Prefeitura Municipal de Porto Alegre Escola de Gestão Pública Curso: Educação para as Relações Étnicoraciais Módulo I: Contexto histórico da questão racial no Brasil Aula II: Da Abolição aos dias atuais Educador: André Luis Pereira Sociólogo OBSERVAPOA/SMGL Porto Alegre, março de 2013. O CONTEXTO SÓCIO-HISTÓRICO DA ABOLIÇÃO DA ESCRAVATURA Podemos dizer que, para a maior parte do mundo ocidental, o século XIX representou a “era das emancipações”. Naquele século, a escravidão e as demais formas de trabalho forçado, como a servidão na Rússia, foram condenadas e extintas em várias partes da Europa e das Américas. Na Europa, desde fins do século XVIII, surgiram movimentos abolicionistas reivindicando o fim do tráfico e a extinção modificaram o do trabalho escravo. posicionamento dos Aqueles governos movimentos das grandes potências em relação à escravidão em seus domínios coloniais. Por exemplo, foi sob pressão dos abolicionistas que, em 1808, foi abolido o tráfico transatlântico para as colônias inglesas do Caribe e, em 1834, foi abolida a escravidão nessas mesmas colônias. Na Inglaterra, a primeira reação contra a escravidão ocorreu na segunda metade do século XVIII, partindo de uma seita protestante radical, os Quakers. Eles consideravam a escravidão um pecado e não admitiam que um cristão pudesse tirar proveito dela. Em 1768, enviaram ao parlamento uma solicitação pedindo o fim do tráfico de escravos. Pouco depois, John Wesley, o fundador do movimento metodista, pregou contra a escravidão afirmando que preferia ver as colônias inglesas do Caribe naufragarem do que manter um sistema que “violava a justiça, a misericórdia, a verdade”. Em 1787, um grupo militante chamado Os Santos (The Saints), liderado por William Wilberforce, organizou a Sociedade Antiescravista (Anti-slavery Society). Graças às pressões dessa sociedade, contra os interesses escravistas das cidades de Liverpool e Bristol, foram abolidos o tráfico em 1807 e a escravidão em 1834. Com este último ato foram libertos 776 mil escravos, mantidos porém sob um regime de “aprendizado”. Sob pressão dos libertos o aprendizado foi abolido em 1838 conquistada. e a liberdade definitiva Sem dúvida, aqueles acontecimentos repercutiram no Brasil e deixaram evidente que se havia quebrado o pacto entre as grandes nações coloniais europeias de defesa da escravidão. Repercutiu também a revolução escrava do Haiti. As elites brasileiras temiam que seus escravos fizessem o mesmo. Durante todo o século XIX, o fantasma do “haitianismo” atormentou as cabeças de quem defendia e inspirou quem atacava a ordem escravocrata. Muitos críticos da escravidão na primeira metade do século advertiam que se o tráfico e em seguida a escravidão não desaparecessem o Haiti poderia repetir-se no Brasil. De fato, para os escravos brasileiros os acontecimentos do Haiti tiveram outro significado, mostraram que era possível sonhar com o fim da escravidão Para se opor à abolição, os donos de escravos e seus representantes no parlamento argumentavam que os cativos não estavam preparados para a vida em liberdade, e que fora do cativeiro se tornariam vadios e ociosos. Fizeram também previsões catastróficas de aumento da criminalidade nas cidades decorrente da saída dos escravos das zonas rurais. Na verdade, os senhores não queriam perder o controle sobre seus trabalhadores cativos e só admitiam que a abolição fosse feita no longo prazo, com indenização e leis que garantissem que, mesmo depois de abolido o cativeiro, os ex-escravos não abandonariam suas propriedades. Escravos e abolicionistas No final da década de 1860, um número crescente de pessoas das mais diversas camadas sociais passou a manifestar e a defender publicamente seu repúdio à escravidão. Essa atitude antiescravista não era nova, uma vez que desde o início do século XIX houve quem levantasse a voz denunciando os horrores do tráfico e da escravidão. A novidade dos anos sessenta foi que determinados setores abandonaram as soluções gradualistas e passaram a reclamar abolição já. É por isso que se identificavam como abolicionistas. Vale dizer que não havia unidade de pensamento e ação entre os abolicionistas. Na verdade, o movimento abrigava indivíduos e grupos com visões políticas diferentes. Podiam-se encontrar liberais e conservadores, monarquistas e republicanos. Eles se dividiam principalmente em relação às formas de atuação e aos objetivos. Para muitos, a abolição devia ser feita pela via parlamentar, sem mobilizar as camadas populares e muito menos os escravos. Para outros, no entanto, o abolicionismo deveria envolver toda a população, sobretudo os escravos. Essa segunda vertente vai se fortalecer na década de 1880 e será responsável pelas ações mais ousadas, promovendo fugas e confrontando capitães-do-mato e policiais que perseguiam escravos fugidos. Quanto aos objetivos, muitos achavam que a luta abolicionista deveria acabar com a escravidão, pois acreditavam que daí por diante não haveria mais entraves ao desenvolvimento e ao progresso do país. Entre estes havia quem achasse que o “progresso” só seria viável se os trabalhadores negros fossem substituídos por imigrantes europeus. Para eles, não só a escravidão, mas também os escravos eram empecilhos ao desenvolvimento do país. Eles esperavam que a abolição fosse feita, não para melhorar a sorte dos negros escravizados, e sim para motivar a vinda de imigrantes europeus. Mas havia quem pensasse o contrário e apostasse na abolição como o começo de um processo de modernização do país que traria benefícios para os ex-escravos e seus descendentes. Por isso defendiam reformas sociais que deveriam complementar a abolição. A luta contra a escravidão e suas consequências sociais haveria de continuar por muito tempo depois da abolição. Além da ampliação de oportunidades econômicas para negros e mulatos, alguns abolicionistas defendiam reforma agrária e educação pública para todas as classes socais. O 13 de maio e a luta pela cidadania A notícia da abolição definitiva do cativeiro no Brasil foi bastante festejada nas cidades brasileiras. Os festejos transformaram-se em grande manifestação popular e isso refletia em grande medida a amplitude social do movimento antiescravista no Brasil. As manifestações impressionaram os observadores da época pela quantidade de pessoas que ocuparam as ruas. No dia 13 de maio mais de 90 por cento dos escravos brasileiros já haviam conseguido a liberdade por meio das alforrias e das fugas. Entretanto, a destruição da escravidão foi um evento histórico de grande importância e marco fundamental na história dos negros e de toda a população brasileira. Foi uma notável conquista social e política. Mas é preciso perceber como os ex-escravos buscaram viabilizar suas vidas após a abolição. Racismo Científico e ideologia do branqueamento Um dos principais objetivos das explicações relativas às diferenças raciais entre os seres humanos, no contexto da idade média, foi a justificação da escravidão de cunho racial, sendo que as primeiras explicações elaboradas foram de natureza religiosa. Posteriormente, vieram as experiências sobre raça na Europa (Gobineau e o ensaio sobre a desigualdade das raças humanas, 1855), com o objetivo de comprovar a superioridade da raça branca e, mais que isso, a inferioridade das outras raças, principalmente a raça negra. Essas experiências deram origem às teorias do chamado racismo científico, quem concluíram que o ser humano da raça branca era, dentre todas as raças, o detentor, em seu mais alto grau, dos atributos da beleza, da força e da inteligência. Assim, logo após a abolição da escravidão, a ciência vem, especialmente com os eugenistas, validar a dominação racial propondo a superioridade dos brancos. A solução encontrada pelos eugenistas brasileiros fora a miscigenação. Apesar de sua aparência democrática, a miscigenação incentivada no Brasil pela política de branqueamento foi comparada, por Abdias Nascimento, ao genocídio dos judeus ocorrido na Alemanha nazista, porque tinham o mesmo objetivo: eliminar o elemento racial indesejado do seio da sociedade. Além disso, essa política do branqueamento fez com que os postos de trabalho fossem ocupados pelos imigrantes recém-chegados ao Brasil, que também obtiveram concessões de terras para viverem e produzirem, continuando os negros à margem da sociedade. Segundo Nascimento (1978), a elite intelectual dominante ao eleger o mulato como símbolo de brasilidade e pilar da “democracia racial”, estabelece o primeiro degrau na escala de “branquificação sistemática do povo brasileiro” O branqueamento é o objetivo final da ideologia sutil definida como mestiçagem, que tem na miscigenação sua vertente biológica e no sincretismo cultural sua vertente política. Democracia racial? O trabalho de Freyre, Casa Grande e Senzala, produzido na década de 1930, desempenhou um papel fundamental na superação do paradigma do racismo científico e das teorias embasadoras da política eugenista adotada pelo Brasil no final do século XIX e início do século XX. Segundo Telles (2003), Gilberto Freyre populariza a visão do Brasil como um país onde todas as raças convivem de forma tranquila, onde o senhor e o escravo tem relações harmônicas, onde a democracia racial é motivo de orgulho. O conceito de miscigenação é mais enfatizado, tornando-se uma característica nacional positiva e o símbolo mais importante da cultura brasileira. É possível dizer que Freyre desenvolveu a ideia da democracia racial no Brasil, difundindo a imagem de que as relações entre brancos e negros eram harmônicas, ou seja, existia uma grande conciliação entre as raças. De acordo com Guimarães (2003), Freyre enfatiza a “democracia étnica” para dizer que, no Brasil, apesar de uma estrutura política muito aristocrática, desenvolve-se, no plano das relações raciais, relações democráticas. São essas ideias que foram traduzidas como “democracia racial” e ganharam, por um bom tempo, a conotação de um ideal político de convivência igualitária entre brancos e negros. Na década de 1950, a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e Cultura – UNESCO, com o propósito de “documentar, compreender e disseminar” o suposto segredo da harmonia racial, financia uma equipe de professores da Universidade de São Paulo – USP, dentre os quais Florestan Fernandes, para desenvolver uma pesquisa sobre as relações raciais no Brasil. No entanto, esses estudos acabam desmistificando a ideologia da democracia racial e contribuindo para a compreensão da questão, uma vez que essas pesquisas contêm dados que evidenciam profunda desigualdade socioeconômica nas condições de vida de brancos e negros, o que fragiliza a veracidade da “democracia racial” brasileira. Os estudos desvendam o preconceito e a discriminação existentes por trás das relações senhor/escravo, considerando a democracia racial um mito que apesar de difundido no Brasil e também em todo mundo, não era verdadeira. Era uma ideologia necessária para a manutenção e equilíbrio da ordem social vigente. Discriminações e desigualdades raciais: novos enfoques A década de 1960 é marcada pela mobilização dos negros em torno do questionamento sobre a validade da noção de “democracia racial” que, anteriormente, havia sido propagada pelo Estado e pela elite brasileira como exemplo da constituição de relações raciais harmônicas e da inexistência de qualquer tipo de desigualdade ou conflito entre negros e brancos no país. A partir da década de 1970, com o enfraquecimento do regime militar e o crescente processo de redemocratização e abertura política, teve início uma nova fase de mobilização política da população negra, que passou a enfatizar a identidade negra e a denunciar a democracia racial como falsa ideologia. Essa nova fase influenciou de forma mais direta os avanços na abordagem da temática racial no país . O movimento negro retomou a luta anti-racista enriquecido pela experiência dos movimentos anteriores e pela confluência de diversos eventos ao redor do mundo, como: as lutas de libertação dos povos africanos, as lutas contra o Apartheid na África do Sul e dos negros americanos pelos direitos civis nos Estados Unidos. Influenciado por esse conjunto de acontecimentos, o movimento negro brasileiro, a partir de meados dos anos 1980, passa a pressionar alguns governos estaduais e municipais para implementar políticas de valorização da população negra. O ressurgimento do Movimento Negro A transformação político-ideológica das reivindicações e demandas políticas do movimento negro é atribuída, segundo diversos autores, à criação do Movimento Negro Unificado (MNU) em 1978. Nascido da imbricação de diversos grupos que uniram-se para denunciar a discriminação racial e social existente em São Paulo, o MNU produziu e incentivou uma ampla discussão sobre o racismo no Brasil, marcada pelo tom de contestação política evidenciada nas denúncias sobre o racismo, a discriminação e preconceito racial e pela construção de uma identidade afirmativa e positiva do negro. A partir dos anos 1970 o ideal de assimilação e aculturação foi superado pelas exigências de reconhecimento e respeito à diversidade. Em consonância com essa demanda alterou-se a compreensão do conceito de raça e de negro, fazendo surgir o negro como sujeito, como ator social e componente imprescindível da estrutura social brasileira. As ações afirmativas Como um experimento constitucional concebido pelo direito do século XX, as ações afirmativas se propõem a promover igualdade e combate às formas discriminatórias da sociedade. Elas consideram a singularidade de cada grupo social, reconhecendo que “políticas de cunho universalistas não resolvem a questão da desigualdade num país em que as relações sociais estão intrinsecamente ligadas as relações raciais. No Brasil, o fator decisivo para que o debate sobre as ações afirmativas conquistasse projeção política e acadêmica, extrapolando os debates no interior do movimento negro, foi o reconhecimento público do Presidente Fernando Henrique Cardoso, em 1996, de que o país era racista. Esse reconhecimento contribuiu para que não só o movimento negro, mas diversos segmentos da sociedade civil, principalmente o movimento feminista, assumissem como preceito de suas reivindicações a discussão sobre a questão racial e sobre a desigualdade existente entre brancos e não brancos no interior da sociedade brasileira. Para além da dimensão compensatória das ações afirmativas, essa políticas públicas possuem um potencial transformador no plano simbólico, como instrumento de combate ao racismo. Ou seja, ao invés de implantar medidas como política de inclusão social direta, o objetivo precípuo da ação afirmativa seria provocar uma mudança na atitude dos atores, para que se tornem mais críticos à discriminação e ao racismo em geral. Algumas considerações é possível perceber que as relações raciais no Brasil se deram de forma peculiar e complexa, marcada pela exclusão e marginalização da população negra. Enfatizando as limitações do discurso da democracia racial, ressaltando a centralidade e a autonomia da categoria raça para a compreensão e explicação das desigualdades raciais, o movimento negro descortina o mito da democracia racial, demonstrando uma mudança qualitativa em sua ação, que vai da década de 1930, quando suas reivindicações seguiam na direção da integração, via assimilação, da população negra, passando pela década de 1940, em que a rebelião cultural produzida pelo Teatro Experimental do Negro e por outras formas de expressão artística, foram exemplo de um questionamento em relação à hegemonia da cultura euro-ocidental no país. Nos anos 1970 e 1980, o movimento negro além de exigir acesso a direitos iguais, apontou para a necessidade de se produzir imagens e significados novos e próprios, combatendo os preconceitos e estereótipos que justificavam a inferiorização da população negra. Considerando o âmbito institucional, a situação da população negra mostra avanços na busca de expansão da cidadania desse segmento social. Hoje os negros podem escolher seus governantes e também disputarem eleições. Ampliaram-se os canais de participação e mesmo as possibilidades de conquista de um cargo nos poderes executivo e legislativo, no país. “Há representantes da população negra nas câmaras municipais, nas assembleias legislativas estaduais, no Congresso e Senado Federal e os negros inserem-se também, no aparato do Estado em todos os níveis” (SILVA, 2004). Contudo esses espaços de representação ainda são poucos. Quantos vereadores/as negros/as compões as câmaras municipais? E nas prefeituras? Quantos são eleitos deputados para as Assembleias Legislativas e para o Congresso Nacional? E no senado? E nas direções dos partidos políticos, mesmo os que tem orientação à esquerda? Em todos os casos verifica-se que a participação dos negros segue a mesma lógica observável nos demais setores da sociedade: no mercado de trabalho, no acesso à educação superior etc., as estatísticas demonstram que eles são minoritários e, “mesmo quando ocupam cargos prestigiados, não estão livres do preconceito e do estigma da cor” Referencias bibliográficas FERNANDES, Florestan. A integração do negro na sociedade de classes. 2v. São Paulo: Domunius, 1964. FREYRE, Gilberto. Casa Grande e Senzala: Formação da família brasileira sob o regime da família patriarcal. 21. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1981. 573p. GUIMARÃES, Antonio Sérgio Alfredo e HUNTLEY, Lynn. (Orgs.) Tirando a máscara: ensaios sobre o racismo no Brasil. São Paulo: Paz e Terra, 2000. p. 1130. GUIMARÃES, Antônio Sérgio Alfredo. Classes, Raças e Democracia. São Paulo: Editora 34, 2002. 231p. GUIMARÃES, Antônio Sérgio Alfredo. Racismo e Anti-Racismo no Brasil. São Paulo: Editora 34, 2005. 256p. 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