A produção social da identidade étnico-racial e o “lugar” do Negro no Brasil: entre construções e desconstruções Débora de Jesus Lima Melo1 Resumo O que é ser negro? Como se construíram os marcadores que indicam um pertencimento étnico-racial na sociedade brasileira? Tais questões sinalizam o debate que será apresentado neste trabalho, a construção social da identidade étnico-racial. Estas referem-se às identidades processadas na dinâmica histórica, tensa e conflituosa que estruturou as relações raciais na sociedade brasileira. Desse modo, destaco as ideologias que reservaram um “lugar” determinado para indivíduos negros(as): o racismo científico de finais do século XIX, o ideal do branqueamento e a ideia de democracia racial. A noção de lugar é uma referência às representações e imagens simbólicas, fornecidas pelas ideologias, que atingem os sujeitos quanto à definição de si mesmos, bem como, suas experiências e sentimentos de pertença e autoestima. As ideologias influenciaram práticas de racismo, mas também estimularam/am práticas de resistências, referentes às desconstruções de imagens e estigmas e ao reconhecimento de uma identidade étnico-racial positivada. Assim como consideração final, a discussão contribui com o entendimento ser negro não é uma construção inata, mas diz respeito a um lugar social e simbólico, a um modo de ser/estar na sociedade e de se relacionar com outros membros. Este artigo é parte integrante de um trabalho de tese que, de modo geral, visa analisar os discursos e experiências relacionados ao pertencimento étnico-racial de sujeitos inseridos em grupos do movimento negro em São Luís/Maranhão. Palavras-chaves: Identidade étnico-racial, Construção, Ideologias 1 Introdução O intelectual negro e psiquiatra Frantz Fanon ao fazer uma leitura crítica da experiência colonial e analisar a vivência da população negra da Martinica apresenta que [...] encontramos nesse último (referindo-se ao negro) um desejo de ser branco. Assistiremos aos esforços desesperados de um preto que luta para descobrir o sentido da identidade negra. A civilização branca, a cultura europeia, impuseram ao negro um desvio existencial2. Com isso, pretendia focar os processos de construção (e desconstrução) do “outro”, no caso, da identidade negra diante da experiência subjugadora da colonização. Sem esquecer-se da temporalidade (contexto e data da obra), as palavras de Fanon nos instigam a lembrar da história do nosso país, que também foi fruto de complexos processos de exploração colonial e escravista, que condicionaram tanto 1 Doutoranda em Ciências Sociais no programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, da Universidade Federal do Maranhão (UFMA). 2 FANON, Frantz, 2008. 2 dimensões econômicas, culturais e sociais, como delinearam a formatação de tensas relações raciais onde às populações negras foram destinados lugares simbólicos creditados por ideologias que pregavam a aproximação com os valores eurocêntricos europeus. Assim, proponho-me, dentro dos limites deste artigo, a analisar alguns dessas ideologias que marcam a história do Brasil e influenciaram/am a constituição das identidades étnico-raciais. Justifico esta escolha por entender que ideologias fornecem significações e representações pelos quais os sujeitos vão dando sentido às suas experiências e se definindo através de uma série de identificações que implicam sentimentos de pertença, autoestima. Desse modo, ser negro não é uma construção inata, mas diz respeito a um lugar social e simbólico, a um modo de ser/estar na sociedade e de se relacionar com outros membros. Para tanto, parto inicialmente da discussão sobre identidade no âmbito das ciências sociais. Em seguida, apresento o processo histórico de disputa e formação da nação brasileira, que sempre teve uma profunda relação com a questão racial, evidenciando três ideologias – o racismo científico de finais do século XIX, o ideal do branqueamento e a ideia de democracia racial – que ora tomam a diversidade racial como negativa ora como positiva. Para finalmente analisar algumas das consequências deste panorama histórico sobre a (des)construção das identidades étnico-raciais, focando a ação do movimento negro brasileiro. Este percurso é parte de um trabalho de tese que focaliza a construção de sujeitos negros que estão inseridos na experiência do Movimento Negro em São Luís, Maranhão, identificando os microprocessos, o cotidiano onde se revelam as socializações, os impactos e reprodução das dimensões macro-ideológicas e culturais da sociedade brasileira. 2 Discutindo a identidade étnico-racial Para entender como se deu a produção social da identidade étnico-racial na sociedade brasileira é importante considerar que o tema da identidade de modo geral tem ganhado relevância nos últimos tempos na teoria social, tendo em vista que as formas de vê-las foram deslocadas de uma concepção essencializada e sistêmicos (marxismo é um 3 exemplo que localizava o indivíduo fruto de uma classe social) para uma concepção mais relacional. Em uma concepção relacional e moderna, o indivíduo é construído nas interações sociais, espaços de socialização, que influenciam formas de agir, ser, viver e pensar o mundo, construir, produzir símbolos, lutar, resistir. O indivíduo é um sujeito histórico. Na relação indivíduo-sociedade, os sistemas culturais e suas representações servem de referência estrutural ao fornecer “lugares” sociais para que cada indivíduo possa alinhar e projetar seus sentimentos subjetivos. De acordo com HALL (2006, p. 12), “as identidades que compunham a paisagem social “lá fora” e que asseguravam nossa conformidade subjetiva com as “necessidades” objetivas da cultura, estão entrando em colapso”, o qual pode ser entendido como uma perspectiva de descentramento do indivíduo tanto do seu lugar social e cultural, quanto de si mesmo. O colapso que influencia um novo sentido à construção das identidades é corolário de mudanças estruturais que marcam o contexto contemporâneo, denominado por muitos autores como modernidade tardia, modernidade líquida, pós-modernidade, dentre outros termos, e caracterizado por: a) um momento de fragmentação de valores e dispersão de referenciais da vida cotidiana (LE BRETON, 2004); b) a nova paisagem política advinda do surgimento dos novos movimentos sociais que trazem à cena questionamentos e outras dimensões (simbólicas e identitárias) de representação do indivíduo e da vida social: o feminismo, o movimento negro, movimentos de libertação nacional, etc. Desse modo, o indivíduo não é visto como único, estático ou imutável. À medida que os sistemas de significação e representação cultural se multiplicam a partir de novas dimensões, ele passa a ser confrontado por uma multiplicidade de identidades possíveis, com cada uma das quais pode se identificar, ao menos temporariamente (HALL, 2006). Observemos também outro aspecto ligado ao conceito de identidade: a relação “nós” e “outros”, isto é, identidade e diferença. Ambas as dimensões são comumente entendidas como formas distintas, mas há uma estreita dependência entre elas. Afirmar o que se é, envolve a não afirmação de outras identidades, e isto pode ocorrer a partir da seleção de distintos critérios e traços atribuídos que servem de marcas distintivas entre os grupos. Há “uma cadeia, em geral oculta, de declarações negativas ou positivas sobre (outras) identidades” (SILVA, 2000, p.75). SILVA (2000) e HALL (2006) destacam que além de se constituírem de forma dependente, identidade e diferença são criações linguísticas que se manifestam no senso 4 comum a partir do reconhecimento de alguma origem comum ou de características comuns ou mesmo da crença em um mesmo ideal, valor ou traço. Como uma produção discursiva, as identidades são envolvidas por relações de poder, pois nenhum discurso é neutro. Assim a definição de si mesmo é resultante, muitas vezes, de disputa, imposição, hierarquias e atos de legitimação, que refletem a busca pela apropriação de recursos materiais e também simbólicos na sociedade. A afirmação da identidade e a marcação da diferença implicam, sempre, as operações de incluir e de excluir. Como vimos, dizer o que somos significa também dizer o que não somos. A identidade e a diferença se traduzem, assim, em declarações sobre quem pertence e sobre quem não pertence, sobre quem está incluído e quem está excluído. Afirmar identidade significa demarcar fronteiras, significa fazer distinções entre o que fica dentro e o que fica fora (SILVA, 2000, p. 82). Portanto, identificação e diferença traduzem práticas sociais, culturais, econômicas que privam determinados grupos de recursos materiais e simbólicos, tornando-se práticas de exclusão. Assim, a análise da construção das identidades é, portanto, uma forma de expressar os múltiplos processos de mudanças sociais que ocorrem na sociedade, os quais organizam os atores e influenciam suas relações. Pensando na construção das identidades étnico-raciais, principal foco deste artigo, há uma vasta literatura que destaca o olhar para as práticas de exclusão e as históricas dificuldades que os indivíduos negros enfrentam no que concerne à garantia de direitos e principalmente à construção e afirmação positiva de suas subjetividades. As razões para tais dificuldades podem ter ordens diversas, mas encontram-se ligadas, sobretudo, às representações culturais e ideológicas construídas nas relações raciais brasileiras, as quais ganharam uma especificidade desde a formação nacional brasileira que está relacionada a fenômenos como a diáspora, escravidão e o regime de colonização europeia. Uma destas representações refere-se à existência de uma convivência harmônica entre “pretos” e “brancos”, isto é, a presença meritocrática de iguais oportunidades de vida, sem nenhuma interferência no jogo de paridade social das respectivas origens sociais ou étnicas. Mas não é preciso ir muito longe para entender que as desigualdades raciais, formas de exclusão e o racismo são dissimulados frente às tais modos de representar as relações raciais no país. As práticas cotidianas têm mostrado o inverso. Um exemplo no que se refere à identidade negra, desde a formação da nação brasileira observam-se 5 muitas vezes ao indivíduo negro um afastamento de si, ou como nas palavras de Fanon já citadas aqui, “um desejo de ser branco”. Neuza Santos Souza (1983) destaca também a interiorização de estigmas e sentimentos de vergonha, humilhação, sensação de inferioridade de seus valores e crenças e dificuldade na aceitação das diferenças e da identidade racial, como consequências decorrentes de uma história marcada pela negação. Hoje, vemos diversos casos que irrompem nas mídias que mostram claramente a existência de um preconceito racial que independe da classe social: notícias com jogadores negros de futebol, atores negros, profissionais liberais negros, situações de vunerabilidade de negros frente aos aparelhos de monopólio da violência física do Estado, etc. São exemplos que provam a existência de um “lugar” simbólico a estes indivíduos e também como a imagem do grupo na sociedade engendra complexos de inferioridade e negação da diferença. Cabe aquilo que Melucci (2004) afirma sobre a formação da identidade como dependente do retorno de informações vindas dos outros. Os estigmas, as situações críticas, os exemplos de racismo e discriminação que ocorrem à luz do cotidiano são por excelência momentos em que o indivíduo é submetido às expectativas e definições contraditórias, que podem comprometer a produção e reconhecimento do próprio eu. Chegamos então às seguintes considerações sobre as identidades étnico-raciais: comportam narrativas da diferença, mas sem marcar uma polarização estanque entre o eu e o outro ou a visão de uma subjetividade em essência; estão para além do individual, como realidades construídas mediante o contexto social, os processos de socialização, influenciados por um sistema de referência cultural e histórico que relegou subalternidade e exclusão simbólica e material. Além destas dimensões, o tema da identidade étnico-racial tem sido expressão enfática dos movimentos negros contemporâneos, pois a sua construção é também uma tomada de consciência política, ou seja, uma reação aos lugares de subalternidade. Autores como Castell (1999) e Ferreira (2000) trazem momentos de constituição deste processo de conscientização política, que podem ser entendidos como modelos, tiposideais. Em resumo há um sentido de autoria que perpassa primeiramente pela submissão e aceitação de valores que esvaziam a auto identificação racial. Em seguida, pelo “acordar” do indivíduo frente à situações que desestabilizam e revelam uma condição de desvalorização do mesmo. E, em terceiro, o projeto, a militância, onde há a busca de 6 ressignificações de valores, história e cultura do negro, promovendo reconhecimento, auto estima e luta por direitos. O que os três momentos sugerem é a redefinição de uma posição social estigmatizada e subalternizada. O protagonismo do movimento negro teria então a ver com a afirmação de sujeitos por meio do processo da formação das identidades étnicoraciais, da criação de uma consciência e identificação racial positiva, onde são recriados padrões culturais, estéticos e históricos referentes à negritude3. Antes de centrar os esforços para entender como tais identidades estão se redefinindo, dentro dos limites deste trabalho, apresento a seguir ideologias e representações que contribuíram para a invenção de uma inferioridade para os negros e desencadearam o processo de lutas e busca por direitos, o surgimento de ações afirmativas, reconhecimento, observados na sociedade brasileira contemporânea e na ação do movimento negro. 3 Panorama histórico: do racismo científico ao Brasil racialmente “harmônico” Desde o período colonial, o Brasil recebia prognósticos diante da sua realidade populacional singular. De acordo com relatos de vários viajantes naturalistas estrangeiros havia uma clara interpretação de que o país era um “grande laboratório racial, mestiço, híbrido e degenerado” (SCHWARCZ, 1993, p. 137). O francês naturalista Louis Agassiz em viagem por aqui depreciou a “mistura” das raças como um efeito pernicioso à modernização. Outro prognóstico semelhante foi dado por Gobineau, que serviu como ministro francês no Brasil e em suas análises e dados estatísticos afirmava que a população brasileira desapareceria em 270 anos. Os museus e institutos etnográficos do século XIX também ajudaram a popularizar a imagem de que o Brasil seria um laboratório racial, tanto externamente, quanto internamente. Os profissionais e estudiosos que ocupavam estes centros não eram propriamente cientistas sociais, eram médicos, advogados, os quais eram considerados como intelectuais de intervenção social. A sociedade era, portanto, 3 Negritude é entendida como afirmação do negro pela valorização de sua cultura, dotada de uma variedade étnica e racial dos diferentes estoques africanos, o que implicaria uma variedade de manifestações (MUNANGA, 1986). 7 concebida como um corpo doente, sob o qual médicos, juristas e teóricos teriam a missão de dar diretrizes para levá-lo à sanidade. Portanto, a mestiçagem foi um aspecto que levantou indagações à intelligentsia e aos anseios das elites do período, após a abolição da escravatura (1888). Como pensar o ex-escravo não mais como instrumento de trabalho, mas como componente da nacionalidade brasileira? Ou como inserir os negros e os mestiços no discurso da Nação moderna? Contra os prognósticos negativos à nação brasileira, teses, estudos e pesquisas surgirão como uma possibilidade de “solucionar” o então problema. A resposta advém de fora. As teorias racistas europeias forneceriam as bases para a construção de um discurso nacional em fins do século XIX. E estas, por sua vez, refletirão o próprio estado da ciência da época. Era o momento da busca da consolidação das ciências humanas e sociais como um campo de saber científico. A antropologia, por exemplo, nasce influenciada pelos modelos de explicação das ciências exatas e naturais, fazendo uso de termos tais como “leis”, “organismo”, “função”, “seleção”, “raça”, etc. para entender a origem da diversidade cultural do mundo e, ainda, as justificativas para os fenômenos que inauguram a modernidade (colonialismo, capitalismo, revoluções etc.)4. SKIDMORE (2012) resume as teorias racistas a partir da sistematização em três escolas: a primeira etnológico-biológica, onde predominavam as medições fisiológicas e craniológicas e classificações taxonômicas, que resultaram em um gabinete de curiosidades e coleções. Era o momento científico de fundação de uma Antropologia profissional. A segunda é a Histórica, representando Gobineau, onde se utilizavam evidências históricas para mostrar que a raça branca tinha alcançado um grau de civilização e superioridade. O culto do arianismo também é característico desta perspectiva. “A definição do termo ariano sempre foi fugidio. Se começou indicando uma categoria linguística, logo passou a ser entendido como branco nativo do norte da Europa. O termo era também facilmente traduzido como „nórdico‟, o que muitos preferiam” (SKIDMORE, 2012, p. 95). 4 Momento inicial da constituição do campo de conhecimento antropológico, a Antropologia física tinha como preocupações a análise da forma e mensuração dos crânios, a pigmentação da pele, dentre outros aspectos que associavam particularidades morfológicas e fisiológicas, na comparação evolutiva entre as raças. O darwinismo e o evolucionismo, paradigmas biológicos, influenciaram o período. No início do século XX, no entanto, Franz Boas nos EUA promove uma virada antropológica ao criticar os determinismos biológicos e evolucionistas. Segundo Boas o foco da análise deveria ser as instituições, os comportamentos e as práticas culturais dos homens, inaugura assim a Antropologia Cultural. 8 Por fim, a terceira escola teórica é o darwinismo social, que apresentou a diferença entre as raças como essencial e permitiu a criação de um diagnóstico de submissão entre tipos raciais. O Brasil, um país dependente, produto da colonização e um dos últimos a manter o regime escravista, foi considerado um solo fértil para a comprovação das teorias racistas e, principalmente, a invenção de uma inferioridade para o negro. Mesmo mostrando fragilidade, quando caem em descrédito na Europa estas passam a exercer forte influência no Brasil, encontrando uma ampla acolhida e difusão entre os intelectuais do país. Outros nomes podem ser citados como destaques recorrentes ao se tratar das teorias racistas: Francis Galton, Georges Cuvier, J. F. Blumenbach, P. Broca, Cesare Lombroso, Banton, Retzius, Quatrefagges, os quais realizavam práticas de medições e comparações fisiológicas e que também marcam a criação de um capital científico importante para posteriores apropriações e condutas racistas. Observa-se então que o lugar do negro segundo este corpo de teorias é calcado dentro de uma inferioridade biológica, portanto, inalterável, condenada de antemão e prejudicial ao desenvolvimento de um país. Contudo, a influência do racismo científico ajudou a configurar a emergência de uma ideologia brasileira que, de acordo com HOFBAUER (1999), já se encontrava no imaginário da sociedade brasileira desde o período da colonização: o branqueamento. Podemos observar que, no contexto colonial e imperial brasileiro, estabelecer-se-ia um ideário que se tornaria hegemônico – que fundia, de um lado, negro com a condição de escravo, e, de outro, associava branco aos ideais morais-religiosos e ao status de livre. Essa visão, propagada no início pelas elites, teve também sua repercussão entre aqueles que, em princípio, eram vítimas desse discurso, sobretudo, entre aqueles que ansiavam ascender dentro da ordem estabelecida (p.ex., conquistar a alforria) (p.04). Mas em que consiste o branqueamento? De modo geral, sustenta-se a possibilidade e convicção que o “sangue branco” iria purificar o “sangue africano”, negro, permitindo a eliminação deste último e formando gradativamente um povo homogêneo branco e civilizado. Esta crença ganha aval principalmente nos tempos dos processos imigratórios, onde a vinda de europeus ao país aceleraria o processo do branqueamento. É tido como o mentor da ideia do branqueamento o estudioso João Baptista Lacerda, o qual participou de um Congresso ocorrido em Londres, denominado 9 “Congresso Universal das Raças”, em 1911. Neste evento, Lacerda frisou que o Brasil passava por um processo de embranquecimento e a extinção da raça negra seria uma questão de tempo. O branqueamento parecia ser uma espécie de esperança nacional no momento de incerteza causado pela abolição do Brasil. O termo foi, assim, citado por nomes como Euclides da Cunha, Sílvio Romero, Paulo Prado, Oliveira Viana, Gilberto Freyre, Nina Rodrigues entre outros. E segundo Munanga (2008), todos estes autores estavam interessados na formulação de uma teoria do “tipo étnico brasileiro”, isto é, na questão da definição do brasileiro enquanto povo e do Brasil como nação. Suas teses em alguns pontos se mostravam semelhantes, em outros discordavam, mas todos eram coincidentes no lugar de estigmatização do negro. Nas primeiras décadas do século XX, o processo de urbanização e industrialização trazem mudanças ao contexto brasileiro. Gilberto Freyre surge no período na alcunha de contribuir com o discurso da nação: trouxe a visão nova e positiva que a miscigenação era positiva em si mesma e não apenas no fato de que levaria ao branqueamento da população. Seu livro Casa Grande & Senzala, de 1936, trazia como argumento que a miscigenação era fruto de três matrizes fundadoras, índio, negro e o branco. Como consequência, teríamos um sincretismo, onde cada uma destas três teria uma contribuição específica para a formação social. De acordo com SCHWARCZ (2010), o livro oferecia um novo modelo para a sociedade multirracial brasileira, invertendo o antigo pessimismo e introduzindo os estudos culturalistas como modelo de análise. Neste momento observa-se que o lugar do negro é relativizado, embora permaneça na subalternidade, enquanto era diluído na ideia de um Brasil singularizado em uma convivência cultural e na superação de conflitos e divisões raciais. A fim de entender esse processo de “harmonização”, a UNESCO em 1950 encomendou uma pesquisa para investigar os fatores favoráveis e desfavoráveis às relações raciais no Brasil, frente a este processo. Como resultado, observou-se a existência de profundas desigualdades entre brancos, negros e indígenas no país. Somente neste ano, pesquisas e estudos demostraram então a contradição entre um discurso e a realidade expressa nas práticas cotidianas. O mito de que vivemos racialmente de forma democrática, desencadeado pela obra de Gilberto Freyre e ganhado forma posteriormente, foi trazido à tona como dissimulador do racismo. 10 A ideia de democracia racial, embora criticada, ainda é bastante estruturante do sentimento de nacionalidade brasileira, sendo um discurso que concebe a questão étnico-racial como um falso problema e não tem concretude em políticas públicas que demandem reais situações de acesso a direitos, oportunidades, inclusão e participações democráticas. 4 (Des)construindo representações e o papel do Movimento Negro A aparente representação da sociedade brasileira como sendo um “paraíso racial” não significa que não tenha existido resistência por parte da população negra ao modelo de dominação. Segundo Zélia Amador de Deus (2000) a formação dos quilombos e a participação dos negros em todas as insurreições ocorridas na história do país sempre demonstraram uma resistência quanto ao “lugar” atribuído a este grupo cultural. Assim, tão importante quanto apresentar algumas das ideologias que contribuíram com a invenção de estigmas e subalternidade aos negros é destacar a ação do movimento negro brasileiro. O movimento negro refere-se como ao conjunto de iniciativas de resistência e de produção cultural, bem como de ação política explícita de combate ao racismo, que se manifesta em diferentes instâncias de atuação, com diferentes linguagens, por via de uma multiplicidade de organizações espalhadas pelo país (CARDOSO, 2002, p. 213). Segundo estudos, paulatinamente emergiram organizações deste tipo, tendo inicialmente caráter integracionista e não reclamando uma identidade cultural, social ou étnica específica, seguindo por outras que começam a inserir em suas agendas o reconhecimento do valor da herança africana e da personalidade afro-brasileira, exigindo que a diferença deixasse de ser transformada em desigualdade. A partir do contexto da década de 70, movimentos sociais de modo geral passam a trazer novas dimensões no que tange à luta contra as desigualdades de gênero, raciais, etc. De acordo com WOODWARD (2000, p. 34) o caráter destes novos movimentos pode ser entendido nos termos de uma “política da identidade” que concentra-se em afirmar a identidade cultural das pessoas que pertencem a um determinado grupo oprimido ou marginalizado. A identidade torna-se, assim, um fator importante de mobilização e organização. 11 Soma-se a isto, a influência do novo horizonte crítico no campo epistemológico e o desafio de mudança de paradigmas: o (re)pensar das representações dos sujeitos e a crítica a ideologia de ocidentalização do mundo. O padrão heteronormativo e “verticalglobal” (HALL, 2009) vigente na sociedade ocidental vem sendo questionado por esses movimentos, na tentativa de uma desconstrução e alargamento de conceitos que tentam engessar ou classificar as identificações que temos de nós ou principalmente as que direcionamos aos outros. É o caso de categorias como “raça”, que em sua concepção crítica refere-se à uma categoria discursiva e não biológica, organizadora daquelas formas de falar, daqueles sistemas de representação e práticas sociais que utilizam um conjunto frouxo frequentemente pouco específico, de diferenças em termos de características físicas, cor da pele, textura do cabelo, características físicas e corporais, etc., como marcas simbólicas, a fim de diferenciar socialmente um grupo do outro. (HALL, 2006). Não fica de fora deste contexto de mudanças, o movimento negro brasileiro que tem cada vez mais se caracterizado por ações que buscam sensibilizar a opinião pública a respeito de temas centrais à questão étnico-racial, que evidenciam, sobretudo, mudança na maneira como oficialmente, a questão da diferença tem sido abordada, principalmente pela quebra do silêncio e das ideologias fundadoras da nação brasileira. Hoje há uma complexidade e diversidade de lugares criados e fortalecidos pelos(as) militantes do movimento negro, representado por uma multiplicidade de organizações que diferem na natureza das atividades e em concepções políticas, mas inserem-se na proposta de desconstrução dos estigmas e combate ao racismo. Assim é possível encontrar: grupos de capoeira, terreiros de candomblé, organizações que tratam de ações de auto-estima como grupos de dança, blocos afros, bem como associações de comunidades negras quilombolas5, dentre outros. Os efeitos da ideologia da democracia racial e os “lugares” atribuídos às populações negras são, por um lado, percebidos como um fator de desmobilização do movimento e de impedimento da construção da identidade negra e consciência negra, fundamentais para a ação política de combate ao racismo e à discriminação. Por outro, como influentes nas condições sociais, econômicas, desiguais que incidem nos diferentes âmbitos institucionais. 5 As comunidades negras hoje reconhecidas como remanescentes de quilombos têm como motor de luta o direito de posse das terras por elas ocupadas. Mas classifica-se como movimento de cunho identitário uma vez que a luta se trava também pelo reconhecimento de suas particularidades e diferenças étnicoraciais. 12 5 Considerações Finais Ao definir a si próprio, um indivíduo traz implícito a configuração de marcadores culturais, socializações e espaços pelos quais participa, referencia-se e a forma como se é referenciado socialmente (HALL, 2006). Logo a unidade pessoal, que é produzida e mantida pela auto identificação, encontra apoio no grupo ao qual pertencemos e na possibilidade (ou impossibilidade) de situar-se dentro de um sistema de relações. As identidades étnico-raciais têm se situado, por muito tempo, na impossibilidade de auto afirmarem-se e reconhecerem-se positivamente, uma vez que foram gerados lugares de subalternidade e estigmas atribuídos pelas ideologias construídas no país. Assim, voltar à história da origem destes lugares nos leva a analisar um corpo de ideias, representações e classificações que ajudaram a forjar a imagem nativa de harmonia racial, que dissimula reais condições e é colocada à prova cada vez que vemos serem transmitidas nas mídias situações de afirmação de estereótipos ofensivos, casos de injúrias, “enganos”, práticas de racismo etc. Por outro lado, motiva a investigar e compreender como são nas experiências cotidianas dos indivíduos, que parecem minúsculos fragmentos isolados das ideias coletivas, que encontram-se grandiosos eventos para entender a vida social, as potencialidades e dilemas vividos pelos indivíduos, a relação com a história cultural e social. E este ponto integra o trabalho de tese que desenvolvo acerca da experiência de construção do que é ser negro para indivíduos inseridos em grupos do movimento negro. REFERÊNCIAS CARDOSO, Marcos Antônio. O Movimento Negro em Belo Horizonte: 1978-1998. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2002. CASTELLS, M. O poder da identidade. São Paulo: Paz e Terra, 1999. DEUS, Zélia Amador de. A Questão Racial no Brasil. [S. l.: s. n.]. 2000. FANON, Frantz. Pele Negra, máscaras brancas. Salvador: EDUFBA, 2008. FERREIRA, R. F. Afro-descendente: identidade em construção. Editora Pallas, 2000. HALL, Stuart. A identidade Cultural na Pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2006. 13 ___________. Da Diáspora: identidades e mediações culturais. Organização de Liv Sovick. Traduação de Adelaine La Guardia Resende...[et al]. 1ª Ed atualizada. Belo Horizonte: Editora IFMG, 2009. HOFBAUER, Andreas. Uma história do branqueamento ou o negro em questão. São Paulo: editora Unesp, 2006 LE BRETON, D. Sinais de Identidade: Tatuagens, piercings e outras marcas corporais. Lisboa: Miosótis, 2004. MELUCCI, Alberto. O jogo do eu: a mudança de si em uma sociedade global. São Leopoldo, RS: Editora Unisinos, 2004. MUNANGA, Kabengele. Negritude: usos e sentidos. São Paulo: Editora Ática, 1988. ___________________. Rediscutindo a mestiçagem no Brasil: identidade nacional versus identidade negra. 3 ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2008 SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil. São Paulo: Companhia das letras, 1993. _____________________. Gilberto Freyre: adaptação, mestiçagem, trópicos e privacidade em Novo Mundo nos trópicos. In: Mal-estar na cultura. UFRGS: Abrilnovembro, 2010. SILVA, Tomaz Tadeu da. A produção social da identidade e da diferença. In: SILVA, Tomaz Tadeu da (org.). Identidade e Diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis: Vozes, 2000. SKIDMORE, Thomas E. Preto no branco: raça e nacionalidade no pensamento brasileiro (1870-1930). 1ed. São Paulo: Companhia das letras, 2012. SOUZA, Neusa Santos. Tornar-se negro. Rio de Janeiro: Graal, 1983. WOODWARD, Kathryn. Identidade e diferença: uma introdução teórica e conceitual. In: SILVA, Tomaz Tadeu da (org.). Identidade e Diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis: Vozes, 2000.