o
familiar em exótico:
Assim é que a primeira transformação – do exótico em familiar –
corresponde ao movimento original da Antropologia quando os etnólogos
conjugaram o seu esforço na busca deliberada dos enigmas sociais
situados em universos de significação sabidamente incompreendidos pelo
meio social de seu tempo. (...) A segunda transformação parece
corresponder ao momento presente (...) O problema é, então, o de tirar a
capa de membro de uma classe e de um grupo social específico para poder
– como etnólogo – estranhar alguma regra social familiar e assim descobrir
(ou recolocar, como fazem as crianças quando perguntam os “porquês”) o
exótico no que está petrificado dentro de nós pela reificação e pelos
mecanismos de legitimação. (P. 28-29).
Mesmo tendo acompanhado a elaboração e execução dos projetos de
urbanização, inclusive da Maravilha, nosso campo de pesquisa, percebemos, assim
como Gilberto Velho (1878): “o que sempre vemos e encontramos pode ser familiar
mas não é necessariamente conhecido e o que não vemos e encontramos pode ser
exótico, mas, até certo ponto, conhecido.” (P. 39).
De tal modo, passamos então a nos debruçar sobre a bagagem de
vivências e conhecimentos com suporte na experiência de três anos na área da
20
habitação, na busca de identificar o que mais nos instigava para a realização da
pesquisa. De fato, demos início ao que Bourdieu (1989) denomina “conversão do
olhar”: no nosso caso, tentávamos converter nossa óptica de técnica para a de
pesquisadora. Passamos, desde então, a olhar a cidade sob um novo prisma,
buscando compreender as políticas públicas que envolviam a questão da moradia.
Em Fortaleza, o período de 2005 a 2009 foi de grande efervescência em
relação à política habitacional, marcado por grandes ações compartilhadas com o
Governo federal por meio de vários recursos, dentre eles o Programa de Aceleração
do Crescimento (PAC), lançado na segunda gestão do Governo Lula (2007-2010),
capitalizado por Fortaleza, mediante sete projetos habitacionais desenvolvidos em
áreas de risco bastante emblemáticas na cidade - São Cristóvão, Campo Estrela,
Vila do Mar, Lagoa do Papicu, Lagoa do Urubu, Açude João Lopes e Maravilha.
As demandas por habitação apontadas no Orçamento Participativo 7 instrumento de participação popular com início em Fortaleza no ano de 2006 - foram
priorizadas com a urbanização e recuperação das áreas de risco e beneficiamento
das famílias que residem nestes espaços ilegais e desfiliados da cidade.
A proposta do Orçamento Participativo revitaliza os instrumentos de
controle social da política de habitação, em conformidade com as diretrizes e
princípios consagrados na Lei Orgânica do Município de Fortaleza, na Política
Nacional de Habitação de Interesse Social (PNHIS), no Estatuto da Cidade e no
Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social.
Quando, porém, a equipe social realizava as primeiras visitas às
comunidades que iriam receber a intervenção, a fim de fazer o reconhecimento da
área e elaborar o diagnóstico social, percebíamos que muitas famílias não tinham
conhecimento do processo de Orçamento Participativo, mesmo tendo sido uma
demanda aprovada nas assembleias.
Outro instrumento de participação popular relacionado à moradia é o
Conselho Municipal de Habitação Popular (COMHAP), instituído pela Lei Municipal
7
O Orçamento Participativo surgiu no Brasil como modelo de planejamento orçamentário
participativo na década de 1980, no momento de renovação da política brasileira, na tentativa de
buscar na democracia participativa o nascedouro de novas cidades que caminhassem além da
democracia representativa. A participação popular no orçamento é uma indicação do Estatuto da
Cidade e está na Lei Orgânica do Município. (Orçamento Participativo: uma revista da participação
popular em Fortaleza. Publicação da Prefeitura Municipal de Fortaleza. Agosto de 2009).
21
nº 7.966, de 09 de dezembro de 1996, e era ligado à extinta Secretaria Municipal de
Desenvolvimento Social – SMDS. Em 2001, quando a Coordenaria de Habitação
passou a fazer parte da então recém-criada Secretaria de Infraestrutura e Controle
Urbano – SEINF, o COMHAP permaneceu na SMDS, o que fragilizou sua atuação.
Em dezembro de 2006, o COMHAP foi reativado e passou a ser vinculado
à HABITAFOR, órgão da Administração indireta, ligado à SEINF, com caráter
deliberativo, visando a acompanhar, controlar e avaliar a Política de Habitação de
Interesse Social em Fortaleza8. No ano seguinte, ocorreu a I Conferência Municipal
de Habitação, sob a coordenação e orientação da HABITAFOR.
Seguindo uma orientação do Governo federal, o Município de Fortaleza
implementou ações destinadas à regularização fundiária, priorizando a titularidade
feminina9, o que caracteriza que a documentação da casa seja destinada,
preferencialmente no nome da mulher, pois o Poder Público aposta que, no caso de
separação, na maioria das vezes, a mulher é quem fica com os filhos e necessita da
estrutura da casa para garantir a moradia adequada à família.
A titularidade feminina é uma ação que busca também evitar a
comercialização da casa, assim como a elaboração de um cadastro único de
beneficiários da política de habitação, em que o Governo do Estado do Ceará e a
Prefeitura de Fortaleza cruzam informações no sentido de combate à especulação
imobiliária na cidade. Quando uma família é beneficiada pelo Poder Público, seja
estadual ou municipal, seu nome passa a constar num banco de dados, evitando
assim que uma mesma família possa receber dois ou mais imóveis, comprometendo
a função social da propriedade.
Ainda sobre a regularização fundiária, ressaltamos que esse processo
acontece na cidade desde 2006, tanto nos conjuntos habitacionais como em áreas
urbanizadas que possuíam precariedade quanto à titularidade do imóvel e nos
projetos habitacionais mais recentes.
8
Em contato com uma das conselheiras que representam os movimentos sociais por moradia, ela
nos informou que as atividades do colegiado se encontram paralisadas desde o início de 2011 e
que na última reunião, ficou determinado que iria ser criado o Conselho das Cidades, devendo o
COMHAP ficar vinculado a este como uma câmara técnica. A própria conselheira relata, no
entanto, que as informações ainda não estão totalmente esclarecidas para os conselheiros.
9
Lei Nacional 11.124/2005 relativa ao Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social.
22
Na maioria dos casos de regularização fundiária em Fortaleza, é utilizada
como instrumento a Concessão de Direito Real de Uso (CDRU), que possibilita ao
proprietário de um imóvel transfira o domínio útil deste a um terceiro interessado. O
Estatuto da Cidade10 prevê que, em casos de habitação de interesse social, os
contratos terão caráter de escritura pública e constituirão título de aceitação
obrigatório para fins habitacionais de interesse social, desde que registrados no
Cartório de Imóveis.
Outra determinação importante consoante à recomendação da Política
Nacional de Habitação, é a priorização de reassentamento das famílias em áreas
próximas às que residem, como o que ocorreu no projeto de urbanização destinado
à Comunidade Maravilha, evitando prejuízos em relação aos laços de vizinhança
estabelecidos e à utilização dos serviços públicos (escolas, postos de saúde etc).
Isso não se efetivou na totalidade dos projetos executados, no entanto,
haja vista a dificuldade de terrenos na cidade para construção de habitação de
interesse social. Dos 22 projetos habitacionais em andamento no período de 2005 a
2010, apenas sete deles se caracterizavam pela urbanização da área com
reassentamento das famílias no próprio local ou a menos de 200m de distância
deste – Maravilha, no Bairro de Fátima; Pau Fininho, no Papicu; São Cristóvão e
Campo Estrela, no Bairro São Cristóvão; Lagoa do Urubu, no Álvaro Weyne;
Rosalina, no Parque Dois Irmãos; e Marrocos, no Bairro Bom Jardim.
A dificuldade na localização de terrenos tem relação direta com a
especulação imobiliária na cidade e com a ausência de controle urbanístico, e a
identificação dessa terra urbanizada para construção de habitações de interesse
social constitui uma das prerrogativas do Plano Diretor.
O Plano Diretor é o instrumento básico da política de desenvolvimento e
de expansão urbana, com elaboração compulsória para os municípios de mais de 20
mil habitantes. O Plano Diretor advém da Constituição Federal de 1988, que afirma
o papel protagonista dos municípios como principais agentes da política de
desenvolvimento e gestão urbanos. O Plano Diretor, após o Estatuto da Cidade em
2001, ganhou nova forma com a ampla participação popular, com destaque para a
sociedade civil e para os movimentos sociais envolvidos com a reforma urbana.
10
Lei nº 10.257, de 10 de julho de 2001, que regulamenta os artigos 182 e 183 da Constituição
Federal de 1988.
23
Seguindo a diretriz do Governo federal, o Município de Fortaleza
privilegiou a elaboração do Plano Diretor Participativo, que teve início em fevereiro
de 2006 e contou com diferentes segmentos da sociedade, totalizando a
participação de cerca de dez mil fortalezenses11. O lançamento da lei ocorreu no dia
13 de março de 2009 e, após um longo decurso de debates, registra-se, portanto, o
primeiro Plano Diretor constituído de forma participativa em Fortaleza.
A respeito da participação, Dagnino (1994) reflete sobre a nova cidadania
como estratégia política e democrática, em que o cidadão é um sujeito social ativo,
reconhecedor de seus direitos e que tem como ponto de partida o direito a ter
direitos, ou seja, a criação de direitos que emergem de suas lutas específicas. Para
dar conta desse processo, a autora aponta a importância da participação efetiva do
cidadão na gestão das políticas públicas e propõe “[...] a existência de sujeitoscidadãos e de uma cultura de direitos que inclui o direito de ser co-partícipe da
gestão da cidade.” (DAGNINO, 1994, p.109-110).
A relação da sociedade com o Estado na operacionalização de uma
política pública nem sempre é amistosa, pois implica também conflitos que buscam
ensejar, por parte da sociedade, o aprimoramento da política em favor do interesse
público. Caso contrário, ela passa a ser um mero instrumento de dominação.
No início de 2009, o Governo federal lançou um “pacote’ habitacional que
tem como carro-chefe o Programa Minha Casa Minha Vida12, com a meta de
construir um milhão de casas, sendo 15 mil no Município de Fortaleza, destinadas a
famílias que possuem renda mensal de até três salários mínimos. A Prefeitura de
Fortaleza, por meio da HABITAFOR, realizou em torno de 100 mil inscrições no
período de abril a julho de 2009, com várias matérias veiculadas nos media acerca
da grande procura pela população nos postos de atendimento13.
11
Participaram do Núcleo Gestor do Plano Diretor Participativo representantes de movimentos
sociais, ONGs, representações profissionais, sindicatos, órgãos de classe, instituições de
pesquisa, membros do Poder Público Executivo e conselheiros do Orçamento Participativo.
Fortaleza,
2008.
Disponível
em:
<http://www.fortaleza.ce.gov.br/index.php?
option=com_content&task=view&id=8768&Itemid=239>. Acesso em: 14 jul. 2009.
12
A Lei nº 11.977, de 07 de julho de 2007, dispõe sobre o Programa Minha Casa Minha Vida e
acerca da Regularização Fundiária de assentamentos localizados em áreas urbanas.
Fonte: Folheto informativo produzido pela Prefeitura Municipal de Fortaleza em junho de 2009 com
o título: “Minha Casa Minha Vida. Em Fortaleza, mais 15 mil casas populares. Inscreva-se até 30
de junho.”
13
24
Apesar do investimento já realizado por parte do Poder Público, da luta
dos movimentos sociais urbanos, bem como do acompanhamento social, jurídico e
urbanístico, a demanda por moradia se apresenta bem maior do que a quantidade
de projetos ofertados pelo Poder Público, o que deixa aquém a possibilidade de
superação do défice habitacional.
Verifica-se, ante esta discrepância, que algumas famílias beneficiárias de
projetos habitacionais se desfazem de suas casas após o recebimento, ainda que
tenham afirmado veementemente, que a casa é o “sonho” e que jamais iriam se
desfazer do bem que tanto almejam.
A situação das denúncias em relação às vendas levou a Prefeitura de
Fortaleza a elaborar, no início de 2009, uma campanha educativa cujo tema é
“Casas entregues pela Prefeitura: não se compra e não se vende”. A ideia era
sensibilizar os moradores a não vender suas casas e a denunciar os casos de
possíveis vendas ou de vendas efetivadas, por meio de um telefone “disquedenúncia”, com ligação gratuita, objetivando a retomada judicial pela Prefeitura e
garantindo a função social da propriedade.
Aos poucos, o assunto foi tomando conta dos nossos pensamentos, das
nossas inquietações e despertando a intenção de compreender cientificamente o
cotidiano deste trabalho tão desafiador junto à política de habitação.
Dentre os questionamentos que nos surgiam, observamos que, mesmo
com algumas ações desenvolvidas pela Prefeitura no intuito de evitar a especulação
imobiliária e o retorno das famílias à situação de risco nos assentamentos precários ̶
trabalho social; regularização fundiária; titularidade feminina; cadastro unificado para
identificação dos beneficiários em programas habitacionais; urbanização de algumas
áreas de risco e prioridade na transferência das famílias para áreas próximas de
suas anteriores moradias; e orçamento participativo - permanecia, porém, a
comercialização de casas por parte de algumas famílias beneficiárias.
Aprovada no mestrado, pensamos que a comercialização das unidades
habitacionais destinadas às famílias em situações de moradia de risco também é
tema de interesse da academia, haja vista as grandes veiculações nos meios de
propagação coletiva, as especulações em torno do assunto, além de tratar-se de
uma política pública que vai de encontro ao défice habitacional do País.
25
As notícias nos media geralmente relatam o caso em si, sem considerar
os fatos que levaram a família a se desfazer do imóvel. Como exemplo, citamos a
matéria do Diário do Nordeste de outubro de 2009 a respeito da reintegração de
posse de uma unidade habitacional no Conjunto Nossa Senhora de Fátima, sob o
título de “HABITAFOR proíbe venda de imóveis doados”.
Famílias que não cumprem as leis do Habitafor perdem casa para outras
que estão na lista de espera.
O Conjunto Nossa Senhora de Fátima, situado na BR-116, próximo ao São
João do Tauape, recebeu, na tarde de ontem, nova família por conta de
reintegração feita pela Fundação de Desenvolvimento Habitacional de
Fortaleza (Habitafor). Neste endereço, um beneficiário estava descumprindo
a Lei Municipal 9.294, que determina que moradias concedidas pela
Prefeitura de Fortaleza não podem ser vendidas, alugadas, cedidas ou
permanecerem fechadas. Enquanto 19.530 famílias precisam de casas por
se encontrarem em situação de risco, o apartamento térreo do Bloco Q
deste conjunto permanecia fechado há mais de um ano, porque, segundo
os vizinhos, o beneficiário reside no Interior. (...) Assim como este, já foram
abertos mais 19 procedimentos administrativos e outros judiciais para a
retomada dos imóveis. (GONÇALVES, 06 dez.2009).
De acordo com a Fundação João Pinheiro,14 o Município de Fortaleza
apresentou em 2006 um défice habitacional de 171 mil domicílios localizados na
área urbana da região metropolitana15, o que corresponde a 19% do total das
unidades habitacionais. Para confirmar o retrato da situação de carência do setor
habitacional, verifica-se a relação entre precariedade de moradia e fator econômico,
considerando que 93,2% do défice está concentrado nas famílias que possuem
renda mensal de zero a três salários mínimos, 3,5% corresponde às famílias com
renda acima de três e até cinco salários mínimos, enquanto na faixa que engloba as
famílias que percebem mais de cinco salários mínimos, verifica-se o défice de 3,3%
dos domicílios.
Haja vista o quadro histórico que se apresenta em relação à política
habitacional no Brasil, considerando todas as lutas e conquistas na aquisição deste
direito tão primordial que é o da moradia, esta pesquisa teve como referência a
14
15
A Fundação João Pinheiro constitui um Centro de Estudos Políticos e Sociais em Belo Horizonte,
que, em parceria com o Ministério das Cidades, divulga sistematicamente informações sobre as
necessidades habitacionais no Brasil, unidades da Federação e regiões metropolitanas. O estudo
mais recente consiste no volume Déficit Habitacional no Brasil 2006, sendo este o quinto de uma
série, que teve o primeiro estudo lançado em 1995.
A Região Metropolitana de Fortaleza é composta atualmente por 15 municípios: Aquiraz, Caucaia,
Chorozinho, Eusébio, Fortaleza, Guaiuba, Horizonte, Pindoretama, Cascavel, Itaitinga,
Maracanaú, Maranguape, Pacajus, Pacatuba e São Gonçalo do Amarante.
26
comercialização das unidades habitacionais de interesse social realizada pelas
famílias beneficiárias, na qual analisamos a política habitacional em Fortaleza na
perspectiva do próprio usuário, mais especificamente, os moradores da Comunidade
Maravilha, que integram o Projeto Integrado de Urbanização da Comunidade
Maravilha e seu entorno. A pesquisa tem origem nas questões: como acontecem as
práticas de negociação de venda e troca dos imóveis? Quais os motivos que levam
os beneficiários dos programas habitacionais a venderem ou negociarem suas
unidades habitacionais? Qual o significado da nova casa para os moradores da
Comunidade Maravilha? Que sentidos os sujeitos que comercializam e negociam
seus imóveis conferem a essa prática? Considerando o conceito de “táticas e
estratégias” de Michel de Certeau (1994), quais as “táticas” utilizadas pelas famílias
nos processos de negociação dos imóveis para burlar as “estratégias” da Prefeitura
em impedir essas práticas?
A partir destes questionamentos, este trabalho tem como principal
objetivo compreender as práticas de comercialização das unidades habitacionais
pelos usuários da Política de Habitação de Interesse Social em Fortaleza, de forma
a desvendar os motivos que os levam a negociar seu imóvel. Com tal objetivo nos
propusemos descrever o Projeto Integrado de Urbanização da Comunidade
Maravilha e suas implicações para as famílias dele participantes; verificar a
compreensão dos moradores da referida comunidade acerca da Política de
Habitação de Interesse Social e conhecer a rede de negociação das unidades
habitacionais estabelecida entre as famílias da Maravilha; identificar os sentidos que
os moradores da Maravilha atribuem à nova casa bem como as “táticas” de
negociação desses imóveis. Os objetivos percorrem este trabalho que foi distribuído
em cinco capítulos, incluindo a Introdução (1) e as Considerações Finais (5).
No segundo módulo - “Desenhos, redesenhos e fios metodológicos” trazemos os caminhos percorridos para concretização deste trabalho. A favela
Maravilha que nos repassava uma sensação de estar num labirinto precisava ser
explorada. Os fios metodológicos remetem aos fios do novelo de lã de Ariadne
utilizado para que Teseu desvendasse o labirinto de Creta e enfrentasse o
Minotauro.16
16
Na mitologia grega, o Minotauro é um dos mitos mais conhecidos e já foi tema de filmes, desenhos
animados, peças de teatro, jogos etc. Tratava-se de um monstro que tinha corpo de homem e
cabeça de touro. Forte e feroz, habitava um labirinto na ilha de Creta. Muitos gregos tentaram
27
No terceiro segmento examinamos a questão urbana no Brasil e suas
implicações na política de habitação em Fortaleza, em que ressaltamos a
comunidade Maravilha, sua história, como viviam os moradores, os sentimentos
destes em relação ao projeto de urbanização, onde também reflitimos sobre a
comunidade antes da urbanização até o momento do reassentamento.
A comunidade Maravilha após a mudança das famílias para a nova
moradia, é o tema principal do quarto capítulo, onde percorremos as “estratégias” e
“táticas” que envolvem o sonho da casa própria. Sobretudo com arrimo nos
conceitos de Michel de Certeau (1994), analisamos as “estratégias” utilizadas pelo
poder público para permanência dos beneficiários; e as “táticas” dos moradores para
burlar as normas estabelecidas pela Prefeitura e, além disso, para darem sentido à
moradia e reconhecerem sua nova forma de morar.
matar o Minotauro, porém acabavam se perdendo no labirinto ou mortos pelo monstro. Certo dia, o
rei Egeu resolveu enviar para a ilha de Creta seu filho, Teseu, que deveria matar o Minotauro.
Teseu recebeu da filha do rei de Creta, Ariadne, um novelo de lã e uma espada. O herói entrou no
labirinto, matou o Minotauro com um golpe de espada e saiu usando o fio de lã que havia marcado
todo o caminho percorrido.
28
2 Desenhos, redesenhos e fios metodológicos
2.1 Subsídios ao desenho metodológico
De acordo com estudos do Instituto de Pesquisas Aplicadas (IPEA), a
tendência de redução da pobreza no Brasil é revelada maior do que a queda da
desigualdade social. Permanece, portanto, uma intensiva concentração de renda, na
qual os 40% mais pobres vivem com 10% da renda nacional, os 10% mais ricos
vivem com cerca de 40%. No relatório Pobreza, desigualdade e políticas públicas,
divulgado em janeiro de 2010, o IPEA mostra que, entre 1995 e 2008, o Brasil
conseguiu reduzir a taxa de pobreza absoluta a um ritmo de 0,9% por ano e a da
pobreza extrema de 0,8%, por meio, principalmente, de várias iniciativas de combate
à pobreza, baseadas nos programas de transferência de renda às famílias, como o
Programa Bolsa Família, o Benefício de Prestação Continuada (BPC), o reforço de
políticas públicas, a elevação do salário mínimo e a ampliação do acesso ao crédito,
num panorama de estabilidade econômica e de crescimento do País.
As desigualdades sociais, no entanto, ainda persistem e são nitidamente
reconhecidas nos espaços da cidade, onde as favelas se misturam aos luxuosos
prédios e condomínios fechados no emaranhado tecido urbano.
As mudanças econômicas e políticas influenciaram a trajetória das
políticas sociais no Brasil, bem como pelos impactos reorganizadores dessas
29
mudanças na ordem política interna. Diferentemente dos países capitalistas
avançados, o Brasil não vivenciou o sistema de bem-estar social, o que expressou
as limitações referentes ao trato das refrações da questão social.
Conforme revela Pereira (2008), a proteção social no Brasil ainda não
teceu uma rede de proteção impeditiva da queda e da reprodução de estratos
sociais majoritários da população na pobreza extrema, firmando assim as seguintes
características:
Ingerência imperativa do poder executivo; seletividade dos gastos sociais e
da oferta de benefícios e serviços públicos; heterogeneidade e superposição
de ações; desarticulação institucional; intermitência da provisão; restrição e
incerteza financeira. (P. 126).
A política habitacional se identifica com essas características, pois o
acesso à moradia digna é restrito e as políticas sociais são limitadas, sobrando
apenas opções informais à maioria da população. Maricato (2001) relata que as
iniciativas voltadas à moradia precisam estar integradas com as demais políticas
governamentais.
As condições de vida dos moradores de assentamentos precários
refletem a falta de acesso a serviços básicos essenciais. O direito à moradia
adequada reconhecido como direito humano fundamental na Constituição de 1988,
constitui o pilar para o entendimento da função da cidade e sua violação do direito
de morar leva ao atentado aos demais direitos, por isso estarem tão vinculados às
necessidades humanas, conforme descreve Melo (2010):
O acesso à moradia adequada, ao emprego e/ou trabalho propiciando
oportunidades e melhora das condições econômicas e sociais, acesso ao
transporte público eficiente e eficaz, à saúde, à educação, ao saneamento,
à energia elétrica, ao lazer, à segurança, sem falar no acesso à cultura e
aos esportes são funções a serem exercidas, atendendo às necessidades
humanas. (...) O espaço citadino deve oferecer ao cidadão: condições e
oportunidades equânimes independente de suas características sociais,
econômicas, culturais e religiosas. Trata-se do direito à cidade e suas
funções para todos. (P. 31).
Pereira (2008), ao trabalhar o conceito das necessidades humanas
básicas contraposto à noção liberal de mínimos sociais, pensa que, apesar das
necessidades de residência serem próprias de todos os povos, há uma diversidade
imensa nos tipos de habitação de acordo com as necessidades dos grupos –
30
condições climáticas, econômicas, técnicas e sociais. A autora entende que algumas
características devem ser atendidas para evitar danos à saúde física e mental, quais
sejam: garantia de abrigo seguro contra climas adversos, desabamentos,
deslizamentos, inundações, epidemias; saneamento básico e ausência de
superlotação residencial.
O Estatuto da Cidade regulamenta instrumentos de controle de uso e
ocupação do solo e de regularização fundiária que possibilitam aos poderes públicos
municipais uma nova possibilidade de reaver para a sociedade a valorização
provocada por seus investimentos em infraestrutura urbana, e de induzir a utilização
de imóveis em áreas urbanas retidas pela especulação.
O Plano Diretor compõe o grupo de instrumentos urbanísticos do Estatuto
da Cidade e tem papel fundamental ao definir a função social da cidade e orientar a
política de desenvolvimento e de ordenamento da expansão urbana do Município 17.
Quanto mais os planos diretores municipais forem abertos à inovação e à
criatividade, e tanto mais estimulem a participação dos cidadãos e a produção
coletiva, mais atenderão aos seus objetivos.
2.2 O locus da pesquisa – Os labirintos de uma favela chamada Maravilha
Todo dia o sol da manhã
Vem e lhes desafia
Traz do sonho pro mundo
Quem já não o queria
Palafitas, trapiches, farrapos
Filhos da mesma agonia
E a cidade que tem braços abertos
Num cartão postal
Com os punhos fechados na vida real
Lhe nega oportunidades
Mostra a face dura do mal
Alagados
Bi Ribeiro, João Barone e Herbert Viana
17
O Plano Diretor é obrigatório para os municípios, que contam mais de 20 mil habitantes,
integrantes de regiões metropolitanas e aglomerações urbanas, com áreas de especial interesse
turístico e situados em áreas de influência de empreendimentos ou atividades com significativo
impacto ambiental na região ou no País.
31
Na busca de conhecer a etimologia da palavra favela, verificou-se que
slum é a versão inglesa do termo e que, segundo Davis (2006), a primeira definição
de que se tem conhecimento foi publicada em 1812 no Vocabulary of the Flash
Language (Vocabulário da Linguagem Vulgar) que traz como sinônimo de slum a
palavra racket que significa “estelionato” ou “comércio criminoso”. Nos anos de 1830
e 1840, “o cardeal Wisemam, em seus escritos sobre reforma urbana, recebe às
vezes o crédito por ter transformado slum (‘cômodo onde se fazia transações vis’) de
gíria das ruas em palavra confortavelmente usada por escritores requintados.”
(2006, p. 32).
Pasternak (2008) atribui a origem da palavra favela no Brasil como
denominação dada a um arbusto comum na região de Canudos18. Ao retornar da luta
com Antônio Conselheiro e seus adeptos, os soldados do exército brasileiro, como
não tinham onde morar, ocuparam o morro da Providência no Rio de Janeiro, em
barracos que se assemelhavam ao arbusto de nome favella, o que valeu o nome
deste tipo de assentamento. Somente na segunda década do século XX, a palavra
favela se tornou um termo genérico atribuído a habitat pobre, de ocupação irregular
e ilegal, em geral nas encostas (PASTERNAK, 2008, p. 76 apud VALENÇA, 2008).
Valladares (2005) relata que a maior parte dos comentaristas atribui o
vocábulo favela a dois fatos, sendo o primeiro uma atribuição mais concreta e o
segundo mais subjetiva: a existência da planta favella, um arbusto encontrado na
Bahia e também no morro da Providência; e a resistência dos combatentes na
Guerra de Canudos ter retardado a vitória final do exército da República.
Vale destacar o fato de que o fenômeno da existência das favelas é
anterior ao aparecimento da categoria favela que veio a se tornar unidade de ideia
genérica não mais exclusiva ao morro da Favella, no Rio de Janeiro, durante a
segunda década do século XX.
A imagem da favela está relacionada à descrição dos primeiros visitantes
às favelas do Rio de Janeiro que, nas suas transcrições, transpuseram a dualidade
18
A Guerra de Canudos ocorreu entre 1896 e 1897 num povoado perdido e desconhecido no
agreste da Bahia e, após a publicação de Os Sertões de Euclides da Cunha (1902), alcançou as
manchetes dos jornais da época. O morro da Providência no Rio de Janeiro passa a se chamar
Morro da Favella, pelo fato de que os antigos combatentes da Guerra de Canudos lá se instalaram
a fim de pressionar o Ministério da Guerra a pagar seus soldos atrasados.
32
“litoral versus sertão” para “cidade versus favela”19. Nesse período, a favela começou
a ser vista como problema social e urbanístico e deu-se início a um projeto de
tratamento urbanístico para os problemas das favelas, assumindo formas de
medidas e políticas concretas. Entre os anos de 1948 e 1950, há uma produção de
dados oficiais por meio de recenseamentos.
A definição clássica do conceito de favela compartilhada pela ONU no I
Fórum Urbano Mundial em Nairóbi20, em outubro de 2002, se restringe às
características físicas e também ilegais do assentamento e subjuga a dimensão
social, limitando-se ao “excesso de população, habitações pobres ou informais,
acesso inadequado à água potável e condições sanitárias e insegurança da posse
da moradia.” (DAVIS, 2006, p. 33). Em outubro de 2003, o Programa de
Assentamentos Humanos das Nações Unidas (UN-Habitat) publicou um relatório sob
o título The Challenge of Slums (O Desafio das Favelas) que constitui o primeiro
levantamento considerado sobre pobreza urbana.
No levantamento realizado pelo IBGE em 2010, foram identificados em
Fortaleza 194 aglomerados subnormais. O conceito de aglomerado subnormal foi
utilizado pela primeira vez no Censo Demográfico de 1991. Possui certo grau de
generalização de forma a abarcar a diversidade de assentamentos irregulares do
País, conhecidos como favelas, invasões, grotas, baixadas, comunidades, vilas,
ressacas, mocambos, palafitas, entre outros.
O Manual de Delimitação dos Setores do Censo 2010 classifica como
aglomerado subnormal cada conjunto constituído de, no mínimo, 51 unidades
habitacionais carentes, em sua maioria, de serviços públicos essenciais, ocupando
ou tendo ocupado, até período recente, terreno de propriedade alheia (pública ou
particular) e estando dispostas, em geral, de forma desordenada e densa.
19
20
As primeiras descrições sobre as favelas no Brasil eram escritas por profissionais ligados à
Imprensa, Literatura, Engenharia, Medicina, Direito e à Filantropia.
O Fórum Urbano Mundial se tornou o principal congresso mundial sobre as cidades. O evento foi
estabelecido pelas Nações Unidas para examinar um dos problemas mais urgentes que o mundo
enfrenta hoje: a rápida urbanização e seu impacto nas comunidades, cidades, economias,
mudanças climáticas e políticas. A primeira edição ocorreu em Nairóbi, no Quênia, e teve dois
grandes temas estratégicos: a questão da pobreza e do meio ambiente. Atualmente o fórum
encontra-se em sua 5ª edição, que ocorreu no Rio de Janeiro em 2010, e costuma reunir líderes
de governos, ministros, prefeitos, diplomatas, membros de associações nacionais, regionais e
internacionais de governos locais, organizações nãogovernamentais e comunitárias, profissionais,
acadêmicos, organizações populares de mulheres, jovens, grupos de moradores de favelas, o
setor privado e os media.
33
Gondim (2009) sugere a delimitação da categoria “assentamentos
precários” em substituição a “assentamentos subnormais” e “favelas” por melhor
corresponder às transformações mais recentes do problema habitacional no Brasil.
A autora procede a críticas a respeito da classificação do IBGE quanto à
definição de favelas. A primeira está relacionada ao tamanho mínimo de 51
unidades habitacionais, excluindo as comunidades de menores quantidades de
moradias, ainda que importantes. Na delimitação do número de unidades
habitacionais “subnormais” em determinado perímetro, podem estar inseridas no
mesmo espaço habitações que não se enquadrem nas mesmas características.
Para salientar esta crítica, ela destaca que há uma “heterogeneidade inter e intra
favelas” com relação à infraestrutura. Por fim, aponta como crítica mais importante à
definição censitária a questão da ilegalidade da posse do terreno que pode ser
múltipla e variada, bem como as possibilidades de regularização.
Em Fortaleza, um dos espaços ocupados desde a década de 1960 como
opção à falta de moradia e acesso à terra urbanizada é a Comunidade Maravilha.
Marcadas pela notável situação de risco físico e social a que são
submetidas, conforme a figura 4 identifica, as famílias da Maravilha participaram do
Orçamento Participativo de 2006 e reivindicaram a urbanização da favela, o que
levou a Prefeitura de Fortaleza a operacionalizar o Projeto Integrado de Urbanização
da Comunidade Maravilha e seu entorno, no qual previa a urbanização da área e a
construção de 606 unidades habitacionais, em parceria com o Governo Federal, por
meio de recursos provenientes do Programa Habitar Brasil – BID e do Programa de
Aceleração do Crescimento (PAC).
34
FIGURA 4 - Comunidade Maravilha antes da urbanização.
Fonte: Jornal O Povo. 26 de fevereiro de 2005.
A especificidade da Maravilha em se tratar de uma área de risco com
localização privilegiada na cidade, onde o reassentamento das famílias ocorreu no
próprio espaço da comunidade e no entorno próximo, compõe os critérios de
elegibilidade da comunidade como objeto de estudo da pesquisa.
As famílias da comunidade foram reassentadas próximas à comunidade
de origem, porém divididas em três espaços distintos, com intervenções em etapas
diferenciadas em virtude da situação de risco em que as famílias se encontravam,
nas proximidades do canal e da linha férrea. Portanto, à medida que as construções
das unidades habitacionais eram concluídas, famílias iam sendo transferidas e a
intervenção acontecia no local onde elas habitavam.
Com efeito, os três espaços são identificados da seguinte forma: na
primeira etapa, identifica-se o Conjunto Habitacional Planalto Universo, localizado
nas proximidades da av. Borges de Melo, onde foram transferidas 144 famílias,
conforme identificado na Figura 5; a segunda etapa é composta pelo Conjunto
Habitacional Nossa Senhora de Fátima, no Bairro São João do Tauape, próximo ao
Hospital da UNIMED, onde foram transferidas 198 famílias e; finalmente, na terceira
35
etapa de construção, o Conjunto Habitacional Maravilha, localizado na própria
comunidade Maravilha, destinado a 264 famílias.
FIGURA 5 - Foto do Conjunto Planalto Universo (2004). A área destacada de amarelo foi destinada à
construção de 144 unidades habitacionais para famílias da Maravilha. O restante do conjunto já era
ocupado por famílias provenientes de outros locais.
Fonte: Fundação de Desenvolvimento Habitacional de Fortaleza - HABITAFOR
A figura 5 retrata uma foto aérea de 2002, onde é possível observar uma
delimitação dos espaços objeto de intervenção conforme o projeto de urbanização
da Maravilha. É importante salientar que a primeira remoção de 144 famílias para o
Conjunto Planalto Universo aconteceu em novembro de 2007, conjunto no qual já
havia 504 famílias provenientes da Lagoa do Opaia 21, que, como a Maravilha,
também passou por urbanização. As primeiras famílias residiam no espaço mais
próximo às margens do canal e tinham maior homogeneidade no concernente à
composição das casas, barracos compostos por plásticos, madeira e restos de
materiais de construção. A figura 4 traz uma boa visualização a esse respeito.
21
O Projeto de Urbanização da Lagoa do Opaia, assim como ocorreu com o projeto da Maravilha,
teve recursos provenientes do Programa Habitar Brasil – BID e foi destinado a 736 famílias, das
quais 232 permaneceram na área de entorno da lagoa e receberam benefícios de melhorias
habitacionais e 504 foram reassentadas no Conjunto Planalto Universo; neste total, estão incluídas
19 famílias do Viaduto do Tatá e 44 da área receptora (Bairro Vila União).
36
FIGURA 6 - Foto aérea da comunidade Maravilha em 2002. Identificação do lugar da favela Maravilha
em vermelho e dos locais onde ocorreram as obras do Complexo Esportivo e dos conjuntos
habitacionais em amarelo.
Fonte: Fundação de Desenvolvimento Habitacional de Fortaleza – HABITAFOR
Como locus da pesquisa, foram selecionados os espaços identificados
nas duas últimas etapas por estarem situados paralelamente nos dois lados da BR
116, ambos bem próximos ao local de origem das famílias, porém em situações
inversamente relacionadas. O primeiro deles, localizado na Secretaria Executiva
Regional II22, no bairro São João do Tauape, caracterizado pelo Conjunto Nossa
Senhora de Fátima encontra-se em local bastante privilegiado da cidade, alvo da
especulação imobiliária, rodeado de residências e condomínios de classe média. Já
o segundo, situado na Secretaria Executiva Regional IV, no bairro de Fátima, o
Conjunto Maravilha, construído na própria área de intervenção, menos visado pelo
mercado por ter sido edificado onde antes se localizava a antiga favela Maravilha e
que ali permaneceu por mais de 50 anos como um espaço pouco transitado por
pessoas estranhas ao cotidiano da comunidade.
22
Em 2006, Fortaleza foi redistribuída em seis secretarias executivas regionais cujo objetivo era a
descentralização das políticas públicas e o discurso seria facilitar o acesso aos serviços trazendo
a Secretaria Executiva Regional – SER para próximo do munícipe.
37
Uma relação também importante entre os dois conjuntos é o fato de
pertencerem a regiões administrativas distintas, o que implica um grande diferencial
no acesso e utilização das políticas públicas municipais, pois antes a comunidade
frequentava um determinado posto de saúde, por exemplo, e com a divisão em
conjuntos que se localizam em secretarias executivas regionais distintas, algumas
famílias passaram a serem atendidas em outro posto de saúde, pelo fato de
pertencerem a outra Secretaria Executiva Regional.
FIGURA 7 - Foto do Conjunto Planalto Universo.
Fonte: Fundação de Desenvolvimento Habitacional de Fortaleza – HABITAFOR
A desistência de incluir o Planalto Universo nesse estudo tem como
principais argumentos, o fato de que, naquele local, já havia outras famílias e os
moradores provenientes da comunidade Maravilha são minoria. Entrementes, as
duas comunidades selecionadas compõem-se genuinamente de moradores da
antiga Maravilha e estão praticamente em uma mesma área, separadas por uma BR
e ao mesmo tempo, recebem serviços de duas diferentes secretarias executivas
regionais, o que nos instigava a conhecer também essas especificidades.
38
FIGURA 8 e 9 - Fotos dos Conjuntos Nossa Senhora de Fátima e Maravilha (2010)
Fonte: Arquivo Pessoal da Autora e Fundação de Desenvolvimento Habitacional de Fortaleza HABITAFOR
Em suma, a composição atual do Planalto Universo em si merece um
trabalho específico, pois as 144 famílias que migraram da antiga Maravilha, hoje
convivem com 504 outras já instaladas e provenientes de outras localidades. Só este
fato já requer investigação sobre a (re)socialização e (re)adaptação dessas 144
famílias entre os já “estabelecidos”. (ELIAS; SCOTSON, 2000).
Enquanto isso, as outras duas novas subdivisões da antiga Maravilha são
mais homogêneas, quer pela sua área de instalação, ou por ser em compostas
somente de moradores da antiga Maravilha e, embora pertencentes a secretarias
executivas regionais distintas, permitiram se apresentar como campo ideal para esta
investigação acadêmica. As figuras 7, 8 e 9 demonstram as diferenciações e
semelhanças físicas entre os conjuntos, embora a dinâmica populacional do
Conjunto Planalto Universo seja diferente da dos demais.
Ainda que o Planalto Universo fosse um grupo mais homogêneo como os
conjuntos Maravilha e Nossa Senhora de Fátima, os sentidos da moradia e de suas
práticas de comercialização poderiam ter intensiva influência no fato de os
moradores não serem procedentes de uma mesma comunidade e terem chegado ao
local após o completo estabelecimento do grupo de famílias que os antecedeu.
39
2.3 Proposta de investigação
A proposta de tratar a política habitacional sob o enfoque da
comercialização das unidades habitacionais pelos beneficiários de tal política nos
aproxima de um referencial teórico-metodológico que privilegia a perspectiva
hermenêutica dialética na qual buscamos inspiração, especialmente em Minayo
(1996). A autora aponta que esse método busca uma interpretação aproximada da
realidade, “coloca a fala em seu contexto para entendê-la a partir do seu interior e no
campo da especificidade histórica e totalizante em que é produzida". (P.231).
Minayo (1996), por sua vez, é influenciada pelo pensamente marxista,
quando acentua que “Toda vida humana é social e está sujeita a mudança, a
transformação, é perecível e por isso toda construção social é histórica”. (P. 68).
Nessa perspectiva, a autora entende a pesquisa como atividade básica das ciências
na sua indagação e descoberta da realidade e a metodologia como o caminho e
instrumental próprios de sua abordagem.
Em estudo publicado sobre os fundamentos e a história das políticas
sociais, Behring e Boschetti (2006) indicam que, do ponto de vista histórico, é
necessário relacionar o surgimento das políticas sociais à questão social, que
possuem relação dialética; sob o prisma econômico, é primordial relacionar política
social e questões estruturais da economia e seus efeitos na produção e reprodução
da classe trabalhadora; sob o aspecto político, sua ação é determinada pelos
interesses de classe, ao reconhecer e identificar as posições tomadas pelas forças
políticas em confronto. As autoras relatam, ainda, que
As políticas sociais e a formatação de padrões de proteção social são
desdobramentos e até mesmo respostas e formas de enfrentamento – em
geral setorializadas e fragmentadas – às expressões multifacetadas da
questão social no capitalismo, cujo fundamento se encontra nas relações de
exploração do capital sobre o trabalho. (P. 51).
A função assumida pelas políticas sociais é de reduzir os custos da
reprodução da força de trabalho, sem perder o foco na produtividade, além de
manter elevados – em épocas de crise – os níveis de demanda e consumo. As
políticas sociais são vistas como “mecanismos de cooptação e legitimação da ordem
40
capitalista, pela via de adesão dos trabalhadores ao sistema” (BEHRING;
BOSCHETTI, 2006, p. 37). Podem, contudo, ser centrais para os trabalhadores em
suas lutas e em seu cotidiano, quando garantem ganhos aos trabalhadores e
impõem limites aos ganhos do capital.
Demo (2001) discorre acerca da pesquisa como um diálogo crítico com a
realidade. Esta tanto se mostra como se esconde e o objeto é também um objetosujeito. Ao compreender o caráter não estático da realidade, optamos por utilizar a
pesquisa qualitativa em busca de um aprofundamento mais aproximado do real, o
que a apreciação ampliada e menos profunda da pesquisa quantitativa não
privilegia. Não menosprezamos, todavia, o método quantitativo, pois, procuramos
entendê-lo como um dos elementos na compreensão do todo.
A pesquisa documental também foi aplicada neste ensaio, haja vista as
análises de documentos da Prefeitura, como diagnósticos, relatórios, cadastros,
dentre outros.
Neste estudo, foi possível apresentarmos um diagnóstico da Prefeitura,
revelador do perfil da comunidade e que dispensou a realização de um survey,
sobretudo nossa opção pelos sentidos e significados, táticas e estratégias, mais que
exposição percentual das respostas que, conforme nossos objetivos, requeriam
procedimentos mais qualitativos do que quantitativos.
Ainda a respeito da pesquisa qualitativa, Demo (2001) a elege pelo fato
de que
A informação qualitativa é, assim, comunicativamente trabalhada e
retrabalhada, para que duas condições sejam satisfeitas: do ponto de vista
do entrevistado, ter a confiança de que se expressou como queria; do ponto
de vista do entrevistador, ter a confiança de que obteve o que procurava ou
de que realizou a proposta. (P. 31).
Consideramos a priori, que os interlocutores mais relevantes para
investigação
seriam
os
moradores
que
comercializaram
suas
unidades
habitacionais, no entanto, inferimos as limitações que poderiam surgir na localização
dos envolvidos por se tratar de uma atividade proibida nos termos da legislação
vigente e pela dispersão desses “moradores” após repassarem seus imóveis a
outrem. É, assim, aguçada a persistência de pesquisador, no sentido de ampliar o
universo dos entrevistados com as famílias secundárias na negociação das
41
unidades habitacionais - compradores ou inquilinos - por também comporem o
objeto da pesquisa, além de lideranças comunitárias, gestores e profissionais
envolvidos diretamente no projeto habitacional da Comunidade Maravilha.
Na pesquisa qualitativa, o critério principal não é numérico, pois o
conjunto de informantes pode ser diversificado, o que possibilitou a apreensão de
semelhanças e diferenças entre eles. Portanto, consideramos que “uma amostra
ideal é aquela capaz de refletir a totalidade nas suas múltiplas dimensões. (...) em
lugar de se restringir a apenas uma fonte de dados, multiplicar as tentativas de
abordagem”. (MINAYO, 1996, p.102).
Então, decidimos empregar a triangulação, defendida por diversos
autores que discorrem sobre metodologia (MINAYO, 1996; DEMO, 2001; BECKER,
2007), e que indica o uso concomitante de várias técnicas de abordagem e de
análise, vários informantes e pontos de vista de observação, visando à verificação e
validação da pesquisa. É o que Becker (2007) define como “modelo artesanal de
ciência”. Para ele, o pesquisador, produzindo suas teorias e métodos, cobre
aspectos singulares e variações locais do fenômeno investigado que as
metodologias sugeridas nos livros e nos manuais não conseguem captar, por serem
genéricas.
Como técnica e instrumento utilizado na pesquisa, optamos pela
entrevista semiestruturada, acompanhada da observação direta, pois permitiram
maior ampliação, leitura e releitura sobre a realidade apresentada. Estes
instrumentos permitem uma interação com o entrevistado, possibilitando que ele
assuma a condição de sujeito-objeto, não sendo, tão somente, um objeto de análise.
Salientamos, portanto, a ideia de que, em toda investigação científica, a
visão de mundo do pesquisador não passa despercebida no processo de
conhecimento desde a concepção do objeto até o resultado do trabalho, no entanto
almejávamos o maior controle possível na manipulação e análise das informações,
bem como a ampliação do referencial teórico, a fim de subsidiar e fortalecer ainda
mais a permanente constituição do objeto de estudo.
Becker relata que qualquer área do conhecimento é vista por nós por
meio de imagens que já possuímos. São imagens preestabelecidas e constituídas
por nossas teorias, pelas crenças correntes nos círculos profissionais e por ideias de
42
como o mundo empírico possa ser formado de modo a permitir seguir nosso
procedimento de pesquisa. Muitas vezes essas imagens são estereotipadas, entram
em cena e assumem o controle para vermos uma esfera social empírica que não
conhecemos (BECKER, 2007).
Portanto, reconhecemos que nossa visão e experiência de trabalho na
área da habitação permitiram que elaborássemos imagens acerca da política como
um todo, tanto na perspectiva do usuário, do técnico, como do gestor. A casa, como
um bem que para muitos é primordial, sagrado e valoroso, pode para alguns tornarse um fácil objeto de troca. Aqui nos situamos, contudo, para desvendar essas
imagens preestabelecidas por meio da pesquisa qualitativa, partindo da hipótese de
que a mudança para nova casa ultrapassa a questão simplesmente física e traz
grandes significados para as famílias, muitas vezes marcadas pelo misto sentimento
de satisfação e incertezas, haja vista as despesas ensejadas na manutenção da
nova casa e a grande especulação imobiliária existente no entorno.
2.4 Os fios metodológicos no labirinto da Maravilha
Dois fatores foram essenciais na montagem da metodologia utilizada
neste trabalho e, sobretudo, em 2010, no retorno à Maravilha após dois anos, sendo
que neste momento, com visão diferenciada – a de pesquisadora. O primeiro destes,
a decisão de cursar a disciplina optativa “Seminário de Dissertação”, foi o primeiro
passo para nossa aproximação do locus da pesquisa. O segundo, quando fomos
convidada pela Profª Drª Linda Gondim para fazer parte de um grupo de estudo na
Universidade Federal do Ceará chamado Cidades, Habitação e Meio Ambiente,
ligado ao Laboratório de Estudos da Cidade.
Portanto, sentindo “desejo, necessidade e vontade”23, planejamos a
primeira visita ao campo de pesquisa. Como, porém, retornar à Maravilha? Como
chegar sozinha em uma área considerada violenta? Será que as pessoas se
23
Trecho da música “Comida”, de autoria de Arnaldo Antunes, Sérgio Britto e Marcelo Fromer,
gravada pela banda Titãs, em 1987.
43
lembrariam do período em que estivemos como técnica da HABITAFOR?
Acreditávamos que a maioria das pessoas não perceberia, pois não éramos
responsável direta pelo projeto da Maravilha, tínhamos realizado poucas visitas à
área, sendo a última em dezembro de 2008, quando aconteceu a transferência das
famílias para o Conjunto Habitacional Nossa Senhora de Fátima. Como a atividade
de remoção envolve operacionalmente muitos profissionais de órgãos diferentes,
acreditávamos que o rosto poderia passar despercebido.
Como não tínhamos o contato de nenhuma liderança comunitária,
convidamos uma assistente social que foi estagiária do projeto de urbanização da
Maravilha e que já não está mais trabalhando na HABITAFOR. Sem muita
experiência de visita de campo, resolvemos elaborar um roteiro e tínhamos a
intenção de já realizar entrevistas exploratórias. Nossa ansiedade é notada neste
relato do diário de campo:
Hoje foi meu primeiro dia de visita à Maravilha, estava tão ansiosa, uma
preocupação enorme com os registros. A noite anterior foi de muita
expectativa, acho até que sonhei estando na Maravilha. Será que a
gravação das entrevistas iria dar certo? Acabei no excesso e levei um
gravador e um MP4 para não ter o risco de falhar.(...) Saímos andando pelo
conjunto porque eu queria fazer minha primeira entrevista, minha
preocupação era testar se ia dar certo, saber se o roteiro estava adequado e
testar também os recursos de gravação. (DIÁRIO DE CAMPO, 29/04/2011).
Notamos que os moradores trataram a assistente social que nos
acompanhava de forma bastante acolhedora e por várias vezes perguntavam se ela
havia retornado à HABITAFOR, porém em nenhum momento as pessoas
demonstraram nos reconhecer. Nas conversas e encontros na comunidade, no
entanto, vimos que o fato de termos ido com uma pessoa que tinha tido uma relação
institucional muito forte com os moradores, poderia levá-los a ocultar algumas
situações e sentimentos.
Conseguimos realizar três entrevistas informais na primeira visita
exploratória. Os informantes surgiram espontaneamente, pois as famílias que
inicialmente foram apontadas como indicação pela assistente social não se
encontravam em casa. A primeira estava na janela, olhando o movimento das
pessoas, a segunda era a filha da primeira que acabava de chegar a sua casa e a
44
terceira estava em frente a um ponto comercial, quando estacionamos o carro e já
havia nos cumprimentado.
Observamos que, no campo, as coisas vão surgindo e acontecendo. Por
mais que se tenha um planejamento, este jamais poderá ser rígido, pois não se sabe
definitivamente o que acontecerá numa visita. Cabe ao pesquisador estar aberto e
atento para o que o campo oferece. De acordo com Silverman (2009), “nenhum
método de pesquisa se sustenta sozinho”. Portanto, além das tão esperadas
entrevistas, percebemos que as observações no campo em um caminhar
“despretensioso”, bem como os encontros e diálogos que ocorrem naturalmente
pelos labirintos daquela comunidade, podem se tornar informações importantíssimas
para atingir os objetivos da pesquisa. O autor descreve que “um dos pontos fortes da
pesquisa de observação é sua capacidade para mudar o foco à medida que novos
dados interessantes tornam-se disponíveis”. (P.93).
Assim, mudamos o foco da caminhada, esquecemos um pouco as
entrevistas e explorarmos o campo sob todas as formas que ele nos propiciava. Foi
então que fizemos uma visita ao Conjunto Habitacional da Maravilha, que fora
construído na própria área, onde antes ficava a favela. Como a localização deste
não é tão central, sobretudo o acesso ao conjunto, e contando mais uma vez com a
ajuda da assistente social que nos acompanhou na primeira visita, entramos em
contato com uma moradora da comunidade que hoje reside na primeira etapa de
reassentamento, mas que possui familiares vivendo no conjunto da Maravilha.
Fomos no nosso carro para nos encontrar com nossa informante que já
nos facilitou, dando o melhor caminho de acesso à comunidade. Estávamos meio
apreensiva porque não tínhamos garantia de segurança e tratava-se de um campo
para nós desconhecido, haja vista as mudanças físicas oriundas da urbanização,
pois, após a obra, a rua de acesso tornou-se ampla e com possibilidade de tráfego
de veículos por toda a comunidade, o que anteriormente era inviável na favela.
As diferenças físicas eram tão significativas que não conseguíamos nos
situar espacialmente. Para conseguir nos localizar ficávamos sempre a procurar o
lado da BR-116 ou o canal que fora também urbanizado, ou seja, para nós
permaneceu a ideia de labirinto. O conjunto da Maravilha foi o último a ser entregue
e demonstra a mesma movimentação percebida e relatada nas antigas visitas à
45
favela, só que agora com o diferencial da melhor infraestrutura, do aspecto de
limpeza e zelo que pairavam no conjunto.
Despertou a nossa atenção a existência de jardins em volta dos blocos,
alguns muito bem cuidados, conforme o que demonstra a figura 10, com
ornamentações nas paredes e plantas diversas e organizadas em volta de
cerquinhas brancas. Retomamos Jane Jacobs (2007), ao analisar o uso das
calçadas:
As ruas e suas calçadas, principalmente os locais públicos de uma cidade,
são seus órgãos mais vitais. Ao pensar numa cidade, o que lhe vem à
cabeça? Suas ruas. Se as ruas de uma cidade parecerem interessantes, a
cidade parecerá interessante; se elas parecerem monótonas, a cidade
parecerá monótona. (P. 29).
Figura 10 – Foto de jardim feito por uma moradora no interior do Conjunto Maravilha.
Fonte: Arquivo Pessoal da Autora
A Maravilha tinha novos ares! Ao conhecermos, porém, uma senhora que
havia construído um desses jardins e ao perguntar-lhe sobre a nova moradia, ela fez
um ar de enfado, reclamou da moradia, dizendo haver ficado no pior lugar, pois,
para ela, era o bloco onde havia mais confusão, onde os vizinhos brigavam muito.
46
Relatou-nos sobre uma briga na qual um homem levou facadas, na calçada do
bloco, bem em frente ao belo jardim que há pouco eu nos maravilhava. Quando
indagamos se esses vizinhos eram da Maravilha, ela confirmou que sim, mas que,
quando se mora em bloco, na hora de uma confusão, ela se sente presa, não pode
sair de casa e não se acha protegida, diferentemente do tempo em que morava em
casa e cada qual ficava no seu canto.
A estrutura física que lhe foi imposta é mais pesada do que a
possibilidade de adaptar-se e interagir com o novo; contudo, mesmo insatisfeita com
o lugar, a moradora busca se identificar com o espaço à medida que o transforma
em jardins. É o que De Certeau (1994) define como “táticas”, ou seja, maneiras de
transitar pela identificação do lugar e de utilizar a ordem imposta, “(...) sem sair do
lugar onde tem que viver e que lhe impõe uma lei, ele aí instaura pluralidade e
criatividade”. (P.93). O autor refere-se à dicotomia entre “tática” e “estratégia”, pois,
enquanto a primeira é determinada pela ausência do poder, em que os espaços só
podem ser utilizados, manipulados e alterados, a segunda é organizada pelo
postulado de um poder, sendo capazes de produzir, mapear e impor nestes
espaços.
Neste mesmo dia, conhecemos uma senhora dona de um salão de beleza
que se dizia insatisfeita com a mudança, porque sua antiga casa na favela era bem
maior do que o apartamento que recebera e se sentia injustiçada com o fato.
Reclamava, ainda, que tinha necessidade de ampliar um cômodo do seu ponto
comercial, mas havia sido impedida pela Prefeitura, que relatou que o tipo de
construção adotada - alvenaria estrutural24 - impedia a quebra ou derrubada de
paredes, o que poderia colocar em risco toda a estrutura do bloco.
Andrade e Leitão (2006) traduzem estas necessidades de mudanças e
reformas nos imóveis como “dinâmica singular do processo de produção do espaço”,
ou seja, são modificações no espaço físico que visam a adequar as transformações
ocorridas no espaço social, às necessidades e anseios dos moradores, o que deve
24
Alvenaria Estrutural é um processo de construção que se caracteriza pelo uso de paredes como
principal estrutura-suporte do edifício. Dentre as principais vantagens, destacam-se a menor
diversidade de materiais e de mão de obra, a facilidade no treinamento devido ser uma técnica
executiva simplificada, porém apresenta, entre outras desvantagens, o fato de restringir a
possibilidade de mudanças e inibir a destinação dos edifícios.
47
ser considerado pelos planejadores e pelo Poder Público. As autoras referem ainda
a importância de uma ação coletiva entre moradores e planejadores, em que eles
[...] discutam experiências, conceitos e soluções técnicas, com o objetivo de
promover uma troca de conhecimentos de ordem e escalas diferenciadas,
que vão do particular e do local (visão do morador) ao genérico e
abrangente (posição do técnico). (P. 127).
A respeito do distanciamento entre o usuário e planejadores, Lefebvre
(2008) reflete:
O usuário? Quem é? Tudo se passa como se os competentes, os “agentes”,
as autoridades afastassem de tal modo o uso em proveito da troca, que
esse uso se confundisse com a usura. A partir daí como o usuário é
considerado? Como um personagem muito repugnante que emporcalha o
que lhe é vendido novo e fresco, que deteriora, que estraga, que felizmente
realiza uma função: a de tornar inevitável a substituição da coisa, de levar a
obsolência a contento. O que muito pouco o desculpa. (P.168-169).
No caso da ampliação do salão de beleza, a moradora acentua que o seu
imóvel na favela era bem maior do que o apartamento e o ponto comercial que
recebera, o que justifica a sua dificuldade de adaptação ao novo espaço. Relata
ainda que, alguns moradores, diferentemente do seu caso, tinham casas menores e
não tinham feito investimentos e ampliação, se sentiram satisfeitos com a nova
moradia.
Bourdieu (1996) define espaço como um conjunto de posições distintas e
coexistentes, definidas umas em relação às outras por exterioridade entre si e por
via de relações de proximidade, vizinhança ou distanciamento. O espaço social
constitui-se como realidade invisível, que não podemos mostrar nem tocar e que
organiza as práticas e as representações dos agentes.
Ao buscar a ampliação do ponto comercial, a moradora procura garantir
sua posição social no novo espaço. Bourdieu (1996) ensina que “o espaço de
posições sociais se retraduz em um espaço de tomadas de posição pela
intermediação do espaço de disposições (ou do habitus)”. Entende-se por habitus
princípios
geradores
de
práticas
distintas
e
distintivas,
pois
“o
mesmo
comportamento ou o mesmo bem pode parecer distinto para um, pretencioso ou
ostentário para outro e vulgar para um terceiro”. Isto acontece na Maravilha quando
48
a moradora relata as opiniões distintas a respeito da nova moradia (BOURDIEU,
1996, p. 21-22).
Na visão de De Certeau (1994), há uma distinção entre espaço e lugar,
pois o lugar é que está posto, representa a ordem segundo a qual se atribuem
elementos nas relações de coexistência. Duas coisas não ocupam o mesmo lugar,
cada uma se situa num local próprio e distinto, indicando, portanto, estabilidade.
Diferente do lugar, o espaço não é próprio nem estável. Assim, “a rua,
geometricamente definida por um urbanismo é transformada em espaço pelos
pedestres”. (P. 202).
Considerando a visão de De Certeau (1994), de que o espaço é um lugar
praticado, percebemos que na Maravilha há uma constante necessidade de
transformação do lugar como espaço de identificação das famílias a fim de atribuir
um sentimento de intimidade e pertensa ao novo.
Fomos notando, então, que no “sonho da casa” também havia desilusões,
que necessitávamos refletir sobre elas a fim de compreender a rede de
comercialização das unidades habitacionais.
Continuamos livremente caminhando pelo conjunto. À medida que as
pessoas cumprimentavam a assistente social ou a moradora que nos acompanhava,
elas nos apresentavam e explicavam que o motivo da nossa visita era realizar uma
pesquisa da universidade para saber sobre como as pessoas estão vivendo na
Maravilha. Por algumas vezes, moradores faziam questão de nos convidar para
mostrar seus apartamentos e relatar sobre a mudança em suas vidas. Naquele
momento, ficávamos triste por não estarmos com o gravador para registrar fielmente
aqueles depoimentos, porém passamos a perceber a importância do “jogarconversa-fora”.
As conversas do cotidiano permeiam as mais variadas esferas de interação
social. Mas, por serem consideradas corriqueiras, dificilmente pensamos na
riqueza e nas peculiaridades que possam estar presentes nessa forma de
comunicação. (MENEGON, 2000, p. 215).
O
objeto
investigado
refere-se
à
comercialização
das
unidades
habitacionais que, ao ser realizada sem o consentimento do Poder Público, é
caracterizada por este como irregular e ilegal. Por conseguinte, pode ser identificada
49
durante a pesquisa uma omissão dos casos de imóveis comercializados por parte
dos informantes, haja vista as consequências advindas desta revelação. Portanto, as
observações, as conversas, juntamente com as entrevistas, formaram uma
combinação de fontes de informação inter-relacionadas aos objetivos da pesquisa e
às abordagens teórico-metodológicas adotadas.
Nas três primeiras entrevistas, não nos foi revelada a existência efetiva de
vendas, apenas tentativas identificadas pelo Poder Público e retomadas antes que a
venda se efetivasse. Nesses primeiros contatos, entretanto, notamos a existência de
trocas entre os conjuntos das três etapas e até de conjunto habitacional externo à
Maravilha.
Estas observações iniciais tornaram cada vez mais instigante a pesquisa,
pois partimos pensando em investigar a comercialização no sentido das possíveis
vendas dos imóveis, porém vimos que, além das vendas, existem as trocas, que
também representam uma mobilidade entre as famílias, e não deixam de ser
negociações. Ressaltamos, com base nas primeiras observações, que em algumas
trocas acontece o que os moradores chamam de “volta”, ou seja, um complemento
em dinheiro ou em objetos em relação ao imóvel de maior valor comercial,
consoante relatado neste depoimento:
[...] eu não vendo a minha casa nunca, às vezes eu penso assim em trocar,
em ir lá pra perto da minha outra filha, eu até fui na HABITAFOR e falei com
as moças, trouxe até um papelzinho pra se eu achasse uma troca para ir
pro outro lado eu ia avisar pra elas, mas lá só querem valendo dois mil real
de volta, mil e quinhento. (...) Eles acham que pra trocar merece a volta
porque lá tem mais valor, já nós aqui acha que a nossa aqui tem muito mais
valor. (ENTREVISTA nº 01, 29/04/2011).
Analisando as palavras da moradora, compreendemos que a casa, assim
como outros bens, possui tanto um valor de uso como um valor de troca
(VALLADARES, 1980). Percebemos que, quando ela afirma “eu não vendo minha
casa nunca”, parece haver um reconhecimento da necessidade da moradia,
afirmando o valor de uso, porém, tendo em vista as relações sociais estabelecidas,
as condições de vida, as injunções do mercado habitacional e os instrumentos de
controle da política de habitação, a moradora demonstra a possibilidade da
comercialização que caracteriza o valor de troca do imóvel.
50
A comercialização das unidades habitacionais no mercado informal é um
fato real e constitui um mecanismo de acesso à habitação e de mobilidade por parte
considerável da população pobre das cidades. Este trabalho pretende, portanto,
inferir sobre essas questões que tão constantemente são invadidas pelo senso
comum na busca de explicações e elucidações sobre o fato.
Magnani (2002)25 relata a importância do “olhar de perto e de dentro” para
um olhar distanciado, em direção a uma antropologia da cidade que procura
desvelar a presença de princípios mais abrangentes e estruturas de mais longa
duração. Relata que é somente pela referência a planos e modelos mais amplos
que se pode transcender, incorporando-o, o domínio em que se movem os atores
sociais.
Em suma, para melhor “olhar de perto e de dentro” optamos por pesquisar
a comunidade instalada nos conjuntos Maravilha e Nossa Senhora de Fátima, tendo
como principal ferramenta metodológica a observação direta.
Assim procedendo, realizamos com os moradores três entrevistas
informais na fase exploratória de entrevistas e sete entrevistas semiestruturadas na
etapa posterior à seleção de critérios de entrevistados na qual priorizamos
moradores mais antigos, proprietários de pontos comerciais e lideranças
comunitárias, seja oficial, como é o caso do presidente da Associação de
Moradores, seja esta uma liderança nata, com forte envolvimento na comunidade,
apesar de não ocupar nenhum cargo na Associação. Em visita à HABITAFOR,
realizamos quatro entrevistas com técnicos da área social e jurídica, sendo uma
advogada do setor de Regularização Fundiária, a coordenadora da Regularização
Fundiária, a assessora jurídica e a gerente da Célula de Atendimento Social – CAS.
Estas entrevistas institucionais foram realizadas em conjunto com componentes do
Laboratório de Estudos da Cidade da Universidade Federal do Ceará.
Além das entrevistas mencionadas, importantes foram as conversas
informais com moradores nas nossas caminhadas pelos conjuntos registradas no
diário de campo.
25
MAGNANI, J.G.C. “De perto e de dentro: notas para uma etnografia urbana”. Revista Brasileira
de
Ciências
Sociais.
v.17.
n.49.
São
Paulo.
Jun.
2002.
http://www.scielo.br/pdf/rbcsoc/v17n49/a02v1749.pdf. Versão impressa ISSN 0102-6909.
51
Seguindo Magnani, desde um “olhar de fora e de longe”, no capítulo
seguinte expomos alguns dos enfoques mais correntes sobre a questão urbana no
Brasil e suas implicações na cidade de Fortaleza, para em seguida, em contraste
com estas abordagens, apresentarmos com um “olhar de perto e de dentro” a
história da Maravilha, como viviam os moradores, os sentimentos destes em relação
ao projeto de urbanização, quando buscaremos retomar a comunidade desde sua
origem até o surgimento do Projeto de Urbanização da Maravilha.
3 A questão urbana no Brasil e suas implicações na política de habitação em
Fortaleza
3.2 Um olhar no Brasil urbano com o foco em Fortaleza
E a cidade se apresenta centro das ambições
Para mendigos ou ricos e outras armações
Coletivos, automóveis, motos e metrôs
Trabalhadores, patrões, policiais, camelôs
A cidade não pára, a cidade só cresce
O de cima sobe e o de baixo desce (...)
A cidade e sua fama vai além dos mares
No meio da esperteza internacional
A cidade até que não está tão mal
E a situação sempre mais ou menos
Sempre uns com mais e outros com menos.
52
A cidade
Chico Science e João Higino Filho
Repensando a política urbana no Brasil, observa-se que, no século XIX,
no auge da economia cafeeira agroexportadora, nossas cidades apresentavam forte
segregação socioespacial, em decorrência da herança colonial e escravocrata.
No Ceará, o crescimento urbano não sucedeu inicialmente por Fortaleza,
e sim por algumas outras cidades, articuladas e especializadas na produção de
carne seca e da cana-de-açúcar. Na informação de Souza (2007), está o fato de que
somente no século XIX, com a reforma do porto, é que a Cidade firma sua posição
como capital na exportação do algodão diretamente para a Europa, o que provocou
dinamismo no comércio local, acumulação de capitais, melhorias nos serviços
urbanos e, consequentemente, o crescimento migratório associado diretamente às
questões fundiárias e à incidência das secas que atingiam periodicamente o Ceará.
Já na segunda metade do século XIX, Fortaleza se expandiu com a
construção de praças e edifícios públicos, sendo apresentado por Adolfo Herbster
(1875) um plano urbanístico que deu origem a três boulevares inspirados nas
reformas de Paris, que delineou o centro urbano e corresponde atualmente às
avenidas Duque de Caxias, Dom Manuel e Imperador.
A “belle époque” de Fortaleza, porém, marcada com reformas e
movimentos culturais, apresenta um quadro de miséria em relação à população que
buscava opções de sobrevivência na cidade durante os períodos de estiagem.
A concentração de um grande número de pessoas sem recursos e sem
condições de higiene e saneamento acarretava epidemias e toda sorte de
problemas sociais, levando o governo a impor restrição à circulação dos
“flagelados”. (…) É provável que o confinamento espacial, espontâneo ou
forçado, esteja associado à formação das primeiras favelas de Fortaleza, no
início da década de 1930: Pirambu, Cercado do Zé Padre, Mucuripe e
Lagamar. (GONDIM, 2007, p. 103).
A industrialização incipiente no início do século XX implica uma
urbanização excludente desde uma visão higienista, relegando a população
operária, geralmente composta de imigrantes e ex-escravos, para bairros insalubres
e precários de periferia. Contrastando com os bairros ricos do Centro, objeto
53
constante de planos urbanísticos de embelezamento, proliferavam os cortiços, as
habitações coletivas de aluguel e as favelas, muitas vezes por iniciativa de
fazendeiros, profissionais liberais e comerciantes, que viam nessa atividade
imobiliária uma boa forma de aumentar sua renda.
Consoante Maricato (2002), a urbanização no Brasil inicia marcado com
raízes patrimonialistas e clientelistas do período pré-republicano, pela concentração
de terra, renda e poder, pelo exercício do coronelismo ou política do favor e pela
aplicação arbitrária da lei. A respeito disso, Silva (2008) se expressa:
As cidades brasileiras apresentam um movimento contraditório: incorporam
rapidamente as inovações tecnológicas, alteram o modo de vida e, ao
mesmo tempo, segregam, de forma extremamente contraditória, grande
parte de sua população. As dificuldades de acesso à terra e a fragilidade
das políticas públicas voltadas à habitação favorecem a proliferação de
favelas. (P. 139).
No Brasil, como em outros países da periferia do capitalismo mundial, a
atratividade exercida pelos polos industriais sobre a massa de mão de obra
disponível no campo provocou uma significativa explosão urbana. Esse crescimento
econômico, entretanto, tinha justamente como condição a manutenção do baixo
valor da mão de obra, motivo da nossa entrada na expansão do capitalismo
internacional, sendo portanto um crescimento estruturalmente concentrador da
renda, pois baseado em baixos salários.
Na década de 1930, o Estado se utiliza das carteiras prediais dos
institutos de aposentadoria e pensão (IAPs)26 e assume a responsabilidade da
produção e da oferta das casas populares. A experiência dos IAPs, no entanto, foi
pouco significativa numericamente já que produziu, entre 1937 e 1964, apenas 140
mil moradias, a maioria destinada ao aluguel. Paralelamente, a Lei do Inquilinato, de
1942, limitava as possibilidades de lucro para os proprietários de vilas e casas de
aluguel, uma vez que congelava os preços e diminuía a segurança do negócio para
os locadores (RODRIGUES, 1997).
26
A origem da previdência social no Brasil remonta à criação de caixas de aposentadoria e pensão
(CAPs) por categoria ocupacional ou empresa – o marco é a lei Elói Chaves, de 1923, sendo as
CAPs referentes aos empregados de empresas ferroviárias, dos portuários e marítimos, e outros,
de modo que em 1921 já haviam 183 CAPs no País.
54
Em 1946, especificamente no dia primeiro de maio, foi criada a Fundação
da Casa Popular, primeiro órgão de âmbito nacional que constituiu mais uma
iniciativa de produção de moradias, desta vez sem restrições por categorias. Esta
iniciativa permaneceu até 1964 e resultou numa produção de 19 mil unidades
habitacionais, concentradas principalmente na região sudeste, ou seja, onde os
recursos permitiam e os interesses determinavam. Neste sentido, sob a égide do
populismo, observa-se nas décadas de 1950 e início de 1960 uma expansão
descontrolada das favelas (RODRIGUES, 1997).
Em Fortaleza, várias ocupações surgiram neste período, dentre as quais
a comunidade Maravilha nos primórdios da década de 1960. Segundo depoimento
de moradores mais antigos, os ocupantes foram chegando de forma espontânea,
lenta e desorganizada. Cada família vinha e construía o seu barraco individualmente
utilizando material precário, sendo mais uma alternativa à ausência de moradia na
cidade, enfrentando situações de alagamento ocasionadas pelos períodos chuvosos
e pela proximidade do canal do Tauape, afluente do rio Cocó, além da demolição
dos barracos por funcionários da Base Aérea que se intitulavam proprietários da
terra. Nas palavras de Farias e Bruno (2011),
Ocorria, não raras vezes, a ocupação de dunas e das margens de riachos e
lagoas, gerando complicações ambientais, com a destruição/poluição
daquelas áreas, e problemas sociais, a exemplo de inundações dos
casebres na época do inverno com destruições e mortes, como acontecia
comumente, na região ribeirinha do rio Cocó, atingindo os moradores do
Lagamar e da Aerolândia, antigo Campo da Aviação. (P. 157)
As desigualdades decorrentes dos processos de industrialização e de
urbanização ensejaram gerando insatisfações sociais significativas. Já em 1963, o
Seminário Nacional de Habitação e Reforma Urbana juntou especialistas e militantes
do setor para tentar refletir parâmetros para balizar o crescimento das cidades que
começava a se delinear. A ditadura militar, entretanto, desmontou a mobilização da
sociedade civil em torno das grandes reformas sociais, inclusive a urbana,
substituindo-a por um planejamento urbano centralizador e tecnocrático.
Com origem em 1964, durante o regime militar, foi criado o Banco
Nacional de Habitação (BNH), integrado ao Sistema Financeiro de Habitação e que
visava a uma política destinada a melhorar o padrão de produção das cidades
55
brasileiras, com suporte na ampliação dos recursos no mercado habitacional. Essa
mudança
provocou
também
alteração
no
perfil
das
cidades,
visualizada
principalmente pela verticalização das unidades habitacionais.
O financiamento imobiliário, todavia, não ocasionou a democratização do
acesso à terra, pelo fato de que apenas as classes média e alta foram priorizadas,
enquanto a maior parte da população que demandava moradia não era atendida de
forma digna, como relata Maricato:
Os conjuntos habitacionais de promoção pública foram localizados em
áreas desvalorizadas, em zonas rurais ou periféricas, alimentando a
manutenção de vazios e a expansão horizontal urbana. Dessa forma a
política pública preservava as áreas mais valorizadas para o mercado
privado e alimentava a especulação fundiária. (...) entre 64 e 86 (período de
vida do BNH) o preço da terra aumentou 290% e o salário mínimo
decresceu 54,5%. (2011, P.85-86).
Dentre os principais problemas do Sistema Financeiro de Habitação
destaca-se a excessiva valorização do mercado fundiário com prioridade para os
grandes investimentos de interesse do capital, o que tornou inadequado e
insuficiente o atendimento à população de baixa renda. Em adição à falta de visão
urbanística dos planejadores promoveu o assentamento de milhares de famílias em
áreas distantes da malha urbana.
Consoante a intelecção de Gondim (2011), até os anos 1970, o debate
sobre a questão habitacional no Brasil, era marcado pela dicotomia urbanização
versus remoção de favelas. De acordo com a autora, o Banco Nacional de
Habitação (BNH) era responsável pela remoção das favelas que era fortemente
criticada nos meios acadêmico e profissional por seu caráter autoritário e pela
produção ou reforço de exclusões sociais e espaciais.
Defendia-se como solução mais adequada a urbanização de favelas,
caracterizada por um conjunto de intervenções que aproveitassem, no todo
ou em parte, o traçado existente dos assentamentos precários, modificandoo apenas na medida em que fosse necessário para a abertura de acessos e
vias de circulação, provisão de espaços e equipamentos públicos (praças,
escolas, postos de saúde, etc.) e instalação de infra-estrutura e serviços
urbanos (redes de água, esgoto, energia elétrica, drenagem etc.).
(GONDIM, 2011).
56
Na ditadura, portanto, conjunto habitacional passou a ser sinônimo de
gente empilhada – com frequência, bem longe do centro consolidado das cidades.
Nas décadas de 1970 e 1980, várias cidades brasileiras passaram por este
processo, inclusive Fortaleza, onde podem ser citados como exemplos os Conjuntos
Ceará e José Walter, que se localizam na periferia, atualmente com infraestrutura
mais consolidada, mas que, em suas origens, apresentavam diversas carências
quanto à infraestrutura global e sua integração com o centro da cidade, ou seja,
novos espaços ocasionando a segregação de seus moradores.
Para Costa (2007), o programa de remoção de favelas em Fortaleza no
início dos anos 1970 é executado pela Fundação de Serviço Social, com o objetivo
de implantar os projetos de urbanização e de expansão do sistema viário. Nesse
período, foram construídos em Fortaleza os conjuntos Alvorada, Marechal Rondon e
Palmeiras. As transferências ensejavam sérios problemas para população
(...) os conjuntos ficavam distantes dos locais de trabalho, aumentando o
tempo e o custo de deslocamento. Ademais não ofereciam a necessária
infra-estrutura e serviços. Alguns grupos, Por sua mobilização, conseguem
manter-se nas áreas, beneficiados por projetos de urbanização de favelas
(...). (COSTA, 2007, p. 85).
O BNH se insere num caminho econômico no qual a famosa frase
supostamente atribuída ao Ministro da Fazenda (Mário Henrique Simonsen) entre
1969 e 1974, de que “era preciso fazer crescer o bolo, para depois distribuí-lo”,
explicita bem um processo que autores como Roberto Schwarz ou Francisco de
Oliveira chamaram de “industrialização com baixos salários”. O milagre econômico,
se por um lado garantiu um crescimento significativo, levando o País ao oitavo posto
da economia mundial, de outra parte o fez às custas da estagnação do
desenvolvimento e da manutenção da miséria.
Este quadro permaneceu inalterado, tendo sido impactado, nos anos
1980, pela extinção do BNH e pela queda no nível de investimentos no setor, e, do
ponto de vista político, pelo movimento pela redemocratização do País, do qual os
movimentos sociais urbanos constituíram parte de sua base popular.
O recorte economicista e privatista, voltado mais aos interesses do
crescimento econômico e ao favorecimento das grandes empreiteiras, fez com que o
período do SFH/BNH, embora tenha produzido mais de quatro milhões de unidades,
57
tenha sido marcado pela péssima qualidade das construções, a generalização do
favor e das trocas eleitorais como regra para o atendimento à população, e a
reprodução de um padrão urbano altamente oneroso para o Poder Público pelo qual,
invariavelmente, os conjuntos habitacionais eram produzidos em áreas distantes e
sem infraestrutura (MARICATO, 2011).
Gradativamente, os conjuntos habitacionais foram se deteriorando e sua
ocupação passou a fugir do controle dos órgãos governamentais, o que contribuiu
para a multiplicação de irregularidades ou ilegalidade no tocante à propriedade das
unidades habitacionais ou mesmo do terreno ocupado. Configurou-se, assim, a
“favelização” do que havia sido apresentado como “solução” para o problema das
favelas. Em suma, cada vez mais a ocupação de favelas e de loteamentos
irregulares ou clandestinos tornou-se a alternativa habitacional para os pobres.
O resultado desse processo foi a explosão urbana nas grandes cidades
brasileiras, que
expressam
hoje
a
calamidade
social
de
um
país
cujo
desenvolvimento combina o atraso com o moderno. Se em 1940 a população urbana
no Brasil era de apenas 26,34% do total, em 1980, ela já era de 68,86%, para
chegar em 81,20% no ano 2000. Em dez anos, de 1970 a 1980, as cidades de mais
de um milhão de habitantes dobraram, passando de cinco para dez (MARICATO,
2002).
Em Fortaleza, a atuação sistemática do Poder Público na área de
habitação popular teve início na década de 1970, por meio de programas de
remoção de favelas para conjuntos habitacionais periféricos, a cargo do Governo
municipal. De acordo com Gondim (2007), em 1978 houve resistência contra a
remoção da favela José Bastos, o que contribuiu para significativa organização dos
movimentos sociais urbanos, culminando na criação de entidades federativas como
a União das Comunidades da Grande Fortaleza e a Federação de Bairros e Favelas
de Fortaleza.
No final dos anos 1980, as pressões dos movimentos sociais já
reivindicavam a urbanização e não mais a remoção de favelas. O Governo federal
lançou o Programa de Mutirão Habitacional 1987/1995, a que os Governos estadual
e municipal deram continuidade. Outras experiências foram realizadas por iniciativa
58
de associação de moradores com o apoio de organizações não governamentais
(BRAGA, 1995).
O Município de Fortaleza, bem como a maioria das metrópoles brasileiras,
reflete, espacial e territorialmente, os graves desajustes históricos e estruturais
diretamente vinculados às formas peculiares da formação nacional dependente e do
subdesenvolvimento. Rolnik considera que
O quadro de contraposição entre uma minoria qualificada e uma maioria
com condições urbanísticas precárias relaciona-se a todas as formas de
desigualdade, correspondendo a uma situação de exclusão territorial. Essa
situação de exclusão é muito mais do que expressão da desigualdade de
renda e das desigualdades sociais: é agente de reprodução dessa
desigualdade. (2002, P. 54).
A década de 1980, entretanto, constitui uma fase de amadurecimento de
um discurso inovador pela luta por moradia, que iniciou em 1963 quando da
realização do Seminário de Reforma Urbana pelo Instituto dos Arquitetos do Brasil
(IAB) e teve seu ápice no âmbito da redemocratização do País, que se tornou
conhecido como Movimento Nacional pela Reforma Urbana - MNRU27. Referido
movimento questiona e politiza o planejamento urbano, traz à tona o debate da
função social da propriedade, da justa distribuição dos bens e serviços, da gestão
democrática e da recuperação ambiental das cidades.
Durante a elaboração da nova Carta Magna, os integrantes do MNRU
levaram ao Congresso Nacional uma emenda popular que conseguiu angariar mais
de 100 mil assinaturas. Este movimento, aliado à luta histórica pela garantia do
cumprimento da função social da cidade, surtiu efeito. Na Constituição Federal de
1988, o direito à cidade é positivado no capítulo da política urbana, formado pelos
artigos 182 e 183, e, posteriormente, é regulamentado pela Lei nº 10.251, de 10 de
julho de 2001 – o Estatuto da Cidade.
Desde a extinção do BNH, a questão habitacional era tratada de forma
dispersa, transitando por vários ministérios, às vezes em uma mesma gestão. O
27
De acordo com o calendário traçado pelo Plenário Pró-Participação Popular na Constituinte,
participaram do Movimento pela Reforma Urbana mutuários, inquilinos, posseiros, favelados,
arquitetos, geógrafos, engenheiros, advogados, profissionais da classe média e entidades
representativas do movimento de massa – Articulação Nacional do Solo Urbano, Federação
Nacional de Arquitetos, Federação Nacional dos Engenheiros, Coordenação Nacional de
Associações de Mutuários do BNH, Movimento de Defesa do Favelado e Instituto dos Arquitetos
do Brasil, além de 48 entidades estaduais e locais.
59
setor esteve sob a responsabilidade dos Ministérios do Interior, do Desenvolvimento
Urbano e Meio Ambiente, da Habitação, Urbanismo e Meio Ambiente, da Habitação
e Bem-Estar Social, do Interior novamente, da Ação Social, outra vez do Bem-Estar
Social, do Planejamento, até alojar-se em 2003 no Ministério das Cidades.
A criação desse Ministério consiste, pois, numa conquista do Movimento
de Reforma Urbana, assim como a implantação do Conselho das Cidades e a
realização das conferências nacionais28. O Ministério das Cidades passa a ser o
órgão responsável pela Política de Desenvolvimento Urbano e, dentro dela, pela
Política Setorial de Habitação. Portanto, integram o Ministério das Cidades: a
Secretaria Nacional de Habitação, a Secretaria Nacional de Programas Urbanos, a
Secretaria Nacional de Saneamento Ambiental e a Secretaria Nacional de
Transporte e Mobilidade Urbana.
A Fundação de Desenvolvimento Habitacional de Fortaleza (HABITAFOR)
é o órgão responsável pela elaboração, implementação e execução da política de
habitação no Município de Fortaleza. A HABITAFOR foi criada pela Lei nº 8.810, de
30 de dezembro de 2003, e, segundo informações de servidores e técnicos que
militavam na área da política de habitação, surgiu, por excelência, para garantir o
repasse de recursos destinados ao Projeto de Urbanização da Lagoa do Opaia, por
meio do Programa Habitar Brasil, financiado pelo Banco Interamericano de
Desenvolvimento (BID), que tinha como exigência a criação de uma UEM – Unidade
Executora do Município.
Anterior à criação da HABITAFOR, a habitação era uma política
descentralizada com execução nas seis secretarias executivas regionais (SER's),
por meio dos extintos Distritos de Habitação e Trabalho, bem como por algumas
iniciativas do terceiro setor. A descentralização da política implicava ações
dispersas, sem uma visão da cidade como um todo.
Essa desconexão da totalidade foi minimizada com a criação da
HABITAFOR, porém, vale ressaltar, se trata ainda de um órgão da administração
28
A I Conferência Nacional das Cidades ocorreu em 2003, com o tema “Cidade para todos” e o lema
“Construindo uma política democrática e integrada para as cidades”; a segunda em 2005, com o
lema “Reforma urbana: cidade para todos” e o tema “Construindo uma Política Nacional de
Desenvolvimento Urbano”; a 3ª Conferência aconteceu em 2007, com o lema “Desenvolvimento
Urbano com Participação Popular e Justiça Social” e o tema “Avançando na Gestão Democrática
das Cidades”. Fonte: www.conam.org.br.
60
indireta (autarquia), que está vinculado a uma secretaria, sendo essa a Secretaria de
Infraestrutura e Desenvolvimento Urbano – SEINF. Por questões de ordem política,
há alguns projetos de habitação executados fora da HABITAFOR, como é o caso do
Programa de Requalificação Urbana e Inclusão Social – PREURBIS, que possui
uma coordenação vinculada diretamente à SEINF; e o Projeto Vila do Mar, cuja
coordenação está ligada à Coordenaria de Projetos Especiais, pertencente ao
Gabinete da Prefeita.
Dentre os projetos executados pela Prefeitura de Fortaleza, por meio da
HABITAFOR, destaca-se a urbanização da favela Maravilha como parte do
Programa Habitar Brasil e do Banco Interamericano de Desenvolvimento – BID, no
qual definimos como campo de estudo deste experimento universitário.
Para compreender como ocorreu a urbanização da comunidade, a forma
como o projeto foi apresentado às famílias e o modo como estas receberam e
perceberam as mudanças surgidas com o Projeto de Urbanização da Maravilha e
seu entorno, analisaremos no próximo item a história da Maravilha, como se formou
a ocupação, como viviam os moradores e de que modo as relações eram
estabelecidas na comunidade.
3.2 A comunidade Maravilha e sua história
Maravilha
Ilha de luz
Quero tua cor mulata
A tua verde mata
Os teus mares azuis
Maravilha
Também quero o teu bagaço
A força do teu braço
O afago dos teus calos
Quero os teus regalos
Encharcados de suor
Antilha
Ilha de amor
Jura que a felicidade
É mais que uma vontade
É mais que uma quimera
Ai, eu quero uma lembrança
61
Eu quero uma esperança
A tua primavera
Ai, eu quero um teu pedaço
Entorna o teu melaço
Sobre a minha terra
Maravilha
Francis Hime e Chico Buarque
A história do surgimento da Maravilha será descrita com arrimo nas
escutas que obtivemos durante as visitas aos conjuntos, nas entrevistas realizadas,
bem como em informações coletadas do Projeto de Participação Comunitária
(PPC)29 elaborado pela equipe social da HABITAFOR.
De acordo com essas fontes, verificamos que a ocupação da área ocorreu
no início dos anos 1960, período em que Fortaleza tinha poucas opções de moradia.
Ainda ao final da década de 1950, surgem os primeiros movimentos sociais urbanos
“marcados por uma crise econômica e uma conjuntura política favorável a novas
formas de atuação do Estado e a mobilização de setores da sociedade civil”. Ao final
desta década, ocorreu no Ceará uma das maiores secas que implicou uma intensa
migração do campo para a cidade (BRAGA; BARREIRA, 1991, P. 60).
(...) não era coisa certa até que o negócio apertou muito, aí papai trouxe
primeiro a Bezinha, veio trabalhar na casa de família aqui em Fortaleza.
Depois nós viemos todos juntos. Aí ele encontrou um barraquinho bem
pequeninho aqui na beira do trilho: de taipa, não tinha banheiro, não tinha
luz, não tinha nada, não tinha água, nada, nada, nada. (ENTREVISTA nº 05,
13/10/2011).
O meu pai morava de aluguel ali num campo, perto do Makro, aí um amigo
dele da Igreja disse que tava vendendo um terreno aqui na Maravilha. Aí ele
comprou uma partezinha e ele disse que fez só um vão, aí depois foi
fazendo... Eu lembro que até era de chão ainda. Aí como ele disse que lá só
era mais era terreno, meu pai foi um dos primeiros moradores. (...) Eu ainda
lembro disso aqui tudinho ser só mato quando a gente ia pra rodoviária. Ele
disse que não tinha nem 20 casas aqui na maravilha. (ENTREVISTA nº 08,
21/01/2011).
No início da formação da comunidade, a área era precária de
infraestrutura, de pavimentações e demais serviços públicos, e estava entre as que
eram ocupadas por famílias provenientes das migrações que, no período de 194029
O Projeto de Participação Comunitária (PPC) consiste num documento requisitado pela CAIXA agente financiador dos projetos de habitação – que é desenvolvido pela equipe social e contém,
além do diagnóstico social da área de intervenção, o projeto de trabalho técnico social a ser
executado juntamente com a intervenção urbanística.
62
1970, foram responsáveis por 63,29% do incremento total da população fortalezense
(COSTA, 2007, P.77).
Dentre os critérios de seleção dos informantes desta pesquisa, tivemos a
preocupação de incluir pessoas mais antigas na comunidade, tanto em relação à
faixa etária, como no concernente ao tempo de residência no local, a fim de que
pudéssemos reaver resgatar a origem do assentamento na cidade.
De acordo com o PPC da Maravilha, os moradores mais antigos relataram
o início da ocupação de forma espontânea, lenta e desorganizada, iniciando no
espaço e nas proximidades onde se localiza hoje a via férrea. Apesar de não ser a
área mais próxima do canal, ainda assim relata-se que, naquela época, o local era
constantemente alagado e as famílias sempre sofriam com o lamaçal que se
acumulava nos períodos chuvosos, o que é possível constatar nos depoimentos a
seguir:
(...) eu peguei muita enchente grande na minha casinha na Maravilha. Eu
peguei enchente minha fia, foi sofrimento. A água me cobrindo dentro de
casa. Eu sou do interior, aí nadava, né? Aí eu peguei meu menino, botei em
cima duma mesa, e peguei o outro, botei aqui nas costas e fui nadando e
deixei ele lá do outro lado do trilho. Aí volto para buscar o outro que eu
deixei em cima da mesa. Quando eu vinha voltando vinha o policial pra me
ajudar a salvar o outro. Ele se admirou como era que eu era tão corajosa.
Na sala me cobria, mas na cozinha ficava aqui [aponta pra cintura]. Aí botei
o menino no pescoço e sai nas costas e levei também pro outro lado do
trilho e salvei meus dois filhos. (ENTREVISTA nº 01, 29/04/2011).
Nasci na Maravilha. Lembranças de lá eu não tenho lembranças não.
Porque lá era uma favela, tinha muita confusão, entendeu? Tinha problema
de roubo. Não tenho muita coisa pra lembrar não. A enchente era cruel lá.
Quando tava no inverno a gente já pegava os tijolo e botava a geladeira em
cima porque a gente já tinha perdido uma geladeira, era desse jeito. Era
rato. (ENTREVISTA nº 03, 29/04/2011).
Cada vez que dava enchente, as tábuas eram tampadas com aquele
negócio que amarra os paus e botava aqueles bolinhos de barro. (…)
Quando a água vinha muito, batia e ia levando com as outras [casas]. Eu sei
que ia “simbora” roupa, as poucas coisas que a gente tinha a água ia
levando. Aí era com fezes, era com cobra, era com tudo. Era sofrimento
total. (ENTREVISTA nº 07, 17/11/2011).
Com estímulo nesses relatos, percebemos a resistência dos moradores
na luta pela moradia para garantir o seu pedaço de chão. No caso da Maravilha,
além das situações enfrentadas pelas condições de infraestrutura das moradias,
principalmente quando das enchentes, os moradores tinham seus barracos
63
demolidos por funcionários da Base Aérea de Fortaleza, que se localizava vizinho à
comunidade e que permanecia em constante vigília no combate à ocupação.
Segundo os depoimentos de alguns moradores mais antigos, porém, a
guerra contra a Base Aérea foi vencida pela persistência, pois os ocupantes
teimavam em edificar seus barracos, até que, não mais importunados, lentamente no período noturno para evitar retaliações - foram transformando seus barracos em
casas de alvenaria.
Como ressaltam Zaluar e Alvito (2006), em pleno regime militar, a favela
era vista pelos olhos das instituições e dos governos como o “lugar por excelência
da desordem”, um dos fantasmas prediletos do imaginário urbano, foco de doenças,
epidemias,
malandros,
desocupados,
negros
preguiçosos
e
promiscuidade
(ZALUAR; ALVITO, 2006, P. 14). Daí a necessidade de retirada das famílias e
tentativas de evitar que a ocupação se consolidasse, conforme o discurso seguinte.
De noite fazia aquelas casinhas de papelão, marcando o canto como
mutirão. Aí quando era durante o dia a Base [Aérea] vinha e era só pegando
e só derrubando, PM [Polícia Militar], os homens lá da Base. Porque não
podia botar casa - casa não, barraco - do lado de lá, pra não atingir a Base.
Aí no outro dia, passava dois dias e o pessoal começava de novo, a PM
vinha e derrubava de novo. (...) Eu sei que nessa confusão, não deram jeito.
Começaram a invadir, começaram a invadir, e a Maravilha foi aumentando,
foi aumentando. (ENTREVISTA nº 05, 13/10/2011).
As ameaças de remoção persistiram, por parte do Estado, e são relatadas
pelos moradores em vários cadastramentos, medições de imóveis, visitas técnicas e
políticas. No final dos anos 1960, com os recursos provenientes do Banco Nacional
de Habitação, dá-se início no Ceará à construção de conjuntos habitacionais para a
população pobre e edifícios residenciais para a classe média. A estratégia do
Estado, no entanto, era a remoção para conjuntos habitacionais periféricos, sem
infraestrutura e distantes dos locais de origem das populações residentes nas
favelas. Daí a resistência da Maravilha no seu local de origem a cada ameaça de
remoção, conforme se verifica nos seguintes depoimentos:
(...) Ave Maria! Toda vida que esses homens vinham medir eu perguntava o
que era, se era pra sair. E outra, ninguém queria sair. Porque falava de sair
e todo mundo dizia: Não! (...) Ora, só eu morei lá há quase 50 anos, né?
Cheguei aqui com 12 anos, aí queriam botar nós não sei pra onde? Não,
ninguém... Todo mundo disse: Não saio daqui não, tem que fazer é aqui,
né? (ENTREVISTA nº 07, 17/11/2011).
64
Quando nós chegamos aqui a mulher disse assim: “tá aqui ó, o papelzinho
que na próxima semana vai sair isso aqui daqui”. Isso em 66 [1966]! É tanto
que quando essas moças [assistentes sociais] passaram aqui fazendo
cadastro eu nem fiz dois porque eu disse assim: “olha desde 66 que eu
escuto isso”. E nunca sai, nunca saía, nunca saía... E toda eleição, mediam,
mediam, vai ser aqui, aqui vai pegar seu quintal até aqui, seu banheiro até
aqui... Muitas e muitas vezes. Aí eu nem ligava mais né? (ENTREVISTA nº
5, 13/10/2011).
O Plano de Desenvolvimento Integrado para a Região de Fortaleza –
PLANDIRF (1969-1971) foi elaborado contendo como proposta a abertura de vias e
construção de pontes. Algumas dessas obras estavam localizadas nos arredores da
Maravilha e interfeririam diretamente na comunidade. Além de alterar a paisagem do
local, intensificavam a mobilidade das famílias, como ocorreu no período da
construção da linha férrea, em que alguns moradores tiveram suas casas
indenizadas e, com o dinheiro, reconstruíram suas moradias nas proximidades.
Vale salientar que, no período do último cadastramento das famílias, essa
área nas proximidades da linha férrea era a mais consolidada da favela Maravilha,
onde os moradores tinham maior resistência ao projeto. Como constitui o local onde
se deu início à ocupação, lá residiam as famílias mais antigas. Portanto, as
situações procedem se consolidando, assim como as tipologias das moradias vão
ganhando corpo e alterando sua forma de barracos de madeira para casas de
alvenaria.
A construção do Viaduto da BR 116 sobre a av. Borges de Melo foi outra
obra que modificou a dinâmica da ocupação, pois obrigou os moradores a
transferirem algumas moradias com o recuo de no mínimo 15 metros de distância da
obra. E assim a Maravilha foi sendo costurada, com algumas transferências, alguns
remendos; um grupo ocupava aqui, outro grupo se mudava para acolá; e a
comunidade ia se ampliando e se encaixando de acordo com a dinâmica da cidade.
A maioria dos moradores possui laços de parentesco, pois esta ampliação
ocorreu por meio dos ocupantes que chamavam seus parentes que residiam fora de
Fortaleza para tentarem uma vida melhor na Capital, bem como os filhos e netos dos
moradores que iam se casando e permanecendo na comunidade.
Como a área está localizada em bairro central e dentro de um dos
principais eixos de circulação, que são a BR-116 e a av. Aguanambi, verifica-se um
65
processo de verticalização autoconstruída e expansão da favela decorrente de
novas gerações nascidas ali:
Nós fomos casando, tendo filho, as filhas foram arranjando marido, não
tinha aonde morar. Uma casa de três, quatro compartimentos, dava pra um,
dava pra outro, e foi fazendo aquele enxame (...). De uma casa se formava
pra três, quatro famílias. (ENTREVISTA nº 07, 17/11/2011).
Segundo alguns moradores, houve aumento considerável do número de
barracos no início da década de 1990 por famílias oriundas de bairros vizinhos à
Maravilha. Essas famílias se concentraram na área mais próxima ao canal que foi
batizada pelos moradores como “Surrão”30. A denominação refere-se às condições
precárias em que viviam essas famílias neste pedaço da favela. O sentido de
“surrão” aproxima-se de coisa gasta, suja, mas, segundo informações de uma
moradora, botaram esse nome porque era um local que só possuía entrada, não
tinha saída, atribuindo, portanto, ao significado de saco, porém saco “surrado”.
Assim como o “Surrão”, outros lugares na Maravilha foram nomeados
como o “Taio da gata”, a “o Alto da macaca”, a “rua da Frente”, o “Carandiru”31, todos
estes cheios de significados quanto a sua origem. Além dessa denominações,
observamos com frequência nas palavras dos moradores as diferenciações entre “o
lado de cá” e o “lado de lá”.
Antes da urbanização, esta divisão tinha como limite a via férrea e após a
construção dos conjuntos a divisão se dá pela BR116. Nas conversas com os
moradores, notamos que a favela era dividida basicamente em três pedaços: o
"Surrão", que era o local de habitações mais precárias, de madeira, plástico e mista;
a "rua da Frente" (rua Bartolomeu de Gusmão), que ficava “olhando” para o trilho e
as casas eram de alvenaria, onde residiam os moradores mais antigos da
comunidade, a maioria deles era bastante resistente à remoção e dizia que deveria
30
De acordo com o Dicionário Aurélio, o significado de surrão é: Espécie de bornal de couro usado
pelos pastores para levar comida e objetos de seu uso. / Roupa gasta e suja. / Indivíduo muito
sujo.
31
Durante as visitas de campo consegui desvendar o significado de alguns nomes: o Planalto
Universo era denominado de “Carandiru”, por conta das situações de violência no conjunto. O
“Alto da macaca” era uma parte mais alta da favela onde na época da construção morreu um
macaco que era criado por um dos moradores e lá mesmo foi enterrado. O “Taio da gata” era uma
parte da favela que ficava por detrás da “rua da Frente” e que possuía muitos becos onde
lembrava um “balaio de gatos”, expressão atribuída a algo desorganizado. O balaio foi sendo
suprimido e se tornou o “taio”, ou seja, “Taio da gata”.
66
sair somente o povo da “favelinha” (“Surrão”); e, finalmente, o "Taio da gata" (rua
Prof. Guilhon) cuja origem do nome ainda desconhecemos, mas que são os becos e
emaranhados que havia por trás das casas da "rua da Frente" no sentido do colégio
Piamarta.
Segundo Magnani (2002), quando o espaço é assim demarcado e se
torna ponto de referência para distinguir determinado grupo de frequentadores como
pertencentes a uma rede de relações, atribui-se este ao termo “pedaço”.
O autor define “pedaço” como o terceiro domínio entre as dimensões na
dualidade entre a “rua” e a “casa” definida por Da Matta (1997) que representa o
público, como o espaço por onde transitam os “estranhos”, delimitam posições e
demarcam conceitos; e o privado, como lugar da família onde se tem acesso os
“parentes”. Para Magnani (2002), o “pedaço” é o lugar dos “colegas”, dos
“chegados”, o intermediário da rua com a casa, o público e privado.
Ao realizar um estudo na Favela do Acari, no Rio de Janeiro, Marcos
Alvito (2006) classificou a favela como micro, com suas “localidades” e “pedacinhos”.
Relata que “as microáreas servem muitas vezes de suporte para representações
acerca das diferenças existentes no interior de uma única favela”. Os dois lados do
trilho, assim como os dois lados da BR caracterizam como exemplos destas
microáreas.
Quanto aos pedaços da favela, o autor utiliza a definição de Magnani
como:
[...] aquele espaço intermediário entre o privado (a casa) e o público, onde
se desenvolve uma sociabilidade básica, mais ampla que a fundada nos
laços familiares, porém mais densa, significativa e estável que as relações
formais e individualizadas impostas pela sociedade. (ALVITO; 2006 apud
MAGNANI; 1984, P. 193).
Nas visitas de campo na qualidade de técnica da HABITAFOR e,
posteriormente, como pesquisadora, conseguimos identificar estes pedaços na
Maravilha de modo muito visível, principalmente antes da urbanização. Esses
pedaços são delimitados pelos moradores por diversos fatores, tais como: tempo na
ocupação, laços familiares, condições físicas das moradias e até mesmo uma
divisão geográfica, como uma via férrea ou uma avenida.
67
A equipe técnica da Prefeitura, para facilitar a identificação das áreas a
serem removidas – haja vista que o projeto de urbanização se realizou de forma
sequencial – delimitou os pedaços em setores, inclusive no diagnóstico que
subsidiou a construção do PPC. Neste caso, a divisão em setores estava ligada
muito mais às condições físicas e à ordem de transferência das famílias.
As classificações feitas pelos próprios moradores, contudo, são ricas em
subjetividades, pois vão além da ordem espacial e das condições físicas. Essas
microáreas são locus de uma memória, porquanto os que pertencem ao mesmo
pedaço foram cúmplices muito próximos de vários momentos marcantes na
ocupação – sejam esses positivos ou negativos – formando uma rede de relações
que se estendia sobre esse território.
A favela é rica em expressões que dão sentidos e significados, inclusive,
ao próprio nome Maravilha. Na maioria dos depoimentos sobre a origem do nome,
diferente do significado pejorativo de alguns “pedaços” da favela que foram
nomeados, a Maravilha parte de um nome forte e positivo que condiz com a história
de que, no início da formação da favela, um homem, ao avistar as primeiras
casinhas da comunidade arrodeadas por um campo onde havia animais pastando,
disse entusiasmado: “Mas isso é uma maravilha!”.
De acordo com o PPC da Maravilha, no início da ocupação, as moradias
não possuíam luz elétrica e as famílias precisavam utilizar a lamparina. Em 1974,
com o Plano de Extensão da Companhia de Eletricidade do Ceará (COELCE), a
energia chegou ao local, atendendo à reivindicação antiga da população. Ao referirse às condições em que viviam as famílias no início da ocupação, uma entrevistada
relata que
Minha mãe veio comprar dois “casebrozinho” aqui, dentro da lama. Era feito
porco mesmo. Escuro, não tinha luz, não tinha nada. Não tinha água
encanada, não tinha nada. A luz que tinha ali era só o trem quando ele
passava. (ENTREVISTA nº 07, 17/11/2011)
A água chegou ao local mediante um longo rol de solicitações aos
organismos responsáveis, que culminou com um abaixo-assinado de toda a
comunidade, tendo à frente a Dona Sinobilina - antiga moradora que resiste à
remoção, pois sua casa ainda se encontra no meio da obra, aguardando acordo com
68
a Prefeitura – que o encaminhou a Companhia de Água e Esgoto do Ceará
(CAGECE) em 1984, porém a reivindicação só foi atendida em 1989. Antes da
chegada da CAGECE, a água era retirada de um poço comunitário, aterrado
posteriormente.
Mesmo com essas conquistas, por conta da divisão da Maravilha em
pedaços, algumas casas, principalmente aquelas localizadas no “surrão”, até pelas
condições de acesso e emaranhado das moradias, careciam de muitos serviços
básicos, como drenagem, água, luz e coleta de lixo.
As informações contidas no PPC são oriundas de um cadastramento
realizado na comunidade no ano de 2003 com atualizações em 2005, o que denota
a precariedade da favela concentrada principalmente no setor I – denominado pela
Prefeitura como tal – que correspondia ao “Surrão”.
O esgotamento sanitário é deficiente, tendo em vista, que 70% são
direcionados ao riacho Tauape. Esta realidade é presente, de maneira mais
intensa no setor I, em que se percebe uma maior ausência de saneamento
(...) Outra maneira de escoamento sanitário utilizada pela comunidade é a
fossa (27,80%), predominante no setor II. (PREFEITURA MUNICIPAL DE
FORTALEZA, 2006, p. 10).
A drenagem da área encontra-se bastante precária, o setor situado a
sudoeste das linhas férreas, utiliza-se da drenagem implantada pela
Prefeitura (SUMOV), já outra parte da comunidade [“surrão”] próxima ao
riacho Tauape (um dos afluentes do rio Cocó), a drenagem é lançada no
recurso hídrico. Foram observadas ligações clandestinas de esgoto à
galeria de drenagem, pois há um considerável número de escoamento
superficial entre becos e travessas. (PREFEITURA MUNICIPAL DE
FORTALEZA, 2006, p. 12).
O abastecimento de água é predominantemente clandestino (76%) e
somente cerca de 10% dos moradores pagam a água proveniente da
CAGECE. (PREFEITURA MUNICIPAL DE FORTALEZA, 2006, p. 14).
A maior parte dos moradores utiliza energia elétrica oficial da COELCE
(67%), ou seja, legalizada com conta mensal. O uso da energia clandestina
foi registrado com percentual de 27,00%, sendo encontrado em maior
número no Setor I (Surrão). (PREFEITURA MUNICIPAL DE FORTALEZA,
2006, p. 14).
Há coleta regular de lixo na comunidade que acontece somente pela Rua
Bartolomeu de Gusmão, principal via de acesso da comunidade, dada a
dificuldade do tráfego do carro de lixo pela má distribuição das casas. Dessa
forma, percebe-se duas realidades: no Setor I, a maioria dos habitantes
prefere lançar o lixo no riacho Tauape, devido a sua proximidade deste
setor; no Setor II, a maior parte dos habitantes utiliza a coleta de lixo
regularmente. (PREFEITURA MUNICIPAL DE FORTALEZA, 2006, p. 14)
69
Essa diferenciação no diagnóstico da favela é também percebida quando
se refere à escolaridade e à renda familiar. Das 39 crianças que se encontravam
fora da escola em 2003, 64,10% destas residiam no setor I, enquanto 35,89% se
localizavam no setor II. Já em relação à quantidade de pessoas que concluíram o
ensino médio na favela, de 100 pessoas no total da favela, 64% estavam no setor II,
caindo este valor para 36% no setor I, o “Surrão”.
Quanto à renda mensal da família, considerando a população da favela
como um todo, 54,62% da renda familiar se situava na faixa de zero a um salário
mínimo, sendo que 78,76% deste total pertenciam ao setor I e 21,23% se
encontravam no setor II. À medida que a faixa de renda aumenta, o número de
famílias diminui no setor I e amplia no setor II, pois na faixa acima de três salários
mínimos apenas três famílias estão enquadradas no setor I, enquanto que o setor II
possuía 14 famílias, correspondendo a 82,35% em relação ao setor I. Considerando
o total da população, no entanto, estas famílias correspondem a apenas 2,35% do
número de famílias cadastradas.
FIGURAS 11 e 12 – À esquerda, foto do setor I (“Surrão”) e à direita foto do setor II (2010).
Fonte: Fundação de Desenvolvimento Habitacional de Fortaleza – HABITAFOR (PPC Maravilha)
As figuras 11 e 12 retratam os setores I e II e identificam diferenciações
quanto à tipologia de construção das moradias. Esse conjunto de situações
reveladas no diagnóstico socioeconômico da Maravilha nos remete ao conceito de
espoliação urbana de Lúcio Kowarick (2009a):
70
É a somatória de extorções que se opera pela inexistência ou precariedade
de serviços de consumo coletivo, que juntamente ao acesso à terra e à
moradia apresentam-se como socialmente necessários para a reprodução
dos trabalhadores e aguçam ainda mais a dilapidação decorrente da
exploração do trabalho ou, o que é pior, da falta desta.(P.22).
Compreendemos, com o estudo do diagnóstico da Maravilha, que as
diferenciações em alguns pedaços da favela refletiram em estigmas que perduram
até hoje, principalmente em relação ao “Surrão”. As habitações deste local eram as
mais precárias e as construções eram as mais recentes da ocupação, além do que –
apesar de haver novas gerações da Maravilha neste local – era também o espaço
onde mais residiam as famílias que vieram de fora da comunidade.
Pela proximidade do canal do Tauape, as famílias do “Surrão” foram as
primeiras a ser transferidas para o Conjunto Planalto Universo, como relatado no
segundo capítulo deste trabalho. Logo ao serem removidas, a comunidade apelidou
o Conjunto Planalto Universo de “Carandiru”, nome de um presídio existente no Rio
de Janeiro que foi tema de filme com o mesmo nome e ficou marcado pelas cenas
de violência.
[Era Carandiru] porque os que iam
barracos, onde só tinha vagabundo.
passaram o pente fino. Eles foram
porque era a área mais crítica, era a
nº 04, 08/06/2011).
pra lá eram os mais perigosos, dos
Aqui melhorou um pouquinho porque
os primeiros, os primeiros barracos,
área do canal mesmo. (ENTREVISTA
Na urbanização, parte do local onde ficava o “Surrão” constitui área de
preservação ambiental em razão da existência do afluente do riacho Maceió,
portanto, foi preservada em relação à construção de unidades habitacionais. Ainda
que respeitando os limites ambientais, no entanto, presenciamos algumas pessoas
denominando de “Surrão” – mesmo depois de urbanizado – o espaço onde foram
construídos os apartamentos mais próximos ao canal.
Em uma de nossas visitas ao Conjunto Nossa Sra. de Fátima, uma
moradora nos falou que ficou muito feliz em ter vindo para o outro lado e que achou
bom porque as pessoas que tinham raiva e reclamavam do povo do "Surrão",
acabaram ficando próximas ao canal e continuaram "Surrão". Por isso que ela hoje
era feliz porque estava do outro lado e longe dessas pessoas.
71
A palavra favela geralmente é atribuída de forma estigmatizada por
pessoas externas à comunidade, no entanto, notamos que o estigma existia também
dentro da Maravilha, entre os moradores que se instalavam em diferentes “pedaços”
da ocupação.
A respeito de estigma, retomamos Goffman (1988) para compreender as
discriminações impostas em relação aos moradores de favelas, bem como entre
eles na própria localidade.
A sociedade estabelece os meios de categorizar as pessoas e o total de
atributos considerados como comuns e naturais para os membros de cada
uma dessas categorias: Os ambientes sociais estabelecem as categorias de
pessoas que têm probabilidade de serem neles encontradas. As rotinas de
relação social em ambientes estabelecidos nos permitem um
relacionamento com "outras pessoas" previstas sem atenção ou reflexão
particular. (...) um indivíduo que poderia ter sido facilmente recebido na
relação social quotidiana possui um traço que pode-se impor a atenção e
afastar aqueles que ele encontra, destruindo a possibilidade de atenção
para outros atributos seus. (P.11-14).
O autor relata que termos específicos como aleijado, bastardo e retardado
são utilizados num discurso diário como metáforas e representações sem pensar no
seu significado original. Da mesma forma, acrescentamos favelado, surrão, favelinha
dentre outros que descobrimos durante as visitas de campo e que continuam sendo
utilizados após a urbanização da Maravilha.
No estudo de Elias e Scotson (2000) sobre a Sociologia das relações de
poder numa pequena comunidade da Inglaterra, os autores definem a dicotomia
entre os “estabelecidos” e os “outsiders” quando atribuem às famílias mais antigas
na comunidade como aqueles que já se estabeleceram e definiram seu espaço e se
sentem superiores aos recém-chegados, às pessoas mais novas na comunidade,
“os de fora”, conforme descrevem:
Os mais “antigos” muitas vezes conseguem impor aos recém-chegados a
crença de que estes são inferiores ao grupo estabelecido, não apenas em
termos de poder, mas também “por natureza”. E essa internalização da
crença depreciativa do grupo socialmente superior pelo socialmente inferior,
como parte da consciência e da imagem que este tem de si, reforça
vigorosamente a superioridade e a dominação do grupo estabelecido.
(P.175).
No item seguinte relataremos acerca do projeto de urbanização e da
forma como ele se concretizou na Maravilha, para, posteriormente, analisar as
72
consequências deste para as famílias residentes na favela, sejam as mais antigas e
as recém-chegadas, os “estabelecidos” e os “outsiders”, o “Surrão” e a “rua da
Frente”, o “lado de cá” e o “lado de lá”. Buscaremos refletir como essas relações se
apresentaram ante a transformação ocorrida na Maravilha, bem como a respeito das
mudanças na vida das famílias após a urbanização.
3.3 O Projeto Integrado de Urbanização da Comunidade Maravilha
E a novidade que seria um sonho
O milagre risonho da sereia
Virava um pesadelo tão medonho
Ali naquela praia
Ali na areia...
A novidade era a guerra
Entre o feliz poeta
E o esfomeado
Estraçalhando
Uma sereia bonita
Despedaçando o sonho
Prá cada lado...
A novidade
Gilberto Gil
Em setembro de 1999, o Programa Habitar Brasil-BID foi idealizado por
meio de acordo de empréstimo entre a União e o Banco Interamericano de
Desenvolvimento – BID, como um projeto-piloto com recursos provenientes do
Orçamento Geral da União (OGU), da contrapartida dos estados, do Distrito Federal,
dos municípios e do BID.
Referido programa tinha como objetivos: contribuir para elevar os padrões
de habitabilidade e de qualidade de vida das famílias, predominantemente aquelas
com renda mensal de até três salários mínimos, residentes em assentamentos
subnormais; estimular os governos municipais a desenvolver esforços para atenuar
os problemas dessas áreas, tanto nos efeitos como nas causas, inclusive as
institucionais, que os originam; e aprofundar o conhecimento setorial dos problemas
de habitação e infraestrutura urbana do País.
73
Para atingir esses objetivos, o programa possuía dois subprogramas,
sendo o primeiro para capacitar as prefeituras em todos os aspectos pertinentes à
gestão do setor habitacional urbano, e desenvolver ações de capacitação e estudos
setoriais de interesse do âmbito da política nacional, que era Subprograma de
Desenvolvimento Institucional (DI); e o segundo, responsável pela implantação e
execução de projetos integrados para urbanização de assentamentos subnormais,
chamado de Subprograma de Urbanização de Assentamentos Subnormais (UAS).
O programa possuía normas e estabelecia exigências inovadoras em
relação aos outros programas de financiamento para efetivação do acordo de
empréstimo. Algumas destas exigências, em razão do seu grau de importância e
avanço na execução dos projetos, tornaram-se requisitos permanentes para as
demais ações, como, por exemplo, o desenvolvimento do trabalho social.
A inovação era a de que o Governo federal passava a incluir nos custos
do empreendimento a ser contratado recursos para o desenvolvimento do trabalho
social, sendo que parte destes recursos era a fundo perdido, ou seja, a custo zero,
para os municípios e estados. O limitador, neste caso, estava na dependência de
aprovação dos recursos por meio de emendas parlamentares.
Outros dois requisitos básicos definidos para a implementação do
programa foram a constituição de uma unidade responsável por sua execução, que
recebeu o nome de Unidade Executora Municipal – UEM, e a elaboração de um
Plano Estratégico Municipal para Assentamentos Subnormais – PEMAS. Esses
requisitos, além de garantirem condições mínimas para execução do Programa,
revelaram-se importantes fomentadores do amadurecimento do setor habitacional.
Outrossim, as UEMs contribuíram para a dinamização das atividades
ligadas à habitação de baixa renda e a afirmação de uma cultura de planejamento,
com base no conhecimento da realidade local. Em boa parte dos casos, as UEMs
tornaram-se embriões da constituição de órgãos responsáveis pela política
habitacional local, como aconteceu em Fortaleza com a HABITAFOR – de acordo
com informações de servidores que trabalhavam à época da implantação do
programa – que foi criado para ser a Unidade Executora no Município (UEM) do
Programa Habitar Brasil-BID e se tornou o órgão responsável pela política de
habitação em Fortaleza.
74
Em fevereiro de 2001, Fortaleza foi então contemplada com o Programa
Habitar Brasil-BID e teve o primeiro projeto destinado à urbanização da lagoa do
Opaia, localizada no bairro Vila União, onde existiam famílias residindo em situações
precárias nas proximidades da lagoa e sem a preservação da área de proteção
ambiental. O projeto contemplou 715 famílias com obras de moradia e infraestrutura,
das quais 211 permaneceram na área e receberam melhorias habitacionais, e 504
foram reassentadas no Conjunto Planalto Universo, localizado numa área bem
próxima à de origem das famílias.
A Maravilha – considerada como a 16ª na classificação das 79 áreas de
risco em Fortaleza, de acordo com o PEMAS – foi a segunda beneficiada pelo
programa Habitar Brasil-BID. O Projeto Integrado de Urbanização da Comunidade
Maravilha e seu entorno tinha como objetivo melhorar as condições de vida das
famílias de baixa renda, residentes na área de preservação ambiental e institucional,
às margens do riacho do Tauape e adjacências, mediante as seguintes
intervenções:
Projeto de Reassentamento de 606 famílias, (...) em conjuntos habitacionais
(...) dotados de serviços de infra-estrutura básica; Projetos de construção de
equipamentos comunitários: uma creche, uma escola e um centro
comunitário; Projeto de urbanização da área; Projeto de Regularização
Fundiária de todas as unidades habitacionais das famílias beneficiárias.
(PREFEITURA MUNICIPAL DE FORTALEZA, 2007a).32
Em 2003, dá-se início ao cadastramento das famílias, o que culminou na
execução do projeto de urbanização que teve as primeiras remoções no ano de
2007, com a transferência de 144 famílias para Conjunto Planalto Universo. Outras
264 famílias foram removidas na segunda etapa para o Conjunto Nossa Senhora de
Fátima, em 2008; e a terceira etapa, que se constitui de 198 famílias e que tiveram
suas residências trocadas por novos apartamentos no Conjunto Maravilha, iniciaram
as transferências em 2009, restando atualmente apenas seis unidades habitacionais
a serem entregues para conclusão de todo o processo de remoção de famílias.
De que forma, porém, as famílias enfrentaram essas transformações?
Uma ocupação que se formou desde a década de 1960 e após 30 anos, o Estado
32
Termo de Referência para contratação de pessoa jurídica para apoiar a Prefeitura Municipal de
Fortaleza na implantação e execução do PTTS do Projeto Integrado de Urbanização de
Assentamentos Subnormais na área denominada Comunidade Maravilha, âmbito do Programa
Habitar Brasil/ BID.
75
decide atuar na área com um projeto de urbanização, dividindo a comunidade em
três conjuntos habitacionais diferenciados, onde as famílias passaram a residir em
apartamentos? Qual a reação das famílias ao projeto? Seria algo que iria realmente
melhorar a vida das pessoas que ali residiam?
Muitos moradores relatam que esta não fora a primeira vez que a
Maravilha esteve sob a ameaça de intervenção. Muitas foram as visitas que não
passaram de anotações institucionais, sem maiores explicações para os mais
interessados no processo: os moradores da Maravilha. E, assim, uma desconfiança
historicamente constituída a respeito do projeto tomava conta dos moradores:
[...] depois de muito tempo, todo ano, toda eleição eles vinham e diziam que
ele [o prefeito à época] ia ajeitar a Maravilha, que aquilo ali era muito ruim,
que todo mundo morava dentro d’água. E todo mundo pedia moradia digna,
pedia que desse um jeito, que era pra tirar do sofrimento. (ENTREVISTA nº
07, 17/11/2011).
Não acreditava porque era muitos anos, vinha medir sabe? Vinha assim, a
gente tinha medição e tudo, mas ninguém acreditava não porque era muitos
anos, as pessoas dizendo que ia sair e nunca saia não. A gente só acreditou
mesmo que ia sair quando foi mesmo no dia mesmo que a gente viu.
Quando saiu aquela parte do pessoal da parte de baixo ali da beiradinha ali
do canal a gente ainda não acredita que a gente morava mais acima e a
gente não acreditava que ia sair não (ENTREVISTA nº 02, 29/04/2011).
A gente não acreditava porque achava que era uma benção muito grande.
Tirar a gente dum canto daquele... Eu tinha muita vontade de sair por causa
daquelas enchentes, mas os meus vizinhos era tudo maravilhoso. Eu temia
de ficar longe das minhas filhas, mas eu dizia pra onde for, nós três vamos
ficar juntas. (ENTREVISTA nº 01, 29/04/2011).
Observamos que havia uma descrença por parte da comunidade em
razão das vastas tentativas fracassadas do Estado, sem que houvesse retorno para
a comunidade. Muitas vezes – como bem foi relatado nos depoimentos dos
moradores – os técnicos entravam nas casas, faziam perguntas, mediam os
cômodos, mas o morador terminava sem saber, de fato, o objetivo real daquela
visita.
Geralmente, numa favela, são vários os cadastramentos realizados, na
sua maioria com formatos diferenciados, porém com muitas perguntas e propósitos
semelhantes, o que deixa os moradores cansados e desacreditados quanto a futuros
projetos para a comunidade. Para eles, o cadastramento do Programa Habitar
76
Brasil-BID era mais um cadastramento como muitos outros que passaram pela
Maravilha.
Anos se passaram e as visitas técnicas permaneciam, às vezes mais
espaçadas, às vezes mais constantes, porém os moradores só vieram dar conta da
realidade do projeto quando viram materializadas as obras que foram as primeiras
remoções do pessoal do “Surrão” para o Conjunto Planalto Universo e a obra de
urbanização do canal.
A gente só acreditou mesmo que ia sair quando foi mesmo, no dia mesmo
que a gente viu. Quando saiu aquela parte do pessoal da parte debaixo, ali
da beiradinha ali do canal, a gente ainda não acredita. Porque a gente
morava mais acima e a gente não acreditava que ia sair não. (ENTREVISTA
nº 02, 29/04/2011).
[...] eles começaram logo a obra do canal, aí pararam né? Aí eu resolvi
comprar o meu barraco, aí disse eu vou comprar porque agora o negócio vai
pra frente mesmo e eu vou ter que ganhar a casa. Todo mundo vai ganhar,
eu tenho que ganhar também. (ENTREVISTA nº 04, 08/06/2011).
O primeiro cadastramento para o Programa Habitar Brasil-BID na
Maravilha se deu em 2003, porém foi realizada uma atualização cadastral em 2005
que culminou na elaboração do PPC para execução do trabalho social. Nessa
atualização de cadastros, foi realizada uma pintura de identificação dos imóveis com
as iniciais da Prefeitura Municipal de Fortaleza (PMF), seguida de uma numeração
sequencial para controle dos técnicos da HABITAFOR, que era chamada de
“congelamento”, como demonstra a figura 13.
Castel (1998) relata que no século XIV, com o desenvolvimento das
cidades, a organização da assistência – que possuía localização privilegiada nos
conventos e nas instituições religiosas – passa a ser realizada em bases locais e
impõe
uma
seleção
mais
rigorosa
dos
assistidos,
devendo
estes
estar
cuidadosamente recenseados e localizados.
[...] começa-se a impor aos indigentes o uso de distintivos (medalhas,
chapinhas de chumbo, cruzes costuradas na manga ou no peito), dando
início a uma espécie de 'direito' [grifo do autor] de participar das
distribuições regulares de esmolas ou de frequentar as instituições
hospitalares. (P. 71).
77
Talvez “congelar” a população na Maravilha não fosse exatamente a
tentativa da Prefeitura, porém aqueles imóveis “congelados” e cadastrados eram
exatamente os considerados como possíveis beneficiários no projeto. Os demais
que iam surgindo após o “congelamento” não tinham garantia nenhuma de serem
contemplados, a não ser que houvesse uma sobra de vagas no projeto.
É possível que uma das “estratégias” da Prefeitura em dar poucas
explicações no momento do “congelamento” fosse para evitar que os moradores se
utilizassem de “táticas” – subdivisão da família ou da casa, por exemplo - para
barganhar mais de um imóvel, seja unidade habitacional ou ponto comercial.
Algumas adversidades na vida dos moradores, contudo, muitas vezes
impedem que o “congelamento” seja seguido conforme as identificações dos PMF’s,
tais como: crescimento da família e ampliação do imóvel; chegada de novos
moradores por conta do cadastramento realizado e a possibilidade de inclusão no
programa; saída de moradores por venda ou troca do imóvel, por conta de ameaças
em razão de brigas com vizinhos ou tráfico de drogas; valorização da casa após a
intervenção da Prefeitura; dentre outras diversas possibilidades.
Figura 13 – A seta amarela identifica o número de congelamento do imóvel, neste caso o PMF 21.
Fonte: Fundação de Desenvolvimento Habitacional de Fortaleza.
78
Os moradores depuseram sobre o cadastramento demonstrando as
incertezas acerca do projeto para alguns deles, principalmente aqueles cadastrados
primeiramente:
(...) aí elas [técnicas sociais] quando começaram a passar [cadastrando]
perguntaram quantos filhos eu tinha e eu disse que tinha tido sete. Mas
mora tudinho aqui? [as técnicas sociais perguntaram]. Eu não sabia,
ninguém sabia como ia ser depois, o que era mesmo [o cadastro]. Aí eu falei
a verdade, comigo só mora cinco, cinco pessoas tudo, né? Aí ela só
botando [anotando] lá. Quando foi do meio pro fim aí foi mostrado aquele
projeto que era apartamento, aí todo mundo ficou alegre, empolgado, né?
Fizeram o lá do Vila União primeiro [Conjunto Planalto Universo]. A minha
menina foi pra lá, tenho uma menina que foi pra lá. (ENTREVISTA nº 07,
17/11/2011)
Porque a primeira vez que passou fazendo o cadastro aí a moça disse:
“olha aqui é duas famílias?” Eu disse é. Porque era assim, era a mamãe,
(...) um sobrinho meu que mora comigo, que foi a mãe que criou, que é neto
dela, filho do meu irmão mais novo e era papai. Papai faleceu primeiro, aí
quando fizeram o cadastro tava mamãe e Tiago e eu e meu companheiro
que não era o pai dos meninos mas era uma pessoa que eu arranjei depois
né? (...) Aí fui morar com a mãe, então a moça disse: “Então aqui tem que
ser dois cadastros, porque era você e seu companheiro, sua mãe e o
Tiago”. Eu disse: Não, eu sei que é duas famílias, mas nós somos unidos,
faça um só mesmo, a gente fica junto. Aí quer dizer, se eu tivesse feito dois
cadastros como a minha vizinha ganhou três, morava vizinho a mim. (...)
Mas se eu tivesse tido a malícia eu tinha pegue um apartamento pra mim e
outro pro meu sobrinho. Quando ele casasse já tinha o dele, mas não tem
problema não. (ENTREVISTA nº05, 13/10/2011)
O cadastramento das famílias por via do instrumento chamado Boletim de
Informações Cadastrais – BIC possuía informações que se tornariam subsídios para
elaborar o diagnóstico da comunidade, como renda familiar, quantidade de pessoas
residentes, quantidade de pessoas com deficiência33, idosos, número de crianças,
dentre outras.
O número de pessoas residentes e as relações estabelecidas entre estas,
determinavam duas informações importantes para a equipe da Prefeitura
responsável pelo cadastramento: Primeiro, se o apartamento seria de dois quartos
com 44m2 ou de três quartos com 60m2, pois a Prefeitura determinava que havendo
acima de cinco pessoas no imóvel, esta família deveria ser transferida para
33
Em 2005 os projetos de habitação passaram a incluir imóveis adaptados para as pessoas com
deficiência que fazem uso de cadeiras de rodas para locomoção. Esses imóveis deveriam estar
localizados no andar térreo e as portas de acesso possuíam dimensões maiores do que as
normais.
79
apartamento de três quartos; e, segundo, a quantidade de cadastros no mesmo
imóvel deveria corresponder à quantidade de famílias residentes.
Em razão da heterogeneidade existente na Maravilha, marcada pela
condição física das moradias e pelo tempo de permanência na comunidade – que
acabou dividindo a área em pedaços, conforme já abordado – algumas famílias
reagiram de forma positiva à notícia quanto ao tamanho do imóvel, principalmente as
residentes do “Surrão”; porém, as do setor II, que ficavam localizadas na “rua da
Frente”, perto do trilho, até hoje se sentem prejudicadas com a mudança.
Ali [no surrão] tinha uma parte que era de gente miserável mesmo, de você
saber que aquela pessoa amanhecia e não ia saber o que ia comer. Graças
a Deus, assim do lado que eu morava era uma parte mais... As pessoas
tinham emprego, o lado de trás... mas o quintal era um negócio mesmo de
você ter pena mesmo. (ENTREVISTA nº 08, 21/01/2012)
Tinha duas realidades, tinha um pessoal mais antigo que tinha umas casas
boas, né? Estruturada com esgoto, saneamento, tudo. Agora tinha um outro
lado que era só barraco de madeira e toda vida que chovia alagava. (...)
Sim, [o projeto] trouxe uma melhoria para algumas pessoas, não pra todos
os moradores, porque os que tinham casas melhores, com garagem, eles
tiveram que abrir mão, fazer um sacrifício para que outras pessoas fosse
também beneficiadas, né? (ENTREVISTA nº 07, 17/11/2011).
Era pra ter sido, se era pra urbanizar, o projeto sabia que ia ter perda e ia
ter ganho. Então quem ganhou? Quem tinha um quartinho. Quem perdeu?
Quem tinha uma casa grande. (ENTREVISTA nº 10, 22/01/2012).
Com relação aos pontos comerciais, o projeto privilegiava 45 unidades, de
tamanhos semelhantes, mas que apresentam diferenciações na sua disposição no
conjunto e quanto à existência de banheiro: os conjugados aos apartamentos, que
ficavam atrelados ao apartamento do responsável pelo ponto e não possuíam
banheiro; e os independentes, que tinham banheiro e ficavam isolados do
apartamento, num bloco à parte destinado a pontos comerciais. Neste caso,
pessoas que possuíam um ponto comercial amplo, com o comércio já bem
estruturado receberam o ponto comercial do mesmo tamanho de uma pessoa que
possuía apenas uma vendinha mais simples.
Em visita realizada ao Conjunto Nossa Senhora de Fátima, um morador
de um ponto comercial disse se sentir prejudicado com a mudança porque possuía
um comércio bem maior na favela, com dois freezers, geladeira e balcão e teve que
se desfazer de alguns objetos para ir para o novo ponto no conjunto. Reclamou
80
ainda que a Prefeitura não imaginava que a tendência de um comerciante é crescer,
e no conjunto, como eram proibidas reformas de ampliação, isso ficava estagnado.
Muitas vezes, o Estado, representado por seu aparato institucional e
equipe técnica, atribui o conceito de excluídos sociais aos moradores de favelas. Na
compreensão de Castel (1998), a exclusão remete a uma situação estanque em que
ratifica uma ruptura, sem reconstituir um percurso. Além disso, percebem as
condições dos moradores de uma favela sob um olhar homogeneizado, sempre com
referência àqueles em maiores situações de vulnerabilidade social.
Pasternak (2008) assinara que a maioria das favelas já consolidadas é de
lugares bastante heterogêneos e consolida esta afirmação da homogeneidade como
um mito em relação às favelas: “As favelas integram-se ao espaço urbano e têm
diversidade dentro e entre si. Seus habitantes são trabalhadores que produzem e
consomem, como outros que moram em distintos segmentos do tecido urbano”.
(P.106).
A
Maravilha,
que
pode
ser
considerada
consolidada
por
ter
aproximadamente 30 anos de existência, hoje não abriga apenas os miseráveis, e
sim muitas famílias que antes viviam do aluguel, por exemplo, ou vieram do interior
para “tentar uma melhora na capital”, e algumas que conseguiram ao longo do
tempo melhorar suas condições de rendimento e permaneceram no local por
inúmeros motivos.
Essa configuração nos remete a Gondim (2009), ao sugerir o emprego da
expressão “assentamentos precários” como forma de melhor responder às
transformações ocorridas nos últimos anos nas favelas, além de contribuir para
diminuição do estigma atribuído à população com o uso do termo “favela”.
O projeto era composto por vários blocos, formados por três pavimentos,
sendo um térreo e mais dois andares. Da mesma forma em que parte dos
moradores se preocupou em garantir que suas atividades comerciais fossem
mantidas após a urbanização da área, muitos relataram suas expectativas quanto ao
novo tipo de moradia: o apartamento, que muitos deles costumam chamar de “morar
trepado”.
No depoimento de uma senhora residente atualmente no Conjunto
Maravilha, ela diz que “quando se mora em bloco, na hora de confusão a gente se
81
sente presa, não pode sair de casa e não se sente protegida, diferente do tempo que
eu morava em casa e que cada qual ficava no seu canto”. Em outro depoimento,
uma moradora do Conjunto Nossa Senhora de Fátima relata que
[...] é cada um em cima do outro. Pra descer? Não desce fácil não (risos).
[...] porque é ‘atrepado’, porque um grita, o outro o menino pula, não sei o
quê, negócio de apartamento é uma chatice, mas eu gostei. (ENTREVISTA
nº 07, 17/11/2011).
Visando a garantir a adesão das famílias ao projeto, bem como manter
atualizadas as alterações decorrentes de trocas, vendas e construção de imóveis na
comunidade já “congelada” e cadastrada, a equipe técnica social realizava diversas
visitas com este objetivo.
A transferência das famílias para o Conjunto Nossa Senhora de Fátima
ocorreu em dezembro de 2008. Observando um relatório elaborado pela equipe
social em visitas de atualização em agosto do mesmo ano, verificamos que havia
uma adesão das famílias ao projeto de 74,76%. Além dos imóveis cadastrados, 23
novos barracos foram identificados por terem sido feitos após o cadastramento em
2005. Dentre os que não aderiram ao projeto, a principal justificativa era a de que
possuíam um imóvel maior do que o fornecido pelo projeto, conforme identificamos
na figura 14.
Figura 14 – Imóveis que não aderiam ao projeto, localizados na “rua da Frente”.
Fonte: Fundação Habitacional de Fortaleza – Relatório de Atualização de Dados Cadastrais da
Comunidade Maravilha.
A relação entre o Poder Público e os moradores se dava, principalmente,
por intermédio da equipe técnica social responsável pela elaboração e execução do
82
Projeto de Participação Comunitária, que constituiu um dos requisitos do Programa
Habitar Brasil na implementação do convênio para implantação do projeto na
Maravilha.
O Projeto de Participação Comunitária, possui como macro-objetivo
promover e potencializar o desenvolvimento de atividades de mobilização e
organização comunitária, educação sanitária e ambiental, geração de
trabalho e renda e regularização fundiária de todos os imóveis situados na
área de intervenção, na perspectiva da melhoria da qualidade de vida, da
conquista de direitos sociais, contribuindo para o despertar de uma nova
cultura sócio-política das famílias beneficiárias, favorecendo, em última
instância, a auto-gestão da comunidade. (PREFEITURA MUNICIPAL DE
FORTALEZA, 2007a)34.
Para execução do trabalho social, a Prefeitura elaborou um termo de
referência com descrições das atividades a serem desenvolvidas no projeto social,
devendo a equipe de técnicos da HABITAFOR coordenar e monitorar o
desenvolvimento dessas atividades. Em razão, porém, dos trâmites burocráticos
para contratação da empresa, grande parte das atividades foi executada pela própria
equipe social da HABITAFOR que, no caso da Maravilha, era composta por duas
assistentes sociais e três estagiárias.
O cadastramento da comunidade, as diversas atualizações cadastrais, o
convencimento da população local para adesão ao projeto, além da distribuição das
famílias nos imóveis e organização da remoção, foram atividades executadas
diretamente pela equipe da HABITAFOR, haja vista não haver empresa contratada
nesse período, antes da remoção das famílias para os conjuntos.
A primeira empresa contratada assumiu o trabalho social na Maravilha
tendo como sua primeira atividade a remoção das famílias ao Conjunto Planalto
Universo no ano de 2007. Após menos de um ano de execução das atividades,
porém, a empresa desistiu, alegando não possuir sustentabilidade para superar os
atrasos de repasses decorrentes dos trâmites burocráticos entre o Ministério das
Cidades, a Caixa – agente operacionalizador do Programa Habitar Brasil – e a
Prefeitura.
Após a saída da empresa, o trabalho foi sendo desenvolvido de forma
precária pela equipe da própria HABITAFOR, inclusive com a responsabilidade de
34
Termo de Referência para contratação de pessoa jurídica para apoiar a Prefeitura Municipal de
Fortaleza na implantação e execução do Projeto Integrado de Urbanização de Assentamentos
Subnormais na área denominada Comunidade Maravilha, âmbito do Programa Habitar Brasil/BID.
83
transferência das famílias para o Conjunto Nossa Senhora de Fátima, em dezembro
de 2008, até que fosse realizada uma licitação para contratação de uma nova
empresa que só veio assumir no início de 2011.
Portanto, verifica-se uma quebra na execução do trabalho social,
considerando que, mesmo com a equipe social da HABITAFOR assumindo algumas
atividades – como as que demonstro nas figuras 15, 16 e 17 – estas não suprem os
objetivos propostos no PPC.
Ainda assim, algumas atividades prioritárias foram preservadas, a fim de
minimizar os prejuízos decorrentes da ausência da empresa, tais como: visita das
famílias para conhecimento da obra, reuniões para escolha dos apartamentos pelos
moradores e implantação de um local na própria comunidade para atendimento das
famílias pela equipe chamado de POUSO (Posto de Orientação Urbanística e
Social). Como sugere o nome, a equipe “pousava” duas vezes por semana na
comunidade para atendimento das famílias, mas não era um atendimento diário.
Figuras 15, 16 e 17 – Trabalho social na Maravilha. À esquerda, visita das famílias à obra. Ao centro,
atendimento no POUSO. À direita, foto do POUSO na Maravilha.
Após esta explanação acerca do Projeto de Urbanização da Maravilha e
seu entorno, no quarto capítulo partiremos da comunidade Maravilha depois da
mudança das famílias para as novas moradias, para as resignificações com a saída
da favela para o conjunto, bem como as negociações do sonho da casa própria,
onde buscamos apresentar e refletir os argumentos e sentidos atribuídos a esta
prática ou “tática”, segundo os conceitos de Michel de Certeau (1994).
84
4 Quando a favela vira conjunto
4.1 As mudanças decorrentes da casa nova
Estava à toa na vida
E o meu amor me chamou
85
Pra ver a banda passar
Cantando coisas de amor
A minha gente sofrida
Despediu-se da dor
Pra ver a banda passar
Cantando coisas de amor.
A Banda
Chico Buarque
Uma bandinha de música tocando marchinhas animadas de carnaval
anunciava a chegada dos moradores da Maravilha ao Conjunto Residencial Nossa
Senhora de Fátima.
Após aproximadamente 40 anos de existência da favela Maravilha,
considerando que sua formação se deu nas décadas de 1960 e 1970, quando as
famílias residiam em casas de estruturas diversas – alvenaria, taipa, madeira – na
maioria sob condições insalubres causadas, principalmente, pela falta de acesso a
serviços básicos como saneamento e limpeza urbana, as famílias foram transferidas
para apartamentos distribuídos em blocos na forma de conjunto residencial.
A distância que separava a favela do conjunto era apenas o atravessar da
BR 166, porém a vizinhança do entorno do conjunto permaneceu de forma retraída,
sem demonstrar nenhuma reação de alegria, a observar em suas calçadas e portões
o movimento da bandinha. Foi quando resolvemos nos aproximar de alguns deles e
comentar que o motivo da celebração se dava pela chegada dos moradores da
Maravilha às novas moradias. Como resposta, a maioria deles dizia que essa
mudança só iria tirar a paz que existia no bairro.
Essa associação, segundo Kowarick (2009b), é uma marca das
representações que sempre se fizeram acerca da pobreza, que precisava ser
domesticada e moralizada nos seus hábitos, costumes e comportamentos. O autor
acentua a existência de um imaginário social que associa um modo e condição de
vida às camadas pobres “que estaria nas raízes da crescente violência que
impregna o cenário das grandes cidades”. (P.91).
As famílias da Maravilha apenas se transferiram para o outro lado da BR,
porém, anteriormente, residiam em um local escondido e distante do asfalto. Ao
passar pela BR, só conseguíamos visualizar a Maravilha se olhássemos à direita no
86
sentido Aguanambi-Castelão, pois a favela ficava enterrada em relação ao asfalto,
como que localizada num buraco, escondida dos olhares da cidade legal.
Essa discriminação de espaço reflete o sentimento da vizinhança do
entorno do Conjunto Nossa Senhora de Fátima com a proximidade dos vizinhos, que
se
caracteriza
como
“uma
fórmula
de
discriminação
escrachadamente
marginalizadora e certamente de difícil aplicação, pelo menos na atualidade dos
grandes centros urbanos”. (KOWARICK, 2009b, P. 101).
O dia da transferência das famílias era um acontecimento bastante
esperado, tanto para os moradores como para equipe envolvida que era comandada
pela HABITAFOR, com a participação de vários órgãos municipais e estaduais. A
comunidade era então invadida por técnicos de áreas diversas, tais como:
assistentes sociais, sociólogos, geógrafos, advogados, engenheiros, guardas
municipais, operários da construção civil, homens responsáveis pelo carregamento
dos pertences das famílias, motoristas, gestores, jornalistas, acadêmicos, dentre os
curiosos que acompanhavam o movimento atípico no local.
A mudança foi assunto de grande repercussão também na imprensa,
onde foi bastante noticiada a transferência das famílias em vários veículos de
comunicação. À época, auferiu destaque também uma exposição fotográfica sob a
iniciativa do fotógrafo Gustavo Pelizzon, que produziu uma mostra contemplada no
Edital das Artes da Prefeitura Municipal de Fortaleza (ver figura 16), retratando
breves trajetórias de famílias removidas de áreas de risco para novas casas em
conjuntos habitacionais na Capital cearense, a mudança completa de vida pela qual
essas famílias passaram, por meio de um olhar lúdico e poético.
87
Figura 16 – Cartaz de divulgação sobre a exposição “Em Conjunto” realizada na Maravilha.
Fonte: http://accosta.wordpress.com/2009/04/21/gustavo-pellizzon-em-conjunto/
As fotografias foram exibidas em exposição realizada na própria
comunidade, no espaço do Complexo Esportivo Maravilha, e algumas delas foram
ampliadas em tamanhos gigantes (5m X 3m) e colocadas nos blocos de
apartamentos do Conjunto Habitacional Nossa Senhora de Fátima, fato que chamou
a atenção de muitos que passavam pelo local, como demonstram as figuras 17 e 18.
88
Figuras 17 e 18 – Moradores apreciando a exposição “Em Conjunto” no Complexo Esportivo
Maravilha realizada em 25 de abril de 2009.
Fonte: Diário do Nordeste publicado em 04 de maio de 2009 no caderno 3 sob o título “Pequenas
Histórias”.
Ainda como assistente social na HABITAFOR, em dezembro de 2008,
acompanhamos a mudança das famílias para o conjunto Nossa Senhora de Fátima
e relembramos algumas situações específicas que denotam a distância entre os dois
modos de morar: em casas localizadas na favela e dispostas de forma desordenada,
e em apartamentos distribuídos simetricamente em blocos semelhantes.
Lembramo-nos de um morador que possuía um urubu como animal de
estimação, do qual teve que se desfazer por ser inviável sua permanência em
apartamento, haja vista tratar-se de um animal silvestre que se encontrava na fase
adulta.
Havia uma senhora que morava em um barraco pequeno, porém se
apropriou de um grande terreno no meio da favela, no qual ela cultivava vários tipos
de árvores frutíferas, coqueiros e plantas medicinais, que a equipe social passou a
chamar de “Cocó da Maravilha” em apologia à diversidade da vegetação do Parque
Ecológico do Cocó, localizado na zona sul de Fortaleza.
Outra situação que foi motivo de polêmica na remoção, e ainda no
cadastramento, era um ponto comercial que havia na favela, onde funcionava um
89
bar dançante que era chamado de “forró da separação”. O nome foi atribuído pelos
moradores pelo fato de causar brigas e até separações entre os casais.
Além disso, havia situações adversas, como os moradores que pelo
tempo de residência na favela, já possuíam imóveis bem estruturados com garagens
e varandas, itens que jamais encontrariam na nova moradia; em contraste àqueles
que viviam em situações deveras precárias e que a nova moradia representaria uma
melhoria significativa na qualidade de vida dessas pessoas.
Portanto, o dia da remoção foi marcado por sentimentos diversos que
variavam de acordo com a situação antes vivida na favela. Enquanto um morador
relata de imediato a representação da mudança de forma positiva (ao afirmar que
significou um alívio grande por estar saindo daquele local cheio de ratos e buracos,
onde não tinha endereço fixo, não tinha saneamento básico, e devido a isso possuía
“muriçoca no metro”, relembrando com humor os tempos de sofrimento vividos na
favela) alguns moradores rememoram situações difíceis, conforme os relatos
seguintes:
O dia da mudança foi um sufoco porque eu tava nessa fase que eu tô agora
dessa virose. Eu tenho começo de diabetes e nervoso. Já tinham matado
um filho meu quando eu morava lá. Aí eu tava muito nervosa. No dia da
mudança elas [assistentes sociais] mandaram eu arrumar as coisas e que
vinham me buscar cedo. E nós arrumemos essas coisas e quando deu três
horas da tarde aí a moças chegaram e disse que já tava encerrado. Aí
minha menina “botou maior boneco”, porque “a mãe tá desse jeito e já
tinham destelhado boa parte da casa”. E nós viemos. Do mesmo jeito que
elas prometeram elas nos trouxeram. Quando eu cheguei que abri a porta
da casa eu num acreditei que era a minha, como ainda hoje eu ainda digo:
meu Deus como tu és tão bom me tirar dum canto daquele e me botar num
canto desse. (ENTREVISTA nº 01 29/04/2011)
Eu vinha chorando [risos], não queria vir não, tinha medo daqui. Porque é
costume, né? Porque mais de 40 anos morando num local a gente se
acostuma. O ser humano se acostuma com tudo. Eu queria ficar na
Maravilha, (...) quando eu cheguei o que eu pensava não era como eu
pensei. Até os meus “bregueços” parece que já tinha um cantinho certinho
na casa pra colocar. (ENTREVISTA nº 02, 29/04/2011)
Eu me lembro que eu não queria sair logo no dia porque meu marido tinha
ido trabalhar, eu falei com a moça pra ela falar com um grandão lá e ela
disse que não podia. Nós chegamos aqui “aperriado”. Mas quando olhamos
o apartamento... Os meus meninos gostaram também. (ENTREVISTA nº 03,
29/04/2011)
90
Foi uma “esculhambação” medonha [risos]. O marido bêbado, ai meu Deus
do céu! Começou logo a beber porque toda animação por qualquer coisa
pra ele, a cachaça tava na frente. E eu achando ruim... Aí eu sei que o povo
dizia assim: Olha, ajeita as coisas que a qualquer hora o carro chega. Eu sei
que parou pertinho de mim quatro horas da tarde. Aí tudo arrumado, panela,
com as coisas, com tudo. (...) Mulher, foi um “saco de gato” medonho, ave
Maria! (ENTREVISTA nº 07, 17/11/2011).
Muito nos marcou uma conversa que tivemos com uma moradora a
respeito do dia da remoção em que ela relatou emocionada que a transferência das
famílias ocorreu no final do ano, período em que ela mais trabalhava, pelo fato de
ser cabeleireira. Precisou, no entanto, passar quatro meses sem receber sua
clientela por conta da mudança, pois teve que fazer algumas adaptações no ponto
comercial que recebera. Portanto, além de ficar sem receber dinheiro, precisou
investir para assegurar um mínimo de conforto para suprir a perda do espaço com a
mudança.
O fato de o Poder Público se responsabilizar pela realização de toda a
remoção implica uma ação coletiva que impossibilita pensar e tratar os casos de
forma individualizada. O que para muitos poderia parecer um grande e esperado
acontecimento, para outros se tornou um dia bastante difícil e conflituoso, conforme
declararam alguns moradores.
De acordo com Bourdieu (1996), o Estado concentra a informação,
analisa e redistribui, realizando uma “unificação teórica” em que se situa do ponto de
vista do todo, da sociedade em seu conjunto, numa operação de totalização. Assim,
o Estado exerce um poder criador quase divino e “dispõe de meios de impor e de
inculcar princípios duráveis de visão e de divisão de acordo com suas próprias
estruturas, é o lugar por excelência da concentração e do exercício do poder
simbólico”. (P.107-108).
O trabalho social como componente do Projeto de Urbanização da
Maravilha e seu entorno tem como perspectiva a participação comunitária. Essa
participação, no entanto, muitas vezes se dá até o momento em que não venha a
atrapalhar o que já está instituído pelo Estado. A maioria dos técnicos sobrepõe a
adesão ao projeto à participação popular e até admitem algumas opiniões dos
moradores, porém sob controle, contanto que não interfira na execução das etapas
do projeto.
91
(...) eu acho que tem algum medo sabe? Medo de eu denunciar alguma
coisa, medo de eu começar a questionar muita coisa, medo de eu chamar a
imprensa, mas só que eles não entendem que eu realmente queria trabalhar
em parceria. Por que eu também entendo que se eu bater com eles de
frente, o que é que vai acontecer: o maior prejudicado vai ser a comunidade,
e isso eu não quero. (...) se eu fosse o presidente [da associação de
moradores] na época, eu não teria permitido que o HABITAFOR tivesse feito
qualquer intervenção dentro da comunidade sem antes sentar com todos os
moradores e acordar. Algo assim como por exemplo, as casas rebocadas,
né? Por que as casas que a gente recebeu são todas sem reboco e sem
piso e aí eu acho que isso não deveria ter acontecido …. e dinheiro pra isso
tinha. Também nos prometeram uma varanda, uma área de serviço e isso
não foi colocado. Aí o que é que acontece: muitos moradores estendem as
roupas na janela aí as pessoas que passam não sabem da nossa realidade
e até criticam dizem: Ó, ainda continua favela porque ficam estendendo
roupa, peça de roupa na janela. Mas não sabem o porquê. (ENTREVISTA
nº 06, 13/10/2011)
Os conjuntos residenciais destinados às famílias da Maravilha foram
construídos sem muros a fim de descaracterizar o sistema condominial. Por não
possuir muros, as ruas internas são iluminadas pelo Poder Público a fim de evitar
custos com energia aos moradores. Nas portas de cada apartamento há um bico de
luz para iluminar o hall, não havendo consumo de luz coletiva que possa ser rateada
entre os moradores.
Algumas contas de consumo individual, contudo, passaram a fazer parte
do orçamento de algumas famílias que na favela não possuíam obrigações com
gastos de água, esgoto e luz, pois utilizavam-se dos serviços sob as formas de
gambiarra ou gato, como comumente são chamadas as ligações clandestinas.
Segundo informações do PPC, em 2003, quando fora realizado o cadastramento das
famílias, 33% destas declararam não utilizar os serviços da COELCE (Companhia
de Eletricidade do Ceará) e 90% não possuíam ligação de água da CAGECE
(Companhia de Água e Esgoto do Ceará).
Consoante as entrevistas realizadas com os moradores da Maravilha, a
mudança mais concreta diz respeito ao novo tipo de moradia, que passou a ser
apartamento.
Na favela, costumava-se resolver as situações de ampliação da
família no próprio local, ou seja, quando um filho formava uma nova família e não
tinha onde morar, fazia-se um “puxadinho” no quintal, em cima ou ao lado da casa,
dependendo da disponibilidade do espaço. E, assim, a comunidade ia se ampliando.
92
No apartamento a situação se diferencia, pois esses rearranjos se tornam mais
difíceis de resolver.
Notamos, contudo, que alguns espaços públicos no conjunto já estão
sendo ocupados por alguns moradores que, numa tentativa de ampliar o espaço
privado, se apropriam das áreas destinadas ao uso coletivo. Destacamos os jardins,
que apesar de darem uma visualização bonita ao conjunto, quando é construído por
determinado morador, ele é cercado e nomeado com nome do seu criador como o
“Jardim da Maria”, por exemplo. Sobre a apropriação dos espaços públicos, relata
Kowarick (2009b):
(...) alguns se apropriam do espaço público e o colonizam através de
justificativas que substituem regras de caráter universal pelo arbítrio
pessoal, em um movimento de autodefesa que, ao preservar interesses
privatistas, descarta o reconhecimento do outro e, portanto, solapa os
direitos coletivos. (P. 89).
Os espaços ao redor dos blocos são os que mais são reutilizados de
forma privada. Observamos nos dois conjuntos a transformação em garagens e
ampliações de pontos comerciais, como é o caso de um bar no Conjunto Maravilha
onde o dono fez “puxadinho” com telhas e colocou uma sinuca para seus clientes. A
atividade poderia ser indicada como forma de lazer para todos os moradores, porém
tem caráter privado porque o uso é pago e controlado pelo dono do bar.
Outro caso semelhante é um salão de corte de cabelo masculino que foi
improvisado com telhas ao redor da caixa d’água do Conjunto Nossa Senhora de
Fátima. O criador do espaço declarou que não incomoda ninguém com o espaço
criado, pelo contrário, diz que o qualifica à medida que o decora com plantas e nele
também construiu um aquário, conforme figura 19. Quando pedimos para conhecer
melhor o espaço, ele revelou que apenas um senhor de idade que mora em frente
ao espaço se diz incomodado, porém ele já havia acertado com a filha dele para
convencê-lo do contrário.
93
Figuras 19 – Apropriação do espaço público. Conjunto Nossa Senhora de Fátima.
Fonte: Arquivo Pessoal da Autora.
O mesmo morador que improvisou o ponto comercial na caixa d’água fez
de um dos quartos do apartamento um ponto comercial com abertura de porta larga
e alpendre onde funciona uma oficina de bicicletas (ver figura 20). Em entrevista
realizada com ele, afirma que fez essa transformação para ajudar a um irmão.
Declarou ainda que em troca o irmão apenas o ajudava nas contas de energia
elétrica.
94
Figura 20 – Rearranjos na moradia. Ponto comercial construído pelo próprio morador.
Fonte: Arquivo Pessoal da Autora.
Após três anos do toque da bandinha no bairro, anunciando a remoção do povo
da Maravilha ao Conjunto Nossa Senhora de Fátima, os moradores relatam que, apesar da
resistência e do preconceito instalado, algumas relações foram estabelecidas entre os
vizinhos e os moradores do conjunto.
Os residentes no entorno frequentam alguns pontos comerciais no
conjunto, com exceção daqueles localizados nas áreas mais internas, além de
utilizarem os serviços oferecidos por algumas pessoas – empregadas domésticas,
faxineiras, eletricistas. Vale salientar, contudo, que a chegada dos moradores da
Maravilha também dinamizou a economia do bairro ao ampliar o movimento de
alguns pontos comerciais externos ao conjunto.
Só vendo para o povo daqui de dentro do conjunto, os de fora não vêm não
porque tem medo. O lugar aqui ainda é considerado uma favela. Se tiver
alguma coisa ali fora, esse pessoal da vizinhança aí tudo diz: “foi daí da
favela!”. A polícia pegou um rapaz ali que é da favela eles só querem dizer
que era gente daqui. Eles não gostaram de ter colocado a gente aqui, né?
95
Mas já na padaria ele (o dono) fala que era parado o movimento, mas
depois que a gente chegou aqui ele vê movimento. Pros comércios ao redor
aqui foi melhor porque as pessoas vendem mais, vem mais gente.
(ENTREVISTA nº 02, 29/04/2011).
Em contato com um dos donos do ponto comercial, ele acentuou que
vendia para muita gente, dentro e fora da Maravilha: “Esse povo do conjunto aí do
lado tudo são meus fregueses. Pra mim foi boa a mudança.” Relatou ainda que já
tinha interesse em ampliar o ponto porque estava ficando pequeno para o seu
negócio que era frigorífico. Precisava comprar mais um freezer para armazenar o
material.
Desta forma, as famílias vão sobrevivendo às novas configurações postas
com a nova moradia. Percebemos que essas alterações são “táticas” utilizadas para
suprir as necessidades decorrentes da aquisição da nova moradia.
A seguir, buscaremos compreender as “estratégias” utilizadas pela
Prefeitura e de que forma os moradores, por meio de suas “táticas”, ressignificam
suas moradias, tendo como ponto de partida uma campanha de propagação
promovida pela Prefeitura de Fortaleza sob o título: “Não troco minha casa por
nada”.
4.2 “Não troco minha casa por nada”
Poder dormir
Poder morar
Poder sair
Poder chegar
Poder viver
Bem devagar
E depois de partir poder voltar
E dizer: este aqui é o meu lugar
E poder assistir ao entardecer
E saber que vai ver o sol raiar
E ter amor e dar amor
E receber amor até não poder mais
E sem querer nenhum poder
Poder viver feliz pra se morrer em paz
A terra prometida
Vinícius de Moraes
96
O solo urbano é um espaço altamente disputado por inúmeros usos de
acordo com as regras do jogo capitalista, fundamentado na propriedade privada do
solo. O capital enseja lucro à medida que surge do processo social de produção. O
capital imobiliário, entretanto, não entra nesse processo, pois o espaço é apenas
uma condição necessária à realização de qualquer atividade, inclusive da produção,
porém não constitui, em si, meio de produção (SINGER, 1982).
A respeito do capital imobiliário, Singer (1982) o define como um falso
capital, que se valoriza pela monopolização do acesso, sem ser uma atividade
produtiva. O autor refere ainda que as benfeitorias do imóvel contribuem, mas não
são determinantes para alterações no valor, haja vista haver lugares que
apresentam as mesmas benfeitorias, porém possuem valores diferenciados, de
acordo com sua localização.
Para fins de habitação, a demanda por solo urbano depende também do
fator localização no que se refere aos serviços urbanos no entorno e pelo prestígio
social da vizinhança. Neste último caso, há uma tendência dos grupos mais ricos em
caminhar para áreas mais distantes do centro das cidades, formando áreas que se
destacam pelos grandes condomínios fechados.
O centro principal possui em alto grau todos os serviços urbanos e ao seu
redor se localizam as zonas residenciais da população mais rica. Os
serviços urbanos se irradiam do centro à periferia, tornando-se cada vez
mais escassos à medida que a distância do centro aumenta. (...) Na medida
em que a cidade vai crescendo, centros secundários de serviços vão
surgindo em bairros, que formam novos focos de valorização do espaço
urbano. (SINGER, 1982, P.29).
Kowarick (2009b) também comunga da ideia de que a questão
habitacional não pode ser reduzida apenas à qualidade da moradia, que constitui
aspecto importante, mas não único, pois implica também a localização e os serviços
existentes no bairro. A distância em relação ao emprego, por exemplo, haja vista as
horas dispensadas na locomoção, pode significar grande desgaste econômico, físico
e mental.
O Estado como provedor de grande parte dos serviços urbanos torna-se o
determinante das demandas pelo uso de cada área específica do solo urbano, pois à
medida que implanta determinados serviços urbanos, amplia a valorização do
espaço anteriormente desvalorizado, aumentando, portanto, o valor de uso do solo.
97
A disponibilidade do novo serviço atrai famílias de renda mais elevada e que se
dispõem a pagar um preço maior pelo uso do solo, o que não acontece com os
moradores mais antigos que possuem renda mais baixa.
A elevação do preço dos imóveis resultante pode deslocar os moradores
mais antigos e pobres, que vendem suas casas, quando proprietários, ou
simplesmente saem quando inquilinos, de modo que o novo serviço vai
servir aos novos moradores e não aos que supostamente deveria beneficiar.
(SINGER, 1982, P.34).
A especulação imobiliária ocorre aí, pois o mercado se apropria a preço
baixo de áreas completamente desvalorizadas e desprovidas de serviços públicos e
influencia o Estado a implantar os serviços urbanos necessários, alterando o valor
da terra pelo valor de uso do solo. “O espaço urbano é objeto de disputa social e os
valores incorporados ao solo refletem esse conflito e a primazia dos grupos
dominantes”. (GASPAR, 2009, P. 56).
Parte da população acaba morando em lugares em que, por alguma
razão, os direitos da propriedade privada não vigoram e os serviços públicos são
precários ou inexistentes, enquanto o mercado imobiliário retém áreas ociosas em
espaços urbanizados, caracterizando verdadeiras contradições urbanas.
Nos espaços alternativos à moradia pela população pobre, como nas
favelas, por exemplo, também se verifica um mercado informal de comercialização
das unidades habitacionais, mediante venda ou aluguel. A comercialização acontece
seja no imóvel construído ou em um lote vazio que durante uma invasão ou
ocupação foi reservado para posterior investimento sobre ele.
Em estudo sobre o mercado informal em favelas, Pasternak (2008) relata
que
Embora o valor de uso tenha predominado na apropriação da terra invadida,
tanto lotes quanto casas são também mercadorias. Há estruturas formais de
comercialização de unidades habitacionais, sobretudo nas favelas maiores.
(...) O mercado de terra e de casas na favela, embora específico, possui
agentes que se assemelham àqueles do mercado formal. (P.99).
Considerando a nossa experiência como técnica na área de habitação,
especialmente na HABITAFOR nos anos de 2006 a 2009, observamos que após a
definição de uma área para o cadastramento, principalmente quando se tratava de
98
ocupações mais recentes, iniciava-se intensa mobilidade e comércio dos imóveis
cadastrados, ou até mesmo uma subdivisão de lotes com possibilidade de novas
famílias serem contempladas.
Em
HABITAFOR,
contato
fomos
com
a coordenação
informada
de
que
de
regularização
aproximadamente
fundiária
4.000
da
unidades
habitacionais foram entregues pelo Poder Público e destas, existem cerca de 120
processos de retomadas via judicial. A Prefeitura considera um índice pequeno em
relação ao total de imóveis distribuídos, porém vale ressaltar que estes quantitativos
são apenas os oficiais, ou seja, existem vendas realizadas e que ainda não foram
desvendadas pela Prefeitura por uma série de fatores que variam desde a
deficiência de pessoal até as “táticas” utilizadas pelas famílias para driblar as
“estratégias” utilizadas pelo Poder Público, das quais intensificaremos a discussão
mais adiante ainda neste capítulo.
Notamos que a Prefeitura de Fortaleza desenvolveu uma série de
“estratégias” para combater a inadequada utilização do imóvel, principalmente no
que se refere à sua comercialização.
Michel de Certeau (1994) define “estratégia” como:
O cálculo (ou a manipulação) das relações de forças que se torna possível a
partir do momento em que um sujeito de querer e poder (uma empresa, um
exército, uma cidade, uma instituição científica) pode ser isolado. A
estratégia postula um lugar suscetível de ser circunscrito como algo próprio
e ser a base de onde se podem gerir as relações com uma exterioridade de
alvos ou ameaças (os clientes ou os concorrentes, os inimigos, o campo em
torno da cidade, os objetivos e objetos da pesquisa, etc) (P. 99).
Com efeito, o autor refere que as “estratégias” são como combinações
sutis que navegam entre as regras e jogam com todas as possibilidades de acordo
com as situações encontradas, usam esta de preferência àquela, compensam uma
pela outra, “aproveitando o macio que esconde o duro, vão criando nesta rede as
suas próprias pertinências”. (DE CERTEAU, 1994, p.122).
A respeito do mercado informal, Valladares (1980) relata que este possui
suas normas e preços particulares:
Desenvolvem-se operações de venda, transações comerciais, confirmadas
por documentos que, sem valor jurídico fora da favela, têm autoridade em
99
seu interior. Tanto a água quanto a eletricidade são frequentemente
tomadas ‘por empréstimo’ às regiões vizinhas, por condutos ou fios
instalados furtivamente. Mesmo a água dos reservatórios públicos
instalados na própria favela é cobiçada. (P. 120).
O mercado imobiliário na favela Maravilha também foi palco da
supervalorização dos preços dos imóveis, disputados não só por moradores de
favelas que desejavam ter acesso à casa própria, bem como por parentes dos
próprios moradores. Sabendo da possibilidade de urbanização da favela, alguns
moradores antigos também ergueram e repartiram barracos para venda ou aluguel
aos recém-chegados.
Analisando um relatório oriundo de uma reatualização cadastral35 feita
pelo setor social na favela Maravilha, observamos a presença de imóveis nesta
situação, de acordo com algumas observações dos técnicos:
“A atual moradora comprou a casa há dois anos da Sra. F. R.”;
“Imóvel sem cadastro.”;
“Possui uma coabitação (sem cadastro).”;
‘’Atual morador: F. C. A. / Aluga a parte superior da casa há 06 meses.” ;
“PONTO COMERCIAL NOVO – Venda de bombons e ‘xilitos’.”;
“Ver informações no cadastro sobre possível venda ou concessão do
imóvel.”;
“M. R. vendeu para o Sr. L. e o mesmo alugou para a Sra. R.C.P. e D.F.O.”;
“A Sra. M. ligou no dia 08.01.2009 para solicitar a retirada do nome do Sr.
R. de seu cadastro, pois segundo a mesma informou não encontrar-se mais
casada com o mesmo.”;
“A casa era alugada na época do cadastro. Morador atual: J.A.C.”;
“Na verificação realizada em 30/05/07 verificou-se uma outra família
residindo no pavimento superior da casa.”;
“Segundo informações da Sra. N., os PMF’s 118 e 118ª foram vendidos
para a Sra. G. que, aluga o imóvel para 4 famílias (2 no térreo e 2 no 1°
andar).”;
“O imóvel está alugado para a Sra. A.C.M. e A.S.S. há 03 meses.”;
“Atual moradora: V.L.C.R., trocou a casa com o Sr. J.B.”;
“O imóvel de PMF 181 foi vendido para a Sra. D. já cadastrada no PMF
182.”;
“A Sra. M.A.C. faleceu e o Sr. V.P.S. encontra-se morando sozinho no PMF,
segundo informações da líder comunitária.” (PREFEITURA MUNICIPAL DE
FORTALEZA, 2009).
Destacamos algumas dessas observações para exemplificar a mobilidade
existente no interior da Maravilha. Casos de vendas, aluguéis, novos imóveis sem
cadastro, novos pontos comerciais, separações e até falecimentos são exemplos de
35
Listagem completa por PMF. Comunidade Maravilha – Setor II. Atualizada em 31/08/2009. A
reprodução do texto foi alterada na identificação dos nomes envolvidos. A fim de preservar a
identidade deles utilizamos apenas as iniciais.
100
situações que implicam a movimentação existente na favela, afora aquelas não
veladas, apenas reveladas no ato da transferência das famílias para as novas
moradias.
Essas transformações vão de encontro à estratégia de “congelamento”
das famílias, conforme o termo utilizado pela equipe social da Prefeitura ao pintar os
barracos, numerando-os e cadastrando as famílias para inclusão no programa.
A partir do momento em que a Prefeitura atua em determinado local e que
os moradores reconhecem a possibilidade de urbanização da área, o imóvel ali
localizado passa a adquirir um valor de troca superior ao valor de uso.
Verifica-se uma ampliação no mercado imobiliário interno, pois ao preço
da moradia – mesmo sendo um pedaço de quintal ou um simples barraco – são
agregados à futura valorização do imóvel, as benfeitorias, os serviços de
infraestrutura, como água, esgoto, ruas pavimentadas, energia elétrica e coleta de
resíduos sólidos, além da localização privilegiada do conjunto habitacional que
permaneceu nas proximidades da comunidade que fica em bairro valorizado pelo
mercado de imóveis.
Durante a ação do cadastramento, as famílias recebiam um cartão de
identificação que constituía a prova de que determinada família havia sido
cadastrada. Este cartão era o “passe da casa” ainda na favela, pois, no caso de
venda, ele era repassado pela família vendedora à nova família a fim de que esta
apresentasse à HABITAFOR e comprovasse a mudança de “proprietário”.
Mesmo não garantindo que a primeira família cadastrada fosse a
beneficiária final, com a distribuição do cartão de identificação, a Prefeitura utiliza
uma estratégia para o controle das famílias cadastradas, pois adota o discurso oficial
de que somente as famílias com o respectivo cartão serão contempladas,
minimizando problemas no ato da remoção.
Outra estratégia da Prefeitura é a inclusão da família no cadastro único de
beneficiários por moradia. Trata-se de um banco de dados contendo as famílias que
já foram beneficiadas pelo Poder Público, seja municipal ou estadual, a fim de evitar
que haja duplo recebimento do benefício. Os nomes dos chefes de família que são
cadastrados em certa área são checados nesse banco de dados antes de serem
contemplados em determinado programa habitacional.
101
No dia da entrega do imóvel, a família recebe um documento chamado de
Termo de Permissão, com validade de um ano, até que seja expedido o Termo de
Concessão de Direito Real de Uso. Durante o primeiro ano em que a família possui
o Termo de Permissão, a Prefeitura realiza várias visitas aos conjuntos,
principalmente pelo setor social e de regularização fundiária, conforme relata uma
advogada do setor de regularização fundiária da HABITAFOR:
(...) essas fiscalizações passam a acontecer para ver se realmente essas
pessoas estão cumprindo com a função da moradia, e caso a gente
constate alguma alteração o [setor] social abre um processo administrativo.
Caso esteja com alguma alteração nos passam para que a gente possa
tomar as providências cabíveis. Primeiro passo que a gente dá é notificar, a
gente notifica para que as pessoas compareçam e se justifiquem.
No intuito de verificar alguma situação irregular com determinado imóvel,
seja se este estiver desocupado, alugado ou ocupado por outra pessoa que não a
beneficiária, a Prefeitura utiliza várias “estratégias” para essa identificação a fim de
constatar a real situação do imóvel.
[...] às vezes o imóvel está fechado, então [a equipe social] volta mais duas
ou três vezes em horários diferentes, até a noite, inclusive tem visitas à
noite também, para gente ver se realmente aquela pessoa, o imóvel está
abandonado ou não. Vamos supor que a pessoa não esteja lá no momento,
então a gente faz as duas coisas, tanto deixa com o vizinho, quanto põe
debaixo da porta. Porque que não deixa só com o vizinho para o vizinho
depois entregar? Porque às vezes tem muitas brigas entre eles. Muitos
deles não entregam para prejudicar ou entregam já dizendo outras histórias,
enfim... Para não gerar muita confusão a gente tem esse procedimento;
bota debaixo da porta ou entrega ao vizinho também e ele assina como
testemunha de que recebeu essa notificação. E a pessoa recebendo é a
mesma coisa também. Transcorreu o prazo aqui, geralmente a gente dá
cinco dias [para comparecimento à HABITAFOR], se for o caso de imóvel
fechado, e quinze dias se realmente for uma questão de uma pessoa ser
outra que está morando no imóvel, por exemplo. (...) a gente encaminha
para publicação no diário oficial do município, porque se a gente
simplesmente entregasse a gente não teria como provar que foi feita essa
notificação, então a gente publica para dar publicidade do ato administrativo
e eles virem aqui e justificarem. (ADVOGADA DA HABITAFOR).
Percebemos que há um discurso oficial muito distante da realidade das
famílias, pois o registro no Diário Oficial do Município, apesar de ser uma forma de
publicidade do ato administrativo, como anota a informante, é quase que inacessível
para a maioria das famílias, constando somente como informação oficial, porém não
atingível a todos, principalmente aos mais interessados.
102
Figura 21 – Placa instalada nos blocos do Conjunto Nossa Senhora de Fátima.
Fonte: Arquivo Pessoal da Autora
Outras formas são utilizadas pelo Poder Público, como “estratégias” para
impedir a comercialização dos imóveis mediante a divulgação de que a venda não é
permitida nestes conjuntos de habitação de interesse social. Para ir de encontro à
“tática” utilizada pelas famílias compradoras de que não tinham conhecimento de
que a venda seria ilegal, a partir do Conjunto Nossa Senhora de Fátima, a Prefeitura
passou a implantar placas identificando o caráter público dos empreendimentos,
conforme é apontado na figura 21.
No caso de identificação de ocupação do imóvel por terceiros, a primeira
tentativa de retomada pelo Poder Público se dá de forma administrativa com base
em uma negociação na qual o Poder Público estimula o ocupante a devolver o
imóvel de forma “espontânea”, com o acordo de que este será incluído numa lista de
espera para recebimento de outra unidade habitacional. Caso não haja a devolução,
é iniciada a retomada judicial, conforme relata a coordenadora de regularização
fundiária da HABITAFOR:
(...) nós notificamos, se a pessoa não quer, há um procedimento, trinta dias,
se a pessoa não sai, não devolve, nós entramos com ação judicial. Aí a
ação judicial, oficial de justiça, despejo normal, como qualquer outra
reintegração de posse. Quando o oficial de justiça às vezes chega lá, é que
eles vão entender o que realmente aconteceu. Aí eles vêm querendo
103
desfazer, aí não há mais como desfazer, porque aí é com o juiz, e nós não
temos mais nem gerência sobre o assunto.
E essa pessoa que compra? Será ela injustiçada, especuladora ou
inocente? Muitas vezes são famílias que juntaram suas economias com muito
esforço e encontraram nos conjuntos habitacionais a oportunidade de realizar o
sonho da casa própria e resolverem os problemas decorrentes do aluguel. Há,
também, no entanto, os que compram para se utilizarem destes imóveis como fonte
de renda extra, tais como aluguel e especulação imobiliária. Lembramos de um caso
na Justiça em determinado conjunto habitacional, no qual o pai comprou o
apartamento para presentear a filha jovem, solteira, sem filhos, apenas pelo fato
dela ter sido aprovada no exame vestibular.
Parece haver uma descredibilidade em relação à ação do Poder Público,
haja vista uma situação já instalada em vários conjuntos habitacionais de interesse
social em que as vendas, aluguéis, transformações indevidas na estrutura do imóvel,
invasões de espaços coletivos para uso privado são práticas recorrentes e invisíveis
ao Estado.
A gente entrega uma unidade habitacional, as pessoas já vão dizendo
assim: “e eu vou é vender, não sei o quê”, já vão com a ideia de vender.
Então essa coisa de que o poder público não vai fazer nada que a gente é
bombardeado diariamente, que o Estado é corrupto, que o poder público
não faz nada, que só quer roubar e "tá-tá-tá". Então faz de qualquer jeito
que o servidor público não vai na área mesmo: é essa ideia que as pessoas
já vão pras unidades com esse pensamento. (COORDENADORA DA
REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA DA HABITAFOR).
Um caso emblemático de vendas ocorreu no Conjunto Maria Tomásia, o
maior de Fortaleza, construído no Sítio São João, com 1.126 casas que foram
entregues em 2009 às famílias que residiam anteriormente nas comunidades Vila
Cazumba e Lagoa da Zeza, localizadas nos bairros Cidade dos Funcionários e
Jardim das Oliveiras. Segundo informações de técnicos da HABITAFOR, o Maria
Tomásia é considerado um dos conjuntos com maiores casos de vendas e até
abandono das casas. Em agosto de 2011, quando estivemos em contato com alguns
técnicos na HABITAFOR coletando informações para a pesquisa, o número oficial
de retomadas judiciais era de 56 reintegrações de posse.
104
Este quantitativo, no entanto, não caracteriza a verdadeira situação de
vendas no referido conjunto, haja vista que ainda não há uma equipe específica
desenvolvendo o trabalho social no local, portanto, não há como a HABITAFOR dar
conta do número real de trocas, aluguéis, vendas ou abandono de casas.
Em matéria recente no jornal O Povo de 18/01/2012, sob o título
“Conjunto Habitacional. Tráfico e falta de estrutura expulsam famílias”, é apontada a
situação de desconforto dos moradores ocasionado pela violência decorrente do
tráfico e por problemas na infraestrutura do conjunto Maria Tomásia que levam os
moradores a vender e até abandonar suas casas. Com tal problema, a Prefeitura se
posiciona da seguinte forma:
[...] as unidades habitacionais são concessões, passam por gerações, mas
não podem ser vendidas ou abandonadas. Caso isso aconteça, a família
não pode mais ser beneficiada pelos programas habitacionais da prefeitura.
(...) A Habitafor indicou que há uma regra básica para lidar com possíveis
situações-problema nos conjuntos: devolver a unidade habitacional para a
Fundação, podendo, assim, continuar no cadastro do benefício. Dessa
forma há como encaixar a família em outro conjunto e aquela unidade será
liberada para os que compõem uma fila de espera por moradia”. (DOS
ANJOS, 18 jan.2012).
A venda é proibida pelo Poder Público porque o título expedido para as
famílias é a Concessão de Direito Real de Uso (CDRU) ao possibilitar que o
proprietário conceda o domínio útil de seu imóvel a um terceiro interessado, por
prazo determinado ou indeterminado, da forma estipulada no contrato, sendo este
gratuito ou oneroso.
Quando utilizada para fins de habitação de interesse social, os contratos
de CDRU terão caráter de escritura pública e constituirão título de aceitação
obrigatória para financiamentos habitacionais, desde que registrados no cartório de
registro de imóveis competentes. Quando o cedente for o Município, deve ser
consultada a legislação municipal para respaldar e formalizar a outorga.
O único instrumento que nós usamos para terras do município é a
Concessão de Direito Real de Uso, foi uma lei que a prefeita fez em 2007: a
lei 9.294. Ela [a Lei] instituiu, quer dizer, ela resgatou o instrumento de
Concessão de Direito Real de Uso, ampliando para uma visão mais
moderna que a CUEM, que é a Concessão de Uso Especial para Fins de
Moradia. Mas aqui no município, a Procuradoria Geral do Município não
aceita [a CUEM]. Ela a identifica como inconstitucional. Então, essa lei
9.294 tentou ampliar o horizonte da Concessão de Direito Real de Uso, que
105
era muito engessada, para algo mais flexível, mais dentro dos padrões do
município. (Coordenadora de Regularização Fundiária da HABITAFOR).
A Lei nº 9.294 foi publicada no Diário Oficial do Município do dia
05/11/2007 e autoriza o chefe do Poder Executivo Municipal a outorgar Concessão
de Direito Real de Uso de Imóveis Públicos, construídos ou adquiridos no âmbito da
Política Habitacional de Interesse Social de Fortaleza.
Art. 1º - Fica autorizado o chefe do Poder Executivo a conceder aos
beneficiários de imóveis residenciais ou não, construídos ou adquiridos pela
Prefeitura Municipal de Fortaleza, o Direito Real de Uso de bem público
municipal, a título gratuito ou oneroso, por meio de termo administrativo
próprio, nos moldes desta lei. § 1º - Cada beneficiário receberá uma única
vez o benefício concedido nesta lei, exceto nos casos expressamente
permitidos pela concedente, mediante prévia autorização da Câmara
Municipal. § 2º - Não serão beneficiadas: I - pessoas já contempladas com
moradias em programas habitacionais executados pelo Governo do Estado
do Ceará; II - detentores de imóveis obtidos através de programas de
financiamento ativo do Sistema Financeiro de Habilitação (SFH), em
qualquer parte do país; III - proprietários de imóvel residencial urbano ou
rural. (PREFEITURA MUNICIPAL DE FORTALEZA, 2007b).
A referida lei trata também sobre as questões referentes a venda, aluguel,
abandono ou quaisquer outros fins do imóvel que não os determinados pelo Poder
Público no ato da entrega do imóvel.
Art. 9º - Resolver-se-á a Concessão de Direito Real de Uso quando ocorrer
1 (uma) das hipóteses seguintes: I - abandono do imóvel por mais de 90
(noventa) dias, ocorrido após efetiva ocupação do concessionário; II - nos
casos de desvio de finalidade do imóvel identificado no termo de concessão,
sem anuência expressa da concedente; III - nos casos de venda, promessa
de venda, doação, arrendamento, locação e cessão, a qualquer título, sem
anuência expressa da concedente; IV - quando, em tempo obrigatoriamente
fixado no termo, o concessionário não houver dado à área a destinação
prevista; V - quando ocorrer descumprimento de cláusula prevista no Termo
Administrativo de Concessão; VI - inadimplência, que terá o prazo de 120
(cento e vinte) dias da contraprestação pecuniária, nos casos em que a
concessão for onerosa. (PREFEITURA MUNICIPAL DE FORTALEZA,
2007b).
Em relação ao abandono do imóvel, a lei defende a ideia de que,
mediante procedimento administrativo, a Prefeitura poderá retomar a posse direta do
imóvel abandonado, notificando o concessionário, inclusive por edital, e abrindo
prazo não inferior a dez dias para apresentação de defesa, a contar do momento da
efetiva notificação ou publicação. Caso o notificado não compareça à defesa, a
106
Prefeitura notificará e abrirá um prazo a partir de 15 dias para que o beneficiário do
imóvel ou ocupante se apresente.
Em relação aos critérios para atendimento gratuito quanto à Concessão
de Direito Real de Uso, a lei determina que a família concessionária tenha renda
familiar inferior a três salários mínimos mensais; não seja proprietária de outro
imóvel urbano ou rural; não tenha sido privilegiado por outro programa habitacional
promovido pelo Poder Público; e faça uso do imóvel para sua própria moradia e de
sua família. A CDRU “transfere-se por ato inter vivos, por sucessão legítima ou
testamentária”,
devendo,
portanto,
passar
de
pai
para
filhos
e
assim
sucessivamente.
A lei é uma estratégia da Prefeitura para garantir a função da moradia e,
principalmente, para impedir os casos de venda e especulação imobiliária.
Observamos, no entanto, que há uma ausência na lei em relação aos casos em que
a família necessita abandonar o imóvel por problemas graves, tais como ameaça de
morte, problemas de saúde, dentre outros. Pelo fato de reconhecerem a existência
de determinadas situações deste tipo, os técnicos referem-se à posição da
Prefeitura em determinados casos.
(...) se o Edson [bolsista de apoio técnico, presente à entrevista] devolver a
unidade habitacional, por exemplo, digamos que o Edson tenha sido
ameaçado, Deus o Livre! Ameaçado por tráfico, é o mais comum infelizmente, e ele tem que sair, e ele devolve a casa e ele volta pra fila de
espera de uma unidade. Mas digamos que ele vá para o interior, tudo bem,
não entra no sistema. Mas digamos, que o Edson ao invés de vir à
HABITAFOR e devolver a casa... Porque o que não é admitido é o seguinte:
o Edson escolher quem vai pra casa; quem escolhe quem vai pra casa é o
município. Como a gente tem uma lista gigantesca aguardando, então a
pessoa que estiver dentro daqueles processos é quem será escolhida para
colocar lá, no lugar do Edson. (...) Existem dezenas de famílias aguardando
corretamente, sem passar à frente, eu vou permitir que uma outra venha,
porque
tem
dinheiro,
consegue?
(COORDENADORA
DA
REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA DA HABITAFOR).
Então tanto quem vende, com quem compra tá cometendo um “delito” [grifo
meu]. Ele não vai mais, assim... de regra. Ele não será mais beneficiado por
nenhuma escala - estadual, municipal, federal, de forma nenhuma - ele
perde a casa, não é? Agora, eu seria hipócrita se eu não lhe dissesse que
cada caso é um caso. É claro que uma família que tem cinco filhos, gastou o
que tinha e o que não tinha pra comprar uma casa, não tem pra onde ir, a
gente analisa, não é? Nós trabalhamos com seres humanos, então a gente
não pode deixar a regra ser engessada, não é? Então cada caso é um caso
diferente, a gente é muito aberto para analisar também em que situação
tudo aquilo se deu, mas a regra, a regra mesmo é não, é retomar e tudo,
entendeu? (ASSESSORA JURÍDICA DA HABITAFOR).
107
Digamos que seja uma retomada administrativa, um imóvel que estava
fechado, abandonado e de repente alguém se diz: “Não, isso aqui é meu, é
dono, não pode botar essa família aí não”. Aí a gente trabalha a família,
manda vir aqui na HABITAFOR, a gente trata aqui. Nós não tratamos no
local. Para quê? Para que haja o peso institucional, a pessoa entenda que é
uma coisa séria, não é uma brincadeira, então eu não vou lá pra sua porta
bater boca com você. A gente trás pra cá, a pessoa comparece aqui e a
gente faz toda a explicação: “A senhora foi avisada, a senhora foi notificada,
a senhora abandonou o imóvel, a senhora passou, vendeu e a gente
retornou e passou, e colocou uma família. (COORDENADORA DA
REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA DA HABITAFOR).
Apesar da legislação estabelecida, notamos nos depoimentos que não há
uma rigidez no posicionamento da Prefeitura nas situações de vendas dos imóveis.
Os tratamentos são diferenciados e podem variar de acordo com o caso, com o
conjunto habitacional em questão, e até com a própria resistência e “táticas”
utilizadas pelas famílias para burlar as “estratégias” implantadas pelo Poder Público.
Outra “estratégia” utilizada pela Prefeitura de Fortaleza na tentativa de
atingir a sociedade quanto à comercialização irregular dos imóveis é a Campanha
“Não troco minha casa por nada”, conforme apontamos na figura 22. A campanha
surgiu em abril de 2009 e foi lançada em outubro do mesmo ano quando da visita da
Prefeita e demais secretários executivos ao conjunto habitacional Maria Tomásia,
atualmente considerado pelos técnicos da HABITAFOR como o conjunto em que há
o maior índice de vendas e abandono dos imóveis.
De acordo com o site da Prefeitura, com o lançamento da campanha, foi
observado que “o número de denúncias contra pessoas que negociam casas
aumentou. Junto a isto, pessoas têm desfeito o negócio e retornado para as suas
casas e outras têm procurado a Habitafor para devolver moradias compradas”.
Foram fixados cartazes em todos os conjuntos habitacionais entregues, em linhas de
ônibus, associações de bairro e nas comunidades que aguardam moradias, além de
cartilhas educativas e chaveiros que foram distribuídos durante palestras de
sensibilização ministradas pela equipe de regularização fundiária.
108
Figura 22 – Cartaz de divulgação de campanha contra venda de casas.
Fonte: Site da Prefeitura Municipal de Fortaleza. Acesso em 21/01/2012 às 10:46h.
http://www.fortaleza.ce.gov.br/index.php?option=com_content&task=view&id=15645&Itemid=78
Verificamos que o Poder Público, neste caso, a Prefeitura de Fortaleza,
foi se adequando às situações encontradas. Como exemplo, citamos a criação da
Lei nº 9.294, que trata sobre a utilização da Concessão de Direito Real de Uso que
compõe uma legislação recente do ano de 2007, tendo sido necessária uma
adequação à situação de Fortaleza, considerando que a CDRU foi regulamentada
pelo Decreto-lei nº 271 de 196736.
Adiante, buscaremos compreender as “táticas” utilizadas pelos moradores
dos Conjuntos Nossa Senhora de Fátima e Maravilha em relação às “estratégias”
utilizadas pela Prefeitura para garantir a ordem burocrático-administrativa e a
permanência dos moradores nos conjuntos.
4.3 “Táticas” e trajetórias na garantia do sonho da casa própria
36
MELO, L. Direito à moradia no Brasil. Política urbana e acesso por meio da regularização
fundiária. Belo Horizonte: Fórum, 2010.
109
Dentre as dez entrevistas realizadas com os moradores, além das
conversas informais durante as visitas de campo, percebemos que os moradores
residentes na Maravilha possuem um vínculo muito forte com a comunidade, pois
seis deles nasceram no local e o restante chegou à favela nos anos 1960 e 1970.
Esta relação com a comunidade produz uma pertença ao local de origem
que, em algumas situações, fez suportar as dificuldades enfrentadas por alguns
durante a urbanização.
Dentre os diversos depoimentos sobre o vínculo com o lugar, alguns nos
despertaram a atenção pelos sentimentos embutidos nas falas emocionadas, ao
relatarem sobre sua relação com a área.
Nascemos aqui, nossos umbigos foram tudo enterrado aqui. A parteira fazia
o parto em casa e enterrava os umbigos aqui. E foi bem por aqui onde ficou
meu apartamento porque praticamente era aqui que a minha mãe morava.
O povo foi chegando, se instalando e ficando... E os filhos foram nascendo
tudo ali naquela casa. (ENTREVISTA nº 10, 22/01/2012).
Existe um sentimento de perda, principalmente dos mais velhos. A minha
avó, por exemplo, antes de falecer ela disse que não queria se mudar pra
um apartamento desse. O trator podia passar por cima dela que ela não
saía pro apartamento, mas Deus resolveu levar ela antes... (ENTREVISTA
nº 06, 13/10/2011).
Essa intensa ligação com o local justifica o fato de ter sido mais fácil, por
parte da Prefeitura, a adesão ao projeto, pois percebemos que a maioria das
famílias não teve muitas opções a não ser aderir à urbanização. Além do vínculo
com o local e das relações de vizinhança estabelecidas, muitos deles eram parentes
entre si, haja vista que a comunidade foi ampliada com a origem no crescimento das
próprias famílias.
No caso da minha mãe, construiu, construiu e hoje em dia tá num
apartamento minúsculo porque a casa dela era maior, era grande e não
somente ela, mas tem muitas famílias que está nessa situação. Tá vivendo
por viver, mas não é aquele... A gente nota que não é. (...) Mas nem por
isso deixou de a gente ter um trabalho todo, uma vida toda. Eu vi o
sofrimento todo da minha mãe, que eu sou mais velha, dia e noite,
chovendo, tinha uma parede que todos os anos caía. Meu pai fez de tábua,
ficou um bocado de tempo juntando material pra construir de novo, aí no dia
que ela pode botar um pisozinho, ajeitar do jeito do sonho dela, foi destruído
esse sonho. (ENTREVISTA nº 09, 22/01/2012).
110
Quando perguntamos se não havia alternativa para indenização, já que a
casa anterior era bem melhor do que o apartamento oferecido pela Prefeitura, ela
nos respondeu que o valor oferecido não valia e não compensava sair de perto de
todo o restante da família que ali estava e da rede de solidariedade ali constituída.
Abramo (2003) se refere a essa rede como uma “economia da
solidariedade familiar”, em que os relacionamentos de troca são baseados no critério
do “Dom” e do “contra-Dom”. As mudanças de endereço com distanciamento dessa
vizinhança estabelecida envolvem o risco de perda dessas relações acumuladas.
Essas redes de “Dom” e “contra-Dom” não são regidas por normas e
regulamentos explícitos, portanto, variam de acordo com as especificidades de cada
comunidade, de favela para favela, e, consequentemente, de conjunto para
conjunto.
(...) não valia, ela foi avaliar e o valor que eles deram não tinha como ela
comprar [outra casa em outro local]. Então já que era pra ficar e pra perder
ela ficou por aqui mesmo. E família tava toda aqui dentro... Ela pensou mais
na gente do que nela. Muita gente sofre de tristeza aqui dentro por conta
desse projeto, principalmente os mais velhos. (ENTREVISTA nº 09,
22/01/2012)
Outras pessoas se viram na mesma situação. Relembramos aqui o caso
da dona de um salão de beleza que nos relatou que a indenização era algo inviável
para ela, haja vista que residia no local há muito tempo, o que a tornava parte do
lugar. Declarou ainda que, quando fazia queixas, referindo-se ao tamanho de sua
casa, os funcionários da Prefeitura diziam: "ou sai ou vai para indenização". E
relembrou emocionada: "Como é que eu ia pra indenização se eu nasci aqui? Moro
na Maravilha há 42 anos!".
Muitos depoimentos declararam que o projeto não trouxe muita satisfação
aos mais velhos, que residiam há mais tempo na comunidade. As pessoas mais
antigas nas favelas possuem uma trajetória de muitas lutas, desde a autoconstrução
de moradias até as ameaças de expulsão do local.
A indenização não era vista pelo Poder Público com bons olhos, pois a
Prefeitura tinha a expectativa de que a família recebia a indenização e novamente
retornava para outra área de risco. Essa visão da Prefeitura era unificada para todas
as famílias, o que não necessariamente se tornava uma realidade, haja vista que,
111
como já citamos, a favela é um espaço bastante heterogêneo em sua composição.
Portanto, havia casas de alvenaria e barracos de madeira precários, os quais eram
ocupados por famílias com trajetórias e expectativas diferenciadas sobre o projeto.
Alba Zaluar (2000), em estudo realizado no conjunto habitacional Cidade
de Deus, localizado no Rio de Janeiro, expressa a reação dos mais velhos diante
das mudanças ocasionadas com a remoção:
Alguns homens mais velhos, que já viveram inúmeras mudanças nas suas
vidas, olham com sábia resignação o que se passa e desconfiam que, por
sua localização, os pobres irão vendendo pouco a pouco as casas que têm
no conjunto. Outros vivem o presente da sociabilidade reconstruída (...) o
lugar já carrega muitas marcas de suas identidades sociais. Já faz parte de
suas pessoas como um dia a favela o fez, e não há razão prática que os
convença das vantagens de deixar tudo isso para trás outra vez. (P.84).
Enquanto
famílias
participaram
das
primeiras
construções
na
comunidade, outras foram chegando e adquirindo uma moradia, contando com a
possibilidade de aquisição de uma casa por conta da urbanização, ainda que
tivessem nascido no local. Reportamo-nos aos filhos de moradores que fizeram um
“puxadinho” ou adquiriram um imóvel no “Surrão” – local da Maravilha onde havia as
ocupações mais recentes.
Pra mim foi bom, não é? Eu gostei porque eu não tinha casa, morava com
minha mãe. Comprei um barraco pra mim morar por um milagre porque eu
fui morar num barraco de um vizinho meu que foi pra Portugal. Nesse tempo
que eu fui pra lá não é? Aí ele me vendeu, eu fiquei pagando as parcelas de
cem em cem e mandando todo mês pelo correio o dinheiro pra ele.
(ENTREVISTA nº 10, 22/01/2012)
Na casa da minha mãe já tinha [passado o cadastramento] e já tinha
passado nesse barraco também. Só que a mulher, mataram um familiar
dela e tal... E ela resolveu vender o barraco. Aí ela negociou com o meu
padastro, aí ele foi e negociou comigo. Eu tinha um cadastro antigo já, mas
era no nome da mulher. Comprei por mil reais. Não comprei dela [dona do
barraco], já comprei do meu padastro em dez parcelas de 100 reais. Ele [o
padastro] trocou [o barraco] num som e mais uma coisinha. Porque
antigamente por 300 reais ninguém vendia não... [Ela vendeu] porque
morreu uma pessoa e ela teve que se mudar de lá, porque eu não sei se ela
ia ficar com a avó dela? Aí eu comprei dele [do padastro] de 1000 de dez
vezes. Teve uma época que eu tava ganhando 200 reais por mês e aí
pagava 100 e só ficava com 100, aí só comia fruta. (ENTREVISTA nº 04,
08/06/2011).
Antes a gente pagava uma casa na COHAB [Companhia de Habitação] que
é a que a minha irmã mora. A nossa casa era lá [em outro bairro distante da
Maravilha]. Aí como eu engravidei antes de casar, eu não tinha como ficar lá
sozinha. Aí o dinheiro que a gente tinha pra comprar móveis essas coisas
112
ele [o marido] foi e comprou uma casinha pra nós ali perto do trilho. Porque
eu não queria ficar lá, ele era da Banda, eu estudava no Piamarta, ele
também. Eu morava em cima da minha sogra. Quando a menina veio fazer
o cadastro ela fez só no nome dela, aí depois eu fui na HABITAFOR e disse
que era coabitação, que a escada era por dentro e constava uma casa, até
que deu certo. Era o primeiro [cadastramento] não é? Ainda passou outros.
Na verdade a casa que o meu marido comprou era toda nossa. Como ela [a
sogra] morava num bequinho que ela só vivia caindo, ele [o marido] com
pena, pegou e deu a parte debaixo pra ela morar e nós ficamos em cima. Aí
as irmãs dele ficaram lá onde a minha sogra morava. Acabou todo mundo
ganhando casa. (ENTREVISTA nº 08, 21/01/2012).
No momento do cadastro, certas táticas foram adotadas por alguns
moradores a fim de que eles conseguissem tirar proveito do projeto de urbanização
e, muitas vezes, compensar o esforço dispensado durante anos de permanência na
comunidade.
Elas [assistentes sociais] quando começaram a passar aí perguntaram
quantos filhos eu tinha e eu disse que tinha tido sete. Mas mora tudinho
aqui? Eu não sabia, ninguém sabia como ia ser depois, o que era mesmo.
Aí eu falei a verdade, comigo só mora cinco, cinco pessoas tudo não é? Aí
ela só botando lá, aí quando foi do meio pro fim foi mostrado aquele projeto
que era apartamento. Todo mundo ficou alegre, empolgado não é? Aí eu fui
e já fizeram o lá do Vila União primeiro [o conjunto Planalto Universo]... A
minha menina foi pra lá, tenho uma menina que foi pra lá. (ENTREVISTA nº
07, 17/11/2011)
A minha vizinha era assim: ela morava embaixo mais o marido; a filha dela
morava em cima mais o marido e lá atrás, nem morava, o filho dela. Ela
tinha era alugado uns tempos. Mas aí quando tava mais próximo [da
remoção] aí foi morar lá. Até porque a casinha que ele morava o rapaz teve
que sair porque ia derrubar não é? Aí ele foi pra lá. Mas não morava porque
era muito pequeno e ele tinha quatro filhos, aí era muito pequenininho. Mas
aí no final ficou morando sempre. Não sei, deu tudo certo. (ENTREVISTA nº
05, 13/10/2011)
Comprovamos que a resistência não é uma característica de todos e ela é
reconhecida como mérito pela maioria dos moradores na Maravilha, pois nos
momentos de negociação de adesão ao projeto e, posteriormente, de saída da casa
para o apartamento, os que mais resistiram foram os que mais conseguiram
minimizar os prejuízos e transtornos causados com o projeto.
Um dos proprietários de ponto comercial relatou que tinha perdido com a
mudança porque morava numa casa grande e tinha um ponto grande e isso não foi
considerado, pois recebeu seu apartamento pequeno e um ponto também menor do
que o que tinha. Investigando e relembrando, porém, o período da remoção,
113
verificamos que ele fora contemplado com dois apartamentos, sendo o segundo
para seu filho, o ponto comercial e ainda um valor de indenização de seis mil reais,
porém não relatado por ele durante a entrevista. Neste momento, percebemos que o
quanto a entrevista é um processo de mão dupla em que tanto o entrevistador como
o entrevistado pode manipular as informações e perguntar ou responder só aquilo
que lhes interessa.
Outra proprietária não se conforma com as injustiças, pois se disse
prejudicada por ter sido uma das primeiras a ser removida, enquanto para as que
ficaram por último os pontos comerciais estão sendo entregues com melhor
acabamento (gesso no teto) e as pessoas estão recebendo, além do apartamento
mais um ou dois pontos comerciais, às vezes até dinheiro além dos imóveis.
Reclama que a maioria dessas pessoas nem possuía ponto comercial antes, e ela,
que já trabalhava com comércio há muito tempo, se viu prejudicada com um ponto
comercial menor do que o que tinha.
Os casos de maior resistência ainda se encontravam na Maravilha, pois
em visita realizada durante a pesquisa ainda em maio de 2011, contamos
aproximadamente oito casos de imóveis que permaneciam no local, enfrentaram as
obras de construção dos apartamentos, do complexo esportivo e de urbanização do
canal. Permaneceram em meio a tratores, poeiras e restos de construção na
tentativa de encontrar uma proposta por parte da prefeitura que atendesse suas
expectativas.
Ouvimos durante conversas no conjunto sobre o caso de uma moradora
que possuía alguns barracos alugados na favela. Como a determinação da
Prefeitura no momento do cadastro é de que o beneficiário seja o inquilino e não o
proprietário, considerando que no local não se consideravam proprietários em
virtude da situação de irregularidade na posse dos imóveis, esta pessoa permanece
no local, buscando uma negociação com a Prefeitura. De acordo com alguns
moradores, este acordo já fora fechado e ela ficará por pouco tempo, pois receberá
um apartamento e mais R$30.000,00 (trinta mil reais).
Outro exemplo de resistência que encontramos entre os nossos
informantes foi o caso de uma senhora que aderiu ao projeto, mas tinha o desejo de
permanecer no local próximo a sua residência anterior. Afirmava com veemência e
114
orgulho sua trajetória para conseguir realizar seu sonho, chegando inclusive a residir
em aluguel social37 em dois locais, até que recebesse seu apartamento.
[...] quando elas [assistentes sociais] vieram me tirar eu disse: olha minha
filha eu suei pra ter essa casinha, não é assim não porque minha casa não
tava a venda, não tava a leilão... Então eu vou, não é pra mim escolher? Eu
aceitei o projeto, aceitei. Estou de comum acordo, estou adorando. Mas não
é pra mim escolher? Você falou que a gente podia escolher vizinho,
escolher local. Então não é só pegando a gente e puxando e rebolando num
canto. A gente vai viver aqui minha filha é para sempre até que Deus queira,
então a gente tem que ir pelo menos pra um canto que a gente goste (...)
Vocês que estão me pegando e me colocando num apartamento, eu não
tinha direito de escolha? Será possível, uma casa que eu suei pra comprar?
Vou não, vou pro aluguel social. Aí vieram me chamar pela segunda vez:
Sobrou um apartamento aqui pra senhora... Sobrou? Minha filha eu não tô
de sobra não. Eu não disse a vocês que eu só saio do meu canto quando
for pra mim escolher porque eu tenho direito de escolha. (ENTREVISTA nº
09, 22/01/2012).
Durante as visitas de campo fomos convidada diversas vezes por
algumas famílias, e, com muito prazer, adentrar os apartamentos para conhecer as
reformas realizadas neles. A maioria delas já havia realizado alguma reforma de
melhoria para garantir maior conforto e beleza ao local. Os apartamentos que foram
entregues pela Prefeitura, sem reboco interno e sem piso cerâmico, já estavam bem
mais valorizados, pois haviam sido rebocados, pintados, além de ter sido colocada
cerâmica no piso e até nas paredes da cozinha e banheiros.
Quando perguntávamos sobre de que forma conseguiram realizar tal
reforma em tão pouco tempo, as pessoas me relatavam que compravam aos poucos
o material, algumas vezes recebendo ajuda de parentes e ainda contavam com a
mão de obra do marido e de outros homens da família.
Eu acho assim, eu sou pobre, mas se eu pudesse eu só usava o que era
bom, a minha casa já tava mais melhor. Sempre eu sou assim sabe? Eu
nunca quis descer não, o meu negócio é subir, mas tem gente que não tá
nem aí. (...) Daqui pro final do ano eu vou retocar esse retoques, trocar esse
piso aqui, arrancar as portas, vou pintar aqui as paredes é de tinta normal
mesmo, porque eu queria passar aquela óleo, mas eu... Eu não sei, eu tô
pensando ainda. Tem uns amigos meus aqui que eles são pintor e eles
dizem: “na hora que tu quiser tu compra a tinta que eu venho pintar.”
(ENTREVISTA nº 07, 17/11/2011)
Lá na minha mãe a minha irmã deu a cerâmica, eu comprei o sanitário e a
pia do banheiro, aí a minha outra irmã deu a pia da cozinha. A minha irmã
deu o fogão e deu três sacas de cimento. Eu sei que foi cinco mil assim,
37
O aluguel social consiste num aluguel pago pela Prefeitura para resolver problemas provisórios de
moradia, até que o Poder Público encontre uma solução de moradia definitiva para o caso.
115
quase do nada... Meu irmão foi que pintou, a minha irmã deu a tinta, meu
irmão e meu cunhado pintaram porque eu tenho um cunhado que trabalha
na Hidracor aí negócio de tinta, essas coisas tudo ele vai ajeitando...
(ENTREVISTA nº 08, 21/01/2012).
Dentre as dez entrevistas realizadas, apenas três apartamentos ainda não
haviam sido reformados. Parece-me que eles são a minoria no conjunto. Por isso, no
momento da entrevista, os que não reformaram faziam questão de relatar sobre o
fato, mesmo sem terem sido questionadas.
Uma delas reconhece a necessidade de melhorar o apartamento, no
entanto relata que priorizou a saúde e a educação do filho. Disse que, se
observássemos, a maioria dos apartamentos já eram reformados, diferente do dela
que ainda apresentava a mesma estrutura de quando recebeu da Prefeitura. Sem
que perguntássemos sobre reformas, ela já foi dizendo que não tinha feito nenhuma
alteração porque, diferente das outras pessoas do conjunto, ela pagava plano de
saúde e colégio particular para o seu filho. Ele estuda numa escola de classe médiaalta localizada no bairro de Fátima.
A segunda solicitou que a entrevista fosse realizada no hall do
apartamento, não permitindo que adentrássemos para conhecê-lo, alegando que
sua filha estava fazendo uma faxina; no entanto, notamos que as paredes
permaneciam no tijolo vermelho sem reboco.
Por fim, uma dessas famílias nos relatou que não havia feito nenhuma
reforma e que estava satisfeita com o apartamento daquele jeito mesmo: “Eu nem
ligo nem de rebocar nem de botar cerâmica, eu não, pra mim desse jeito aqui está
ótimo, passo um paninho e fica tudo bem limpinho”. (ENTREVISTA nº 02,
29/04/2011).
Enquanto algumas famílias preservaram os apartamentos ou fizeram
reformas de acabamento internas, presenciamos algumas situações externas e
depoimentos de que reformas consideradas irregulares pela Prefeitura já
proliferavam pelo conjunto.
Em janeiro de 2012, a HABITAFOR esteve no Conjunto Maravilha para
derrubar um “puxadinho” que havia sido instalado em um dos blocos. Consistia em
116
uma estrutura ousada, na qual ampliava com áreas de serviço três apartamentos,
pois ela chegava ao terceiro pavimento e atingia uma área de uso coletivo.
Ficou muito bem feitinha, a puxadinha com as colunas, só uma varandinha.
Quebraram essa parte que eram os combogós, derrubaram todinho e
abriram... Eles fizeram umas colunas, terminaram, rebocaram, antes do
natal veio um grupo da habitafor, veio o advogado da habitafor dizendo que
ela não continuasse. Ela disse que o marido dela tinha um engenheiro que
ele trabalhava era num negócio de construção e engenheiro que fez o
projeto e que não ia derrubar, não influía na estrutura do apartamento não.
(...) Veio seis carros da guarda municipal, veio guarda, veio moto. Junta um
monte de gente, mas a comunidade fica só olhando, não faz nada. Eles já
sabiam que ia ser derrubado, só estavam querendo vencer no cansaço.
Derrubou todinho e a HABITAFOR foi e botou os combogós de novo.
[Risos]. Porque eles gastaram quatro mil lá, perdidos. (ENTREVISTA nº 08,
21/01/2012).
Sobre os diversos “puxadinhos” já realizados, percebemos que alguns
deles são feitos geralmente nos pontos comerciais com colunas e telhas, como se
fosse uma área, conforme apontamos anteriormente na figura 19, apresentada no
item 4.1 do presente capítulo. Quando interroguei sobre a ação de fiscalização da
prefeitura nestas situações, as famílias afirmaram que neste caso não havia maiores
problemas porque se trata apenas de uma proteção ao Sol, mesmo que obstruindo o
passeio.
Há ainda as reformas “irregulares”, porém de visualização difícil para
equipe de fiscalização da Prefeitura, como, por exemplo, a quebra de paredes
internas e até a construção de um cômodo no terceiro andar, sendo os blocos
constituídos de térreo e mais dois pavimentos.
[...] se a HABITAFOR soltar aqui eu acho que vira baderna de novo. Porque
aqui ficou muito espaço... A HABITAFOR já teve aqui derrudando um
puxadinho... Eu fiquei foi com pena, porque tava bonito viu? Bem feito. Ela
embaixo subiu e o segundo e o terceiro também. Não esperaram nem a
HABITAFOR sair. Ficou bonito, bem feito. Tem uns puxados pra cima que
faz no terceiro subindo com escada faz um quartinho, uma área de serviço
em cima. Como é que a HABITAFOR descobre? Só se for denúncia. E o
povo denuncia. (ENTREVISTA nº 10, 22/01/2012).
[...] Minha irmã ganhou naquele primeiro, lá onde eu moro só que o dela é
no terceiro andar. Ela forrou a sala todinha e fez em cima uma área de
serviço, o dela é de três quartos. Mandou fazer pia, tudo, as pedras... A
cozinha dela foi tudo projetado porque ela tinha uma casa no Conjunto
Ceará, ela pagava na caixa, ela quitou e com o dinheiro de lá ela acabou
todinho nesse dela, botou janela de vidro, as cortinas dela é tudo de
persiana, tudo coisa boa. (ENTREVISTA nº 08, 21/01/2012).
117
Em estudo realizado no Rio de Janeiro, com famílias que residiam na
favela do Canal das Tachas e foram transferidas para conjunto habitacional,
Maiolino (2008) reflete sobre as reformas e ampliações realizadas nos imóveis:
Podemos considerar que, consumir dessa forma, comprando tudo novo para
a casa no conjunto, de fato se insere num quadro de motivações mais
complexas. Sem dúvida, uma reação psicológica desses indivíduos, que, ao
adquirirem mais um item, deslizam por uma cadeia de significantes, cujo
significado maior é o compartilhamento de um padrão de conforto e estética
disseminado pela sociedade como um todo. (P. 233-234).
Comprar itens novos para casa e usufruir de novos serviços passa a fazer
parte da maioria dos moradores. Essa necessidade traz embutida a satisfação de
estar numa moradia mais adequada, conforme os depoimentos a seguir:
Pra mim mesmo, pra mim é um sonho porque eu nunca tive minha casa
ajeitadinha assim não. Nunca tive o gosto de arrumar como eu quis. Como
eu tive um sonho realizado, eu tive o gosto de arrumar do jeito que eu
queria. Foi um sonho mesmo que eu batalhei, batalhei, até que consegui.
(ENTREVISTA nº 09, 22/01/2012).
A parte boa é isso é que eu tenho a casa toda dividida porque a minha casa
era só um vão. Agora o meu filho tem um quarto só dele com porta. Isso pra
ele eu acho que foi a maior coisa que ele sempre quis um quarto só dele.
Na verdade ele dormia na sala, ai é outra coisa dividia, né? Porque você
chega e entra na sala, é tudo pequeno, mas tem. Eu também nunca gostei
de casa grande. Tem a cara de casa mesmo, você chega e tem a sala, a
cozinha, não tem aquela mansão, mas... (ENTREVISTA nº 08, 21/01/2012).
As mudanças refletem significativas alterações no cotidiano das famílias.
Uma delas, talvez a mais simples e ao mesmo tempo mais importante, seja o
endereço, isto é, a possibilidade de ser identificado, que facilita a inscrição no
emprego, a entrega de um medicamento pela farmácia ou simplesmente o
recebimento de uma carta de um parente.
Porque nós podemos ter acesso a todos os blocos, a todos os
apartamentos, coisa que antes não tinha porque era beco e era difícil. Tinha
lama, tinha esgoto, fossa, quer dizer, era difícil. Até pra polícia entrar dentro
da comunidade com o carro. Hoje não, se ela quiser ela circula todo o
conjunto. Também com relação a ponto. Muita gente ganhou ponto de
comércio e isso o que é que acontece: gera renda pra essas pessoas. E
gerando renda melhora toda a vida, todo o padrão de vida, melhora na
educação, melhora na saúde, melhora no conforto. (ENTREVISTA nº 06,
13/10/2011).
Pra mim assim em matéria de harmonização foi muito bom porque tem o
carro de lixo que entra, tem ruas. Antigamente eu pedia uma coisa e você
não tinha o endereço pra dar porque era beco, você vai dar o endereço do
118
beco? Eu só dava o endereço pra farmácia lá da minha mãe que morava de
frente, mas o ponto de referência que eu dava era o bar do seu Eudes.
Agora você pode dar o endereço não é? (...) eles entram agora até tarde
que antes eles não entravam muito tarde não. (ENTREVISTA nº 08,
21/01/2012).
Observamos uma ampliação nas diversas formas de consumo com a
aquisição da nova moradia, que vai além das reformas na estrutura da casa.
Segundo Canclini (2001), o consumo é “um conjunto de processos socioculturais em
que se realizam a apropriação e os usos dos produtos” (P. 77), relatando que é no
consumo que se elabora parte da racionalidade que promove a integração e a
comunicação.
O consumo remete, no entanto, também ao comprometimento do
orçamento doméstico das famílias. Diversas taxas que antes não faziam parte do rol
de despesas das famílias são acrescidas com a aquisição da nova casa – água,
esgoto, energia e gás. Algumas famílias se utilizavam de gambiarras, cozinhavam
no carvão quando não havia recurso para compra do gás, além de que a casa tinha
menor tamanho e divisões de cômodos, o que minimizava o consumo de água e luz.
O problema lá das energias tá horrível. O pessoal acostumado a não pagar
energia tinha um consumo descontrolado porque você não pagava né? Só
que as energias de todo mundo, até a minha, eu pagava quarenta e pouco e
eu tô pagando noventa e oito reais de energia. (...) eu tinha um computador,
mas não tinha internet. O problema é que agora nas férias tem o
computador o dia todo, a internet 24 horas, que eu não consigo arrancar a
internet, aí ele tem um bendito de um vídeo-game, que quando não é no
vídeo-game do computador é no vídeo-game da televisão.Mas agora aqui é
muito quente, lá na minha casa era muito ventilado, aí só vai, você só dorme
à noite com dois ventiladores, um num quarto e outro noutro, aí a energia
vai lá pra cima. (ENTREVISTA nº 08, 21/01/2012).
Na COELCE não parava gente lá, na CAGECE do mesmo jeito. Lá disseram
que os valor daqui... Eu não sei se vocês viram a minha [conta de luz] aí.
Cento e poucos reais... Da minha luz. Porque aqui é um canto valorizado, é
um canto de... Um ambiente de gente mais ou menos. Aí, mas ninguém é
rico não, nós somos pobre. Brigamos lá. (ENTREVISTA nº 07, 17/11/2011).
Esses e outros assuntos são frequentemente abordados nas atividades
do trabalho social. A empresa Tecnoagua atualmente é responsável pela execução
do trabalho social nos conjuntos Nossa Senhora de Fátima e Maravilha, e tem
realizado reuniões buscando a participação comunitária e a sustentabilidade do
empreendimento com suporte em ações centradas nos eixos: mobilização e
organização comunitária, educação sanitária e ambiental e geração trabalho e
119
renda. Notamos que, no mês de junho de 2011, houve uma intensificação das
atividades por parte da empresa, com reuniões constantes nos conjuntos.
A figura 23 retrata uma dessas reuniões ocorrida à noite no Conjunto
Maravilha à qual estivemos presente. A reunião estava agendada para iniciar-se às
18 horas e começou após 40 minutos, aguardando as pessoas chegarem dos seus
trabalhos para comparecerem ao local. De início, havia somente nove pessoas e,
aos poucos, umas foram chamando as outras até formar um público de
aproximadamente 30 pessoas, número considerado pequeno em relação às 192
famílias do conjunto.
Figura 23 – Reunião com os moradores do Conjunto Maravilha promovida pela empresa responsável
pelo trabalho social.
Fonte: Arquivo Pessoal da Autora.
A reunião aconteceu numa das ruas internas, em frente a um ponto
comercial localizado em um dos blocos que atualmente funciona como sede da
Associação Comunitária e foi coordenada por uma assistente social que contou com
o apoio de mais duas pessoas da empresa. A pauta dizia respeito aos equipamentos
sociais utilizados pelos moradores. No início, a assistente social solicitou que
120
algumas pessoas pudessem voluntariamente se apresentar e falar um pouco sobre
como se encontrava hoje a Maravilha. Dentre essas falas, destacamos as seguintes:
“A Maravilha foi uma maravilha. Agora é outra Maravilha!” (Moradora há 43 anos na
comunidade); “Tinha o nome de Maravilha, mas não era maravilha, agora é que é
Maravilha.” (Morador há 35 anos).
Pelas frases destacadas, percebemos o quanto o nome maravilha é
significativo para os moradores do conjunto. No momento da transcrição para o
diário de campo, tivemos, inclusive, dificuldade em colocar a primeira letra maiúscula
ou minúscula ao termo, pois os moradores a utilizam por vezes com a intensidade
do adjetivo, e por vezes com a mesma intensidade do substantivo próprio que
nomeia o lugar.
Um fato deixou-nos surpresa nas últimas entrevistas: foi saber que o
nome Maravilha ainda não estava designado oficialmente ao conjunto. Segundo
alguns moradores, o nome ainda será definido em eleição, sendo apontados por
eles três nomes: Maravilha, pelo nome que deu origem à favela; Nossa Senhora de
Loreto, em homenagem à padroeira da igreja localizada na Base Aérea; e Santo
Expedito, que, segundo informações de uma das moradoras, foi o padroeiro da
comunidade quando a Igreja Nossa Senhora de Fátima iniciou um elo com a
Maravilha.
Algumas famílias declaram que certas “irregularidades” ainda não foram
cometidas em razão da presença da HABITAFOR no conjunto, representada pela
empresa Tecnoagua. Numa das visitas, observamos que havia alguns moradores
implantando umas colunas de ferro nos quatro cantos de um bloco, onde havia
apenas pontos comerciais. Perguntamos a algumas pessoas que estavam próximas
ao local se a obra estava sendo realizada pela construtora contratada da Prefeitura e
eles responderam que era uma obra particular. Alguns moradores se juntaram para
colocar as colunas: “eles só estão esperando a HABITAFOR sair. Quando ela sair
eles sobem o segundo andar”.
A presença da Prefeitura ainda inibe algumas alterações e possíveis
“irregularidades” no conjunto, conforme depoimentos a seguir:
Lá [Planalto Universo] caiu muito quando a HABITAFOR saiu, porque no dia
que ela corta o vínculo aí vira baderna. Eu acho que ela nunca deveria
121
abandonar um conjunto desse. (...) Pararam o trabalho social lá, aqui não.
Lá não consegue mais nada lá não, não consegue mais nada lá. As vendas
lá foi por conta da insegurança, não teve um trabalho como está tendo aqui
porque esse conjunto aí [Planalto Universo] foi abandonado, praticamente
abandonado. (ENTREVISTA nº 09, 22/01/2012).
Eu queria que a HABITAFOR nunca abandonasse isso aqui. Porque eu
acho que se abandonar... Nós não, nós ficamos com prazer, mas essa
geração nova aí... que vai ficar, né? Entendeu? Aí justamente, aí vai
prejudicar quem? O meu filho, o meu neto... (ENTREVISTA nº 10,
22/01/2012)
Os depoimentos que tive com os moradores a respeito de vendas e
aluguéis nos conjuntos – sejam estes durante as entrevistas oficiais com o gravador
acionado ou ainda durante conversas informais – denotam que tanto no Maravilha
como no Nossa Senhora de Fátima, há poucos apartamentos nestas situações e,
quando identificados, a Prefeitura tomou as medidas pertinentes por meio de
procedimento administrativo, sem que o negociação fosse concluída entre as partes:
vendedor e comprador.
Ninguém vende mesmo porque tem medo. Um dia um homem ali, lá no
outro lado, daquele primeiro de lá pra cá, outra doida que morava dentro da
lama tava vendendo, aí veio alguém da HABITAFOR não sei como, com
aquela camerazinha escondida, aí perguntou quanto era... Até isso mulher!
Passou na televisão, desde o início. Se a HABITAFOR não fica de olho
aqui, ora tem nego aqui que já tinha vendido há muito tempo. Muita gente
querendo comprar e muita gente querendo vender mulher. Agora pra quê?
Pra voltar pra mesma vida. (ENTREVISTA nº 07, 17/11/2011).
Os moradores justificam a pequena quantidade de vendas em relação ao
Planalto Universo por conta da ausência de um trabalho social naquele
conjunto,
o que deixou as famílias à vontade para realizarem as negociações com o imóvel.
O Planalto Universo já está com mais de três anos, agora que eles
[HABITAFOR] estão tirando das pessoas que compraram. Minha irmã mora
lá, aí ela tá com um problema porque ela comprou. Ela morre de medo
porque estão tirando as famílias. Das que foram compradas já tem três
famílias que foram removidas. Ela comprou no [bloco] Saturno. Ela veio de
Brasília, não tinha pra onde ela ir, aí ela disse: eu vou comprar um
[apartamento] aí. E comprou, mas tá com medo de perder. (ENTREVISTA
nº 08, 21/01/2012).
O mesmo não ocorreu com os dois últimos conjuntos destinados às
famílias da Maravilha, haja vista que, com a proximidade da HABITAFOR, por meio
da empresa que executa o trabalho social, as possíveis vendas e aluguéis são
inibidos, quando não, são previamente identificados pelo Poder Público.
122
Tem umas amigas minhas que elas dizem que vão vender, é só chegar
cinco anos, porque elas dizem que com cinco anos dá o papel. Disse que
vão vender, mas vão morar lá no interior delas, aí vão comprar a casa lá no
interior. Eu digo: olhe vocês vão, mas vocês pensem. Vocês vão, mas não
podem voltar mais pra cá não. (...) diz que vai sair daqui e eu digo: mulher
não vai não mulher que aqui nós ficamos importante. Não vê que aqui olha,
é reportagem, a HABITAFOR não sai daqui, se uma pessoa quiser vender
uma casa já tá sabendo, tem líder aqui agora de todo jeito. Ô mulher, pra
nós, nós estamos lá em cima pra quem morava dentro da lama...
(ENTREVISTA nº 07, 17/11/2011).
O depoimento anterior ilustra a percepção de que os moradores têm certo
conhecimento do que é ou não permitido. Os cinco anos a que a moradora se refere
é o período após a entrega do Termo de Concessão de Direito Real de Uso, em que
a família adquire o direito de posse do imóvel.
As ações judiciais promovidas pela Prefeitura para regularizar as
situações encontradas no Planalto Universo também servem para frear as tentativas
de vendas nos demais conjuntos. Como o trabalho social não foi sistemático no
Planalto Universo, esta ausência atrasou a tomada de medidas por parte da
Prefeitura em relação às negociações. Portanto, como os processos judiciais
geralmente são demorados, atualmente os moradores presenciam as ações de
reintegração de posse dos apartamentos em situações irregulares.
O Planalto Universo já está com mais de três anos, agora que eles estão
tirando das pessoas que compraram. Minha irmã mora lá, aí ela tá com um
problema porque ela comprou. Ela morre de medo porque estão tirando as
famílias. Das que foram compradas já tem três famílias que foram
removidas. Ela comprou no [bloco] Saturno. Ela veio de Brasília, não tinha
pra onde ela ir, aí ela disse: eu vou comprar um [apartamento] aí. E
comprou, mas tá com medo de perder. (ENTREVISTA nº 08, 21/01/2012)
Minha filha recebeu um apartamento no Planalto Universo. Vendeu e tá no
meio da rua de novo. Tá morando de casa alugada, casa não, barraco.
Parece que vendeu por nove [mil reais]. (...) Porque o marido dela mulher,
pra ela não existe mais homem no mundo a não ser esse homem dela. Se
ele disser assim: me dá a tua vida, eu acho que ela dá. Porque só gente
doida mesmo que vai botar uma casa no mato e ir pra debaixo de um pé de
pau por causa de um homem. E ela fez isso. Agora tá na rua e não ganha
outro não. (ENTREVISTA nº 07, 17/11/2011)
O tema da comercialização consiste em algo delicado porque interfere na
responsabilidade do entrevistado em repassar uma informação na qual poderá
originar consequências para si mesmo, haja vista a sutileza que o tema requer.
123
Portanto, durante as entrevistas, percebemos que não poderia ir direto ao assunto a
fim de não assustar os moradores. De início, eles diziam não haver casos de vendas
nos conjuntos e negavam a possibilidade de que elas ocorressem.
Ela não tem preço, já me ofereceram pra comprar, veio um rapaz botou um
dinheiro, mas eu não vendo nem por 500 mil, a minha casa não é pra
vender porque quando eu lembro do que eu passei acolá e hoje tá num
canto desse que chove dia e noite e eu não tenho preocupação de
enchente. (ENTREVISTA nº 01, 29/04/2011)
Nunca apareceu ninguém pra comprar porque logo quando fala nisso a
gente corta logo. Eu acho assim, eu acho burrice da parte de qualquer
pessoa que for vender esse apartamento, porque outro apartamento assim
ninguém vai ter não. Aqui foi uma bênção mesmo de Deus. Eu até hoje
quando vou dormir eu agradeço muito a Deus. (ENTREVISTA nº 03,
29/04/2011)
Já veio gente aqui, mas quando vem a gente explica que não pode vender,
não pode trocar, quem comprar perde. O pessoal chega assim e pergunta
se você sabe dizer se tem alguma casa aqui pra vender. A gente diz não,
não pode vender não, tem uma placa ali ó. Se comprar perde, aqui ninguém
ainda vendeu, nem alugou. Porque é assim, se fizer uma coisa aí o pessoal
liga direto pra HABITAFOR, sabe? (ENTREVISTA nº 02, 29/04/2011)
Aos poucos, fomos compreendendo a sutileza do tema e as razões de
sua obscuridade. Posteriormente, no desenvolver da conversa, os moradores iam
relatando fatos dispersos sobre vendas e trocas.
Aqui nunca ninguém vendeu não. Venderam assim, só ponto de comércio,
que já venderam, mas apartamento não. Os pontos de comércio foram
vendidos pra gente da Maravilha mesmo. O Manoel vendeu pro vizinho
Chico e o Chico abriu a parede e aumentou o comércio dele. Aí o José já
vendeu pro Antônio que já é da Maravilha, mas mora lá do outro lado, na
Maravilha, não é gente de fora não. Tem a cunhada, tem a família dele
nesse lado, entendeu? É o frigorífico, era o que faltava aqui porque não
tinha frigorífico38. (ENTREVISTA nº 02, 29/04/2011).
Este depoimento não reconhece como venda irregular os pontos
comerciais, tampouco se a venda ocorrer entre os próprios moradores do conjunto,
pensamento não compartilhado pelo Poder Público. De acordo com a moradora, a
venda do ponto comercial, portanto, beneficiou e facilitou a vida das pessoas com a
abertura de um tipo de comércio ainda não existente na comunidade.
Quanto às vendas de unidades habitacionais relatadas pelos informantes,
analisamos caso a caso, a fim de entendermos a rede de negociação dos imóveis.
38
Optamos pelo uso de nomes fictícios a fim de preservar a identidade dos envolvidos.
124
A casa tava desocupada, dali do [bloco] D porque o rapaz faleceu, ficou com
o irmão dele. Aí o irmão ficou doente e não tinha mais condições. Aí o filho
dele quis empenhar a casa, vendeu tudo o que tinha pra usar droga. Aí
ligaram pra HABITAFOR e a HABITAFOR veio e deu pra quem precisava.
Tinha a mãe dele, né? Mas ele morava com o pai que ficou doente, aí ele [o
pai] foi pra casa da tia. (ENTREVISTA nº 02, 29/04/2011).
O evento relatado mostra as possibilidades de acontecimentos que
podem ocorrer na vida das pessoas que as distanciam do sonho da casa própria. O
dono da residência faleceu, o irmão ficou na casa, mas teve que se ausentar por
doença, deixou seu filho, mas este era usuário de substâncias ilícitas e deixou a
casa em estado de abandono.
Sobre a possibilidade de saída de alguns moradores de conjuntos
habitacionais populares, Valladares (1980) pensa que com o decorrer do tempo, há
uma tendência das áreas mudarem de composição social, bem como o uso do solo
ter sua função transformada. Essa mobilidade residencial intraurbana faz parte de
qualquer cidade e é expressa pelos deslocamentos contínuos de sua população,
seja no mesmo bairro, seja de bairro a bairro.
Nestas situações, a Prefeitura ingressa com uma família que se encontra
na lista de espera para aquisição de uma moradia. Na Maravilha, esse procedimento
não é muito bem-visto por conta dos laços de vizinhança já consolidados na
comunidade.
[...] fizeram barricada, não deixaram [a família] entrar porque ela era de
outra comunidade. Ela ficou com medo, lógico, e dizendo: “não, se vocês
me deixarem aí podem fazer alguma coisa contra mim, eu não quero mais
aqui não”. Aí eles foram lá no Planalto Universo, conversaram com uma
família que já morou aqui na Maravilha que disse que queria voltar e
colocou a família nova lá, de outra comunidade, e veio os que moraram aqui
na comunidade pra cá e a comunidade deixou. Eu não achei muito correto
não. Por quê? Porque essa família que entrou deixou de atender uma
família que está no processo, na realidade deveria ser uma pessoa do
processo que deveria entrar, que já era moradora aqui da comunidade.
(ENTREVISTA nº 06, 13/10/2011).
As famílias do processo relatadas no depoimento anterior referem-se às
coabitações que surgiram após o cadastramento realizado na favela Maravilha, as
quais não foram contempladas no projeto da Maravilha. Algumas dessas acessaram
125
seus direitos por meio do Ministério Púbico e da Defensoria Pública e receberam
suas casas, porém, no Conjunto Residencial Maria Tomásia, localizado no Sítio São
João, distante do local de origem de suas antigas moradias.
O outro caso, ele não vivia aí porque ele ficou doente e foi morar com a
mãe. Aí ele deu pra uma sobrinha dele pra morar, aí eles pagavam água e
luz e ele ainda queria 50 reais. No dia que o morador não deu mais 50 reais
aí ele mandou desocupar a casa. A sobrinha foi lá na HABITAFOR, quando
chegou lá eles mandaram desocupar a casa, aí deu pra esse pessoal e num
ficou nem a sobrinha nem ele. Aí eles botaram um casal, esse casal foi pra
Maria Tomásia e o povo que tava lá veio pra cá e receberam dinheiro na
troca. É o comentário não é? (ENTREVISTA nº 02, 29/04/2011).
Teve um caso de troca aqui, que aqui o local é mais visado né? Que o rapaz
recebeu essa casa aqui, morava no meio do mundo aí trouxeram ele pra cá.
Ele era de Caucaia. Quando ele chegou aqui trocou a casa dele lá no Maria
Tomásia, lá pro lado de Messejana e pegou o dinheiro todinho e usou de
droga e já vendeu geladeira, televisão que tinha pegado na volta, usou
todinho de droga e a tendência é ir vendendo aos poucos, vendendo aos
poucos e quando dá fé, tá na rua de novo. (ENTREVISTA nº 04,
08/06/2011).
As trocas são muito fáceis de encontrar inter e intraconjuntos. Trata-se de
uma negociação permitida pelo Poder Público e, por isso, mais comum de ser
identificada. As remoções foram acontecendo por etapas, respondendo, sobretudo,
a uma necessidade no desenvolvimento da obra física, muitas vezes em detrimento
das necessidades das famílias.
Apesar da realização das oficinas para distribuição dos apartamentos com
a participação das famílias, percebemos que algumas delas conseguiram optar pelo
local, mas outras não foram contempladas a contento e não mantiveram suas
relações de vizinhança da forma como queriam. Relataram que a equipe social até
que tentou organizar um sistema que beneficiasse a todos, mas acabou se perdendo
nesse objetivo.
Toda reunião tinha briga, por quê? Porque era junto apartamento de três
com apartamento de dois porque o condomínio foi feito errado. (...) Aí ficou
aquela confusão, toda reunião, toda reunião tinha briga. Aí o pessoal já tava
era tão cansado de briga que escolhiam logo: Não mulher, eu quero esse
aqui, tá bom. Aquele lado se quebrou, porque era a mãe, era a tia, era eu,
tudo morava bem pertinho. Agora eu passo de semanas sem ir na casa da
mamãe. Ainda pegou no terceiro andar. Essa aqui também mora lá do outro
lado. A única que tá aqui pertinho de mim que eu ainda consegui foi a minha
filha, tá nesse bloco aqui. (ENTREVISTA nº 09, 22/01/2012).
126
Agora quando eu fui escolher, o bloco lá era todo só família e já tinham
botado eu sem eu nem escolher, pra ir de frente com ela de novo. Crente
que eu queira mais 16 anos... Eu digo: vou nada, não tem que faça. No dia
que eu ia pra escolher aquele bloco eu disse que não podia trocar de jeito
nenhum o plantão, aí não fui. Aí todo mundo preencheu e ela quase morre.
Aí eu pedi a vizinha pra me chamar, ela foi a segunda. Quando ela me
chamou eu fui a terceira e não tinha mais vaga. (ENTREVISTA nº 08,
21/01/2012).
As pessoas puderam escolher os andares, se queriam térreo, primeiro ou
segundo andar, mas não puderam escolher os vizinhos. A minha atual
vizinha residia bem longe da minha casa na Maravilha, enquanto que outras
pessoas que antes moravam mais próximas acabaram ficando distantes, em
outros blocos. (ENTREVISTA nº 05, 13/10/2011).
Desta forma, as trocas constituem um modo de retomar ou desfazer os
elos de vizinhança no conjunto, haja vista que, além da necessidade de permanecer
próximo a algumas pessoas, existem também situações, citadas por algumas
famílias, em que há trocas, até para outro conjunto, com o propósito de garantir a
segurança da família por conta de problemas relacionados à violência.
Presenciamos uma situação semelhante com um dos informantes que
nos concedeu uma entrevista no mês de junho e, cinco meses após este nosso
contato, descobrimos na comunidade que seu apartamento se encontrava fechado
por conta de ele haver se envolvido com drogas e precisou afastar-se do bairro.
Com relação à possibilidade de venda, na entrevista ele se pronunciou da seguinte
forma:
Proposta de vender isso aqui é quase nula. O pessoal quer dar uns 15 mil,
eles botaram 30 mil aqui, mas não vendo não. Aqui se eu tiver de fazer, se
eu tiver de abandonar a casa um dia vai ser pra deixar pra mulher e ir
embora pro meu rumo, e não tá muito longe não. Tem gente aí que já
venderam a casa e que já trocaram o dinheiro todinho de droga e num é
todo mundo que pensa dessa maneira não. (ENTREVISTA nº 04,
08/06/2011).
Geralmente as trocas são regularizadas na HABITAFOR, seja por
iniciativa da família ou quando são abordadas pela equipe e convidadas a
regularizar a situação junto à Prefeitura. Segundo a equipe de regularização
fundiária da HABITAFOR, trata-se de um procedimento simples, porém necessita ser
oficializado. Algumas transações, no entanto, são realizadas sem que haja
conhecimento da Prefeitura. As famílias reconhecem as regras impostas e parecem
saber até que ponto podem correr o risco em relação a burlar o Termo de Permissão
127
que receberam e assinaram no ato da entrega do imóvel.
Apontamos a situação de uma moradora que possuía um ponto comercial
durante muitos anos ainda na comunidade. Quando da recepção do apartamento,
recebeu também o ponto comercial conjugado. Além de não poder alugar e vender,
outra regra da Prefeitura em relação ao ponto comercial era a de que não poderiam
ser
vendidas
bebidas
alcoólicas
nos
pontos
conjugados
aos
blocos
de
apartamentos, a fim de resguardar a paz e o silêncio dos moradores. Constatamos,
contudo, a seguinte situação dentre as entrevistas:
Lá a gente vendia mais era comida, vendia bebida também, pouquinho, mas
vendia. Depois que nós chegamos aqui [Conjunto Nossa Senhora de
Fátima] caiu muito a comida porque tem muito restaurantezinho aqui perto,
né? Aí passei mais pra bebida, mas só final de semana. Aí eu também já
tava cansado, não tava aguentando mais não, enjoada desses bebo “véi”.
Às vezes de noite eu não podia nem tomar banho, arrochava mais gente
aqui e eu doidinha. Aí quer saber de uma coisa, ele morreu [o marido],
deixou um salário “véi” pra mim, eu vou é alugar isso aqui que eu não vou
morrer aqui de trabalhar não. Aluguei por 300 reais. (ENTREVISTA nº 07,
17/11/2011).
O apartamento e o ponto comercial a que nos referimos estão localizados
em uma área bem visada em um dos conjuntos pesquisados, bem defronte ao
asfalto. A transação do aluguel do ponto, segundo a informante, ocorreu há um mês
e ela não se diz satisfeita com a negociação porque o inquilino quer fechar a porta
de acesso que liga o seu apartamento ao ponto comercial e ela não concorda com
esse procedimento, pois relata que se utiliza da entrada do ponto pelo fato de achar
mais segura. Diz ter convicção de que, para a HABITAFOR, o aluguel é considerado
“irregular” e ainda diz que irá se utilizar dessa condição de “irregularidade” para se
desfazer do negócio.
Aí ontem o homem chegou até falando que ele queria isso aí fechado. Aí eu
disse: rapaz é o seguinte, eu não vou fechar aqui não que eu não vou
arriscar minha vida aqui não. Eu só não vou desmanhar o negócio porque
ainda vai fazer um mês. Mas eu vou fazer um cambalacho aí, vou dizer que
a HABITAFOR tá botando boneco e ainda vou deixar ele aí janeiro, né?
Porque eu não tô tendo paciência não, liga esse som de manhã, emenda
pra de noite que ô meu Deus do céu. Quando era comigo eu só abria na
hora que os homens chegavam pra beber, quatro horas da tarde, três horas.
(ENTREVISTA nº 07, 17/11/2011).
Essas saídas encontradas pelos moradores para burlar o que está
imposto pelo Poder Público são como as “táticas” definidas por De Certeau (1994),
128
que diferentemente das “estratégias”, “não dispõem de base onde capitalizar os
seus proveitos, preparar suas expansões e assegurar uma independência em face
das circunstâncias.” (P.46). As “táticas” são desenvolvidas de acordo com o tempo e
com as oportunidades:
A tática depende do tempo, vigiando para “captar no vôo” possibilidades de
ganho. O que ela ganha, não o guarda. Tem constantemente que jogar com
os acontecimentos para os transformar em “ocasiões”. Sem cessar o fraco
deve tirar partido de forças que lhe são estranhas. Ele o consegue em
momentos oportunos onde combina elementos heterogêneos (...), mas a
sua síntese intelectual tem por forma não um discurso, mas a própria
decisão, ato e maneira de aproveitar a “ocasião”. (P.47)
Valladares (1980) em análise das formas de manipulação a que é
submetido o favelado antes e durante o processo de remoção, bem como de sua
capacidade em criar formas próprias e originais de contramanipulação, o que o
Poder Público nomeia como “irregularidades”, a autora as chama de “práticas de
distorção”:
As práticas de distorção desenvolvem-se sub-repticiamente, mesmo que em
alguns casos sejam oficiosamente reconhecidas. São práticas “invisíveis”,
que implicam engenhosidade, esperteza e discrição, possuindo uma
racionalidade e lógica próprias. Enveredar-se por um dos circuitos dessas
práticas implica antes conhecê-lo minuciosamente e dispor-se a assumir os
possíveis riscos. As práticas de distorção pressupõem, ainda, um cálculo
prévio e uma capacidade de adaptação a cada etapa de seu processo.
(P.120).
Esse risco é assumido também por um senhor que recebeu um ponto
comercial, expandiu o negócio em razão do aumento da clientela no novo local e
assumiu o risco de comprar o ponto comercial vizinho ao dele, onde derrubou uma
parede e fez a ampliação do seu comércio. Relata que a HABITAFOR o notificou e
já está respondendo processo por isso, mas declara que vai até o fim, pois “a
prefeitura precisa saber que todo negócio tende a crescer, não pode ficar estagnado
não”.
De fato, a prática de certos programas de governo em aplicar regras
gerais sem considerar especificidades é um entrave para operacionalização de
muitas ações. É inconcebível não se prever o crescimento de um comércio após a
transferência de famílias para um conjunto habitacional. Devem ser criadas
129
estratégias para identificar os pontos comerciais que realmente possuem condições
objetivas de crescimento. Existem estudos econômicos capazes de realizar esse
diagnóstico.
Encontramos em alguns moradores os atributos de “engenhosidade,
esperteza e discrição”, a que se refere Valladares (1980), na sutileza das
informações, principalmente nos casos considerados “irregulares” pelo Poder
Público.
Fomos surpreendida numa das últimas visitas por uma das informantes
que muitas vezes nos acompanhou durante nossas idas aos conjuntos. A todo o
momento ela nos dizia que o seu apartamento ficava no Conjunto Planalto Universo,
porque residia no “Surrão” e fora uma das primeiras famílias a ser transferida. Para
justificar o fato de que sempre nós a encontrávamos nos arredores do Conjunto
Maravilha, dizia que era porque sua mãe morava lá.
Certa vez resolvemos fazer uma visita ao Conjunto Planalto Universo para
perceber as diferenciações entre os três conjuntos – Planalto Universo, Nossa
Senhora de Fátima e Maravilha. Saímos então procurando pelo seu apartamento.
Começamos a achar estranho o fato de ninguém conhecê-la, já que ela era uma
pessoa bastante popular nos outros dois conjuntos.
Depois de perguntar a muitas pessoas, uma delas nos relatou que ela
morava no Conjunto Nossa Senhora de Fátima e que seu apartamento era ocupado
por seu irmão. Retornamos ao Conjunto Nossa Senhora de Fátima e perguntamos a
uma moradora onde ficava seu apartamento; ela nos orientou e, quando lá
chegamos, percebemos que ficou muito assustada ao nos ver. Justificou que estava
passando uma temporada com sua mãe, desde que foi acometida por um problema
grave de saúde e que seu apartamento estava ocupado com seu irmão, fato nunca
revelado em nossas conversas.
Notamos nas situações encontradas na Maravilha um intenso vínculo das
pessoas com o lugar. Os poucos casos de venda localizados se deram por situações
deveras conflitantes nas quais os moradores encontraram na venda a última solução
para resolução de seus problemas.
Valladares (1980) afirma que há um preconceito de que a classe
trabalhadora urbana exibe uma ideologia individualista nas relações com o sistema
130
de habitação, “agindo como pequenos capitalistas interessados em auferir rendas
altas com a venda da casa ‘popular’, o que corrobora a ideia corrente de que é
incapaz de agir enquanto classe”. Segundo a autora, essa conclusão precisa ser
revista. (p.79).
Zaluar (2000) exprime que a possibilidade de negociação da casa não
deve ser vista como uma forma de criminalização ou alienação do sujeito. Na
sociedade atual, todos os objetos, assim como a casa, possuem valor de uso e de
troca que são medidos em termos monetários. O fato de alguém vender a casa,
caso esta seja a melhor solução, “não é motivo para que se diagnostique ausência
de espírito coletivo, incapacidade de se identificar com uma classe social, etc”. Este
comportamento apenas traduz a relação dos indivíduos com os objetos que lhe
pertencem e não como termômetro da sua consciência de classe, nem o indicador
de sua alienação (P. 82-83).
Quanto às trocas e ampliações, bem como as negociações entre os
pontos comerciais, estas foram realizadas em sua maioria entre moradores da
própria Maravilha, numa tentativa de organização e adaptação a nova forma de
morar.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
131
A nossa primeira visita como pesquisadora à comunidade Maravilha após
a urbanização ocorreu no dia 29 de abril de 2011. De lá para cá foram nove meses
de “gestação” deste trabalho científico que incluíram novas visitas, entrevistas,
transcrições, análises, leituras e releituras, na tentativa de compreender as
mobilidades encontradas na comunidade.
Debruçamo-nos no tema com o propósito de chegar ao objetivo principal
desta pesquisa, que é compreender as práticas de comercialização das unidades
habitacionais pelos usuários da Política de Habitação de Interesse Social em
Fortaleza.
Como já possuíamos uma experiência como assistente social na área da
habitação e já havia uma inquietação acerca da comercialização dos imóveis nos
diversos conjuntos de habitação de interesse social, partimos para a pesquisa com o
intuito de desvendar os motivos que levam os moradores desses conjuntos a
negociar seus imóveis.
A escolha pelo Projeto de Urbanização da Maravilha aconteceu pelo fato
de considerá-lo um dos mais completos em termos de estrutura física, social e
jurídica, além das famílias terem sido transferidas para locais muito próximos de
onde residiam. Como percebíamos que já havia uma incidência de vendas entre as
famílias da primeira etapa de remoção que foram transferidas para o Conjunto
Planalto Universo, selecionamos os conjuntos Nossa Senhora de Fátima e Maravilha
como campo de investigação para a pesquisa, pelos motivos já mencionados, bem
como por não termos a possibilidade de ouvir a justificativa de que a venda da casa
decorra da distância em que foram realocados.
Notamos, ao realizar este estudo, que tanto os moradores como o Poder
Público apontam poucos casos de vendas em relação aos demais conjuntos
habitacionais, principalmente no que se refere aos apartamentos. A pesquisa
confirmou essa quantidade reduzida de casos nos conjuntos investigados, o que nos
conduziu a observar que há uma diferenciação intraconjuntos que já se delimita e é
apontada desde o período em que residiam nos locais de origem.
A distância entre o local de origem e o novo lugar de reassentamento é
um dos fatores importantes na permanência das famílias nos conjuntos habitacionais
132
entregues pelo Poder Público. As famílias estabelecem elos de vizinhança e uma
estrutura de vida local organizada, especialmente quando residem há um tempo
considerável para o fortalecimento desses vínculos.
Quando são transferidas para locais distantes, necessitam constituir
novos laços, assim como investir recursos para sua locomoção até os locais de
trabalho, que muitas vezes são empregos informais ou bicos que foram
estabelecidos nos arredores da comunidade sem necessidade de gastos com
transporte.
O tempo de residência ainda na favela é um fator preponderante que vai
influir também na sua permanência no conjunto. Os moradores vão aos poucos
melhorando suas residências, enfrentando juntos diversas situações de despejos
ocasionadas pela fragilidade jurídica de posse do terreno, que os aproximam na luta
pela permanência no local. Além dos vizinhos com quem estabelecem fortes laços,
os filhos e netos vão constituindo famílias e permanecendo no local.
Assim, o coletivo passa a representar uma rede de solidariedade
constituída na comunidade. Quando uma família decide vender seu imóvel, não há a
garantia de que esta relação permaneça com o novo morador, nem mesmo que ela
se estabeleça no seu novo local de moradia, pois há uma incerteza de inserção
numa outra rede de solidariedade que deverá ser novamente constituída.
Observamos essa quebra da rede de solidariedade em situações
apontadas pelos moradores quando ocorreu a tentativa de inclusão, por parte da
Prefeitura, de pessoas que não pertenciam à comunidade. Em um dos casos, os
moradores se manifestaram com barricadas para impedir que a família residisse no
conjunto, o que a deixou insegura em se estabelecer no local, chegando a solicitar à
equipe da HABITAFOR para levá-la para outro conjunto, conforme relato dos
moradores.
Outra situação semelhante ocorreu no Conjunto Nossa Senhora de
Fátima, quando a Prefeitura colocou uma família proveniente de outra comunidade
em um dos apartamentos que estava fechado e com suspeita de venda. A família
decidiu realizar uma troca com uma antiga moradora da Maravilha que estava
morando no Conjunto Maria Tomásia.
133
Deste modo, observemos que essas famílias que não eram da Maravilha
não foram bem aceitas pelos moradores dos conjuntos pesquisados, pois eram
estranhas ao grupo já “estabelecido”, portanto, considerados outsiders numa análise
inspirada em Elias e Scotson (2000).
As trocas são situações comuns que as identificamos tanto entre
moradores de um mesmo conjunto, como entre conjuntos destinados aos residentes
da favela Maravilha – Planalto Universo, Nossa Senhora de Fátima e Maravilha.
Vale destacar alguns casos de trocas encontrados também com
moradores do Conjunto Maria Tomásia. Trata-se, porém, de pessoas que residiam
na antiga Maravilha e que construíram suas casas após o cadastramento ou não
foram identificadas como necessidade de moradia pelo Poder Público. Como
ingressaram em busca desse direito por meio do Ministério Público e Defensoria
Pública, elas foram contempladas com a casa, porém, no Conjunto Maria Tomásia,
localizado numa área muito distante do local onde residiam.
As famílias que vieram do Conjunto Maria Tomásia, para conseguirem
retornar à Maravilha, trocaram suas casas com famílias que foram incluídas no
Conjunto Nossa Senhora de Fátima e Maravilha e que não faziam parte da antiga
favela, porém, segundo técnicos da HABITAFOR, pertenciam à lista de espera por
moradia.
Dentre os casos de vendas observados, encontramos situações que
levaram o proprietário a se desfazer do imóvel por conta da violência. Mesmo
dizendo que a favela é um lugar heterogêneo ainda para a maioria dos moradores
desse tipo de assentamento as dificuldades relacionadas ao saneamento, lazer,
educação, saúde, são muito próximas, o que dificulta a inserção de muitos no
mercado de trabalho.
As refrações da questão social representadas pelo desemprego,
violência, criminalidade, dentre outras, contribuem para que o cidadão, muitas vezes
destituído de opções, negocie ou até abandone a casa, que um dia foi palco de
grandes lutas e de uma grande conquista.
Quanto aos pontos comerciais, existem negociações de toda ordem, tais
como: aluguéis, vendas, trocas e pontos comerciais fechados. Notamos que a
comunidade não considera “irregular” essa negociação quando acontece em relação
134
aos pontos comerciais e, principalmente, quando os envolvidos na negociação forem
moradores da própria Maravilha.
Por parte do Poder Público, cabe uma compreensão de que os pontos de
comércio possuem uma possibilidade real de crescimento, principalmente quando
inseridos no novo local, haja vista que a urbanização favorece um aumento da
demanda, ensejando uma contingência na ampliação deste comércio. Por isso, a
distribuição dos pontos comerciais deveria ter critérios específicos de (re)alocação.
De início, os moradores dos condomínios de classe média que se situam
ao redor do Conjunto Nossa Senhora de Fátima apresentaram “efeitos de
estranhamento”, expressão apontada por Abramo (2003) como “manifestações de
preconceito e discriminação dos grupos de maior poder aquisitivo”. Notamos,
contudo, nas visitas de campo, que alguns pontos comerciais, principalmente os que
se localizam defronte às ruas e avenidas principais, são utilizados também por esses
vizinhos de classe média e isso é citado com orgulho pelos donos dos
estabelecimentos.
Os pontos comerciais externos ao conjunto também constituem momento
de aproximação com a vizinhança do entorno, que já dividia com os moradores da
Maravilha os serviços oferecidos por alguns comércios, como padaria e farmácia,
por exemplo.
Vale salientar que os laços também são estabelecidos por meio dos
serviços domésticos e biscates de pessoas da comunidade nas casas e
condomínios das famílias de classe média e alta nas proximidades da Maravilha, o
que fortalece a ideia de permanência no local mediante a facilidade de contato já
estabelecida em relação a esse mercado de trabalho informal.
As transformações no imóvel após o recebimento constituem uma forma
encontrada pelos moradores para se identificarem com o lugar e tornarem o
apartamento mais confortável, agradável e adequado ao uso da família. Essas
modificações acontecem no ritmo de cada família, seja pela sua renda ou pelo nível
de prioridade que impõe às reformas no imóvel. Observamos, porém, que a maioria
dos apartamentos já passou por alterações que expressamos aqui, por ordem de
maior quantidade de reformas: reboco das paredes, revestimento dos pisos,
cerâmica nas paredes das cozinhas e banheiros, tetos de gesso, dentre outros.
135
As reformas consideradas “irregulares” pela Prefeitura estão sendo
combatidas com a visita de fiscais da Prefeitura, notificações e até destruição da
obra, caso haja resistência dos moradores. Existem alterações, porém, como
“puxadinhos” feitos por moradores que residem no último pavimento, com
construção de uma escada interna para dar acesso ao novo compartimento do
imóvel que pode se transformar numa área de serviço, num quarto ou até mesmo
numa área de lazer que são mais difíceis de identificação e fiscalização pelo Poder
Público.
Com relação à titularidade do imóvel e as regras impostas pela Prefeitura,
os moradores demonstram ter um conhecimento satisfatório sobre o que é ou não
permitido. Relatam que a pessoa deve utilizar o imóvel para sua moradia, e este
passará de pai para filho, não sendo permitido vender, alugar ou mantê-lo fechado.
Reconhecem também a possibilidade das trocas, contanto que sejam comunicadas
à Prefeitura para regularizar a situação.
Compartilham, no entanto, a ideia de que a vida possui seu dinamismo, e
que em determinadas situações algumas famílias precisam se desfazer do imóvel
para reconstruir sua história em outro local. Muitas vezes a burocracia imposta pelo
Estado não permite que esse trâmite aconteça conforme espera o Poder Público, ou
seja, que a pessoa devolva o imóvel e aguarde novamente na lista de espera ou
aguarde que a Prefeitura proporcione uma troca em outro local. Portanto, em
determinadas situações, cabe ao Poder Público um olhar diferenciado de acordo
com a delicadeza que o caso requer.
A respeito da transformação do uso do solo, recordamos que durante a
pesquisa, ao comentar sobre a realização deste estudo e relatar que o nosso campo
de pesquisa era a Maravilha, evocamos uma pessoa que comentou sobre um
parente que residia em um conjunto de classe média - Conjunto Santa Bárbara vizinho ao Conjunto Nossa Senhora de Fátima, e teve conhecimento de que muitos
apartamentos haviam sido colocados à venda por conta da chegada dos novos
vizinhos.
Ressaltamos, também, no entanto, que esse conjunto ficou destacado
quando da construção do Conjunto Nossa Senhora de Fátima, devido ao seu estado
de deterioração por conta do tempo de construção. Havia pessoas que comentavam
136
que o conjunto de classe média tinha aspecto de “favela” quando comparado ao
Nossa Senhora de Fátima. Atualmente, o Santa Bárbara passa por uma reforma de
pintura e revestimento das paredes externas.
Os moradores da antiga favela Maravilha já eram vizinhos dos moradores
do Santa Bárbara e dos demais, apenas atravessaram a BR 116 após a urbanização
e ficaram visíveis à cidade, que se apresenta historicamente desigual na distribuição
dos serviços, apesar de heterogênea em sua composição. Raramente se identifica
um bairro sem que haja algum assentamento precário em sua composição. Os
condomínios de luxo se entrecruzam com as favelas e essa diferenciação é
destacada também nos serviços públicos diferenciados, mesmo situados no mesmo
local.
Essa diversidade que compõe as cidades também se encontra nas
favelas e, aqui nos detemos na favela Maravilha, que se apresenta como uma
comunidade heterogênea em sua composição original, onde existiam famílias que se
formaram na própria Maravilha, que vieram de outros bairros de Fortaleza, de outros
municípios e até de outros estados. As casas também apresentavam diversas
tipologias que tinham relação entre os principais aspectos com o tempo de
permanência na favela e com a renda familiar disponível para melhoria das
autoconstruções.
Portanto, na mudança para o conjunto, famílias que muitas vezes
sobreviviam apenas do benefício do Bolsa Família se depararam com despesas
obrigatórias, como água, esgoto, luz e gás. A precariedade dessas famílias as torna
mais vulneráveis a se desfazerem do imóvel, principalmente sem um aporte de
políticas públicas que possam subsidiar essa mudança de vida, em especial quanto
à qualificação de mão de obra e de geração de emprego e renda.
Observamos que para haver sucesso nas intervenções, o Poder Público
deve atuar na elevação do nível de capital humano que permita a sustentabilidade
dos moradores, de forma que essa comunidade possa crescer e garantir uma
geração de renda que subsidie sua permanência na nova moradia.
Salientamos que as situações de maior precariedade na Maravilha
estavam localizadas nas famílias que residiam no “Surrão” e que foram transferidas
na primeira etapa de transferência para o Conjunto Planalto Universo que, apesar de
137
não ter sido locus desta pesquisa, foi bastante citado pelos moradores como uma
área de muitos casos de vendas e aluguéis.
A existência do trabalho social é apontada pelos moradores como um
fator de positividade na adaptação e permanência dos moradores nos conjuntos
Nossa Senhora de Fátima e Maravilha, denotando que a casa por si só não reduz as
diferenças socioespaciais. Tendo como eixos a mobilização e organização
comunitária, a educação sanitária e ambiental e a geração de trabalho e renda, o
trabalho social aumenta as probabilidades de inserção dessas famílias em relações
favoráveis com o entorno.
O Projeto de Urbanização da Comunidade Maravilha destaca-se pela
conjunção nas ações sociais, urbanísticas e jurídicas, além de trazer como potencial
para melhoria na qualidade de vida das famílias o fato de estas serem transferidas
para conjuntos habitacionais na própria área de origem ou no entorno próximo, o
que facilita a permanência das famílias no local.
Percebemos durante a pesquisa que alguns moradores atribuem à casa
um símbolo de resistência e trabalho, principalmente para aqueles moradores mais
antigos na favela que se valeram desta luta para garantir melhores condições de
moradia durante a transferência para o conjunto habitacional. A maioria dos
entrevistados, porém, também considera o imóvel como dádiva de Deus, como algo
santificado, ainda que reconhecendo um esforço de governo, considerando os anos
de promessas do Poder Público para solucionar o problema de moradia dos
moradores da favela Maravilha.
Destacamos, no entanto, também aqueles moradores que tiveram de
ressignificar suas vidas com a mudança para o conjunto habitacional e com as
limitações do novo tipo de moradia que é residir em apartamento. Moradores que
possuíam hortas e árvores frutíferas em seu quintal, por exemplo, procuraram
construir jardins ao redor dos blocos a fim de se identificarem com o novo local.
Muitas são as “táticas” utilizadas pelos moradores para burlar as
“estratégias” do Poder Público, dentre as quais as trocas, os aluguéis, os
“puxadinhos”, a utilização dos espaços públicos, a ampliação da família durante o
cadastramento, as gambiarras de energia que permaneceram em alguns casos no
138
conjunto, os pontos comerciais formados de última hora e os processos através do
Ministério Público e Defensoria Pública.
Essas “táticas” vão de encontro às “estratégias” criadas pelo Poder
Público para garantir a adesão e permanência das famílias na nova moradia, tais
como: titularidade feminina, reassentamento da comunidade nas proximidades da
área de origem, cadastramento das famílias no próprio local de moradia,
“congelamento” dos imóveis, distribuição de cartão de identificação para família
cadastrada, inclusão do trabalho social nos projetos de habitação, cruzamento das
informações no cadastro unificado de beneficiários nos programas habitacionais,
orçamento participativo, campanha contra a comercialização dos imóveis e
aplicação da Lei nº 9294, que trata da Concessão de Direito Real de Uso – CDRU.
Neste propósito, ensaiamos a finalização desta etapa do trabalho que não
tem a intenção de criminalizar ou santificar os operadores da política de habitação,
tampouco os beneficiários desta. Nossa pretensão foi, sobretudo, compreender as
práticas de comercialização das unidades habitacionais pelos usuários da Política de
Habitação de Interesse Social em Fortaleza, de forma a desvendar as “estratégias”
utilizadas pelo Poder Público e as “táticas” dos moradores para dar sentido à
moradia, diante do arcabouço burocrático e regulador do Estado.
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APÊNDICE
Relação de Entrevistados
I.
Moradores
1. Moradora do Conjunto Nossa Sra. de Fátima, 65 anos, dona de casa
2. Moradora do Conjunto Nossa Sra. de Fátima, 49 anos, proprietária de ponto
comercial (lanches)
3. Moradora do Conjunto Nossa Sra. de Fátima, 35 anos, vendedora, liderança
comunitária
4. Morador do Conjunto Nossa Sra. de Fátima, 23 anos, artesão e cabeleireiro,
com ponto comercial improvisado
145
5. Moradora do Conjunto Maravilha, 61 anos, dona de casa
6. Morador do Conjunto Maravilha, 38 anos, vigilante, Presidente da Associação
dos Moradores da Maravilha
7. Moradora do Conjunto Nossa Sra. de Fátima, 60 anos, proprietária de ponto
comercial, no momento da entrevista se encontrava alugado para terceiro
8. Moradora do Conjunto Maravilha, 34 anos, auxiliar de enfermagem
9. Moradora do Conjunto Maravilha, 44 anos, auxiliar de saúde bucal
10. Moradora do Conjunto Maravilha, 50 anos, serviços gerais, liderança
comunitária
II.
Técnicos e gestores da HABITAFOR
1. Assistente Social, Gerente da Célula de Atendimento Social desde 2009, com
ingresso na HABITAFOR desde 2006.
2. Advogada, Coordenadora do Setor de Regularização Fundiária desde 2009,
com ingresso na HABITAFOR desde 2006.
3. Advogada, Técnica da Regularização Fundiária, atuando na HABITAFOR
desde 2007.
4. Advogada, Assessora Jurídica desde 2010, com ingresso na HABITAFOR
desde 2009.
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