DISCRIMINAÇÃO RACIAL E DESIGUALDADES ECONÔMICOSOCIAIS
UMA ANÁLISE SOBRE REINVINDICAÇÕES DE MOVIMENTOS SOCIAIS E
POLÍTICAS SETORIAIS COM RECORTE RACIAL NO BRASIL (1990-2004)
Alessandra Manoela da Cruz
Universidade Federal de São Paulo
[email protected]
Resumo
Neste artigo analisaremos parte da literatura mais expressiva sobre conquistas
alcançadas em termos de abertura de espaços para a discussão da questão
racial enquanto um problema social no Brasil. Verificaremos como se deu esse
diálogo analisando parte da produção acadêmica sobre esse tema e a
dinâmica entre legislação, políticas públicas setoriais e demandas dos
movimentos negros, no período dos anos 1990 aos 2000.
A partir do final dos anos 1970, estudos que relacionavam discriminação racial
a desigualdades econômico-sociais conquistam algum destaque acadêmico,
fazendo abordagens, dentre outras, que evidenciavam a ação da população
negra diante das instâncias de poder. Uma ciência social marcada pelo estudo
da falta/ ausência passa a dividir espaço maior com estudos que sublinham
agência e escolha, negociação e conflito, rebelião e resistência. Ainda que
muitos acadêmicos e ativistas chamem atenção para as diversas dificuldades
enfrentadas na construção dessa abordagem (Cf. HASENBALG, 1991), é
possível verificar grandes mudanças e avanços.
Num contexto mais amplo, a redemocratização do Brasil ocorrida em 1985,
após 21 anos de ditadura militar, tem grande papel na possibilidade de
realização desses novos ideais. A ideia de homogeneidade que permeava o
conceito de nação, por exemplo, cedeu espaço para o multiculturalismo e o
multirracialismo, tendo então o Estado o dever de garantir que a diversidade
linguística e cultural de seus cidadãos fosse preservada e a igualdade de
oportunidades
fosse
garantida,
baseada
em
resultados
concretos
(GUIMARÃES, 2006, p. 273).
Em termos de legislação, podemos citar a Constituição de 1988, chamada de
Constituição Cidadã por considerar demandas de diversos setores sociais. Há
também, em 1989, a Lei nº. 7.716, que define os crimes resultantes de
preconceito de raça ou cor. Pelo Movimento Negro, com ideias já mais
amadurecidas sobre formas de intervenção a serem cobradas dos poderes
estatais, é organizada, em 1995, a Marcha Zumbi dos Palmares contra o
Racismo, pela Cidadania e pela Vida. Já nos anos 2000, principalmente após a
III Conferência Mundial das Nações Unidas de Combate ao Racismo,
Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata, ocorrida em Durban,
África do Sul, em 2001, uma grande mudança é percebida. Foi a partir daí que
o compromisso em realizar políticas públicas setoriais contra o racismo foi
posto de maneira mais incisiva, conseguindo respostas mais concretas.
Exemplos são a criação da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade
Racial (SEPPIR), em 2003, a concessão de cotas em universidades públicas
federais, iniciada em 2004, e as reservas de vagas de emprego no
funcionalismo público.
Tendo esse histórico em vista, o objetivo será verificar o diálogo, evidenciado a
partir de meados dos anos 1990, entre movimentos negros, produção
acadêmica e ações governamentais que levaram ao fortalecimento da
discussão e aplicação de políticas públicas setoriais com foco na população
negra.
Palavras-chave: Discriminação racial; Produção acadêmica; Movimento Negro;
Políticas públicas setoriais.
Abstract
In this article, we will analyze the most significant part of the literature on
achievements in terms of opening spaces for discussion of the race issue as a
social problem in Brazil. We will check how this dialogue was analyzing the
academic literature on this topic and the dynamics between law, public sector
policies and demands of black movements in the period of 1990 to 2000.
From the late 1970’s, studies that linked racial discrimination to economic and
social inequalities win some academic prominence, making approaches, among
others, evincing the action of the black population across instances of power. A
social science study marked by the lack / absence is sharing space with larger
studies that emphasize agency and choice, negotiation and conflict, rebellion
and resistance. Although many scholars and activists to call attention to the
various difficulties faced in building this approach (Cf. HASENBALG, 1991), it is
possible to check major changes and advances.
In a broader context, the re-democratization of Brazil in 1985, after 21 years of
military dictatorship, has big role in the possibility of achieving these new ideals.
The idea of homogeneity that permeated the concept of nation, for example,
gave way to multiculturalism and multiracialism, then the State has the duty to
ensure that the linguistic and cultural diversity of its citizens were preserved and
equal opportunities were guaranteed based on concrete results (GUIMARÃES,
2006, p. 273).
In terms of legislation, we can cite the Constitution of 1988, called the Citizen
Constitution by considering demands from various social sectors. Also, in 1989,
Law no. 7716, which defines crimes resulting from prejudice based on race or
color. By Black Movement, with already more mature ideas about forms of
assistance to be charged to state powers, is organized, in 1995, Zumbi dos
Palmares against Racism and for Citizenship and Life. Already in the 2000s,
especially after the III World UN Conference Against Racism, Racial
Discrimination, Xenophobia and Related Intolerance, held in Durban, South
Africa, in 2001, a major change is perceived. It was from there that the
commitment to carry out sectorial public policies against racism was put in a
more incisive way, achieving more concrete answers. Examples are the
creation of the Secretariat for the Promotion of Racial Equality (SEPPIR) in
2003, the granting of federal quotas in public universities, started in 2004, and
the reserves of jobs in the civil service.
Having this background in view, the goal is to verify dialogue, evidenced from
the mid-1990s among black movements, academic research and government
actions that led to the strengthening of the discussion and implementation of
sectorial public policies focusing on black population.
Keywords: Racial Discrimination; Academic production; Black Movement; Public
sector policies.
Resumen
En este artículo vamos a analizar la parte más importante de la literatura sobre
los logros en cuanto a la apertura de espacios para la discusión de la cuestión
racial como un problema social en Brasil. Comprobaremos cómo fue este
diálogo el análisis de la literatura académica sobre este tema y la dinámica
entre la legislación, las políticas y las demandas de los movimientos negros en
el período de 1990 a 2000.
Desde finales de 1970, los estudios que vinculan la discriminación racial a las
desigualdades económicas y sociales ganan alguna prominencia académica,
hacer planteamientos, entre otros, evidenciando la acción de la población negro
en las posiciones de poder. Un estudio de la ciencia social marcado por la falta
/ ausencia está compartiendo espacio con los estudios más grandes que hacen
hincapié en la agencia y la elección, la negociación y el conflicto, la rebelión y
la resistencia. Aunque muchos académicos y activistas para llamar la atención
sobre las diversas dificultades que enfrentan en la construcción de este
enfoque (Cf. HASENBALG, 1991), puede comprobar los grandes cambios y
avances.
En un contexto más amplio, la redemocratización de Brasil en 1985, tras 21
años de dictadura militar, tiene gran papel en la posibilidad de alcanzar estos
nuevos ideales. La idea de la homogeneidad que impregnaba el concepto de
nación, por ejemplo, dio paso a la multiculturalidad y multiracialismo, entonces
el Estado tiene el deber de garantizar que la diversidad lingüística y cultural de
sus
ciudadanos fueron
preservados
y se
garantiza
la
igualdad
de
oportunidades basado en los resultados concretos (GUIMARÃES, 2006, p.
273).
En cuanto a la legislación, se puede citar la Constitución de 1988, llamada la
Constitución Ciudadana, considerando las demandas de los diversos sectores
sociales. También, en 1989, la Ley núm. 7716, que define los delitos
resultantes de prejuicios basados en la raza o el color. Al Movimiento Negro,
con las ideas ya más maduras sobre formas de ayuda con cargo a los poderes
del Estado, se organizó, en 1995, Zumbi dos Palmares contra el Racismo y por
la Ciudadanía y la Vida. Ya en la década de 2000, especialmente después de
la III Conferencia Mundial contra el Racismo, la Discriminación Racial, la
Xenofobia y las Formas Conexas de Intolerancia, celebrada en Durban,
Sudáfrica, en 2001, se percibe un cambio importante. Fue desde allí que el
compromiso de llevar a cabo las políticas públicas sectoriales contra el racismo
fue puesto en una forma más incisiva, lograr respuestas más concretas.
Ejemplos de ello son la creación de la Secretaría para la Promoción de la
Igualdad Racial (SEPPIR) en 2003, la concesión de cuotas federales de las
universidades públicas, se inició en 2004, y las reservas de puestos de trabajo
en la función pública.
Tener este fondo en la vista, el objetivo es verificar el diálogo, se evidencia a
partir de mediados de la década de 1990 entre los movimientos negros,
acciones de investigación y gubernamentales académicos que condujeron al
fortalecimiento de la discusión e implementación de políticas públicas
sectoriales centrados en la población negro.
Palabras clave: Discriminación Racial; La producción académica; Movimiento
Negro; Políticas del sector público.
Apresentação do tema
Hoje em dia localiza-se com alguma facilidade uma extensa bibliografia sobre o
negro brasileiro, produzida dentro e fora do país, por estrangeiros e por
nacionais. O estudo de suas formas de vida, posição econômico-social e
cultura em geral são objetos de pesquisa instigantes e importantes para a
história do país, já que a população negra é uma das principais formadoras de
sua gente.
Antes de prosseguir, é importante explicitar o que se entende por “negro” no
escopo deste artigo. É em 1996, no Programa Nacional de Direitos Humanos
apresentado pelo então governo de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002),
que esse conceito se define nos termos que é utilizado aqui. Tendo recebido
apoio de um Grupo de Trabalho Interministerial criado com o objetivo de sugerir
ações e políticas de valorização da população negra (FRY & MAGGIE, 2004, p.
71), o Programa Nacional de Direitos Humanos de 1996 apresenta como
medida a ser alcançada a médio prazo “determinar ao IBGE a adoção do
critério de se considerar os mulatos, os pardos e os pretos como integrantes do
contingente da população negra” (PNDH, 1996). Essa definição passa a ser
guia na construção e aplicação de leis futuras sobre o tema. O Estatuto da
Igualdade Racial (Lei 12.288/2010), por exemplo, define população negra como
“o conjunto de pessoas que se autodeclaram pretas e pardas, conforme o
quesito cor ou raça usado pela Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE), ou que adotam autodefinição análoga”. Ficando clara aqui a
diferença de estabelecer o critério da autodeclaração como determinante para
que se reconheça uma pessoa ou grupo como negro.
Quanto à proporção que a população negra representa no Brasil em relação à
população geral, vejamos os dados do censo demográfico feito pelo IBGE em
2010, que utiliza a autodeclaração como critério para indicar a cor/raça das
pessoas.
De um total de 190.755.799 pessoas, 47,73% se consideram brancas; 43,13%,
pardas; 7,61%, pretas; 1,09%, amarelas; 0,43%, indígenas e 0,0035% não
declararam. Note-se que, de acordo com o que consideramos como negros, a
1
maior parte da população do Brasil é hoje constituída por esta população, que
representa 50,74% do total.
Isso posto, prosseguiremos na análise de estudos acadêmicos investigando
algumas conquistas alcançadas em termos de abertura de espaços para a
discussão da questão racial enquanto um problema social no país.
Problemática
Em que medida é possível observar nas últimas décadas, a partir da produção
acadêmica, mudanças no tratamento dado à relação entre discriminação racial
e desigualdades sociais?
Interlocução teórico-conceitual
Compreendendo o debate ao longo da história
Até meados dos anos 1970, a população negra brasileira foi estudada sob
diversas formas de abordagem, despertando interesse de pesquisadores que
estudaram muitos aspectos de sua vida e cultura. Dos variados temas, de
religião a culinária, o que interessa para esse trabalho são os que tratam das
relações raciais tendo como pano de fundo a desigualdade social.
Resumidamente, podem-se destacar as teorias que mais influenciaram os
estudos sobre esse assunto. Vejamos.
As mudanças no modo de organizar a vida intelectual no Brasil tiveram início
com a chegada da família real portuguesa, em 1808. Foi a partir daí que se
começou a criar institutos do saber no Brasil. Desde então e até a primeira
metade do século XIX, os grupos de intelectuais brasileiros podiam ser
considerados bastante homogêneos (CARVALHO, 1980 apud SCHWARCZ,
1993, p. 24). Todavia, com o crescimento da produção de café na década de
1850 ocorre uma mudança no centro econômico do país, do Nordeste para o
Sudeste, o que contribuiu para o financiamento dos centros de saber desta
região, em detrimento dos daquela.
O fim do século XIX foi período muito importante em termos de teorias raciais.
E não apenas. Nessa época o Brasil passou por muitas mudanças nos mais
variados setores: econômico, político, social (PRADO JR., 1973). Foi em
meados desse século, já com a escravidão e a monarquia irremediavelmente
2
chegando ao fim, que teorias raciais aportaram no Brasil e “teóricos do
darwinismo racial fizeram dos atributos externos e fenótipos elementos
essenciais, definidores de moralidades e do devir dos povos... e de questões
políticas e históricas dados ‘inquestionáveis’ da própria biologia.” (SCHWARCZ,
2012, p. 20). Se juridicamente as pessoas tornavam-se iguais, do outro lado da
moeda estava a adoção de teorias que procuravam justificar a diferença pela
desigualdade ou inferioridade (SCHWARCZ, 1993). No Brasil, porém, muitos
teóricos de diversos ramos, de médicos a bacharéis em Direito, propunham
uma maneira de fazer com que essas desigualdades fossem amenizadas e o
país, finalmente, seguisse pelos caminhos do progresso: a miscigenação (leiase: branqueamento).
Cabe destacar que, ainda que seguindo uma tendência europeia, no Brasil
ocorreu um fenômeno bastante peculiar quando da utilização de teorias como o
positivismo, o darwinismo social e o evolucionismo. Segundo Lilia Schwarcz
(1993, p.15), ao contrário do que muitos estudiosos do assunto argumentam,
não houve uma simples cópia das ideias trazidas de fora, mas antes uma
incorporação do que “combinava” com o contexto nacional. Em O Espetáculo
das Raças, a autora nos apresenta as principais teorias raciais do século XIX,
mostrando como, no Brasil, chegou a haver utilizações conjugadas de teorias
consideradas opostos em sua origem. A valorização da mestiçagem em meio a
teorias de superioridade de pessoas brancas é grande exemplo, pois punha por
terra a intocável pureza das raças.
Era muito comum nesse período a utilização de conceitos como mestiçagem,
branqueamento, cientificismo, determinismo geográfico, eugenia, superioridade
e desigualdade entre as raças humanas.
Num segundo momento, já nos anos 1930, um dos autores de maior destaque
é sem dúvida o pernambucano Gilberto Freyre. A partir principalmente do
lançamento de seu livro Casa Grande & Senzala, em 1933, intérpretes trazem
à tona o conceito de democracia racial (Conf. GUIMARÃES, 2006), termo
aparentemente usado pela primeira vez em 1941 por Arthur Ramos
(GUIMARÃES, 2002, p.01) e que marcaria as pesquisas sobre raça no Brasil
durante muito tempo.
3
Lembremos que Freyre escreve num contexto de preocupação quase geral
quanto à identidade nacional, que são os anos 1930. Em um período em que
se procurava entender o país e a especificidade de seu povo através de teorias
raciais (NINA RODRIGUES, 1894; VIANNA, 1920), questões atreladas a
preocupações como a formação da nação e o progresso civilizatório, Freyre,
algo influenciado pelo culturalismo de Franz Boas, coloca a mestiçagem como
traço positivo do Brasil. A miscigenação de raças e culturas fora responsável,
segundo o autor, por nos fornecer um caráter original, que, mesmo em tempos
de senhores e escravos, teria contribuído para “diminuir as distâncias sociais e
culturais entre os extremos da sociedade” (FERREIRA, 1996, p.238). Esta
postura em relação a uma sociedade escravocrata gerou – e podemos dizer
que ainda gera - grandes embates, mas a obra de Gilberto Freyre pode ser
considerada revolucionária para as Ciências Sociais e para os estudos sobre
as relações raciais no Brasil por levar a discussão de nossas especificidades
para o campo da cultura, e não do determinismo biológico ou geográfico, tão
correntes à época.
Um terceiro e último momento que se pode destacar vem nos anos 1950,
quando Florestan Fernandes passa a estudar questões raciais. Impulsionado
por um projeto financiado pela UNESCO, o autor passa a estudar mais
profundamente as relações raciais em diversas regiões do Brasil, tornando-se,
junto a alguns de seus alunos, referência no assunto. Os resultados
questionam a factibilidade do mito da democracia racial e mudam os rumos das
pesquisas sobre as relações entre negros e brancos no país.
Esses estudiosos tiveram como grande mérito mostrar que as relações entre
brancos e negros no Brasil não são harmoniosas como sugere o mito da
democracia racial, sendo esta constatação, sustentada por pesquisas
realizadas em especial na região sul e sudeste do país (Conf. CARDOSO,
2003 [1962]; IANNI, 1972), um grande marco de separação em relação à linha
de pensamento chamada culturalista, que teve em Gilberto Freyre seu mais
famoso representante no Brasil.
Para Florestan Fernandes e seus orientandos Fernando Henrique Cardoso e
Octávio Ianni, pesquisadores da chamada Escola de Sociologia Paulista, o
motivo da não inserção do negro na sociedade de classes se deu menos pela
discriminação racial que de fato sofreram, do que por não terem tido condições
4
de desenvolver, devido à dureza do cativeiro, as condições indispensáveis de
pensamento que exige uma sociedade capitalista de natureza competitiva.
Exemplos são ambição e um núcleo familiar que lhes desse as bases para criar
as necessidades de poupança. Assim, a população negra não teria os
“requisitos psicossociais da personalidade livre elaborados em sua pessoa”
(IANNI, 1972, p. 66). Verificamos aqui o argumento de que, devido à herança
escravocrata, a população negra considerava o trabalho indigno, tendo como
conceito de liberdade o não trabalho. Em certa medida, esse argumento foi
usado como justificativa para a busca por trabalhadores na Europa, pois estes
seriam entes já formados no capitalismo e no trabalho livre, vistos como
agentes do progresso em uma sociedade manchada pelo atraso da escravidão
e carente de trabalhadores adequados para a nova composição econômicosocial.
Fazendo um balanço geral, notamos que, de formas diferentes, essas teorias
estavam altamente tingidas pela ideia da ausência. Num primeiro momento, o
mais radical, faltava ao negro, em resumo, ser branco. Sua inferioridade racial
o impediria de se desenvolver (ideia de evolucionismo) e viver de maneira
igualitária com o branco, inclusive em termos de produção de um legado que
se pudesse considerar relevante para a humanidade.
O segundo momento destacado aqui traz uma ideia mais positiva quanto ao
negro e sua cultura. As raças não brancas deixam de ser apontadas como
culpadas pelo atraso no desenvolvimento capitalista do país e suas formas de
expressão cultural são destacadas e, algumas, assimiladas no cadinho da
cultura nacional. Todavia, suas mazelas sociais são quase totalmente
ignoradas.
O terceiro momento, bastante diferente dos demais, vem carregado de crítica
social. Os problemas enfrentados pelo negro cotidianamente são expostos e o
conceito de democracia racial é altamente criticado e combatido. Há a
constatação da existência do racismo e que as condições em que vivem os
negros são muito piores em termos de acesso a saúde, educação e emprego
que os brancos. O mal maior, não obstante, estaria na herança escravocrata
que o próprio negro trazia consigo. A maneira de superar essa condição de
desigualdade social seria adaptando-se à forma capitalista de vida e emprego,
deixando de lado o arcaísmo escravocrata.
5
Após esses períodos, mudanças relevantes no estudo sobre o negro brasileiro
vieram. Confrontando diretamente muitas ideias levantadas pela Escola
Paulista de Sociologia, estudos de fins dos anos 1970 e início dos 1980
trouxeram diversas questões, enriquecendo o debate nesse campo.
Foi a partir do final dos anos 1970 que a população negra começou a ser
estudada por pesquisadores, como Carlos Hasenbalg (1979) e Nelson do Valle
Silva (1978), que conseguiram algum destaque ao abordar a ação desses
atores sociais diante das instâncias de poder. Uma ciência social marcada pelo
estudo da falta ao tratar da população negra, falando em inferioridade da raça
(Nina Rodrigues, 1894) ou ainda arcaísmo e ausência de condições
psicossociais para lidar com uma sociedade capitalista (Fernandes, 1965;
Ianni,1972), dentre outras análises que destacam ausências, passa a dividir
espaço com estudos que sublinham a agência e a escolha (CHALHOUB,1990)
a negociação e o conflito (REIS & SILVA, 1989), a rebelião e a resistência
(REIS, 1986).
Não que antes desse período inexistissem trabalhos que rumassem por esses
caminhos. Ainda no início do século XX, autores como Manoel Bonfim (1903) e
Lima Barreto (1909) procuravam analisar o Brasil a partir das camadas
populares e se opondo a algum caráter científico no conceito de raça. É
importante falar também do intelectual Clóvis Moura que, tendo produzido
significativamente nos anos 1980, lançou seu primeiro livro, Rebeliões da
Senzala, ainda em 1959. Nele o autor já enfatizava a agência do escravizado,
colocando “ênfase no processo de resistência violenta do negro ao escravismo”
(OLIVEIRA, 2011, p. 46).
Esses foram apenas alguns exemplos e por certo muitos outros nomes
poderiam ser citados em períodos anteriores aos anos 1980. Não se fala,
portanto, de um método de abordagem novo. O caso é que pesquisas apontam
que apenas a partir de meados dos anos 1970 pesquisas assim conquistaram
espaços menos marginalizados.
Grande exemplo é o de Carlos Hasenbalg que, em 1979, lança no Brasil como
livro o resultado de sua tese de doutorado, apresentada à Universidade da
Califórnia, intitulado Discriminação e Desigualdades Raciais no Brasil. Já no
prefácio, o autor deixa claro que seguirá uma linha de investigação diversa
6
daquela adotada pela Escola Paulista, dizendo que “mais do que na
organização social destruída noventa anos atrás (ou nos supostos ‘defeitos’
das vítimas), as causas da atual subordinação social do negro são procuradas
nas práticas racistas e discriminatórias do período posterior à abolição”
(HASENBALG, 1979, p. 18). Considerado o primeiro autor nas Ciências Sociais
brasileiras a estabelecer o elo entre racismo e desigualdades sociais
(GUIMARÃES, 2006, p.259), Hasenbalg é ainda um dos grandes nomes nos
estudos sobre o negro no Brasil.
Daí em diante, já adentrando os anos 1990, muitos estudos que tratavam da
escravidão e das classes trabalhadoras passaram a considerar que “as ações
dos escravos, libertos e trabalhadores urbanos resultam de negociações,
escolhas e decisões frente às instituições e aos poderes normativos.”
(Chalhoub, 2009). Percebe-se uma forma de pesquisa que busca contemplar
as relações que os membros menos favorecidos no universo social mantêm
com os grupos detentores de poder e/ou que melhor se beneficiam dos bens
sociais.
O fim dos anos 1970 marca também uma época de rearticulação de
movimentos sociais no Brasil. No caso do Movimento Negro, acontece em
1982 o I Congresso Nacional do Movimento Negro Unificado (MNU), surgindo
após articulações ocorridas nos anos anteriores com diversas frentes,
estabelecendo um programa de ação, que previa rearranjos internos e também
formas de alianças e negociações com outros círculos.
E nesse contexto de grandes lutas e algumas conquistas a questão do negro
vai sendo colocada no período analisado.
Contexto político e social
A ideia de nação, vigente no pós-guerra em muitas partes do globo, sofreu
grandes alterações nos anos 1980. O período dos anos 1930 e 1940 foi de
preocupação com a construção de uma nação com identidade única. Havia
projetos políticos de Estado nessa direção, e o “sistema político fora concebido
e
funcionava
guiado
por
princípios
universalistas
genéricos,
que
desconsideravam pertenças sociais específicas” (GUIMARÃES, 2006, p. 270).
A ideia de homogeneidade cedeu espaço para o multiculturalismo e o
7
multirracialismo, estando então o Estado não mais focado em buscar
transformar seu povo em um, mas, ao contrário, com o dever de garantir que a
diversidade linguística e cultural de seus cidadãos fosse preservada e a
igualdade de oportunidades fosse garantida, baseada não em intenções, mas
em resultados concretos (op. Cit., p. 273). A busca por um povo único, o
mestiço, vai se esvaindo pelas pressões dos movimentos sociais. São postas à
mesa, então, demandas de minorias étnicas e raciais, como das populações
negras e indígenas.
A redemocratização, em 1985, tem grande papel na possibilidade de realização
desses novos ideais. Como citamos anteriormente, há leis na década de 1980
e a própria Constituição abrindo possibilidades de ação contra o racismo. Já
nos anos 2000, a postura adotada pelo Estado brasileiro não repousa na
criação de leis criminais como ação principal. O governo que dirigia o país,
seguindo um caminho coerente com as posições assumidas desde 1995,
quando assumiu a presidência da República Fernando Henrique Cardoso - o
primeiro presidente brasileiro a assumir publicamente a existência do racismo
no Brasil -, passa a propor ações afirmativas para os afrodescendentes (FRY &
MAGGIE, 2004. p. 67).
Reivindicações e Políticas Públicas: os anos 1990
Políticas públicas setoriais voltadas para a temática racial começaram a ser
debatidas com maior intensidade, inclusive como demanda do Movimento
Negro, a partir de meados dos anos 1990. Se nos anos 1980 e início dos 1990
a noção de democracia racial ainda era bastante difundida, a partir desse
momento ela começa a ser altamente questionada e medidas concretas de
combate ao racismo passam a ser cobradas (THEODORO, 2009, p. 11).
Assim, a transformação ocorrida nos anos 1990 que leva à discussão sobre a
falácia da democracia racial para além da Academia pode ser entendida
quando articulamos alguns acontecimentos, já indicamos anteriormente – a
saber, fatos como a rearticulação do Movimento Negro e a Conferência em
Durban, considerada um marco (LIMA, 2010, p. 79; JACCOUD, 2008, p. 58).
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Resultados Parciais
Ainda há um extenso caminho a percorrer para que seja possível vislumbrar
respostas satisfatórias à pergunta colocada neste trabalho. Não obstante,
cremos ser possível partir para alguns apontamentos relevantes neste debate.
Procurando articular, a partir da literatura disponível, movimentos que
caminham na direção de uma resposta positiva à problemática levantada,
traremos alguns dados.
Em 18 de junho de 1978, reuniram-se em São Paulo diversos grupos de
movimentos negros que convergiam ao pensar que a luta de classes deveria
ser combinada com a luta antirracista na sociedade brasileira. Após anos de
repressão e clandestinidade, como resultado da ditadura militar no país (19641985), esse ponto de convergência e uma conjuntura nacional e internacional
de conquistas de maiores espaços para as lutas dos movimentos sociais, e
particularmente de movimentos negros, permitiu a criação do Movimento
Unificado Contra a Discriminação Racial (MUCDR), que mais tarde se tornaria
o MNU, Movimento Negro Unificado (DOMINGUES, 2007, pp. 113-114). Por
sua pluralidade, elegemos o MNU como porta-voz do movimento negro para
este trabalho. Quanto às suas reivindicações, o Programa de Ação de 1982,
quando da realização do I Congresso do movimento, colocava como mais
relevantes:
Desmistificação da democracia racial brasileira; organização política da
população negra; transformação do movimento negro em movimento de
massas; formação de um amplo leque de alianças na luta contra o
racismo e a exploração do trabalhador; organização para enfrentar a
violência policial; organização nos sindicatos e partidos políticos; luta
pela introdução da História da África e do negro no Brasil nos currículos
escolares, bem como a busca pelo apoio internacional contra o racismo
no país. (DOMIINGUES, 2007, p. 114)
Cada um desses pontos é bastante complexo e diversas análises podem ser
feitas quanto ao que aconteceu nos 20 anos seguintes à sugestão dessas
reivindicações. Sem tratar esses acontecimentos como meras causalidades,
podemos, no entanto, fazer algumas conexões. Em primeiro lugar, no que toca
à
desmistificação
da
democracia
racial
brasileira,
os
levantamentos
9
apresentados anteriormente indicam que essa luta foi travada nos movimentos
negros e muitos intelectuais e acadêmicos trouxeram à tona levantamentos
científicos que convergem quanto a não existência de uma igualdade racial no
país. É importante salientar, contudo, que fenômenos muito distintos ocorreram
na esfera acadêmica e na esfera das relações sociais cotidianas em relação às
evidências sobre a democracia racial. Enquanto no universo acadêmico este
mito fora colocado por terra, “na esfera pública o ciclo de estudos [iniciado pelo
Projeto Unesco] não gerou mudança alguma na tradicional autoimagem da
sociedade brasileira.” (Maio 2000, p.116). Ainda assim, o fato de ter sido
deslegitimado pela ciência pode ser considerado um grande passo na luta do
movimento negro.
O segundo ponto colocado, organização política da população negra, é muito
abrangente, mas é possível, acredita-se, ter nas políticas de ação afirmativa e
na criação da SEPPIR um exemplo de algum sucesso neste aspecto.
Criada como órgão de assessoramento imediato ao Presidente da República, à
Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial compete assessorar
direta e imediatamente a presidência no planejamento, coordenação da
execução e avaliação do Programa Nacional de Ações Afirmativas, dentre
outras atribuições.
Por fim, cabe ressaltar a importância da dinâmica entre Academia, Estado e
Movimentos Sociais. Note-se que se a relação entre esses três setores por um
lado não é de dependência, por outro pode fazer com que cada um tenha seus
planos alterados pelos contatos feitos com os demais. Para deixar a ideia mais
clara, pensamos aqui não em simples causalidades, mas em algo que vai ao
encontro do conceito de afinidades eletivas, como utilizado por Max Weber.
Vejamos a explicação de Michael Löwy (2011[2004]) sobre o termo sob
perspectiva weberiana:
Afinidade eletiva é o processo pelo qual duas formas culturais –
religiosas, intelectuais, políticas ou econômicas – entram, a partir de
determinadas
analogias
significativas,
parentescos
íntimos
ou
afinidades de sentidos em uma relação de atração e influência
recíprocas, escolha mútua, convergência ativa e reforço mútuo. (...) É
claro, a afinidade eletiva depende do grau de ‘adequação’ ou de
10
‘parentesco’ entre as duas formas, mas ela depende também de outros
fatores: a afinidade eletiva é favorecida ou desfavorecida por certas
condições históricas. Em outros termos, é necessária uma determinada
constelação – para utilizar um conceito que Karl Mannheim deslocou
com sucesso da astrologia para a Sociologia do Conhecimento - de
fatores históricos, culturais e sociais para que se desenrole um
processo de attractio electiva, de seleção recíproca, reforço mútuo e até
mesmo, em alguns casos, de simbiose de duas figuras espirituais. (pp.
139-140)
Trazendo para o nosso tema, consideramos que, nos termos acima, uma
“constelação” de aspectos tenha se dado no período histórico aqui estudado, o
que poderia explicar, por múltiplos fatores, mas num dado período, uma
sintonia nos caminhos tomados por certos setores das áreas mencionadas,
culminando no reconhecimento de maneira mais ampla da existência do
racismo no país e na adoção de medidas para tratar do assunto, como a
aplicação de políticas de ação afirmativa. É o que acontece, por exemplo, a
partir principalmente dos anos 1990, quando a atenção de muitos analistas e
estudiosos se volta a pautas colocadas diretamente por grupos de militantes.
Nestas pautas, há identificação de um fenômeno que pode ser entendido como
a formação, no Brasil, de grupos que cultivam identidades étnico-raciais
negras, se organizam em associações privadas e desenvolvem
demandas políticas próprias, buscando interlocução com aparelhos do
Estado. A importância política desses grupos fica clara no papel central
que
desempenham
hoje
na
reforma
universitária
em
curso,
pressionando com sucesso a adoção de cotas para negros, sendo
também bem-sucedidos na demanda pela criação de uma Secretaria
Especial para Promoção da Igualdade Racial, com estatuto de
ministério, assim como na indicação de quadros seus para ocupar
postos
relevantes
em
outros
aparelhos
do
Estado
brasileiro.
(GUIMARÃES, 2010, p. 115).
É possível verificar que movimentos negros, constatando que modos de
promoção social considerados universalistas acabavam, de maneira geral, em
desvantagem para os negros (GUIMARÃES, 2010, p. 115), passaram a
questionar a universalidade destes critérios e a cobrar, isto sim, meios
concretos de distribuição das riquezas sociais. Essa posição vai ao encontro de
11
uma tendência internacional que pode ser chamada de multiculturalismo, em
que “diversidade, já em versão multicultural, significa diferenciação e
particularização racial e cultural. Busca-se afirmar o reconhecimento da
diferença racial como uma nova modalidade de direitos, por suposto
moralmente mais justa, cuja função maior seria debelar as desigualdades, não
as diferenças, entre as raças (...)” (GRIN, 2005-2006, p.38). A III Conferência
Mundial das Nações Unidas de Combate ao Racismo, Discriminação Racial,
Xenofobia e Intolerâncias Correlatas, considerada a primeira a tratar o racismo
e discriminação racial em sua incidência planetária (LINDGREN ALVES, 2002,
p.200), é grande exemplo de adoção do conceito do multiculturalismo em suas
propostas de ação, tendo exercido alta influência na criação da SEPPIR. Sabese que reconhecimento de diferenças não gera, como uma consequência
natural, uma distribuição de riquezas sociais mais justa. Todavia, conseguir
explicitar a existência da diferença e, mais que isso, que essa diferença vem
gerando de maneira infundada grandes desigualdades socioeconômicas, pode
ser passo importante para a luta por uma divisão mais igualitária dos produtos
sociais.
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