Latusa Digital Nº 47 / Ano 8 -‐ Dezembro de 2011 -‐ ISSN 2175-‐1579 “Esse Outro que me agita no seio de mim mesmo”, en-cena1 Ana Martha Wilson Maia A peça se inicia com um sujeito trocando de roupa. Ele quer voltar para casa. Planejou a fuga e é surpreendido pelas vozes. “Ah, vocês aqui? Mas eu não estou mais lá dentro. Tá, vou falar o que vocês querem, mas pela última vez! (vira para a plateia) Me desculpem os médicos, enfermeiros, assistentes sociais, psicólogos mas loucos somos todos nós”. Através de esquetes, o roteiro expõe diversas situações em que um sujeito pode ser tomado por louco, não importa quem seja, de que estrutura se trate. Lança perguntas ao espectador: você no lugar dele não faria o mesmo? Cada situação abre para outra e, ao final, depois de apresentar fatos que fazem parte da rotina destes pacientes, chegam os enfermeiros. Ele ainda conversa com as vozes, deixa que o levem e diz sorrindo: “só tomo se for Haldol!”. Lendo Extimidad, destaco que, se o paradoxo do Outro interior implica numa fratura da identidade “con uno mismo”, se o sujeito é este lugar de extimidade, “este Otro que me agita en el seno de mí mismo, es una formulación adecuada para toda loucura”2. Miller circunscreve que a psicose testemunha a céu aberto esta extimidade, no que ele chama, em vez de automatismo mental, “automatismo éxtimo” – formulação adequada também para a histeria, que a localiza no corpo, e a neurose obsessiva, no pensamento. Vale acrescentar, a peça inclui a toxicomania, há tempos, um enorme percentual de casos neste hospital. Observo que a relação entre o Outro dentro de mim mesmo e a loucura faz série com a foraclusão generalizada e a ideia de que todo mundo é louco3, assim como o conceito de delírio generalizado4. Seguindo uma indicação de Laurent5, encontro no capítulo dedicado ao racismo que há um resto do qual nem o historiador, nem o sociólogo dão conta, resto que Miller chama de “causas oscuras del racismo”6. 1 Trabalho apresentado no V Enapol. Rio de Janeiro, junho de 2011. 2 Miller, J-A. Extimidad. Buenos Aires: Paidós, 2010, p. 26. Lacan, J. “Transfert à Saint Denis?”. Em: Ornicar? Bulletin périodique du Champ Freudien, n. 1718. Paris, 1978, p.278. 4 Miller, J-A. “A psicose no texto de Lacan”. Em: Curinga, n. 13. Minas Gerais: EBP-MG, 1999, p. 95 5 Laurent, E. Coloquio de la Extimidad - organizado pela EOL, por ocasião das XIX Jornadas Anuales. Buenos Aires, Associación Cultural Armenia. 2 de dezembro de 2010. Conferência gravada para uso pessoal. 6 Miller, J-A. Extimidad, op.cit., p. 48. 3 “Esse Outro que me agita no seio de mim mesmo”, en-cena - Ana Martha Wilson Maia Latusa Digital Nº 47 / Ano 8 -‐ Dezembro de 2011 -‐ ISSN 2175-‐1579 O discurso da ciência anula as particularidades subjetivas no quantificador universal “para todo hombre”7. Miller reconhece que a ciência não é um discurso abstrato, pois tem efeitos sobre cada um, e sobre os grupos sociais, ao introduzir a universalização. Mas, encontra seu limite no particular que exclui o modo de gozo, sonho da utopia social do século XIX. No racismo há algo mais que agressividade. O racismo moderno odeia a maneira particular com que o Outro goza, intolerância associada ao roubo do gozo que o Outro subtrai de mim, pois “el Otro es Otro dentro de mí mismo”. E se está em meu interior, “en posición de extimidad, es tambiém mi propio odio”8. Miller levanta uma questão muito interessante quando, a partir do racismo, constrói o termo sexismo para se referir aos modos de gozo. Em seu comentário sobre a ablação do clitóris, tentativa de conter o gozo feminino na tradição africana, pergunta: “qué es entonces dejar al Otro su modo de goce? Es dejar operar a tradición, que tiene toda su validez como tal, o es impedir esta tradición en nombre de los derechos del goce femenino? Este es un caso moral muy problemático para el antirracista, y puede nutrir legítimamente varios debates”9. Este comentário me faz pensar que quando loucura e passagem ao ato se apresentam, quando o ódio é colocado em ação num crime, também estamos tratando de uma questão que gera vários debates. Porém, o que desejo abordar neste momento é o “loucurismo”, se assim posso me referir ao que há em comum entre racismo e sexismo com relação à extimidade. Como tratar o sujeito que cometeu um crime em seu “estado de loucura”, sem tratar seu modo de gozo? O que pode oferecer um psicanalista com sua presença, num projeto de teatro? Houve um tempo de ver, de desenvolver o projeto e agora há o tempo de extrair o que ficou da experiência. Como numa análise, poder dizer o que ficou depois que se chega ao final. Na coordenação do projeto Vida, louca vida, desenvolvido em 2003-04 em um hospital de custódia e tratamento (RJ), propus um argumento para o roteiro da peça com o título Loucos somos todos nós. Um dos esquetes foi escrito por dois pacientes, um texto nonsense que silenciou a platéia na apresentação. Um homem vestido de grego eleva uma alface com uma das mãos e diz: “ser ou não ser, eis a questão. (pausa, virado para a plateia) A loucura toma conta do meu ser e não me encanta esse pós-modernismo que pensa saber o que é o belo e trilha um caminho onde a ternura e a contemplação chocam-se com uma descontinuidade voluntária. O pós 7 op. cit., p.48 op. cit., p. 55. 9 op. cit., p. 56. 8 “Esse Outro que me agita no seio de mim mesmo”, en-cena - Ana Martha Wilson Maia Latusa Digital Nº 47 / Ano 8 -‐ Dezembro de 2011 -‐ ISSN 2175-‐1579 modernismo não sabe o que é passar fome. E eu pertenço a essa geração! (pausa) Não me quero mais! ... Não me quero mais! (meio afeminado) ... Não me quero mais!” (despenca no chão). Belo entra em cena com os mesmos trajes, ajuda o homem a se levantar e lhe dá um beijo na testa. (vira para a plateia) “O homem pós-moderno insiste em não compreender que existe poesia na renúncia e no ceder. Detesto o fracassado homem que comigera banalidades!” (diz três vezes, veemente na terceira). O homem se aproxima do Belo e pergunta: “és Belo?”. (olha para o homem e vira para a plateia) “Sim, sou o Belo” (cai a luz). Após esta cena, já sem a roupa de grego, o homem-narrador se dirige a plateia e afirma, rindo, “vocês entenderam tudo, né, todas essas palavras!”. Bem amarrada no roteiro, esta cena brilha entre as outras. O silêncio súbito da platéia revela que algo em cada um foi tocado. A partir desta invenção no teatro, podemos representar com a banda de Moebius a extimidade do sujeito, o Outro dentro de si mesmo? O que dizer sobre o silêncio, se pensarmos um corte na banda? Haveria alguma relação com o corte como interpretação numa sessão de análise? Estamos na época da “medicalização da existência”, na expressão de Laurent10, em que um medicamento serve para substituir o álcool, a cocaína. Uma droga no lugar de outra droga. O que pode fazer um psicanalista hoje e sempre? Acompanhar as mudanças da cultura e apostar na vida, oferecendo a palavra para o sujeito. Mostrar que existe outra saída “que não seja a saída da identificação de um com todos”11. E o teatro? Foi uma invenção com a palavra que, de algum modo, tocou no singular de cada um que fez parte dessa experiência. Referências bibliográficas Lacan, J. “Transfert à Saint Denis?”. Em: Ornicar? Bulletin périodique du Champ Freudien, n. 17-18. Paris, 1978, p. 278. 10 Laurent, E. El goce sin rostro. Buenos Aires: Tres Haches. 2010, p.9. Laurent, E. As paixões do ser. Salvador: EBP-Bahia e Instituto de Psicanálise da Bahia, 2000, p. 23. 11 “Esse Outro que me agita no seio de mim mesmo”, en-cena - Ana Martha Wilson Maia Latusa Digital Nº 47 / Ano 8 -‐ Dezembro de 2011 -‐ ISSN 2175-‐1579 Laurent, E. As paixões do ser. Salvador: EBP-Bahia e Instituto de Psicanálise da Bahia, 2000. ____. Coloquio de la Extimidad. Organizado pela Escola de Orientação Lacaniana, EOL, de Buenos Aires, por ocasião das XIX Jornadas Anuales, em 2 de dezembro de 2010. Conferência gravada para uso pessoal. ____. El goce sin rostro: psicoanálisis y política de las identidades. Buenos Aires: Tres Haches, 2010. Miller, J-A. “A psicose no texto de Lacan”. Em: Curinga, n. 13. Minas Gerais: EBP-MG, 1999. ____. Extimidad. Buenos Aires: Paidós, 2010. “Esse Outro que me agita no seio de mim mesmo”, en-cena - Ana Martha Wilson Maia