DO S S I Ê A renovação constante da Nissan Primeiro foi a revitalização, em 1999; depois, um ambicioso plano de metas, entre 2001 e 2005. A partir de então, será o plano de aumento do valor. A transformação da montadora de automóveis japonesa parece não ter fim F undada em 1933, durante anos a Nissan –contração das palavras “Nihon” e “Sangyo”, que significa “indústria japonesa”– honrou seu nome ao atuar como um dos maiores expoentes da atividade industrial do Japão. Até o início da década de 1980, ocupou o segundo lugar (atrás apenas da Toyota) na fabricação e exportação de automóveis. No entanto, no início dos anos 90, a empresa começou a revelar sinais preocupantes: dívida superior a US$ 20 bilhões, subutilização das instalações –fábricas que operavam com apenas 53% da capacidade– e margens de lucro reduzidas, perdendo, por exemplo, US$ 1 mil em cada veículo vendido nos Estados Unidos. Como não dispunha de recursos para prosseguir suas operações, começou a procurar um sócio que entrasse com capital. SINOPSE De acordo com o que se noticiou na época, tanto a alemã Daimler como a Uma dívida superior a US$ 20 bilhões e fábricas que operavam com norte-americana Ford recusaram o convite pouco mais de 50% da capacidade. A Nissan do início da década de depois de uma rápida análise da situação 1990 precisava urgentemente de um sócio estratégico e de um novo financeira da empresa. A francesa Renault, rumo. De acordo com o que se noticiou na época, tanto a alemã por sua vez, decidiu apostar na aliança e, Daimler como a norte-americana Ford recusaram o convite em março de 1999, firmou o compromisso depois de analisá-la. por meio de um aporte equivalente a US$ 5,4 bilhões, em troca de 36,8% das ações Para suprir a primeira necessidade, a Nissan contou com o auxílio da da Nissan. montadora francesa Renault, que, em 1999, injetou-lhe US$ 5,4 bilhões em troca de 36,8% das ações. E, para o segundo desafio, apostou na O objetivo do acordo era chegar a um participação decisiva de Carlos Ghosn, o executivo brasileiro que crescimento rentável e equilibrado das duas comandou a reinvenção da companhia. companhias envolvidas pela criação de um poderoso grupo binacional. A Renault e a Este artigo, que reúne os highlights do livro O Cidadão do Mundo, de Nissan manteriam suas identidades indiviGhosn (ed. A Girafa), detalha os três principais programas. O plano de duais e a nova empresa funcionaria para revitalização foi o pioneiro: incluiu a redução dos custos associados a combinar os pontos fortes de ambas. compras, o foco no negócio central, a demissão de 21 mil funcionários, Em seguida, três executivos da Renault o lançamento de 22 modelos de automóveis novos e o compromisso foram incorporados à direção da empresa de alcançar certos objetivos até 2002. Os planos “Nissan 180” e “Valuejaponesa: Patrick Pelata assumiu o posto Up”, que vieram depois, também estabeleceram metas ambiciosas. HSM Management 46 setembro-outubro 2004 DO S S I Ê de diretor de desenvolvimento e de estratégia de produtos; Thierry Moulonguet ficou incumbido das finanças; e o brasileiro Carlos Ghosn aceitou o cargo de diretor de operações, mas só depois que suas condições foram aceitas –ele queria escolher 30 executivos para acompanhá-lo em sua gestão e exigia liberdade para tomar decisões sem a aprovação direta da fábrica francesa. Em sua primeira reunião com os acionistas, Ghosn disse: “Não vim para o Japão por causa da Renault, mas sim por causa da Nissan. E farei tudo o que estiver a meu alcance para recuperar a rentabilidade da empresa o mais rápido possível”. O plano de revitalização: NRP A primeira medida tomada pelo executivo brasileiro foi a formação de equipes transfuncionais. Compostas por gerentes de linha com idade entre 30 e 40 anos oriundos de departamentos, setores e países diferentes, os grupos tinham por objetivo identificar problemas e apresentar soluções. Em menos de três meses as equipes elaboraram 2 mil propostas, das quais 400 chegaram até a mesa de Ghosn e muitas serviram de base para a estratégia de transformação da Nissan. Em outubro de 1999, Ghosn anunciou o “Nissan Revival Plan” (“Plano de Revitalização”, conhecido pela sigla NRP), um programa de três anos que estabeleceu as seguintes metas para 2002: Redução de 20% dos custos associados às compras. Operação centralizada e redução do número de fornecedores de componentes (de 1.200 para 600) foram sugeridas como meios para alcançar esse objetivo. Otimização da produção. Por meio do fechamento de duas fábricas de motores e de três das sete fábricas de montagem de autopeças no Japão, o plano estabeleceu o aumento da utilização da capacidade de 53% para 82%. Concentração na atividade central. A Nissan tinha participação em 1,4 mil empresas, o que representava um valor de US$ 4 bilhões. Desfazer-se desses ativos permitiu a liberação de recursos para a concentração no negócio Reflexões de um líder central e também para a amortização da dívida da empresa. Mudança nas práticas de recursos humanos. Antes da aliança com “Não acredito que exista um modelo fixo de a Renault, cada região operacional adotava suas próprias regras. gestão, mas sim que se trata de um procedimento Ghosn unificou a política de recursos humanos, eliminou o tempo que se constrói a cada passo. Em uma situação de casa como critério básico de promoção, modificou o sistema de normal, o modelo se maximiza. Em situações de remuneração, dando ênfase às recompensas de acordo com o decrise, ele se reconstrói.” sempenho em vez de privilegiar a distribuição igualitária, e vinculou “Quando uma empresa enfrenta problemas, os prêmios dos executivos ao sucesso do NRP. a culpa é sempre dela. O contexto, favorável ou Redução de 14% do quadro de funcionários. Após a demissão de desfavorável, apenas atenua ou amplia as dificul21 mil funcionários, a folha de pagamento passou de 148 mil para dades. A Nissan não estagnou por causa da crise 127 mil. econômica japonesa nem porque a Toyota e a Lançamento de 22 modelos de automóveis novos. Honda faziam uma concorrência feroz. Os genes Redução dos custos financeiros. Para isso, as operações financeiras do declínio estavam em seu interior. Do mesmo em escala mundial foram centralizadas. modo, a recuperação não decorre da fragilidade Redução dos custos gerais e administrativos. A Nissan fechou do iene em relação ao dólar nem da recuperação 10% dos pontos-de-venda próprios e 20% das concessionárias em da economia japonesa, mas da capacidade da funcionamento no Japão. Na Europa, fundiu a rede de distribuição Nissan de se reinventar.” aos pontos-de-venda da Renault. “A experiência revela que o nível mais elevado Fortalecimento da marca. Uma das equipes formulou uma estrada hierarquia é o que com mais freqüência abriga tégia de identidade de marca mundial, e Ghosn decidiu contratar a ‘síndrome da negação’, que consiste em negar a uma única agência de publicidade. gravidade de uma situação, assim como possuir “Sabemos que a concepção do plano representa apenas 5% do maior grau de ceticismo quanto à possibilidade desafio e que 95% dependem da execução”, disse Ghosn ao anunciar de mudanças radicais.” o NRP. O motor da mudança seria a diretoria, que se comprometia Fonte: O Cidadão do Mundo, de Carlos Ghosn (ed. A Girafa). publicamente a alcançar três objetivos em 2002: HSM Management 46 setembro-outubro 2004 DO S S I Ê “Sabemos que a concepção do plano representa apenas 5% do desafio e que 95% dependem da execução” 1. Recuperação do equilíbrio financeiro. 2. Lucro operacional de pelo menos 4,5% das vendas. 3. Redução da dívida a US$ 6,3 bilhões. Ghosn enfatizou que esses três objetivos não estavam sujeitos a negociação e, caso não fossem alcançados até a data prevista, ele e seus executivos se demitiriam da empresa. A saída nunca aconteceu: em 20 de junho de 2000 Ghosn assumiu o posto de diretor-presidente da Nissan e, em 2001, um ano antes da data prevista, as metas do NRP tinham sido superadas. O lucro operacional do exercício chegou a US$ 3,9 bilhões, com uma rentabilidade de 7,9%, e a dívida da empresa foi reduzida a US$ 3,4 bilhões. Embora o NRP produzisse os resultados esperados, Ghosn não considerou a transformação completa. Muito pelo contrário: dobrou a aposta e estabeleceu objetivos mais ambiciosos para o plano seguinte, também com metas a serem alcançadas em três anos. O novo plano de metas: “Nissan 180” Batizado “Nissan 180”, o novo plano codificava as metas para 2005: “1”: Vender mais 1 milhão de veículos, para chegar a 3,6 milhões de unidades (no final de 2003, as vendas já superavam 3 milhões). “8”: Manter uma margem operacional de 8% (em 2003, o índice atingiu 11,1%). “0”: Quitar a dívida (em 31 de março de 2004 a dívida era de US$ 113 milhões). “Por meio do NRP, transformamos uma empresa com problemas em uma companhia saudável. Com o Nissan 180, pretendemos chegar à excelência”, declarou Ghosn no lançamento do programa, que se apóia em quatro pilares: Aumento da receita. Redução dos custos. Melhora na qualidade. Maior integração com a Renault. Em março de 2002, a empresa francesa aumentou sua participação na Nissan para 44,4%, e a organização japonesa comprou 15% das ações sem direito a voto da Renault. Nessa ocasião, a aposta inicial do benefício mútuo era um fato concreto: a Renault tirou partido dos conhecimentos sobre produção da parceira japonesa, enquanto a Nissan aproveitou a experiência da companhia francesa em marketing, design, estratégias de vendas e serviços. Além disso, graças à aliança, a Renault aumentou sua presença no mercado norte-americano e a Nissan ampliou sua participação na Europa e na América Latina. O plano de aumento de valor: “Value-Up” Na Nissan, é dado como certo que as metas do “Nissan 180” serão cumpridas e já há estudos para o projeto seguinte. Batizado “Value-Up” (algo como “Mais Valor”, numa tradução livre), já conta com uma data fixa: abril de 2005. Entre os objetivos para 2007 estão venda de 4,2 milhões de unidades, lucro operacional superior a 10% e retorno sobre o capital investido de no mínimo 20%. A partir de 2005, no entanto, Ghosn assumirá o posto de CEO, ou seja, diretor-presidente da Renault. Em seu livro O Cidadão do Mundo (veja quadro na página ao lado), o executivo brasileiro afirma o seguinte: “Apesar das incumbências adicionais, serei totalmente responsável pelo cumprimento dos compromissos anunciados no ‘Value-Up’. Não esperem um diretorpresidente de dedicação parcial, mas o contrário. Serei um diretor-presidente de tempo integral, com dois cargos paralelos”. Primeiro foi a revitalização, depois uma mudança de 180 graus. A partir de 2005, aumento do valor. A transformação da Nissan parece não ter fim. É que, talvez, o fenômeno não deve ser interpretado como uma história de mudança feita em capítulos, mas como um processo de superação permanente com final aberto. HSM Management 46 setembro-outubro 2004