MINISTÉRIO PÚBLICO DE PERNAMBUCO
GRUPO DE TRABALHO SOBRE DISCRIMINAÇÃO RACIAL
GT - RACISMO
O RACISMO INSTITUCIONAL COMO ELEMENTO DIFICULTADOR DO
COMBATE AO RACISMO NO MINISTÉRIO PÚBLICO
Maria Bernadete Martins de Azevedo Figueiroa
Procuradora de Justiça do Ministério Público de Pernambuco
Coordenadora do GT Racismo
1. JUSTIFICATIVA
O debate sobre relações raciais na sociedade brasileira tem se intensificado no início deste
século, especialmente a partir da renovação dos compromissos assumidos na II Conferência
Mundial Contra o Racismo, a Xenofobia, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de
Intolerância, realizada em setembro de 2001, em Durban, na África do Sul, da qual o Brasil
participou ativamente, através dos organismos governamentais e do Movimento Negro.
Posteriormente, em 12.06.2003, mediante Declaração Facultativa à Convenção, reconheceu
a competência do Comitê Internacional para a Eliminação da Discriminação Racial, a fim
de receber e analisar denúncias contra violação de direitos humanos.
Esta circunstância, aliada à maturidade política dos movimentos sociais negros, tem
forçado a criação de novas demandas e a efetiva aplicação de princípios e normas há muito
inseridos na ordem jurídica brasileira, gerando a necessidade de uma releitura crítica
desses princípios e normas, numa perspectiva que considere a diversidade e a igualdade
étnico-racial como um imperativo ético e jurídico a ser imediatamente implementado.
No entanto, observa-se que, de um modo geral, nas instituições sociais, especialmente no
âmbito das instituições jurídicas encarregadas dessas mudanças, predomina uma visão
preconceituosa construída historicamente em relação ao povo negro, contrapondo-se a uma
identificação positiva do branco.
Essas práticas estabelecidas, a par de trivializar as
violações de direitos sofridas por aquele segmento discriminado, possibilita uma ação
institucional que dificulta ou mesmo impede a implementação de políticas públicas
afirmativas que têm por objetivo combater o racismo promovendo ações concretas de
enfrentamento.
Nesse contexto, o objetivo desse trabalho é demonstrar, a partir da experiência do Grupo de
Trabalho sobre Discriminação Racial do Ministério Público de Pernambuco - GTRacismo,1 a necessidade de discussão, reflexão, apreensão e disseminação do conceito de
Racismo Institucional, como estratégia de percepção das práticas institucionais racistas,
reproduzidas ao longo dos séculos.
Notadamente no que se refere ao Ministério Público, como órgão essencial à administração
da Justiça (CF, artigo 127), tais práticas impedem uma ação focada na garantia do direito à
inclusão social da população afrodescendente. Neste sentido, o presente trabalho poderá
subsidiar a construção de novas práticas institucionais, sintonizadas com as diversas
dimensões que conformam as demandas da sociedade nesse novo milênio.
1.1 RACISMO E POBREZA
Os indicadores sociais existentes são incisivos na demonstração de que as mudanças sociais
ocorridas no Brasil, no decorrer do século XX, embora tenham sido positivas em muitos
aspectos, não representaram qualquer alteração relativa à qualidade de vida dos grupos
discriminados, mantendo-os num quadro de condições de vida aviltante e degradante
(HENRIQUES; CAVALLEIRO, 2005). Com vistas ao enfrentamento dessa situação de
desigualdade, impelido pelo ordenamento jurídico interno, pela comunidade internacional
das nações democráticas e pelas novas demandas da sociedade, o Estado brasileiro tem
introduzido, ainda que timidamente, políticas públicas específicas que levam em conta
essas diferenças, tais como aquelas voltadas às populações afrodescendentes.
Entre os estudiosos da temática racial (GOMES, 2005; HENRIQUES; CAVALLEIRO,
2005; SALES JUNIOR, 2006) há um consenso de que a forma como foram historicamente
construídas as relações raciais no Brasil ao longo dos seus quinhentos anos - a fusão de
etnias e culturas, o mito da “democracia racial”, etc - possibilitou um racismo fragmentado,
não dito, disfarçado, que naturaliza o lugar social da pessoa negra como uma conseqüência
“natural” dessa condição.
Embora a população brasileira seja composta de 45 % de pretos e pardos, dados do IPEA
revelam que 64% dos pobres e 69% dos que estão abaixo da linha de pobreza são negros,
numa demonstração de que, como observa Henriques (2001, p. 2), “a pobreza é um dos
mais agudos problemas econômicos do país, mas a desigualdade – principal determinante
da pobreza – é o maior problema estrutural do Brasil”, contrapondo-se ao argumento de que
a desigualdade é um problema “social” e não “racial”. Essa super-representação negativa
também demonstra que a democracia brasileira reflete, em certo sentido, o mito da
1
O referido Grupo de Trabalho foi instituído mediante Portaria do Procurador Geral da Justiça publicada no
DOE do dia 10.12.2002 e é composto por 4 procuradores/procuradores de justiça, 5 promotores/promotoras de
justiça das diversas áreas de cidadania da capital e região metropolitana, um servidor e uma servidora do MPPE.
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“democracia racial”, na medida em que, embora asseverando ter por objetivo primeiro
“construir uma sociedade livre, justa e solidária” (CF, art. 3º. I), o Estado de Direito não
tem agido concretamente através de suas instituições democráticas na consecução desse
desiderato.
Por sua vez, estudos e pesquisas recentes (BARROS, 2006; SALES JUNIOR, 2006)
demonstram que a reprodução secular dessas situações de desigualdade tem sido
alimentada em razão de preconceitos e estereótipos racistas disseminados e fortalecida
pelas mais diversas instituições sociais, tais como a família, a escola, os meios de
comunicação, e o que é mais grave, pelas próprias instituições do Estado que, em tese,
deveriam garantir a realização de uma cidadania plena, com a participação de todos .
Todavia, em que pese já existir um aparato legislativo significativo, inclusive um Programa
Nacional de Direitos Humanos prevendo ações afirmativas em favor de grupos
vulneráveis, e apesar de serem evidentes as condições de desvantagem nas quais se
encontra a grande maioria da população negra, mesmo em relação aos outros pobres não
negros, o Ministério Público, de um modo geral, não tem empreendido ações institucionais
de enfrentamento dessas discriminações de modo eficiente, utilizando-se de um discurso
legalista que remete a uma interpretação literal, isolada e descomprometida dos princípios e
normas quando se trata dos direitos da população negra.
Entende-se que essa postura é uma forma grave de omissão, principalmente quando a
mesma ocorre dentro de órgãos encarregados pela Constituição de garantir o respeito e de
assegurar o exercício dos direitos fundamentais, sem qualquer distinção de raça, cor, sexo,
origem, nacionalidade ou etnia, como no caso do Ministério Público. Portanto, um dos
maiores desafios atuais que se apresenta a esta instituição é ter uma atuação que assegure
aos seguimentos discriminados da sociedade, como a população negra, por exemplo,
padrões dignos de cidadania no exercício dos direitos sociais, tendo como meta a utopia
configurada na promessa constitucional de igualdade e justiça social.
Pode-se, então, concluir que o combate à discriminação racial em todas as suas formas de
manifestação, antes de ser uma atribuição a mais entre tantas outras, é um compromisso
prioritário do Ministério Público como instituição incumbida de “zelar pelo efetivo respeito
dos poderes públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos assegurados [na]
Constituição, promovendo as medidas necessárias a sua garantia” (CF, artigo 129, inciso
II).
1.2 RACISMO, DISCRIMINAÇÃO RACIAL E RACISMO INSTITUCIONAL
Ao longo dos tempos, a crença na existência de raças superiores e inferiores – racismo - foi
utilizada para justificar a escravidão e o domínio de determinados povos por outros. No
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Brasil, o fato de não haver uma legislação segregadora, nos moldes do apartheid, não tem
impedido a existência do racismo, como se pode constatar da simples verificação de dados
disponibilizados pelos órgãos oficiais como IPEA e IBGE, os quais demonstram com
clareza que a população negra – compreendidos pretos e pardos – vem se mantendo ao
longo dos séculos em condições de vida inferior a população não negra. Sejam quais forem
os indicadores utilizados – renda, educação, saúde, habitação, etc – as pesquisas sinalizam
para a presença do racismo como elemento potencializador e reprodutor dessas condições
(HENRIQUES, 2001).
A ideologia racista, subentendendo ou afirmando claramente a existência de raças puras,
superiores às demais e que tal superioridade autoriza uma hegemonia política e histórica,
valoriza positivamente essas características físicas hegemônicas, em detrimento da
população negra, gerando uma concepção de mundo que hierarquiza os grupos humanos
por suas diferenças raciais.
A discriminação racial se diferencia do racismo, na medida em que se configura numa
prática, uma ação de exclusão, restrição ou preferência que impede, restringe ou dificulta o
acesso igualitário de determinados grupos em razão da cor.
Para análise a que este trabalho se propõe, utiliza-se o conceito de discriminação racial
definido pela ONU (BRASIL, 2006), entendido como
“qualquer distinção, exclusão,
restrição ou preferência baseada na raça, cor, ascendência, origem étnica ou nacional com a
finalidade ou efeito de impedir ou dificultar o reconhecimento e/ou exercício, em bases de
igualdade, aos direitos humanos e liberdades fundamentais nos campos político, econômico
social,cultural ou qualquer outra área da vida publica”
A discussão sobre o Racismo Institucional nos meios governamentais do Brasil surgiu a
partir da proposta do Programa de Combate ao Racismo Institucional no Nordeste do
Brasil – PCRI - desenvolvido pelo PNUD/DFID, programa de cooperação internacional
comprometido com a erradicação da pobreza no mundo, na perspectiva do cumprimento
das chamadas Metas do Milênio.
O racismo institucional, é assim compreendido, como “o fracasso coletivo de uma
organização em prever um serviço profissional e adequado às pessoas por causa de sua cor,
cultura ou origem étnica”. Nesse diapasão, “o racismo institucional pode ser visto ou
detectado em processos, atitudes ou comportamentos que denotam discriminação resultante
de preconceito inconsciente, ignorância, falta de atenção ou de estereótipos racistas que
colocam minorias étnicas em desvantagem” e “determina a inércia das instituições e
organizações frente às evidências das desigualdades raciais” (DFID, 2004).
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Trata-se de um conceito que, na visão do referido Programa, possibilita identificar os
mecanismos institucionais racistas consubstanciados em leis, normas atitudes e
comportamentos estabelecidos, visto que o Racismo Institucional, enquanto um não-dito
nas relações raciais, engendra arranjos institucionais que restringem a participação de
determinado grupo racial, ora afetando a punibilidade do racismo (SALES JÚNIOR, 2006)
ora forjando uma conduta rígida frente às populações discriminadas.
Além desse aspecto externo que se reflete na qualidade da prestação do serviço à sociedade,
o Racismo Institucional também permeia os Ministério Público na sua composição, (como
de resto, as demais instituições e as organizações privadas) na medida em que não se
questiona e se vê como natural o racismo refletido em sua hierarquia interna, onde os
cargos e os
salários mais elevados e representativos de poder se encontram
majoritariamente com as pessoas brancas, contrapondo-se a um segmento terceirizado
predominantemente constituído de pretos e pardos.
1.3 A EXPERIÊNCIA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DE PERNAMBUCO NO
COMBATE AO RACISMO: LIMITES E POTENCIALIDADES
Na esteira da II Conferência Mundial contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia
Intolerâncias Correlatas em Durban, em setembro de 2001, instalou-se o debate na
sociedade brasileira sobre a discriminação, ações afirmativas e as cotas, gerando uma
expectativa justa dos movimentos sociais negros em relação às instituições responsáveis
pela efetivação dos direitos reclamados, o que, por sua vez, vem suscitando uma avalanche
de questionamentos em torno de temas como igualdade formal e igualdade material,
universalidade e seletividade, direito e privilégio, motivando o estabelecimento do conflito
legítimo, porque próprio da Democracia.
Neste sentido é que, para Chauí (2006, p. 139), “por seu vínculo constitutivo com o
conflito, a Democracia não cessa de fazer surgir novos sujeitos políticos, que emergem dos
conflitos e são criadores de direitos novos. Ela é, fundamentalmente, processo de criação de
direitos (o que também é uma de suas originalidades) e, por isso mesmo, é uma forma
política aberta ao tempo e à história”. Como é sabido, o processo de aperfeiçoamento da
democracia se dá através do eficiente funcionamento de suas instituições.
Nos limites a que se propõe este trabalho, apenas se coloca essa questão como indicativa da
situação estratégica em que se encontram instituições como o Ministério Público, ao
mesmo tempo Fiscal da Lei e agente político garantidor da cidadania. Por seu turno, ao
prestígio por ele alcançado perante a sociedade ao longo de quase duas décadas,
corresponde a responsabilidade de ser a ponte para a consolidação dos “direitos novos” a
que se refere a autora citada, impulsionando-o à ações concretas e transformadoras,
previstas no texto constitucional: “Constituem objetivos fundamentais da República
5
Federativa do Brasil”: I – construir uma sociedade livre, justa e solidária; II – garantir o
desenvolvimento nacional;III -
erradicar a pobreza e marginalização reduzir as
desigualdades sociais e regionais; IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de
origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outra forma de discriminação” (CF, art. 3º.).
Sobre esse tema, discorre ROCHA (1996, p. 93 apud GOMES, 2005, p. 62): “Verifica-se
que todos os verbos utilizados na expressão normativa – construir, erradicar, reduzir,
promover – são de ação, vale dizer, designam um comportamento ativo. O que se tem, pois,
é que os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil são definidos em termos
de obrigações transformadoras do quadro social e político retratado pelo constituinte
quando da elaboração do texto constitucional”. Donde se pode deduzir que o Ministério
Público não pode se omitir de uma atuação proativa, que contribua efetivamente para a
transformação dessa realidade.
Nesse contexto, o Ministério Público de Pernambuco – MPPE , a partir da iniciativa de um
grupo de promotores e procuradores da cidadania, criou o Grupo de Trabalho Sobre
Discriminação Racial GT-Racismo , com o objetivo geral de desenvolver estratégias de
inclusão social
mediante
ações de combate às atitudes discriminatórias, inserindo a
temática racial na prática institucional. Nessa perspectiva, foi construído, junto com a
assessoria de Planejamento do MPPE, um Plano de Atuação para o GT-Racismo, com
metas, prazos e responsáveis bem definidos, a partir de uma Audiência Pública com o
Movimento Negro de Pernambuco, que propôs duas prioridades básicas: 1.Garantir a
implementação da Lei Nº 10.639/03 – (que altera a Lei no. 9.394, de 20 de dezembro de
1996, para incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática
“História e Cultura Afro-Brasileira”), e 2. Garantir a implementação de políticas públicas
de Saúde da População Negra.
Tão logo instalou-se o debate dentro da instituição, o Grupo se apercebeu de que havia
dificuldade de percepção, por parte da maioria dos membros e servidores, da existência
do racismo como um dado real, capaz de interferir negativamente na vida das pessoas,
porque há uma concepção no imaginário social de que se vive numa “democracia racial”.
Ora, se o “racismo não existe”, e se há tantas questões “realmente” importantes na agenda
do Ministério Público, para que, então, enfrentá-lo? Por outro lado, se não se assume que
existe racismo, inclusive dentro do Ministério Público, como este poderá prestar um serviço
isento, adequado, que contemple essas novas demandas, que implemente a legislação antiracista, penalizando as violações desses direitos?
A parceria com o Programa de Combate ao Racismo Institucional oportunizou a realização
de oficinas de capacitação e sensibilização sobre este tema no MPPE com equipes técnicas
multidisciplinares especializadas em relações raciais, com a participação do Movimento
Negro, possibilitando a capacitação de cerca de 100 promotores e 40 servidores. Nessas
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ocasiões, foram reconstruídas e, em alguns casos relatados, experiências vividas que
retratavam o racismo implícito, revelando, por outro lado, que a complexidade do tema
ultrapassa, em muito, uma abordagem meramente jurídica. Pôde-se observar que esse
processo alterou, em certos casos de forma visível, a prática institucional de alguns
participantes.
A ausência dessa discussão, da apropriação de conhecimentos específicos sobre o tema, a
interação com os movimentos sociais negros dentro das instituições, porém, pode
representar um dos maiores entraves para a compreensão da necessidade das políticas
públicas afirmativas, de um modo geral, e, em particular, da implementação da Lei
10.639/03.
1.4Lei 10.630 de 09 de janeiro de 2003 - Ensino da História e Cultura AfroBrasileira e Africana
A Lei 10.639, de 09 de janeiro de 2003 - que alterou a Lei n. 9394/96, de Diretrizes e Bases
da Educação Nacional, estabelecendo a obrigatoriedade do ensino da História e Cultura
Afro-Brasileira e Africana na Educação Básica - é um instrumento legal de fundamental
relevância no sentido de serem reconstruídas as relações raciais entre negros e não negros
no Brasil, na medida em que essa lei contém as premissas básicas para a implantação de
uma educação cujas práticas pedagógicas considerem positivamente as relações étnicoraciais, “visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da
cidadania e sua qualificação para o trabalho” (art. 205, CF). Essa lei representa uma
conquista do Movimento Negro do Brasil, e um avanço em direção à garantia plena dos
direitos, pela efetiva contribuição para a cidadania de uma população que teve interditada a
sua participação positiva na História por ela também construída.
Objetivando a sua implementação, o Ministério da Educação, através do Conselho Nacional
de Educação, editou o Parecer n 003/2004, aprovado em 10.03.2004, dirigido aos
Conselhos de Educação dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, estabelecendo
Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico Raciais. Trata-se de
uma Ação Afirmativa básica com foco no racismo institucional e no racismo individual,
voltada para a formação de professores e gestores, a elaboração e distribuição de material
didático e paradidático, currículo escolar e projeto político –pedagógico.
Não obstante esteja em vigor há mais de 4 anos e em que pese sua importância para o
combate ao racismo, o desconhecimento quanto a existência dessa lei e a resistência à sua
implementação nos mais diversos níveis de poder, são reveladores do quanto é difícil para a
população negra se fazer ouvir e respeitar.
7
Enquanto isso, segmentos expressivos das representações dominantes da sociedade, reitera
o senso comum da permanência do mito da “democracia racial”, utilizando-se do discurso
de
repúdio às cotas, como elemento instaurador do conflito instituído. Dessa forma,
desconsidera-se a realidade, porque o mito cristaliza crenças e valores que são
interiorizados pela sociedade como se realidade fosse, desempenhando uma função
apaziguadora e repetidora do status quo existente, como suporte da ideologia dominante,
encarregada de manter a matriz mítica inicial (CHAUI, 2007).
Portanto, sendo a escola um espaço privilegiado de construção (e desconstrução) de
valores, se a Lei 10.639/03 determina uma ação de construção e disseminação de
conhecimentos sobre o racismo e suas conseqüências, mediante um compromisso ético e
político de uma educação anti-racista, é urgente que se priorize sua implementação, como
ação transformadora.
1.5 O CRIME DE RACISMO
No que diz respeito a estratégia repressivo-punitiva para o enfrentamento da discriminação,
observa-se que
o crime de racismo, não obstante figurar como
inafiançável
e
imprescritível no texto constitucional, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei (CF,
artigo 5º, XLII), os estudos recentes (SILVA JR, 2006 ) demonstram que a impunidade é
a regra e que o mito da “democracia racial” e o racismo institucional (SALES, 2006)
também dificultam, quando não inviabilizam
por completo, a punição desses crimes.
Nestes, a ação supostamente ilícita é analisada isoladamente de seu contexto discursivo,
favorecendo uma interpretação que sempre beneficia “inconscientemente” o agente
discriminador - ou porque a ocorrência sequer ultrapassa a esfera policial, ou porque,
considerada como injúria qualificada (artigo 140, § 3º. CP) possibilita, via de regra, a
decadência, quando, na maioria das vezes, a hipótese é típica do crime de discriminação
racial previsto no artigo 20 da Lei 7.716/89, que é imprescritível e cuja titularidade da ação
é do Ministério Público.
Tese apresentada pelo promotor de justiça Roberto Brayner, membro do GT-Racismo, no
VI Congresso Estadual do MPPE, em setembro de 2005, defende que os crimes de injúria,
praticados com ofensas verbais de conteúdo racista, são crimes de racismo (Lei. 7.716/89,
art. 20), em face da manifesta inconstitucionalidade do artigo 140 § 3º do Código Penal,
frente ao que dispões o artigo 5º, XXLII, da Constituição Federal.
Esse entendimento está em consonância com as recomendações do Comitê sobre a
Eliminação da Discriminação Racial, instituído pela Convenção Internacional sobre
Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, o qual destaca que as
investigações relacionadas à discriminação racial devem ser conduzidas com diligência e
agilidade, a fim de que proporcionem o esclarecimento rápido dos fatos, principalmente
quando praticados em público e por grupos, recomendando a revisão da política e dos
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procedimentos nesses casos, inclusive com pagamento de indenizações para amenizar os
danos.
Por sua vez, a alteração produzida pela Emenda Constitucional nº 45, de 08 de dezembro de
2004 que acrescentou o § 3º ao artigo 5º da Constituição, atribui maior relevância aos
Tratados e Convenções Internacionais de Direitos Humanos (art. 5 §§ 3º e 4º., CF), na
medida em que prevê a aplicabilidade imediata dessas normas de garantia de direitos
fundamentais, incorporando-as automaticamente à Ordem Jurídica brasileira e declara a
submissão do Brasil ao Tribunal Penal Internacional
2. CONCLUSÕES E PROPOSIÇÕES
A renovação dos compromissos assumidos pelo Brasil para o combate à discriminação
racial, na Conferência Mundial Contra o Racismo, a Xenofobia, a Discriminação Racial e
Formas Correlatas de Intolerância, realizada em setembro de 2001, em Durban, na África
do Sul, impõe a incorporação do viés racial nas práticas institucionais, gerando a
necessidade de uma releitura crítica dos princípios e normas que integram a ordem jurídica.
Observa-se que não obstante a existência de um aparato legislativo (constitucional e
infraconsticional) determinando medidas repressivo-punitivas e compensatórias no combate
ao racismo, as instituições governamentais, de um modo geral, e as instituições jurídicas em
especial, não tem dado efetividade esses princípios e normas.
O Ministério Público, órgão essencial à administração da Justiça (CF, artigo 127),
instituição incumbida de “zelar pelo efetivo respeito dos poderes públicos e dos serviços de
relevância pública aos direitos assegurados [na] Constituição, promovendo as medidas
necessárias a sua garantia” (CF, artigo 129, inciso II), não tem sido eficiente no combate ao
racismo, utilizando uma prática institucional que trivializa as violações de direitos sofridas
pela população negra e dificulta a implementação de políticas públicas afirmativas.
O Racismo Institucional, enquanto prática institucional resultante de estereótipos racistas,
presente nas organizações e instituições, que restringe a participação de determinado grupo
racial, também se reflete no Ministério Público, ora afetando a punibilidade do racismo, ora
forjando uma conduta rígida frente às populações discriminadas, de modo a dificultar uma
atuação institucional eficiente e adequada, o que exige a discussão, análise compreensão e
disseminação desse conceito.
A Lei 10.639, de 09 de janeiro de 2003 - que alterou a Lei n. 9394/96, de Diretrizes e Bases
da Educação Nacional, estabelecendo a obrigatoriedade do ensino da História e Cultura
Afro-Brasileira e Africana na Educação Básica - é uma ação afirmativa fundamental para o
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combate à discriminação, na medida em que possibilita a reconstrução das relações raciais
entre negros e não negros no Brasil, devendo ser urgentemente implementada pelo
Ministério Público.
Na análise do crime de racismo, não obstante ser este inafiançável e imprescritível no texto
constitucional (CF, artigo 5º, XLII), a prática institucional tem possibilitado em muitos
casos, a impunidade, uma vez que as ações supostamente ilícitas são analisadas num
contexto discursivo que favorece uma interpretação benéfica para o agente discriminador.
Considerado quase sempre injúria qualificada (artigo 140, § 3º. CP) possibilita, na maioria
dos casos, a decadência, quando, via de regra, a hipótese é típica do crime de discriminação
racial previsto no artigo 20 da Lei 7.716/89, que é imprescritível e cuja titularidade da ação
é do Ministério Público.
Essa prática contraria as recomendações do Comitê sobre a Eliminação da Discriminação
Racial, instituído pela Convenção Internacional sobre Eliminação de Todas as Formas de
Discriminação Racial, o qual destaca que as investigações relacionadas a esses crimes
devem ser conduzidas com diligência e agilidade, recomendando também a revisão da
política e dos procedimentos nesses casos, inclusive com pagamento de indenizações para
amenizar os danos.
REFERÊNCIAS
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suspeição. Dissertação (Mestrado). Universidade Federal de Pernambuco, 2006.
CHAUI, Marilena. Contra a Violência. Disponível em
http://www2.fpa.org.br/portal/modules/news/article Acesso em 30 jul. 2007.
______. Cidadania cultura: o direito à cultura. São Paulo: Ed. Fundação Perseu Abramo,
2006.
SALES JUNIOR, Ronaldo L. de. Raça e Justiça: o mito da democracia racial e o racismo
institucional no fluxo de justiça. 2006 Tese (Doutorado). Universidade Federal de
Pernambuco, Recife.
GOMES, J. B. Barbosa. A recepção do instituto da ação afirmativa pelo Direito
Constitucional Brasileiro. In: SANTOS, Sales A. dos. (org.). Ações afirmativas e combate
ao racismo nas Américas. Brasília: Ministério da Educação, 2005. Coleção Educação para
Todos.
PIOVESAN, Flávia. Direito Internacional dos Direitos Humanos e igualdade étnicoracial. In: PIOVESAN, Flávia; SOUZA, Douglas. (Org.). Ordem jurídica e igualdade
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DFID. Department Four International Development. Programa de Combate ao Racismo
Institucional no Nordeste do Brasil/PCRI/NE. Brasília, 2002.
BRASIL. Ministério da Educação. Resolução nº 1, de 17/06/2004: Institui Diretrizes
Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de
História e Cultura AfroBrasileira e Africana. Disponível em:
http://www.educacaopublica.rj.gov.br/biblioteca/documentos/doc. Acesso em 30. jul. 2007.
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BRASIL. Secretaria Especial de Direitos Humanos. Direitos Humanos: Documentos
Internacionais. Brasília: Presidência da República, 2006
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