BLIMUNDA: um outro olhar sobre a história Marina Ávila Birriel (UFSM) Janete Bolzan (UNIFRA) Este trabalho é fruto de uma leitura conjunta da obra Memorial do Convento (1982), do escritor José Saramago, realizada por um grupo de estudos da UFSM que discute o romance português contemporâneo. Esse grupo está vinculado ao projeto O Romance Português Contemporâneo e a Problematização da História, apoiado pelo Pibic/CNPq e orientado pela Professora Doutora Raquel Trentin Oliveira. A obra Memorial do Convento que concedeu o Prêmio Nobel de 1998 ao escritor José Saramago apresenta uma narrativa que se aproxima do romance histórico contemporâneo. O texto apresenta uma releitura de caráter crítico da história oficial, pautada pela carnavalização paródica e a superposição de tempos históricos e de diferentes perspectivas. 1 Com isso, Saramago opera, em sua obra, uma dessacralização do passado, rebaixando o valor dos eventos e das personagens históricas, ao mesmo em tempo que eleva personagens simples e desconhecidas, buscando, como já o fizera em outras obras, “as falas minoritárias, a história dos vencidos: esquecidos da História, acordados pela ficção” (CERDEIRA DA SILVA, 1991:174) Memorial do Convento transfigura um período da história do Portugal do século XVIII, por cerca de 30 anos, tendo como plano de fundo a construção do Convento de Mafra, que ocorre devido a uma promessa feita por D. João V aos franciscanos. Concomitantemente à construção do Convento, o Padre Bartolomeu, personagem que alia religião e ciência, está a construir uma passarola – máquina para voar. Para a construção dessa máquina, Bartolomeu conta com o auxílio de duas personagens, Blimunda SeteLuas, uma visionária e Baltasar Sete-Sóis, um ex-soldado maneta, companheiro de Blimunda, que aderem ao sonho de voar na máquina, cujo combustível para alçar voo era a vontade humana. Blimunda possuía um dom sobre-humano que, quando em jejum, 1 Segundo Esteves (2010) o novo romance histórico caracteriza-se por algumas peculiaridades, sinteticamente seriam dez, dentre as quais está a releitura crítica da história, a superposição de tempos históricos diferentes e a degradação de mitos fundacionais, normalmente feita através de ironias, paródias ou pastiches. 351 permitia-lhe enxergar a estrutura das coisas, a essência delas, o que incluía enxergar as vontades contidas em cada ser, representadas fisicamente por uma nuvem fechada no interior dos indivíduos. Cabe, então, a ela recolher duas mil vontades para que, finalizada a passarola, esta pudesse subir aos céus. Recolhidas as vontades, a máquina alça voo, sobrevoa Portugal e desce. Padre Bartolomeu, com medo da perseguição do Santo Ofício, por ser considerada heresia a obra construída, enlouquece e foge. Baltasar e Blimunda passam a viver em Mafra, quando Baltasar começa a trabalhar na construção do Convento. É interessante notar que as primeiras personagens a serem introduzidas na narrativa, logo nos primeiros capítulos, pertencem à nobreza e ao clero, visto que a obra inicia abordando a vida conjugal do rei e da rainha, e em seguida apresenta o padre ao qual o rei promete construir o Convento de Mafra. Já no capítulo três, o narrador passa a enfocar o povo do século XVIII, apresentando a cidade de Lisboa a partir dele, assim como os exsoldados Baltasar, Sete-Sóis e João Elvas, a degredada Sebastiana e a visionária Blimunda. O Padre Bartolomeu fica na divisa entre a classe alta e o povo, pois transita livremente entre ambos. Dividindo as personagens nessas duas classes, percebemos dois movimentos valorativos sendo exercidos na narrativa e que provocam uma inversão de concepções e expectativas. Primeiramente, o narrador tende a dessacralizar as figuras históricas do rei e da rainha, assim como o clero, sobretudo através da ironia e da paródia, num processo de rebaixamento do que seria nobre e o sagrado segundo os preceitos da época; já num segundo momento, o narrador inicia o processo de sublimação das personagens que seriam as mais simples, a arraia miúda da sociedade, acentuando seus valores nobres. A partir da apresentação das personagens, através desses movimentos inicialmente separados, a dessacralização e a sublimação passam a mesclar-se ao longo do texto, ora dando ênfase a um, ora a outro. Blimunda, nosso objeto de análise, é a última personagem principal a ser apresentada, isso sugere que ela ocuparia o lugar mais baixo da hierarquia social. Além disso, a personagem é introduzida na narrativa através das palavras de sua mãe, uma condenada pelo Tribunal da Santa Inquisição, e enquanto tal, estigmatizada como chaga e escória da sociedade. Naturalmente, esse vínculo maternal aproximaria Blimunda do rebaixamento social. No entanto, o romance quebra a expectativa de manter a tal hierarquia social da época e adota, em seu lugar, uma hierarquia de valores na qual as personagens 352 periféricas ocupam o topo, fator principal da sublimação. Contudo, a sublimação das personagens periféricas, não se dá apenas por isso, sendo também importante considerar outros aspectos, como a própria construção das personagens. Observemos, então, como a narrativa promove essa inversão, a partir da construção Blimunda. Segundo a nossa compreensão, a marca mais relevante dessa personagem é seu dom especial de enxergar o mundo de uma forma diferente, de conseguir ver, quando em jejum, a estrutura das coisas e dos seres, bem como a vontade humana dentro dos indivíduos. Esse dom a diferencia das pessoas comuns, elevando-a a um patamar único, como afirma o próprio Saramago em entrevista ao Jornal de Letras, em maio de 1990: [...] seria uma primeira razão a de ter procurado um nome estranho e raro para dá-lo a uma personagem que é, em si mesma, estranha e rara. De facto, essa mulher a quem chamei Blimunda, a par dos poderes mágicos que transporta consigo e que por si sós a separam do seu mundo, está constituída, enquanto pessoa configurada por uma personagem, de maneira tal que a tornaria inviável, não apenas no distante século XVIII em que a pus a viver, mas também no nosso próprio tempo. Ao ilogismo da personagem teria de corresponder, necessariamente, o próprio ilogismo do nome que lhe ia ser dado. Blimunda não tinha outro recurso que chamar-se Blimunda. […] Assim sendo, a possível hipótese inicial de que Blimunda representaria a mulher comum da classe baixa do século XVIII cai por terra, visto que sua constituição visa alcançar muito além de uma mera imitação ou aproximação. Blimunda realmente não se encaixa na categoria de indivíduo banal, é uma personagem impossível e fora do tempo. Seu poder fantástico, suas percepções e pensamentos originais diferenciam-na do povo simples de qualquer época. Longe de compor um retrato facilmente decifrável, Blimunda revela-se um ser complexo e profundo, de uma sensibilidade intensa e uma emotividade excêntrica, para o que contribui a falta de uma caracterização direta do narrador sobre ela e de uma explicação sobre os mistérios que a envolvem. O dom da protagonista relaciona-se diretamente com o motivo do olhar, o qual, para Chevalier e Geerbrant, é “o símbolo e instrumento de uma revelação. Mais ainda, é um reator e um revelador recíproco de quem olha e de quem é olhado” (CHEVALIER, 2009:653). Perfeitamente coerente com essa ideia, os olhos de Blimunda revelam, não revelando, parte de sua própria personalidade e revelam o outro na sua mais pura essência. No início de sua apresentação, sob a perspectiva de sua mãe, encontramos a 353 primeira referência aos olhos de Blimunda, “não fales Blimunda, olha só, olha com esses teus olhos que tudo são capazes de ver […]” (SARAMAGO, 2011:51), antecipando, sem explicar, o poder que nos será revelado ao longo da narrativa e criando certa expectativa sobre tal elemento. A partir daí, ganham importância as percepções de diversas personagens sobre o olhar de Blimunda, especialmente no que diz respeito à coloração de seus olhos, como, por exemplo, a percepção da família de Baltasar Sete-Sóis: […] subitamente conscientes do estranho ar da rapariga, com aquele cabelo ruço, injusta palavra, que a cor deles é a do mel, e os olhos claros, verdes, cinzentos, azuis quando lhes dava de frente a luz, e de repente escuríssimos, castalhos de terra, água parda, negros se a sombra os cobria ou apenas aflorava […] (SARAMAGO, 2011:100) Esta passagem, entre outras, aponta para a impossibilidade de definir a cor dos olhos de Blimunda, não nos permitindo afirmar categoricamente “são assim”. Os olhos da personagem possuem, por assim dizer, uma cor mutável, e essa indefinição corrobora para a construção de uma personagem excêntrica e única, tendo refletido nos olhos seu interior indefinível. Considerando a citação supracitada de Chevalier e Geerbrant, vemos na alternância de cores de seus olhos um indício de sua psicologia, dado que as alternâncias ocorrem de acordo com “o pensamento de dentro”, como afirma Baltasar, podendo os seus olhos se mostrarem como “duas fontes de água”, “claros de cinzento, ou verde, ou azul”, e “às vezes tornam-se negros noturnos ou brancos brilhantes”. Esse olhar de diversas matizes pode ser lido como sinal de uma visão caleidoscópica, composta de diferentes ângulos e perspectivas, sem privilegiar um ou outro ponto de vista, e assim capaz de obter uma imagem mais ampla da sociedade. Tal sentido se relaciona à maneira como Blimunda revela o outro, denunciando valores da sociedade em que está inserida. Para entendermos esse aspecto, é importante atentar, primeiramente, para a diferenciação estabelecida, na narrativa, entre os verbos “olhar” e “ver, como explica Blimunda a Baltazar neste excerto: “eu não te quero ver por dentro, só quero olhar pra ti”(SARAMAGO, 2011:79). O termo “olhar” define sua visão quando não está em jejum e enxerga como as pessoas comuns, ao passo que o termo “ver” é associado ao seu ato de enxergar as coisas como são na sua essência, ao seu poder especial de enxergar por dentro das coisas e dos seres, que os homens em geral não 354 possuem. Então, o que a personagem vê? Vê o corpo humano na sua organicidade física. No momento em que explica para Baltasar seu poder, afirma que vê “sacos de excrementos e de vermes” e, após coletar vontades dos moribundos de Lisboa, não deseja sequer se deitar com ele devido a uma “consciência excessiva dos órgãos internos, como se estes lhes tivessem saído para fora da pele” (SARAMAGO, 2011:176). O corpo humano é, desde os primórdios da Igreja, negado e rebaixado por ela. Buscando trazer o homem para mais perto de Deus, do plano divino e etéreo, a Igreja privilegia a alma e os aspectos espirituais do homem, e considera sujo, vergonhoso e impuro tudo aquilo que se vincula ao corpóreo. Blimunda, com sua capacidade de ver, parece ser, então, o instrumento por meio do qual Saramago inverte esse padrão cristão, revelando da maneira mais crua possível o que o ser humano realmente é, na sua mais pura essência: carne, vísceras, excrementos. A diferenciação das duas ações, tão similares e tão diferentes ao mesmo tempo, permite também significar a maneira de ver típica da sociedade da época. O essencial, aquilo que estava por trás das intenções da nobreza, das crenças do clero, a verdadeira condição dos condenados e pobres era apenas olhado, não visto. Pelos olhos de Blimunda é que o verdadeiro toma forma, não apenas por ela ver a estrutura das coisas, mas também porque essa visão lhe permite reconhecer o mundo de uma forma diferente. Ela é uma personagem desvinculada de qualquer dogma, instituição, doutrina, ideologia, valores preconcebidos seja pela sociedade ou pela igreja. O mundo que percebe através de sua visão extraordinária e dos sentidos é tal como o é, sem contaminação de valores préestipulados. Ao explicar seu dom para Baltasar, diz Blimunda: “O meu dom não é heresia, nem é feitiçaria, os meus olhos são naturais […] eu só vejo o que está no mundo, não vejo o que é de fora dele, céu ou inferno, não digo rezas, não faço passes de mão, só vejo [...]” (SARAMAGO, 2011:75). Assim, percebemos que a visão de Blimunda limita-se a ver apenas o que está no mundo, de uma maneira crua e por vezes até mesmo inocente, pois não há julgamentos, falsas moralidades, sobre aquilo que vê; o mundo é natural para ela, assim como seus olhos e seu dom. Pensando nessa hipótese da pureza de Blimunda, cabe ainda lembrar que o jejum é condição indispensável para que exerça seu dom e que o consumo do pão lhe assegura a visão comum. Ao ingerir o alimento, forjado pelas mãos do homem, Blimunda contamina- 355 se com o mundo exterior, saindo de seu estado natural, o que parece funcionar como uma metáfora para a contaminação do ser, que abandona seu estado original pelo contato com o mundo externo. Além disso, se relacionarmos o pão ingerido pela personagem ao pão eucarístico da Igreja Católica, relação explicitamente estabelecida em determinado trecho da narrativa, poderíamos inferir uma das intenções críticas do romance, dado que a personagem, contaminando-se com um elemento externo e cristão, torna-se parcialmente cega, deixando de enxergar o essencial do mundo. A percepção inocente de Blimunda explica também seus estranhamentos perante tantas situações sociais do século XVIII, especialmente em relação aos rituais católicos. Há dois momentos importantes para percebermos isso no texto. O primeiro situa-se no capítulo doze, em que Blimunda decide ir à missa em jejum, na intenção de ver na hóstia se Deus lá estava. No entanto, decepciona-se e, com os olhos cheios de lágrimas, diz a Baltasar: “Esperava ver Cristo crucificado, ou ressureto em glória, e vi uma nuvem fechada” (SARAMAGO, 2011:126). Blimunda não vê na hóstia o símbolo cristão, ela vê uma nuvem fechada que representa a vontade humana, sugerindo assim que os ritos cristãos são forjados pela vontade humana e alimentados por ela. Fica o questionamento: “Se o que está dentro da hóstia é o que está dentro do homem, que é a religião, afinal”? (SARAMAGO, 2011:126). O segundo momento revelador do mesmo sentido encontra-se no capítulo 23, em que a personagem visita o círculo de estátuas religiosas com Baltasar. Blimunda vai olhando as estátuas, tentando adivinhar quem elas estão representando, no entanto, tem dificuldades para reconhecer algumas, e outras nem mesmo reconhece, demonstrando assim seu pouco conhecimento sobre as imagens dos Santos, que são para ela apenas estátuas, sem a conotação sagrada com que os outros as olham, tanto que afirma: “do que eu gostava era vê-las descer daquelas pedras e ser gente como nós” (SARAMAGO, 2011:321). Tais visões, somadas à sua personalidade livre de moralismos e preconceitos, permitem-lhe ter pensamentos originais, como constatamos em seu diálogo com Baltasar: Sempre ouvi dizer que os santos são necessários à nossa salvação, Eles não se salvaram, Quem te disse tal, É o que sinto dentro de mim, Que sentes tu dentro de ti, Que ninguém se salva, que ninguém se perde, É pecado pensar assim, O pecado não existe, só há morte e vida […] (SARAMAGO, 2011:322) 356 Blimunda não compreende os conceitos preestabelecidos pela sociedade ou pela igreja, que ensina sua doutrina através de símbolos como a hóstia e as imagens de santos, e esta sua “ignorância” permite sugerir o quanto de convencional e intencional está por trás do poder institucionalizado. Ao fim, percebemos que a qualificação e a funcionalidade diferencial de Blimunda elevam-na ao papel de protagonista, numa subversão de valores que sugere um determinado posicionamento crítico perante o contexto histórico que alimenta o romance. Saramago serve-se do olhar dessa personagem como instrumento para revelar aquilo que é oculto aos olhos de um observador comum, revelando-se sua visão sobre-humana como a mais naturalmente humana. Apenas ela, dotada de um dom especial, é capaz de ver a verdadeira essência do homem, aquilo que ele verdadeiramente é. Mas, afinal, o que o homem realmente é, segundo as ideias pressupostas em Memorial do convento? O homem é um ser composto de corpo físico e vontade, ideia que contraria a ideologia cristã do século XVIII. O homem é, realmente, o que está nele, o mundo é, realmente, aquilo que está nele, e não as construções inventadas pela sociedade, não os falsos moralismos, não as imagens de pedra, nem os símbolos, nem a alma, o homem é carne e vontade, e ser isto não é pecado, é natural. A construção dessa personagem é, assim, mais uma das estratégias do romance saramaguiano para alcançar a recriação e a problematização da História portuguesa, mostrando ao leitor um outro lado da História. REFERÊNCIAS BAKHTIN, M. M.. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2008. CERDEIRA DA SILVA, T. C. José Saramago : a ficção reinventa a história In: Revista Colóquio/Letras. Notas e Comentários, p.174-178, abr. 1991. COELHO, N. N.. Linguagem e ambiguidade na ficção portuguesa contemporânea In: Revista Colóquio/Letras. Notas e Comentários, p.68-74, mar. 1973. 357 COELHO, T. A. C. Uma leitura de Memorial do Convento de José Saramago. Venda Nova: Bertrand: 1997. ESTEVES, A. R. O romance histórico contemporâneo brasileiro (1975-2000). São Paulo: Ed: UNESP, 2010. LOPES, J. M. Saramago – biografia. São Paulo: Leya, 2010. OLIVEIRA FILHO, Odil José de. 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