O exílio na vida e na poesia de Sophia de Mello Breyner Cristina Costa Vieira Departamento de Letras Universidade da Beira Interior [email protected] Resumo O exílio é ao mesmo tempo uma sensação existencial em Sophia de Mello Breyner Andresen e um dos principais temas da sua poesia. Sophia manifesta o sentido poético da solidão num mundo onde o belo, o bom e o justo não recebem a adesão das maiorias. Assim, o exílio é frequentemente o reino onde Sophia se isola, o que corresponde a três cronótopos: a casa de infância; a praia da Granja, recordação das suas vivências infantojuvenis; e a Grécia Antiga. Colocaremos à prova esta tese a partir de cartas e poemas da autora. Palavras-Chave Sophia de Mello Breyner; poesia; exílio; infância; Grécia Antiga. O exílio na vida e poesia de Sophia de Mello Breyner por Cristina Vieira 105 Abstract Exile is both an existential feeling in Sophia de Mello Breyner Andresen and one of the main themes of his poetry. Sophia felt alone in a world where the beautiful, the good and the just were often trampled. So, the exile is often the realm where Sophia isolates herself, which refers mainly to three space-time references: her childhood’s home, the Granja’s beach of her childhood and youth and Ancient Greece. We will put to the test this thesis based on letters and poems by the author. Keywords Sophia de Mello Breyner; poetry; exile; childhood; Ancient Greece «Ao contemplar a fonte de pureza, invade-me uma ardente sede» (Wagner, Tannhauser, Acto II). O poeta é um ser que se exila do convívio humano Ainda que o homem necessite de viver em sociedade, de contactar o Outro, para definir a sua identidade (Greimas e Courtés 1979: s.v. «alterité», 13), a solidão também faz parte da condição humana. Em primeiro lugar, esse é um sentimento que se agudiza em momentos de angústia, como ilustra paradigmaticamente a frase de Cristo pouco antes de expirar na cruz, «Deus meu, Deus meu, por que me abandonaste?» (Mat., 27, 46). Depois, existe uma barreira natural entre o «eu» e o Outro que Sigmund Freud explica em termos psicanalíticos: as pessoas não costumam revelar fraquezas e anseios mais íntimos, fazendo com que o ego, o «eu» consciente, não corresponda ao superego, o «eu» social, a imagem ideal que o ego constrói para os outros (Freud 1997: 29-41). Somos, por isso, seres em exílio, num sentido metafórico. Além disso, exilar-se do convívio dos homens pode ser voluntário: Buda isolou-se temporariamente do mundo para meditar e encontrar o caminho da iluminação. Escritores e artistas isolam-se amiúde de forma a potenciar a sua criatividade. E assim, o exílio e a poesia andam muitas vezes de mãos dadas. Com frequência, essa ligação apresenta a marca do padecimento, no que a literatura portuguesa é pródiga. Os motivos são os mais variados; ilustramo-los com brevidade para focarmos de seguida o caso de Sophia de Mello Breyner (1919-2004), um dos nomes maiores da nossa literatura, Prémio Camões 1999 e Prémio Rainha Sofia 2003. 106 Revista UBILETRAS n4 No poema «O sentimento dum ocidental» (1880), as ruas e os becos de uma Lisboa em vias de anoitecer sugerem a Cesário Verde «soturnidade» e «melancolia», pois a sensibilidade de um solitário sujeito poético perambulante não é imune às desigualdades sociais que tais espaços ostentam, desigualdades essas catalisadoras de epidemias, vícios e crimes (Verde 2006: 132-138). Em «Lusitânia no Bairro Latino» (1892), para António Nobre, estar só constitui uma condição tão forte que esta é projectada em título da colectânea: ei-lo num voluntário exílio numa Paris culturalmente estimulante, mas aonde não acorrem os pintores do seu «país estranho» (Nobre 1999: 45), torrão natal, do qual não consegue deixar de sentir pungentes saudades, mesmo que aí só haja agora «probres» (Ibidem: 41) moleiros ou pescadores a tentarem sobreviver, beatas em procissões eternas ou então moribundos padecendo das mais diversas doenças. «Ser poeta é ser mais alto, é ser maior / Do que os homens!», explica Florbela Espanca (1989: 134) no famoso soneto de Charneca em Flor (1930): daí que ela chore «amargamente» numa «Torre esguia junto ao Céu» (Ibidem: 43). Todavia, a poetisa confessa em «Versos de orgulho» que, na realidade, este exílio é a consequência de um sentimento pecaminoso: «O mundo quer-me mal porque ninguém Tem asas como eu tenho! Porque Deus Me fez nascer Princesa entre plebeus Numa torre de orgulho e de desdém». (Ibidem: 114). É precisamente de viver exílios egoístas em torres de marfim que o José Régio de Poemas de Deus e do Diabo e Encruzilhada de Deus é acusado por Álvaro Cunhal no artigo «Numa encruzilhada dos homens», publicado em 1939 no Sol Nascente (Torres 2002: 201). E, por fim, Jorge de Sena, de facto exilado no outro lado do Atlântico por uma feroz ditadura, apontou nas colectâneas Pedra Filosofal (1950) e Arte de Música (1968) a intransponibilidade entre o «eu» e o Outro e a vida quotidiana como duas fontes de inevitáveis exílios interiores, isto é, solidões, através de versos como «Nunca ninguém ao certo nos conhece» (Sena 1985: 92) ou ainda estes inscritos no poema «Elogio da Vida monástica»: «Outrora, uma pessoa retirava-se do mundo, amortalhava-se em vida, fazia-se monge, (...) Hoje, não há mais mundo de que uma pessoa possa retirar-se. O mundo se retirou de nós. E a solidão É como um convento gigantesco em que, na rua, nos transportes colectivos, na cama, olhamos a vizinhança com a mesma convicção com que os carmelitas descalços ao cruzarem-se no claustro mutuamente se saudavam dizendo que era preciso morrer».(Ibidem: 149). O exílio na vida e poesia de Sophia de Mello Breyner por Cristina Vieira 107 Também a obra poética de Sophia de Mello Breyner Andresen consiste frequentemente na aventura de entrar no reino de um verbum em exílio. Vejamos como e porque o faz. O exílio na pátria ou o belo, o bom e o justo Sophia de Mello Breyner Andresen, dona de uma beleza «elegante e graciosa» (Marques 2008: 30) que fez com que todos os seus amigos de faculdade, confessa Eugénio de Andrade, estivessem «de um ou de outro modo, enamorados dela» (Ibidem: 26), cultivou ao longo das suas catorze colectâneas poéticas de originais, desde Poesia (1944) até O Búzio de Cós e Outros Poemas (1997), a vontade de exprimir com nitidez o belo, estivesse este num pequeno objecto como as «rosas» que transbordam num «Jardim perdido», «em flor», e isolado do «mundo enorme» (Andresen 1999: 47), ou então numa paisagem vasta: «No alto mar A luz escorre Lisa sobre a água. Planície infinita Que ninguém habita. O Sol brilha enorme Sem que ninguém forme Gestos na sua luz. Livre e verde a água ondula Graça que não modula O sonho de ninguém. São claros e vastos os espaços Onde baloiça o vento E ninguém nunca de delícia ou de tormento Abriu nele os seus braços» (Ibidem: 49). Observe-se, desde logo, como estes versos inscritos na sua primeira coletânea associam implicitamente o exílio e o belo: é longe dos homens que a poetisa pode desfrutar as delícias da natureza, seja esta um Jardim edénico ou o Mar alto. Este exílio permite à poetisa, em ambos os casos, viver num reino muito pessoal, protector, em felicidade e inocência. No primeiro poema, o jardim, descrito a partir do pretérito imperfeito do indicativo e não do presente, salienta o êxtase provocado pela beleza fulgurante – impressionista – de todos os elementos que o compunham e, em consequência, a sensação de anulação do tempo, que os vocábulos «eternos» e «suspensão» sugerem: «A verdura das árvores ardia, O vermelho das rosas transbordava, Alucinado cada ser subia 108 Revista UBILETRAS n4 Num tumulto em que tudo germinava. A luz trazia em si a agitação De paraísos, deuses e de infernos, E os instantes em ti eram eternos De possibilidade e suspensão». (Ibidem: 47). Porém, trata-se de um «Jardim perdido», como o título salienta, à semelhança do Éden bíblico: o sujeito poético foi dele exilado. No segundo texto, a epanalepse do pronome de sema negativo «ninguém» marca uma paisagem primordial, inacessível a «gestos» e «braços» humanos, até aos do sujeito poético, ausência que torna tais espaços «claros e vastos», algo que a natureza parece agradecer: «a luz escorre», «O sol brilha», «Livre e verde a água ondula» e «baloiça o vento». Não é por acaso que Sophia se sente aprisionada, em exílio denotativo e distópico, na metrópole contemporânea, feia porque em desarmonia com a natureza e com os homens, como é visível em muitos poemas intitulados «Cidade», a exemplo do que se transcreve abaixo, inscrito em Poesia: «Cidade, rumor e vaivém sem paz das ruas, Ó vida suja, hostil, inutilmente gasta, Saber que existe o mar e as praias nuas, Montanhas sem nome e planícies mais vastas Que o mais vasto desejo, E eu estou em ti fechada e apenas vejo Os muros e as paredes, e não vejo Nem o crescer do mar, nem o mudar das luas» (Ibidem: 27). O exílio voluntário no belo, frequentemente feito em clave solitária, passa frequentemente pelas paisagens marítimas da infância ou pelas da Grécia Antiga. Sophia confessa em carta de 31 de Dezembro de 1967, dirigida ao amigo e poeta Jorge de Sena, que, sobretudo nos três primeiros livros, ou seja, Poesia, Dia do Mar e Coral, «quase só há árvores e praias» (Breyner e Sena 2006: 96). Porquê esta «nostalgia do passado em Sophia» (Ferreira 2006: 197)? Porquê esta fuga ao presente? O fascínio pelo belo de uma natureza de carga edénica originou erros interpretativos sobre a poesia sophiana, algo de que dá conta a autora numa missiva endereçada em 1962 a Jorge de Sena, esclarecedora a diversos níveis: «Estou a escrever-lhe em França, à volta de Itália, onde fui ao Congresso da COMES (Comunidade Europeia de Escritores). (...) Fui para Florença com Agustina Bessa-Luís, que era a delegada portuguesa. Pouco antes da minha partida veio a minha casa uma senhora italiana da COMES chamada Lusso. Veio trazida pelo O’Neill. Pediu-me versos meus, dei-lhe um Mar Novo ela abriu em duas páginas e declarou que eu não devia escrever poesia tão alheia aos problemas sociais portugueses. § (...) § Vim de Lisboa pensando que se tratava dum congresso apenas literário. Vim encontrar um congresso político, praticamente exclusivamente político, anti-fascista. Como você sabe eu sou anti-fascista, antiO exílio na vida e poesia de Sophia de Mello Breyner por Cristina Vieira 109 salazarista, anti-ditaduras. (...) § O Congresso era anti-fascista – coisa com que concordo mas os métodos usados foram fascistas, mal-educados e policiais. Que haverá por trás disto tudo. Todo o ambiente do Congresso foi de nervosismo e de desconfiança e eu sem o Francisco ao meu lado e sem mesmo ter combinado com ele qual a linha a seguir senti-me verdadeiramente só num mundo de intrigas que não é o meu. Muita falta me fez ali a sua presença. § Criaram à volta da Agustina um clima de suspeita e inquisição. E isto foi-me dito por uma pessoa direita e de carácter: Disseram-me que eu a devia abandonar pois o facto de eu andar com ela me comprometia. Como você sabe eu não sou capaz de abandonar nenhuma pessoa que está só e que é injustamente acusada e perseguida na sua liberdade» (Andresen e Sena 2006: 33-35). Sophia de Mello Breyner cantava, de facto, o belo, mas associando-o, de acordo com os preceitos clássicos, à bondade e à justiça: o belo, o bom e o justo são um só, exprimia Platão no livro X da República (614b-621b). Por isso, Eduardo Prado Coelho referenciou uma «beleza ética» em Sophia, já que nela «estética e ética são indestrincáveis» (Marques 2008: 31). Daí que a nossa poetisa se sentisse «verdadeiramente só num mundo de intrigas». Sophia combate a injustiça de uma ditadura pelo verbo e pela acção. Sente Portugal como terra de exílio onde grades imateriais cercam todos os portugueses. Esta noção de exílio é particularmente visível na parte intitulada «Grades» de Livro Sexto (1962): aí avultam, por exemplo, os textos «Pátria», «Exílio» e «Data». O primeiro termina com uma invocação à pátria, onde o termo «exílio» aparece no último verso como sinónimo de degredo: «Ó minha pátria e meu centro Me dói a lua me soluça o mar E o exílio se inscreve em pleno tempo» (Andresen 2006: 57). A dor causada por um regime que torna os portugueses (os poetas) exilados na sua própria terra, porque privados de palavras «ditas com paixão», como «Pranto dia canto alento» (Ibidem), torna Portugal uma pátria paradoxal. Eis o poema «Exílio»: «Quando a pátria que temos não a temos Perdida por silêncio e por renúncia Até a voz do mar se torna exílio E a luz que nos rodeia é como grades» (Ibidem: 60). De facto, a pátria torna-se paradoxal quando deixa de ser chão pátrio, que conforta e alenta, como faz a casa arquetípica paterna, para se transformar em lugar de exílio, porque os portugueses estão desapossados dos direitos de cidadania na própria nação. Em «Data», a poetisa reitera esse paradoxo através de uma longa enumeração: «Tempo de solidão e de incerteza Tempo de medo e tempo de traição 110 Revista UBILETRAS n4 Tempo de injustiça e de vileza Tempo de negação. Tempo de covardia e tempo de ira Tempo de mascarada e de mentira Tempo que mata quem o denuncia Tempo de escravidão. Tempo dos coniventes sem cadastro Tempo de silêncio e de mordaça Tempo onde o sangue não tem rastro Tempo de ameaça» (Ibidem: 61). Referindo-se ainda a Portugal, indica a autora de Dual (1972) em poema homónimo: «Dois cavalos a par eu conduzia Não me guiava a mim mas meus cavalos E no país de espanto e de tumulto Em mim se desuniu o que eu unia».(Idem 2004a: 37). Mas Sophia foi além do verbo, já que ela traduziu o bom e o justo durante a ditadura estado-novista em acções concretas, como o auxílio a presos políticos (Andresen e Sena 2006: 112; Marques 2008: 26) e a assinatura do «Documento dos 101», manifesto católico contra a política colonialista de Salazar (Andresen e Sena 2006: 80 e 158). Já depois da Revolução dos Cravos, o verbo sophiano continua a clamar por justiça num poema duríssimo intitulado «Nestes últimos tempos», escrito em dísticos e tercetos incisivos, e publicado na colectânea O Nome das Coisas (1977): «Nestes últimos tempos é certo a esquerda fez erros Caiu em desmandos confusões praticou injustiças Mas que diremos da longa tenebrosa e perita Degradação das coisas que a direita pratica? Que diremos do lixo do seu luxo – de seu Viscoso gozo da nata da vida – que diremos De sua feroz ganância e fria possessão? Que diremos de sua sábia e tácita injustiça Que diremos de seus conluios e negócios E do utilitário uso dos seus ócios? Que diremos de suas máscaras álibis e pretextos De suas fintas labirintos e contextos? Nestes últimos tempos é certo a esquerda muita vez Desfigurou as linhas do seu rosto O exílio na vida e poesia de Sophia de Mello Breyner por Cristina Vieira 111 Mas que diremos da meticulosa eficaz expedita Degradação da vida que a direita pratica?» (Andresen 1996: 239). O poema «A forma justa», que antecede o acima citado, utiliza a palavra «reino» para significar espaço de refúgio, um exílio utópico, mas realizável, que se contrapõe a esse exílio distópico em que o mundo se tornou. Concretizar esse reino é possível desde que o homem se inspire nos valores gregos da polis, feita à medida do homem e em harmonia com o cosmos. A Grécia Antiga pode ser solução para o futuro, e relembrar esse passado torna-se, pois, missão para Sophia de Mello Breyner: «Sei que seria possível construir o mundo justo As cidades poderiam ser claras e lavadas Pelo canto dos espaços e das fontes O céu o mar e a terra estão prontos A saciar a nossa fome do terrestre A terra onde estamos – se ninguém atraiçoasse – proporia Cada dia a cada um a liberdade e o reino – Na concha na flor no homem e no fruto Se nada adoecer a própria forma é justa E no todo se integra como palavra em verso Sei que seria possível construir a forma justa De uma cidade humana que fosse Fiel à perfeição do universo Por isso recomeço sem cessar a partir de páginas em branco E este é meu ofício de poeta para a reconstrução do mundo» (Ibidem: 238). Deste modo, os textos «A forma justa» e «Nestes últimos tempos» aparecem na colectânea O Nome das Coisas qual díptico, em que a poetisa desenha o mundo tal como poderia ser, belo, bom e justo, e o mundo tal como ele é, porque uma direita iníqua frustra a justiça entre os homens, exilando-os na sua própria pátria. Por outro lado, o poema «Catarina Eufémia», de Dual, refere a Grécia Antiga como alforge de exemplos de combate pela justiça que encontram paralelos no presente: «O primeiro tema da reflexão grega é a justiça E eu penso nesse instante em que ficaste exposta Estavas grávida porém não recuaste Porque a tua lição é esta: fazer frente Pois não deste homem por ti E não ficaste em casa a cozinhar intrigas (...) E não serviste apenas para chorar os mortos Tinha chegado o tempo Em que era preciso que alguém não recuasse E a terra bebeu um sangue duas vezes puro 112 Revista UBILETRAS n4 Porque eras a mulher e não somente a fêmea Eras a inocência frontal que não recua Antígona poisou a sua mão sobre o teu ombro no instante em que morreste E a busca da justiça continua» (Idem 1994: 74). A referencial ceifeira de Baleizão, grávida, morta a tiro por um oficial da GNR no decurso de uma greve rural de 1954, torna-se, na sua coragem que dispensa homem que a defenda, um caso tão paradigmático de luta pela justiça como a Antígona da tragédia sofocliana. Em ambos os casos, estas mulheres preferiram a morte a recuar na sua luta contra leis iníquas de homens que recusam em pátrias tornadas exílios o que há de mais sagrado para os seus habitantes: pão e exéquias para os entes queridos. Mas há outro exílio distópico na poesia de Sophia, que não corresponde nem à metrópole contemporânea, nem ao Portugal fascista, nem ao Portugal capitalista do pós-25 de Abril, e que também é causa de solidão. O exílio no casamento Sophia de Mello Breyner, que sempre vivera feliz na Cidade Invicta, em casa de seus pais, um casarão rodeado de extensos jardins, e de onde apenas se ausentara em 1936 para cursar Filologia Clássica na Universidade de Lisboa, passa a fixar-se «definitivamente em Lisboa» quando se casa em 1946 com Francisco Sousa Tavares, jornalista e advogado (Marques 2008: 22 e 26). A correspondência sophiana dirigida a Jorge e Mécia de Sena comprova uma grande cumplicidade ideológica e de trabalho entre Sophia e o marido, mas também momentos de desgaste do casal, causados por atrofias políticas de que Sousa Tavares era alvo ou então por ausências prolongadas deste, quando, por exemplo, se tinha de deslocar a Lisboa permanecendo o resto da família, de férias, em Lagos. Sophia, por exemplo, em, correspondência datada de 1960 deixa subentendido que Lisboa não era o seu meio e que o marido tem sido penalizado na sua profissão pelo regime ditatorial, implicando, por consequência, dificuldades económicas a uma família numerosa (cinco filhos). Vejamos duas passagens dessa epistolografia para ver como pode ganhar peso de tese encarar o casamento na poesia de Sophia como um exílio: «Vocês fazem-nos a maior falta. Vocês aqui eram um apoio num mundo tão terrivelmente diferente de mim que nem o entendo. (...) § (...) § (...) O Francisco tem tido trabalho e os problemas materiais deixaram de ser terríveis. O Francisco está calmo e estamos os dois quase sempre de acordo e em paz. O pior é a luta contra este ambiente exterior, uma luta em que se perde força e tempo.» (Andresen e Sena 2006: 24). «O Francisco tem tido muito trabalho e tudo correria perfeitamente se não fosse o clima político. Eu e você podemos escrever poemas, ensaios, histórias. Ele não O exílio na vida e poesia de Sophia de Mello Breyner por Cristina Vieira 113 pode escrever o que quer, nem dizer o que quer, nem realizar-se como quer. Não pode fazer “a obra do meio da vida”. Isso é assim para muita gente, mas parece-me que para ele é especialmente desesperante.» (Ibidem: 26). Julgamos que as dificuldades do dia a dia da sua vida de casal levaram Sophia a abordar poeticamente o casamento como um lugar de exílio, o que surge, aliás, na sua obra poética enquanto tema universal e não como tradução do seu caso pessoal. A vida a dois conduziu-a naturalmente a novas experiências e conclusões acerca do casamento: este acarreta a assumpção de novas responsabilidades, a perda da inocência quanto aos defeitos do amado, a cedência de hábitos e o abandono da privacidade. E o sujeito poético de vários poemas sophianos espelham essas reflexões. De facto, a muralha que opõe ab initio o «eu» a outros seres humanos pode ser particularmente angustiante quando o «tu» é o ser amado, uma vez que, se, por um lado, o sujeito poético feminino (feminilidade traída na flexão de alguns lexemas) deseja a entrega do «tu» masculino, por outro, o «eu» feminino receia revelar-se ao «tu». O casamento implica um desnudamento de máscaras, a renúncia de um reino muito pessoal, e desse desnudamento ou resulta o reforço do amor ou a solidão. Vejamos o poema «Eis-me», da colectânea acima referida: «Eis-me Tendo-me despido de todos os meus mantos Tendo-me separado de adivinhos mágicos e deuses Para ficar sozinha ante o silêncio Ante o silêncio e o esplendor da tua face Mas tu és de todos os ausentes o ausente Nem o teu ombro me apoia nem a tua mão me toca O meu coração desce as escadas do tempo em que não moras E o teu encontro São planícies e planícies de silêncio Escura é a noite Escura e transparente Mas o teu rosto está para além do tempo opaco E eu não habito os jardins do teu silêncio Porque tu és de todos os ausentes o ausente» (Andresen 2006: 33). O texto patenteia, assim, uma profunda frustração do «eu» feminino, que, tendo renunciado ao seu reino, ao seu jardim mágico e secreto, na expectativa de encontrar apoio e companhia no ser amado, apenas encontra «planícies e planícies de silêncio» nas presenças ocasionais do «tu» masculino ou então apenas constata a profunda ausência (física e emocional) daquele. Padeceria Sophia de alguns momentos de exílio solitário no seu casamento? É uma conjectura de que não tempos provas para a poder afirmar categoricamente. Apenas podemos verificar neste 114 Revista UBILETRAS n4 poema que a um «eu» feminino rola o coração pelas escadas abaixo e que ela não habita os jardins do silêncio do «tu». O amor só existirá, pois, quando se consumar a vitória sobre a solidão da vida conjugal, quando homem e mulher se reaproximarem, mesmo que o enlace implique dolorosas concessões, como expressa o poema «Para atravessar contigo o deserto do mundo», da mesma colectânea: «Por ti deixei meu reino meu segredo Minha rápida noite meu silêncio Minha pérola redonda e seu oriente Meu espelho minha vida minha imagem E abandonei os jardins do paraíso Cá fora à luz sem véu do dia duro Sem os espelhos vi que estava nua E ao descampado se chamava tempo Por isso com teus gestos me vestiste E aprendi a viver em pleno vento» (Ibidem: 44). Neste texto, o sentimento de perda do sujeito poético está enfatizado pelo poliptoto do pronome possessivo, aplicado a nomes com cargas positivas e que sugerem um fio isotópico de intimidade: «reino», «segredo», «noite», «silêncio», «pérola», «oriente». A verdade do desmascaramento realizado no seio de uma vida a dois – já exposta no poema «Eis-me» – está aqui expressa em termos ainda mais disfemísticos: a mulher aparece qual despojo de guerra em epopeia homérica, «nua» em pleno «descampado», «à luz sem véu do dia duro». No entanto, o arquétipo do marido como guerreiro conquistador (e violentador) ameniza-se no dístico final, o que dá uma tónica positiva às renúncias enumeradas pela poetisa em prol desta união: «com teus gestos me vestiste E aprendi a viver em pleno vento». Ou seja, o casamento implicou uma reconstrução do «eu», e parece consistir num ritual de passagem que transforma a jovem ingénua na adulta consciente e lúcida acerca do «deserto do mundo»: ela desnuda-se, ou seja, abandona o seu reino pessoal, para depois ser vestida pelo tu, isto é, para enfrentar a dois a realidade, simbolizada no vento. Exilar-se na casa da infância e na praia da juventude Que faz Sophia, além de lamentar ou criticar com sarcasmo ou contundência, os exílios disfóricos acima apontados? Ela procura fugir dos mesmos utilizando a poesia, qual Wang-Fô no conto de Yourcenar, O exílio na vida e poesia de Sophia de Mello Breyner por Cristina Vieira 115 e constrói para ela, através do verbum lírico, refúgios encantados que se tornam exílios de sinal positivo, reinos onde a poetisa se reencontra, e se religa ao mundo de modo harmonioso. Esses exílios utópicos não se localizam a rigor num espaço, mas em espaços-tempos, em cronótopos. Abordemos agora os que avultam com maior peso nas primeiras colectâneas ainda que estes sejam uma constante: a casa paterna e a praia da Granja da sua infância e juventude (Marques 2008: 22). A casa da infância torna-se importante pelo simbolismo da ligação à mãe amada. Ela representa o útero, o ninho perdido com a ida para Lisboa, o elo materno definitivamente quebrado com a morte de sua mãe a 17 de Novembro de 1967. Por outro lado, a casa da praia da Granja, em plena costa atlântica, associa os elementos casa e Oceano, mãe, de igual modo, de toda a vida na Terra. Uma missiva de Sophia dirigida a Jorge de Sena comprova o nexo existente entre a mãe de Sophia e tais exílios: «É a saudade, a ausência, o contínuo relembrar de tanta coisa que me corta. A minha Mãe estava para mim ligada à raiz de coisas essenciais: é uma das raras pessoas que aparece nos três primeiros livros onde quase só há árvores e praias. (....) Só o tempo me pode ajudar a esclarecer dentro de mim esta separação» (Andresen e Sena 2006: 96). Eis porque os lexemas «casa» e «mar» se reiteram e cruzam ao longo da obra poética de Sophia. Leia-se, deste modo, a «Casa branca», poema inscrito em Poesia: «Casa branca em frente ao mar enorme, Com o teu jardim de areia e flores marinhas E o teu silêncio intacto em que dorme O milagre das coisas que eram minhas ........... A ti eu voltarei após o incerto Calor de tantos gestos recebidos passados os tumultos e o deserto Beijados os fantasmas, Percorridos os murmúrios da terra indefinida. Em ti renascerei num mundo meu E a redenção virá nas tuas linhas Onde nenhuma coisa se perdeu Do milagre das coisas que eram minhas.» (Andresen 1999: 31). Os poemas «Casa» em Geografia (1967) e em Dual e «Regressarei» em O Nome das Coisas tematizam essa casa antiga onde a recordação de um espaço físico se confunde com a saudade da mãe. No primeiro texto, «antiga casa» e «reino» equivalem-se, aliás: 116 Revista UBILETRAS n4 «A antiga casa que os ventos rodearam Com suas noites de espanto e de prodígio (...) Permanece presente como um reino E atravessa meus sonhos como um rio» (Idem 1996: 53). A casa que eu amei foi destroçada A morte caminha no sossego do jardim A vida sussurrada na folhagem Subitamente quebrou-se não é minha». (Idem 2004a: 9). «Eu regressarei ao poema como à pátria à casa Como à antiga infância que perdi por descuido Para buscar obstinada a substância de tudo E gritar de paixão sob mil luzes acesas». (Idem 1996: 228). Atrevemo-nos a conjecturar que o facto de o Jardim estar onze vezes evocado só nas duas primeiras colectâneas de Sophia, Poesia e Dia do Mar, com valor arquetípico de Paraíso Perdido (Ceia 1996: 117-127), se deve à importância dos jardins dessa casa paterna e à simbologia que adquiriram, na vida de Sophia, de doce infância perdida, donde a associação ao Éden bíblico. Também a partir do vocábulo «mar», ponto de união da terra e do céu, se desenha na poesia sophiana um eixo radial composto pelas suas dádivas: luz e cor, algas e corais, búzios e conchas, limpidez e força, espuma e grutas, sereias e marinheiros, piratas e pescadores, infinito e maresia, planícies calmas e colunas de ondas, por oposição à «cidade suja». Os nomes atribuídos a numerosas colectâneas comprovam, aliás, esta preferência: Dia do Mar (1947), Coral (1950), Mar Novo (1958), Navegações (1983), Ilhas (1989) e O Búzio de Cós e Outros Poemas (1997). E esta preferência resulta, em primeiro lugar, do entendimento do mar como um reino a que se associa uma felicidade impoluta, a da infância e juventude. Subentende-se, por exemplo, a praia da Granja num poema como «Paisagem», de Poesia, pelas ondas intensas e pelo cheiro a maresia e pinhais característicos da costa atlântica e, sobretudo, pela emotividade que o sujeito poético coloca no texto: «Passavam pelo ar aves repentinas, O cheiro da terra era fundo e amargo, E ao longe as cavalgadas do mar largo Sacudiam na areia as suas crinas. Era o céu azul, o campo verde, a terra escura, Era a carne das árvores elástica e dura, Eram as gotas de sangue da resina E as folhas em que a luz de descombina». (Andresen 1999: 44). O exílio na vida e poesia de Sophia de Mello Breyner por Cristina Vieira 117 A descrição da praia continua, marcando sempre o pretérito imperfeito do indicativo um tempo passado. E se dúvidas houvesse quanto à ligação primordial de Sophia à Granja e sua influência no modo de mais tarde vir a percepcionar a Grécia, veja-se o poema «O Búzio de Cós», em colectânea homónima, onde a poetisa discorre desta forma acerca do som ouvido no búzio que comprara numa venda dessa ilha mediterrânica: «Porém nele não oiço Nem o marulho de Cós nem o de Egina Mas sim o cântico da longa vasta praia Atlântica e sagrada Onde para sempre minha alma foi criada» (Idem 2004b: 10). É, pois, nessas atlânticas «praias onde a direito o vento corre» (Idem 1999: 44) que Sophia se exila da presença dos homens. Porém, a nudez dessas praias não serve apenas para a poetisa se refugiar em solitária contemplação da paisagem. Muitas vezes o mar é também espaço para a comunhão panteísta com os elementos da natureza: «De todos os cantos do mundo Amo com um amor mais forte e mais profundo Aquela praia extasiada e nua, Onde me uni ao mar, ao vento e à lua. («Mar», Ibidem: 18). Meio-dia. Um canto da praia sem ninguém. (...) E o mar imenso solitário e antigo, Parece bater palmas». («Meio-dia», Ibidem: 19). «As ondas quebraram uma a uma Eu estava só com a areia e com a espuma Do mar que cantava só pra mim. (Ibidem: 81). O que deve ser ressalvado na análise poética deste cronótopo é que Sophia se esforça por esbater as referências espácio-temporais claramente identificáveis, à excepção dos textos com ligação ao mar de Lagos e aos mais variados topónimos gregos. Queremos com isto significar que a paisagem marítima proporciona uma ilusão de eternidade, como é claro num poema sugestivamente intitulado «Reino», de Livro Sexto: «Reino de medusas e água lisa Reino de silêncio luz e pedra Habitação das formas espantosas Coluna de sal e círculo de luz Medida da Balança misteriosa».(Idem 2006: 13). 118 Revista UBILETRAS n4 Anulando os vectores temporais ao poetar um mar exilado de gentes e de referências ao presente, a poetisa reencontra a sua tão amada Grécia, país de não menos belas praias. Donde o privilégio dado à paisagem marítima em Sophia, numa reelaboração das coordenadas tradicionais campo / cidade na poesia portuguesa. O poema «Foi no mar que aprendi», da colectânea O Búzio de Cós e Outros Poemas, é elucidativo, como aponta António Cunha (2004: 31), da ligação existente em Sophia entre o mar e a arte grega: «Foi no mar que aprendi o gosto da forma bela Ao olhar sem fim o sucessivo Inchar e desabar da vaga A bela curva luzidia do seu dorso O longo espraiar das mãos de espuma Por isso nos museus da Grécia antiga Olhando estátuas frisos e colunas Sempre me aclaro mais leve e mais viva E respiro melhor como na praia».(Idem 2004b: 11). Exilar-se no Antigo Por conseguinte, o Mar arquetípico conduz-nos ao exílio retemperador mais recorrente na poesia sophiana a partir de Livro Sexto, a Antiguidade grega. De facto, estes três reinos ou exílios utópicos – a casa da infância, a praia atlântica da juventude e a Grécia Antiga – acabam por ter ligações subterrâneas que só, porventura, a leitura integral do livro Dual permite decifrar: a primeira parte, intitulada «Casa», com seis poemas dedicados à casa ou à mãe, algum nexo terá com outras partes desta mesma colectânea, como «Delphica», um conjunto de sete poemas dedicados à cidade de Delfos, ou «Arquipélago», com nove poemas dedicados a outros locais da Hélade, como Hydra ou Creta. De outra forma, esta colectânea não seria um livro estruturado, mas uma soma inorgânica de poemas. Na verdade, para Sophia, a Grécia, matriz da civilização ocidental, acaba por ser uma segunda mãe, sobretudo depois da morte da sua mãe carnal. O facto de Livro Sexto constituir um ponto de viragem na poética de Sophia, não retirando, todavia, o valor das referências gregas presentes em colectâneas anteriores a 1962, relacionar-se-á, porventura, com o impacto de várias viagens da autora à Grécia, datando-se a primeira de 1963, conforme atesta a correspondência entre Sophia e Jorge de Sena (Andresen e Sena 2006: 65-68, 75-77, 124). Eis o relato feito ao autor de O Físico Prodigioso: «Não tento descrever-lhe a Grécia nem tento dizer-lhe o que foi ali a minha total felicidade. Foi como se eu me despedisse de todos os meus desencontros, todas as minhas feridas e acordasse no primeiro dia da criação num lugar desde sempre pressentido. Sobre a Grécia só o Homero me tinha dito a verdade: mas não toda. O exílio na vida e poesia de Sophia de Mello Breyner por Cristina Vieira 119 O primeiro prodígio do mundo grego está na Natureza: no ar, na luz, no som, na água. É uma natureza mitológica onde as montanhas e as ilhas têm um halo azul que não é imaginado (...). Sob o sol a pique, numa claridade azul indescritível, o ar é tão leve que nos torna alados e o menor som se recorta com uma inteira nitidez. As enormes e constantes montanhas povoam tudo de solenidade. Cheira a resina e a mel e há uma embriaguez austera e lúcida.» (Andresen e Sena 2006: 65-66). Geografia, publicada em 1967, atesta esse salto nas referências ao passado grego na sequência da primeira viagem de Sophia à Grécia, em 1963: além de «Ressurgiremos», só outro poema apresenta uma referência clara à Antiguidade grega em Livro Sexto, «Os asphodelos» (Andresen 2006: 48). Geografia, pelo contrário, começa por um poema em prosa dedicado a Igrina (Idem 1996: 11), além de a parte V, «Mediterrânico», abranger nada mais nada menos do que treze poemas dedicados a espaços ou realidades gregas, de que os mais famosos serão porventura «No golfo de Corinto» e «Crepúsculo dos deuses», onde Sophia, respectivamente, exalta o deslumbramento causado por essa paisagem intensamente bela e lamenta o fim dessa cultura (Ibidem: 62 e 70-71). Colectâneas como Dual, O Nome da Coisas ou O Búzio de Cós revelarão idêntica intensidade da presença da Hélade. Porém, importa-nos aqui realçar outro texto de Geografia, pela sua ligação ao tema do exílio. Em «Acaia», um curto dístico dedicado a essa cidade grega, e que abre a parte «Mediterrâneo», Sophia diz estas pertinentes palavras: «Aqui despi meu vestido de exílio E sacudi de meus passos a poeira do desencontro» (Ibidem: 61). Por conseguinte, o exílio distópico que a ditadura salazarista constituía para a poetisa é de imediato posto de parte na Hélade, esse reino purificador, esse exílio eufórico. No mesmo sentido vão estes inscritos em Dual: «Eis aqui o país da imanência sem mácula o reino que te reúne sob o rumor de folhagens que há nos deuses» (Idem 2004: 53). Esta sensação é explicada em carta a Jorge de Sena: «Mas acima de tudo queria voltar à Grécia que foi para mim o deslumbramento inteiro e puro e onde me senti livre e com asas.» (Andresen e Sena 2006: 75). Os diversos temas relacionados com o cronótopo da Grécia Antiga na poesia sophiana podem, aliás, reunir-se debaixo do lexema «purificação». Os poemas que tematizam a Hélade desdobram-se em vocábulos como «pureza», «puro», «limpidez», «claridade», «luz», «transparência» e «branco». «Ressurgiremos», de Livro Sexto, é a esse nível paradigmático. Aí, espaços como Cnossos e Delphos, respectivamente os centros políticoreligiosos da Grécia arcaica e da Grécia clássica, são encarados como «o 120 Revista UBILETRAS n4 reino do homem», reino do bem e da paz, porque banhados por uma luz purificadora: «Ressurgiremos ainda sob os muros de Cnossos E em Delphos centro do mundo Ressurgiremos ainda na dura luz de Creta (...) Ressurgiremos ali onde pedra estrela e tempo São o reino do homem Ressurgiremos para olhar para a terra de frente Na luz limpa de Creta» (Andresen 2006: 25). A exaltação, simultaneamente apolínea e dionisíaca, vivida por Sophia quando toca solo grego patenteia-se, por exemplo, no longo poema «O Minotauro», da colectânea Dual, escrita na sequência da sua segunda viagem à pátria de Sócrates e de Péricles, em 1970, e de que se transcrevem aqui alguns versos: «Em Creta Onde o Minotauro reina Banhei-me no mar Há uma rápida dança que se dança em frente de um toiro Na antiquíssima juventude do dia Nenhuma droga me embriagou me escondeu me protegeu Só bebi resina tendo derramado na terra a parte que pertence aos deuses De Creta Enfeitei-me de flores e mastiguei o amargo vivo das ervas Para inteiramente acordada comungar a terra De Creta Beijei o chão como Ulisses Caminhei na luz nua (...) Caminhei no palácio dual de combate e confronto Onde o Príncipe dos Lírios ergue os seus gestos matinais» (Idem 2004a: 57-58). Neste lugar de profundas ressonâncias mitológicas, habitat e reino do Minotauro, Sophia vive em estado de êxtase, parecendo querer entrar em osmose com a natureza cretense, seu mar e plantas. Honra aquele chão como Ulisses o fez na Odisseia, mas também como faz um papa quando visita um país. Aquele é chão sagrado para Sophia, e a melhor forma de celebrar essa sacralidade é unir-se à natureza de Creta, nela purificar-se. Depois, enfrenta o medo atravessando os corredores labirínticos do palácio O exílio na vida e poesia de Sophia de Mello Breyner por Cristina Vieira 121 de Cnossos, domínio do «Príncipe dos Lírios», ou seja, do rei cretense. Nunca há medo, só felicidade. Daí que esse local seja também o reino de Sophia, e não apenas o do Minotauro. Conclusão: a procura que se quer cumprir Sophia canta, pois, nestas paisagens, helénicas ou não, momentos de purificação: sucede assim também quando recorda a casa da infância e as praias atlânticas da sua juventude. Daí que estes cronótopos correspondam a «reinos». Todavia, é legítimo aferir que a procura do belo, do bom e do justo no mundo dos homens cria em Sophia múltiplos momentos de frustração. A demanda destes ideais clássicos obriga frequentemente a autora a alhear-se da vida que a rodeia, algo projectado na infeliz Eurídice de «Soneto de Eurydice», procurando debalde Orpheu, numa inversão de papéis do famoso mito clássico. O principal problema é que a fuga ao presente hediondo a leva até passados irrecuperáveis, como ensinou Héraclito. Sophia tem disso uma amarga consciência, reconhecendo que a força centrífuga de Delfos, por exemplo, já não existe, foi destruída pelo monstro Python, como indica o poema «Delphica II», de Dual: «Python venceu Apolo num frontão obscuro Quebrada foi desde seu eixo recto A construção possível do futuro».(Ibidem: 18). A demanda do belo, do bom e do justo obriga a nossa autora, na verdade, a um eterno exílio do presente. E é só no refúgio da sua poesia, na capacidade do verbum presentificar tempos e espaços, que ela verdadeiramente pode encontrar o seu reino, a sua verdadeira pátria, como lamenta em Coral: «Ó poesia – quanto te pedi! Terra de ninguém é onde eu vivo E não sei quem sou – eu que não morri Quando o rei foi morto e o reino dividido». (Idem 1999: 223). A tragédia decorre, por conseguinte, de o «reino» coincidir com um exílio. Entre algumas possíveis soluções para tal paradoxo, a autora de Livro Sexto parece encontrar uma saída do labirinto: na sua senda de perfeição, julgando que a «solidão» lhe parecia «coroa» (Idem 2006: 29), o sujeito poético constata, depois de longo périplo, que a «Estrela», de Belém, o conduz de novo ao convívio entre os homens do presente, entre a dor e o disforme, que é onde o simples e o belo podem ter algum valor. 122 Revista UBILETRAS n4 Bibliografia A Bíblia de Jerusalém (1985). S. Paulo: Edições Paulinas. Andresen, Sophia de Mello Breyner (1996). Obra Poética III. 2ª ed. Lisboa: Caminho. Andresen, Sophia de Mello Breyner (1999). Obra Poética I. 5ª ed. Lisboa: Caminho. Andresen, Sophia de Mello Breyner (2004a). Dual. Edição definitiva. Lisboa: Caminho. Andresen, Sophia de Mello Breyner (2004b). O Búzio de Cós e Outros Poemas. Edição revista. Lisboa: Caminho. Andresen, Sophia de Mello Breyner (2006). Livro Sexto. 8ª edição, revista. Lisboa: Caminho. Andresen, Sophia de Mello Breyner e Sena, Jorge de (2006). Sophia de Mello Breyner e Jorge de Sena. Correspondência 1959-1978. Lisboa: Guerra e Paz. Ceia, Carlos (1996). Iniciação aos Mistérios da Poesia de Sophia de Mello Breyner Andresen. Lisboa: Vega. Cunha, António Manuel dos Santos (2004). Sophia de Mello Breyner Andresen: Mitos Gregos e Encontro com o Real. Lisboa: In-CM. Espanca, Florbela (1989). Sonetos. Edição completa com um estudo crítico de José Régio. Venda Nova: Bertrand Editora. Ferreira, José Ribeiro (2006). Nostalgia do passado em Sophia: o fascínio da Grécia. 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