ISSN 0104-4931 INTERVENÇÃO PRECOCE BILÍNGÜE – CONSTRUÇÃO DE RECURSOS TERAPÊUTICOS OCUPACIONAIS UTILIZANDO A CULTURA SURDA COMO REFERÊNCIA Lia Rodrigues Vasconcelos Layane Lima Saboia Brunna Karoliny Pereira Uchoa Marilene Calderaro Munguba Universidade de Fortaleza - UNIFOR RESUMO Introdução: A surdez se torna impactante no cotidiano das comunidades surda e ouvinte devido a diversidade cultural e de formas diferentes de comunicação. Na perspectiva sócio antropológica a terminologia surdo é a mais adequada por considerar a especificidade cultural e não é centrado na deficiência. A criança surda tem o direito de ser instruída e abordada em sua língua materna, o que favorece a construção da linguagem e consequentemente de sua aprendizagem e desenvolvimento harmônicos, na busca da construção da autonomia e independência do sujeito surdo. O Bilinguismo tem sido discutido considerando a língua de sinais como primeira língua ou língua materna do surdo e a língua oral auditiva como segunda língua. Descrição da experiência: As atividades realizadas são parte do projeto de Iniciação Científica “Intervenção precoce no surdo: percepção dos profissionais e pais sobre a atuação do terapeuta ocupacional”; especificamente do subprojeto: “Estratégias de atuação terapêutica ocupacional em intervenção precoce na clientela surda” envolvendo cinco alunos do curso de Terapia Ocupacional da Universidade de Fortaleza, uma profissional de Jornalismo e a professora orientadora, da mesma universidade. Identificou-se a escassez de recursos de mediação na intervenção precoce construídos utilizando a cultura surda como referência. Durante 2013 o grupo discutiu estimulação sensorial, percepção visual e a sua relevância para o desenvolvimento da criança surda, a constituição do sujeito surdo mediado pela língua de sinais. Em 2014.1 o grupo realizou encontros semanais enfrentando o desafio de construir recursos lúdicos adequados às especificidades sensoriais e culturais da criança surda. Receberam maior atenção os estímulos visuais que favorecem a aquisição da língua de sinais. Efeitos alcançados: Foi construído um tabuleiro para mediar a aprendizagem da criança surda sobre as cores, os animais, tipos de emoções e o alfabeto manual, contrastando as cores afim de estimular a atenção da criança surda e aprendizagem da Libras. Também constitui o grupo de recursos construídos o “jogo dos números” em Algarismo, Libras e Palitinhos. Também está em fase de desenvolvimento um mural com imagens das atividades de vida diária com o seu respectivo sinal. E o “encaixe das formas geométricas” associadas aos respectivos sinais. Recomendações: Prosseguir com a construção dos recursos considerando a cultura surda e posterior divulgação dos resultados de sua aplicação. Descritores: Terapia Ocupacional, Jogos e Brinquedos, Cultura Surda, Libras, Estimulação Precoce ISSN 0104-4931 Cadernos de Terapia Ocupacional, UFSCar, São Carlos, v. 22, n. Suplemento Especial. 02, 2014. 82 ISSN 0104-4931 INTRODUÇÃO Ao longo do tempo, a surdez vem ganhando seu espaço dentro de uma sociedade ouvinte que se limita a aceitar as diferenças do outro. A notável dificuldade de comunicação entre surdos e ouvintes, prejudica o diálogo e a compreensão de ambas as partes, o que consequentemente gera exclusão, preconceito e principalmente a imposição de uma língua que não é propriamente a língua materna do surdo. Felipe (2007) relata que, os surdos se comunicam por meio de uma língua de sinais, possuem uma identidade, valores sociais, comportamentos e tradições comuns, uma reunião de características sociais, o que é denominado de cultura surda. É multifacetada, mas apresenta características que são específicas, ela é visual, ela traduz-se de forma visual. As formas de organizar o pensamento e a linguagem transcendem as formas dos ouvintes. Elas são de outra ordem, uma ordem com base visual e por isso têm características que podem ser ininteligíveis aos ouvintes. Ela se manifesta mediante a coletividade que se constitui a partir dos próprios surdos (QUADROS; KARNOPP, 2004, p.4). Com isso, tem-se em mente que, o lugar ideal para o contato precoce do surdo com a sua cultura é dentro da própria comunidade surda, que se constitui de um espaço de articulação política e social, onde o surdo se identifica e discute os meios para atingir seus objetivos, seus direitos linguísticos e de cidadania. De acordo com Fernandes (2005, p.18), “a capacidade humana de significação se apresenta como uma competência específica para a operação, produção e decodificação dos signos, permitindo através dessa faculdade, a produção dos significados”. Isso nos remete a importância de a criança ser apresentada precocemente, pois é durante seu desenvolvimento que estas passam a descobrir o mundo. O conhecimento da importância da língua de sinais para esse grupo é vital, pois é considerada a língua natural dos surdos, a sua aquisição possui um período crítico e quanto mais tardiamente a criança tiver contato com esta comunidade e com a língua, mais ela irá apresentar dificuldades de aprendizagem e desenvolvimento. A concepção bilíngue linguística e cultural luta para que o sujeito surdo tenha o direito de adquirir/aprender a LIBRAS e que esta o auxilie, não só na aquisição da segunda língua (majoritária), mas que permita sua real integração na sociedade, pois ao adquirir uma língua estruturada o surdo pode criar concepções e oportunidades, participando ativamente do convívio em seu meio (DIZEU; CAPORALI, 2005, p.592). ISSN 0104-4931 Cadernos de Terapia Ocupacional, UFSCar, São Carlos, v. 22, n. Suplemento Especial. 02, 2014. 83 ISSN 0104-4931 A visão é considerada um canal pelo qual o individuo tem contato com o mundo externo. É por isso que ela é tão importante para a construção e percepção de mundo própria do individuo. É através dessa via que naturalmente o surdo desenvolve sua língua materna, Libras, e, portanto “elas demonstram uma inclinação imediata e acentuada para a Língua de Sinais que, sendo uma língua visual, é para essas pessoas totalmente acessível” (NERY; BATISTA, 2004, p.289). Assim, o surdo, através de estímulos, é capaz de desenvolver e aprimorar suas habilidades, favorecendo consequentemente, seu desempenho ocupacional. Neste sentido, busca-se recursos visuais que favoreçam a estimulação precoce, tornando o estímulo parte de um conjunto de hábitos necessários para o desenvolvimento cognitivo do surdo, a fim de favorecer e melhorar sua comunicação e relações interpessoais. Na estimulação precoce, segundo Munguba (2007, p.386), “busca-se a continuidade no processo natural do desenvolvimento, objetivando promove-lo de forma harmônico e adaptado ao meio sem antecipar etapas evolutivas”. Munguba (2007) ressalta a importância da mediação proposta por Vigotski, no processo de desenvolvimento e aprendizagem e enfatiza o papel do meio no papel da autoconstrução do conhecimento. É proposto então, a partir desse estudo, tornar mais presente e eficaz a intervenção precoce em crianças surdas. Sennyey et al (2007), afirma que o surdo pode ter algumas áreas do seu desenvolvimento afetadas como, social, cognitivo e da linguagem, por exemplo. A estimulação precoce, com sua natureza preventiva, tem por objetivo ações suficientemente antecipada, tendentes a evitar, atenuar ou mesmo compensar atrasos provenientes de uma deficiência ou dificuldade que a criança possa ter, diminuindo suas consequências (OLIVEIRA, 2010, p.5). Assim, é fundamental o diagnóstico de surdez o quanto antes, a fim de iniciar a intervenção junto a criança e seus familiares, desde a aceitação até a aprendizagem da língua de sinais, que é a língua própria do surdo. Fanceschi e Peruzzolo (2010) afirmam que, o estimulador precoce deve ter um olhar diferenciado sobre a criança. Levando em consideração o ser biológico, cognitivo, psíquico e social da criança. Munguba (2007) enfatiza que a Terapia Ocupacional tem um papel determinante no processo de compreender a identidade social e cultural desses indivíduos, devido ao seu objeto de estudo que é o fazer humano gerando autonomia. É necessária a atuação ISSN 0104-4931 Cadernos de Terapia Ocupacional, UFSCar, São Carlos, v. 22, n. Suplemento Especial. 02, 2014. 84 ISSN 0104-4931 desse profissional no desenvolvimento do surdo e seu relacionamento com sua família. Esse profissional deve ser parte da equipe interdisciplinar no atendimento desse grupo. Devendo assim, adotar como paradigma o respeito às diferenças entre surdos e ouvintes, procurando uma melhor interação e possibilitando pleno desenvolvimento da criança surda, por meio do bilinguismo e biculturalismo, já que a aquisição da língua de sinais e internalização da cultura surda é a única maneira de evitar que sofra atraso de linguagem e as suas consequências. Para a inclusão desses indivíduos, dentro de uma sociedade ouvinte, busca-se estratégias que facilitem a autonomia e independência do sujeito, sem que haja mudanças de identidade para a sua aceitação. Pensou-se então em usar a estimulação precoce como meio de contato do surdo com sua língua natural, que é a Língua Brasileira de Sinais -Libras. Com os estudos, observou-se que, a criança, quando em contato com sua língua materna, é capaz de aprender mais facilmente uma outra língua, que nesse caso, seria o Português. Para o inicio de tal intervenção, buscou-se materiais estratégicos e inclusivos como recursos para facilitar o contato da criança surda com a língua de sinais. Esses materiais estão sendo adaptados para a necessidade dessa clientela. No tocante a sociedade identifica-se a possibilidade de desenvolvimento de promoção da preparação da comunidade ouvinte para a inclusão de pessoas surdas. Descrição da experiência Trata-se de um relato de experiência de um recorte de um projeto do curso de Terapia Ocupacional da Universidade de Fortaleza: “Intervenção precoce no surdo: percepção dos profissionais e pais sobre a atuação do terapeuta ocupacional”, do projeto guarda chuva intitulado: “Intervenção precoce no surdo: percepção dos profissionais e pais sobre a atuação do terapeuta ocupacional”, com Parecer do Comitê de Ética em Pesquisa da Unifor, No 341/2007, especificamente do subprojeto: “Estratégias de atuação terapêutica ocupacional em intervenção precoce na clientela surda”. Identificou-se a escassez de recursos de mediação na intervenção precoce construídos utilizando a cultura surda como referência. Durante 2013 o grupo discutiu estimulação sensorial, percepção visual e a sua relevância para o desenvolvimento da criança surda, a constituição do sujeito surdo mediado pela língua de sinais. Em 2014.1 o grupo realizou encontros semanais enfrentando o desafio de construir recursos lúdicos adequados às especificidades sensoriais e culturais da criança surda. Receberam maior ISSN 0104-4931 Cadernos de Terapia Ocupacional, UFSCar, São Carlos, v. 22, n. Suplemento Especial. 02, 2014. 85 ISSN 0104-4931 atenção os estímulos visuais que favorecem a aquisição da língua de sinais. Ocorreu no próprio campus da Universidade de Fortaleza, com encontros semanais, tendo como participantes três alunos ouvintes, uma aluna surda e uma professora orientadora, todos do curso de Terapia Ocupacional. Os encontros foram realizados às quintas-feiras, no turno da tarde, intercalando estudo de artigos científicos, fundamentações teóricas da Terapia Ocupacional, oficina de libras e construção de recursos lúdicos. Após os estudos realizados, destaca-se a importância da Língua Brasileira de Sinais – Libras como primeira língua a ser aprendida na infância através da estimulação precoce bilíngue da criança surda; utilizando de recursos lúdicos e ainda da integração sensorial, como meios de estimulação capazes de facilitar as habilidades visuo-manual do surdo, favorecendo a aquisição e a prática da Libras. Com isso, concluiu-se que, a família precisa aceitar e incentivar a aprendizagem da libras no período de desenvolvimento da criança, o que não a impede de posteriormente aprender o português. Diferentemente das crianças surdas, filhas de pais surdos, que adquirem a língua de sinais no convívio familiar, as filhas de pais ouvintes comumente chegam à idade escolar sem o conhecimento de uma língua. A língua majoritária na modalidade oral, comumente usada em famílias ouvintes, lhes é inacessível. No entanto, mesmo não partilhando a mesma língua que os pais, essas crianças desenvolvem linguagem gestual (PEREIRA, 2008, p. 81). A pesquisadora surda Strobel (2008, p.26) afirma que “a cultura surda exprime valores, crença que, muitas vezes, se originaram e foram transmitidas pelos sujeitos surdos de geração passada ou de seus líderes surdos bem sucedidos, através das associações de surdos”. Cultura é um conceito que destaca formas de constituição de subjetividades que auxiliam na determinação e organização de grupos (SÁ, 2006). Em se tratando do surdo, este conceito tem um significado diferenciado, já que ele se constitui na cultura surda que se trata do conjunto de significações simbólicas veiculadas pelo uso de uma língua, de estratégias e códigos sociais utilizados pelos surdos para viverem numa sociedade feita por e para ouvintes (SANTANA; BERGAMO, 2005). Assim, conhecer a cultura surda e aprender a utilizar esse conhecimento na abordagem ao povo surdo assim como na sensibilização de familiares, profissionais e comunidade ouvinte, é determinante para o acadêmico de Terapia Ocupacional. Com a criação dos recursos, os alunos viram como muitos brinquedos são inacessíveis ao surdo. Dessa forma, buscou-se adaptar brinquedos já existentes, criar ISSN 0104-4931 Cadernos de Terapia Ocupacional, UFSCar, São Carlos, v. 22, n. Suplemento Especial. 02, 2014. 86 ISSN 0104-4931 novos e selecionar alguns para serem utilizados na intervenção precoce; trabalhando contraste de cores, e ainda inserindo a Língua brasileira de sinais nesses recursos. O que facilitará o contato e a aprendizagem da criança com sua língua materna. Para a implantação do serviço, com os estudos realizados, e com o aparato do Núcleo de Atenção Médica Integrada, em apresentar o setor de estimulação precoce de Terapia Ocupacional e ofertar um espaço para aplicabilidade do projeto de pesquisa, a motivação e dedicação dos acadêmicos se voltaram para que esses recursos em construção tenha sua aplicabilidade o quanto antes, objetivando resultados satisfatórios dentro do serviço. Foi construído um tabuleiro para mediar a aprendizagem da criança surda sobre as cores, os animais, tipos de emoções e o alfabeto manual, contrastando as cores a fim de estimular a atenção da criança surda e aprendizagem da Libras. Também constitui o grupo de recursos construídos o “jogo dos números” em Algarismo, Libras e Palitinhos. Também está em fase de desenvolvimento um mural com imagens das atividades de vida diária com o seu respectivo sinal. E o “encaixe das formas geométricas” associadas aos respectivos sinais. Recomendações Tendo em vista o que foi estudado nas bibliografias utilizadas, pôde-se perceber que as barreiras atitudinais e físicas, tanto da família como da sociedade, em relação à surdez e à pessoas surda, geram consequências importantes para a constituição da identidade surda. Percebeu-se a relevância de realizar estudos acadêmicos que busquem meios de alcançar a inclusão social do surdo, sem que o mesmo necessariamente perca a sua identidade. Com a estimulação precoce bilíngue alcança-se tanto o desenvolvimento físico, cognitivo e social da criança surda, como fortalece a cultura surda e a Língua de Sinais. Identificou-se que devido à peculiaridade sensorial da criança surda, é necessário desenvolver recursos que favoreçam a intervenção precoce contextualizada, a fim de melhorar o desempenho ocupacional da criança surda. Percebeu-se a relevância de realizar a construção de recursos voltados para o surdo para aplicabilidade deles durante os atendimentos, visando a implantação de um serviço pioneiro no Ceará, voltado para o respeito à cultura surda. A construção dos recursos pelos acadêmicos é, portanto, uma das ferramentas mais relevantes para se alcançar o objetivo geral da pesquisa e intervenção. ISSN 0104-4931 Cadernos de Terapia Ocupacional, UFSCar, São Carlos, v. 22, n. Suplemento Especial. 02, 2014. 87 ISSN 0104-4931 Recomenda-se a continuidade da construção dos recursos considerando a cultura surda e posterior divulgação dos resultados de sua aplicação. REFERÊNCIAS DIZEU, L. C. T. B.; CAPORALI, S. A. língua de sinais constituindo o surdo como sujeito. Educ. 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