O
Trabalho
em
Equipe
na
Atenção
Psicossocial:
a
‘prática entre vários’
Autores:
Ana Cristina Costa de Figueiredo
email: [email protected]
Psicanalista; Doutora em Saúde Coletiva IMS/UERJ; Professora do Programa de Pósgraduação em Teoria Psicanalítica e do Instituto de Psiquiatria IPUB / UFRJ,
Supervisora do CAPS Profeta Gentileza – SMS-Rio, Membro da Associação
Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental (AUPPF), Coordenadora do
GT “Dispositivos Clínicos em Saúde Mental” da ANPEPP.
Andréa Máris Campos Guerra
e mail [email protected]
Psicóloga, Psicanalista, Doutoranda do Programa de Pós-graduação em Teoria
Psicanalítica da UFRJ, Professora da PUC- Betim/MG e da FUMEC, Participante do
GT “Dispositivos Clínicos em Saúde Mental” da ANPEPP.
Doris Rangel Diogo
e mail [email protected]
Psicanalista, Doutoranda do Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica da
UFRJ, Professora da FAMATh, Psicóloga
da SMS-Rio, Participante do GT
“Dispositivos Clínicos em Saúde Mental” da ANPEPP.
Introdução
O campo da Saúde Mental vem ampliando e diversificando a oferta de novos
dispositivos de assistência a partir das atuais políticas públicas de saúde que visam
implementar os projetos da reforma psiquiátrica contra a cronificação presente na
tradição manicomial. Os Centros de Atenção Psicossocial - CAPS que atendem à
população com transtornos mentais graves são o eixo desse projeto e devem operar de
modo integrado com os demais serviços em sua área como os ambulatórios, hospitais
gerais e psiquiátricos e outros. Para tanto, requerem a formação permanente de seus
profissionais e o exercício constante do trabalho interdisciplinar. A proposta dos CAPS
visa a resgatar a importância da cidadania, dos direitos civis e da ressocialização dos
que sofrem de graves transtornos psíquicos. Entretanto, é cada vez mais imperativo que
se discuta os paradigmas clínicos, assistenciais e de cuidados em geral para que se possa
melhor avaliar seus objetivos e sua efetividade no campo.
A psicanálise é um dispositivo clínico importante nesse campo, pois trabalha
fundamentalmente a partir de uma determinada concepção de sujeito e de sua palavra,
oferecendo novas possibilidades de intervenção e uma abordagem que vai além de
intervenções pedagógicas adaptativas ou terapêuticas paliativas. Ambas tão freqüentes
no cotidiano das práticas psicológicas em instituição. Suas possibilidades também vão
além das chamadas ‘psicoterapias’ individuais ou em grupo, que eram predominantes
nas décadas anteriores. Hoje, o desafio da psicanálise vai além dessas propostas e deve
ser enfrentado na raiz de sua fundamentação, de seus conceitos e dos possíveis usos que
daí advêm. Nesse sentido, a proposta deste trabalho é justamente apresentar e discutir
uma proposta da psicanálise para a clínica da atenção psicossocial, mais
especificamente no que se refere ao trabalho em equipe como o eixo central dessa
clínica no CAPS, a fim de trazer contribuições para a ampliação dos dispositivos
clínicos da rede de serviços na direção da reforma psiquiátrica em curso no Brasil.
Apresentamos
aqui
brevemente
o
que
ficou
conhecido
como
a “pratique à plusieurs”,que por hora traduzimos como a ‘prática entre vários’, como
um exemplo significativo do trabalho coletivo em instituições de tratamento de
pacientes graves que necessitam do suporte da convivência para além das
consultas médico-psicoterápicas.
O que é a prática entre vários? Quais são os eixos estruturantes dessa prática? Como
aplicar a prática entre vários nos centros de atenção psicossocial? São as principais
questões que devemos responder nesse primeiro momento para estabelecer um patamar
comum de discussão sobre as ferramentas do trabalho coletivo em equipe referido à
psicanálise.
O que é a prática entre vários?
A
prática
entre
vários
é
uma
estratégia
clínica
inventada
por
Antonio Di Ciaccia (2003:33) e sustentada com alguns outros, em sua experiência com
a psicanálise aplicada na instituição Antenne 110 na Bélgica, para crianças autistas e
psicóticas, a partir de sua decisão de demonstrar um axioma de Lacan, isto é, como as
crianças autistas estão inscritas na linguagem. Esta forma de intervir foi se estendendo
às demais instituições que constituem o RI3[1] e, posteriormente, às instituições
semelhantes em outros países, inclusive entre nós, como se pode constatar na
experiência registrada em algumas instituições[2].
É preciso dizer que essa prática surgiu a partir dos impasses reconhecidos com tal
por Di Ciaccia e
alguns
outros,
em
que acontecimentos
repetitivos
se presentificavam como formas desreguladas de gozo, convocando uma intervenção da
equipe. O risco, em casos como esses, é alguém vir a encarnar o Outro, a partir do lugar
de mestre, daquele que se acredita deter o saber sobre um sujeito, este destituído de sua
posição e tratado como objeto de gozo, o que só produz a repetição do gozo.
O que quer dizer que a prática entre vários é uma estratégia clínica?
Estratégia remete ao escrito de Lacan (1958:595-596), que utilizou uma analogia bélica
e também com o jogo para situar o modo de o analista conduzir o tratamento, onde
assinala que o analista é menos livre em sua estratégia do que em sua tática e menos
ainda em sua política, onde faria melhor se situando em sua falta-a-ser.
Acompanhando esta analogia, é possível dizer que a prática entre vários é
uma estratégia para operar com a transferência na clínica com psicóticos que
permanecem na instituição por um certo tempo em contato constante com a equipe.
Se os referenciais de tática, estratégia e política são desejáveis na direção de todo
tratamento, qual é a particularidade no caso de tratamentos de sujeitos psicóticos, na
instituição?
No caso da psicose, podem vir a surgir tanto a erotomania como o delírio persecutório
como fenômenos transferenciais, que são soluções que situam o Outro, mas o fazem de
modo excessivo para o sujeito. O analista precisa inventar formas possíveis de sustentar
a transferência sem que esta se torne um obstáculo incontornável, já que a certeza
delirante pode vir no lugar da suposição de saber, o que pode provocar uma irrupção de
gozo.
Jimenez (2004) propõe o S (), o semblante da falta do Outro, como o lugar para o
analista se situar na clínica com psicóticos, seja ou não na instituição, diferentemente do
que ocorre na clínica com sujeitos neuróticos, onde o analista pode ocupar o lugar de
semblante do objeto causa de desejo. Ocupar esse lugar indica que o Outro não é
consistente, trabalhando para esvaziar a atribuição de saber e poder que lhe é
endereçada, transformando-a em não saber e, conseqüentemente barrando o poder,
situando qualquer saber prévio como impossível.
Na prática entre vários, essa suposição de saber é deslocada de um saber atribuído à
equipe, para uma suposição de saber do sujeito. Portanto, do lado da equipe se inscreve
uma posição de não-saber que pode interrogar o sujeito, e pode vir a fazer algo inédito
com isso.
Quais são os eixos estruturantes da prática entre vários?
Di Ciaccia (2003:36) estabelece três eixos que funcionam como ponto de basta para a
instituição na prática entre vários:
1. A reunião dos membros da equipe: o lugar de fala que visa evitar a objetivação da
criança (do paciente).
2. A função do responsável terapêutico: função encarnada por qualquer um mas não um
qualquer da equipe.
3. A referência teórica e clínica de orientação lacaniana do Campo Freudiano.
Comentando cada um desses eixos, podemos dizer que:
O primeiro eixo destaca a prática entre vários como um modo de operar com o discurso
analítico que desloca o saber prévio da equipe sobre o caso para uma interrogação, a
partir do que o próprio sujeito vai ensinando à equipe sobre seu modo particular de lidar
com o gozo excessivo, devido à desregulação do Outro.
Nas reuniões clínicas, a partir dos relatos da equipe sobre o que se passa na
transferência de cada sujeito com os participantes da instituição, se cotejam
significantes ou algum ato repetitivo.
Estes elementos extraídos, que servem para mapear um certo percurso pulsional, são
transmitidos sob efeito da transferência de trabalho, levando à construção do caso
clínico.
Laurent (1997) destaca que a originalidade de Antenne com a prática entre vários, não
foi a de criar um dispositivo centrado no grupo, mas um dispositivo onde cada um dos
participantes está atento para favorecer erecolher as produções do inconsciente nos
acontecimentos de fala e de linguagem e reportá-las para a construção do caso em
equipe, não recuando diante do contra-senso, do mal-entendido, do paradoxo para fazer
surgir a cristalização da linguagem. Opera-se a partir de um certo cálculo e não de modo
aleatório.
Stevens (2002:18) propõe colocar em primeiro lugar não o S1 (significante mestre) da
cultura, mas o sintoma de cada sujeito, isto é, o S1 e o objeto a, uma parte de gozo que
esse S1 vem fixar, o que possibilita ao sujeito novo ponto de ancoragem.
Referindo-se ao último ensino de Lacan, que assinala uma dimensão irredutível (Real)
do sintoma, que não é absorvido pela linguagem, Zenoni (2004) propõe uma
equivalência entre sinthoma e laço social, já que outras formas de enodamento do R.S.I.
são possíveis, e não apenas a que se efetiva através da referência fálica, em torno
do Nome-do-Pai, como operador simbólico.
Sustentar a construção de um sinthoma é um modo de localizar, nomear, circunscrever o
gozo, por meio de significantes.
O segundo eixo situa a função do responsável terapêutico, função encarnada por
qualquer um, mas não por um qualquer, que deve permitir a cada um da equipe atuar na
primeira pessoa, bem como confirmar, ou não, o axioma de Lacan sobre a inscrição da
criança autista na linguagem. Este ponto também pode se estender aos psicóticos de um
modo geral.
É aí que a prática entre vários pode ser uma estratégia interessante, posto que pluraliza
esse Outro, que com isso perde uma consistência para o sujeito. Oferece-se assim um
certo desdobramento para a transferência, servindo também de suporte para certas
intervenções a partir da triangulação em uma cena.
É neste sentido que Stevens (2002:18) assinala que a prática entre vários é o contrário
da prática em equipe interdisciplinar porque o analista não é o especialista que trata das
questões do sujeito ou do gozo.
Em um dado momento, pode acontecer de um dos membros da equipe vir a se autorizar
e intervir, em seu próprio nome, de modo contingente, através de um ato, de um dizer,
que pode surpreendê-lo tanto quanto ao paciente, inscrevendo algo novo na experiência
do real na clínica.
Os comentários de Di Ciaccia (2003:37) indicam que não se trata de produzir o discurso
psicanalítico, como tratamento na instituição, mas de fazer surgir algo novo no circuito
das trocas simbólicas que implicam os registros do R.S.I., quando afirma que:
(...) cada um dos participantes da equipe não se refere à sua especialidade, mesmo que
psicanalítica, mas antes garante, apenas por sua presença que a ocasião de um
encontro seja apreendida.
No terceiro eixo, pode-se supor que Di Ciaccia, ao destacar a referência teórica e clínica
de orientação lacaniana do Campo freudiano, esteja se referindo à transferência de
trabalho com o ensino de Lacan, já que é preciso compartilhar algumas premissas tais
como: o sujeito e o Outro, a fala e a linguagem, o gozo e o significante articulados
no sinthoma, para poder operar na prática entre vários. Isto é diferente de dizer que se
trata de pertencimento de toda a equipe a uma determinada instituição psicanalítica.
Esta forma peculiar de operar com a equipe, na prática entre vários, vem sendo
trabalhada por muitos no Campo freudiano. Ela é tributária do ensino de Lacan, que, ao
longo de um percurso, passou também por um reviramento topológico, daí sobressaindo
pelo menos dois tempos de elaboração que não se excluem completamente, e cujos
efeitos orientam a experiência clínica. Embora reconhecendo ao longo de sua obra os
registros do R.S.I., no primeiro ensino Lacan destacou a articulação entre o imaginário e
o simbólico enquanto que no segundo ensino, o registro do real do gozo articulado com
significantes, privilegiando não um deciframento, mas um saber fazer algo neste ponto
onde o gozo incide. O que Lacan chamou de savoir y faire – saber fazer aí.
Para Laurent (2000:167-168), as instituições que se orientam a partir da prática entre
vários são formas de vida com o Outro, com o Outro do amor, da transferência para
além da experiência psicanalítica. Outro a ser construído como lugar, quando ele não
está presente, ao mesmo tempo em que o sujeito se inventa.
Para tal, só circunscrevendo o real em jogo a partir da direção dada por cada sujeito e a
cada vez. É uma clínica que visa ancorar no real a repetição do gozo em sua articulação
significante.
Rêgo Barros (2003) mostra a prática entre vários através do manejo de um caso clínico
de uma criança psicótica que, problematizando o lugar do Outro como saber,
introduziu um elemento novo numa simples brincadeira com água que marcou, ao
mesmo tempo, uma regulação do gozo para o Sujeito e para o Outro, evitando assim as
armadilhas institucionais que convocavam o discurso do mestre nas proibições, só
reproduzindo a exclusão do gozo, e provocando seu retorno.
Sobre isso, Rêgo Barros (2003: 81) afirma:
O desafio é tratar esse excluído de forma a que ele possa retornar no âmago mesmo da
criação significante, furando o universal ao qual ele aspira, para poder rir, no bom uso
da ironia.
Como aplicar a ‘prática entre vários’ nos Centros de Atenção Psicossocial?
Di Ciaccia (2003:37-38) problematizou a difusão da prática entre vários para outras
instituições, propondo como precisão teórica os critérios do enquadre institucional no
que se refre ao lugar da fala e do dizer do sujeito a partir dos quatro elementos dos
discursos. Portanto, o que distingue essa prática entre vários, de outras modalidades de
trabalho em equipe, é a articulação entre significante e gozo na linguagem e não a idéia
de trabalho em equipe como coletivo ou grupo.
Com relação ao coletivo, devemos diferenciá-lo do ‘grupo’ que traz a idéia do todo, e a
indicação que temos da psicanálise é que o coletivo não se sustenta no todo. Numa
direção diferente da máxima da Gestalt que afirma que ‘o todo é mais do que a soma
das partes’, afirmamos que não há todo na soma das partes. É justo essa abertura, essa
fenda, que permite que no interior da equipe o próprio paciente, como o que vem do
real, faça furo. O susto do primeiro atendimento pode vir seja do paciente, de familiares,
da escola, da clínica médica ou de quem quer que seja, como uma demanda enigmática,
uma fala delirante ou um comportamento disruptivo que fura o suposto ‘todo’ da
equipe.
O coletivo que não fecha difere do coletivismo ‘igualitário’ que muitas vezes se impõe
como garantia da equipe na proposta democrática. Não há garantia na clínica, mas há
uma direção para o trabalho, um risco calculável. Esse cálculo, no entanto, só pode ser
feito a partir do primeiro ato da intervenção. É importante destacar que o ato é solitário,
mas nem por isso intransmissível. Pode-se produzir um saber a partir disso que deve ser
partilhado. A responsabilidade do ato de cada um também é partilhável, e deve ser
retomada em determinado momento do trabalho coletivo. Essa é a perspectiva
da prática entre vários.
Nossa aposta é que essa estratégia se articule através da transferência de trabalho para
proceder à construção do caso e fazer caminhar o coletivo não-todo da equipe
sustentado num certo vazio de saber. Certamente essa proposta a partir da prática entre
vários é viável para os CAPS, mas nem todos, já que isto implica uma decisão dos
participantes da equipe que requer um certo investimento de cada um para sustentá-la.
Será a partir do desejo decidido de alguns que este processo poderá vir a ser
desencadeado, transformando acontecimentos em oportunidades para se fazer laço
social, em uma perspectiva de transmissão da.psicanálise na visada do sujeito. Aqui é
importante marcar que não se trata de ensinar psicanálise ou psicanalisar a instituição ou
qualquer um de seus participantes. Mas de recolocar o sujeito em sua dimensão de real,
de acontecimento e constituição permanente, no foco da clínica nas diferentes situações
que se apresentam no cotidiano de nossa prática.
Referências Bibliográficas
DI CIACCIA, A Inventar a psicanálise na instituição. In: Usos da psicanálise. Rio de
Janeiro: Contra capa, 2003, p. 33-38.
FIGUEIREDO, A. C. Uma proposta da psicanálise para o trabalho em equipe na
atenção psicossocial. In Mental, ano III nº 5, nov. 2005, UNIPAC, p 43-55.
_____ A construção do caso clínico: uma contribuição da psicanálise à psicopatologia e
à saúde mental. In Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental,
vol.VII, nº 1, março de 2004, p.75-86.
JIMENEZ, S. Psicóticos em análise. In: Encontro AMP Salvador, 2004.
LACAN, J. A direção do tratamento e os princípios do seu poder. In: Escritos. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Editor, (1958) 1998.
LAURENT, E. Apresentação. In: Préliminaire: Pratique à plusieurs, nº 9/10.
LAURENT, E. Psicanálise e saúde mental. In: Curinga, nº 14, abr 2000. Belo
Horizonte, EBP-MG
RÊGO BARROS, M, R, C. A prática lacaniana nas instituições: uma experiência de
vários.. In: Opção Lacaniana nº 37, set.2003.
STEVENS, A. A Instituição: prática do ato. In: Carta de São Paulo. Boletim da Escola
Brasileira de Psicanálise. Ano 10, nº 4, agost/set 2003.
ZENONI, A. Le lien social et le symptôme dans la psychose. Bruxelas, 2004.
[1]
Réseau Internationale des Institutions Infantiles – RI3 – ligado à Associação Mundial de Psicanálise AMP
[2] Dentre estas, a experiência do NAICAP, do Instituto Philippe Pinel e do CAPS Pequeno Hanns,
ambos da Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro – SMS-RJ.
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Ana Cristina Costa de Figueiredo, Andréa Máris Campos Guerra e