UM SOPRO DE VlDA
CONTRA 0 DIABETES
Depois de uma
investiga~iio
cientifica
rigorosa, a
agencia de saiide
americana, FDA,
aprova o uso de
uma insulina
inalivel. Para
90 milh6es de
diabeticos, pode
ser o fim das
inje@es diirias
do horm6nio
ADRIAMA D l A S LOPES
m 27 de junho, o bilionirio americano Alfred Mann, de 88
anos,-almoqava com a mulher em um restaurantc cm Las
Vegas, onde mora, quando recebeu por telefone a noticia
mais importante de sua carreira como fisico e empreslirio
na area de saude: a insulina inalivel Afrezza, produto no
qua1 ele investira 2 bilhdes de dblares, finalmente recebera o 0.k. da FDA, a agencia do govern0 dos Estados Unidos de controle
de remCdios e alimentos. No dia do anuncio da aprova~lo,as a ~ d e s
do laboratorio MannKind, empresa de sua propriedade, subiram 10%.
A boa noticia nlo era apenas para Mann. A Afrezza representa uma
mudanqa drastica no tratamento do diabetes. Graqas a nova insulina,
25% dos diabeticos, um universo de 90 milhdes de doentes no mundo, 3 milhdes deles no Brasil, podem se livrar das injeqdes diirias do
horm6ni0, imprescindiveis at6 agora para o controle da doenqa. Diz
o endocrinologists Freddy Eliaschewitz, diretor do Centro de Pesquisas Clinicas (CPClin), de Sio Pauro, instituiqgo envolvida nos estudos
clinicos com o medicamento: "Este 6 r, maior marco na historia do
tratamento com insulina nos ultimos quarenta
anos". A data refere-se ao lanqamento, na d6cada de 70, do hormanio feito com material
genetic0 humano, o que livrou os d o q t e s
dos efeitos colaterais severos
causados pelas insulinas anteriores, produzidas a partir de animais, principalmente porcos.
,
Desde 1921, quando
os pesquisadores canadcnses Frederick Bantinge Charles Best isolaram, pela prirneira vez,
a insulina em laboratorio, a rnedicina busca
urna forma de facilitar o
uso do horrnbnio. Corno
6 facilrnente degradada
pclas cnzirnas digestivas. ainda n l o se descobriu um rnodo de transforma-la em
pilulas. Ate a Afrezza, o unico metodo
de administraq30 de insulina era por
rneio de i n j e ~ l o- alguns pacientes
chegarn a tomar ate seis picadas por
dia. A sirnplicidade da Afrezza 6 extraordinaria. Com cerca de 2 centirnetros
de largura por 6 de comprimento, seu
aplicador lembra urn apito. Ao doente,
basta aspirar a insulina por urn bocal
(veja o quadro nu pag. ao lado).
A Afrezza 6 urna insulina de aqio
rapida, cujo objetivo e replarizar as
taxas de aqucar que norrnalmente se
clcvam apos uma rcfciqio. Depois dc
inalada, ela comeqa a fazer efeito em
apenas doze rninutos. e em urna hora e
rneia ja foi elirninada do organisrno urn quarto do tcrnpo exigido pela insulina injetavel. E urna vantagem e tanto.
Todo tratarnento a base de horrn6nio
e cornplicadissirno. E dificil orquestrar o funcionarnento da substincia
tal qua1 ele ocorre no organisrno. Por
isso, a precislo de ajustes e fundarnental. Quanto rnais pr6xirna ela estiver
dos rnecanisrnos fisiologicos naturais,
rnais eficaz sera a terapia. "No caso
da Afrezza, o tempo de duraqiio do
medicamento e sernelhante ao tempo
gasto na digest30 dos alimentos". diz
Antonio Carlos Nascimento, endocrinologista de S l o Paulo. Corn a insulina
injetavel, ha o risco de hipoglicernia.
Isso porque, corno o horrnhio funciona mais lcntamcntc, clc continua a facilitar a entrada de glicose nas celulas,
m e m o corn o fim do processamento
dos alirnentos pelo sistema digestivo.
Ou seja. o rernkdio continua a utilizar
a glicose circulante no sangue, ainda
que ela niio esteja sendo reposta pela
alimentaqlo. Na reaqio hipoglic@mica,o corpo libera
adrenalina, o que leva a um
quadro de taquicardia, suor
excessivo, desmaio e, a longo prazo, entupimento dos
vasos sanguineos. Metade
dos pacientcs C acomctida
pelo problema. A Afrezza,
ressalte-se, n i o faz as vezes
da chamada insulina basal.
de longa duraqlo, utilizada
nos casos mais graves, quando o p2ncreas n i o fabrica insulina ou produz doses diminutas do horm6nio. Ela deve
cnegar ao mercado americano no inicio
de 2015. Ao Brasil, em 2016.
0 segredo para a eficacia da nova
insulina esta em sua arquitetura molecular. Todas as insulinas fabricadas ate
entlo, seja de agio rapida ou longa, seja a extraida de animais ou elaborada
com material gcnPtico humano, s l o
constituidas em hex2meros (grupos de
seis molCculas, agregadas em um atomo de zinco, de duas em duas). Ao cair
na corrente sanguinea, o zinco se dissolve, e os pares de molCculas se soltam gradualmente, para entio liberar
uma a uma as molPculas dc insulina C somente a partir desse momento que
o medicamento comeqa a funcionar. A
insulina inalavel de Alfred Mann, no
entanto, e composta de molCculas ja
soltas. Sob tal configuraqSo, alem de
agir mais rapidamente, a Afrezza n i o
oferece o risco de acumular-se nos
br6nquios, os canais de passagem de
ar nos pulmbes. Foi essc o problema,
alias, responsavel pela retirada do
mercado da Exubera, a prirneira tentativa de desenvolvimento de uma insuh a inalavcl. Fabricado pclo laborat6rio Pfizer, o medicamento foi suspenso
em 18 de outubro de 2007, menos de
dois anos depois de seu lanqamento.
Trata-se de um dos fracassos mais
retumbantes da industria farmacsutica. Sua retirada das prateleiras das
farmacias de uma dezena de paises,
incluindo o Brasil, resultou na perda
de bilhaes de dolares. "A unica semelhanqa entre a Afrezza e a Exubera e o
fato de ambas serem inalaveis", disse
Mann a VEJA (leia a entrevista abaiXO). Doze horas depois da aplicaqio
da Exubera, a quantidade de insulina
nos br6nquios era dez vezes superior
ao aceitavel. Em dccorrhcia desse
processo, aumentava a probabilidade
de crescimento de ctlulas tumorais
preexistentes, incluindo as cancerosas. Com suas moleculas isoladas, a
Afrezza passa sem deixar resquicios
pelos br6nquios e chega ate aos alveolos, dc onde 6 absorvida pcla corrcnte
sanguinea, em apenas tr2s minutos. A
Exubera trazia ainda outro problema,
este de ordem pratica: o tamanho do
aplicador, semelhante ao de uma lata
de refrigerante.
0 tcmor cm relaqio a
qualquer comparaqlo da
Afrezza com a Exubera fez
a FDA manter um rigor na
aprovaqlo do produto jamais visto na historia da
agCncia americana. A insulina da MannKind foi
apresentada duas vezes ao
comitC de aprovaqio. Em
ambas as ocasides. foram
solicitadas novas pesquisas
sobre a seguranqa do produto. Ao termino do processo, somaram-se sessenta
estudos clinicos, um volume de trabalhos duas vezes
superior a media exigida pel0 orgio
regulador. Em abril deste ano, o comitC consultive da FDA, grupo formado
por medicos de diversas especialidades, aprovou a Afrezza praticamente
por unanimidade - foram treze votos
favoravcis e um contra -, um favoritismo raramente visto no grupo. Mesmo
assim, os consultores pediram mais
tres meses para analisar a aprovaqlo.
Como ocorre com todos os medicamentos lanqados nos Estados Unidos, a agCncia de sa~ideexige estudos
de pos-comercializaqlo. No caso da
Afrezza, eles deverlo avaliar a partir
de agora a seguranqa em crianqas e o
,risco de malignidade pulmonar e cardiovascular em longo prazo. A insulina de Mann, por enquanto, n l o pode
ser utilizada por fumantes e portadores de doenqas pulmonares. 0 cigarro
e problemas no pulmio podem alterar
a permeabilidade do orgio, modificando a aqio do horm6nio.
0 otimismo dos especialistas em
relaqio a nova insulina justifica-se.
0 diabetes avanqa assustadoramente. Em 2006, por exemplo, eram 170
milhdes de doentes. Hoje s l o 370
milhdes. Em 2030, clcs devcm chcgar
a 552 milhdes. Trata-sc, no entanto,
de uma doenqa com baixa adeslo ao.
tratamento. Por causa do inc6modo
das injeqdes diarias, trCs em cada
dcz pacicntcs n i o segucm as oricntaqties medicas a contento (veja ao
longo da reportagem depoimentos de
pacientes voluntarios dos estudos
corn a Afrezza). A insulina inalive1
surge com a promessa de mudar esse
cenirio.
0
e
s sessenta estudos clinicos nos
quais a FDA se baseou para
aprovar a Afrena envolveram um total
de 3 700 pacientes, de trinta centros
de pesquisas, em vinte paises. De todos eles, o que apresentou o maior
numero de volunti3rios foi o Centro de
Pesquisas Clinicas (CPClin), em SBo
Paulo, com 46 diabkticos. Por essa
razBo, foi tambem o unico a ser auditado pela maior e mais prestigiosa
ag6ncia de saude do mundo. Do ponto
de vista do rigor da avalia~Bocientifica,
a expenencia foi inesquecivel para os
pesquisadores brasileiros envolvidos
nos trabalhos com a insulina inalavel.
A inspe~Bono CPClin ficou a cargo
de Anthony Keller, um dos mais experientes profissionais da FDA, responsivel por cerca de trinta auditorias do tipo
todos os anos. Keller chegou ao CPCIin
em 17 de maqo de 2014.0 estilodo
auditor foi tra~adodesde o prirpeiro
instante.Ao ser recebido com um aperto de mBos e o sorriso da endocrinologists Denise Franco, chefe da equipe
maica que coordenou os estudos com
a Afrena, Keller reagiu secamente a
cordialidade, dizendo: "Meu unico objetivo aqui e encontmr fraudes ou erros
de pesquisa que i m p w m a aprova@o
da insulina da MannKind". 0 recado
estava dado. Ao longo dos quinze dias
seguintes, o homem da FDA so interagiu com os profissionais brasileiros
para esclarecer duvidas. 'As questks
eram de um detalhamento impressio-
nante", diz Freddy Eliaschewitz, diretor
mCdico do CPClin. Keller analisou em
minljcias os mais variados tipos de
documento. Dos registros da calibragem das balanps e centrifugas a temperatura dasgeladeiras que guarda~m
a insulina. Ele sempre almoCava sozinho. Usava seu proprio laptop e impressora. Apesar de os coordenadores
do CPClin serem fluentes em ingles,
Keller fez questi4o de ter seu proprio
tradutor - escolhido por ele.
Com 700 metros quadrados distribuidos por uma casa de tres andares, o CPClin se constitui em
um dos oitenta centros brasileiros
privados de pesquisa. Desde que foi
criada, em 2003, a institui~Bopaulistana ja participou de 100 estudos
clinicos, 70% deles na area de diabetes. A equipe de Eliaschewitz conduziu trabalhos publicados em revistas cientificas de referencia, como
The New England Journal of Medicine, Lancet e Diabetes Care. Sua
produ~Bo,no entanto, poderia ser
pelo menos duas vezes maior. 0 motivo do entrave sBo as agencias regulatorias responsGveis pela aprovaCBOde pesquisas no pais. "Leva-se
em media um ano para obter o
aval para participar de um estudo",
diz o medico. Nos Estados Unidos e
na Europa, si3o apenas tres meses.
A demora faz com que o Brasil esteja presente em menos de 1% dos
estudos internacionais.
Trabalho especial
Aos 88 anos, Alfred Mann e um dos fisicos mais
bem-sucedidos dos Estados Unidos. Na decada de
50, fundou a Spectrolab, empresa de desenvolvimento de placas solares para naves
espaciais. Hoje, a companhia pertence a
Boeing, No fim da decada de 60, Mann
passou a investir na area da saude e,
ao longo das decadas seguintes, se tornou o maior fabricante de bombas de
insulina e marca-passos. Mas o grande
feito de Mann e a insulina inalavel, desenvolvida pel0 laboratorio MannKind,
de sua propriedade. Trata-se do maior
invento na area de diabetes nos ultimos quarenta anos, desde a inven~go
da insulina humana, nos anos 70.
Coma comepu seu interesse pela
area de saUe? Em 1969, o
laboratorio de fisica aplicada da
Universidade Johns Hopkins, um dos
clientes da minha ernpresa de placas
solares, me fez urn convite que
mudou radicalrnente rninha vida
profissional. Fui chamado para ajudar
na cria~aode um marca-passo
cardiac0 de longa d u r a ~ i oNa
. epoca,
esses aparelhos tinharn um tempo de
vida de no rnaxirno dois anos, e o
objetivo era duplicar a d u r a ~ i o .
0 projeto deu certo e me apaixonei
completamente pela area de saude.
E muito especial trabalhar corn
algo que reflete diretamente na
sobrevivincia humana. Pesquisei as
doen~asmais carentes de investimentos
tecnologicos e o diabetes estava no topo.
Desde entao, eu me dediquei ao
problems, desenvolvendo bombas de
insulina, sensores de glicose e o phcreas
artificial. Nada e comparavel, porem, a
insulina inalavel l a n ~ a d aagora. Com ela,
estou resolvendo dois grandes problemas
dos diabeticos: eliminar a picada das
inje~6esde insulina e fazer corn que a
a@o do hormbnio no organismo seja
praticamente igual ao mecanismo natural.
A e x r d h d a makucediia corn a Exubera,
a insulina i n a h l retiratla do mercado em
2007, conbibuiu para o desemrdvimento
da Afrezza? Ha uma dizia de anos me
dedico ao desenvolvimento da Afrena.
Quero enfatizar aqui que a unica
semelhan~aentre os produtos e o fato
de ambos disponibilizarem a insulina em
po para ser inalada. A Afrena tem uma
tecnologia absolutamente inedita e nao foi
inspirada em nenhum outro medicamento.
Essa tecnologia podera ser usada em
outros medicamentos? Ela sera util,
sobretudo, na administra~aode
medicamentos na forma de proteinas,
compostos que nao s8o absorvidos pelo
sistema digestivo e, por isso, tCm de ser
ministrados na forma de inje~8o.
Atualmente, estamos estudando o uso do
mecanismo inalavel em outros remedios
para diabetes, como os analogos da
proteina GLP1, que aumentam a sintese
de insulina pelo organismo. Em urn
futuro proximo, faremos testes com
medicamentos para a dor.
Por duas vezes, a Afrezza esteve para ser
aprovada pela FDA e foi banada. 0 que
aconteceu? A FDA insistiu na seguranca
da Afrena. Consider0 isso natural, por se
tratar de um produto completamente novo
e que devera ser usado por milh6es de
pessoas. No total, investimos 2 bilh6es
de dolares em estudos. Se os trabalhos
fossem colocados em papel, formariam
uma pilha corn a altura equivalente a
metade do caminho para a Lua.
0 senhor e diamico? N2o sou e ninguem
na minha familia sofre de diabetes.
COMO FUNCIONA A NOVA INSULINA
k r s s l o de
funcwAbre-se o aparelho
e coloca-se dentro
dele uma capsula corn
insulina em p6, ja com
a dosagem fixa
1
Ao ser fechado,
. : o inalador estoura
- a capsula, liberando
oh01 * ' ' ' '
uma ....-.,
-apadho
2
'
3 sd
i
A insulina
vai
sair quando
o paciente
aspirar o
hormanio
Em 2007, a insulina
inalhvel do laboratorio Pfizer,
a Exubera, foi retirada do mercado
por causar acumulo do hormonio nos
pulmoes, sobretudo nos bronquios.
0 problema estava na estrutura
molecular do medicamento
A insulina era
disponivel em
hexameros
................... grupos de seis
molLculas. Tal
constituiqao
dificultava a
passagem do
hormonio dos
pulmoes para
a corrente
A insulina e
disponivel na
forma de
monomeros
.......................
- moleculas
soltas. Desse
modo, e
facilmente
absorvida
pelos vasos
pulmonares,
sanguinea
entrando na
corrente
......-.-......
... 3,+" ....
a ...,....
%
's i
.:
sanguinea
o
t
doze horas, nao
ha mais nada
Fontes: Salele Siraque Garcez. biomedica, Freddy
Eliaschewitz, endocrinologists. Priscila Tanaha e Luciana
Akemi Tagata. farmaceuticas. Risoneide Batisla, do
CPClin, e laboratorio MannKind
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Depois de uma investiga~iio cientifica rigorosa, a agencia de saiide