1 UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ SARAH DAYANNA LACERDA MARTINS LIMA DIREITOS SEXUAIS E REPRODUTIVOS DAS MULHERES: Expressões das políticas públicas no município de Fortaleza FORTALEZA – CEARÁ 2013 2 SARAH DAYANNA LACERDA MARTINS LIMA DIREITOS SEXUAIS E REPRODUTIVOS DAS MULHERES: Expressões das políticas públicas no município de Fortaleza Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado Acadêmico em Políticas Públicas e Sociedade do Centro de Ciências Sociais Aplicadas da Universidade Estadual do Ceará, como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Políticas Públicas. Orientadora: Profª. Drª. Kadma Marques Rodrigues. FORTALEZA – CEARÁ 2013 3 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação Universidade Estadual do Ceará Biblioteca Central Prof. Antônio Martins Filho Bibliotecário (a) Leila Cavalcante Sátiro – CRB-3 / 544 L732d Lima, Sarah Dayanna Lacerda Martins. Direitos sexuais e reprodutivos das mulheres: expressões das políticas públicas do município de Fortaleza / Sarah Dayanna Lacerda Martins Lima . — 2013. CD-ROM 145f. : il. (algumas color.) ; 4 ¾ pol. “CD-ROM contendo o arquivo no formato PDF do trabalho acadêmico, acondicionado em caixa de DVD Slin (19 x 14 cm x 7 mm)”. Dissertação (mestrado) – Universidade Estadual do Ceará, Centro de Estudos Sociais Aplicados, Mestrado Acadêmico em Políticas Públicas e Socedade, Fortaleza, 2013. Área de Concentração: Políticas Públicas e Sociedade. Orientação: Profª. Drª. Kadma Marques Rodrigues. 1. Direitos sexuais. 2. Direitos reprodutivos. 3. Políticas públicas. 4. Cultura. 5. Religião. I. Título. CDD: 361.61 4 5 RESUMO A temática dos direitos sexuais e reprodutivos apresenta complexidade em seu conteúdo e um vasto contexto histórico a ser explorado. A problematização sociológica de tais direitos, assumida como objetivo desta pesquisa, conforma um domínio de estudos que apenas recentemente vem sendo desenvolvido. Por meio de estudos, sabe-se que os maiores obstáculos, no sentido de combater agressões contra os direitos sexuais e reprodutivos da mulher, apresentam-se na forma de aspectos culturais. No caso desta pesquisa, estes consistem, sobretudo, em preceitos religiosos difundidos pela Igreja Católica no cerne da população brasileira, os quais influenciam na elaboração e na implantação de políticas públicas voltadas para as mulheres. A presente pesquisa tem por objeto analisar a trajetória da construção de políticas públicas para mulheres no Brasil, estas referentes aos direitos sexuais e reprodutivos, tomando como base as políticas implantadas na cidade de Fortaleza, averiguando a influência de valores culturais, sobretudo religiosos, sobre as mesmas. A hipótese que guia o desenvolvimento desta pesquisa é a de que os valores culturais, sobretudo religiosos, catalisam a tensão que se estabelece modernamente entre as esferas pública e privada, influenciando significativamente o processo de conformação do campo controverso dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres. Para a efetivação deste estudo, trabalhei com a perspectiva da pesquisa social, tomando como base as políticas implantadas na cidade de Fortaleza, analisadas a partir de revisão bibliográfica, mediante publicações impressas e eletrônicas de livros, revistas e artigos científicos, bem como, por meio de dados oficiais fornecidos pela Coordenadoria Especial de Políticas para Mulheres da Prefeitura de Fortaleza. Nas Conferências de Políticas para Mulheres de 2011, como delegada, em Fortaleza, realizei a observação participante, fazendo uso do diário de campo, com o objetivo de relatar, e posteriormente resgatar, as experiências vivenciadas e acumuladas durante o processo de inserção nas Conferências. Paralelamente ao uso dessas ferramentas, realizei entrevistas com sujeitos que elegi como informantes privilegiados, por possibilitarem um maior o conhecimento do universo estudado. A partir dessa pesquisa, foi possível concluir que, uma vez que as políticas públicas são elaboradas e implantadas por representantes de segmentos sociais diversos, fatores culturais – notadamente religiosos – exercem influência nesse processo, tornando inviável a apreensão deste fenômeno a não ser por uma abordagem capaz de convergir perspectivas de diferentes disciplinas. Palavras-chave: Políticas Públicas. Direitos sexuais. Direitos reprodutivos. Cultura. Religião. 6 ABSTRACT The theme of sexual and reproductive rights presents complexity in content and a broad historical context to be explored. The sociological problematization of such rights, as assumed objective of this research, forms a field of study that has been developed only recently. Through studies, it is known that the greatest obstacles to combat attacks on sexual and reproductive rights of women present themselves as cultural aspects. In this research, these consist mainly on religious precepts disseminated by the Catholic Church at the heart of the Brazilian population, which influence the formulation and implementation of public policies for women. This study's purpose is to analyze the trajectory of the development of public policies for women in Brazil, those relating to sexual and reproductive rights, based on the policies implemented in the city of Fortaleza, verifying the influence of cultural values, particularly religious. The hypothesis that guides the development of this research is that cultural values, especially religious, catalyze the tension that is modernly established between the public and private spheres, significantly influencing the process of shaping the controversial field of sexual and reproductive rights of women. For the realization of this study, I worked with the prospect of social research, based on policies implemented in the city of Fortaleza, analyzed from literature review, through print and electronic publications of books, magazines and papers, as well as through official data provided by the Special Coordination for Women's Policies of the City of Fortaleza. In Conference on Policies for Women 2011 as delegated in Fortaleza, I performed participant observation, making use of a field journal, in order to report, and subsequently redeemed, and the experiences accumulated during the insertion process in the Conferences. Parallel to the use of these tools, I conducted interviews with subjects that I have chosen as privileged informants, because they allow for a greater knowledge of the universe studied. From this research, it was concluded that, since public policies are designed and implemented by representatives of various social groups, cultural factors - especially religious – exercise an influence that process, impeding the apprehension of this phenomenon except for an approach capable of converging perspectives of different disciplines. Keywords: Public Policies. Sexual rights. Reproductive rights. Culture. Religion. 7 SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO..........................................................................................8 2 SOBRE REFERÊNCIAS E CAMINHOS ADOTADOS AO LONGO DA PESQUISA........................................................................................................14 3 DIREITOS SEXUAIS E REPRODUTIVOS – uma abordagem a partir dos direitos humanos......................................................................................17 3.1. DIREITOS SEXUAIS E REPRODUTIVOS DAS MULHERES: um percurso histórico tortuoso.................................................................................17 3.2. OS DIREITOS SEXUAIS E REPRODUTIVOS NO BRASIL............27 3.2.1. Dos instrumentos normativos........................................................29 4 OS DIREITOS SEXUAIS E REPRODUTIVOS DAS MULHERES NA PERSPECTIVA DO CORPO E DO GÊNERO...................................................33 4.1. OS DIREITOS SEXUAIS E REPRODUTIVOS DAS MULHERES NA ATUALIDADE: Expectativas e tensões.............................................................44 5 CULTURA E RELIGIÃO: Impasses na efetivação dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres............................................................54 5.1. CULTURA..................................................................................57 5.2. UMA BREVE ANÁLISE SOCIOLÓGICA DA RELIGIÃO............61 5.3. A IGREJA CATÓLICA E OS DIREITOS SEXUAIS E REPRODUTIVOS DAS MULHERES.................................................................69 6 A ELABORAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS PARA MULHERES NO BRASIL..............................................................................................................79 6.1. AS POLÍTICAS PÚBLICAS PARA MULHERES E O MOVIMENTO FEMINISTA NO BRASIL............................................................81 6.2. A COORDENADORIA ESPECIAL DE POLÍTICAS PARA MULHERES DE FORTALEZA: direitos sexuais e reprodutivos, gênero e democracia........................................................................................................85 6.3. O HOSPITAL DA MULHER DE FORTALEZA............................91 6.4. AS CONFERÊNCIAS DE POLÍTICAS PARA MULHERES NO ESTADO DO CEARÁ........................................................................................94 7 CONSIDERAÇÕES FINAIS..................................................................101 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.....................................................110 ANEXOS..............................................................................................118 8 1 INTRODUÇÃO Durante estágio realizado na ONG Grupo de Mujeres Argentinas, em Buenos Aires, no ano de 2008, entrei em contato com manifestações das lutas feministas em prol dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres naquele país. Durante esse período, encontrava-me por volta do oitavo semestre do curso de graduação em Direito. Quando tive acesso a documentos internacionais que versavam sobre tais direitos, passei a considerar esta como uma lacuna em meu curso de graduação, assim como percebi que tal área não estava explicitamente contemplada na Constituição Federal brasileira. Desde então, decidi aprofundar estudos acerca destes direitos, os quais vieram a constituir a temática de minha monografia1. Naquele trabalho de conclusão da graduação, fiz uma análise acerca da relação entre o multiculturalismo e os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres no âmbito do Direito Internacional. Posteriormente, minha inserção no Mestrado Acadêmico em Políticas Públicas e Sociedade proporcionou-me a oportunidade de prosseguir minhas pesquisas, agora feitas sob outro enfoque. Assim, a presente dissertação versa sobre a diversidade de formas manifestas e conflitos acerca dos direitos sexuais e reprodutivos nas políticas públicas voltadas para as mulheres, na cidade de Fortaleza. Dessa forma, pretendo desenvolver uma análise acerca do processo histórico de constituição da atual dinâmica social que condiciona a efetivação desses direitos em âmbito local, bem como dos elementos culturais que, ultrapassando este contexto, obstaculizam a criação de leis e de políticas públicas relacionadas a eles. A temática dos direitos sexuais e reprodutivos apresenta complexidade em seu conteúdo e um vasto contexto histórico a ser explorado. Tais direitos, assumidos como objeto desta pesquisa, conformam um domínio de estudos que apenas recentemente vem sendo desenvolvidos. Por este fato, 1 Minha monografia, com o título “O multiculturalismo e os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres na legislação internacional e brasileira”, foi concluída e apresentada no ano de 2009. 9 ainda são poucas as formulações conclusivas que versam sobre eles, tratandose de tema multidisciplinar e cercado de controvérsias. Por meio de pesquisas, sabe-se que os maiores obstáculos, no sentido de combater agressões contra os direitos sexuais e reprodutivos da mulher, apresentam-se na forma de aspectos culturais. No caso desta pesquisa, estes consistem, sobretudo, em preceitos religiosos difundidos pela Igreja Católica no cerne da população brasileira, os quais influenciam na elaboração e a implantação das políticas públicas voltadas para as mulheres. A sexualidade e a reprodução revelam-se como fenômenos que historicamente têm se prestado como meios de controle do corpo e de disseminação de categorias cognitivas e perspectivas cristalizadas como disposições. Neste contexto, a elaboração da noção de feminino e o papel social das mulheres têm sido alvo da forte influência de posicionamentos fundamentalistas e conservadores, advindos, na sua maior parte, de preceitos religiosos e de outros aspectos culturais, presentes no âmbito do senso comum. A perspectiva dos direitos das mulheres foi, por muito tempo, socialmente negligenciada. As suas reais contribuições para a cultura somente foram reconhecidas por meio de uma luta árdua, pois a violência, assédio e exploração sexual remontam a realidades que antecedem a instauração da Modernidade no mundo Ocidental. Por um longo período de tempo, a sexualidade feminina, bem como a masturbação infantil, foi considerada tão somente como tabu, sendo de forma recorrente alvo de repressões por parte da chamada era vitoriana. Aos poucos, tais concepções foram sofrendo revezes, convertendo-se em palco de lutas e, mais recentemente, vários documentos internacionais foram sendo elaborados com a finalidade de proporcionar garantias de proteção contra coações ao exercício dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres. De fato, tais formulações legais correspondem hoje a direitos humanos fundamentais que, estando relacionados à dimensão sexual e 10 reprodutiva, inspiram embates em torno da discriminação. Assim, no âmbito das sociedades ocidentais contemporâneas, as quais se pretendem regidas por um Estado de direito democrático, cada indivíduo aspira à igualdade e à libertação das mais diversas formas de discriminação, inclusive quanto ao exercício da sexualidade. Atualmente, diferentes movimentos em todo o mundo apregoam o ideal de que sem igualdade de direito e de fato não há liberdade, e sem a liberdade tampouco existirá a equidade. Os direitos de evitar gravidez, exploração, abuso e assédio sexual revelam-se, deste modo, como alguns dentre os enfoques que se acham elencados na categoria de direitos humanos fundamentais. Porém, levando-se em conta a cronologia dos direitos, é bastante recente a emergência dos direitos sexuais e reprodutivos como direitos humanos. Estas novas formulações do direito começaram a ganhar vulto a partir do século XX, quando tomou força a ideia de direito individual. Desde então, tais formulações foram se desenvolvendo, especialmente durante a década de 1980, até que, finalmente, foram incorporadas à lógica da área do Direito Internacional. A elaboração desses direitos em vários documentos internacionais advém das transformações sofridas pelo Direito Internacional Público após a Segunda Guerra Mundial. Além dos dispositivos internacionais, a Constituição Brasileira de 1988 fornece base sólida para o reconhecimento dos direitos sexuais e reprodutivos. No entanto, para que haja a concretização e efetividade desses dispositivos, tanto no âmbito nacional quanto no internacional, faz-se necessário, ainda, um amplo estudo sobre os pressupostos, a abrangência e as consequências da formulação de tais direitos, exigindo por isso compromisso teórico por parte dos operadores do Direito, mas também daqueles que atuam no âmbito da elaboração e gestão de políticas públicas. Apesar dos debates entre representantes parlamentares e de filiações religiosas, as mais diversas, é relativamente fácil apontar a necessidade da afirmação dos direitos sexuais e reprodutivos a partir de amplas manifestações sociais contra desigualdades de gênero, acerca do surgimento de novas formas de se exercer a sexualidade e do choque causado 11 pela epidemia de HIV/AIDS, por exemplo. Todavia, são muitos os desafios que se apresentam para o desenvolvimento e a apropriação desses como direitos fundamentais. Uma das barreiras que se impõe diante dessa problemática consiste em arraigadas práticas culturais que foram historicamente construídas, verificáveis e diferenciadas entre as comunidades dos diversos países do mundo. Dessa maneira, o desenvolvimento de investigações relativas ao tema em questão tem a finalidade de aprofundar, no universo acadêmico, o crescente interesse pela problematização deste fenômeno empírico. Este exige uma formulação teórica rigorosa que possibilite o aprofundamento do conhecimento neste campo e contribua para a elaboração de políticas públicas para esta área. Isso leva a efeito, por via de consequência, a compreensão de que a dificuldade que a mulher encontra, mesmo atualmente, em exercer seus direitos sexuais e reprodutivos provém de relações desiguais entre homens e mulheres, historicamente estruturadas a partir de fundamentos culturais. Por sua vez, a partir da configuração da Modernidade no mundo Ocidental, estes influenciaram e foram influenciados pela elaboração e sobreposição de uma diversidade de discursos, tais como o médico-científico, o político, o religioso e outros, os quais tinham como tônica comum seu caráter de controle repressivo. É preciso considerar ainda que, no ranking de estados brasileiros, o Ceará está em quarto lugar em registros de exploração sexual. A cidade de Fortaleza, que aparece no discurso da imprensa como ponto de turismo sexual, prostituição e tráfico de mulheres e crianças, ocupou, no ano de 2009, o segundo lugar entre 54 municípios brasileiros que mais receberam denúncias de exploração sexual contra crianças e adolescentes. A partir destes dados, o presente trabalho tem por objetivo analisar a trajetória da elaboração de políticas públicas para mulheres no Brasil. Neste sentido, a presente pesquisa tomará como campo empírico a implantação de políticas públicas para mulheres na cidade de Fortaleza, considerando especificamente as formulações relativas aos direitos sexuais e reprodutivos, mediante enfoque 12 que privilegie a convergência entre estas e a influência de valores culturais, sobretudo aqueles associados à religião católica. A partir da contribuição de Hannah Arendt (2007), a hipótese desse trabalho é de que, ao contrário da ideia dicotômica que estabelece uma separação irreconciliável entre o espaço privado e o espaço público, quando se trata de direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, o que se percebe nesta área é uma forte tensão que se estabelece na relação entre público e privado. Mais especificamente, a hipótese que guia o desenvolvimento desta pesquisa é a de que os valores culturais, sobretudo religiosos, catalisam esta tensão entre as esferas pública e privada, influenciando significativamente o processo de conformação do campo controverso dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres. Este processo provoca consequentemente efeitos de verdade tanto na elaboração de políticas públicas voltadas para a configuração de questões relativas à reprodução e sexualidade feminina, bem como na apropriação e elaboração das necessidades expressas como próprias de tal segmento. Com a finalidade de concretizar o objetivo proposto nesta pesquisa, o terceiro capítulo deste trabalho introduz uma análise de conceitos fundamentais à compreensão do fenômeno abordado. Nesta perspectiva, pretendo, ainda neste momento, subsidiar tal compreensão por meio de um breve histórico dos direitos sexuais e reprodutivos, capaz de informar esta pesquisa acerca do processo de emergência desta área no campo jurídico, bem como das transformações sofridas por esses direitos ao longo do tempo. É, ainda, apresentada a formulação dos instrumentos normativos referentes a estes direitos no âmbito específico do cenário brasileiro. Em seguida, no quarto capítulo, tratarei da problemática dos direitos sexuais e reprodutivos na perspectiva do “corpo” e das “relações de gênero”, fazendo uma análise sociológica sobre o exercício da sexualidade feminina, a qual viabilize senão a desconstrução daquelas categorias, ao menos a reintegração de sua compreensão a partir de um quadro categorial e analítico complexo. Para tanto, esta pesquisa tem como base reflexões desenvolvidas – mais ou menos diretamente sobre a temática ora abordada – por autores, tais como Michel Foucault, Richard Sennett, Pierre Bourdieu, dentre outros. Com 13 base nessa análise sociológica, são apresentadas, ainda neste capítulo, as tensões que conformam a temática dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres na atualidade. No quinto capítulo, a influência cultural e religiosa sobre a concepção de “sexualidade”, “gênero” e “corpo”, bem como sobre elaboração e implantação de políticas públicas para mulheres no Brasil, as quais versam sobre os direitos sexuais e reprodutivos, será analisada com base em entrevista realizada com um informante privilegiado nesta pesquisa, por sua dupla inserção: como autoridade acadêmica e autoridade da Igreja Católica de Fortaleza. Por fim, o sexto capítulo dará lugar a uma recuperação da trajetória de elaboração das políticas públicas para mulheres, considerando o contexto social brasileiro. A partir deste escopo será possível evidenciar relações entre o processo histórico mais amplo e o contexto aproximado que se esboça em configurações locais evidenciadas a partir da abordagem das Conferências de Políticas para Mulheres, realizadas no ano de 2011. Além disso, serão enumeradas as políticas públicas voltadas aos direitos sexuais e reprodutivos implantadas pela Coordenadoria Especial de Políticas para Mulheres na cidade de Fortaleza, com base em entrevistas realizadas com profissionais do governo municipal de Fortaleza e do Hospital da Mulher. 14 2 SOBRE REFERÊNCIAS E CAMINHOS ADOTADOS AO LONGO DA PESQUISA A dissertação terá por base uma perspectiva qualitativa, posto que a mesma “[...] trabalha com o universo de significados, motivos, aspirações, crenças, valores e atitudes, o que corresponde a um espaço mais profundo das relações, dos processos e dos fenômenos que não podem ser reduzidos à operacionalização de variáveis” (MINAYO, 1993, p. 21-22). Assim, esta pesquisa será dotada do cruzamento de elementos fornecidos pela observação participante e entrevistas realizadas com representantes de diversos segmentos de população que integram o campo de investigação escolhido. Tal opção metodológica deve-se ao fato de que esta parece apresentar maior sintonia com a busca de respostas para o problema de investigação tal como foi proposto. Frente a este, o presente estudo pretende evidenciar a polifonia de vozes expressas sobre o tema, proclamadas pelos próprios sujeitos, mediante a abordagem de aspectos qualitativos capazes de revelar, a partir de discursos e práticas convergentes e divergentes, as apropriações acerca do tema realizadas e expressas por agentes dos campos político, jurídico e religioso. Para a efetivação deste estudo, trabalhei com a pesquisa social, na medida em que esta não se limita a um monismo metodológico, utilizando diversas técnicas para a coleta de dados sempre que a utilização destas apresentar-se como instrumentos complementares. Pretendi, assim, seguir um rigor sem rigidez, a fim de que a apreensão e a produção do objeto de pesquisa proposto sejam analisadas em profundidade. Ainda, de acordo com Minayo (1993), as ciências sociais possuem consciência histórica, entendendo o objeto de pesquisa como agente de transformação da sociedade. Deste modo, a pesquisa analisa também, cruzando dados empíricos e teóricos, a trajetória da construção de políticas públicas para mulheres no Brasil. Para tanto, tomei como base as políticas implantadas na cidade de Fortaleza, analisadas a partir de pesquisa bibliográfica, mediante publicações 15 impressas e eletrônicas de livros, revistas e artigos científicos, bem como, por meio de dados oficiais fornecidos pela Coordenadoria Especial de Políticas para Mulheres da Prefeitura de Fortaleza que abordam direta ou indiretamente a temática em análise. Tendo participado das Conferências de Políticas para Mulheres de 2011, como delegada, em Fortaleza, realizei nestas instâncias a observação participante, a qual favoreceu a construção do espaço de aproximação com o universo empírico desta pesquisa, ao favorecer uma relação de conhecimento direto entre sujeito-objeto. Ao longo desta incursão, fiz uso do diário de campo, tendo como objetivo relatar, e posteriormente resgatar, as experiências vivenciadas e acumuladas durante o processo de inserção nas Conferências. Minayo (1993, p. 60) afirma que: A importância dessa técnica reside de podermos captar uma variedade de situações ou fenômenos que não são obtidos por meio de perguntas, uma vez que, observados diretamente na própria realidade, (os agentes) transmitem o que há de mais imponderável e evasivo na vida real. Paralelamente ao uso dessas ferramentas, realizei entrevistas com sujeitos que elegi como informantes privilegiados para o conhecimento do universo estudado. A entrevista tornou-se instrumento privilegiado para a pesquisa, na medida em que possibilitou revelar, por meio do discurso, as concepções que os próprios agentes identificam como aquelas que norteiam as ações do grupo. No registro dos depoimentos fiz uso da entrevista semiestruturada, constituída por um roteiro flexível de questões que norteou a apreensão do objeto desta investigação. A primeira entrevista foi realizada no mês de novembro de 2012, com a coordenadora da Coordenadoria Especial de Políticas para Mulheres de Fortaleza, Raquel Viana. A principal finalidade dessa entrevista era a de me inteirar das atividades realizadas pela Coordenadoria e sobre as políticas públicas implantadas na cidade de Fortaleza, especificamente voltadas aos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres. Embora eu desejasse participar do cotidiano da Coordenadoria e ali também fazer uso do diário de campo, a existência de um número significativo de estagiários impossibilitou a minha 16 presença. No entanto, a entrevista com a coordenadora foi suficiente para atingir o meu propósito científico. A segunda entrevista foi realizada no mês de janeiro de 2013, com a diretora do Hospital da Mulher de Fortaleza, a Dr.ª Zenilda Bruno. Pelo fato de o Hospital da Mulher ter sido uma política pública cuja concretização foi muito aguardada pela população fortalezense, essa entrevista prestou uma significativa contribuição à pesquisa. O meu objetivo era coletar o maior número possível de informações sobre o hospital, referentes à elaboração de seu projeto, ao processo de construção do prédio e ao funcionamento do hospital já inaugurado. A última entrevista, também realizada no mês de janeiro de 2013, contou com a participação do Monsenhor Manfredo Ramos, padre e professor da Faculdade Católica de Fortaleza. O propósito desta entrevista foi o de analisar o ponto de vista de um religioso acerca da sexualidade feminina e dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, bem como convergências entre o discurso católico e aquele materializado nas políticas públicas. Vale ressaltar que as informações fornecidas pelo Monsenhor acerca da teologia cristã são fruto de sua formação acadêmica e de sua experiência no sacerdócio, não consistindo em declarações oficiais da Igreja Católica, visto que ele não é um representante jurídico da mesma. Nesta pesquisa, o catolicismo apostólico romano foi escolhido, em detrimento de outras religiões, por tratar-se ainda numericamente do culto religioso mais representativo no Brasil, estando ativo no país desde a época colonial e exercendo grande influência na configuração de aspectos políticos, sociais e culturais da realidade brasileira. O Ceará é o segundo estado no Brasil com maior porcentagem de pessoas que se autodesignam como católicas (81%), ficando atrás somente do Piauí (90%). 17 3 DIREITOS SEXUAIS E REPRODUTIVOS – uma abordagem a partir dos direitos humanos A proposta deste capítulo é a de fornecer um breve histórico dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, capaz de demonstrar as transformações jurídicas ocorridas a partir de 1948, com o surgimento da Declaração Universal dos Direitos Humanos, as quais deram lugar a atual conceituação desses direitos em âmbito internacional. Além disso, serão evidenciados os instrumentos normativos responsáveis pela garantia dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres diante da realidade políticocultural brasileira, onde a efetivação dos mesmos encontra diversas dificuldades. 3.1. DIREITOS SEXUAIS E REPRODUTIVOS DAS MULHERES: um percurso histórico tortuoso As primeiras reivindicações explícitas de prerrogativas relativas às mulheres no campo da sexualidade podem ser datadas, no Ocidente, a partir do século XVIII. No entanto, até a década de 1980, no Brasil, assim como na maioria dos países ocidentais, as questões relacionadas à reprodução achavam-se vinculadas tão somente à noção de saúde integral da mulher. (CORRÊA E ÁVILA, 2003) Dessa forma, percebe-se que o entendimento do conceito de direitos sexuais e reprodutivos como direitos humanos é uma formulação marcadamente contemporânea. As principais características dos direitos humanos são a universalidade e a indivisibilidade. A universalidade consiste em dizer que todo ser humano é titular desses direitos, e a especificidade de critérios políticos, sociais e culturais não pode ser utilizada como pretexto para suprimi-los ou ofendê-los. Já a indivisibilidade sugere a efetivação de todos os direitos, não podendo existir direitos humanos que caibam a determinadas pessoas e a outras não. 18 A proteção de tais direitos tem seu conteúdo disciplinado pelo Direito Internacional, mas esta ainda é uma prática relativamente recente. Nasceu no século XVIII, juntamente com as promulgações da Declaração Americana de Virgínia, de 1776, e da Declaração Francesa, de 1789. De fato, o século XVIII foi palco de grandes movimentos revolucionários. A ascensão da burguesia provocou a derrocada dos senhores feudais do poder, impondo à sociedade europeia uma nova ordem social. Na época, com a burguesia no poder, foi criada a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. Porém, este documento não atendia uma das principais características dos direitos humanos, conforme já foi dito, aquela relativa à universalidade. Isto se deve ao fato de tal declaração referir-se somente ao homem, excluindo as pessoas do sexo feminino, os escravos e os homens livres de cor negra. Os ideais revolucionários de liberdade, igualdade e solidariedade inspiraram expectativas de inclusão das mulheres no âmbito da cidadania burguesa. É preciso lembrar a iniciativa de Olympe de Gouges, revolucionária francesa que, com o apoio de milhares de mulheres, decidiu elaborar a Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã, sendo, por isso, condenada à guilhotina no ano de 1793. O preâmbulo da Declaração afirmava: Mães, filhas, irmãs mulheres representantes da nação reivindicam constituir-se em uma assembleia nacional. Considerando que a ignorância, o menosprezo e a ofensa aos direitos da mulher são as únicas causas das desgraças públicas e da corrupção no governo, resolver expor em uma declaração solene, os direitos naturais, inalienáveis e sagrados da mulher. Assim, que esta declaração possa lembrar sempre, a todos os membros do corpo social seus direitos e seus deveres; que para gozar da confiança, ao ser comparado com o fim de toda e qualquer instituição política, os atos de poder de homens e de mulheres devem ser inteiramente respeitados; e que, para serem fundamentadas, doravante, em princípios simples e incontestáveis, as reivindicações das cidadãs devem sempre respeitar a constituição, os bons costumes e o bem estar geral. (GOUGES, 1791) Esse não foi o único documento feminista produzido durante a Revolução, mas acabou tornando-se o mais representativo, tanto para feministas como para historiadores, visto que ele toma ao pé da letra o caráter universal da Revolução e chama a atenção para as diferenças que as mulheres 19 incorporam, revelando, assim, os limites dessa pretensa universalidade. (SCOTT, 2002, p. 50-51) A reivindicação de direitos como forma de reação aos séculos de opressão e discriminação da mulher ofereceu as bases para a formulação do movimento feminista e para a conquista de vários direitos. Tal fenômeno converge com o pensamento de Norberto Bobbio (1992) de que não existem direitos fundamentais por natureza e que atribuir um fundamento absoluto aos direitos humanos é uma ideia infundada, em muitos casos utilizada como pretexto para defender posições conservadoras. Para esse autor, “o que parece fundamental numa época histórica e numa determinada civilização não é fundamental em outras épocas e em outras culturas.” (BOBBIO, 1992, p. 19) Por esse motivo, apesar de todos os movimentos sociais e políticos ocorridos no mundo moderno, foi apenas no período pós-guerra que a ideia de direitos humanos, em seu caráter universal e indivisível, realmente ganhou força. Com o fim da Segunda Guerra Mundial, em 10 de dezembro de 1948, a Declaração Universal dos Direitos Humanos foi aprovada pela Assembleia Geral das Nações Unidas. Tal declaração ostenta os direitos básicos de qualquer ser humano, de maneira a garantir seu bem-estar e sua dignidade, respeitando os princípios da universalidade e da indivisibilidade, conforme estabelece em seu artigo 2º: Artigo II - Toda pessoa tem capacidade para gozar os direitos e as liberdades estabelecidos nesta Declaração, sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição. Tanto no plano nacional quanto naquele internacional, os movimentos sociais de mulheres têm exercido papel primordial em prol do alcance de um status que verdadeiramente considere a mulher como portadora de direitos. As frentes de luta do movimento feminista variam segundo o momento histórico e as características socioeconômicas e políticas do país no qual se desenvolvem. Apesar disso, segundo Alves e Pitanguy (2007), alguns temas têm sido continuamente abordados, dentre eles, a sexualidade. Para as 20 feministas, “a contenção exercida sobre a sexualidade da mulher é a primeira forma de limitação de sua potencialidade.” (ALVES e PITANGUY, 2007, p. 59) A Declaração Universal dos Direitos Humanos, como afirmado há pouco, expressa a concepção dos direitos humanos na contemporaneidade, servindo de resposta à violência vivenciada durante a Segunda Guerra Mundial. Ela traz, ainda, mesmo que de maneira não tão explícita em sua redação, a base para a posterior formulação dos direitos sexuais e reprodutivos. De fato, ela afirma a igualdade entre homem e mulher durante o casamento, assim como na altura da sua dissolução e, também, a liberdade para contrair, ou não, matrimônio, como se pode observar a partir de seu art. 16: 1.Os homens e mulheres de maior idade, sem qualquer restrição de raça, nacionalidade ou religião, têm o direito de contrair matrimônio e fundar uma família. Gozam de iguais direitos em relação ao casamento, sua duração e sua dissolução. 2.O casamento não será válido senão com o livre e pleno consentimento dos nubentes. A Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW) também configura um documento internacional que versa de forma ainda mais enfática sobre os direitos humanos das mulheres. Ela foi adotada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 1979 e aponta a tradição e a cultura como forças de influência sobre a configuração das relações familiares e de gênero. O surgimento dos direitos sexuais e reprodutivos é fruto da contribuição dos movimentos feministas mundiais, os quais iniciaram as discussões acerca dos padrões socioculturais vigentes, relacionados à vida sexual e à reprodução humana (BRAUNER, 2003). A utilização do termo “direitos reprodutivos” por parte das feministas data do ano de 1984, durante o I Encontro Internacional de Saúde da Mulher, realizado em Amsterdã. No entanto, apenas na década de 1990, esses direitos foram introduzidos no âmbito do Direito Internacional, podendo ser chamados, como disse Alves (2004), de “filho caçula dos Direitos Humanos”. 21 De acordo com Alves (2004, p. 2), foi a Conferência Mundial de Direitos Humanos de Viena, de 1993, ocorrida após o fim da Guerra Fria, que “semeou o campo para o nascimento dos direitos reprodutivos”. Foi nesta Conferência que, pela primeira vez, os direitos de mulheres e meninas foram considerados como parte integrante, indivisível e inalienável dos direitos humanos, como consta no art. 18 da Declaração e Programa de Ação de Viena: Art. 18. Os direitos humanos das mulheres e das meninas são inalienáveis e constituem parte integral e indivisível dos direitos humanos universais. A plena participação das mulheres, em condições de igualdade, na vida política, civil, econômica, social e cultural nos níveis nacional, regional e internacional e a erradicação de todas as formas de discriminação, com base no sexo, são objetivos prioritários na comunidade internacional. Até o ano de 1993, questões relativas à sexualidade encontravam-se ausentes do discurso internacional. Nenhum instrumento que trata de direitos humanos, anterior a esse período, apresenta a “palavra proibida” que começa com “S”. Podemos então, pensar essa situação como resultante da tensão permanente que caracteriza historicamente a ligação entre as esferas pública e privada. Segundo Hannah Arendt (2007), a esfera pública é o mundo comum, no qual existem coisas que, ao mesmo tempo, separam e estabelecem relações entre os indivíduos. Tudo que aparece em público pode ser visto e ouvido, constituindo a realidade. Uma vez que a percepção da realidade depende da aparência, o público só admite aquilo que é relevante por apresentar repercussões para a coletividade, transformando o irrelevante em assunto privado. (...) há muitas coisas que não podem suportar a luz implacável e crua da constante presença de outros no mundo público; neste só é tolerado o que é tido como relevante, digno de ser visto ou ouvido, de sorte que o irrelevante se torna automaticamente assunto privado. (ARENDT, 2007, p. 61) Conforme o pensamento de Arendt (2007), só emerge das trevas da esfera privada, aquilo que realmente for digno de ser trazido à luz da esfera pública. Porém, analisando os documentos sobre direitos humanos, podemos constatar que, desde a Declaração Universal de 1948, deixa de existir, em 22 termos de efeitos políticos do campo do Direito, uma divisão nítida entre o público e o privado. A partir de então, se tem tratado de questões de âmbito pessoal e particular, como: casamento, família, crenças e religião, educação dos filhos, respeito à privacidade, dentre outras. Neste conjunto, apenas a sexualidade continuou ausente. Com base no que foi apresentado até o momento, é possível entender a sexualidade como algo irrelevante para a esfera pública, a ponto de não ser explicitamente mencionada nos documentos internacionais. Porém, segundo Arendt (2007), o fato de um determinado assunto não ser considerado relevante na esfera pública não significa que o mesmo não tenha grande importância para muitos particulares. E isso não o torna necessariamente capaz de irromper do privado ao público, o que deixaria a sexualidade num permanente estado de obscuridade, sendo tratada de maneira implícita, relacionada apenas à reprodução e ao casamento heterossexual. Graças aos esforços de um grupo de mulheres defensoras dos direitos humanos, foi elaborada a Declaração e o Plano de Ação de Viena de 1993, por meio dos quais se tratou da sexualidade feminina, no sentido de recorrer aos Estados contra “a violência e todas as formas de abuso e exploração sexual, incluindo o preconceito cultural e o tráfico internacional de pessoas.” Porque, como afirma Arendt (2007), o homem sempre busca a universalidade do público, caso contrário se encontraria perdido, sem conseguir alcançar sua realidade. Assim, para a autora, é para fugir de uma existência incerta e obscura que o homem transforma, desprivatiza e desindividualiza as maiores forças da vida íntima. A Declaração de Viena constitui um marco, não só pelo fato de reconhecer a violência sexual como uma violação aos direitos humanos, mas também porque introduziu o termo “sexual” na linguagem dos direitos humanos. Embora isso tenha sido uma mudança considerável, a sexualidade feminina ainda foi tratada, neste momento, como algo negativo, que trazia consigo a violência e o insulto, ou que é santificado e escondido pelo casamento heterossexual e a gravidez. Dessa forma, liberdade sexual ou 23 homossexualidade em nenhum momento foram mencionadas neste documento. No âmbito da história do Direito, parece mais fácil tratar da liberdade sexual de forma negativa do que em um sentido positivo e emancipatório. Chega-se a um consenso sobre o direito que a mulher tem de não ser objeto de abuso sexual, exploração, estupro, mutilação genital ou tráfico, mas não sobre seu direito de usufruir livremente de seu próprio corpo. Nesse sentido, o que foi deixado na obscuridade da esfera privada não foi o sexo de uma forma genérica, mas o sexo enquanto prazer. Uma vez que o prazer feminino foi, por muito tempo, alvo de repressões, o desinteresse por sexo tornou-se uma característica atribuída às mulheres respeitáveis da sociedade. Daí, na cultura ocidental, a dificuldade em se elaborar documentos que abordem temáticas como homossexualidade feminina, aborto, anticoncepção, dentre outros temas tabus, mesmo que estes façam parte de nossa realidade. As campanhas em prol dos direitos das mulheres recebem mais atenção quando enfatizam os horrores das mutilações genitais nos países do Oriente Médio, os estupros em países asiáticos, o tráfico de mulheres, a esterilização em massa ou abortos forçados. É claro que são questões que a mídia internacional coloca atualmente em evidência, muitas vezes exigindo dos Estados providências para que se dê um fim a tais crimes contra mulheres. Porém, é importante considerar que essas campanhas capitalizam uma imagem das mulheres como vítimas. Rosalind Pollack Petchesky (1999, p. 26) afirma que “essa tendência vitimizadora é preocupante na medida em que burla, ou até espelha, a imagem fundamentalista patriarcal das mulheres como seres fracos e vulneráveis.” Segundo Regina Navarro Lins e Flávio Braga (2005, p. 195), “a cultura judaico-cristã considera o sofrimento uma virtude e o prazer, um pecado.” Sendo assim, é mais aceitável colocar a mulher numa posição de vítima – pois o sofrimento santifica – e a ela dar o direito de “ser deixada em 24 paz”. Essa imagem do prazer como pecado é a razão do sentimento de culpa e vergonha em relação ao sexo, que ainda resiste em nossa sociedade. Frente ao panorama traçado até o momento, esta dissertação assume como perspectiva enfatizar os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres por meio de uma visão alternativa e positiva, capaz de acarretar transformações estruturais, sociais e culturais. Este foi igualmente a perspectiva que parece ter fundamentado a realização da Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento e da IV Conferência Mundial da Mulher. O estabelecimento da atual conceituação de direitos reprodutivos foi fruto da Conferência Internacional de População e Desenvolvimento (CIPD), realizada entre os dias 5 e 13 de setembro de 1994, na cidade do Cairo. Por isso, essa conferência tem significado tão importante no contexto da luta das mulheres por seus direitos no campo reprodutivo. (VENTURA, 2005) Na redação do Capítulo VII do Relatório da CIPD, o qual versa sobre direitos de reprodução e saúde reprodutiva, é fornecida a seguinte definição de direitos reprodutivos: § 7.3. Esses direitos se baseiam no reconhecido direito básico de todo casal e de todo indivíduo de decidir livre e responsavelmente sobre o número, o espaçamento e a oportunidade de seus filhos e de ter a informação e os meios de assim o fazer, e o direito de gozar do mais alto padrão de saúde sexual e de reprodução. Inclui também seu direito de tomar decisões sobre a reprodução, livre de discriminação, coerção ou violência, conforme expresso em documentos sobre direitos humanos. A CIPD inscreveu-se no amplo conjunto de iniciativas sobre o amparo das Nações Unidas no campo social, produzindo, inclusive, celeumas, traduzidas, de maneira geral, em acaloradas polêmicas em quase todos os países, envolvendo necessariamente conceitos e valores de foro íntimo e conteúdo ético, como a família, a procriação e os direitos individuais. A Conferência contou com delegações de 182 países, mais de duas ONGs e, ao todo, congregou cerca de vinte mil pessoas de diversas nacionalidades – o dobro da Conferência de Viena sobre Direitos Humanos de 1993. 25 No contexto dos direitos reprodutivos, a Conferência do Cairo – como ficou conhecida a CIPD – foi um divisor de águas. Desta Conferência decorreu o Programa de Ação do Cairo, o qual conseguiu um nível inédito de convergência, inclusive por parte da Santa Sé, por meio de suas contribuições substantivas e inovadoras, como afirma Raupp Rios: Em 1994, a Conferência Mundial sobre População e Desenvolvimento (Cairo) estabeleceu um programa de ação que afirmou os direitos reprodutivos como categoria de direitos humanos já reconhecidos em tratados internacionais, incluindo o direito à escolha livre e responsável do número de filhos e de seu espaçamento, dispondo da informação, educação e meios necessários para tanto. Importante para os fins deste estudo foi a declaração de que a saúde reprodutiva implica a capacidade de desfrutar de uma vida sexual satisfatória e sem riscos. (RIOS, 2007, p.17) Segundo Petchesky (1999), durante a Conferência do Cairo, muitos representantes de países islâmicos e católicos não disfarçaram sua aversão à presença da palavra “sexo” no Plano de Ação. Apesar disso, as referências ao “sexo”, “sexualidade” e “saúde sexual” apareceram inúmeras vezes no documento, que foi o primeiro instrumento legal internacional a mencionar tais termos. O alto nível de aprovação do Plano de Ação do Cairo acabou servindo de referência para outras conferências programadas pelas Nações Unidas, como a IV Conferência Mundial sobre a Mulher, realizada em setembro de 1995, em Pequim. Na Conferência de Pequim de 1995, o documento do Cairo foi reiterado, enfatizando-se questões relacionadas à sexualidade feminina e trazendo a público a noção dos direitos sexuais. (ALVES, 2004; VENTURA, 2005) Foi reforçada a necessidade de proteção dos direitos vinculados à reprodução humana, quer sejam os direitos sexuais, o direito à saúde, à igualdade e a não discriminação, dentre outros. A Plataforma de Pequim (documento originário desta conferência), em seu capítulo intitulado “Mulher e Saúde”, deu ênfase à saúde sexual, afirmando o direito ao livre exercício da sexualidade, como fica claro em sua redação: § 96. Os direitos humanos das mulheres incluem os seus direitos a ter controle sobre as questões relativas à sua sexualidade, inclusive 26 sua saúde sexual e reprodutiva, e a decidir livremente a respeito dessas questões, livres de coerção, discriminação e violência. A igualdade entre mulheres e homens no tocante às relações sexuais e à reprodução, inclusive o pleno respeito à integridade da pessoa humana, exige o respeito mútuo, o consentimento e a responsabilidade comum pelo comportamento sexual e suas consequências. (Grifo da autora) Com a Plataforma de Pequim, as mulheres passaram a ser consideradas, além de seres reprodutivos, seres sexuais. No entanto, alguns avanços foram barrados durante a Conferência. Conforme afirma Petchesky (1999), a formulação original do parágrafo 96, citado acima, não trazia “direitos humanos das mulheres”, mas sim “direitos sexuais das mulheres” em seu rascunho. Essa redação não foi aprovada pelos grupos populacionais e governamentais conservadores presentes na Conferência, assim como as expressões “diversas formas de família” e “gênero”. Apesar das dificuldades encontradas para que certos valores feministas fossem explicitamente redigidos, após as Conferências do Cairo e de Pequim, os direitos sexuais e reprodutivos foram definitivamente legitimados como direitos humanos no âmbito das Nações Unidas, podendo ser compreendidos como direitos que envolvem essencialmente as noções de sexualidade e reprodução, não se tratando meramente do funcionamento do aparelho genital e do processo reprodutivo, mas do reconhecimento de uma vida sexual gratificante como um direito de cada cidadão, e não como uma mera necessidade biológica. Dessa forma, o indivíduo é livre para desenvolver determinada realização potencial de seu corpo, de viver satisfatoriamente sua sexualidade e de organizar sua vida reprodutiva. (BRAUNER, 2003) Porém, deve-se considerar que existe ainda uma grande distância entre a formulação conceitual de um conjunto de direitos – que consiste no que foi tratado, até o momento, neste capítulo – e a efetiva aplicação e incorporação dessas ideias em políticas, programas, ações e normas jurídicas que visem à garantia e proteção desses direitos no dia-a-dia dos cidadãos, e neste caso, particularmente, das mulheres. De fato, o tortuoso percurso realizado pelos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres coloca-os, hoje, frente a um desafio. Como afirma Bobbio (1992), o problema do nosso tempo, 27 com relação aos direitos humanos, não é mais o de fundamentá-los, mas sim o de protegê-los. 3.2. OS DIREITOS SEXUAIS E REPRODUTIVOS NO BRASIL Historicamente, no que tange ao campo jurídico, os direitos sexuais e reprodutivos têm recebido tratamento um tanto esparso no âmbito nacional, sendo inseridos no contexto mais amplo da saúde pública. É correto afirmar que o aborto no Brasil, assim como em diversos países onde sua prática é considerada ilegal, constitui um grave problema de saúde pública. Isso se deve ao fato de que a legislação vigente, a qual criminaliza o aborto, não tem sido capaz de evitar sua recorrência. O aborto, crime tipificado nos artigos 124, 125, 126, 127 e 128 do Código Penal, configura a quarta causa de morte materna no País.2 A informação, fornecida à população brasileira, sobre métodos contraceptivos seguros e reversíveis, e sobre a esterilização para casais que querem encerrar suas trajetórias reprodutivas é ainda muito precária. Tal situação constitui um fator determinante da elevada incidência de gestações não programadas, sobretudo em adolescentes, seguidas de aborto. Sem falar que os gastos com o atendimento de mulheres em situação de abortamento oneram o sistema de saúde. De acordo com os dados fornecidos por Teles (2007), no Brasil, o parto representa a principal causa de internação de meninas no sistema público de saúde. Além disso, 6% dos óbitos de mulheres entre 10 e 49 anos estão relacionados à gravidez e ao parto. A utilização de métodos anticoncepcionais pelos jovens brasileiros é muito reduzida, contando com 2 De acordo com o Código Penal Brasileiro, estão previstas as situações onde o aborto não constitui crime: se não há outro meio de salvar a vida da gestante (art. 128, I) e se a gravidez resulta de estupro e o aborto é consentido pela gestante, ou, quando incapaz, por seu representante legal (art. 128, II). Recentemente, em abril do ano de 2012, o Supremo Tribunal Federal – STF concluiu o julgamento favorável à Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 54, protocolada em 2004 pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde (CNTS), confirmando posição a favor da interrupção da gestação de feto anencefálico. 28 apenas 14% das meninas entre 15 e 19 anos que usam algum tipo de método contraceptivo. No que tange às mulheres, enquanto que tais métodos são precariamente utilizados, estima-se que o Brasil detenha os maiores índices de esterilização do mundo. (BRAUNER, 2003; TELES, 2007) A esterilização cirúrgica feminina, método que consiste na ligadura das trompas uterinas da mulher, é utilizada de forma abusiva pelas jovens brasileiras, uma vez que esta deveria ser seguida de uma série de procedimentos para desencorajar tal prática, tal como preveem os artigos 10 a 18 da Lei nº 9262/96. A disseminação deste método em mulheres muito jovens traz consequências negativas, de modo recorrente, para a trajetória pessoal, a vida afetiva, a dimensão psicológica, mas também se manifestam no campo dos direitos humanos, da economia, da política, da cidadania, dentre vários outros campos. Outro tipo de descompasso em relação a conquistas obtidas no campo dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres no Brasil consiste na curetagem sem anestesia associada a um quadro clínico de aborto, tal como abordada por Teles (2007): Quando chegam aos hospitais em processo de aborto, são tratadas com descaso, com preconceito; não recebem nenhuma explicação sobre seu estado de saúde/doença; não recebem orientação sobre meios contraceptivos para lhes garantir sexo seguro e o planejamento do número de filhos. (TELES, 2007, p. 80) Como se pode observar, a curetagem sem anestesia converte-se, neste contexto, em uma espécie de ato punitivo, constituindo uma forma de violência contra a mulher e, consequentemente, uma violação aos direitos humanos. Atualmente, o Brasil é um dentre os países que integra a rota do tráfico sexual. Mulheres e crianças são levadas ao exterior para serem recrutadas à prostituição. Sem falar nos casos de exploração sexual dentro do próprio País, que adquire dimensões alarmantes. 29 O assédio sexual do homem em relação à mulher é uma prática comum no cenário nacional. Certas ações daqueles indivíduos não chegam propriamente a ser consideradas como violações aos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres. É como se tais direitos fossem secundários, ocupando um patamar inferior, como uma área que convive com questões mais urgentes no campo jurídico. Tal conjunto de fatos pode ser atribuído a valores que estão arraigados na cultura brasileira e que dificultam a implantação de políticas que visam à diminuição da configuração de desigualdade que marca ainda hoje a dimensão das relações de gênero no país. Da mesma forma, direitos fundamentais, como o acesso aos meios contraceptivos e a interrupção da gravidez, ainda ocupam o status de tema polêmico na esfera jurídica brasileira, não sendo devidamente efetivados por causa de pressões exercidas, em grande parte, por grupos religiosos. 3.2.1. Dos instrumentos normativos Como não existem dispositivos nacionais exclusivos para os direitos sexuais e reprodutivos, vê-se como extensão necessária desta conjuntura a realização de interpretações sistemáticas das normas constitucionais, as quais possibilitariam, em tese, a fundamentação de tais direitos. No artigo 1º da Constituição Federal de 1988, encontra-se o princípio da dignidade da pessoa humana. No artigo 3º desta, estabelecem-se os objetivos fundamentais da República, dentre os quais, está o de promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade, nem qualquer outra discriminação. Já no seu artigo 5º, assegura-se a igualdade entre homens e mulheres. Como se vê, de maneira direta ou indireta, a Constituição comporta artigos que se relacionam aos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres. O planejamento familiar é um dos elementos compreendidos pelos serviços de saúde reprodutiva, tendo sido incorporado ao sistema jurídico 30 brasileiro através do art. 226, §7º da Constituição Federal vigente, que estabelece: 7º - Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas. Dessa maneira, foi concedida pela constituinte de 1988, tanto ao homem quanto a mulher, a titularidade dos direitos reprodutivos. Posteriormente, o planejamento familiar foi regulamentado pela edição da Lei nº 9.263, de 12 de janeiro de 1996, sendo estabelecidas políticas para a implantação de serviços nesta área, além do acesso aos meios preventivos e educacionais para a regulação da fecundidade e prevenção de doenças sexualmente transmissíveis. Além das garantias fornecidas pela Constituição, alguns atos que violam os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres encontram-se sancionados pelo Código Penal Brasileiro, tais como o assédio sexual, a exploração sexual, o estupro e o tráfico de mulheres. Mais recentemente, no ano de 2006, a Lei nº 11.340 foi sancionada pelo então Presidente Luís Inácio Lula da Silva, sendo conhecida como “Lei Maria da Penha”. A formulação desta lei pretende ser um importante passo no combate à violência doméstica contra mulheres no Brasil e, segundo a coordenadora da Coordenadoria Especial de Políticas para Mulheres do município de Fortaleza, Raquel Viana, ela traz para o campo do legislativo “esse reconhecimento da violência, enquanto uma questão de caráter público e não somente privado, e também reúne um conjunto de obrigações do Estado em relação tanto à prevenção quanto ao enfrentamento da violência contra mulheres.” Em seu art. 7º, inciso II, a Lei Maria da Penha tipifica a violência sexual como uma forma de violência doméstica, fazendo menção aos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres. II - a violência sexual, entendida como qualquer conduta que a constranja a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada, mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da 31 força; que a induza a comercializar ou a utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade, que a impeça de usar qualquer método contraceptivo ou que a force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição, mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação; ou que limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos; O Brasil assumiu, nas Conferências da ONU ocorridas durante a década de 1990, os compromissos de assegurar o pleno exercício dos direitos reprodutivos e de fazer a revisão da atual legislação que criminaliza o aborto no País. São várias as organizações brasileiras que trabalham com esse objetivo. A Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres (SEPM) da Presidência da República participa de modo permanente de reuniões internacionais e produz documentos que avaliam a situação desses direitos e o cumprimento dos acordos dos quais o País faz parte, enviando-os periodicamente às Nações Unidas e demais organizações internacionais. Além disso, em 2012, o Brasil participou da elaboração do documento final da Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável, Rio+20, comprometendo-se a trabalhar em prol dos direitos sexuais e reprodutivos de mulheres, homens e jovens e promover a igualdade entre os gêneros. O documento intitulado “O Futuro que queremos” faz menção aos direitos sexuais e reprodutivos em seus artigos 145 e 146: 145. Pedimos que se apliquen plena y efectivamente la Plataforma de Acción de Beijing y el Programa de Acción de la Conferencia Internacional sobre la Población y el Desarrollo y los resultados de sus conferencias de examen, incluídos lós compromisos relativos a la salud sexual y reproductiva y la promoción y protección de todos lós derechos humanos em este contexto. Ponemos de relieve la necesidad de propocionar acceso universal a la salud reproductiva, incluida la planificación de la familia y la salud sexual, y de integrar la salud reproductiva em las estrategias y lós programas nacionales. 146. Nos comprometemos a reducir la mortalidad materna e infantil y mejorar la salud de las mujeres, lós jóvenes y lós niños. Reafirmamos nuestro compromiso com la igualdad de lós géneros y la protección de lós derechos de las mujeres, lós hombres y lós jóvenes a tener control sobre las cuestiones relativas a su sexualidad, incluido el acceso a la salud sexual y reproductiva, y dedecidir libremente respecto de esas cuestiones, sin verse sujetos a la coerción, la discriminación y la violencia. Trabajaremos activamente para asegurar que los sistemas de salud proporcionen la información y los servicios sanitarios necesarios para atender la salud sexual e reproductiva de la mujer, em particular para lograr um acceso universal a métodos de planificación de la familia modernos, seguros, efectivos, asequibles y aceptables, ya que ello es fundamental para la salud de la mujer y para promover la igualdad entre los géneros. 32 Nota-se que a Constituição Brasileira de 1988 fornece base formal sólida para o reconhecimento dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres. No entanto, a fim de compreender os entraves que se interpõem a concretização e efetividade dos dispositivos que se encontram virtualmente nela inscritos, faz-se necessário um amplo estudo sobre tais direitos, mediante uma reflexão teórica que se coloque no cruzamento de três campos que têm tratado separadamente deste tema – o jurídico, aquele das políticas públicas e o cultural (centrado na esfera do religioso). Com base na conceituação de caráter histórico dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, realizada neste capítulo, foram apresentadas as transformações sofridas por tais direitos dentro do campo jurídico, bem como as limitações encontradas no âmbito nacional no que diz respeito à efetivação dos mesmos. A fim de dar sequência ao tratamento dos dados obtidos nesta pesquisa, o segundo capítulo deste trabalho buscará tratar da problemática destes direitos na perspectiva do “corpo” e das “relações de gênero”, fazendo uma análise sociológica sobre o exercício da sexualidade feminina. 33 4 OS DIREITOS SEXUAIS E REPRODUTIVOS DAS MULHERES NA PERSPECTIVA DO CORPO E DO GÊNERO Muitos autores, tais como Mary Del Priore, Michelle Perrot e Georges Duby, afirmam que desde a ascensão da burguesia no século XVIII, a sociedade vive uma fase de repressão sexual. As práticas e as palavras que antes não procuravam segredo foram cuidadosamente encerradas no interior dos lares, sendo confiscadas pela esfera conjugal e resumidas à função da reprodução. Numa época onde a força de trabalho era amplamente explorada, não se podia permitir a dissipação e o desperdício das energias por meio do prazer. Durante o regime vitoriano, no século XIX, o casal procriador passa a ser o modelo de uma sexualidade “normal”. A “anormalidade” sexual era negada e reduzida ao silêncio, ou transferida para atividades lucrativas, como a prostituição. O sexo tornou-se um assunto tabu, e o prazer sexual feminino era, então, considerado inaceitável, transformando a frigidez num importante aspecto da feminilidade, como afirma Reay Tannahill (1980): A RESSURREIÇÃO vitoriana do amor palaciano foi grandemente responsável pela transformação de damas da classe média em adoráveis e intocáveis guardiãs da moralidade, cujo desdém pelo sexo levou a um explosivo aumento da prostituição, de uma epidêmica praga de doenças venéreas e de um mórbido gosto pelo masoquismo. (TANNAHILL. 1980, p. 377) Na era vitoriana, a repressão sexual foi intensificada com a viuvez da rainha Vitória, em 1861. Regina Navarro Lins e Flávio Braga (2005) tratam da repressão sexual durante seu reinado e afirmam: A rainha Vitória personificava a moral sexual vitoriana, mas conseguiu manter até os 40 anos todo o vigor e capacidade de desfrutar o sexo. Após a morte do príncipe consorte, em 1861, a nação associou-se à tristeza da rainha, tendo sido com sua aprovação tácita que as forças da repressão começaram a aumentar o controle sobre o país. (...) O nascimento de uma criança era para Vitória o “lado negro do casamento”, vergonhoso e degradante, o que passou também a ser posição da classe média. Tal como o sexo, tratava-se de algo escuso, feito em segredo, e muitas mulheres, para manter sua dignidade durante a gravidez, mantinham-se vestidas com espartilho até o 34 trabalho de parto, apesar das dores intensas. (LINS; BRAGA. 2005, p. 197) Mais de dois séculos depois, muitas foram as transformações na moral e nos códigos de conduta sexuais. Logicamente, o sexo não é hoje pensado da mesma forma que era no século XVIII e, de uma geração para outra, muitos valores foram modificados. Um indício da aceleração impressa, nas últimas décadas, à sucessão de valores pode ser percebido no fato de que é comum os jovens não pensarem o sexo da mesma forma que seus pais ou avós o faziam, por isso, rotulando-os de “caretas”. No entanto, o discurso sobre a repressão moderna do sexo ainda hoje se sustenta, com base em tabus que ainda persistem em nossa sociedade, embora assuma outras formas ou intensidade. Segundo Lins e Braga (2005), como resultado de séculos de repressão, “muitos acreditam ser o sexo uma coisa impura e nada humana. A vergonha e a culpa sexuais podem se manifestar diante de um pensamento, de um desejo ou da simples intenção de agir de determinada maneira.” (p. 199) O filósofo francês Michel Foucault (2012), por outro lado, opõe-se a esse tipo de afirmação. Em sua obra “História da Sexualidade”, Foucault (2012) chama a hipótese descrita acima de “hipótese repressiva”. Segundo o autor, a sexualidade não foi censurada com o advento do capitalismo. A burguesia capitalista não obrigou o sexo a calar-se ou esconder-se, mas a revelar-se, fazendo-se confessar. Configurando-se, assim, uma proliferação de discursos sobre o sexo. Foucault (2012) afirma que nunca se falou tanto em sexualidade como nos últimos séculos. Sem pretender negar toda a proibição, mascaramento e repressão ao sexo desde a época clássica, o autor acredita que nem por isso o sexo ficou mais oculto do que antes. Todas as proibições e censuras fazem parte, na verdade, de uma técnica de poder, uma vontade de saber. (...) a partir do fim do século XVI, a “colocação do sexo em discurso”, em vez de sofrer um processo de restrição, foi, ao contrário, submetida a um mecanismo de crescente incitação; que as técnicas de poder exercidas sobre o sexo não obedeceram a um princípio de seleção rigorosa mas, ao contrário, de disseminação e implantação 35 das sexualidades poliformas e que a vontade de saber não se detém diante de um tabu irrevogável, mas se obstinou – sem dúvida através de muitos erros – em constituir uma ciência da sexualidade. (FOUCAULT, 2012, p. 19) Segundo Foucault (2012), desde o século XVIII não pararam de surgir discursos que tinham o sexo como objeto privilegiado. A própria pastoral cristã apresentava o sexo como algo que deveria ser devidamente confessado. O bom cristão deveria fazer de todo seu desejo um discurso, detalhando todos os seus pensamentos e atos referentes ao sexo. Ainda que tenham sido estabelecidas censuras ao vocabulário utilizado durante as confissões, Foucault (2012) afirma que estas poderiam tratar-se de “dispositivos secundários a essa grande sujeição: maneiras de torná-la moralmente aceitável e tecnicamente útil.” (p. 27) Entre os séculos XVII e XIX, houve o controle de tudo que envolvia a sexualidade, com o surgimento de áreas especializadas, como: demografia, medicina, psiquiatria, psicologia, justiça penal, dentre outras. No entanto, foi o próprio poder que incitou a proliferação desses discursos, por meio de instituições como a Igreja, a família, as escolas, os consultórios médicos e as casas de saúde, por exemplo. Essas instituições não visavam proibir ou restringir a prática sexual, mas sim controlar o indivíduo e a população por meio de “discursos úteis e públicos”. É o que Foucault (2012) chama de “polícia do sexo”: O sexo não se julga apenas, administra-se. Sobreleva-se ao poder público; exige procedimentos de gestão; deve ser assumido por discursos analíticos. No século XVIII o sexo se torna questão de “polícia”. Mas no sentido pleno e forte que se atribuía então a essa palavra – não como repressão da desordem e sim como majoração ordenada das forças coletivas e individuais. (FOUCAULT. 2012, p. 31) Conforme afirma este autor, o fato de formularmos em termos de repressão as relações do sexo e do poder se deve à existência de uma economia de discursos que sustenta essa hipótese repressiva. Além disso, outra razão seria o que ele chama de “benefício do locutor”, que colocaria o indivíduo que fala do sexo numa posição de fora da lei. Se o sexo é reprimido, isto é, fadado à proibição, à inexistência e ao mutismo, o simples fato de falar dele e de sua repressão possui como 36 que um ar de transgressão deliberada. Quem emprega essa linguagem coloca-se, até certo ponto, fora do alcance do poder; desordena a lei; antecipa, por menos que seja, a liberdade futura. Daí essa solenidade com que se fala, hoje em dia, do sexo. (FOUCAULT. 2012, p. 12) A partir destas considerações, pode-se observar que, em “História da Sexualidade”, o filósofo francês busca desconstruir a hipótese repressiva, afirmando que o “próprio das sociedades modernas não é o de terem condenado o sexo a permanecer na obscuridade, mas sim o terem-se devotado a falar dele sempre, valorizando-o como o segredo.” (FOUCAULT, 2012, p. 42) Por esse motivo, ele defende que é preciso abandonar a hipótese de que as sociedades industriais modernas inauguraram um período de repressão mais intensa do sexo. A proliferação de discursos sobre o sexo, da qual trata Foucault, fica evidente no âmbito das ciências sociais. Segundo Maria Andréa Loyola (1999), a pluridisciplinaridade e a polissemia que caracterizam a sexualidade como objeto de estudo devem ser entendidas como tentativas de se articular abordagens situadas em diferentes níveis, uma vez que não existe uma abordagem unitária da sexualidade nas ciências sociais. A autora cita algumas abordagens da sexualidade em diferentes ciências: Assim, a sexualidade pode ser abordada em relação à família, ao parentesco, ao casamento e à aliança como constitutiva e, ao mesmo tempo, perturbadora da ordem social (antropologia e sociologia). Ela pode ser abordada, ainda, como constitutiva da subjetividade e/ou da identidade individual (psicanálise) e social (história e ciências sociais em geral); como representação (antropologia) ou como desejo (psicanálise); como um problema biológico/genético (medicina); ou ainda como um problema político e moral (sociologia, filosofia) ou, mais direta e simplesmente, como atividade sexual. (LOYOLA, 1999, p. 32) Loyola (1999) afirma que, com exceção da antropologia, que tomou a sexualidade como forma de pensar a sociedade, as ciências que mais se ocuparam deste tema foram as de caráter ético ou normativo/terapêutico: o pensamento religioso, a medicina e a psicanálise. A apropriação da sexualidade por essas ciências nos remete a ideia de scientia sexualis de Foucault. 37 A scientia sexualis de Foucault consiste num conjunto de procedimentos ordenados, com a finalidade de se obter a verdade sobre o sexo. De acordo com Foucault (2012), a nossa civilização transformou o sexo num objeto de verdade e desenvolveu um imenso aparelho para produzir esta verdade, mesmo que para mascará-la num último momento. Neste sentido, a confissão e o testemunho desempenharam o papel de práticas fundamentais para produção da verdade. Fosse com uma função jurídica, religiosa ou médica, a confissão era utilizada como uma forma de o indivíduo reconhecer suas próprias ações e pensamentos. Assim, o indivíduo não era mais autenticado pela opinião que os outros desenvolviam sobre ele, mas pelo discurso de verdade que era capaz de produzir sobre si mesmo. Confessando os crimes, os pensamentos, os pecados, os desejos, em público ou em particular, espontaneamente ou à força, “o homem, no Ocidente, tornou-se um animal confidente.” (FOUCAULT. 2012, p. 68) Segundo Foucault (2012), desde a penitência cristã até os nossos dias, o sexo tem sido matéria privilegiada da confissão, sendo esta a matriz que rege a produção do discurso verdadeiro sobre o sexo por parte de diversas ciências. A medicina é um exemplo de “ciência-confissão”. De acordo com Loyola (1999), foi com princípios, sobretudo, normativos que a medicina se ocupou da sexualidade, transformando uma série de interditos e normas sexuais (inclusive de ordem religiosa) em postulados científicos. No século XVII, a ciência médica estabeleceu que a sexualidade tratava-se de um instinto biológico voltado para a reprodução da espécie, fortificando, assim, os ideais de amor a Deus e à família e consolidando a ideia do desejo sexual como enfermidade, conforme afirma Mary Del Priore (2011): Ao final do Renascimento, longos tratados médicos são escritos sobre o tema: O antídoto do amor, de 1599, ou A genealogia do amor, de 1609, são bons exemplos desse tipo de literatura. Seus autores tanto se interessavam pelas definições filosóficas do amor quanto pelos diagnósticos e tratamentos envolvidos na sua cura. Todos, também, recorrem a observações misturadas a alusões literárias, históricas e científicas para concluir que o amor erótico, 38 amor-hereos ou melancolia erótica, era o resultado dos humores queimados pela paixão. E mais: que todos os sintomas observados poderiam ser explicados em termos de patologia. De doença. (DEL PRIORE. 2011, p. 31) Vale ressaltar que as mulheres receberam muita atenção nos discursos produzidos sobre o sexo. Diferentemente da sexualidade masculina, o sexo das mulheres foi considerado, em diferentes momentos históricos, algo a ser protegido, fechado e possuído, como afirma Michelle Perrot (2007). De Aristóteles a Freud, a mulher foi vista como um ser dotado de carências, fraquezas e defeitos. Entre os séculos XII e XVIII, a Igreja identificou as mulheres como formas do mal sobre a Terra, descendentes de Eva, a responsável pela expulsão do paraíso e pela queda dos homens, e seus corpos foram considerados impuros. O prazer feminino foi combatido tanto pelo discurso religioso quanto pelo médico. Enfim, o prazer feminino era considerado tão maldito que, no dia do Julgamento Final, as mulheres ressuscitariam como homens; dessa forma, no “santo estado” masculino, não seriam tentados pela “carne funesta”, reclamava Santo Agostinho. Com essa pá de cal, as mulheres foram condenadas por padres e médicos a ignorar, durante séculos, o prazer. (DEL PRIORE, 2011, p. 35) A avidez sexual das mulheres foi considerada perigosa e os cavaleiros da Idade Média temiam o leito da mulher insaciável, incertos de poderem satisfazê-la. Durante séculos, o prazer feminino foi visto com maus olhos e a conduta das mulheres foi exposta a julgamentos sociais. As mulheres cuja sexualidade não tem freios são perigosas. Maléficas, assemelham-se a feiticeiras, dotadas de “vulvas insaciáveis”. Mesmo quando estão velhas, fora da idade permitida para o amor, as feiticeiras têm a reputação de cavalgar os homens, de tomá-los por trás, o que, na cristandade, é contrário à posição dita natural: em suma, têm a reputação de fazer amor como não se deve fazer. (PERROT, 2007, p. 66) Segundo Anthony Giddens (1993), durante o século XIX, no contexto da criação de discursos sobre o sexo, a sexualidade feminina foi reconhecida e imediatamente reprimida, sendo tratada como a origem patológica da histeria. 39 As mulheres que almejavam prazer sexual eram consideradas definitivamente anormais. Giddens (1993) admite a sexualidade como uma elaboração social que opera dentro dos campos do poder. No entanto, discorda do pensamento de Foucault “de que há um caminho de desenvolvimento mais ou menos direto, desde um ‘fascínio’ vitoriano pela sexualidade até os tempos mais recentes.” (p. 33) Para Giddens (1993), as repressões da era vitoriana, assim como as posteriores, foram em alguns aspectos muito reais, e várias gerações de mulheres podem atestá-lo. Mesmo nos dias de hoje, a avidez sexual feminina ainda é vista de forma pejorativa e muitas mulheres são consideradas vulgares e “fáceis”, indignas de que os homens resolvam assumi-las em um relacionamento socialmente reconhecido como estável. Uma mulher cujos impulsos sexuais são publicamente manifestos é identificada como um perigo tanto para o homem como para outras mulheres, tanto por questões relacionadas à fidelidade como pela suposição de que ele terá de satisfazê-la plenamente. Tais concepções orientam determinadas práticas sociais. Por exemplo, para os soldados e os atletas, é considerada aceitável a necessidade de se afastarem das mulheres durante o período que antecede o uso de suas forças. Uma vez que o prazer feminino foi, por muito tempo, alvo de repressões, a frigidez tornou-se uma característica do ideal de mulheres respeitáveis, assim como o distanciamento de tudo aquilo que possua um valor erótico. Assim, a figura das amantes, prostitutas e mulheres sedutoras apenas permeiam o imaginário dos homens como formas associadas à ideia de aventuras prazerosas. Frente à recorrência de tais concepções, é possível afirmar que a avidez sexual e a frigidez feminina constituem duas formas dominantes de representação da feminilidade na sociedade ocidental. Elas são fruto da concepção binária do gênero. 40 Ao longo da História, todas as sociedades desenvolveram mecanismos de diferenciação dos gêneros, entendendo o gênero como elemento intimamente relacionado ao exercício da sexualidade. Dessa forma, ao estabelecerem as diferenças entre o masculino e o feminino, foram também definidas quais práticas sexuais seriam consideradas adequadas ou repudiadas. O incesto, a masturbação e a homossexualidade são alguns exemplos de práticas sexuais proscritas em diferentes sociedades e momentos históricos. No âmbito das sociedades ocidentais modernas, a heterossexualidade passou a consistir num modelo dominante de preferências e condutas sexuais, normatizando o que é feminino e masculino. Neste contexto, a atividade sexual tem sido definida como domínio masculino e o coito como ato sexual por excelência, de maneira que o falo tornou-se elemento indispensável em qualquer atividade sexual que seja considerada normal e aceitável (BRANDÃO, 2008). A relação estabelecida entre o exercício da sexualidade e o gênero, acabou por dar lugar à ideia de que o gênero se organiza tão somente segundo um binário masculino/feminino. A perspectiva de gênero se vincula, assim, à consolidação de um discurso que constrói uma identidade do feminino e do masculino, encarcerando homens e mulheres em seus limites fisiológicos. Neste sentido, como explica Ana Maria Brandão (2010), o desejo homoerótico surge como uma infração a esse modelo bipolar do gênero, na medida em que se opõe à crença da atração “naturalmente” exclusiva entre homens e mulheres. O modelo histórico e culturalmente afirmado da heterossexualidade como a conduta sexual normal traz à tona uma série de pressupostos acerca de nossos comportamentos, preferências e de quem somos, os quais podem desencadear “crises identitárias” sempre que se faz perceber qualquer afastamento do modelo estabelecido. (ERIKSON, 1980) A nossa identidade não é pré-determinada pelo nascimento. Ela é resultado de uma longa caminhada que realizamos por meio das experiências 41 de vida que vamos acumulando e de nossas próprias reações frente aos mais diversos acontecimentos. A identidade é, portanto, dinâmica, delineando-se ao longo de nossa vida, como fruto das trocas que estabelecemos com os outros indivíduos. Dessa forma, a identidade ganha, a cada momento, uma nova configuração, integrando elementos que antes não existiam. (ERIKSON, 1980) Isso significa que aquilo que somos encontra-se num permanente estado de (re)elaboração. Segundo Erik Erikson (1980), as “crises identitárias” ocorrem em diversos momentos de nossas vidas, a partir do momento em que novas situações e perspectivas confrontam nosso sentimento de unidade. A nossa sociedade vem se construindo, desde a modernidade, por meio de uma alta reflexibilidade. A questão “quem sou eu?” toma uma importância contínua dentro da nossa realidade, a partir dos questionamentos acerca de qual é o lugar de cada um nessa sociedade. Richard Sennett (1988) afirma que “o eu de cada pessoa tornou-se seu próprio fardo; conhecer-se a si mesmo tornou-se antes uma finalidade do que um meio através do qual se conhece o mundo.” (p. 16) Nas últimas quatro gerações, a relação física com o outro por meio do sexo vem sendo redefinida. Segundo Sennett (1988), o amor físico passou dos termos do erotismo vitoriano para os termos da sexualidade. Neste contexto, é fundamental tornar mais precisos os conceitos dos termos “sexualidade” e “erotismo”, a fim de diferenciá-los. Muitas vezes, as palavras “sexualidade” e “erotismo” são utilizadas como sinônimos, possuindo, no entanto, conceituações bem diferentes. A sexualidade está relacionada às preferências e experiências sexuais de um indivíduo que o levam à construção de uma identidade sexual. O erotismo, por sua vez, é o resultado da atividade sexual como prazer e, ao mesmo tempo, a consciência do interdito (BATAILLE, 1987). Isso significa que, embora sexualidade e erotismo estejam relacionados à atividade sexual humana, a diferença entre ambos repousa na ideia da transgressão. 42 Segundo Del Priore (2011), em 1566, é dicionarizada na França, pela primeira vez, a palavra “erótico”, a qual designava “o que tiver relação com o amor ou proceder dele”. Com o passar do tempo, muitos gestos, palavras e condutas perderam suas conotações eróticas, enquanto outras passaram a representar erotismo. A nudez, que hoje é considerada erótica, por exemplo, já foi representada nas pinturas humanistas por meio de corpos nus de homens e mulheres, sem censura alguma. A ideia do erótico está intimamente relacionada à contravenção de restrições de caráter sexual. Em sua obra intitulada “O Erotismo”, Georges Bataille (1987) afirma que o erotismo é um elemento que separa o homem do animal, uma vez que a atividade sexual é comum para ambos, mas, aparentemente, só os seres humanos fizeram disso uma atividade erótica, por meio de uma experiência interior. Em resumo, mesmo estando de acordo com a maioria, a escolha humana difere da do animal: ela apela para essa mobilidade interior, infinitamente complexa, que típica do homem. O animal tem ele próprio uma vida subjetiva, mas essa vida, parece, lhe é dada, como acontece com os objetos sem vida, de uma vez por todas. O erotismo do homem difere da sexualidade animal justamente no ponto em que ele põe a vida interior em questão. O erotismo é na consciência do homem aquilo que põe nele o ser em questão. (BATAILLE, 1987, p. 20) Ao agruparem-se em sociedade os seres humanos impuseram diversas restrições, que Bataille (1987) chama de “interditos”, os quais tocaram, dentre outros elementos da vida humana, a atividade sexual. A ideia de erotismo consiste em ter conhecimento do jogo de balança entre interdito e transgressão, onde se é possível optar por um ou por outro, exigindo que se vivencie uma experiência pessoal e contraditória. Assim sendo, pode-se dizer que a essência do erotismo é a transgressão. Dessa forma, o erotismo consiste numa expressão sexual por meio de ações transgressoras e a sexualidade, por sua vez, não é uma ação, mas um estado, o resultado natural da intimidade física entre duas pessoas. Imaginamos que a sexualidade delimita um amplo território para aquilo que somos e que sentimos. A sexualidade é um estado expressivo, ao invés de um ato expressivo, e é no entanto entrópica. Tudo quanto experimentamos toca necessariamente a nossa 43 sexualidade, mas a sexualidade é. Nós a desvendamos, a descobrimos, chegamos a um acordo com ela, mas não a dominamos. (SENNETT, 1988, p. 20) Essa ansiedade que a sociedade atual apresenta diante daquilo que se sente e essa incessante busca pela identidade deu lugar a uma infinita procura por nós mesmos a partir do exercício da sexualidade. Nas palavras de Sennett (1981, p. 3): Sexo é básico como comer ou dormir, isso é certo, mas, é tratado na sociedade moderna como algo mais. É o meio através do qual as pessoas procuram definir suas: personalidades, seus gostos. Acima de tudo, sexualidade é o meio pelo qual as pessoas buscam ser conscientes de si próprias. (SENNETT. 1981, p. 3) (Tradução livre da autora) Em “Sexuality and Solitude”, texto escrito por Sennett e Foucault no ano de 1981, o autor americano explica que a busca das pessoas por encontrarem o seu “eu” a partir de suas sexualidades individuais é, em parte, gerada do medo. Esse medo é remanescente da moralidade vitoriana, embora sempre nos iludamos em achar que não compartilhamos mais dos seus preceitos repressivos. As primeiras investigações modernas sobre sexualidade acreditavam que estavam abrindo a terrível caixa de Pandora, de luxúria incontida, perversão e destrutividade na procura dos desejos sexuais das pessoas sozinhas, sem as civilizantes restrições da sociedade. Quando vamos analisar os textos de Tissot e outros sobre masturbação, já espero que surja esse sentido de terror. Uma pessoa sozinha com uma força muito perigosa. (FOUCAULT; SENNETT, 1981, p. 4) (Tradução livre da autora) Sennett (1981) explica, ainda, neste mesmo texto, como a subjetividade tornou-se subjugada à sexualidade, utilizando o termo “tecnologia do self”. Ela consiste no uso do desejo corporal para medir se uma pessoa está sendo verdadeira ou não. O autor ainda destaca a expressão americana “you really feel what I am saying?” como uma demonstração da submissão da sexualidade à subjetividade. Se você não sente, é porque não é verdade. Segundo Pierre Bourdieu (2011) e Judith Butler (2007), as identidades são construídas por um conjunto de discursos (políticos, jurídicos, econômicos, religiosos) sobre gênero e sexualidade, dos quais os indivíduos se 44 utilizam para definir seus lugares no mundo. Sob o poder performativo desses discursos é que se aprende a ser mulher e homem em nossa sociedade. Bourdieu (1995) afirma que o habitus condiciona o modo de ser de todo grupo e utiliza esse conceito para pensar as relações entre os sexos em “A Dominação Masculina”. Nessa obra, o autor formula uma crítica à naturalização da prática de se distinguir os sexos homem/mulher: O habitus produz construções socialmente sexuadas do mundo e mesmo do próprio corpo que, sem serem representações intelectuais, não são menos ativas, e respostas sintéticas e adaptadas que, sem serem fundadas no cálculo explícito de uma consciência mobilizando uma memória, não são tampouco o produto do funcionamento cego de mecanismos físicos ou químicos capazes de dispensar o espírito. Através de um trabalho permanente de formação, de Bildung, o mundo social constrói o corpo, ao mesmo tempo como realidade sexuada e como depositário de categorias de percepção e de apreciação sexuantes, que se aplicam ao próprio corpo na sua realidade biológica. (BOURDIEU, 1995, p. 144) Em suma, na sociedade ocidental, a identidade de gênero está diretamente ligada à noção de identidade sexual, ligação esta que Butler (2007) buscou desmontar em sua obra “Problemas de Gênero: feminismo e subversão da identidade”, a fim de retirar da noção de gênero a ideia de que ele decorreria do sexo. Do imaginário dessa relação sexualidade/gênero decorrem dois pressupostos: primeiro, que ser mulher significa desejar um homem e, segundo, que uma mulher que deseja outra mulher transgride as fronteiras de seu gênero. Contrariando tais pressupostos, para Giddens (1993) as características fundamentais de uma sociedade de alta reflexibilidade, como a nossa, são o caráter “aberto” da auto-identidade e a natureza reflexiva do corpo. O autor explica que o que se aplica para o eu aplica-se também ao corpo. Como domínio da sexualidade, o corpo torna-se um foco do poder disciplinar e um portador visível da auto-identidade. A partir da produção teórica desses autores, sobre a sexualidade na sociedade moderna e as relações de poder que abrangem o sexo, o gênero, o corpo e a construção identitária, podemos lançar as bases de uma abordagem compreensiva que possibilite o confronto de diferentes perspectivas da 45 problemática que envolve o âmbito dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres na atualidade. 4.1. OS DIREITOS SEXUAIS E REPRODUTIVOS DAS MULHERES NA ATUALIDADE: Expectativas e tensões O fato de se tratar de uma temática bastante recente, somente reforça o fato de que o estudo de vários aspectos dos direitos sexuais e reprodutivos ainda esteja passando por um processo de aprofundamento, delimitações temáticas e fundamentação conceitual. Por consistir em uma matéria interdisciplinar, torna-se mais complexa a afirmação deste campo fenomênico, bem como a tarefa de apreender teoricamente a dinâmica de efetivação de tais direitos. Uma dentre as primeiras dificuldades encontradas na efetivação dos direitos sexuais e reprodutivos, da maneira como estes foram conceituados nos documentos internacionais já citados, encontra-se no âmbito da proteção exercida por eles. Segundo Raupp Rios (2007), a concepção de direitos sexuais e reprodutivos acaba por concentrar o tratamento jurídico da sexualidade e da reprodução sob a condição pessoal de um determinado grupo de indivíduos – as mulheres. O direito da sexualidade, conforme afirma Raupp Rios (2007), não deve cuidar isoladamente de um grupo, pois “em suma, alcançaria identidades, condutas, preferências e orientações as mais diversas, relacionadas com aquilo que socialmente se estabelece, em cada momento histórico, como sexual.” (p. 23) No entanto, esse não é o ponto crucial do referido problema. Várias normas de diferentes ramos do ordenamento jurídico são agrupadas com a função de proteger especificamente as mulheres, possibilitando que gozem de seus direitos e liberdades fundamentais no campo sexual e reprodutivo. No entanto, segundo Ventura (2005), essas normas acabam por produzir e/ou incorporar uma assimetria entre os gêneros. E esse é o ponto de discussão. 46 Podemos, neste caso, fazer uso do pensamento de Joan Scott (1990) acerca da relação entre gênero e poder. Para a autora, o gênero é “um elemento constitutivo das relações sociais fundadas sobre as diferenças percebidas entre os sexos, e o gênero é o primeiro modo de dar significado às relações de poder.” (p. 14) De fato, para Scott (1990) “o gênero é um primeiro campo no seio do qual, ou por meio do qual, o poder é articulado.” (p.16) O gênero expõe, assim, o dilema da diferença, a construção de desigualdades binárias que seriam pretensamente naturais. Segundo Emily Martin (2006), durante o século XIX, os papéis sociais de homens e mulheres estavam baseados na própria natureza, supostamente de acordo com o que seus corpos ditavam. Qualquer tentativa de alterar a relação entre os sexos consistiria, então, numa luta contra a Natureza. Mesmo atualmente, esse pensamento ainda não foi completamente abandonado, encontrando lugar no cume de formulações religiosas mais ortodoxas. A assimetria entre os gêneros, ressaltada por Ventura (2005), reside no fato de que os titulares dos direitos sexuais e reprodutivos, expressamente nomeados no Plano de Ação do Cairo, são: os casais, os adolescentes, as mulheres (mesmo as solteiras), os homens e as pessoas idosas. Porém, o que se percebe é que, apesar desses direitos estarem estendidos a todos os titulares citados, é para as mulheres que as políticas governamentais e as normas jurídicas estão mais voltadas, destinando a elas não a atribuição de direitos, mas o reconhecimento de deveres reprodutivos. A posição reservada às mulheres no âmbito dessas normas constitui um dos pontos de maior tensão no momento de sua aplicação e elaboração, considerando que são estruturadas envolvendo, preferencialmente, a capacidade reprodutiva feminina, atribuindo às mulheres tão somente deveres no âmbito reprodutivo. (VENTURA, 2005, p. 117) Assim sendo, a maior proteção fornecida às mulheres mediante normas jurídicas que versam sobre a sexualidade e a reprodução acabam configurando um paradoxo dentro da temática dos direitos sexuais e reprodutivos. Isso se dá pelo fato de que as mulheres estão biológica e psicologicamente mais vulneráveis à violação de seus direitos no campo sexual 47 e reprodutivo do que os homens3, mas as normas jurídicas, ao optarem por priorizar esse grupo humano, imprimem a esta ação um caráter intervencionista e autoritário. O que se entende a partir dessa situação é que as normas não têm o objetivo de proteger especialmente as mulheres, e sim o de gerir o exercício de sua sexualidade, funcionando como instrumentos de controle social e não de garantia do pleno desenvolvimento humano. Neste sentido, este cruzamento entre o âmbito do Direito e aquele da elaboração de políticas públicas parece convergir com o conceito da biopolítica de Foucault (2012). Este parece convergir com essa lógica, uma vez que ela surge como uma forma de governamentalidade, ou seja, uma série de técnicas e procedimentos que têm por finalidade dirigir a conduta dos indivíduos. Dessa forma, no contexto da biopolítica de Foucault, as normas jurídicas e as políticas desenvolvidas para mulheres agiriam de forma a normalizar e adestrar seus corpos, gerindo suas vidas por meio de técnicas de poder sobre o biológico, as quais estariam refletidas no campo político. Segundo Foucault (2012), a partir do século XVIII, vários dispositivos voltados a racionalizar a sexualidade, tais como a saúde, a higiene e o controle da natalidade, começaram a surgir. Neste contexto, merece destaque o fato de os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres se encontrarem fortemente atrelados, via discurso produzido no âmbito das ciências sociais, às ciências da saúde. A formulação original do conceito de direitos reprodutivos, surgido em 1984, durante o I Encontro Internacional de Saúde da Mulher, veio a substituir o termo “Saúde da Mulher”, até então utilizado. A nova nomenclatura foi considerada mais completa e adequada para traduzir as vastas reivindicações por autonomia e autodeterminação reprodutiva formuladas pelas mulheres. Esse conceito foi, então, debatido e aperfeiçoado até seu aparecimento na CIPD. (BERQUÓ (Org.), 2003; VENTURA, 2005) 3 Essa constatação se encontra presente no Relatório da IV Conferência Mundial sobre a Mulher de Pequim (1995), em seu capítulo “Mulher e Saúde”. Disponível em: <<http://www.sepm.gov.br/Articulacao/articulacao-internacional/relatorio-pequim.pdf>> Acesso em: 23 nov. 2012. 48 Após a incorporação dos direitos sexuais e reprodutivos ao conjunto dos direitos humanos, o que se deu a partir, principalmente, das Conferências do Cairo (1994) e de Pequim (1995), eles passaram a ser matéria de estudo não só das ciências da saúde, mas das ciências jurídicas, dentre outras áreas de conhecimento. Dessa forma, desde que a noção desses direitos foi firmada internacionalmente, o estudo dos mesmos passou a consistir em abordagens multidisciplinares, não estando mais limitados tão somente às questões de saúde. A conquista do prazer, o conhecimento sobre seu próprio corpo, o desenvolvimento livre de sua sexualidade e uma organização da vida reprodutiva vão muito além da dimensão fisiológica manifesta pelas práticas de fazer sexo, ter filhos, adoecer, morrer. Embora os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres envolvam várias outras questões, como: violência e exploração sexual, tráfico de mulheres, assédio, prostituição, dentre outras, essa temática tem sido, na maioria das vezes, resumida a questões de higiene e saúde pública. Durante as Conferências Municipal e Estadual de Políticas para Mulheres, realizadas na cidade de Fortaleza, respectivamente nos meses de agosto e outubro de 2011, das quais participei ativamente, as delegadas e observadoras deveriam optar por integrar um Grupo de Trabalho (GT). O GT destinado a debater os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres intitulavase “SAÚDE DAS MULHERES: Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos”. O objetivo geral desse GT, segundo o II Plano Nacional de Políticas para Mulheres era: Promover a melhoria das condições de vida e saúde das mulheres, em todas as fases do seu ciclo vital, mediante a garantia de direitos igualmente constituídos, e a ampliação do acesso aos meios e serviços de promoção, prevenção, assistência e recuperação da saúde integral em todo o território brasileiro, sem discriminação de qualquer espécie e resguardando-se a identidades e especificidades de gênero, raça/etnia, geração e orientação sexual. Segundo a ministrante desse GT na III Pré-Conferência Municipal de Políticas para Mulheres, Débora Mendonça, integrante do movimento Marcha Mundial de Mulheres, “essa é uma maneira mais fácil de tratar do tema, já que 49 ele é muito extenso. Não haveria como se discutir todas as suas questões dentro de um único GT”. Vale ressaltar que as noções de saúde reprodutiva e sexual não foram originalmente formuladas pelos movimentos sociais, mas sim no âmbito da Organização Mundial da Saúde (OMS), durante a segunda metade da década de 1980. Sua formulação estava ligada ao controle demográfico e ao planejamento familiar, acrescido da tentativa de amenizar o impacto da pandemia de HIV/AIDS na década de 1990. (BERQUÓ (Org.), 2003) Sem dúvidas, a necessidade de se abordar as questões relativas à saúde da mulher de um ponto de vista do gênero é evidente. No entanto, a maneira como essa temática tem sido tratada no âmbito das Conferências de Políticas para Mulheres é ainda bastante redutora, limitando-a ao campo da saúde pública e, especificamente, da reprodução. A interdependência entre a categoria dos direitos sexuais e dos direitos reprodutivos é outra questão delicada. Podemos visualizar a maior importância concedida à reprodução, enquanto que os direitos sexuais ficaram atrelados de modo íntimo à afirmação dos direitos reprodutivos. (RIOS, 2007; VENTURA, 2005) Ventura (2005) explica que “mesmo no campo da saúde, a vinculação das questões sexuais às reprodutivas tem trazido prejuízo para a promoção da saúde sexual e vice-versa.” (p. 126) Neste sentido, a desvinculação entre os direitos sexuais e reprodutivos permitiria ampliar a concepção de ambos sem, no entanto, impedir o estabelecimento de conexões entre eles. Sobre isso, Raupp Rios (2007) afirma: É necessário, portanto, fortalecer o direito da sexualidade fazendo ir além da esfera reprodutiva, sem, todavia, esquecer que violações a direitos sexuais frequentemente estão associadas à reprodução e tendo como vítimas mulheres em situação de vulnerabilidade. (p. 36) Raupp Rios (2007) ressalta a dificuldade de se desenvolver um direito à sexualidade diante do machismo predominante nas relações de gênero, do moralismo e das ideologias religiosas hegemônicas. Além disso, 50 Corrêa e Ávila (2003) reforçam o caráter desafiador que o refinamento dos direitos sexuais representa, diferenciando-se dos direitos reprodutivos: Em grande medida, os esforços no sentido de clarificar e refinar os conteúdos dos direitos sexuais têm sido desenvolvidos pos-facto e chamam atenção para o fato de que – à diferença dos direitos reprodutivos, que surgiram e amadureceram exclusivamente no campo feminista – o refinamento dos direitos sexuais exige o envolvimento de outros atores e perspectivas (lésbicas, gays, travestis, transgênero, trabalhadoras e trabalhadores do sexo, homens que fazem sexo com homens e outros “dissidentes sexuais”), o que torna a tarefa incomparavelmente mais complexa. (CORRÊA e ÁVILA, 2003, p. 21-22) Outro ponto a ser salientado diz respeito à criação e aplicação de normas jurídicas que versam sobre os direitos sexuais e reprodutivos. Segundo Ventura (2005), as leis sofrem forte influência de conservadorismo moral e religioso: Os princípios que vêm sendo utilizados para dar interpretação e orientar a elaboração de leis neste sentido são os da dignidade da pessoa humana, da parentalidade responsável e do melhor interesse da criança, expressas inclusive, na Constituição Federal brasileira. Mas é justamente no momento de solucionar e/ou compor conflitos de interesses que as dificuldades se apresentam, e encontramos as maiores dificuldades no âmbito da subjetividade, relacionadas às representações sociais, culturais, morais, religiosas. (VENTURA, 2005, p. 127) Segundo Ana Maria D’Ávila Lopes et al (2008), o fato de o homem ter, por muito tempo, dominado o espaço público e, também, o privado, colocava as mulheres em um segundo plano na sociedade. Assim, sendo representantes do poder econômico, político e social, os homens passaram a formular não apenas normas sociais, mas normas jurídicas que colocam a mulher numa posição desprivilegiada em relação ao reconhecimento e ao exercício de seus direitos. Apesar de todo o esforço na luta contra a violação dos direitos sexuais e reprodutivos, continuam a existir, em nível planetário, agressões a esses paradigmas, levando ao fracasso todas as precauções que se tem tomado para evitá-las. Essa afronta trouxe consigo a necessidade de realização de estudos e pesquisas, dando origem ao Relatório do Fundo das Nações Unidas para a População (FNUAP). 51 Esse relatório, também chamado “O Direito de Escolher: Direitos Reprodutivos e Saúde Reprodutiva”, divulgado no dia 28 de maio de 1997, apresenta os entendimentos mundiais que definem os direitos sexuais e reprodutivos, enumera os problemas encontrados para efetuar-se a proteção desses direitos e analisa os efeitos de sua negação. A partir de tal pesquisa, foi constatada a realidade de uma incrível recorrência do desrespeito a esses direitos. De acordo com Antônio Silveira Ribeiro dos Santos (2011), as estatísticas lançadas no relatório do FNUAP relatam que: - 585.000 mulheres morrem todos os anos por causas relacionadas à gravidez, sendo quase todas de países em desenvolvimento; - 200.000 mortes maternas por ano resultam de falta ou fracasso de anticoncepção; -350 milhões anticoncepção; de casais carecem de informações sobre - das 75 milhões de gravidezes indesejadas, 45 milhões resultam em aborto e 70.000 mortes por ano se dão por falta de condições assépticas adequadas. Os maiores obstáculos explicitados pela ONU no sentido de combater tais agressões se apresentam na forma de aspectos culturais e preceitos religiosos presentes em diversas populações. Adentrando em um âmbito de certo modo filosófico, para as Nações Unidas a questão que se apresenta como de fundamental importância na efetivação de sua luta por esses direitos, é saber até que ponto sua atuação poderia ferir ou modificar a cultura de um povo. Alterar costumes de sociedades, as quais percorreram os séculos, seria legítimo? E, mesmo que não o fosse, a intervenção formal seria o melhor caminho? Tais observações acerca do que consiste o escopo da violação de direitos humanos e o que caracteriza uma manifestação cultural que deve ser respeitada têm refreado algumas atitudes mais incisivas por parte desse órgão, porém, não se pode negar que tais reflexões possuem sua relevância. 52 A mutilação genital, por exemplo, é uma prática ainda exercida em cerca de vinte e oito países, por povos de diversas etnias; um costume ancestral.4 No relatório, destacou-se, também, a existência de um grande número de mulheres infectadas por doenças sexualmente transmissíveis, principalmente a AIDS, bem como rigorosas regras impostas por sociedades de caráter machista. O estudo ainda constata que as restrições à participação social da mulher impedem o acesso desta aos serviços de saúde reprodutiva, além de lhe faltarem recursos e informações. A educação é um fator de grande relevância neste contexto, pois, de forma recorrente, a partir do momento que as mulheres se iniciam no processo de instrução em relação aos seus direitos, começam a querer transformar a maneira como são vistas. Segundo Brauner (2005): A dificuldade está em reconhecer-se que o respeito aos direitos sexuais e reprodutivos está vinculado à questão do controle da sexualidade e da capacidade reprodutiva, pelo processo de educação e socialização das pessoas, tendo em vista que esses elementos determinam o grau de realização do indivíduo em relação ao seu corpo, sua possibilidade de viver sua sexualidade de forma gratificante e de organizar sua vida reprodutiva. (p. 9) A referida problemática também se dá, especialmente, devido a entraves de ordem religiosa. É sabido que a Igreja Católica, ao longo dos últimos apostolados papais, erigiu-se somo opositora ferrenha da ideia de controles artificiais de fecundidade, do aborto em qualquer circunstância e da adoção de práticas que possam, de alguma forma, envolver relações extramatrimoniais ou a sexualidade dos adolescentes. Mesmo no contexto atual, extremamente complexo, a Igreja Católica exerce forte influência em plano mundial por meio de seus dogmas, defendendo a prática de sexo para fins puramente reprodutivos e proibindo o aborto. 4 . Essa espécie de mutilação consiste na ablação do clitóris e dos pequenos lábios, a fim de que a mulher não sinta prazer durante a relação sexual. 53 É possível que pela conjunção dos elementos citados até o momento os direitos sexuais e reprodutivos tenham ficado fora do Projeto do Milênio, estabelecido em setembro de 2000. As oito metas fixadas para serem atingidas até 2015, cujo nome oficial é “Objetivos de Desenvolvimento da ONU para o Milênio”, reconheciam, de maneira muito sintética, compromissos e linhas de ações de conferências anteriores realizadas principalmente nos anos de 1990 pelas Nações Unidas, as quais versaram sobre população, infância, meio ambiente, pobreza e direitos humanos. No entanto, segundo organizações que trabalham com direitos sexuais e reprodutivos, a ONU considerou esse tema como polêmico, podendo gerar rejeição da parte de alguns países-membros. Dessa forma, tais direitos acabaram por configurar uma das lacunas das metas fixadas pelo Projeto do Milênio e os assuntos relacionados à sexualidade da mulher foram referidos apenas por meio da abordagem de aspectos muito gerais. 54 5 Cultura e religião: impasses na efetivação dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres O termo “gênero” faz referência a um conceito elaborado pelas ciências sociais para analisar a construção sócio-histórica das identidades masculina e feminina. Segundo Maria Luiza Heilborn (1997), tal construção é mediada pela cultura: Gênero é um conceito das ciências sociais que se refere à construção social do sexo. Significa dizer que a palavra sexo designa agora no jargão da análise sociológica somente a caracterização anátomofisiológica dos seres humanos e da atividade sexual propriamente dita. O conceito de gênero existe, portanto, para distinguir a dimensão biológica da social. O raciocínio que apoia essa distinção baseia-se na ideia de que há machos e fêmeas na espécie humana, mas a qualidade de ser homem ou mulher é realizada pela cultura. (HEILBORN, 1997, p. 101) De acordo com Heilborn (1997), a antropologia, disciplina que estuda a diversidade cultural das sociedades, sustenta que, em se tratando de cultura, “a dimensão biológica da espécie humana fica bastante obscurecida na medida em que é próprio da condição desses seres a capacitação cultural como essencial à sobrevivência. É a cultura que humaniza a espécie, e o faz em sentidos muito diferentes.” (p. 102) Maria Gabriela Hita (1998) afirma que o binômio fundamental ao qual está relacionada a maioria dos percursos do movimento feminista é o de natureza/cultura. Ela serve de base para outras reflexões, como as de diferença/igualdade, subordinação/autonomia, ausência/presença, dentre outras. No âmbito das correntes feministas, aquela dita culturalista sustenta que as diferenças entre os sexos são apreendidas artificialmente, ou seja, culturalmente, não se tratando de diferenças naturais. Heilborn (1997) salienta que várias linhas interpretativas sobre a problemática do gênero explicam que a origem das desigualdades neste âmbito advém da apropriação da fecundidade feminina pelo sexo masculino. Em muitos sistemas culturais, a distribuição de tarefas entre os sexos é 55 entendida como uma extensão das diferenças anatômicas/procriativas dos mesmos. Dessa forma, cabe ao sexo feminino uma série de tarefas associadas à reprodução e ao cuidado com a prole. No Brasil, esta perspectiva se reflete no ordenamento jurídico, no qual as leis voltadas aos direitos sexuais e reprodutivos acabam por estabelecer mais deveres do que direitos, especificamente, às mulheres, tal como foi tratado no quarto capítulo. Como consequência, as políticas públicas sobre esses direitos ficaram, em sua maioria, limitadas a questões de saúde pública, voltadas ao processo reprodutivo, como pode ser observado com base nas políticas implantadas pela Coordenadoria Especial de Políticas para Mulheres de Fortaleza. Segundo Heilborn (1997), o termo “sexualidade”, entendido como “arranjo e construção de representações e atitudes acerca do que seria uma orientação erótica espontânea, traduzindo uma dimensão interna dos sujeitos, ordenada pelo desejo” (p. 104), ganhou tamanha força que precisou ser desconstruído, tornando-se particular a uma determinada cultura. A sexualidade tem, assim, uma significação cultural. Neste sentido, não existe sexualidade em si, apenas pode-se recorrer a tal explicação quando o contexto cultural assim o autorizar. Muitas vezes, o que sob um certo prisma identifica-se como sexualidade, é na verdade, em um dado grupo social recortado por outras instâncias que escapam às classificações exclusivas de uma dimensão interna dos sujeitos. Acopla-se a um campo maior de significação – família, parentesco e/ou moralidade – englobando uma possível instância individual. (HEILBORN, 1997, p. 104) Dessa forma, a atividade sexual se encontra articulada a uma visão de mundo, a qual pode vincular-se a noções como aquelas de amor, sentimento, intimidade, matrimônio e corpo, estas também culturalmente configuradas, sendo, por isso, mais adequado, em termos de pesquisa, pensar a sexualidade de uma forma relacional, e não substantiva ou essencialista. Denise Bernuzzi de Sant’Anna (2005) afirma que “a história é tão múltipla quanto os corpos que dela fazem parte.” (p. 122) Assim, o corpo é visto de diversas maneiras por diferentes culturas. Inúmeras foram aquelas que 56 relacionavam o corpo com o cosmos, refletindo assim uma ordem divina. Porém, no sistema moderno de pensamento, o corpo não é apenas pensado como aquilo que se é, mas como algo que se manipula, se controla ou que serve a este fim, ou seja, o corpo passa a ser pensado como máquina, como instrumento, dentre outras formas de representação. Dessa forma, é possível perceber que cada uma dessas concepções foi historicamente construída, conforme o horizonte interpretativo de cada cultura. Ao longo da história, como afirma Sant’Anna (2005), foram sendo criados vários mecanismos de controle dos corpos, como se, por meio dos corpos, fosse possível governar os grupos, as sociedades. O controle do corpo feminino foi, por muito tempo, uma responsabilidade familiar, sobretudo, masculina. “No entanto, não há tentativa de controle sem riscos de descontrole.” (SANT’ANNA, 2005, p. 129) Já antes da década de 1960, as mulheres começaram a se organizar e a adquirir o direito de utilizar o próprio corpo segundo seus desejos e necessidades. Porém, mesmo na atualidade, ainda são recorrentes as reivindicações de mulheres por mais liberdade no uso do próprio corpo, como aquelas evidenciadas nas Conferências de Políticas para Mulheres, por meio das propostas elaboradas acerca dos direitos sexuais e reprodutivos. É admitindo o gênero e a sexualidade como produtos da cultura que Rachel Viana afirma a influência cultural sobre a implantação de políticas públicas para mulheres no Brasil: Percebemos que ainda há um conservadorismo muito grande na sociedade brasileira em geral. Em alguns aspectos, aparentemente, pode parecer mais liberal, mas, no geral, a cultura brasileira é muito marcada pelo machismo, no sentido de como a sociedade vê as mulheres, como as relações entre mulheres são vistas, como elas são tratadas nas várias expressões dessa cultura. Agora, tem uma que é importante que nos atentemos: a cultura tem um papel muito importante no reforço dessa desigualdade entre homens e mulheres, dessa opressão, porque ela trabalha no campo do simbólico. Mas a opressão não tem um lado só simbólico. Ela é simbólica, mas ela tem um lado material muito forte, por isso, qualquer mudança ou qualquer perspectiva de transformação tem que ter muita clareza sobre isso, porque só uma mudança de valores não é suficiente. Existe uma estrutura muito maior, que passa pela divisão sexual do trabalho, que é reforçada pela cultura machista. Sendo assim, a cultura é um 57 obstáculo para o avanço dos direitos das mulheres, das políticas públicas e da construção de relações mais igualitárias entre mulheres e homens. (Depoimento de Raquel Viana, Coordenadora da Coordenadoria Especial de Políticas para Mulheres de Fortaleza, em novembro de 2012) Tomando como base o que foi explicitado até este momento, uma vez que a sexualidade, o gênero e a concepção de corpo são produtos particulares de cada cultura, é possível afirmar que o comportamento esperado de uma pessoa de um dado sexo e a conduta sexual dos indivíduos, de modo geral, são resultado de convenções sociais. Neste contexto, podemos nos perguntar: mas, afinal, o que é cultura? E qual seu peso na definição dessas noções? 5.1. CULTURA Por cultura, palavra que vem do latim colere, que significa “cultivar o solo”, “cuidar”, pode-se obter várias conceituações no âmbito das ciências humanas e sociais. Por sua vez, para o senso comum, a utilização do termo cultura faz menção à formação intelectual de determinado indivíduo, aos seus estudos, a sua educação, ao seu refinamento. Inclusive, um dos significados que encontramos para essa palavra no dicionário é “o conjunto dos conhecimentos adquiridos em determinado campo”. (FERREIRA, 1993, p. 156) Cultura, portanto, nesse sentido, é o saber acumulado pelas pessoas consideradas cultas. Por outro lado, cultura também faz referência às manifestações artísticas legitimadas por determinadas instâncias de poder, a exemplo das artes plásticas, da música, e do teatro. Pode-se afirmar que a Lei de Incentivo à Cultura (Lei 7.505/86) faz uso desse significado para desenvolver projetos voltados ao desenvolvimento artístico dos jovens.5 5 PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA. Lei 7.505, de 2 de julho de 1986. Disponível em: <<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L7505.htm>> Acesso em: 05 mar. 2013. 58 Esse termo é, também, utilizado para fazer referência às crenças e tradições de um povo, suas festas, ritos, sua maneira de vestir-se e seu próprio idioma. Segundo Roque de Barros Laraia (2008), a definição antropológica de cultura foi inicialmente formulada por Edward Burnett Tylor (1832-1917), considerado o pai do conceito moderno de cultura, o qual sintetizou as expressões kultur (termo germânico, que se referia aos aspectos espirituais de uma comunidade) e civilization (palavra francesa, ligada às realizações materiais de um povo), formando o vocábulo inglês culture. De acordo com Laraia (2008), a conceituação de cultura fornecida por Edward Tylor consistia em “um complexo que inclui conhecimentos, crenças, arte, moral, leis, costumes ou qualquer outra capacidade ou hábitos adquiridos pelo homem como membro de uma sociedade”. (p. 25) No entanto, é preciso lembrar que na época de publicação de seu livro Primitive Culture (1871), o qual traz, em seu primeiro capítulo, essa definição, a Europa recebia as influências da “Origem das Espécies”, de Charles Darwin. Este antropólogo britânico foi, por sinal, o responsável pelo lançamento das bases do chamado evolucionismo cultural de Lewis Morgan, o qual conferia à cultura um caráter de fenômeno natural. A escala evolutiva de Tylor classificava hierarquicamente as sociedades humanas, dando vantagem às culturas europeias em detrimento de outras, ao caracterizar-se como um processo etnocêntrico e, também, discriminatório. Tal perspectiva converteu-se em alvo de críticas. Porém, suas constatações não poderiam ser diferentes, levando em conta o momento histórico em que se encontrava, o qual influenciou fortemente as suas ideias. Fazendo uso de um conceito mais amplo de cultura, pode-se dizer que ela abrange tudo aquilo que é produzido pelo ser humano, ou seja, tudo aquilo que não é natureza. E o fato de não ser natural, significa, por sua vez, que essa produção dependeu do desenvolvimento técnico e intelectual humano para ser efetivada, não decorrendo apenas de fatores biológicos ou 59 geográficos, como foi pensado anteriormente. Neste contexto, Laraia (2008) afirma: As diferenças existentes entre os homens, portanto, não podem ser explicadas em termos das limitações que lhe são impostas pelo seu aparato biológico ou pelo meio ambiente. A grande qualidade da espécie humana foi a de romper com suas próprias limitações: um animal frágil, provido de insignificante força física, dominou toda a natureza e se transformou no mais temível dos predadores. Sem asas, dominou os ares; sem guelras ou membranas próprias, conquistou os mares. Tudo isso porque difere dos outros animais por ser o único que possui cultura. (LARAIA, 2008, p. 24) Laraia (2008) parece, assim, compartilhar das ideias do antropólogo americano Alfred Kroeber, autor do artigo “O superorgânico”. Kroeber afirma que o homem, por estar acima de suas limitações orgânicas e graças à cultura, distanciou-se do mundo animal. E, muito embora toda a humanidade necessite exercer funções biológicas para sobreviver, a maneira de satisfazê-las irá variar de acordo com a cultura de cada grupo. Neste contexto, Bronislaw Malinowski (1975) afirmava que a satisfação das necessidades orgânicas dos seres humanos era apenas parte das condições impostas à cultura: Em primeiro lugar, é claro que a satisfação das necessidades orgânicas ou básicas do homem e da raça é um conjunto mínimo de condições impostas a cada cultura. Os problemas apresentados pelas necessidades nutritivas, reprodutivas e higiênicas do homem devem ser resolvidos. Eles são solucionados pela construção de um novo ambiente, secundário ou artificial. Esse ambiente, que não é mais nem menos do que a cultura propriamente dita, tem de ser permanentemente reproduzido, mantido e administrado. Isso cria o que podia ser descrito, no sentido mais amplo da expressão, como um novo padrão de vida, que depende do nível cultural da comunidade, do ambiente e da eficiência do grupo. (MALINOWSKI, 1975, p. 43) Mais recentemente, em 18 de julho de 1950, apenas poucos anos após o fim da Segunda Guerra Mundial, uma comissão internacional de acadêmicos, formada por antropólogos, geneticistas, biólogos, dentre outros especialistas, reuniu-se e elaborou a Declaração sobre Raça da UNESCO. Esta foi redigida em um período no qual o mundo ainda se recuperava da catástrofe da guerra e do terror causado pelo governo nazista. Em seu artigo 60 10, a Declaração sobre Raça assume uma posição explicitamente contrária à perspectiva do determinismo biológico, afirmando: 10- Os dados científicos de que dispomos no momento presente não corroboram a teoria segundo a qual as diferenças genéticas hereditárias constituiriam um fator de importância primordial entre as causas das diferenças entre as culturas e as obras da civilização dos diversos povos ou grupos étnicos. Ao contrário, ensinam eles que tais diferenças se explicam antes de tudo pela história cultural de cada grupo. Os fatores que desempenharam um papel preponderante na evolução intelectual do homem são a sua faculdade de aprender e a sua plasticidade. Essa dupla aptidão é o apanágio de todos os seres humanos. Constitui, de fato, um dos caracteres específicos do Homo 6 sapiens. (Tradução livre da autora) Assim, fica clara a ideia de que cultura é fruto de um processo social e, antes de tudo, uma construção histórica. Cada cultura é, dessa forma, consequência da história de cada sociedade. José Luis dos Santos (1994) afirma: Cultura é uma dimensão do processo social, da vida de uma sociedade. Não diz respeito apenas a um conjunto de práticas e concepções, como, por exemplo, se poderia dizer da arte. Não é apenas uma parte da vida social como, por exemplo, se poderia falar da religião. Não se pode dizer que cultura seja algo independente da vida social, algo que nada tenha a ver com a realidade onde existe. Entendida dessa forma, cultura diz respeito a todos os aspectos da vida social, e não se pode dizer que ela existe em alguns contextos e não em outros. (SANTOS, 1994, p. 44 – 45) Por se tratar de um processo social, a cultura não pode ser pensada como algo imutável. Ela é fundamentalmente dinâmica. Segundo Malinowski (1975), “um padrão de vida cultural, contudo, significa que novas necessidades se impõem e novos imperativos ou determinantes são inculcados ao comportamento humano.” (p. 43) Sendo assim, as tradições hoje observadas nas mais diversas sociedades podem se transformar, pois a mudança está presente na história de todas elas, bem como diferentes formas de interpretá-la. O estudo da cultura, então, deve levar em conta as transformações constantes pelas quais passam as sociedades, tendo o tempo como elemento essencial em suas análises. 6 UNESCO. The Race Question. Disponível em: << http://unesdoc.unesco.org/images/0012/001282/128291eo.pdf >>. Acesso em: 05 mar. 2013 61 Vale ressaltar que, uma vez que o sistema cultural se encontra em constante tensão entre permanência e mudança, é importante que haja o entendimento dessa dinâmica, a fim de que o pesquisador possa tentar preservar sua postura crítica frente às diversas formas assumidas pelo pensamento ortodoxo. Da mesma forma, compreender e respeitar as diferenças entre os povos de culturas distintas é um desafio permanente que acompanha todo esforço de apreensão de fenômenos culturais. Admitindo o gênero como um produto da cultura, Alicia H. Puleo (2004) afirma a existência de discursos de legitimação sexual ou ideologia sexual. Segundo a autora, esses discursos justificam a hierarquização do masculino e do feminino em cada sociedade. Consistem em sistemas de crenças que especificam as características de cada sexo, a partir daí, determinando os direitos, as atividades e as condutas de cada um deles. De modo amplo, é possível afirmar provisoriamente que a religião é um dentre os vários campos de ação social que produz e difunde este tipo de discurso. 5.2. UMA BREVE ANÁLISE SOCIOLÓGICA DA RELIGIÃO Tendo em vista as inúmeras diferenças culturais, as sociedades reúnem, também, uma infinidade de manifestações religiosas, que se apresentam como parte do fenômeno cultural, segundo a tradição histórica própria a cada configuração social particular. No processo da formação cultural, a religião tem desempenhado um papel preponderante na produção e estabilização de laços sociais. Dada a sua importância, faz-se necessário abrir um espaço para que seja feita a análise da noção de religião. A palavra portuguesa religião provém do latim religio, que significa “ligar novamente”, “religar”. Pode-se dizer, de maneira a simplificar sua formulação primordial, que a religião é um conjunto de crenças, rituais e códigos morais, relacionados a tudo aquilo que o homem associa às dimensões do divino e sobrenatural. Em toda a história da humanidade a visão do mundo e a religião estiveram intimamente unidas, porque ambas são expressões do sistema ideológico – produtos da inteligência humana e preocupação emocional: expressões do fermento da mente humana gerador da 62 cultura. A visão do mundo, [...] dá a cada povo sua “posição” diante do universo. A religião define uma parte desta experiência através dos espíritos e dos deuses que ela cria; reveste-os com seus atributos peculiares de comportamento e dá aos indivíduos as linhas mestras de seu comportamento [...] (HOEBEL; FOST, 1981, p. 351) Émile Durkheim realizou uma análise sociológica da religião, encontrando na mesma o elo que faz a sociedade se manter reunida. Para ele, estudar a religião é descortinar as condições de formação dos ideais morais da sociedade. Em sua obra “Formas elementares da vida religiosa”, de 1912, Durkheim (2000) é possível encontrar o aparato teórico de suas perspectivas sobre a religião. Nessa obra, o autor inicia suas explanações afirmando que, a fim de investigar os fenômenos religiosos, faz-se necessário chegar a uma definição de religião, o que, segundo ele, se dá por meio da indicação de certo número de sinais exteriores facilmente perceptíveis que permitam reconhecer os fenômenos religiosos por toda parte onde se encontrem e que impeçam que sejam confundidos com outros. Antes de começar, buscando uma definição de caráter coletivo para religião, Durkheim (2000) lembra a necessidade imprescindível de nos desfazermos de nossas ideias pré-concebidas sobre o assunto – assim como ele preconizou em outra obra “As regras do método sociológico”. Como essas pré-noções foram formadas sem métodos, seguindo os acasos e as circunstâncias da vida do pesquisador, não merecem nenhum crédito, devendo ser afastadas dos nossos exames. Primeiramente, o autor salienta que, na busca por uma definição de religião, devemos apreender o que as religiões podem ter em comum. Uma noção que geralmente é considerada como característica de tudo que é religioso é aquela de “sobrenatural”, ou seja, uma crença na onipotência de alguma coisa que supera a inteligência. Os homens teriam, nesse contexto, se resignado com ideias tão perturbadoras para a nossa razão moderna, devido a sua incapacidade para encontrar outras que fossem mais racionais. No entanto, o autor afirma que o 63 fato de as forças religiosas serem pensadas, muitas vezes, sob a forma de entidades espirituais, de vontades conscientes, não é prova de irracionalidade. Segundo Durkheim (2000), a ideia de “mistério” nada tem de original. Ela não foi dada ao homem. Foi o homem que a elaborou. Não se pode, pois, fazer dela a característica dos fenômenos religiosos. Outra ideia pela qual se tentou, muitas vezes, definir a religião é a de “divindade”, de forma que a religião seria a determinação da vida humana pelo sentimento de um laço que une o espírito humano ao espírito misterioso. Porém, existem grandes religiões nas quais a ideia de deuses e espíritos está ausente. É o caso do budismo e do jainismo. Nem todas as virtudes religiosas emanam, assim, de personalidades divinas. A religião ultrapassa a crença em deuses ou espíritos e, por conseguinte, não pode definir-se exclusivamente em função disto. Durkheim (2000) afirma que os fenômenos religiosos se ordenam naturalmente em duas categorias fundamentais: as crenças e os ritos. As crenças são os estados de opinião, consistem em representações. Os ritos consistem nos modos de ação determinados pelas crenças. Todas as crenças religiosas conhecidas, sejam elas simples ou complexas, apresentariam, assim, um mesmo caráter comum: supõem uma classificação de coisas, reais ou ideais, que os homens representam, em duas classes ou em dois gêneros opostos, traduzidos pelas palavras “profano” e “sagrado”. O profano e o sagrado não são concebidos apenas como dois mundos separados, mas como hostis e rivais um ao outro, só podendo pertencer plenamente a um com a condição de se ter inteiramente abandonado o outro, ou seja, para viver o sagrado, o homem deve ter deixado totalmente o mundo profano. Eis, então, o primeiro critério para se definir as crenças religiosas: a divisão bipartida do universo conhecido em dois gêneros que compreendem tudo que existe, mas que se excluem radicalmente. Essa definição, no entanto, ainda não está completa, pois se faz necessário 64 distinguir a “magia” da religião, uma vez que esta também é constituída por crenças e ritos. A diferença entre magia e religião reside na “igreja”. Não encontramos, na história, religiões sem igrejas. No entanto, não existe a igreja “mágica”. A religião é inseparável da igreja. Sob este aspecto, há entre a magia e a religião uma diferença essencial. Finalmente, a partir do que foi evidenciado, Durkheim (2000) chega a uma definição de religião, como sendo “um sistema solidário de crenças seguintes e de práticas relativas a coisas sagradas, ou seja, separadas, proibidas; crenças e práticas que unem na mesma comunidade moral, chamada igreja, todos os que a ela aderem.” (p. 79) Na análise da sociedade capitalista realizada por Marx e Engels, a alienação, a dominação e o conflito são elementos centrais. Segundo HervieuLéger e Willaime (2009), essas mesmas noções estruturam a abordagem que marxistas, posteriormente, fizeram da religião. É preciso considerar que o discurso marxista sobre a religião não consiste numa análise sociológica, mas numa crítica de cunho filosófico e político, na medida em que Marx via a religião como um meio empregado pela classe dominante para legitimar seu poder e impedir qualquer revolta dos dominados. Por isso, designava a religião de “ópio do povo”. Desse modo, Michael Löwy (1998) afirma que a célebre frase “a religião é o ópio do povo” representa a essência da concepção marxista de religião, no sentido de que a consciência e a força do homem seriam contidas por ela. Marx defendia, assim, a liberdade do homem em relação à obsessão religiosa. No entanto, segundo o autor, essa formulação não teria um caráter exclusivamente marxista, visto que pode ser encontrada, antes de Marx, em Kant, Herder, Feuerbach, Bruno Bauer, dentre outros. Esses outros autores não teriam, porém, feito referência às classes sociais e teriam desenvolvido concepções a-históricas de religião. Marx, por outro lado, formulou suas críticas à religião, entendendo-a como realidade social e histórica. 65 Por sua vez, Hervieu-Léger e Willaime (2009) afirmam que a crítica filosófica e política empreendida por Marx, que via na religião a alienação do homem, tinha sua justificativa no momento histórico vivido por ele. Diante da revolução industrial e da formação da classe operária, as Igrejas teriam optado mais pelo conservadorismo sociopolítico do que pelos interesses dos operários, que haviam sido assumidos pelo movimento socialista. Da mesma forma que Marx, Max Weber (1982) considerou a religião como sendo profundamente histórica, revestindo-se de formas extremamente diversas conforme as épocas e civilizações. Como iremos ver facilmente, as esferas individuais de valor estão preparadas com uma coerência racional que raramente se encontra na realidade. Mas podem ter essa aparência na realidade e sob formas historicamente importantes, e realmente a têm. Tais construções possibilitam determinar o local tipológico de um fenômeno histórico. Permitem-nos ver se, em traços particulares ou em seu caráter total, os fenômenos se aproximam de uma de nossas construções: determinar o grau de aproximação do fenômeno histórico e o tipo construído teoricamente. (WEBER, 1982, p. 372) Esse autor definiu o fato religioso como uma dimensão ligada a uma condição humana confrontada com a irracionalidade do mundo. Neste contexto, segundo Hervieu-Léger e Willaime (2009), umas das contribuições de Weber foi a de evidenciar a existência de diferentes tipos de racionalidade, e que a própria racionalização da religião desempenhou um papel essencial na emergência da modernidade. Em sua obra “Ensaios de Sociologia”, Weber (1982) afirmou que, acima de tudo, um ensaio sobre sociologia da religião visa contribuir para a tipologia e a sociologia do racionalismo. As interpretações religiosas do mundo e a ética das religiões criadas pelos intelectuais e que pretendem ser racionais estiveram muito sujeitas ao imperativo da coerência. O efeito da razão, especialmente de uma dedução teleológica de postulados práticos, é perceptível sob certos aspectos, e com frequência muito claramente, entre todas as éticas religiosas. (WEBER, 1982, p. 372) Segundo Hervieu-Léger e Willaime (2009), um dos grandes vetores da racionalização da religião foi “eticização” da mesma, ou seja, a passagem de uma religião mágica para uma religião ética. 66 Na visão weberiana, a magia consistiria em acreditar na possibilidade de invocar uma figura divina por meios técnicos, a fim de obter uma determinada coisa. Segundo Weber (1982), as religiões mágicas, este “mundo extremamente irracional da magia universal”, serviu de precursor das religiões éticas e de uma conduta de vida racional. O mágico foi precursor do profeta, do profeta e salvador tanto exemplares como emissários. Em geral, o profeta e salvador legitimaram-se através da posse de um carisma mágico. Para eles, porém, isto foi apenas um meio de garantir o reconhecimento e conseguir adeptos para significação exemplar, a missão, da qualidade de salvador de suas personalidades. A substância da profecia do mandamento do salvador é dirigido o modo de vida para a busca de um valor sagrado. Assim compreendida, a profecia ou mandamento significa, pelo menos relativamente, a sistematização e racionalização do modo de vida, seja em pontos particulares ou no todo. (WEBER, 1982, p. 375) Antônio Flávio Pierucci (2006) afirma que, segundo Weber, a “eticização” da religião, com o surgimento das “religiões de salvação”, retirou pessoas de suas rotinas comunitárias estabelecidas por tramas de comunicação e subordinação, e constituiu uma nova comunidade, onde os laços estabelecidos passaram a ser puramente religiosos. Sempre que as profecias de salvação criaram comunidades religiosas, a primeira força com a qual entraram em conflito foi o clã natural, que temeu a sua desvalorização pela profecia. Os que não podem ser hostis aos membros da casa, ao pai e á mãe, não podem ser discípulos de Jesus. A profecia criou uma nova comunidade social, particularmente quando ela se tornou uma religião soteriológica de congregações. Com isso, as relações do clã e do matrimônio foram, pelo menos relativamente, desvalorizadas. Os laços mágicos e a exclusividade do clã foram atingidos (...) (WEBER, 1982, p. 377) Neste sentido, Pierucci (2006) afirma que a religião de tipo congregacional, não estando constituída de antemão por laços extra-religiosos, constitui uma associação exclusivamente religiosa, formada por indivíduos desmembrados de outros coletivos. Segundo o autor, para Weber, a religião da salvação consiste numa forma religiosa que tende a predominar sobre as demais, funcionando como um dispositivo de desligamento dos indivíduos do contexto cultural de origem. 67 As proposições de Weber e Durkheim tiveram grande importância no desenvolvimento de uma sociologia da modernidade religiosa, pois elas alimentaram diversas reflexões sobre as “religiões seculares”. A teoria da secularização dominou, durante muito tempo, as reflexões sobre o futuro religioso das sociedades ocidentais. Essa teoria pode ser entendida como um processo pelo qual a religião passa a não mais consistir em um aspecto cultural agregador dentro da sociedade, deixando de fornecer aos indivíduos as referências, normas e valores que lhes dão sentido à vida e guiam suas experiências. No entanto, Hervieu-Léger (2008) afirma que a “secularização” das sociedades modernas não se resume à perda de influência dos grandes sistemas religiosos. Este processo também engloba uma recomposição das representações religiosas que permitem que a sociedade pense a si mesma de forma autônoma. Neste contexto, as “religiões seculares” consistem em equivalentes funcionais das religiões tradicionais, podendo derivar da política, da medicina, da sexualidade, da arte, ou de qualquer outra dimensão da vida social. Dessa forma, a peça-mestra da concepção religiosa, na atualidade, é a existência de uma fé pessoal. Nas sociedades modernas, a crença e a participação religiosa são assuntos particulares que dependem, sobretudo, da consciência individual, ao invés de uma instituição religiosa. Segundo Paula Montero (2006), a força secularizadora da ética protestante, conforme formulação de Weber, teria promovido essa forma subjetiva de experiência religiosa. A autora afirma que, para Weber, as religiões éticas, caracterizadas pela sua concepção abstrata da salvação, teriam sido responsáveis pela racionalização de um mundo sem Deus. A reforma protestante teria aprofundado o processo de diferenciação das esferas política, econômica e científica em relação à religiosa, o que teria retirado a religião do espaço público, fazendo dela um assunto privado. Segundo Hervieu-Léger (2008), nas sociedades ocidentais, as instituições religiosas continuam a perder sua capacidade de fomentar social e culturalmente crenças e práticas, e, assim, o número de fiéis decresce 68 progressivamente. No Brasil, por exemplo, de acordo com o Censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), referente ao ano de 2010, embora o catolicismo continue como religião majoritária, o número de fiéis segue a tendência de redução observada nas duas décadas anteriores, enquanto houve aumento no número de evangélicos (passou de 15.4% em 2000 para 22.2% em 2010), espíritas e de indivíduos que se dizem sem religião.7 No entanto, ao mesmo tempo em que se perde a credibilidade nos sistemas religiosos, dá-se origem a novas modalidades de crença. Essa é a essência da secularização. (...) é necessário ter entendido que a secularização não é, acima de tudo, a perda da religião no mundo moderno. É o conjunto dos processos de reconfiguração das crenças que se produzem em uma sociedade onde o motor é a não satisfação das expectativas que ela suscita, e onde a condição cotidiana é a incerteza ligada à busca interminável de meios de satisfazê-las. (HERVIEU-LÉGER, 2008, p. 41) O que acontece, atualmente, nas sociedades ocidentais, é o que Hervieu-Léger (2008) chama de “bricolagem” das crenças. Os indivíduos, fazendo valer sua liberdade de escolha, tomam para si crenças e práticas que lhes convêm. As mesmas são remanejadas e livremente combinadas, tomando emprestado elementos de diferentes religiões ou temas de caráter místico e esotérico. Contrariamente ao pensamento de Montero (2006) o qual afirma que a religião teria se tornado uma questão privada, sendo excluída da esfera do Estado, ressalto que, ao mesmo tempo em que vivenciamos a forte relação entre religiosidade e individualismo moderno, pode-se observar a intensa participação de representantes religiosos no cenário público das sociedades ocidentais, a exemplo das passeatas contra o casamento gay e a adoção de crianças por casais homossexuais na França, fenômenos constantemente divulgados pela imprensa.8 Isso abre caminho para novas reflexões acerca das 7 INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Censo 2010: número de católicos cai e aumenta o de evangélicos, espíritas e sem religião. Disponível em: << http://www.ibge.gov.br/home/presidencia/noticias/noticia_visualiza.php?id_noticia=2170>> Acesso em: 05 mar. 2013. 8 BBC BRASIL. Passeata contra casamento gay vira desafio para Presidente francês. Disponível em: <<http://www.bbc.co.uk/portuguese/videos_e_fotos/2013/01/130114_casamento_gay_franca_ mm.shtml>> Acesso em: 05 mar. 2013. 69 relações entre religião e política de forma bem ampla, bem como entre as instituições religiosas e o Estado. 5.3. A IGREJA CATÓLICA E OS DIREITOS SEXUAIS E REPRODUTIVOS DAS MULHERES O catolicismo apostólico romano foi escolhido como cerne do campo empírico desta pesquisa, por se tratar do culto religioso mais representativo no Brasil. O estado do Ceará tem a maioria de sua população formada por pessoas que se autodesignam católicas e a cidade de Fortaleza foi considerada a 2ª capital mais católica do Brasil, segundo pesquisa desenvolvida pela Fundação Getúlio Vargas, no ano de 2011.9 Este tópico será desenvolvido com base em entrevista realizada com Monsenhor Manfredo Ramos, professor da Faculdade Católica de Fortaleza, na qual ele respondeu a questionamentos acerca das concepções da Igreja Católica a respeito da sexualidade e das ideologias de gênero, bem como da visão da mesma acerca dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres. Segundo Tannahill (1983), no que concerne à história do sexo, diversas sociedades ocidentais condenaram, com variáveis graus de severidade, o adultério (geralmente), a contracepção (raramente), o aborto (às vezes), a homossexualidade (às vezes), o infanticídio (raramente) e a zoofilia (às vezes). A Igreja Católica, no entanto, prescreveu todos esses atos. Ela afirmava, ainda, que o intercurso conjugal não deveria ser realizado, a menos que o objetivo fosse ter filhos. Dessa forma, homens e mulheres possuidores de apetites sexuais normais tornaram-se obcecados pela culpa, pois para a Igreja, o sexo era o maior dos pecados. Ao ser questionado sobre como a Igreja Católica trata as questões relativas à sexualidade, Monsenhor Manfredo explica que, atualmente, depois 9 JORNAL O POVO. Fortaleza é a 2ª capital mais católica do Brasil. Disponível em: << http://www.cps.fgv.br/cps/bd/clippings/nc1511.pdf>> Acesso em: 05. mar. 2013. 70 do Concílio Vaticano II10 (1962- 1965), o paradigma da problemática da sexualidade, matrimônio, família, passou por uma transformação radical. Podese falar de um paradigma “naturalista” antes do Concílio, com centro na procriação e, hoje, predominaria outro, o qual pode ser definido como “personalista”, cuja base se radicaria no sentimento amoroso. O Monsenhor afirma, ainda, que, no âmbito da Igreja Católica, há um núcleo doutrinal, que é estável, fundante, e há uma roupagem linguísticocultural que varia de acordo com a época. Para ele, isso é natural, pois a Igreja é feita de gente e tem uma história, e na luz da revelação e da fé, chamada de sensus fidelium, os fiéis da fé cristã, têm quase que uma intuição sobre os seus comportamentos e isso tem uma encarnação no tempo, nos diferentes momentos históricos. O essencial é entender um pouco melhor qual seja, na compreensão da Igreja, aquilo que é chamado de êthos. Segundo Monsenhor Manfredo, êthos é uma palavra grega que tem um significado um tanto amplo. Para ele, é importante distinguir-se o êthos do éthos. O éthos é o costume de um povo, enquanto que o êthos é algo mais profundo. Em sentido literal, êthos significa “a moradia”, “a toca”, “o lugar habitual”. Por extensão, poderíamos dizer que êthos é o estado de consciência e de ação no qual o homem se situa na vida, “sente o chão embaixo dos pés, o teto na cabeça, como um animal na sua toca, seu habitat”. Assim, o indivíduo seria capaz, a partir da compreensão desse êthos, que é um conceito moral, de escalonar os mais diversos valores morais. Dessa forma, há um valor fundante, que corresponde ao êthos, a partir do qual o homem hierarquiza e relativiza os demais valores, dirigindo, assim, o seu comportamento. Para a Igreja, quando falta isso, o homem perde o senso de direção e essa situação caracteriza a crise de hoje. Para a comunidade católica, esta não é uma crise de ausência de valores, e sim uma crise de falta de visão e compreensão do valor principal. Então, ao longo da história, o povo cristão foi tentando se definir e se nortear a partir de alguns pilares: com auxílio do magistério, com a 10 O Concílio Vaticano II, realizado entre os anos de 1962 e 1965, reuniu autoridades eclesiásticas de todo o planeta, que discutiram e regulamentaram vários temas da Igreja Católica. O objetivo do Concílio era promover uma atualização da Igreja. 71 iluminação do Espírito Santo e a revelação da palavra de Deus. Neste sentido, definiu-se sexualidade cristã com base no matrimônio, como instituição, e na família. Na concepção cristã, sexualidade, matrimônio e família estão ligadas. Daí um primeiro elemento para se entender a diferença entre a concepção ética cristã do matrimônio, da sexualidade e da família e a concepção ética civil leiga natural, por assim dizer. Isso significa diferenciar a concepção da Igreja das normas jurídicas, diversificadas ao longo da história por diferentes povos e culturas. O Monsenhor explica que, para a Igreja, um Direito deve estar sempre baseado numa ética. Mas, segundo ele, sem dúvidas, existem muitas morais filosóficas no mundo, não só a ética cristã. É possível constatar, filosoficamente, um pluralismo de éticas, como a ética hedonista (do prazer), ética racional (da razão), ética da liberdade, ética do sentimento, ética pragmática, ética cósmica (da ordem do cosmos), dentre tantas outras. É sabido que, na tradição judaico-cristã, o relato da expulsão de Adão e Eva do Paraíso foi, por muito tempo, utilizado para justificar uma visão da mulher como ser imperfeito, disseminadora do pecado, chegando a ser depreciada por vários teólogos da Igreja Católica, tais como Tomás de Aquino, que afirmava: A mulher está em sujeição por causa das leis da natureza, mas é uma escrava somente pelas leis da circunstância (...) A mulher está submetida ao homem pela fraqueza de seu espírito e de seu corpo (...) é um ser incompleto, um tipo de homem imperfeito (...) A mulher é defeituosa e bastarda, pois o princípio ativo da semente masculina tende à produção de homens gerados a sua perfeita semelhança. A 11 geração de uma mulher resulta de defeitos no princípio ativo. Tannahill (1983) afirma que tais conclusões dos padres da Igreja, com o tempo, tornaram-se inatacáveis. Suas deliberações, na maioria das vezes, provinham de pontos de vista altamente pessoais e preconceituosos sobre a vida e a sociedade. Muito embora a concepção de pecado difundida por homens como São Jerônimo, São Tomás de Aquino e Santo Agostinho não provenha imediatamente dos ensinamentos de Jesus Cristo ou das Tábuas 11 TOMÁS DE AQUINO. Summa Theologica, Q92, art. 1. Disponível http://www.newadvent.org/summa/1092.htm>> Acesso em: 05 mar. 2013. em: << 72 entregues no Monte Sinai, mas sim das antigas vicissitudes sexuais de um punhado de homens da Roma Imperial, esta ganhou aura de verdade, alcançando status absoluto. Discursos como o de Tomás de Aquino servem para justificar a opressão do sexo feminino pelo masculino, funcionando como uma ferramenta de hierarquização do gênero. No entanto, Monsenhor Manfredo afirma que este pensamento, correspondente ao próprio jansenismo12 e à época vitoriana, embora tenha sido real e preponderante como diretriz de práticas religiosas vinculadas ao catolicismo, está sendo superado. Segundo ele, na Igreja, passou-se de uma moral centrada no pecado para uma moral centrada na virtude, que é algo muito mais positivo, e é a posição tradicional da Igreja primitiva. Dessa forma, houve uma mudança considerável na maneira da sexualidade ser pensada pela Igreja Católica. Segundo o Monsenhor, “a reflexão teológica não teologiza sobre o ar.” Ela teologiza, em primeiro lugar, a partir de uma filosofia. A filosofia é, em qualquer tempo, o índice mais alto da ação e do pensamento do povo, de modo que a linguagem teológica se adéqua ao nível da linguagem filosófica e, por extensão, a sua formulação científica correspondente. Segundo ele, ninguém filosofa partindo de casos metafísicos, abstratos, vazios. Filosofa-se a partir de dados concretos, científicos. Assim como, ninguém faz ciência simplesmente a partir de dados brutos. No que concerne à teologia, Monsenhor Manfredo afirma que nos encontramos no momento da teologia da corporeidade, da sexualidade, do valor do homem e da mulher e das suas dimensões físicas e biológicas. No entanto, a seu ver, existe quase uma exacerbação da forma estética, externa do corpo na atualidade, e essa não corresponderia à essência mais profunda do homem. A beleza e a “santidade” seriam, antes, atributos internos, espirituais. Não se limitariam, portanto, à forma física. Na teologia cristã, a beleza interior do homem é a sua semelhança com Deus. Ele lembra que, no 12 O Jansenismo foi um movimento de caráter dogmático, moral e disciplinar, que se desenvolveu em reação a certas doutrinas e práticas da Igreja Católica, nos séculos XVII e XVIII. Leva esse nome por ter origem nas ideias do Bispo Cornelius Jansen. 73 Gênesis, lê-se “façamos o homem a nossa imagem, conforme a nossa semelhança” e Deus, assim, teria criado o ser humano. Ainda segundo o Monsenhor, Deus disse ao homem e à mulher “crescei e multiplicai-vos, e enchei a terra, e sujeitai-a; e dominai sobre os peixes do mar e sobre as aves dos céus e sobre todo animal que se move sobre a terra” (Gênesis). Para ele, essa é a vocação primordial do homem, que é uma vocação dual. Deus achou que não era bom o homem estar só, então fez uma auxiliar semelhante a ele, a mulher. Ela teria sido criada a partir da costela do homem, o que significa, biblicamente, a igualdade e dignidade como pessoa. “Por isso deixará o homem pai e mãe, e unir-se-á a sua mulher e serão os dois uma só carne” (Marcos 10). Segundo o entrevistado, é justamente nesta palavra que se encontra a base para toda a teologia da sexualidade e do matrimônio cristão. Monsenhor Manfredo explica que Cristo não é uma doutrina, é uma pessoa de carne e osso, mas não uma pessoa qualquer. Isto porque Jesus é a segunda pessoa da Santíssima Trindade (Pai, Filho e Espírito Santo), que se encarnaria na plenitude do tempo, no seio de Maria, para tornar-se homem, igual a todos os homens, exceto no pecado. Esse casamento, por assim dizer, entre Cristo e a humanidade, segundo a perspectiva católica, sintetiza e representa o mistério mais profundo do casamento entre homem e mulher. Quando Deus disse “façamos o homem a nossa imagem e semelhança” (Gênesis), há nesta passagem, para o Monsenhor, uma referência à sexualidade do homem e da mulher, afirmada como elemento dual. Ela consiste, assim, em uma referência à instituição do matrimônio e, consequentemente, à família. As modalidades destas famílias na história são infinitas. Mas o fundamental é a essência desse matrimônio, que para os cristãos se tem, naturalmente, desde a Criação, como uno, indissolúvel, fiel, fecundo e santo. O Monsenhor afirma que essas são características naturais do matrimônio criacional. O matrimônio cristão entre homem e mulher estaria, então, inserido num matrimônio maior e mais misterioso, entre o filho de Deus com a humanidade, e do Cristo com a sua Igreja. 74 Monsenhor Manfredo ressalta, ainda, que hoje, a Igreja se preocupa, no âmbito da sexualidade, do matrimônio e da família, com o fato de se fazer do outro, do parceiro, apenas um objeto de prazer. Pois “corre-se o risco de se fazer dele ou dela um objeto de prazer, que depois de ‘enjoar’ tirase da ‘prateleira’ e procura-se outro no supermercado.” Para a Igreja, a pessoa deve ser o valor principal de qualquer relacionamento e, sobretudo, no amor conjugal. O matrimônio cristão, por excelência, seria, assim, interpretado como a união mais alta que pode haver, pois não consistiria apenas na união de corpos, mas em uma união de sentimentos, de destino, de abertura, de pensamento, na unidade, na indissolubilidade, no respeito, na dignidade da pessoa e na possibilidade de uma continuidade que transcenderia o casal, atingindo um terceiro elemento, que é o filho. Na teologia cristã, a sexualidade seria, então, pensada em função do matrimônio, que, por sua vez, se vincularia à ideia de fecundidade, a não ser que algum fator acidental a impeça. Um casal pode não ter filhos e, mesmo assim, viver sua paternidade e maternidade espirituais dentro da Igreja. O Monsenhor afirmou que isso deveria ser mais bem explicitado na formação de noivos, desenvolvida pelos catequistas e pelos próprios vigários durante a preparação para o matrimônio. Em sua opinião, a formação é muito limitada, uma vez que a religião não resiste às objeções do mundo de hoje, que é um mundo plural, racionalista, hedonista, utilitarista, consumista, e isso geraria sérias oposições à estabilidade do casamento cristão, levando-o a uma banalização da sexualidade. Com relação aos direitos sexuais e reprodutivos, Monsenhor Manfredo afirma que a Igreja os apoia, a partir do reconhecimento da dignidade da pessoa humana. No entanto, ele diz, fazendo uso de um caso concreto, o das feministas francesas que fazem manifestações gritando “o corpo é nosso”, que isso não é aceitável para a Igreja. Ninguém tem privativamente, na perspectiva da fé cristã, como membro de uma sociedade, o direito sobre seu próprio corpo. Ele lembra que, neste sentido, o próprio matrimônio civil, para o bem da sociedade, é regulado por leis civis (você não pode casar sem antes divorciar, por exemplo, senão você será bígamo, e isso configura crime). Já na 75 Igreja, a unidade e a indissolubilidade do matrimônio, a obrigação “natural” de gerar filhos, não fica “ao bel talante de qualquer um.” Segundo o Monsenhor, é necessário analisar quais são as circunstâncias pelas quais marido e mulher, diante de Deus e da Igreja, determinam, por exemplo, quantos filhos vão ter. Isso envolve as condições econômicas, sociais, educacionais, de saúde, de trabalho em que vivem essas pessoas, e as condições da própria Igreja, ou seja, são muitas questões a serem ponderadas. O Monsenhor faz, ainda, uma crítica acerca da influência do Estado no processo reprodutivo dos indivíduos: Não é Igreja que decide quantos filhos um casal vai ter. A Igreja não manda os casais terem dezenas de filhos. O que Igreja faz é fornecer uma orientação no sentido de que a paternidade e a maternidade sejam responsáveis. O Estado, muito menos, tem o direito de manipular e de fazer esterilizações e distribuir preservativos e pílulas anticoncepcionais sem critério, como tem feito. (Depoimento do Monsenhor Manfredo Ramos, professor da Faculdade Católica de Fortaleza, em janeiro de 2013) Segundo o Monsenhor, a educação sexual fornecida pela Igreja é mais completa do que os ensinamentos transmitidos aos alunos nas escolas: Eu já tive ocasião de folhear esses livros de educação sexual das escolas...tem lá a fisiologia feminina e masculina do aparelho genital, como é que gera...depois, ‘evite uma gestação indesejada’, ‘evite doença venérea’ e ponto final. Direito absoluto: goze, já que você tem sexo e é aberto para o prazer...Isso é muito pouco. Cadê a pessoa? Cadê a Igreja? A sociedade? O próprio bem dos filhos? O respeito da própria mulher e do próprio marido? (Depoimento do Monsenhor Manfredo Ramos, professor da Faculdade Católica de Fortaleza, em janeiro de 2013) Dessa forma, o entrevistado afirma que os direitos sexuais e reprodutivos, quando são justos, são defendidos pela Igreja. No entanto, a Igreja não defende uma “libertinagem sexual”, na qual as pessoas se acham donas de seus próprios corpos e, por isso, fazem o que querem. A Igreja não abria, então, mão da ideia do núcleo permanente da doutrina da sexualidade na religião católica, da qual tratei há pouco, pois Deus fez homem e mulher fisicamente diferentes e “complementares”. Essa concepção e sua vinculação à noção de fecundidade é essencial no entendimento da Igreja. Uma vez que esta, no casamento entre dois homens e duas mulheres, inexiste, a Igreja não 76 vê finalidade ou significado nessas uniões, por isso, não legitima o casamento entre indivíduos do mesmo sexo. Monsenhor Manfredo afirma que, a princípio, o Estado, como governo, não deveria ter nada a dizer sobre o relacionamento sexual dos indivíduos, por isso a Igreja não discute a liberdade de um Estado legislar sobre a possibilidade de dois homens ou duas mulheres possuírem determinados direitos civis. Assim, a Igreja não aceita o fato de o Estado fazer uso do modelo tradicional cristão de matrimônio-família, na legislação civil, afirmando existir duas modalidades de matrimônio, o heterossexual e o homossexual, e que ambos teriam, por isso, o direito de conceber ou adotar filhos. Sendo assim, a Igreja rejeita, firmemente, a união de pessoas do mesmo sexo, bem como a adoção de crianças pelas mesmas. No entanto, segundo o Monsenhor, não as discrimina. Eu mesmo, como Padre, tenho penitentes, eles e elas, com esse problema e, aqui para nós, eles sofrem muito. Mesmo pela discriminação da sociedade, não só da Igreja. São pessoas bem dotadas de uma sensibilidade extraordinária e que podem mesmo pretender uma vida sacramental, de penitência e de comunhão, com a devida prudência e orientação do confessor. Mas simplesmente dizer ‘pode se casar e vá fazer uma vida a dois, pretendendo ser cristão assim, conservando seu direito de participação na eucaristia’, isso não. É um problema paralelo ao dos casais cristãos divorciados e recasados, quanto ao acesso à eucaristia. (Depoimento do Monsenhor Manfredo Ramos, professor da Faculdade Católica de Fortaleza, em janeiro de 2013) É preciso dizer que, mesmo que a homossexualidade não seja mais vista, pelo menos cientificamente, como uma doença mental, uma anomalia, o pensamento da Igreja segue outra direção. Durante a entrevista, o Monsenhor Manfredo disse que “a Igreja espera que a ciência se aprofunde mais e tente, de fato, explicar, como ciência, as componentes de uma situação ou de uma pessoa dessas. Não se pode, simplesmente, como na Idade Média, colocar na fogueira.” Embora não tenha sido tão direto quanto Tomás de Aquino, o Monsenhor fez um comentário capaz de gerar muitas polêmicas. Presente em Levítico, a condenação ao ato de “um homem se deitar com outro homem como se fosse mulher” – a mesma restrição vale para a mulher – sempre fez parte da moral cristã. Segundo Del Priore (2008), incitado pelo furor 77 moralizante da Contra-Reforma, o Santo Ofício trouxe a sodomia (também entendida como homossexualidade) para o território da heresia, estando sob sua responsabilidade a punição daqueles que cometiam este pecado, com a pena capital: a morte na fogueira. Ao ser questionado sobre a maneira como a Igreja trata a sexualidade dos jovens, Monsenhor Manfredo explica que, hoje, ninguém como os jovens sente os impactos das mudanças e das solicitações. Segundo ele, começa pelo fato de que a juventude de hoje é muito mais “bem desenvolvida” do que antigamente, com os hormônios em bom funcionamento, e, ao mesmo tempo, sem tantas restrições por parte dos pais ou das mães acerca do comportamento sexual. Isso não causa só gestações indesejadas, ou doenças venéreas, mas também um desequilíbrio afetivo. Para a Igreja, a maturidade afetiva dos jovens deveria ser um objeto de preocupação dos educadores e dos pais de famílias. As solicitações da imprensa, da televisão, do cinema, exalar hedonismo. No entanto, uma educação equilibrada, sob o ponto de vista da sexualidade com base no sentimento, deveria preocupar muito mais as pessoas. E, para isso, seria necessário algo que cada dia diminui: o diálogo. Não é fácil dialogar na atualidade, seja a nível internacional, nacional, político, social ou familiar. Segundo ele, é preciso dialogar para gerar um juízo de valores. Apesar desta postura aparentemente “dialógica”, a doutrina católica trata determinadas noções como inegociáveis. Segundo Perrot (2007), desde a Idade Média, a Igreja Católica considerou a virgindade como um valor supremo para as mulheres. No século XIII, a Virgem Maria se torna rainha dos conventos e patrona das virgens. Em oposição a Maria Madalena, Maria é um modelo a ser seguido pelas moças. Segundo a autora, ainda hoje, “a sexualidade constitui um bastião de resistência ao mundo moderno, uma linha Maginot da moral cristã, ou mesmo do sagrado.” (p. 64) Com base no pensamento de Prof. Felipe Aquino (2011), membro da Canção Nova, de que a ideologia de gênero “fere profundamente a castidade” (p. 179), questionei Monsenhor Manfredo em relação à concepção de castidade na Igreja Católica. Ele afirmou que, antes de tudo, castidade é uma virtude já preconizada pelos 78 pagãos, ou seja, ela não é válida só para frades, freiras, bispos, gente consagrada, mas trata-se de uma virtude básica do homem, que corresponde ao pudor, ao respeito a sua corporeidade, a sua sexualidade. Por isso, o representante católico concluiu, afirmando que isso não tocaria apenas aos jovens solteiros ou aos religiosos, mas também aos casais. O respeito à própria sexualidade é um dos primeiros motivos de equilíbrio da personalidade. “Como um membro da Igreja pode se tornar membro de uma prostituta?” Quando se comete fornicação, se esquece de que o corpo é templo do Espírito Santo. Portanto, não pertencemos a nós mesmos, mas ao Cristo que deu a vida por todos. Quando se peca contra a castidade, fazendo uso indiscriminado de sua sexualidade, afasta-se da santidade. 79 6 A ELABORAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS PARA MULHERES NO BRASIL As políticas públicas constituem temática oriunda da Ciência Política e da Ciência da Administração Pública. Elas foram adquirindo autonomia e status científico a partir de meados do século XX na Europa e nos Estados Unidos. Segundo Dias e Matos (2012), na Europa, os estudos acerca de políticas públicas tinham o objetivo de analisar e explicar o papel do Estado e de suas organizações na produção dessas políticas. Nos Estados Unidos, bem como no Brasil, esses estudos tinham como foco as ações dos governos. Dias e Matos (2012) afirmam que a administração pública surgiu como um instrumento do Estado para defender os interesses públicos ao invés dos interesses privados. Segundo Marta Ferreira Santos Farah (2011), no início do século XX, nos Estados Unidos, a administração pública, como disciplina, tinha o objetivo de formar servidores para a administração pública moderna. Ao longo dos anos 1960 e 1970, houve uma expansão dos cursos de pósgraduação nos EUA, marcada pela constituição de programas independentes de administração pública. Nesse período, muitos pesquisadores buscaram estabelecer vínculos com novos campos de estudo e formação, como o de políticas públicas. Deu-se, então, a incorporação das políticas públicas pela administração pública e o desenvolvimento de estudos específicos sobre políticas públicas. No Brasil, apenas no final da década de 1970 e início de 1980 tiveram início os estudos das mesmas. O termo “políticas públicas” engloba diferentes ramos do pensamento humano, tratando-se de matéria interdisciplinar, uma vez que abrange diversas áreas do conhecimento, como as Ciências Sociais e Aplicadas, a Ciência Política, a Economia, a Ciência da Administração Pública e o Direito. Segundo Dias e Matos (2012), para se discutir políticas públicas faz-se necessário compreender, primeiramente, o conceito de “público”. Com 80 base no pensamento de Arendt (2007), abordado na terceiro seção deste trabalho, as ideias de “público” e “privado” se opõem. O público compreenderia, assim, o domínio da atividade humana que é considerado relevante para a intervenção governamental ou para a ação comum, enquanto o privado residiria na esfera familiar, conjugal, doméstica, preservada de intervenções externas. Dessa forma, o conceito de políticas públicas pressupõe que há uma dimensão da vida que não é privada, pois existe em comum com os demais, sendo por isso chamada de “propriedade pública”. Segundo esta perspectiva, a propriedade pública é controlada pelo governo com propósitos públicos, por meio da administração pública. A administração pública, converte-se em um instrumento do Estado para defender os interesses públicos. No entanto, deve-se ressaltar que embora as ações de governo tenham como principal objetivo atender ao conjunto da sociedade, os indivíduos que integram a administração têm um prazo determinado de permanência e possuem interesses particulares, representando grupos específicos, que podem ou não coincidir com os fins do Estado, como instância que tende idealmente à universalidade. Vale salientar que não se deve confundir políticas públicas com programas governamentais. De acordo com Farah (2004a), política pública é “um curso de ação do Estado, orientado por determinados objetivos, refletindo ou traduzindo um jogo de interesses. Um programa governamental, por sua vez, consiste em uma ação de menor abrangência em que se desdobra uma política pública.” (p. 47) As políticas públicas são fruto de uma atividade política, ou seja, requerem a formulação de várias estratégias para se chegar aos fins desejados, envolvendo, por isso, mais de uma decisão política. É fato que o Estado possui um número limitado de recursos que devem ser utilizados para atender a um contingente significativo de demandas sociais. Por esse motivo, a discussão das políticas públicas por parte dos cidadãos se mostra tão importante, uma vez que, assim, é possível observar os interesses e as demandas da sociedade, a fim de fazer escolhas sobre em que área, de que forma e em que momento o governo deve atuar, racionalizando a aplicação de investimentos e utilizando o planejamento como ferramenta para 81 alcançar as metas pretendidas. É dessa maneira que funcionam as Conferências de Políticas para Mulheres, das quais tratarei mais adiante. Atualmente, muito se discute acerca de políticas públicas. Este se tornou um termo bastante comum, uma vez que tais ações utilizadas na concretização dos direitos humanos fundamentais, particularmente dos direitos sociais têm sido fortemente midializadas. De fato, segundo Dias e Matos (2012), “as políticas públicas constituem um meio de concretização dos direitos que estão codificados nas leis de um país.” (p. 15) No entanto, deve-se ressaltar que a Constituição Federal, da mesma forma que as constituições estaduais e as leis orgânicas municipais, não contém políticas públicas, mas direitos cuja efetivação se dá por meio destas. Por isso, Cristiane Derani (2006) define políticas públicas como “concretizações específicas de normas jurídicas, focadas em determinados objetivos concretos.” (p. 136) De vez que o conceito de políticas públicas foi esclarecido, discorrerei brevemente sobre construção das políticas públicas para mulheres no Brasil, a qual se deu a partir da incorporação de uma perspectiva de gênero por parte das políticas desenvolvidas pelos governos subnacionais brasileiros, contando com a mobilização efetiva de grupos de mulheres e entidades feministas. 6.1. AS POLÍTICAS PÚBLICAS PARA MULHERES E O MOVIMENTO FEMINISTA NO BRASIL A consolidação do campo de estudos de gênero no Brasil ocorreu no final da década de 1970, simultaneamente ao fortalecimento do movimento feminista no país. No entanto, a incorporação da perspectiva de gênero por políticas públicas é um tema ainda pouco explorado na atualidade. Farah (2004b) afirma que, desde os anos 80, sob o impacto da democratização e da luta de movimentos sociais organizados em torno de questões concernentes às mulheres e de movimentos que assumiam abertamente o ideário feminista no Brasil, vem ocorrendo um processo gradual de incorporação da problemática das desigualdades de gênero na agenda 82 governamental. A partir da Constituição Federal de 1988, houve um aumento na importância dos governos municipais e a redução das desigualdades de gênero passou a fazer parte da agenda desses governos. A incorporação da perspectiva de gênero pelos governos municipais visa à redução das desigualdades entre homens e mulheres, não a negação da diversidade. As políticas públicas desenvolvidas sob esta perspectiva procuram valorizar igualmente homens e mulheres, mas reconhecendo que existem diferenças entre eles e que, por isso, haverá necessidades específicas, não comuns a ambos, que devem ser contempladas pela sociedade e pelo Estado. O desenvolvimento de políticas de gênero ou a incorporação da perspectiva de gênero por parte de governos municipais ainda é um processo em construção. A inclusão do gênero no processo de elaboração de políticas públicas ocorreu como parte do processo de redemocratização do regime político brasileiro, que contou com a emergência de novos segmentos políticos. Os movimentos sociais que participaram desse processo tinham as mulheres como integrantes fundamentais. De acordo com Cynthia Sarti (1988), desde o início da década de 1960, os grupos de mulheres atuavam junto a associações em de bairros pobres, como os Clubes de Mães ou as Associações de Donas-de-casa, ligadas, em sua maioria, à Igreja Católica. Eram grupos de convivência onde as participantes desenvolviam trabalhos manuais (tricô, bordado, crochê, etc) ou atividades religiosas, como o catecismo. A partir de meados da década de 1970 esses grupos assumem um caráter mais reivindicativo. Segundo Farah (2004b), as reivindicações das mulheres, que inicialmente estavam relacionadas à moradia, saneamento básico, transporte e custo de vida, passaram a envolver questões específicas da condição de mulher: desigualdade salarial, direito a creches, saúde da mulher, sexualidade, contracepção e violência contra a mulher. Daí surgiu o movimento feminista no Brasil. 83 Nessa discriminação de temas ligados à problemática da mulher, houve uma convergência com o movimento feminista. O feminismo, diferentemente dos ‘movimentos sociais com participação de mulheres’, tinha como objetivo central a transformação da situação da mulher na sociedade, de forma a superar a desigualdade presente nas relações entre homens e mulheres. O movimento feminista – assim como a discriminação nos movimentos sociais urbanos de temas específicos à vivência das mulheres – contribuiu para a inclusão da questão de gênero na agenda pública, como uma das desigualdades a serem superadas por um regime democrático. (FARAH, 2004b, p. 51) O feminismo brasileiro se desenvolveu durante o período de lutas contra o regime militar, interligando os grupos de camadas médias da sociedade e os movimentos populares. No contexto de autoritarismo que marcou o início do movimento, os problemas “específicos” das mulheres estavam em segundo plano em relação aos problemas “gerais” da sociedade. Além disso, dada à vinculação do movimento feminista com a esquerda marxista, as mulheres trabalhadoras tinham prioridade em relação às demais. (SARTI, 1988) Segundo Sarti (1988), o Ano Internacional da Mulher, 1975, decretado pela ONU, é considerado o marco inicial da atual mobilização de mulheres no Brasil. Essa data foi particularmente importante, pois serviu de pretexto para uma maior organização do movimento e para discussões acerca dos mais diferentes temas que envolviam a condição das mulheres no âmbito da sociedade brasileira. A partir de então, o movimento ganhou mais visibilidade e abriu-se espaço para reivindicações em nível de políticas públicas. Já nos anos 1980, conforme afirma Farah (2004a), num cenário de redefinição das políticas públicas no país, por meio do avanço da democratização, passou-se a formular e implementar políticas públicas que contemplassem a questão de gênero, como foi o caso do Conselho Estadual da Condição Feminina e a da Delegacia de Polícia de Defesa da Mulher, ambos no estado de São Paulo, e do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher, órgão do Ministério da Justiça. Assim, as políticas públicas resultaram num meio de superação das desigualdades entre homens e mulheres na sociedade brasileira. 84 O conceito de gênero, o qual foi abordado no capítulo anterior, ao enfatizar as relações sociais entre os sexos, nos permite apreender desigualdades entre homens e mulheres, que constituem disparidades no âmbito das relações de poder. Nas sociedades ocidentais, tais relações envolvem uma situação de subordinação das mulheres aos homens, tanto na esfera pública como na privada. As políticas públicas elaboradas sob a perspectiva do gênero têm como objetivo modificar esse padrão, sendo definidas da seguinte forma: Políticas públicas com recorte de gênero são políticas públicas que reconhecem a diferença de gênero e, com base nesse reconhecimento, implementam ações diferenciadas para mulheres. Essa categoria inclui, portanto, tanto políticas dirigidas a mulheres – como as ações pioneiras do início dos anos 80 – quanto ações específicas para mulheres em iniciativas voltadas para um público mais abrangente. (FARAH, 2004a, p. 51) Para que as desigualdades de gênero sejam combatidas, pressupõem-se práticas de cidadania para a concretização da justiça de gênero, sobretudo pela responsabilidade do Estado de redistribuir riqueza e oportunidades de desenvolvimento social entre as regiões, classes, raças, homens e mulheres, dentre outras diversificantes. No entanto, Maria Lúcia da Silveira (2004) afirma que políticas não sendo premeditadamente neutras, exigem, de forma incisiva, um permanente questionamento sobre o modo como são construídas, como e a quem elas beneficiam. Neste sentido, Raquel Viana, coordenadora da Coordenadoria Especial de Políticas para Mulheres de Fortaleza, afirma: O processo de construção das políticas públicas no Brasil tem de ser entendido a partir de um contexto de questionamento e muito em função do movimento feminista, do movimento de mulheres, e do papel do Estado na sociedade, a partir do entendimento de que o Estado não é neutro...ele faz as suas opções e o Estado tanto pode ter a sua intervenção no sentido de alterar as relações sociais, como de fazer que essas relações se perpetuem.” (Depoimento de Raquel Viana, Coordenadora da Coordenadoria Especial de Políticas para Mulheres de Fortaleza, em novembro de 2012) Embora seja possível apontar avanços nesse domínio, ainda há muito a se fazer em termos da configuração de políticas integradas de gênero no Brasil. No que tange a institucionalização de organismos de governo, as Coordenadorias e Secretarias de Políticas para Mulheres consistem meios de 85 articular políticas públicas que visem à diminuição das desigualdades de gênero. Neste sentido, serão tratadas a seguir as atividades da Coordenadoria Especial de Políticas para Mulheres da cidade de Fortaleza nos últimos anos, com relação, especificamente, aos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres. 6.2. A COORDENADORIA ESPECIAL DE POLÍTICAS PARA MULHERES DE FORTALEZA: Direitos sexuais e reprodutivos, gênero e democracia Com base no que foi exposto, em uma perspectiva democrática, entende-se que o Estado é responsável por criar organismos de governo que tenham a capacidade de articular e elaborar políticas públicas, as quais busquem a construção da igualdade e possam contribuir no combate às discriminações de gênero. A criação da Coordenadoria Especial de Políticas Públicas para Mulheres de Fortaleza foi orientada por esta concepção. Esta foi criada durante a administração da Prefeita Luizianne Lins (2005 – 2012), com funcionamento efetivo desde os primeiros meses de governo, ainda em 2005, sendo oficializada durante a reforma administrativa do governo do Partido dos Trabalhadores (PT), em 2007. Dessa forma, concretizava-se um processo de reconhecimento institucional e político da importância de políticas públicas específicas para mulheres na capital cearense. Ao tratar do surgimento deste órgão, Maria Elaene Rodrigues Alves (2008) afirma que o passo seguinte foi a elaboração de uma estratégia de capacitação dos gestores e gestoras. Para tanto, foi criado o “GT – Mulher”, o qual consiste num grupo de trabalho gestado no processo de organização das atividades comemorativas do mês de março de 2005. O decreto governamental que o oficializa define sua missão como sendo aquela voltada para o desenvolvimento de estratégias políticas e institucionais capazes de formular políticas de promoção da igualdade de gênero. Ainda durante o ano de 2005, a Prefeitura de Fortaleza estabeleceu uma parceria com a Secretaria de Políticas para Mulheres do 86 governo federal, por meio do pacto do Plano Nacional de Políticas para Mulheres. Segundo Alves (2008), os projetos elaborados pela Coordenadoria no decorrer daquele ano estavam direcionados à implantação do sistema de proteção e defesa dos direitos das mulheres, em particular no que concerne ao combate à violência, destacando-se a criação do Centro de Referência Francisca Clotilde.13 O Centro de Referência Francisca Clotilde tem como objetivos o atendimento psicológico e social a mulheres em situação de violência e o fornecimento de orientação jurídica às vítimas. Este centro começou a funcionar em março de 2006 e, até o mês de fevereiro de 2013, já havia realizado 10.526 atendimentos (acrescentando-se os retornos), tendo sido atendidas 3.124 mulheres.14 Alves (2008) ressalta que o processo de implantação da Coordenadoria Especial de Políticas para Mulheres deu-se a partir dos debates realizados pelo GT-Mulher e pelo movimento social de mulheres, sendo sua missão a de “coordenar, elaborar e implementar políticas públicas que contribuam de forma concreta na vida das mulheres e nas relações de gênero no município, apoiada numa estratégia de articulação com as demais Secretarias e áreas de atuação governamental.” (ALVES; VIANA, 2008, p. 24) A missão da Coordenadoria tem sido posta em prática com base em cinco eixos de ação: 1) Prevenção e assistência à mulher em situação de violência; 2) Saúde e equidade de gênero; 3) Inclusão e autonomia econômica; 4) Participação e controle social; 5) Educação e cultura não-discriminatórias. Uma vez que esta pesquisa trata dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, serão abordados apenas o segundo eixo de ação e as políticas públicas voltadas especificamente para esses direitos. 13 Francisca Clotilde foi uma poetisa cearense, nascida no município de Tauá, interior do estado, no ano de 1862. Ávida por liberdade, Francisca Clotilde defendia os ideias republicanos e, ainda jovem, se engajou no Movimento Abolicionista. A sua obra mais conhecida é “A Divorciada”, publicada em 1902, a qual fez dessa cearense a pioneira no tema “divórcio” na Literatura Brasileira. 14 PREFEITURA DE FORTALEZA. Centro de Referência da Mulher Francisca Clotilde comemora sete anos de atividade. Disponível em: <<http://www.fortaleza.ce.gov.br/noticias/atendimento-mulher/centro-de-referencia-da-mulherfrancisca-clotilde-comemora-sete-anos-de>> Acesso em: 15 mar. 2013. 87 O eixo de ação “Saúde e equidade de gênero” tem como objetivos propor, articular, monitorar e avaliar as ações de atenção integral nos vários ciclos vitais e nos vários níveis de complexidade, com foco nos direitos sexuais e nos direitos reprodutivos, incorporando as dimensões de gênero e a autonomia das mulheres sobre o próprio corpo, e assegurando que esses direitos não sejam tratados como questões puramente reprodutivas. Segundo a coordenadora Raquel Viana, a conceituação de direitos sexuais e reprodutivos utilizada pela Coordenadoria é a seguinte: Direitos sexuais são todos aqueles direitos que têm a ver com a vivência da sexualidade das pessoas, como o direito a livre orientação sexual, o direito de ter sua sexualidade e seu prazer livres de discriminação, sem violência e de ter as condições necessárias para que cada um possa vivenciar isso na sociedade, sem a imposição de padrões...a gente sabe que, na sociedade, existe um padrão de comportamento sexual aceitável, existe um padrão que se orienta a partir da heterossexualidade, não considerando a diversidade de orientações (...) Os direitos reprodutivos estão mais ligados a capacidade das pessoas de decidir sobre sua própria reprodução, seja homem ou mulher. Esta concepção parte do pressuposto que as mulheres têm o direito de decidir se querem ou não ter filhos, quantos querem ter, em que momento da vida elas querem ter e como uma responsabilidade do Estado e da sociedade de garantir as condições necessárias para que elas possam vivenciar isso. (Depoimento de Raquel Viana, Coordenadora da Coordenadoria Especial de Políticas para Mulheres de Fortaleza, em novembro de 2012) No âmbito das políticas públicas para mulheres, em Fortaleza, os direitos sexuais e reprodutivos se encontram vinculados às políticas de saúde pública. Rachel Viana afirma: A Coordenadoria da Mulher tem sua intervenção muito a partir de uma articulação com a Secretaria de Saúde do Município, que é a secretaria que faz a gestão das políticas de saúde. Então a função da Coordenadora é muito mais de fazer essa interface e fazer com que o município garanta, dentro da sua política de saúde, essa especificidade dos direitos das mulheres dentro dessa perspectiva. (Depoimento de Raquel Viana, Coordenadora da Coordenadoria Especial de Políticas para Mulheres de Fortaleza, em novembro de 2012) De acordo com Lourdes Goes (2008), militante feminista e coordenadora do Projeto Hospital da Mulher de Fortaleza, essas políticas buscam, primordialmente, a “equidade em saúde”. Tal equidade implica, dentre outras coisas, o acesso e utilização de serviço de saúde em acordo com as 88 necessidades distintas, o financiamento de atenção de acordo com a capacidade econômica e em relação à necessidade e riscos, bem como a distribuição da carga de responsabilidade e poder no cuidado da saúde em pé de igualdade entre mulheres e homens. Com base na política nacional de saúde para mulheres adotada pelo Ministério da Saúde – Área Técnica de Saúde da Mulher em conjunto com a Secretaria Especial de Políticas para Mulheres e com respaldo nas recomendações da I Conferência Nacional de Políticas para Mulheres, foram elaboradas as seguintes diretrizes para a política de saúde voltada para a mulher em Fortaleza: - humanização do nascimento e parto, expresso pela cobertura de pré-natal, melhoria da assistência obstétrica, redução da mortalidade materna, diminuição dos índices de gravidez na adolescência, diminuição dos índices de cesárea; - implementação de atenção às mulheres adolescentes, mulheres no climatério/menopausa e velhice; - implantação da atenção às mulheres negras, lésbicas, mulheres com deficiência, e trabalhadoras; - implantação da interface saúde mental e gênero; - prevenção e atendimento dos agravos decorrentes da violência de gênero e sexista – doméstica e sexual; e do aborto legal; - implementação da atenção às mulheres na prevenção, tratamento e controle do câncer ginecológico (mama e colo do útero) e de outros tipos de câncer, destacando-se o de pulmão que, segundo o Ministério da Saúde (2005), tem crescido em maior escala nas mulheres por conta do fator tabagismo; - atenção frente aos demais agravos crônicos, destacando-se a hipertensão que vem apresentando uma significativa incidência entre as mulheres. (ALVES; VIANA, 2008, p. 58 – 59) Dentre as ações que acabaram de ser enumeradas, priorizou-se a redução da mortalidade materna, entendendo se tratar de uma ação complexa, envolvendo vários fatores e níveis de intervenção. Por meio da Coordenação de Saúde da Mulher, estabeleceu-se, então, a partir de 2005, a reestruturação do Comitê Municipal de Mortalidade Materna (CMMF), cujo objetivo é identificar os problemas que envolvem a mortalidade materna no município, a fim de prevenir sua recorrência e buscar estratégias para a solução dos mesmos. 89 Conforme os dados divulgados pelo Ministério da Saúde, durante o ano de 2012, no município de Fortaleza, foram registrados 12 óbitos maternos. Sendo assim, o índice de mortalidade materna no último ano foi inferior aos de anos anteriores, como 2005, 2006 e 2007, quando ocorreram 26, 17 e 15 óbitos maternos, como pode ser observado no gráfico: A diminuição do índice de mortes maternas em Fortaleza contou com o suporte de algumas medidas estruturantes, dentre as quais se pode destacar: - redefinição da política pública do município, com a adoção de medidas humanizadoras no pré-natal, parto e puerpério; - monitoramento e estudo das mortes maternas, a partir da reestruturação do CMMF; - reestruturação e organização da rede de atenção básica – Estratégia Saúde Família (ESF): contratação por meio de concurso público de 250 médicos, 291 enfermeiros e 238 dentistas, aumentando de 102 equipes de PSF em 2004, para 300 em 2006. Esse investimento possibilitou um aumento da cobertura populacional pela ESF de 15% para mais 50%; - definição de hospital de referência para o parto já no pré-natal, evitando a peregrinação da gestante na ocasião do parto; - registro no cartão da gestante, o nome da maternidade escolhida para o parto; - organização das Centrais de Marcação de Consultas e de Leitos, garantindo que uma gestante em situação de internamento só saia de uma maternidade para outra mediante a vaga garantida e o transporte assegurado; 90 - melhoria da qualidade da atenção obstétrica e neonatal nas maternidades (maior investimento nas maternidades municipais: aumento de 22% em 2006 com relação a 2005); - garantia de anestesiologistas, neonatologistas, enfermeiras/os e, no mínimo, dois obstetras nas salas de parto; - reforma nas salas de parto das maternidades; - criação da Escola Municipal de Saúde, com a presença do residente de família nas maternidades, o que tem fortalecido o sistema de referência e contra-referência e a integridade da assistência; - capacitação de profissionais da rede básica em pré-natal de baixo risco. (ALVES; VIANA, 2008, p. 64 – 65) Além das medidas enumeradas, no ano de 2005, a Prefeitura de Fortaleza se comprometeu com a construção do Hospital da Mulher, um centro de excelência voltado para atender, prioritariamente, as mulheres no campo dos direitos sexuais e reprodutivos. Como pode ser observado, as principais ações da Coordenadoria Especial de Políticas para Mulheres de Fortaleza, no âmbito dos direitos sexuais e reprodutivos, envolvem o Comitê de Mortalidade Materna, serviços de atendimento às mulheres vítimas de violência doméstica e sexual – com destaque para o Centro de Referência Francisca Clotilde – e o acompanhamento do Hospital da Mulher. Além disso, durante o ano de 2011, a Coordenadoria, em conjunto com representantes da sociedade civil e do governo municipal, foi responsável pela organização da III Conferência Municipal de Políticas para Mulheres, onde os direitos sexuais e reprodutivos foram debatidos no GT “Saúde da Mulher: direitos sexuais e direitos reprodutivos”. Visto que a construção do Hospital da Mulher gerou muitas manifestações por parte da população fortalezense, que esperou sete anos pela concretização dessa política pública15, e que as Conferências de Políticas 15 TRIBUNA DO CEARÁ. Obras do Hospital da Mulher continuam atrasadas. Disponível em: <<http://www.tribunadoceara.com.br/noticias/politica/obras-do-hospital-da-mulher-continuamatrasadas-2/>> Acesso em: 05 mar. 2013. DIÁRIO DO NORDESTE. Trabalhadores da construção seguem em greve e paralisam obras do Hospital da Mulher. Disponível em: <<http://diariodonordeste.globo.com/noticia.asp?codigo=338033&modulo=966&origem=ultimah ora-wide>> Acesso em: 05 mar. 2013. 91 para Mulheres, que só ocorrem a cada três anos, contaram com a participação de um significativo número de mulheres da sociedade civil e do governo, darei a seguir maior visibilidade a esses temas como elementos que condicionam fortemente o delineamento local do objeto privilegiado por esta pesquisa – os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres. 6.3. O HOSPITAL DA MULHER DE FORTALEZA O Hospital da Mulher de Fortaleza foi uma política pública implantada durante a gestão da Prefeita Luiziane Lins (2005-2008, 2009-2012), consistindo numa unidade de atenção secundária e terciária para atendimento à população feminina da cidade. Trata-se do primeiro e único hospital municipal construído para atender exclusivamente a mulheres. Por meio de entrevista realizada com a diretora do Hospital da Mulher, a médica ginecologista Dr.ª Zenilda Bruno, foram exploradas questões relativas à elaboração do projeto do hospital, bem como seu processo de construção e seu funcionamento, como experiência concreta de efetivação das políticas públicas voltadas para os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres no governo municipal passado. Segundo a Dr. ª Zenilda Bruno, o projeto do Hospital da Mulher tem sete anos. Primeiro, foi necessário se refletir acerca de qual seria o perfil do hospital, o modelo de gestão mais apropriado, a capacidade de atendimento, o tamanho do prédio, a localização do hospital, dentre outras questões. Tudo isso foi sendo decidido aos poucos. A diretora afirmou que foram realizadas algumas reuniões junto à célula da mulher da Secretaria de Saúde do Município, responsável pela construção do hospital. Um tema que foi muito debatido durante essas reuniões, o qual contou, inclusive, com a participação consultiva de arquitetos, foi a escolha do local onde seria feita a construção. Inicialmente, por uma questão de acessibilidade, o centro da cidade foi cogitado, já que se trata de uma área para onde fluem todos os ônibus, podendo-se, assim, contar com a 92 locomoção por meio do transporte público. No entanto, questões como a dificuldade de se estacionar veículos e o intenso fluxo de pessoas naquela área acabaram por tornar inviável a construção do hospital no centro da capital. O bairro Jóquei Clube, onde hoje se encontra o Hospital da Mulher, acabou sendo escolhido por conta de ser uma região populacionalmente maior e que sofria carência de hospitais. Em maio de 2007, a área onde se situava o jóquei clube de Fortaleza foi desapropriada e deu-se, então, a construção do hospital no ano de 2008. A Dr.ª Zenilda Bruno afirma que o hospital começou a funcionar em julho de 2012. Em meados de julho, a parte ambulatorial do Hospital da Mulher estava sendo aberta e, logo em seguida, no final do mesmo mês, a parte de internações iniciava seu funcionamento. No dia 12 de agosto de 2012, começaram a ser realizados os partos, bem como foram iniciadas as funções da neonatologia, do berçário e do centro cirúrgico O hospital foi inaugurado oficialmente no dia 17 de agosto de 2012. A cerimônia de inauguração contou com a presença da Prefeita Luiziane Lins, do Ministro da Saúde, Alexandre Padilha, e da Presidenta Dilma Rousseff. A Presidenta teria afirmado que “esse é o padrão de hospital que as pessoas querem e que as pessoas precisam”, mostrando-se satisfeita com as instalações do hospital.16 A diretora conta que o primeiro grupo de médicos, enfermeiros e assistentes sociais a ingressar no hospital vieram de um recredenciamento. O processo de recredenciamento se deu por meio da realização de uma prova com os profissionais de outros hospitais e postos de saúde que desejavam trabalhar no Hospital da Mulher. Os profissionais que trabalhavam em outros hospitais e prestaram o exame foram transferidos para o Hospital da Mulher e aqueles que seguiam um regime de 40 horas de trabalho nos postos de saúde passaram a trabalhar 20 horas no hospital e 20 horas no posto onde já prestavam serviço. No ano de 2012, houve também uma seleção pública para 16 DIÁRIO DO NORDESTE. Dilma visita Hospital da Mulher. Disponível em: <<http://diariodonordeste.globo.com/materia.asp?codigo=1215150>> Acesso em: 05 mar. 2013. 93 profissionais substitutos, tanto médicos quanto psicólogos e enfermeiros. Uma vez que o hospital estava carente de profissionais, muitos dos aprovados nesta seleção pública foram logo chamados a trabalhar, visto que não havia a quem substituir. Dessa forma, 70% dos profissionais que trabalham no Hospital da Mulher vieram de outras instituições e 30% ingressaram por meio da seleção pública. Durante a entrevista, a diretora afirmou que o hospital ainda não estava funcionando por completo, pois não haviam sido iniciadas as atividades da UTI neonatal, embora as salas de parto, a UTI de médio risco e o centro cirúrgico já se encontrem em pleno funcionamento. A UTI para adulto e as terapias complementares (acupuntura, massoterapia e hidroterapia) iniciaram suas funções mais recentemente. A Dr.ª Zenilda Bruno ressaltou o fato de o hospital ser “100% regulado”, ou seja, não existe uma porta de emergência, pois todas as pacientes são referenciadas da Prefeitura. Isso significa que as pacientes que são atendidas no Hospital da Mulher devem ser obrigatoriamente encaminhadas por outros hospitais ou postos de saúde. A diretora afirma que esse tipo de procedimento trouxe algumas dificuldades de entendimento por parte do público, uma vez que as pessoas estão acostumadas a ir a qualquer hospital e lá mesmo serem atendidas. No entanto, a médica entende que essa é a maneira mais apropriada de se trabalhar no Hospital da Mulher, visto que existem outras instituições que seguem este mesmo modelo. Durante as Conferências de Políticas para Mulheres, das quais tratarei mais adiante, pude perceber que uma questão muito debatida pelas mulheres participantes era a da humanização do serviço público de saúde. Ao ser questionada sobre a orientação recebida pelos profissionais do Hospital da Mulher neste sentido, a diretora explica que existe no hospital uma equipe denominada de “Acolhimento”, formada por psicólogas, assistentes sociais e enfermeiras, que é responsável pelo acolhimento das pacientes, com a realização de um questionário, por meio do qual se observa, inclusive, se a paciente é vítima de violência doméstica. Caso necessário, a paciente poderá realizar outras consultas com terapeutas ou psicólogas. Todos os médicos do 94 hospital também são orientados no sentido de atender as pacientes da forma mais humanizada possível. Em relação à contribuição do Hospital da Mulher na efetividade dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres na cidade de Fortaleza, no âmbito da saúde pública, a diretora afirma: Eu acho que o hospital esta começando de uma maneira geral. Então, a gente tem o ambulatório de atendimento de vítimas de violência, a gente tem um atendimento de planejamento familiar, a gente tem um acolhimento realmente dirigido para a mulher, mas a gente ainda tem muito a crescer. A gente tem inclusive um projeto de abertura de uma unidade realmente de direitos sexuais e reprodutivos, que ainda não abriu, que uma parte específica do hospital. Então estamos abrindo por partes e realmente a tendência do hospital é crescer e cada vez funcionar 100%. (Depoimento de Zenilda Bruno, Diretora do Hospital da Mulher, em janeiro de 2013) Embora a diretora do Hospital da Mulher tenha afirmado que, com exceção da UTI neonatal, todos os outros setores do hospital estavam funcionando normalmente, servidores do hospital têm reclamado das condições de trabalho. De acordo com o que foi divulgado na imprensa local, os funcionários assinalariam a falta de materiais para se realizar os atendimentos no Hospital da Mulher, como pomadas para tratar ferimentos e equipamentos de proteção pessoal (luvas e gorros). Além disso, diversos leitos e centros cirúrgicos estariam sem funcionar devido à falta de equipamentos e profissionais.17 6.4. AS CONFERÊNCIAS DE POLÍTICAS PARA MULHERES NO ESTADO DO CEARÁ No contexto dos direitos sexuais e reprodutivos, as Conferências de Políticas para Mulheres consistem num espaço privilegiado de reivindicação em torno das tensões e contradições que envolvem a sexualidade feminina. A finalidade das mesmas é de promover o avanço da democracia no que tange à 17 VERDES MARES. Servidores reclamam das condições de trabalho no Hospital da Mulher. Disponível em: << http://verdesmares.globo.com/v3/canais/noticias.asp?codigo=353800&modulo=966>> Acesso em: 2 mar. 2013. 95 busca da efetividade desses direitos, seja por meio de leis ou de políticas públicas. Essas Conferências, embora não sejam incorporadas ao ordenamento jurídico do país – diferentemente do que acontece com os Tratados e Convenções sobre direitos humanos – significam a existência de um comprometimento entre o Estado e os movimentos sociais, marcadamente o movimento de mulheres, que resulta na formulação de um Plano Nacional de Políticas para Mulheres. Dessa forma, a realização dessas Conferências constitui uma maneira de fortalecer a legitimidade das mulheres como sujeitos políticos, ao mesmo tempo em que estabelece que as políticas para mulheres podem funcionar como elementos estruturais da configuração de um estado democrático. As Conferências de Políticas para Mulheres são realizadas a cada três anos. As primeiras conferências foram realizadas no ano de 2004, em seguida ocorreram em 2007, e sua última realização se deu em 2011. Essas Conferências contaram com a participação da gestão pública, conselhos de direitos das mulheres, organizações de mulheres e feministas, sindicatos, mulheres de toda a sociedade civil mobilizando-se em busca de seus direitos. As III Pré-Conferência Municipal, III Conferência Municipal e III Conferência Estadual de Políticas para Mulheres do Ceará, realizadas no ano de 2011 na cidade de Fortaleza, constituem parte do campo empírico desta pesquisa, tendo como foco o eixo temático “Saúde das Mulheres: direitos sexuais e direitos reprodutivos”. A III Pré-Conferência Municipal de Políticas para Mulheres teve a duração de três dias, dividindo as seis Regionais de Fortaleza em grupos e distribuindo-os entre os dias 20, 21 e 22 de julho de 2011. A finalidade da PréConferência era levar propostas a serem avaliadas durante a Conferência Municipal e eleger as delegadas (mulheres responsáveis pela elaboração e votação de propostas para o Plano Nacional de Políticas para Mulheres). Uma 96 vez que fui eleita delegada durante a III Pré-Conferência, tive a oportunidade de participar ativamente do processo de elaboração e votação de propostas durante as etapas municipal, estadual e nacional da Conferência, o que não seria possível caso eu tivesse participado apenas como observadora. Ao chegar ao local da Pré-Conferência, o primeiro passo a ser seguido por todas as mulheres era o de realizar o credenciamento e, em seguida, escolher o eixo temático do qual faria parte durante as conferências. Dentre os eixos temáticos existentes, o “Saúde das Mulheres: direitos sexuais e direitos reprodutivos” foi o que apresentou o menor número de inscrições. O eixo “Participação e controle social das mulheres” teve o maior número de mulheres inscritas. A elaboração de propostas para esse eixo temático se deu de maneira rápida. As mulheres presentes na reunião começaram a responder, prontamente, quais eram as maiores dificuldades enfrentadas por mulheres na área da saúde. Citaram a insuficiência de médicos, a falta de medicação nos postos de saúde, as enormes filas de espera para atendimento nos hospitais. Embora esses fossem problemas reais, a mediadora teve que alertar as participantes de que a elaboração de propostas deveria ocorrer com base nas questões de gênero e nos direitos relacionados à sexualidade e à reprodução feminina. Tendo sido entendida a observação da mediadora, as mulheres mencionaram a questão do acolhimento nos órgãos de saúde pública, visto que muitas participantes já haviam presenciado situações de preconceitos contra lésbicas, ou julgamentos acerca da aparência das mulheres que buscam atendimento. Neste contexto, as mulheres propuseram que os profissionais da saúde acompanhassem as transformações e conquistas das mulheres. Isso demonstra a urgência de mudanças de caráter cultural no âmbito da nossa sociedade. Muitas mulheres reclamaram do fato de as enfermeiras serem as responsáveis pelos exames de prevenção e as orientações sexuais realizadas nos postos de saúde de Fortaleza. As profissionais de enfermagem, dessa 97 forma, estariam mais ligadas à saúde da mulher do que os médicos, que deveriam ser os verdadeiros responsáveis por essas funções. As participantes ainda ressaltaram o fato de a mulher ser tratada como uma mera reprodutora dentro do campo da saúde, onde a reprodução ainda é colocada em uma posição secundária em relação a outras questões de saúde pública. Por isso, a construção do Hospital da Mulher de Fortaleza foi outro assunto colocado em pauta, uma vez que se trata de uma instituição voltada exclusivamente para as mulheres. A III Conferência Municipal de Políticas para Mulheres de Fortaleza foi realizada nos dias 27 e 28 de agosto de 2011, contanto com a participação das delegadas eleitas durante a Pré-Conferência. Ela deu continuidade às discussões dos eixos temáticos, propondo a votação de cinco textos para cada eixo, a serem posteriormente levados à Conferência Estadual. Os debates do eixo “Saúde das Mulheres: direitos sexuais e direitos reprodutivos” foram facilitados pela enfermeira e coordenadora do Hospital da Mulher, Lourdes Góes, e Núbia Marques. Durante as reuniões, várias temáticas foram abordadas, como: a violência contra a mulher, o aborto como problema de saúde pública, o conhecimento sobre a lei do aborto no Brasil, HIV/AIDS e o Hospital da Mulher de Fortaleza. No último dia da Conferência, as participantes haviam votado as cinco propostas, dentre as doze que haviam sido elaboradas no eixo temático. Aquelas que fariam parte do relatório da Conferência, foram as seguintes: - Criar programas que visem à mulher em todas as fases de sua vida, recebendo assim, uma assistência integral e especializada, independente de classe, etnia/raça e orientação sexual. - Sensibilizar e capacitar profissionais de saúde para que os mesmos valorizem as conquistas e acompanhem o processo de transformação da saúde da mulher, oferecendo-lhe uma melhor qualidade e perspectiva de vida. 98 - Realização de mutirões nas comunidades para atendimento de demandas relacionadas à saúde da mulher. - Investir no repasse de informação à comunidade acerca dos direitos da mulher, referentes à sua saúde sexual e reprodutiva, contando com a instrução dos membros da comunidade por parte dos profissionais. - Investir em informações sobre o funcionamento e procedimentos das unidades de saúde junto às comunidades. A III Conferência Estadual de Políticas para Mulheres, que ocorreu nos dias 22 e 23 de outubro de 2011, contou com a participação de 764 delegadas de diferentes municípios cearenses. Cada um dos 64 municípios participantes enviou suas delegadas, juntamente com as propostas votadas pelas mesmas durante as etapas municipais da Conferência. Em prol do pleno exercício da democracia participativa, as delegadas estaduais dividiram-se voluntariamente entre nove eixos temáticos: Eixo I: autonomia econômica e igualdade no mundo do trabalho, com inclusão social. Eixo II: educação inclusiva, não sexista, não racista, não homofóbica, não lesbofóbica e não gerontofóbica. Eixo III: saúde das mulheres: direitos sexuais e direitos reprodutivos. Eixo IV: enfrentamento a todas as formas de violência contra a mulher. Eixo V: participação das mulheres nos espaços de poder e decisão. Eixo VI: desenvolvimento sustentável na cidade e no campo, com garantia de justiça ambiental, soberania e segurança alimentar. Eixo VII: direito a terra, moradia digna e infraestrutura social nos meios rurais e urbanos, considerando as comunidades tradicionais. 99 Eixo VIII: cultura, comunicação e mídia igualitárias, democráticas e não discriminatória. Eixo IX: enfrentamentos das desigualdades geracionais que atingem as mulheres, com especial atenção as jovens e idosas. No eixo temático “Saúde das mulheres: direitos sexuais e direitos reprodutivos”, as propostas votadas pelas delegadas, fruto de calorosas discussões entre as participantes, versaram sobre: - A elaboração de uma lei de descriminização do aborto no Brasil; - A humanização no processo de atendimento de mulheres no sistema de saúde pública; - A possibilidade de esterilização feminina sem a necessidade de permissão do cônjuge; - O investimento em aparelhagem e formação dos profissionais dos postos de saúde. No último dia da Conferência, todas as propostas votadas nos nove eixos temáticos foram lidas em plenária, uma vez que dependiam de aceitação por totalidade das delegadas presentes. Tendo sido aprovadas, essas propostas fizeram parte do relatório encaminhado à Secretaria de Políticas para Mulheres da Presidência da República, com vista à formulação do III Plano Nacional de Políticas para Mulheres, o qual, até o início de 2013, ainda não havia sido divulgado. Ao ser questionada sobre sua opinião acerca das Conferências de Políticas para Mulheres do ano de 2011, Rachel Viana afirma: Foi um processo extremamente importante, pois houve exercício efetivo da participação das mulheres. Foi um espaço onde as mulheres puderam dialogar, mulheres de diferentes grupos, diferentes segmentos, diferentes bairros da cidade, ou seja, pensar e discutir a cidade de Fortaleza a partir das mulheres, das suas necessidades das suas demandas. Então foi bastante importante. (Depoimento de Raquel Viana, Coordenadora da Coordenadoria Especial de Políticas para Mulheres de Fortaleza, em novembro de 2012) 100 Com base no que foi tratado neste capítulo, pode-se perceber que o processo de construção de políticas públicas para mulheres, bem como seu percurso de efetivação, envolve um interesse social pelo fim das desigualdades de gênero, pela igualdade de direitos e pelo respeito à diversidade. Porém, para que esse interesse se concretize é necessária uma mudança cultural no âmbito social, para que se possa romper com preconceitos e discriminações contra as mulheres, criando políticas que atendam as suas necessidades e demandas. 101 7 CONSIDERAÇÕES FINAIS Os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres foram tratados, nesta pesquisa, por meio de uma abordagem sociológica dos direitos humanos. A partir da noção de direitos humanos, a liberdade, a igualdade e a dignidade se apresentam como princípios estruturalmente associados a sua efetivação em âmbito internacional e brasileiro. Desde o surgimento da Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 1948, muitas foram as transformações ocorridas no âmbito jurídico, por meio de conferências, convenções e documentos internacionais voltados aos direitos das mulheres, – tais como a Conferência Mundial de Direitos Humanos de Viena de 1993, a Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento de 1994 e a IV Conferência Mundial da Mulher de 1995, bem como os planos de ação decorrentes das mesmas – os quais deram lugar a atual conceituação de direitos sexuais e reprodutivos. Os direitos sexuais preconizam o exercício da sexualidade livre de discriminação e violência. Os direitos reprodutivos, por sua vez, baseiam-se no reconhecimento da capacidade de cada indivíduo de organizar livremente sua vida reprodutiva, ou seja, escolher o número de filhos que deseja ter, o espaçamento entre eles, o acesso a métodos contraceptivos e a informações necessárias para que possam desfrutar do mais alto padrão de saúde sexual e reprodutiva. No entanto, muito ainda há a ser ponderado, criticado e acrescentado acerca deste tema, visto que tais direitos ainda não fazem parte da realidade de muitas mulheres, inclusive, no Brasil. Embora a Constituição Federal de 1988 forneça base para o reconhecimento dos direitos sexuais e reprodutivos como direitos fundamentais, como não existem leis específicas que tratem destes direitos, a fundamentação dos mesmos se dá por meio de interpretações sistemáticas de normas constitucionais. Além disso, a prostituição, o assédio e a exploração sexual, o tráfico de mulheres, os altos índices de mortalidade materna, o aborto 102 ilegal e os altos níveis de esterilização são exemplos de como a efetividade desses direitos se encontra comprometida em âmbito nacional. Uma das primeiras dificuldades encontradas na efetivação desses direitos consiste no fato de a concepção dos mesmos estar vinculada exclusivamente às mulheres. Embora o Plano de Ação do Cairo afirme que os titulares dos direitos reprodutivos são as mulheres, os homens, os casais, os adolescentes e as pessoas idosas, é para as mulheres que as leis e as políticas públicas estão mais voltadas, destinando-lhes mais deveres do que direitos no âmbito reprodutivo. Dessa forma, o cruzamento entre normas jurídicas e políticas públicas parece convergir com o conceito de biopolítica de Foucault (2012), uma vez que as mesmas funcionariam como técnicas e procedimentos que teriam a função de ordenar a conduta dos indivíduos. Neste sentido, o corpo da mulher estaria sendo adestrado por meio de técnicas de poder, as quais agem sobre o biológico e são refletidas no campo político. Neste contexto, é possível perceber a forte tensão existente entre as esferas pública e privada. A partir da contribuição de Arendt (2007), percebe-se que, quando se trata de direitos sexuais e reprodutivos, a dicotômica que estabelece uma separação irreconciliável entre o público e o privado sofre modificações. A sexualidade, mantida na obscuridade da esfera privada, é, então, trazida para a esfera pública sob a forma de normas e políticas voltadas à saúde sexual e à reprodução. Dessa forma, as técnicas de adestramento dos corpos femininos efetuadas pelo Estado, na esfera pública, consistem em leis e políticas públicas relacionadas à higiene e à saúde públicas. Outras questões, como as do conhecimento do próprio corpo, a conquista do prazer e o desenvolvimento livre da sexualidade são mantidos na esfera privada. A interdependência entre direitos sexuais e direitos reprodutivos é outra questão delicada. A ideia de direitos sexuais está intimamente vinculada à concepção de direitos reprodutivos. Mostra-se necessário, portanto, fortalecer o direito da sexualidade para que ultrapasse a esfera reprodutiva. No entanto, da mesma forma que o direito da sexualidade não pode se resumir ao direito da reprodução, os direitos sexuais não devem restringir-se a um direito da sexualidade não-reprodutiva. 103 Essas tensões que envolvem a problemática dos direitos sexuais e reprodutivos são oriundas de noções historicamente construídas de “gênero”, “sexualidade” e “corpo”. O gênero faz referência a um conceito elaborado pelas ciências sociais para analisar a construção sócio-histórica das identidades masculina e feminina. Os problemas encontrados na efetivação dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres estariam relacionados a uma assimetria entre os gêneros. Nas sociedades ocidentais, esta assimetria corresponde à subordinação do sexo feminino em relação ao masculino, tanto na esfera pública como na privada. Com a finalidade de reduzir as desigualdades entre homens e mulheres, a partir da década de 1980, no Brasil, a perspectiva de gênero foi incorporada pelos governos municipais. Dessa forma, as políticas públicas desenvolvidas visam valorizar ambos os sexos, reconhecendo, entretanto, as diferenças entre eles. A incorporação da perspectiva de gênero pelos governos municipais, bem como o desenvolvimento de políticas de gênero, foi uma conquista do movimento feminista brasileiro, o qual começou suas manifestações durante a década de 1960. No entanto, embora seja possível apontar avanços nesse domínio, ainda há muito a fazer em termos de configuração de políticas de gênero no Brasil. No que tange a institucionalização de organismos de governo, as Coordenadorias e Secretarias de Políticas para Mulheres consistem em meios de articular políticas públicas que visem à diminuição das desigualdades de gênero. A Coordenadoria Especial de Políticas para Mulheres de Fortaleza foi criada no ano de 2005, durante o governo da Prefeita Luizianne Lins, sendo embasada numa perspectiva democrática de construção da igualdade e combate às discriminações de gênero. Com base em entrevista realizada com Raquel Viana, responsável por esta Coordenadoria, bem como em dados obtidos por meio do livro “Políticas para mulheres em Fortaleza: desafios para a igualdade”, publicado pela Prefeitura de Fortaleza, pude constatar que as 104 atividades desenvolvidas por este órgão entre os anos de 2005 e 2013, voltadas especificamente aos direitos sexuais e reprodutivos, consistem em: - Acompanhamento do Centro de Referência Francisca Clotilde, desde sua criação em 2006. Este centro tem o objetivo de fornecer atendimento psicológico e social a mulheres vítimas de violência doméstica, bem como orientação jurídica às vítimas; - A reestruturação do Comitê Municipal de Mortalidade Materna (CMMF), que funciona desde 2005, com o objetivo de identificar os problemas que envolvem a mortalidade materna no município, buscando meios de impedir sua recorrência e estratégia para a solução deste problema. - Acompanhamento do Hospital da Mulher, cujo projeto data de 2005, tendo seu funcionamento iniciado recentemente, em julho de 2012. - Organização das III Conferências Pré-municipal e Municipal de Políticas para Mulheres que ocorreram em Fortaleza no ano de 2011. Embora, com a criação da Lei Maria da Penha, a violência sexual tenha sido incluída no âmbito da violência doméstica, os centros de atendimento a mulheres vítimas de violência abordam a problemática dos direitos sexuais e reprodutivos de uma forma esparsa, sendo estes tratados juntamente com outras categorias de violência, como a física e a psicológica. Dessa forma, tais direitos acabam sendo tratados de modo negativo. É necessária a criação de políticas públicas que tratem dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres de uma forma alternativa e positiva, que não coloque a mulher numa situação vitimizadora, de ser frágil e vulnerável. Sem querer negar a importância da assistência às mulheres vítimas de violência sexual, enfatizo uma necessidade muito maior de desenvolvimento de políticas públicas que busquem acarretar transformações estruturais e culturais na sociedade. De acordo com Lourdes Góes (2008), coordenadora do projeto do Hospital da Mulher, a mortalidade materna era o alvo das políticas voltadas aos 105 direitos sexuais e reprodutivos em Fortaleza. O Comitê Municipal de Mortalidade Materna mostrou cumprir com seu objetivo a partir dos dados divulgados pelo Ministério da Saúde, os quais apontam o decréscimo no número de óbitos maternos entre os anos de 2005 e 2012. No entanto, de acordo com Ministério da Saúde, o Ceará está entre os estados com maior índice de mortalidade materna. A Organização Mundial da Saúde (OMS), por sua vez, também considera o número de óbitos maternos no Ceará muito alto.18 Assim, com a finalidade de proporcionar melhorias às condições de saúde das mulheres, foi criado o Hospital da Mulher de Fortaleza, primeiro hospital municipal construído para atender exclusivamente as mulheres. A partir de entrevista realiza com a diretora deste hospital, Dr.ª Zenilda Bruno, questões referentes ao projeto do hospital, bem como a sua construção e dinâmica interna foram elucidadas. De acordo com a diretora, o hospital estaria funcionando desde o mês de julho de 2012, tendo o atendimento por parte dos seus diversos setores sido iniciado progressivamente, com exceção da UTI neonatal, a qual ainda não se encontra ativa. Contrariando o que foi dito pela diretora, a imprensa local divulgou matéria em que os servidores do hospital reclamavam das condições de trabalho, por falta de medicamentos e equipamentos de proteção pessoal, além de afirmarem que diversos leitos e centros cirúrgicos não estariam funcionando por falta de equipamentos e profissionais. Além dos problemas destacados pelos servidores do hospital, a diretora afirmou que existe um projeto de estruturação de unidade voltada exclusivamente para os direitos sexuais e reprodutivos, mas que ainda não tinha sido aberta. A meu ver, visto a necessidade de efetivação desses direitos e com base na perspectiva seguida pelo próprio hospital, a criação dessa unidade deveria ter sido privilegiada no projeto do mesmo. 18 UNIVERSIDADE LIVRE FEMINISTA. Índice de mortalidade materna no Ceará é “muito alta”, diz OMS. Disponível em: << http://www.feminismo.org.br/livre/index.php?option=com_content&view=article&id=2350:indicede-mortalidade-materna-no-ce-e-amuito-altoa-diz-oms&catid=78:business-tech&Itemid=615>> Acesso em: 05 mar. 2013. 106 Como pode ser observado com base nas políticas implantadas pela Coordenadoria Especial de Políticas para Mulheres de Fortaleza, as políticas públicas sobre direitos sexuais e reprodutivos estão, em sua maioria, limitadas a questões de saúde pública. Tal fato pode ser constatado a partir da própria nomenclatura do Grupo de Trabalho voltado a esses direitos durante as Conferências de Políticas para Mulheres organizadas pela Prefeitura de Fortaleza: “SAÚDE DA MULHER: direitos sexuais e direitos reprodutivos”. No contexto dos direitos sexuais e reprodutivos, as Conferências de Políticas para Mulheres consistem em espaços privilegiados de reivindicação em torno das tensões e contradições que envolvem a sexualidade feminina. Durante as Conferências realizadas em Fortaleza em 2011, as formulações elaboradas e votadas pelas delegadas para fazerem parte do Plano Nacional de Políticas para Mulheres versaram principalmente sobre: - A elaboração de uma lei de descriminalização do aborto no Brasil; - A humanização no processo de atendimento de mulheres no sistema de saúde pública; - A possibilidade de esterilização feminina sem a necessidade de permissão do cônjuge; - O investimento em aparelhagem e formação dos profissionais dos postos de saúde. Embora estas conferências tenham grande importância no contexto da participação política das mulheres no Estado democrático, elas só acontecem a cada três anos. Sendo assim, é necessário que exista uma abertura permanente de diálogo entre os movimentos organizados de mulheres, bem como da sociedade civil de uma forma geral, e os órgãos responsáveis pela elaboração e implantação de políticas para mulheres. Acredito que os profissionais que têm a função de pensar e implantar essas políticas têm de estar constantemente cientes das demandas sociais, permitindo, inclusive, redefinições no rumo das políticas já implantadas. 107 De acordo com documentos elaborados por diferentes órgãos internacionais – como a CEDAW e o FNUAP – a cultura é um fator que obstaculiza a efetivação dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, visto que “gênero”, “sexualidade” e “corpo” são noções construídas culturalmente. A apropriação da fecundidade feminina pelo sexo masculino teria dado origem às desigualdades de gênero, visto que em muitos sistemas culturais, as tarefas entre os sexos são designadas levando-se em conta as diferenças anatômicas dos mesmos. Dessa forma, a mulher teria ficado responsável pela procriação e pelo cuidado com a prole. Tal perspectiva se reflete no ordenamento jurídico brasileiro e nas políticas públicas para mulheres, nos quais os direitos sexuais e reprodutivos acham-se direcionados exclusivamente para as mulheres, fazendo menção a uma figura reprodutora/materna. Uma vez que o gênero é produto da cultura, existem discursos de legitimação sexual, os quais justificam a hierarquização do masculino e do feminino na sociedade. Consistem em sistemas de crenças que especificam as características de cada sexo, a partir daí, determinando os direitos, as atividades e as condutas de cada um deles. A religião é um dentre os vários campos de ação social que produz e difunde este tipo de discurso. Por se tratar do culto religioso mais representativo no Brasil, o catolicismo apostólico romano foi escolhido como cerne do campo empírico desta pesquisa, tendo sido realizada entrevista com o Monsenhor Manfredo Ramos, padre e professor da Faculdade Católica de Fortaleza. Durante a entrevista o Monsenhor foi questionado acerca das concepções da Igreja Católica a respeito da sexualidade e das ideologias de gênero, bem como da visão da mesma acerca dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres. De uma forma geral, Monsenhor Manfredo afirmou que, desde o Concílio Vaticano II, o paradigma de problemáticas, tais como a sexualidade, o matrimônio, a família, sofreu uma grande mudança. Passou-se de um paradigma “naturalista”, com centro na procriação, para outro, definido como “personalista”, com base no amor. Segundo ele, a mulher, antes vista como 108 disseminadora do pecado na Terra, – nas palavras de teólogos da Igreja, como Santo Agostinho, São Jerônimo e São Tomás de Aquino – hoje, assume uma posição de igualdade com o homem perante a Igreja. No entanto, embora a Igreja Católica tenha mudado seu ponto de vista a respeito de tais questões, outras permanecem inegociáveis, como: o livre uso do corpo, o aborto, o casamento homossexual e a adoção de crianças por esses casais, por exemplo. Dessa forma, é possível observar que os direitos sexuais e reprodutivos, conforme sua definição estabelecida pelos documentos internacionais, não são aceitos pela Igreja. Não seria correto afirmar que a Igreja Católica, como instituição religiosa e sujeito internacional (Santa Sé), ainda exerce a mesma influência sobre a vida das pessoas, no que toca ao campo político, social e cultural, que há anos atrás. Nas últimas décadas, o número de católicos tem diminuído, somando-se à laicização do Estado e à pluralidade religiosa vigente nas sociedades ocidentais, a Igreja perdeu parte de seu espaço. No entanto, de acordo com a teoria da secularização, o elemento chave da concepção religiosa, na atualidade, é a existência de uma fé pessoal, formada a partir da junção de elementos de diversas religiões, inclusive mesclando-os a temas místicos e esotéricos. Com base nas manifestações contra o casamento homossexual e a descriminalização do aborto no Brasil19, as quais reúnem milhares de pessoas nas ruas, é possível concluir que, embora a Igreja não exerça mais uma influência direta sobre os indivíduos, estes, voluntariamente, incorporaram elementos da doutrina católica em suas crenças. Finalmente, é possível concluir que, uma vez que as políticas públicas são elaboradas e implantadas por representantes de segmentos sociais diversos, fatores culturais – notadamente religiosos – exercem influência nesse processo, tornando inviável a apreensão deste fenômeno a 19 REVISTA VEJA. Marcha de evangélicos e católicos protesta contra aborto, casamento gay e legalização da maconha. 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Rio de Janeiro: LTC, 1982. 118 ANEXOS 119 UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ – UECE Mestrado Acadêmico em Políticas Públicas e Sociedade - MAPPS Projeto de pesquisa A EXPRESSIVIDADE DOS DIREITOS SEXUAIS E REPRODUTIVOS NAS POLÍTICAS PÚBLICAS PARA MULHERES DESENVOLVIDAS NA CIDADE DE FORTALEZA Sarah Dayanna Lacerda Martins Lima Fortaleza Agosto – 2011 120 SARAH DAYANNA LACERDA MARTINS LIMA A EXPRESSIVIDADE DOS DIREITOS SEXUAIS E REPRODUTIVOS NAS POLÍTICAS PÚBLICAS PARA MULHERES DESENVOLVIDAS NA CIDADE DE FORTALEZA Fortaleza 121 * DELIMITAÇÃO DO OBJETO Os direitos sexuais e reprodutivos são direitos humanos que, como o próprio nome sugere, estão relacionados à sexualidade e à reprodução, devendo ser exercidos livres de discriminação. Assim, cada indivíduo tem o direito à igualdade e de ser livre de todas as formas de discriminação quanto ao exercício da sexualidade, pois, sem igualdade, não há liberdade, e sem liberdade tampouco existirá a equidade. Os direitos de evitar gravidez, exploração, abuso e assédio sexual são alguns dos quais elencam essa gama de direitos fundamentais. É incontestável o fato de que a sexualidade e a reprodução são ainda utilizadas como meios de controle do corpo e da mente dos seres humanos. As mulheres são as principais vítimas da forte influência de posições fundamentalistas e conservadoras, advindas, na sua maior parte, de preceitos religiosos e aspectos culturais, impressos fortemente na opinião popular. Durante muito tempo, a opinião das mulheres foi marginalizada. As suas contribuições para a História e para a cultura nunca foram completamente reconhecidas e a luta contra a violência, assédio e exploração sexual é mais antiga do que se imagina. A sexualidade feminina e a reprodução foram sempre tabus, alvos de repressões. Com o passar do tempo, aos poucos, estas concepções foram mudando e vários documentos internacionais foram elaborados com a finalidade de proporcionar liberdade e proteção às mulheres. Levando-se em conta a cronologia dos direitos, é bastante recente a emergência dos direitos sexuais e reprodutivos como direitos humanos. Estes novos conceitos de direitos começaram a se formar a partir do séc. XX, quando começou a ganhar força a ideia de direito individual. A elaboração desses direitos em vários documentos internacionais advém das transformações sofridas pelo Direito Internacional Público após a 2ª Guerra Mundial. Além dos dispositivos internacionais, a 122 Constituição brasileira de 1988 fornece base satisfatória para o reconhecimento dos direitos sexuais e reprodutivos. É evidente a necessidade da afirmação dos direitos sexuais e reprodutivos a partir das manifestações sociais contra desigualdades de gênero, do surgimento de novas formas de se exercer a sexualidade e do choque causado pela epidemia de HIV/AIDS, por exemplo. Todavia, são muitos os desafios que se apresentam para o desenvolvimento e a percepção desses direitos. Uma das barreiras que se impõe diante dessa problemática consiste em arraigadas práticas culturais que foram historicamente construídas, verificáveis e diferenciadas entre comunidades de diversos países do mundo. Tornam-se bastante evidentes as influências culturais empregadas nas políticas dos Estados, que, por vezes, acabam dificultando a ocorrência de avanços dentro da temática dos direitos sexuais e reprodutivos da mulher, na medida em que valoram negativamente o exercício da sua sexualidade. Voltando-se para o âmbito nacional, dando enfoque cultural a este, pode-se dizer que no Brasil, assim como em tantos outros países, a dificuldade que as mulheres encontram em exercer seus direitos reprodutivos e sexuais se deve, essencialmente, às relações desiguais entre homens e mulheres. Essas desigualdades se devem, principalmente, ao confinamento das mulheres ao espaço privado. Pode-se perceber que a problematização de aspectos da vida das mulheres, tidos como questões estritamente de âmbito privado, como a sexualidade e a reprodução, são silenciosamente regulados pelo Estado capitalista-patriarcal, deixando visível uma intensa dialética entre o público e o privado. Nos últimos 20 anos, a Saúde e os Direitos Sexuais e Reprodutivos – ainda que pouco expressivos – têm sido pauta de alguns setores dos movimentos sociais e dos governos, adquirindo status mundial de questão de 123 saúde pública. No entanto, a problemática que envolve os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres não alcança somente a esfera da saúde pública. Neste contexto, vários outros campos da vida das mulheres estão englobados, como as relações sociais, as relações de trabalho e a educação, por exemplo. Dessa forma, a temática desta pesquisa está intimamente relacionada a nossa cultura e às regras comportamentais que foram historicamente construídas em nossa sociedade e que influenciam na regulamentação do Estado e na aplicação de políticas públicas voltadas para as mulheres. Diante deste contexto, o desenvolvimento de políticas públicas para mulheres na cidade de Fortaleza será analisado e utilizado como base para esta pesquisa, a qual terá como foco a expressividade dos direitos sexuais e reprodutivos dentro das mesmas. Portanto, procurar-se-á verificar, durante a pesquisa, os seguintes questionamentos: 1. Como aspectos culturais e religiosos podem influenciar nas políticas públicas para mulheres? 2. Em Fortaleza, como os direitos sexuais e reprodutivos são vistos, em seu conceito, pelos responsáveis pela implementação de políticas públicas? 3. O que pode ser relatado sobre a elaboração de políticas públicas para mulheres na cidade de Fortaleza? 124 * JUSTIFICATIVA A temática proposta apresenta complexidade em seu conteúdo e um vasto contexto histórico a ser explorado. Os direitos sexuais e reprodutivos, como matéria de estudo, são bastante recentes. São poucas as obras que versam sobre eles por tratar-se de tema polêmico e cercado de controvérsias. Por meio de pesquisas, sabe-se que os maiores obstáculos, no sentido de combater agressões contra os direitos sexuais e reprodutivos da mulher, apresentam-se na forma de aspectos culturais e preceitos religiosos impregnados à população, os quais submetem a mulher a uma posição de inferioridade, influenciando, ainda, a elaboração e a implementação das políticas públicas desenvolvidas para as mulheres. No ranking de estados brasileiros, o Ceará está em quarto lugar em registros de exploração sexual. A cidade de Fortaleza, que aparece no discurso da imprensa como ponto de turismo sexual, prostituição e tráfico de mulheres e crianças, ocupou, no ano de 2009, o segundo lugar entre 54 municípios brasileiros que mais receberam denúncias de exploração sexual contra crianças e adolescentes. Tomando estes dados como base, é indispensável que haja uma análise sobre o desenvolvimento de políticas públicas voltadas para os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres na cidade de Fortaleza. Faz-se necessário o estudo dos direitos sexuais e reprodutivos com um enfoque cultural no âmbito das políticas públicas – não apenas na esfera da saúde pública – devido à escassez da produção científica sobre o tema, sendo, assim, pouco estudado e explorado em sua abrangência. Dessa maneira, o desenvolvimento de investigações relativas ao tema em questão pode despertar, na comunidade acadêmica, um maior interesse sobre o conhecimento e a exploração do assunto, que se apresenta como objetivo fundamental desta pesquisa. Isso leva a efeito, por via de conseqüência, a compreensão de que as dificuldades que a mulher encontra 125 em exercer seus direitos sexuais e reprodutivos provém de relações desiguais entre homens e mulheres, o que foi historicamente estruturado a partir de fatores culturais, os quais, por sua vez, influenciam na elaboração de políticas públicas para mulheres. 126 * OBJETIVOS Geral Analisar a trajetória da construção de políticas públicas para mulheres no Brasil, estas referentes aos direitos sexuais e reprodutivos, tomando como base as políticas implementadas na cidade de Fortaleza e averiguando a influência de valores culturais, sobretudo religiosos, sobre as mesmas. Específicos 1. Averiguar como aspectos culturais e religiosos podem influenciar as políticas públicas para mulheres. 2. Analisar como os direitos sexuais e reprodutivos são vistos, em seu conceito, pelos profissionais responsáveis pela implementação das políticas para mulheres na cidade de Fortaleza. 3. Acompanhar e relatar o processo de elaboração de políticas públicas para mulheres, com base nas Conferências de Políticas para Mulheres e nas atividades da Coordenadoria de Políticas para Mulheres da Prefeitura de Fortaleza. 127 * REFERENCIAL TEÓRICO Ter direitos garantidos em lei é suficiente para que os direitos das mulheres sejam respeitados? Situações comuns do cotidiano mostram que não. Teles (2007, p. 65) faz referência a situações alarmantes de desrespeito aos direitos humanos das mulheres pelo mundo: Na Argentina, estima-se que ocorrem 6 mil estupros por ano; 300 chegam à Justiça e menos de 10% dos criminosos são condenados. Em Uganda, devido à crença de que as mulheres adolescentes transmitem menos Aids que as adultas, a taxa de contaminação pelo HIV entre elas é seis vezes maior que entre os rapazes. No Egito e em outros países do Oriente Médio e África, ainda mutilam-se adolescentes, amputando-lhes o clitóris para reduzir o desejo e o prazer sexual. Em nome da tradição e cultura, já chegam a 100 milhões de mulheres de 26 países africanos com órgãos sexuais mutilados. A cada ano, mais de 2 milhões de mulheres sofrem mutilações nesses países. Segundo Bobbio (1992), o grande problema do nosso tempo não seria mais o de fundamentar os direitos humanos, mas o de protegê-los. O problema não seria filosófico, mas jurídico e, num sentido mais amplo, político. Vários aspectos do exercício da sexualidade e da reprodução humanas são objeto de regulamentação legal. As leis que versam sobre este tema, muitas vezes, buscam priorizar mais os interesses do Estado e das classes dominantes do que, propriamente, a promoção e a garantia do bemestar humano. Isso se deve ao fato de sofrerem forte influência da tradição e do conservadorismo moral e religioso, marcas de uma construção cultural, em sua elaboração. A Declaração Universal dos Direitos Humanos adotada pela ONU, em 1948, trouxe a concepção dos direitos humanos contemporâneos, servindo de resposta à barbárie da Segunda Guerra Mundial. Trouxe, pela primeira vez, mesmo que de maneira não tão explícita, redação que trata dos direitos sexuais e reprodutivos, uma vez que estabelece igualdade entre homem e mulher durante o casamento, assim como na altura da sua dissolução e, ainda, a liberdade para contrair, ou não, matrimônio, como se pode observar a partir de seu art. 16: 128 1.Os homens e mulheres de maior idade, sem qualquer restrição de raça, nacionalidade ou religião, têm o direito de contrair matrimônio e fundar uma família. Gozam de iguais direitos em relação ao casamento, sua duração e sua dissolução. 2.O casamento não será válido senão com o livre e pleno 20 consentimento dos nubentes. Esse ato de resposta das Nações Unidas acabou por caracterizar uma inovação na gramática dos direitos humanos, incorporando os princípios da universalidade e da indivisibilidade. A Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW) também configura um documento internacional, o qual versa sobre os direitos humanos das mulheres. Ela foi adotada pela Assembléia Geral das Nações Unidas em 1979, sendo o único documento de direitos humanos que afirma os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres e estabelece a tradição e a cultura como forças de influência sobre as relações familiares e de gênero. A partir desses fatos, houve o surgimento de uma reflexão crítica acerca das mais diversas situações repressoras de tais direitos que, ao longo do século XX, foram sendo trabalhadas com surpreendente singularidade, dando espaço a várias outras manifestações, a exemplo da “Conferência do Cairo”. A Conferência Mundial sobre População e Desenvolvimento (CIPD), celebrada no Cairo, entre os dias 5 e 13 de setembro de 1994, inscreveu-se no amplo conjunto de iniciativas sobre o amparo das Nações Unidas no campo social, produzindo, inclusive, celeumas, traduzidas, de maneira geral, em acaloradas polêmicas em muitos países, envolvendo necessariamente conceitos e valores de foro íntimo e conteúdo ético, como a família, a procriação e os direitos individuais. A mesma contou com delegações de 182 países, mais 2 mil ONGs e, ao todo, congregou cerca de 20 mil pessoas de diversas nacionalidades – o dobro da Conferência de Viena sobre Direitos Humanos de 1993. 20 ONU. Declaração Universal dos Direitos Humanos. Disponível em: <http://www.mj.gov.br/sedh/ct/legis_intern/ddh_bib_inter_universal.htm> Acesso em: 05 set. 2010. 129 Sobre a Conferência do Cairo, Rios (2007, p. 17) afirma que: Em 19994, a Conferência Mundial sobre População e Desenvolvimento (Cairo) estabeleceu um programa de ação que afirmou os direitos reprodutivos como categoria de direitos humanos já reconhecidos em tratados internacionais, incluindo o direito à escolha livre e responsável do número de filhos e de seu espaçamento, dispondo da informação, educação e meios necessários para tanto. Importante para os fins deste estudo foi a declaração de que a saúde reprodutiva implica a capacidade de desfrutar de uma vida sexual satisfatória e sem riscos. No contexto dos direitos sexuais e reprodutivos, a Conferência do Cairo foi um divisor de águas. Desta Conferência decorreu o Programa de Ação do Cairo, o qual conseguiu um nível inédito de consenso, inclusive por parte da Santa Sé, mediante suas contribuições substantivas e inovadoras. Além disso, serviu de referência para outras conferências programadas pela ONU, orientando-as. Uma dessas conferências posteriores foi a IV Conferência Mundial sobre a Mulher, em Pequim, em setembro de 1995. A Conferência de Pequim de 1995 reforçou a necessidade da proteção dos direitos ligados aos direitos reprodutivos, que sejam os direitos sexuais, o direito à saúde, à igualdade e à não-discriminação, dentre outros. A Plataforma de Pequim, no capítulo “Mulher e Saúde”, deu ênfase à questão da saúde sexual, afirmando o direito ao livre exercício da sexualidade. Várias foram as convenções, alimentadas por um grande debate entre feministas, avançando na construção dos conceitos de direitos sexuais e reprodutivos. Elas consistem em importantes instrumentos jurídicos internacionais, pois comprometem os governos signatários a construir políticas públicas dentro desse tema. Pode-se citar a Convenção Interamericana para Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher, conhecida como Convenção de Belém do Pará, de junho de 1994, a qual tem força de lei interna, conforme dispositivo no § 2º do art. 5º da Constituição Federal vigente. A Convenção de Belém do Pará apresenta relevante importância no âmbito latino-americano, pois salienta a preocupação com relação aos atos de violência domésticos e estatais contra a mulher. 130 Apesar de todo o esforço na luta contra a violação de um dos mais básicos direitos humanos, o direito à saúde reprodutiva, continuam a existir, em nível planetário, agressões a esses paradigmas, levando ao fracasso todas as precauções que se tem tomado para evitá-las. Essa afronta trouxe consigo a necessidade de realização de estudos e pesquisas, dando origem ao Relatório do Fundo das Nações Unidas para a População (FNUAP). Esse relatório, também chamado “O Direito de Escolher: Direitos Reprodutivos e Saúde Reprodutiva”, divulgado no dia 28 de maio de 1997, apresenta os entendimentos mundiais que definem os direitos sexuais e reprodutivos, enumera os problemas encontrados para efetuar-se a proteção desses direitos e analisa os efeitos de sua negação. A partir de tal pesquisa, foi constatada uma realidade preocupante de incrível desrespeito a esses direitos. De acordo com Antônio Silveira Ribeiro dos Santos, as estatísticas lançadas no relatório do FNUAP relatam que: - 585.000 mulheres morrem todos os anos por causas relacionadas à gravidez, sendo quase todas de países em desenvolvimento; - 200.000 mortes maternas por ano resultam de falta ou fracasso de anticoncepção; -350 milhões anticoncepção; de casais carecem de informações sobre - das 75 milhões de gravidezes indesejadas, 45 milhões resultam em aborto e 70.000 mortes por ano se dão por falta de condições 21 assépticas adequadas. Os maiores obstáculos da ONU no sentido de combater tão graves agressões se apresentam na forma de aspectos culturais e preceitos religiosos impregnados na população, os quais submetem a mulher, de forma recorrente, a uma posição de inferioridade. Neste contexto, voltando ao pensamento de Bobbio (1992, p. 25) acerca dos direitos humanos, o autor afirma que: Não se trata de saber quais e quantos são esses direitos, qual é a sua natureza e seu fundamento, se são direitos naturais ou históricos, 21 SANTOS, Antônio Silveira Ribeiro dos. Direitos Reprodutivos. Disponível em: <http://www.aultimaarcadenoe.com/reproduz.htm> Acesso em: 05 set. 2010. 131 absolutos ou relativos, mas sim qual é o modo mais seguro de garanti-los, para impedir que, apesar das solenes declarações, eles sejam continuamente violados. A mutilação genital, por exemplo, é uma prática ainda exercida em cerca de 28 países, por povos de diversas etnias; um costume ancestral. Essa espécie de mutilação consiste na ablação do clitóris e dos pequenos lábios, a fim de que a mulher não sinta prazer durante a relação sexual. Quanto às mutilações genitais femininas (MGF), percebe-se que as mentalidades mudam, mas ainda de forma muito lenta. De acordo com matéria lançada pela Revista Label France, até 2005, três países da União Africana haviam ratificado um Protocolo sobre os direitos das mulheres na África e doze Estados africanos – dentre eles: Senegal, Gana e Burkina Faso – juntamente com sete países ocidentais, adotaram leis que repreendem esse tipo de conduta. Na França, por exemplo, o Código penal prevê, efetivamente, para qualquer contraventor, mais de 150.000 euros de multa e dez anos de prisão, cuja pena máxima pode chegar a vinte anos de reclusão se a vítima tiver idade inferior a quinze anos. No entanto, essas normas seguem sendo burladas. No relatório, destacou-se, também, a existência de um grande número de mulheres infectadas por doenças sexualmente transmissíveis, principalmente a AIDS. Sem falar na submissão da mulher a várias rigorosas regras impostas por sociedades machistas. O estudo ainda constata que as restrições à participação social da mulher impedem o acesso desta aos serviços de saúde reprodutiva, além de lhe faltarem recursos e informações. A educação é um fator de grande importância neste contexto, pois, a partir do momento que as mulheres se iniciam a instruir em relação aos seus direitos, começam a querer transformar a maneira como são vistas e a difundir uma nova impressão. Referida problemática também se dá, especialmente, devido a entraves de ordem religiosa. É sabido que a Igreja Católica é opositora ferrenha da ideia de controles não-naturais de fecundidade, do aborto em qualquer circunstância e da adoção de práticas que possam, de alguma forma, envolver relações extramatrimoniais ou a sexualidade dos adolescentes. Ela 132 exerce forte influência em plano mundial por meio de seus dogmas, defendendo a prática de sexo para fins puramente reprodutivos e proibindo o aborto por ser um ato de tirar vidas. É possível que por todos esses motivos os direitos sexuais e reprodutivos tenham ficado fora do Projeto do Milênio22, estabelecido em setembro de 2000. As oito metas, cujo nome oficial é “Objetivos de Desenvolvimento da ONU para o Milênio”, fixadas para serem atingidas até 2015, recolheram, de maneira muito sintética, compromissos e linhas de ações de conferências realizadas pelas Nações Unidas sobre população, infância, meio ambiente, pobreza e direitos humanos, desenvolvidas principalmente nos anos de 1990. No entanto, segundo as organizações que trabalham com direitos sexuais e reprodutivos, a ONU considerou esse tema como perigoso, que poderia gerar rejeição. Dessa forma, esses direitos acabaram por configurar uma das lacunas das metas e os assuntos vitais para a mulher foram submissos a aspectos muito gerais. Apesar da sua não-inclusão no Projeto da ONU, as questões referentes aos já citados direitos vem sendo tratadas por diversos órgãos especializados que formam o Sistema das Nações Unidas. O Fundo de Desenvolvimento das Nações Unidas para a Mulher (UNIFEM) foi criado em 1976, a partir da I Conferência Mundial das Nações Unidas sobre a Mulher, em 1975, na Cidade do México. Esse órgão trabalha pelos direitos da mulher, entre eles, os direitos sexuais e reprodutivos, juntamente com outros organismos da ONU, como a UNAIDS. O Programa Conjunto das Nações Unidas sobre o HIV/AIDS (UNAIDS), criado em 2004, por sua vez, promove ações para cessar e reverter a propagação do HIV. Para tanto, centra-se em uma questão fundamental que é a ampliação e o reforço dos serviços de saúde sexual e reprodutiva. 22 ONU. Sobre o Projeto do Milênio. Disponível em: <http://www.pnud.org.br/milenio/> Acesso em: 05 set. 2010. 133 Outra organização que trabalha em prol desses direitos é a UNINSTRAW, Instituto Internacional de Treinamento e Pesquisa das Nações Unidas para o Progresso da Mulher. Tal instituto é líder em ações estratégicas e inovadoras, visando modificar a vida das mulheres. A partir do que foi relatado, percebe-se que, apesar das arbitrariedades que ocorrem por todo o mundo, continuam a ocorrer avanços e vitórias no âmbito dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, representados pelo constante aumento na criação de organizações e comitês responsáveis pela defesa destes direitos, os quais são consequência da vontade conjunta das mulheres de lutar por uma vida livre e digna. No Brasil, assim como em tantos outros países, as mulheres têm exercido os seus direitos sexuais e reprodutivos de forma conflituosa, em um contrato marcado por relações desiguais entre homens e mulheres, intensificado por uma cultura fortemente influenciada por preceitos religiosos. O aborto, no Brasil, assim como em diversos países onde sua prática é considerada ilegal, constitui um grave problema de saúde pública. Isso se deve ao fato de que a legislação vigente, que criminaliza o aborto, não tem sido capaz de evitar sua ocorrência. Apesar de haver projetos de lei que objetivam rever a previsão do aborto no País, não houve ainda mudanças no sistema jurídico brasileiro. O aborto, crime tipificado nos artigos 124, 125, 126, 127 e 128 do Código Penal, configura a quarta causa de morte materna no País. A informação, fornecida à população brasileira, sobre métodos contraceptivos seguros e reversíveis, e sobre a esterilização para casais que querem encerrar suas carreiras reprodutivas é ainda muito precária. Tal situação constitui um fator determinante da elevada incidência de gravidezes não-programadas, sobretudo em adolescentes, seguidas de aborto. Sem falar que os gastos com o atendimento de mulheres em situação de abortamento oneram o sistema de saúde. 134 De acordo com os dados fornecidos por Teles (2007), no Brasil, o parto representa a principal causa de internação de meninas no sistema público de saúde. Além disso, 6% dos óbitos de mulheres entre 10 e 49 anos estão relacionados à gravidez e ao parto. A utilização de métodos anticoncepcionais pelos jovens brasileiros é muito reduzida, contando com apenas 14% das meninas entre 15 e 19 anos que usam algum tipo de método. Enquanto que os métodos contraceptivos são precariamente utilizados, estimase que o Brasil detenha os maiores índices de esterilização do mundo. A esterilização cirúrgica feminina, método que consiste na ligadura das trompas uterinas da mulher, é utilizada de forma abusiva pelas jovens brasileiras, uma vez que deveriam ser seguidas uma série de formalidades para desencorajar tal prática, previstas nos artigos 10 a 18 da Lei nº 9262/96. A disseminação deste método em mulheres muito jovens traz consequências negativas no campo dos direitos humanos, da economia, da política, da cidadania, dentre vários outros. Outro tipo de desrespeito aos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres do País consiste na curetagem sem anestesia, abordada por Teles (2007, p. 80): Quando chegam aos hospitais em processo de aborto, são tratadas com descaso, com preconceito; não recebem nenhuma explicação sobre seu estado de saúde/doença; não recebem orientação sobre meios contraceptivos para lhes garantir sexo seguro e o planejamento do número de filhos. Como se pode observar, a curetagem sem anestesia é uma forma de violência contra a mulher e, consequentemente, uma violação aos direitos humanos. As práticas médicas, marcadas pelo controlismo e pela desvalorização da fala e do corpo das mulheres, mostram-se como um dos pontos fulcrais na qualidade do atendimento às mulheres, pela sua natureza “violadora” e “violenta”, uma vez que objetificam o sujeito feminino, transformando-o em objeto da intervenção (ARENDT, 2007). 135 O Brasil é um dos países que faz parte da rota do tráfico sexual. Mulheres e crianças são levadas ao exterior para serem recrutadas à prostituição. Sem falar nos casos de exploração sexual dentro do próprio País, que adquire dimensões alarmantes. O assédio sexual é uma prática comum no cenário nacional. Certas ações dos homens não chegam propriamente a ser consideradas como violações aos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres. É como se os direitos das mulheres fossem secundários. Isso se deve a valores que estão arraigados em nossa cultura e que dificultam a implementação de políticas que visem à melhora desta situação. Da mesma forma, direitos fundamentais, como o acesso aos meios contraceptivos e a interrupção da gravidez, tema polêmico dentro da esfera jurídica brasileira, não são devidamente efetivados por causa de pressões exercidas, em grande parte, por grupos religiosos. Como não existem dispositivos nacionais exclusivos para os direitos sexuais e reprodutivos, vê-se necessária a realização de interpretações sistemáticas das normas constitucionais que possam fundamentar estes direitos. No artigo 1º da Constituição Federal de 1988, encontra-se o princípio da dignidade da pessoa humana. No artigo 3º desta, estabelecem-se os objetivos fundamentais da República, dentre os quais, está o de promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade, nem qualquer outra discriminação. Já no seu artigo 5º, assegura-se a igualdade entre homens e mulheres. Como se vê, de maneira direta ou indireta, a Constituição comporta artigos que se relacionam aos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres. O planejamento familiar é um dos elementos abarcados pelos serviços de saúde reprodutiva, tendo sido incorporado ao sistema jurídico brasileiro através do art. 226, §7º da Constituição Federal vigente, que diz: 7º - Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e 136 científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma 23 coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas. Dessa maneira, foi concedida pelo constituinte de 1988, tanto ao homem quanto a mulher, a titularidade dos direitos reprodutivos. Posteriormente, o planejamento familiar foi regulamentado pela edição da Lei nº 9263, de 12 de janeiro de 1996, sendo estabelecidas políticas para a implementação de serviços nesta área, além do acesso aos meios preventivos e educacionais para a regulação da fecundidade e prevenção de doenças sexualmente transmissíveis. Além das garantias fornecidas pela Constituição, alguns atos que violam os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres encontram-se sancionados pelo Código Penal Brasileiro, tais como o assédio sexual, a exploração sexual, o estupro e o tráfico de mulheres. O Brasil assumiu, nas Conferências da ONU, os compromissos de assegurar o pleno exercício dos direitos reprodutivos e de fazer a revisão da atual legislação que criminaliza o aborto no País. São várias as organizações brasileiras que trabalham por esse objetivo. Além disso, a Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres (SEPM) da Presidência da República participa de reuniões internacionais e produz documentos que avaliam a situação desses direitos e o cumprimento dos acordos dos quais o País faz parte, enviando-os junto às Nações Unidas e demais organizações internacionais.24 Diversas políticas públicas estão sendo implementadas por todo o Brasil, principalmente na área da saúde, com especial atenção à assistência obstétrica. No entanto, a saúde não é o único campo da vida da mulher que é atingido pelo desrespeito aos seus direitos sexuais e reprodutivos. Vale ressaltar que os direitos sexuais e reprodutivos são direitos humanos que envolvem a saúde reprodutiva, o planejamento familiar, a 23 BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil, Brasília, DF, Senado, 1988. 24 PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA. Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres – SPM. Disponível em: <http://www.presidencia.gov.br/estrutura_presidencia/sepm/> Acesso em: 05 set. 2010. 137 prevenção de doenças sexualmente transmissíveis, a proteção à família, a igualdade de direitos, a liberdade sexual, o acesso a orientação sexual e educação, dentre outras questões relacionadas à reprodução e ao bom exercício da sexualidade. Os titulares dos direitos sexuais e reprodutivos são: os casais, os adolescentes, as mulheres, mesmo as solteiras, os homens e as pessoas idosas. O que se percebe é que, apesar desses direitos terem sido estendidos a todos os titulares citados, é para as mulheres que as políticas governamentais e as normas estão mais voltadas, atribuindo a elas não direitos, mas deveres reprodutivos. A respeito disso, Loyola (2005, p. 117) diz: A posição reservada às mulheres no âmbito dessas normas constitui um dos pontos de maior tensão no momento de sua aplicação e elaboração, considerando que são estruturadas envolvendo, preferencialmente, a capacidade reprodutiva feminina, atribuindo às mulheres tão-somente deveres no âmbito reprodutivo. Existe, dessa forma, uma assimetria dentro do campo reprodutivo, incorporada não só pelas normas jurídicas, mas também pela produção cultural, que diminui as liberdades da mulher ao mesmo tempo em que aumenta suas responsabilidades reprodutivas e contraceptivas. A partir do que acabou de ser dito, pode-se falar de uma intensa dialética na relação entre público e privado. Assuntos tidos como estritamente pertencentes à órbita privada, tais como a sexualidade e a reprodução, aparecem fortemente regulados e disciplinados pelo Estado, de acordo com os valores morais impostos pela cultura vigente. Segundo o pensamento de Arendt (2001), o espaço privado não seria, para as mulheres, o espaço da privacidade, mas o lócus da privação, da opressão e, muitas vezes da violência. Por fim, vale ressaltar o fato de que a cidade de Fortaleza, foco da análise sobre a expressividade dos direitos sexuais e reprodutivos nas políticas para mulheres, encontra-se em segundo lugar no ranking de exploração sexual. Segundo a socióloga Graça Gadelha, especialista em políticas públicas, este problema estaria relacionado a questões como pobreza, fome, 138 trabalho infantil e educação25. Estas devem configurar questões primordiais dentro das políticas voltadas aos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres como um todo, não apenas aquelas relacionadas à saúde reprodutiva ou à contracepção. O conceito de direitos sexuais e reprodutivos é bem mais amplo do que imagina a maioria das pessoas. Por isso, além das políticas de saúde, políticas públicas voltadas à educação e à socialização das pessoas são essenciais, tendo em vista que esses elementos determinam o grau de realização e valorização da mulher em relação ao seu corpo, sua possibilidade de viver, de forma gratificante, sua sexualidade e de organizar sua vida reprodutiva. 25 http://diariodonordeste.globo.com/materia.asp?codigo=813743 139 * ASPECTOS GERAIS DA METODOLOGIA A presente pesquisa será do tipo qualitativa, posto que a mesma “[...] trabalha com o universo de significados, motivos, aspirações, crenças, valores e atitudes, o que corresponde a um espaço mais profundo das relações, dos processos e dos fenômenos que não podem ser reduzidos à operacionalização de variáveis”(MINAYO, 1993, p. 21-22). A mesma está dotada de elementos de pesquisa observação do campo de investigação. Acredita-se que é esse tipo de pesquisa que mais se sintoniza com a busca de respostas para o problema investigativo, pois, para conhecer as vozes sobre o tema, exercidos e proclamados por eles mesmos, é fundamental um estudo qualitativo capaz de apreender, a partir dos discursos e práticas dos sujeitos da pesquisa, as elaborações destes. Para efetivação da pesquisa trabalhar-se-á com a pesquisa social de cunho científico utilizando diversas técnicas para a coleta de dados, não hesitando na utilização de diferentes e complementares instrumentos, seguindo um rigor sem rigidez para que a apreensão e a produção do objeto de pesquisa seja absorvido. De acordo com Minayo (1993), as ciências sociais possuem consciência histórica, entendendo o objeto de pesquisa como agente de transformação da sociedade. A pesquisa analisará a trajetória da construção de políticas públicas para mulheres no Brasil, estas referentes aos direitos sexuais e reprodutivos. Para tanto, tomaremos como base as políticas implementadas na cidade de Fortaleza e desenvolveremos o tema a partir de pesquisa bibliográfica, mediante explicações embasadas em trabalhos publicados sob forma de livros, revistas e artigos científicos, mídia impressa e dados oficiais fornecidos por órgãos competentes, que abordam direta ou indiretamente a temática em análise. Nossa hipótese, seguindo Arendt (2001) e apoiando o pensamento do “novo feminismo”, emergente na década de 60 no Brasil, é de que, ao contrário da idéia dicotômica que estabelece uma separação irreconciliável entre o espaço privado e o espaço público, quando se trata de direitos sexuais 140 e reprodutivos das mulheres, o que se percebe é uma intensa dialética na relação público privado. A opinião predominante no desenvolvimento desta pesquisa é de que os valores culturais, sobretudo religiosos, influenciam na defesa dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres e, consequentemente, na elaboração de políticas públicas voltadas para as reais necessidades das mesmas dentro do contexto da sexualidade e da reprodução. Paralelamente à pesquisa bibliográfica, a pesquisadora participará das Conferências de Políticas para Mulheres e de atividades desenvolvidas pela Coordenadoria de Políticas para Mulheres da Prefeitura de Fortaleza, onde a observação simples favorecerá a construção do espaço de aproximação e convivência informal, estabelecendo assim uma relação de conhecimento entre sujeito-objeto. Acompanhado ao processo, utilizar-se-á o diário de campo tendo como objetivo relatar, e posteriormente resgatar, as experiências vivenciadas e acumuladas durante o processo de inserção no cotidiano da Coordenadoria. Contudo, Minayo (1993, p. 60) afirma que: A importância dessa técnica reside de podermos captar uma variedade de situações ou fenômenos que não são obtidos por meio de perguntas, uma vez que, observados diretamente na própria realidade, transmite o que há de mais imponderável e evasivo na vida real. Concomitante ao uso dessas ferramentas, serão realizadas entrevistas com os/as profissionais da Coordenadoria de Políticas para Mulheres. A entrevista torna-se instrumento privilegiado para a pesquisa, na medida que possibilitará revelar através do discurso as concepções que norteiam as ações do grupo. Em um segundo momento, será realizada entrevista com parlamentares que atuam na temática dos direitos humanos das mulheres. Além das entrevistas já citadas, a pesquisadora realizará entrevistas com autoridades da Igreja Católica, a fim de analisar o ponto de vista religioso acerca dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, bem como a influência cultural sobre as políticas públicas. Para captar esses depoimentos será utilizada a entrevista semi-estruturada, constituída por um roteiro que propicie a apreensão do objeto da investigação. (...) realizar uma reflexão geral sobre as condições de produção e apreensão da significação de textos produzidos nos mais diferentes 141 campos: religioso, filosófico, jurídico e sócio político. Ela visa a compreender o modo de funcionamento, os princípios e organização e as formas de produção social do sentido (MINAYO, 1993, p. 211). Ressalta-se ainda que os procedimentos são passíveis de alteração podendo ser modificados e/ou acrescidos de novos elementos, caso não demonstrem eficiência no alcance dos objetivos propostos. 142 * CRONOGRAMA DE ATIVIDADES Ano: 2011 M Atividades ês J Levantamento bibliográfico e no meio eletrônico. aneiro No decorrer do ano 2011, a proposta é que o projeto seja melhor preparado mês a mês. F evereiro bibliográfica. M arço bril Cumprimento das disciplinas do curso de mestrado; revisão bibliográfica. M aio Cumprimento das disciplinas do curso de mestrado; revisão bibliográfica. J unho Cumprimento das disciplinas do curso de mestrado; revisão bibliográfica; pesquisa de campo. J Aprofundamento de leituras; redação de artigo científico; pesquisa de campo. A gosto Cumprimento das disciplinas do curso de mestrado; revisão bibliográfica. A ulho Cumprimento das disciplinas do curso de mestrado; revisão Cumprimento das disciplinas do curso de mestrado; revisão bibliográfica; pesquisa de campo. 143 S etembro Cumprimento das disciplinas do curso de mestrado; revisão bibliográfica; pesquisa de campo. O utubro Cumprimento das disciplinas do curso de mestrado; revisão bibliográfica; pesquisa de campo. N Cumprimento das disciplinas do curso de mestrado; pesquisa ovembro de campo. D Aprofundamento de leituras. ezembro Ano: 2012 M Atividades ês J Análise de dados. F Análise de dados; Qualificação. M Análise de dados. A Análise de dados; elaboração da dissertação. M Análise de dados; elaboração da dissertação. aneiro evereiro arço bril aio 144 J Análise de dados; elaboração da dissertação. J Análise de dados; elaboração da dissertação. A Elaboração da dissertação. S Elaboração da dissertação. O Elaboração da dissertação; revisão da dissertação. N Revisão da dissertação; correção de língua portuguesa. D DEFESA DA DISSERTAÇÃO unho ulho gosto etembro utubro ovembro ezembro 145 * BIBLIOGRAFIA ARENDT, H. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007. BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992. BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF, Senado 1988. LOYOLA, Maria Andréa (Org.). Bioética: reprodução e gênero na sociedade contemporânea. Brasília: LetrasLivres, 2005. MINAYO, M. C. (org.) Pesquisa social: Teoria, método e criatividade. Rio de Janeiro: Vozes, 1993. MINISTÈRE DES AFFAIRES ÉTRANGÈRES. Érradiquer les mutilations sexuelles féminines. In: Label France. Nº 57, 2005. NAÇÕES UNIDAS. Declaração Universal dos Direitos Humanos. Organização das Nações Unidas – ONU, 1948. ____________________Sobre o Projeto do Milênio. Disponível em: <http://www.pnud.org.br/milenio/> Acesso em: 12 jul. 2011. PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA. Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres – SPM. Disponível em: <http://www.presidencia.gov.br/estrutura_presidencia/sepm/> Acesso em: 12 jul. 2011. RIOS, Roger Raupp (Org.). Em defesa dos Direitos Sexuais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007. SANTOS, Antônio Silveira Ribeiro dos. Direitos Reprodutivos. Disponível em: <http://www.aultimaarcadenoe.com/reproduz.htm> Acesso em: 12 jul. 2011. TELES, Maria Amélia de Almeida. O que são direitos humanos das mulheres. 1. ed. São Paulo: Editora Brasiliense, 2007.