Valter da Mata
Psicólogo, Mestre em Psicologia Social, Estudioso de Psicologia e
Relações Raciais. Professor da Unime – Lauro de Freitas e da Faculdade
da Cidade do Salvador e Membro da Comissão Nacional de Direitos
Humanos do Conselho Federal de Psicologia.
Em sua opinião, como vai se constituindo o debate sobre relações raciais
dentro da Psicologia articulado com o contexto histórico, político e
econômico do país e fora dele?
O debate sobre as Relações Raciais dentro da Psicologia no Brasil
precisa superar um grande desafio: a crença da existência de uma democracia
racial. Boa parte dos brasileiros, quer por ingenuidade, quer por falta de
informação, quer por cinismo, acredita que não existe racismo no Brasil, que o
que existe é a discriminação social. Segundo essa crença, os negros e
indígenas brasileiros não sofrerão discriminação se tivesse dinheiro na sua
conta corrente e vivesse uma vida que ilustrasse essa posse. Como corolário,
boa parte dos psicólogos psicólogas não veem no racismo, um vetor de
sofrimento psíquico. É bom lembrar que s saberes psicológicos tiveram uma
importância muito grande na consolidação do racismo e racialismo no Brasil,
estudos enviesados afirmavam que as raças humanas tinhas predisposição a
determinadas características psicológicas, como o caráter e a inteligência.
Após a segunda grande guerra, a resposta dos psicólogos foi o silêncio,
somente no início do século XXI as produções sobre Psicologia e Relações
Raciais começam a ganhar corpo, mas ainda muito rarefeitas se formos
considerar a importância. Fora do país, tenho contato principalmente com as
produções norte americanas, eles estão muito à frente nessas questões.
Entretanto algumas publicações de cunho racialistas ainda são lançadas.
Creio que o livro The Bell Curve: Intelligence and Class Structure in
American Life, dos pesquisadores Richard J. Herrnstein e Charles Murray,
publicado em 1996, é o mais emblemático. Nesse livro eles procuraram
demonstrar através de testes de QI, diferenças nos níveis de inteligência entre
negros e brancos.
Ao longo deste ano, diversos episódios de racismo ganharam visibilidade
no Rio Grande do Sul, como você analisa esses fatos e a repercussão que
tiveram em termos de racismo institucional?
Prefiro não classificar os casos de discriminação racial como algo do Rio
Grande do Sul, prefiro pensar nesse problema enquanto uma questão nacional.
Esses fatos que ganham a mídia são importantes para discussão em torno
dessa chaga, mas estamos longe de chegar até mesmo no mais básico: a
existência do racismo no Brasil. A cultura brasileira é atravessada pelo
machismo, racismo e a homofobia. Estar fora desses grupos de privilégio
significa, em maior ou menor grau, ser vitima de discriminação. Dessa forma, a
mulher negra lésbica está dentro dos padrões de discriminação como o maior
exemplo do fracasso. Em termos de racismo institucional, creio que os
episódios não trouxeram grandes mudanças, o mais importante é a visibilidade
do problema, é a democracia racial colocada em xeque. Mas as instituições
continuam produzindo discriminações baseadas na cor da pele, dentre outros
trações fenotópicos. Todas elas: escola, hospitais, conselhos de classe, polícia
militar, enfim, todas. Afinal essas instituições foram construídas nesse contexto
cultural.
Como psicólogo, você costuma pensar em como a desigualdade racial
pode afetar nas diversas áreas da vida e do cotidiano de negras e negros
brasileiras e, ao mesmo tempo, privilegiar pessoas brancas?
Como psicólogo, negro e estudioso das relações raciais, posso afirmar
que o racismo afeta a todos os brasileiros, obviamente que de forma diferente.
Para constatar os privilégios psicológicos decorrentes do racismo no Brasil,
recomendo a leitura do livro Psicologia Social do Racismo, organizado por
IrayCarone e Maria Aparecida Bento, publicado em 2002. Nesse livro diversos
pesquisadores e pesquisadoras discorrem estudos sobre branquitude e
branquidade. Boa parte dos brancos brasileiros sabem que ser branco é ter
privilégios implícitos, não ditos e o silêncio sobre isso é uma prática comum
entre eles. Na maior parte das vezes, esses mesmos brancos creditam seus
sucessos aos méritos individuais. Quanto ao fracasso das outras “raças”,
provavelmente são creditadas a “um defeito de cor”. O racismo e a
discriminação racial tem forte impacto nos sujeitos não brancos, e as
dimensões psicológicas mais atingidas são a formação da identidade e a
autoestima. Em ambas as dimensões, os não brancos tendem a se constituir
de forma conflituosa e dolorosa. Ninguém deseja identificar-se com o que é
feio, sujo, selvagem, perdedor. Não restando outras formas possíveis de
identificação, cabe a esses sujeitos a construção identitária fragilizada e
fundamentada no branqueamento. Uma saída que geralmente remete a outras
desordens psíquicas.
Quais os efeitos psicossociais do preconceito racial e do racismo na
constituição da subjetividade tanto daquele que comete quanto daquele
que recebe essas violências?
Como falei anteriormente o racismo e a discriminação racial irá atingir a
todos os brasileiros e brasileiras de forma diferente. Somos um país
extremamente miscigenado, e provavelmente algum leitor está nesse momento
questionando toda essa entrevista com dois argumentos frágeis, mas que
servem para mascarar essa problemática. O primeiro deles é que não existem
raças humanas e por isso não existe racismo. Ora, a raça biológica não é
defendida por ninguém de bom senso, entretanto a raça sociológica existe de
fato e de direito e é uma categoria fundamental no estabelecimento de lugares
na sociedade brasileira. O outro argumento é que não existem negros e
brancos no Brasil, somos todos mestiços. Esse é talvez o maior problema na
construção identitária do brasileiro e obviamente na constituição da
subjetividade. O mestiço é o obstáculo epistemológico, é o lugar do não ser, do
não lugar, do que pode ser tudo, que pode ser nada, é a não identidade. O
mestiço pode ser moreno, mulato, sarará, cabo verde, escurinho, cor de jambo,
cravo e canela, e ao mesmo tempo não ser nada disso. Assumir-se negro para
alguém que não tenha conhecimento das desigualdades históricas entre as
raças no Brasil, torna-se pois um exercício doloroso. Ser negro ou indígena é
ser herdeiro das coisas mais insignificantes no que diz respeito ao
desenvolvimento da civilização e até mesmo ser responsável por coisas
demoníacas.
Como os psicólogos podem contribuir com o combate ao racismo em seu
cotidiano de trabalho, seja ele em políticas públicas, em clínicas privadas
ou em outros campos, como o das organizações, por exemplo?
A primeira coisa que os psicólogos e psicólogas precisam fazer é
reconhecer a existência do racismo e que em maior ou menor grau as práticas
racistas fazem parte do repertório comportamental dele próprio. A psicologia se
instituiu no Brasil de costas para a realidade social, por muito tempo não
contribuiu para construção de um país melhor e mais equânime. A nossa
inserção nas politicas publicas nos coloca diante de um grande desafio: Como
atuar para uma população a qual parece estar distante dos modelos
apresentados nas teorias europeias e norte americanas? Serão elas inferiores,
indolentes, atrasadas, enfim portadoras de um “gene” degenerado? O que
desejo dizer nesse momento é que a psicologia ainda busca o seu fazer nas
politicas publicas, não encontrou o seu lugar nos CRAS, CREAS, CAPS, dentre
outros equipamentos públicos. Não conseguimos enxergar que o termo “boa
aparência” esconde a concepção racista de “parecer branco”, “ter traços finos”,
“ter o cabelo arrumado de um determinado jeito”. Fico triste quando vejo
entrevistas sobre buylling e não ouço absolutamente nada sobre a
discriminação racial nas escolas. Me pergunto: a que servirá a inclusão do
psicólogo ou da psicóloga nas escolas públicas, se eles ou elas não
conseguem enxergar o racismo a meio metro na frente dele? Então sugiro que
psicólogos e psicólogas estudem, se desfaçam do senso comum, saiam do
achismo, saiam da zona de conforto e enfrentemos esse problema gigantesco,
que não é um problema de negros e indígenas , é um problema para toda
sociedade brasileira.
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Entrevista Valter da Mata