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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ
SARAH DAYANNA LACERDA MARTINS LIMA
DIREITOS SEXUAIS E REPRODUTIVOS DAS
MULHERES:
Expressões das políticas públicas no município de
Fortaleza
FORTALEZA – CEARÁ
2013
2
SARAH DAYANNA LACERDA MARTINS LIMA
DIREITOS SEXUAIS E REPRODUTIVOS DAS MULHERES:
Expressões das políticas públicas no município de Fortaleza
Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado
Acadêmico em Políticas Públicas e Sociedade do
Centro de Ciências Sociais Aplicadas da
Universidade Estadual do Ceará, como requisito
parcial para a obtenção do título de Mestre em
Políticas Públicas.
Orientadora: Profª. Drª. Kadma Marques Rodrigues.
FORTALEZA – CEARÁ
2013
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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação
Universidade Estadual do Ceará
Biblioteca Central Prof. Antônio Martins Filho
Bibliotecário (a) Leila Cavalcante Sátiro – CRB-3 / 544
L732d
Lima, Sarah Dayanna Lacerda Martins.
Direitos sexuais e reprodutivos das mulheres: expressões das
políticas públicas do município de Fortaleza / Sarah Dayanna
Lacerda Martins Lima . — 2013.
CD-ROM 145f. : il. (algumas color.) ; 4 ¾ pol.
“CD-ROM contendo o arquivo no formato PDF do trabalho
acadêmico, acondicionado em caixa de DVD Slin (19 x 14 cm x 7
mm)”.
Dissertação (mestrado) – Universidade Estadual do Ceará,
Centro de Estudos Sociais Aplicados, Mestrado Acadêmico em
Políticas Públicas e Socedade, Fortaleza, 2013.
Área de Concentração: Políticas Públicas e Sociedade.
Orientação: Profª. Drª. Kadma Marques Rodrigues.
1. Direitos sexuais. 2. Direitos reprodutivos. 3. Políticas
públicas. 4. Cultura. 5. Religião. I. Título.
CDD: 361.61
4
5
RESUMO
A temática dos direitos sexuais e reprodutivos apresenta complexidade em seu
conteúdo e um vasto contexto histórico a ser explorado. A problematização sociológica
de tais direitos, assumida como objetivo desta pesquisa, conforma um domínio de
estudos que apenas recentemente vem sendo desenvolvido. Por meio de estudos,
sabe-se que os maiores obstáculos, no sentido de combater agressões contra os
direitos sexuais e reprodutivos da mulher, apresentam-se na forma de aspectos
culturais. No caso desta pesquisa, estes consistem, sobretudo, em preceitos religiosos
difundidos pela Igreja Católica no cerne da população brasileira, os quais influenciam
na elaboração e na implantação de políticas públicas voltadas para as mulheres. A
presente pesquisa tem por objeto analisar a trajetória da construção de políticas
públicas para mulheres no Brasil, estas referentes aos direitos sexuais e reprodutivos,
tomando como base as políticas implantadas na cidade de Fortaleza, averiguando a
influência de valores culturais, sobretudo religiosos, sobre as mesmas. A hipótese que
guia o desenvolvimento desta pesquisa é a de que os valores culturais, sobretudo
religiosos, catalisam a tensão que se estabelece modernamente entre as esferas
pública e privada, influenciando significativamente o processo de conformação do
campo controverso dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres. Para a
efetivação deste estudo, trabalhei com a perspectiva da pesquisa social, tomando
como base as políticas implantadas na cidade de Fortaleza, analisadas a partir de
revisão bibliográfica, mediante publicações impressas e eletrônicas de livros, revistas
e artigos científicos, bem como, por meio de dados oficiais fornecidos pela
Coordenadoria Especial de Políticas para Mulheres da Prefeitura de Fortaleza. Nas
Conferências de Políticas para Mulheres de 2011, como delegada, em Fortaleza,
realizei a observação participante, fazendo uso do diário de campo, com o objetivo de
relatar, e posteriormente resgatar, as experiências vivenciadas e acumuladas durante
o processo de inserção nas Conferências. Paralelamente ao uso dessas ferramentas,
realizei entrevistas com sujeitos que elegi como informantes privilegiados, por
possibilitarem um maior o conhecimento do universo estudado. A partir dessa
pesquisa, foi possível concluir que, uma vez que as políticas públicas são elaboradas
e implantadas por representantes de segmentos sociais diversos, fatores culturais –
notadamente religiosos – exercem influência nesse processo, tornando inviável a
apreensão deste fenômeno a não ser por uma abordagem capaz de convergir
perspectivas de diferentes disciplinas.
Palavras-chave: Políticas Públicas. Direitos sexuais. Direitos reprodutivos. Cultura.
Religião.
6
ABSTRACT
The theme of sexual and reproductive rights presents complexity in content and a
broad historical context to be explored. The sociological problematization of such
rights, as assumed objective of this research, forms a field of study that has been
developed only recently. Through studies, it is known that the greatest obstacles to
combat attacks on sexual and reproductive rights of women present themselves as
cultural aspects. In this research, these consist mainly on religious precepts
disseminated by the Catholic Church at the heart of the Brazilian population, which
influence the formulation and implementation of public policies for women. This study's
purpose is to analyze the trajectory of the development of public policies for women in
Brazil, those relating to sexual and reproductive rights, based on the policies
implemented in the city of Fortaleza, verifying the influence of cultural values,
particularly religious. The hypothesis that guides the development of this research is
that cultural values, especially religious, catalyze the tension that is modernly
established between the public and private spheres, significantly influencing the
process of shaping the controversial field of sexual and reproductive rights of women.
For the realization of this study, I worked with the prospect of social research, based on
policies implemented in the city of Fortaleza, analyzed from literature review, through
print and electronic publications of books, magazines and papers, as well as through
official data provided by the Special Coordination for Women's Policies of the City of
Fortaleza. In Conference on Policies for Women 2011 as delegated in Fortaleza, I
performed participant observation, making use of a field journal, in order to report, and
subsequently redeemed, and the experiences accumulated during the insertion
process in the Conferences. Parallel to the use of these tools, I conducted interviews
with subjects that I have chosen as privileged informants, because they allow for a
greater knowledge of the universe studied. From this research, it was concluded that,
since public policies are designed and implemented by representatives of various
social groups, cultural factors - especially religious – exercise an influence that
process, impeding the apprehension of this phenomenon except for an approach
capable of converging perspectives of different disciplines.
Keywords: Public Policies. Sexual rights. Reproductive rights. Culture. Religion.
7
SUMÁRIO
1
INTRODUÇÃO..........................................................................................8
2
SOBRE REFERÊNCIAS E CAMINHOS ADOTADOS AO LONGO DA
PESQUISA........................................................................................................14
3
DIREITOS SEXUAIS E REPRODUTIVOS – uma abordagem a partir
dos direitos humanos......................................................................................17
3.1. DIREITOS SEXUAIS E REPRODUTIVOS DAS MULHERES: um
percurso histórico tortuoso.................................................................................17
3.2. OS DIREITOS SEXUAIS E REPRODUTIVOS NO BRASIL............27
3.2.1. Dos instrumentos normativos........................................................29
4
OS DIREITOS SEXUAIS E REPRODUTIVOS DAS MULHERES NA
PERSPECTIVA DO CORPO E DO GÊNERO...................................................33
4.1. OS DIREITOS SEXUAIS E REPRODUTIVOS DAS MULHERES NA
ATUALIDADE: Expectativas e tensões.............................................................44
5
CULTURA E RELIGIÃO: Impasses na efetivação dos direitos
sexuais e reprodutivos das mulheres............................................................54
5.1. CULTURA..................................................................................57
5.2. UMA BREVE ANÁLISE SOCIOLÓGICA DA RELIGIÃO............61
5.3. A IGREJA CATÓLICA E OS DIREITOS SEXUAIS E
REPRODUTIVOS DAS MULHERES.................................................................69
6
A ELABORAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS PARA MULHERES NO
BRASIL..............................................................................................................79
6.1. AS POLÍTICAS PÚBLICAS PARA MULHERES E O
MOVIMENTO FEMINISTA NO BRASIL............................................................81
6.2. A COORDENADORIA ESPECIAL DE POLÍTICAS PARA
MULHERES DE FORTALEZA: direitos sexuais e reprodutivos, gênero e
democracia........................................................................................................85
6.3. O HOSPITAL DA MULHER DE FORTALEZA............................91
6.4. AS CONFERÊNCIAS DE POLÍTICAS PARA MULHERES NO
ESTADO DO CEARÁ........................................................................................94
7
CONSIDERAÇÕES FINAIS..................................................................101
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.....................................................110
ANEXOS..............................................................................................118
8
1 INTRODUÇÃO
Durante estágio realizado na ONG Grupo de Mujeres Argentinas, em
Buenos Aires, no ano de 2008, entrei em contato com manifestações das lutas
feministas em prol dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres naquele
país. Durante esse período, encontrava-me por volta do oitavo semestre do
curso de graduação em Direito. Quando tive acesso a documentos
internacionais que versavam sobre tais direitos, passei a considerar esta como
uma lacuna em meu curso de graduação, assim como percebi que tal área não
estava explicitamente contemplada na Constituição Federal brasileira. Desde
então, decidi aprofundar estudos acerca destes direitos, os quais vieram a
constituir a temática de minha monografia1.
Naquele trabalho de conclusão da graduação, fiz uma análise acerca
da relação entre o multiculturalismo e os direitos sexuais e reprodutivos das
mulheres no âmbito do Direito Internacional. Posteriormente, minha inserção no
Mestrado Acadêmico em Políticas Públicas e Sociedade proporcionou-me a
oportunidade de prosseguir minhas pesquisas, agora feitas sob outro enfoque.
Assim, a presente dissertação versa sobre a diversidade de formas manifestas
e conflitos acerca dos direitos sexuais e reprodutivos nas políticas públicas
voltadas para as mulheres, na cidade de Fortaleza. Dessa forma, pretendo
desenvolver uma análise acerca do processo histórico de constituição da atual
dinâmica social que condiciona a efetivação desses direitos em âmbito local,
bem como dos elementos culturais que, ultrapassando este contexto,
obstaculizam a criação de leis e de políticas públicas relacionadas a eles.
A
temática
dos
direitos
sexuais
e
reprodutivos
apresenta
complexidade em seu conteúdo e um vasto contexto histórico a ser explorado.
Tais direitos, assumidos como objeto desta pesquisa, conformam um domínio
de estudos que apenas recentemente vem sendo desenvolvidos. Por este fato,
1
Minha monografia, com o título “O multiculturalismo e os direitos sexuais e reprodutivos das
mulheres na legislação internacional e brasileira”, foi concluída e apresentada no ano de 2009.
9
ainda são poucas as formulações conclusivas que versam sobre eles, tratandose de tema multidisciplinar e cercado de controvérsias.
Por meio de pesquisas, sabe-se que os maiores obstáculos, no
sentido de combater agressões contra os direitos sexuais e reprodutivos da
mulher, apresentam-se na forma de aspectos culturais. No caso desta
pesquisa, estes consistem, sobretudo, em preceitos religiosos difundidos pela
Igreja Católica no cerne da população brasileira, os quais influenciam na
elaboração e a implantação das políticas públicas voltadas para as mulheres.
A sexualidade e a reprodução revelam-se como fenômenos que
historicamente têm se prestado como meios de controle do corpo e de
disseminação de categorias cognitivas e perspectivas cristalizadas como
disposições. Neste contexto, a elaboração da noção de feminino e o papel
social das mulheres têm sido alvo da forte influência de posicionamentos
fundamentalistas e conservadores, advindos, na sua maior parte, de preceitos
religiosos e de outros aspectos culturais, presentes no âmbito do senso
comum.
A perspectiva dos direitos das mulheres foi, por muito tempo,
socialmente negligenciada. As suas reais contribuições para a cultura somente
foram reconhecidas por meio de uma luta árdua, pois a violência, assédio e
exploração sexual remontam a realidades que antecedem a instauração da
Modernidade no mundo Ocidental.
Por um longo período de tempo, a sexualidade feminina, bem como
a masturbação infantil, foi considerada tão somente como tabu, sendo de forma
recorrente alvo de repressões por parte da chamada era vitoriana. Aos poucos,
tais concepções foram sofrendo revezes, convertendo-se em palco de lutas e,
mais recentemente, vários documentos internacionais foram sendo elaborados
com a finalidade de proporcionar garantias de proteção contra coações ao
exercício dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres.
De fato, tais formulações legais correspondem hoje a direitos
humanos fundamentais que, estando relacionados à dimensão sexual e
10
reprodutiva, inspiram embates em torno da discriminação. Assim, no âmbito
das sociedades ocidentais contemporâneas, as quais se pretendem regidas por
um Estado de direito democrático, cada indivíduo aspira à igualdade e à
libertação das mais diversas formas de discriminação, inclusive quanto ao
exercício da sexualidade. Atualmente, diferentes movimentos em todo o mundo
apregoam o ideal de que sem igualdade de direito e de fato não há liberdade, e
sem a liberdade tampouco existirá a equidade. Os direitos de evitar gravidez,
exploração, abuso e assédio sexual revelam-se, deste modo, como alguns
dentre os enfoques que se acham elencados na categoria de direitos humanos
fundamentais.
Porém, levando-se em conta a cronologia dos direitos, é bastante
recente a emergência dos direitos sexuais e reprodutivos como direitos
humanos. Estas novas formulações do direito começaram a ganhar vulto a
partir do século XX, quando tomou força a ideia de direito individual. Desde
então, tais formulações foram se desenvolvendo, especialmente durante a
década de 1980, até que, finalmente, foram incorporadas à lógica da área do
Direito Internacional.
A elaboração desses direitos em vários documentos internacionais
advém das transformações sofridas pelo Direito Internacional Público após a
Segunda Guerra Mundial. Além dos dispositivos internacionais, a Constituição
Brasileira de 1988 fornece base sólida para o reconhecimento dos direitos
sexuais e reprodutivos. No entanto, para que haja a concretização e efetividade
desses dispositivos, tanto no âmbito nacional quanto no internacional, faz-se
necessário, ainda, um amplo estudo sobre os pressupostos, a abrangência e
as consequências da formulação de tais direitos, exigindo por isso
compromisso teórico por parte dos operadores do Direito, mas também
daqueles que atuam no âmbito da elaboração e gestão de políticas públicas.
Apesar dos debates entre representantes parlamentares e de
filiações religiosas, as mais diversas, é relativamente fácil apontar a
necessidade da afirmação dos direitos sexuais e reprodutivos a partir de
amplas manifestações sociais contra desigualdades de gênero, acerca do
surgimento de novas formas de se exercer a sexualidade e do choque causado
11
pela epidemia de HIV/AIDS, por exemplo. Todavia, são muitos os desafios que
se apresentam para o desenvolvimento e a apropriação desses como direitos
fundamentais.
Uma das barreiras que se impõe diante dessa problemática consiste
em arraigadas práticas culturais que foram historicamente construídas,
verificáveis e diferenciadas entre as comunidades dos diversos países do
mundo.
Dessa maneira, o desenvolvimento de investigações relativas ao
tema em questão tem a finalidade de aprofundar, no universo acadêmico, o
crescente interesse pela problematização deste fenômeno empírico. Este exige
uma formulação teórica rigorosa que possibilite o aprofundamento do
conhecimento neste campo e contribua para a elaboração de políticas públicas
para esta área. Isso leva a efeito, por via de consequência, a compreensão de
que a dificuldade que a mulher encontra, mesmo atualmente, em exercer seus
direitos sexuais e reprodutivos provém de relações desiguais entre homens e
mulheres, historicamente estruturadas a partir de fundamentos culturais. Por
sua vez, a partir da configuração da Modernidade no mundo Ocidental, estes
influenciaram e foram influenciados pela elaboração e sobreposição de uma
diversidade de discursos, tais como o médico-científico, o político, o religioso e
outros, os quais tinham como tônica comum seu caráter de controle repressivo.
É preciso considerar ainda que, no ranking de estados brasileiros, o
Ceará está em quarto lugar em registros de exploração sexual. A cidade de
Fortaleza, que aparece no discurso da imprensa como ponto de turismo sexual,
prostituição e tráfico de mulheres e crianças, ocupou, no ano de 2009, o
segundo lugar entre 54 municípios brasileiros que mais receberam denúncias
de exploração sexual contra crianças e adolescentes. A partir destes dados, o
presente trabalho tem por objetivo analisar a trajetória da elaboração de
políticas públicas para mulheres no Brasil. Neste sentido, a presente pesquisa
tomará como campo empírico a implantação de políticas públicas para
mulheres
na
cidade
de
Fortaleza,
considerando
especificamente
as
formulações relativas aos direitos sexuais e reprodutivos, mediante enfoque
12
que privilegie a convergência entre estas e a influência de valores culturais,
sobretudo aqueles associados à religião católica.
A partir da contribuição de Hannah Arendt (2007), a hipótese desse
trabalho é de que, ao contrário da ideia dicotômica que estabelece uma
separação irreconciliável entre o espaço privado e o espaço público, quando se
trata de direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, o que se percebe nesta
área é uma forte tensão que se estabelece na relação entre público e privado.
Mais especificamente, a hipótese que guia o desenvolvimento desta pesquisa é
a de que os valores culturais, sobretudo religiosos, catalisam esta tensão entre
as esferas pública e privada, influenciando significativamente o processo de
conformação do campo controverso dos direitos sexuais e reprodutivos das
mulheres. Este processo provoca consequentemente efeitos de verdade tanto
na elaboração de políticas públicas voltadas para a configuração de questões
relativas à reprodução e sexualidade feminina, bem como na apropriação e
elaboração das necessidades expressas como próprias de tal segmento.
Com a finalidade de concretizar o objetivo proposto nesta pesquisa,
o terceiro capítulo deste trabalho introduz uma análise de conceitos
fundamentais à compreensão do fenômeno abordado. Nesta perspectiva,
pretendo, ainda neste momento, subsidiar tal compreensão por meio de um
breve histórico dos direitos sexuais e reprodutivos, capaz de informar esta
pesquisa acerca do processo de emergência desta área no campo jurídico,
bem como das transformações sofridas por esses direitos ao longo do tempo.
É, ainda, apresentada a formulação dos instrumentos normativos referentes a
estes direitos no âmbito específico do cenário brasileiro.
Em seguida, no quarto capítulo, tratarei da problemática dos direitos
sexuais e reprodutivos na perspectiva do “corpo” e das “relações de gênero”,
fazendo uma análise sociológica sobre o exercício da sexualidade feminina, a
qual viabilize senão a desconstrução daquelas categorias, ao menos a
reintegração de sua compreensão a partir de um quadro categorial e analítico
complexo. Para tanto, esta pesquisa tem como base reflexões desenvolvidas –
mais ou menos diretamente sobre a temática ora abordada – por autores, tais
como Michel Foucault, Richard Sennett, Pierre Bourdieu, dentre outros. Com
13
base nessa análise sociológica, são apresentadas, ainda neste capítulo, as
tensões que conformam a temática dos direitos sexuais e reprodutivos das
mulheres na atualidade.
No quinto capítulo, a influência cultural e religiosa sobre a
concepção de “sexualidade”, “gênero” e “corpo”, bem como sobre elaboração e
implantação de políticas públicas para mulheres no Brasil, as quais versam
sobre os direitos sexuais e reprodutivos, será analisada com base em
entrevista realizada com um informante privilegiado nesta pesquisa, por sua
dupla inserção: como autoridade acadêmica e autoridade da Igreja Católica de
Fortaleza.
Por fim, o sexto capítulo dará lugar a uma recuperação da trajetória
de elaboração das políticas públicas para mulheres, considerando o contexto
social brasileiro. A partir deste escopo será possível evidenciar relações entre o
processo histórico mais amplo e o contexto aproximado que se esboça em
configurações locais evidenciadas a partir da abordagem das Conferências de
Políticas para Mulheres, realizadas no ano de 2011. Além disso, serão
enumeradas as políticas públicas voltadas aos direitos sexuais e reprodutivos
implantadas pela Coordenadoria Especial de Políticas para Mulheres na cidade
de Fortaleza, com base em entrevistas realizadas com profissionais do governo
municipal de Fortaleza e do Hospital da Mulher.
14
2 SOBRE REFERÊNCIAS E CAMINHOS ADOTADOS AO LONGO DA
PESQUISA
A dissertação terá por base uma perspectiva qualitativa, posto que a
mesma “[...] trabalha com o universo de significados, motivos, aspirações,
crenças, valores e atitudes, o que corresponde a um espaço mais profundo das
relações, dos processos e dos fenômenos que não podem ser reduzidos à
operacionalização de variáveis” (MINAYO, 1993, p. 21-22). Assim, esta
pesquisa será dotada do cruzamento de elementos fornecidos pela observação
participante e entrevistas realizadas com representantes de diversos
segmentos de população que integram o campo de investigação escolhido. Tal
opção metodológica deve-se ao fato de que esta parece apresentar maior
sintonia com a busca de respostas para o problema de investigação tal como
foi proposto. Frente a este, o presente estudo pretende evidenciar a polifonia
de vozes expressas sobre o tema, proclamadas pelos próprios sujeitos,
mediante a abordagem de aspectos qualitativos capazes de revelar, a partir de
discursos e práticas convergentes e divergentes, as apropriações acerca do
tema realizadas e expressas por agentes dos campos político, jurídico e
religioso.
Para a efetivação deste estudo, trabalhei com a pesquisa social, na
medida em que esta não se limita a um monismo metodológico, utilizando
diversas técnicas para a coleta de dados sempre que a utilização destas
apresentar-se como instrumentos complementares. Pretendi, assim, seguir um
rigor sem rigidez, a fim de que a apreensão e a produção do objeto de
pesquisa proposto sejam analisadas em profundidade. Ainda, de acordo com
Minayo (1993), as ciências sociais possuem consciência histórica, entendendo
o objeto de pesquisa como agente de transformação da sociedade.
Deste modo, a pesquisa analisa também, cruzando dados empíricos
e teóricos, a trajetória da construção de políticas públicas para mulheres no
Brasil. Para tanto, tomei como base as políticas implantadas na cidade de
Fortaleza, analisadas a partir de pesquisa bibliográfica, mediante publicações
15
impressas e eletrônicas de livros, revistas e artigos científicos, bem como, por
meio de dados oficiais fornecidos pela Coordenadoria Especial de Políticas
para Mulheres da Prefeitura de Fortaleza que abordam direta ou indiretamente
a temática em análise.
Tendo participado das Conferências de Políticas para Mulheres de
2011, como delegada, em Fortaleza, realizei nestas instâncias a observação
participante, a qual favoreceu a construção do espaço de aproximação com o
universo empírico desta pesquisa, ao favorecer uma relação de conhecimento
direto entre sujeito-objeto. Ao longo desta incursão, fiz uso do diário de campo,
tendo como objetivo relatar, e posteriormente resgatar, as experiências
vivenciadas e acumuladas durante o processo de inserção nas Conferências.
Minayo (1993, p. 60) afirma que:
A importância dessa técnica reside de podermos captar uma
variedade de situações ou fenômenos que não são obtidos por meio
de perguntas, uma vez que, observados diretamente na própria
realidade, (os agentes) transmitem o que há de mais imponderável e
evasivo na vida real.
Paralelamente ao uso dessas ferramentas, realizei entrevistas com
sujeitos que elegi como informantes privilegiados para o conhecimento do
universo estudado. A entrevista tornou-se instrumento privilegiado para a
pesquisa, na medida em que possibilitou revelar, por meio do discurso, as
concepções que os próprios agentes identificam como aquelas que norteiam as
ações do grupo. No registro dos depoimentos fiz uso da entrevista
semiestruturada, constituída por um roteiro flexível de questões que norteou a
apreensão do objeto desta investigação.
A primeira entrevista foi realizada no mês de novembro de 2012,
com a coordenadora da Coordenadoria Especial de Políticas para Mulheres de
Fortaleza, Raquel Viana. A principal finalidade dessa entrevista era a de me
inteirar das atividades realizadas pela Coordenadoria e sobre as políticas
públicas implantadas na cidade de Fortaleza, especificamente voltadas aos
direitos sexuais e reprodutivos das mulheres. Embora eu desejasse participar
do cotidiano da Coordenadoria e ali também fazer uso do diário de campo, a
existência de um número significativo de estagiários impossibilitou a minha
16
presença. No entanto, a entrevista com a coordenadora foi suficiente para
atingir o meu propósito científico.
A segunda entrevista foi realizada no mês de janeiro de 2013, com a
diretora do Hospital da Mulher de Fortaleza, a Dr.ª Zenilda Bruno. Pelo fato de
o Hospital da Mulher ter sido uma política pública cuja concretização foi muito
aguardada pela população fortalezense, essa entrevista prestou uma
significativa contribuição à pesquisa. O meu objetivo era coletar o maior
número possível de informações sobre o hospital, referentes à elaboração de
seu projeto, ao processo de construção do prédio e ao funcionamento do
hospital já inaugurado.
A última entrevista, também realizada no mês de janeiro de 2013,
contou com a participação do Monsenhor Manfredo Ramos, padre e professor
da Faculdade Católica de Fortaleza. O propósito desta entrevista foi o de
analisar o ponto de vista de um religioso acerca da sexualidade feminina e dos
direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, bem como convergências entre o
discurso católico e aquele materializado nas políticas públicas. Vale ressaltar
que as informações fornecidas pelo Monsenhor acerca da teologia cristã são
fruto de sua formação acadêmica e de sua experiência no sacerdócio, não
consistindo em declarações oficiais da Igreja Católica, visto que ele não é um
representante jurídico da mesma.
Nesta pesquisa, o catolicismo apostólico romano foi escolhido, em
detrimento de outras religiões, por tratar-se ainda numericamente do culto
religioso mais representativo no Brasil, estando ativo no país desde a época
colonial e exercendo grande influência na configuração de aspectos políticos,
sociais e culturais da realidade brasileira. O Ceará é o segundo estado no
Brasil com maior porcentagem de pessoas que se autodesignam como
católicas (81%), ficando atrás somente do Piauí (90%).
17
3 DIREITOS SEXUAIS E REPRODUTIVOS – uma abordagem a partir dos
direitos humanos
A proposta deste capítulo é a de fornecer um breve histórico dos
direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, capaz de demonstrar as
transformações jurídicas ocorridas a partir de 1948, com o surgimento da
Declaração Universal dos Direitos Humanos, as quais deram lugar a atual
conceituação desses direitos em âmbito internacional. Além disso, serão
evidenciados os instrumentos normativos responsáveis pela garantia dos
direitos sexuais e reprodutivos das mulheres diante da realidade políticocultural brasileira, onde a efetivação dos mesmos encontra diversas
dificuldades.
3.1. DIREITOS SEXUAIS E REPRODUTIVOS DAS MULHERES: um percurso
histórico tortuoso
As primeiras reivindicações explícitas de prerrogativas relativas às
mulheres no campo da sexualidade podem ser datadas, no Ocidente, a partir
do século XVIII. No entanto, até a década de 1980, no Brasil, assim como na
maioria dos países ocidentais, as questões relacionadas à reprodução
achavam-se vinculadas tão somente à noção de saúde integral da mulher.
(CORRÊA E ÁVILA, 2003) Dessa forma, percebe-se que o entendimento do
conceito de direitos sexuais e reprodutivos como direitos humanos é uma
formulação marcadamente contemporânea.
As
principais
características
dos
direitos
humanos
são
a
universalidade e a indivisibilidade. A universalidade consiste em dizer que todo
ser humano é titular desses direitos, e a especificidade de critérios políticos,
sociais e culturais não pode ser utilizada como pretexto para suprimi-los ou
ofendê-los. Já a indivisibilidade sugere a efetivação de todos os direitos, não
podendo existir direitos humanos que caibam a determinadas pessoas e a
outras não.
18
A proteção de tais direitos tem seu conteúdo disciplinado pelo
Direito Internacional, mas esta ainda é uma prática relativamente recente.
Nasceu no século XVIII, juntamente com as promulgações da Declaração
Americana de Virgínia, de 1776, e da Declaração Francesa, de 1789.
De fato, o século XVIII foi palco de grandes movimentos
revolucionários. A ascensão da burguesia provocou a derrocada dos senhores
feudais do poder, impondo à sociedade europeia uma nova ordem social. Na
época, com a burguesia no poder, foi criada a Declaração dos Direitos do
Homem e do Cidadão. Porém, este documento não atendia uma das principais
características dos direitos humanos, conforme já foi dito, aquela relativa à
universalidade. Isto se deve ao fato de tal declaração referir-se somente ao
homem, excluindo as pessoas do sexo feminino, os escravos e os homens
livres de cor negra.
Os ideais revolucionários de liberdade, igualdade e solidariedade
inspiraram expectativas de inclusão das mulheres no âmbito da cidadania
burguesa. É preciso lembrar a iniciativa de Olympe de Gouges, revolucionária
francesa que, com o apoio de milhares de mulheres, decidiu elaborar a
Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã, sendo, por isso, condenada à
guilhotina no ano de 1793. O preâmbulo da Declaração afirmava:
Mães, filhas, irmãs mulheres representantes da nação reivindicam
constituir-se em uma assembleia nacional. Considerando que a
ignorância, o menosprezo e a ofensa aos direitos da mulher são as
únicas causas das desgraças públicas e da corrupção no governo,
resolver expor em uma declaração solene, os direitos naturais,
inalienáveis e sagrados da mulher. Assim, que esta declaração possa
lembrar sempre, a todos os membros do corpo social seus direitos e
seus deveres; que para gozar da confiança, ao ser comparado com o
fim de toda e qualquer instituição política, os atos de poder de
homens e de mulheres devem ser inteiramente respeitados; e que,
para serem fundamentadas, doravante, em princípios simples e
incontestáveis, as reivindicações das cidadãs devem sempre
respeitar a constituição, os bons costumes e o bem estar geral.
(GOUGES, 1791)
Esse não foi o único documento feminista produzido durante a
Revolução, mas acabou tornando-se o mais representativo, tanto para
feministas como para historiadores, visto que ele toma ao pé da letra o caráter
universal da Revolução e chama a atenção para as diferenças que as mulheres
19
incorporam, revelando, assim, os limites dessa pretensa universalidade.
(SCOTT, 2002, p. 50-51)
A reivindicação de direitos como forma de reação aos séculos de
opressão e discriminação da mulher ofereceu as bases para a formulação do
movimento feminista e para a conquista de vários direitos. Tal fenômeno
converge com o pensamento de Norberto Bobbio (1992) de que não existem
direitos fundamentais por natureza e que atribuir um fundamento absoluto aos
direitos humanos é uma ideia infundada, em muitos casos utilizada como
pretexto para defender posições conservadoras. Para esse autor, “o que
parece fundamental numa época histórica e numa determinada civilização não
é fundamental em outras épocas e em outras culturas.” (BOBBIO, 1992, p. 19)
Por esse motivo, apesar de todos os movimentos sociais e políticos ocorridos
no mundo moderno, foi apenas no período pós-guerra que a ideia de direitos
humanos, em seu caráter universal e indivisível, realmente ganhou força.
Com o fim da Segunda Guerra Mundial, em 10 de dezembro de
1948, a Declaração Universal dos Direitos Humanos foi aprovada pela
Assembleia Geral das Nações Unidas. Tal declaração ostenta os direitos
básicos de qualquer ser humano, de maneira a garantir seu bem-estar e sua
dignidade, respeitando os princípios da universalidade e da indivisibilidade,
conforme estabelece em seu artigo 2º:
Artigo II - Toda pessoa tem capacidade para gozar os direitos e as
liberdades estabelecidos nesta Declaração, sem distinção de
qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião
política ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza,
nascimento, ou qualquer outra condição.
Tanto
no
plano
nacional
quanto
naquele
internacional,
os
movimentos sociais de mulheres têm exercido papel primordial em prol do
alcance de um status que verdadeiramente considere a mulher como portadora
de direitos. As frentes de luta do movimento feminista variam segundo o
momento histórico e as características socioeconômicas e políticas do país no
qual se desenvolvem. Apesar disso, segundo Alves e Pitanguy (2007), alguns
temas têm sido continuamente abordados, dentre eles, a sexualidade. Para as
20
feministas, “a contenção exercida sobre a sexualidade da mulher é a primeira
forma de limitação de sua potencialidade.” (ALVES e PITANGUY, 2007, p. 59)
A Declaração Universal dos Direitos Humanos, como afirmado há
pouco, expressa a concepção dos direitos humanos na contemporaneidade,
servindo de resposta à violência vivenciada durante a Segunda Guerra
Mundial. Ela traz, ainda, mesmo que de maneira não tão explícita em sua
redação, a base para a posterior formulação dos direitos sexuais e
reprodutivos. De fato, ela afirma a igualdade entre homem e mulher durante o
casamento, assim como na altura da sua dissolução e, também, a liberdade
para contrair, ou não, matrimônio, como se pode observar a partir de seu art.
16:
1.Os homens e mulheres de maior idade, sem qualquer restrição de
raça, nacionalidade ou religião, têm o direito de contrair matrimônio e
fundar uma família. Gozam de iguais direitos em relação ao
casamento, sua duração e sua dissolução.
2.O casamento não será válido senão com o livre e pleno
consentimento dos nubentes.
A Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de
Discriminação contra a Mulher (CEDAW) também configura um documento
internacional que versa de forma ainda mais enfática sobre os direitos
humanos das mulheres. Ela foi adotada pela Assembleia Geral das Nações
Unidas em 1979 e aponta a tradição e a cultura como forças de influência
sobre a configuração das relações familiares e de gênero.
O surgimento dos direitos sexuais e reprodutivos é fruto da
contribuição dos movimentos feministas mundiais, os quais iniciaram as
discussões acerca dos padrões socioculturais vigentes, relacionados à vida
sexual e à reprodução humana (BRAUNER, 2003). A utilização do termo
“direitos reprodutivos” por parte das feministas data do ano de 1984, durante o I
Encontro Internacional de Saúde da Mulher, realizado em Amsterdã. No
entanto, apenas na década de 1990, esses direitos foram introduzidos no
âmbito do Direito Internacional, podendo ser chamados, como disse Alves
(2004), de “filho caçula dos Direitos Humanos”.
21
De acordo com Alves (2004, p. 2), foi a Conferência Mundial de
Direitos Humanos de Viena, de 1993, ocorrida após o fim da Guerra Fria, que
“semeou o campo para o nascimento dos direitos reprodutivos”. Foi nesta
Conferência que, pela primeira vez, os direitos de mulheres e meninas foram
considerados como parte integrante, indivisível e inalienável dos direitos
humanos, como consta no art. 18 da Declaração e Programa de Ação de
Viena:
Art. 18. Os direitos humanos das mulheres e das meninas são
inalienáveis e constituem parte integral e indivisível dos direitos
humanos universais. A plena participação das mulheres, em
condições de igualdade, na vida política, civil, econômica, social e
cultural nos níveis nacional, regional e internacional e a erradicação
de todas as formas de discriminação, com base no sexo, são
objetivos prioritários na comunidade internacional.
Até o ano de 1993, questões relativas à sexualidade encontravam-se
ausentes do discurso internacional. Nenhum instrumento que trata de direitos
humanos, anterior a esse período, apresenta a “palavra proibida” que começa
com “S”. Podemos então, pensar essa situação como resultante da tensão
permanente que caracteriza historicamente a ligação entre as esferas pública e
privada.
Segundo Hannah Arendt (2007), a esfera pública é o mundo
comum, no qual existem coisas que, ao mesmo tempo, separam e estabelecem
relações entre os indivíduos. Tudo que aparece em público pode ser visto e
ouvido, constituindo a realidade. Uma vez que a percepção da realidade
depende da aparência, o público só admite aquilo que é relevante por
apresentar repercussões para a coletividade, transformando o irrelevante em
assunto privado.
(...) há muitas coisas que não podem suportar a luz implacável e crua
da constante presença de outros no mundo público; neste só é
tolerado o que é tido como relevante, digno de ser visto ou ouvido, de
sorte que o irrelevante se torna automaticamente assunto privado.
(ARENDT, 2007, p. 61)
Conforme o pensamento de Arendt (2007), só emerge das trevas da
esfera privada, aquilo que realmente for digno de ser trazido à luz da esfera
pública. Porém, analisando os documentos sobre direitos humanos, podemos
constatar que, desde a Declaração Universal de 1948, deixa de existir, em
22
termos de efeitos políticos do campo do Direito, uma divisão nítida entre o
público e o privado. A partir de então, se tem tratado de questões de âmbito
pessoal e particular, como: casamento, família, crenças e religião, educação
dos filhos, respeito à privacidade, dentre outras. Neste conjunto, apenas a
sexualidade continuou ausente.
Com base no que foi apresentado até o momento, é possível
entender a sexualidade como algo irrelevante para a esfera pública, a ponto de
não ser explicitamente mencionada nos documentos internacionais. Porém,
segundo Arendt (2007), o fato de um determinado assunto não ser considerado
relevante na esfera pública não significa que o mesmo não tenha grande
importância para muitos particulares. E isso não o torna necessariamente
capaz de irromper do privado ao público, o que deixaria a sexualidade num
permanente estado de obscuridade, sendo tratada de maneira implícita,
relacionada apenas à reprodução e ao casamento heterossexual.
Graças aos esforços de um grupo de mulheres defensoras dos
direitos humanos, foi elaborada a Declaração e o Plano de Ação de Viena de
1993, por meio dos quais se tratou da sexualidade feminina, no sentido de
recorrer aos Estados contra “a violência e todas as formas de abuso e
exploração sexual, incluindo o preconceito cultural e o tráfico internacional de
pessoas.” Porque, como afirma Arendt (2007), o homem sempre busca a
universalidade do público, caso contrário se encontraria perdido, sem conseguir
alcançar sua realidade. Assim, para a autora, é para fugir de uma existência
incerta e obscura que o homem transforma, desprivatiza e desindividualiza as
maiores forças da vida íntima.
A Declaração de Viena constitui um marco, não só pelo fato de
reconhecer a violência sexual como uma violação aos direitos humanos, mas
também porque introduziu o termo “sexual” na linguagem dos direitos
humanos. Embora isso tenha sido uma mudança considerável, a sexualidade
feminina ainda foi tratada, neste momento, como algo negativo, que trazia
consigo a violência e o insulto, ou que é santificado e escondido pelo
casamento heterossexual e a gravidez. Dessa forma, liberdade sexual ou
23
homossexualidade
em
nenhum
momento
foram
mencionadas
neste
documento.
No âmbito da história do Direito, parece mais fácil tratar da liberdade
sexual de forma negativa do que em um sentido positivo e emancipatório.
Chega-se a um consenso sobre o direito que a mulher tem de não ser objeto
de abuso sexual, exploração, estupro, mutilação genital ou tráfico, mas não
sobre seu direito de usufruir livremente de seu próprio corpo. Nesse sentido, o
que foi deixado na obscuridade da esfera privada não foi o sexo de uma forma
genérica, mas o sexo enquanto prazer.
Uma vez que o prazer feminino foi, por muito tempo, alvo de
repressões, o desinteresse por sexo tornou-se uma característica atribuída às
mulheres respeitáveis da sociedade. Daí, na cultura ocidental, a dificuldade em
se elaborar documentos que abordem temáticas como homossexualidade
feminina, aborto, anticoncepção, dentre outros temas tabus, mesmo que estes
façam parte de nossa realidade.
As campanhas em prol dos direitos das mulheres recebem mais
atenção quando enfatizam os horrores das mutilações genitais nos países do
Oriente Médio, os estupros em países asiáticos, o tráfico de mulheres, a
esterilização em massa ou abortos forçados. É claro que são questões que a
mídia internacional coloca atualmente em evidência, muitas vezes exigindo dos
Estados providências para que se dê um fim a tais crimes contra mulheres.
Porém, é importante considerar que essas campanhas capitalizam uma
imagem das mulheres como vítimas. Rosalind Pollack Petchesky (1999, p. 26)
afirma que “essa tendência vitimizadora é preocupante na medida em que
burla, ou até espelha, a imagem fundamentalista patriarcal das mulheres como
seres fracos e vulneráveis.”
Segundo Regina Navarro Lins e Flávio Braga (2005, p. 195), “a
cultura judaico-cristã considera o sofrimento uma virtude e o prazer, um
pecado.” Sendo assim, é mais aceitável colocar a mulher numa posição de
vítima – pois o sofrimento santifica – e a ela dar o direito de “ser deixada em
24
paz”. Essa imagem do prazer como pecado é a razão do sentimento de culpa e
vergonha em relação ao sexo, que ainda resiste em nossa sociedade.
Frente ao panorama traçado até o momento, esta dissertação
assume como perspectiva enfatizar os direitos sexuais e reprodutivos das
mulheres por meio de uma visão alternativa e positiva, capaz de acarretar
transformações estruturais, sociais e culturais. Este foi igualmente a
perspectiva que parece ter fundamentado a realização da Conferência
Internacional sobre População e Desenvolvimento e da IV Conferência Mundial
da Mulher.
O estabelecimento da atual conceituação de direitos reprodutivos foi
fruto da Conferência Internacional de População e Desenvolvimento (CIPD),
realizada entre os dias 5 e 13 de setembro de 1994, na cidade do Cairo. Por
isso, essa conferência tem significado tão importante no contexto da luta das
mulheres por seus direitos no campo reprodutivo. (VENTURA, 2005)
Na redação do Capítulo VII do Relatório da CIPD, o qual versa sobre
direitos de reprodução e saúde reprodutiva, é fornecida a seguinte definição de
direitos reprodutivos:
§ 7.3. Esses direitos se baseiam no reconhecido direito básico de
todo casal e de todo indivíduo de decidir livre e responsavelmente
sobre o número, o espaçamento e a oportunidade de seus filhos e de
ter a informação e os meios de assim o fazer, e o direito de gozar do
mais alto padrão de saúde sexual e de reprodução. Inclui também
seu direito de tomar decisões sobre a reprodução, livre de
discriminação, coerção ou violência, conforme expresso em
documentos sobre direitos humanos.
A CIPD inscreveu-se no amplo conjunto de iniciativas sobre o
amparo das Nações Unidas no campo social, produzindo, inclusive, celeumas,
traduzidas, de maneira geral, em acaloradas polêmicas em quase todos os
países, envolvendo necessariamente conceitos e valores de foro íntimo e
conteúdo ético, como a família, a procriação e os direitos individuais. A
Conferência contou com delegações de 182 países, mais de duas ONGs e, ao
todo, congregou cerca de vinte mil pessoas de diversas nacionalidades – o
dobro da Conferência de Viena sobre Direitos Humanos de 1993.
25
No contexto dos direitos reprodutivos, a Conferência do Cairo –
como ficou conhecida a CIPD – foi um divisor de águas. Desta Conferência
decorreu o Programa de Ação do Cairo, o qual conseguiu um nível inédito de
convergência, inclusive por parte da Santa Sé, por meio de suas contribuições
substantivas e inovadoras, como afirma Raupp Rios:
Em 1994, a Conferência Mundial sobre População e Desenvolvimento
(Cairo) estabeleceu um programa de ação que afirmou os direitos
reprodutivos como categoria de direitos humanos já reconhecidos em
tratados internacionais, incluindo o direito à escolha livre e
responsável do número de filhos e de seu espaçamento, dispondo da
informação, educação e meios necessários para tanto. Importante
para os fins deste estudo foi a declaração de que a saúde reprodutiva
implica a capacidade de desfrutar de uma vida sexual satisfatória e
sem riscos. (RIOS, 2007, p.17)
Segundo Petchesky (1999), durante a Conferência do Cairo, muitos
representantes de países islâmicos e católicos não disfarçaram sua aversão à
presença da palavra “sexo” no Plano de Ação. Apesar disso, as referências ao
“sexo”, “sexualidade” e “saúde sexual” apareceram inúmeras vezes no
documento, que foi o primeiro instrumento legal internacional a mencionar tais
termos.
O alto nível de aprovação do Plano de Ação do Cairo acabou
servindo de referência para outras conferências programadas pelas Nações
Unidas, como a IV Conferência Mundial sobre a Mulher, realizada em setembro
de 1995, em Pequim.
Na Conferência de Pequim de 1995, o documento do Cairo foi
reiterado, enfatizando-se questões relacionadas à sexualidade feminina e
trazendo a público a noção dos direitos sexuais. (ALVES, 2004; VENTURA,
2005) Foi reforçada a necessidade de proteção dos direitos vinculados à
reprodução humana, quer sejam os direitos sexuais, o direito à saúde, à
igualdade e a não discriminação, dentre outros. A Plataforma de Pequim
(documento originário desta conferência), em seu capítulo intitulado “Mulher e
Saúde”, deu ênfase à saúde sexual, afirmando o direito ao livre exercício da
sexualidade, como fica claro em sua redação:
§ 96. Os direitos humanos das mulheres incluem os seus direitos a
ter controle sobre as questões relativas à sua sexualidade, inclusive
26
sua saúde sexual e reprodutiva, e a decidir livremente a respeito
dessas questões, livres de coerção, discriminação e violência. A
igualdade entre mulheres e homens no tocante às relações sexuais e
à reprodução, inclusive o pleno respeito à integridade da pessoa
humana, exige o respeito mútuo, o consentimento e a
responsabilidade comum pelo comportamento sexual e suas
consequências. (Grifo da autora)
Com a Plataforma de Pequim, as mulheres passaram a ser
consideradas, além de seres reprodutivos, seres sexuais. No entanto, alguns
avanços foram barrados durante a Conferência. Conforme afirma Petchesky
(1999), a formulação original do parágrafo 96, citado acima, não trazia “direitos
humanos das mulheres”, mas sim “direitos sexuais das mulheres” em seu
rascunho. Essa redação não foi aprovada pelos grupos populacionais e
governamentais conservadores presentes na Conferência, assim como as
expressões “diversas formas de família” e “gênero”.
Apesar das dificuldades encontradas para que certos valores
feministas fossem explicitamente redigidos, após as Conferências do Cairo e
de Pequim, os direitos sexuais e reprodutivos foram definitivamente legitimados
como direitos humanos no âmbito das Nações Unidas, podendo ser
compreendidos como direitos que envolvem essencialmente as noções de
sexualidade e reprodução, não se tratando meramente do funcionamento do
aparelho genital e do processo reprodutivo, mas do reconhecimento de uma
vida sexual gratificante como um direito de cada cidadão, e não como uma
mera necessidade biológica. Dessa forma, o indivíduo é livre para desenvolver
determinada realização potencial de seu corpo, de viver satisfatoriamente sua
sexualidade e de organizar sua vida reprodutiva. (BRAUNER, 2003)
Porém, deve-se considerar que existe ainda uma grande distância
entre a formulação conceitual de um conjunto de direitos – que consiste no que
foi tratado, até o momento, neste capítulo – e a efetiva aplicação e
incorporação dessas ideias em políticas, programas, ações e normas jurídicas
que visem à garantia e proteção desses direitos no dia-a-dia dos cidadãos, e
neste caso, particularmente, das mulheres. De fato, o tortuoso percurso
realizado pelos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres coloca-os, hoje,
frente a um desafio. Como afirma Bobbio (1992), o problema do nosso tempo,
27
com relação aos direitos humanos, não é mais o de fundamentá-los, mas sim o
de protegê-los.
3.2. OS DIREITOS SEXUAIS E REPRODUTIVOS NO BRASIL
Historicamente, no que tange ao campo jurídico, os direitos sexuais
e reprodutivos têm recebido tratamento um tanto esparso no âmbito nacional,
sendo inseridos no contexto mais amplo da saúde pública.
É correto afirmar que o aborto no Brasil, assim como em diversos
países onde sua prática é considerada ilegal, constitui um grave problema de
saúde pública. Isso se deve ao fato de que a legislação vigente, a qual
criminaliza o aborto, não tem sido capaz de evitar sua recorrência. O aborto,
crime tipificado nos artigos 124, 125, 126, 127 e 128 do Código Penal,
configura a quarta causa de morte materna no País.2
A informação, fornecida à população brasileira, sobre métodos
contraceptivos seguros e reversíveis, e sobre a esterilização para casais que
querem encerrar suas trajetórias reprodutivas é ainda muito precária. Tal
situação constitui um fator determinante da elevada incidência de gestações
não programadas, sobretudo em adolescentes, seguidas de aborto. Sem falar
que os gastos com o atendimento de mulheres em situação de abortamento
oneram o sistema de saúde.
De acordo com os dados fornecidos por Teles (2007), no Brasil, o
parto representa a principal causa de internação de meninas no sistema
público de saúde. Além disso, 6% dos óbitos de mulheres entre 10 e 49 anos
estão relacionados à gravidez e ao parto. A utilização de métodos
anticoncepcionais pelos jovens brasileiros é muito reduzida, contando com
2
De acordo com o Código Penal Brasileiro, estão previstas as situações onde o aborto não
constitui crime: se não há outro meio de salvar a vida da gestante (art. 128, I) e se a gravidez
resulta de estupro e o aborto é consentido pela gestante, ou, quando incapaz, por seu
representante legal (art. 128, II). Recentemente, em abril do ano de 2012, o Supremo Tribunal
Federal – STF concluiu o julgamento favorável à Arguição de Descumprimento de Preceito
Fundamental (ADPF) 54, protocolada em 2004 pela Confederação Nacional dos Trabalhadores
na Saúde (CNTS), confirmando posição a favor da interrupção da gestação de feto
anencefálico.
28
apenas 14% das meninas entre 15 e 19 anos que usam algum tipo de método
contraceptivo.
No que tange às mulheres, enquanto que tais métodos são
precariamente utilizados, estima-se que o Brasil detenha os maiores índices de
esterilização do mundo. (BRAUNER, 2003; TELES, 2007)
A esterilização cirúrgica feminina, método que consiste na
ligadura das trompas uterinas da mulher, é utilizada de forma abusiva pelas
jovens brasileiras, uma vez que esta deveria ser seguida de uma série de
procedimentos para desencorajar tal prática, tal como preveem os artigos 10 a
18 da Lei nº 9262/96. A disseminação deste método em mulheres muito jovens
traz consequências negativas, de modo recorrente, para a trajetória pessoal, a
vida afetiva, a dimensão psicológica, mas também se manifestam no campo
dos direitos humanos, da economia, da política, da cidadania, dentre vários
outros campos.
Outro tipo de descompasso em relação a conquistas obtidas no
campo dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres no Brasil consiste na
curetagem sem anestesia associada a um quadro clínico de aborto, tal como
abordada por Teles (2007):
Quando chegam aos hospitais em processo de aborto, são tratadas
com descaso, com preconceito; não recebem nenhuma explicação
sobre seu estado de saúde/doença; não recebem orientação sobre
meios contraceptivos para lhes garantir sexo seguro e o planejamento
do número de filhos. (TELES, 2007, p. 80)
Como se pode observar, a curetagem sem anestesia converte-se,
neste contexto, em uma espécie de ato punitivo, constituindo uma forma de
violência contra a mulher e, consequentemente, uma violação aos direitos
humanos.
Atualmente, o Brasil é um dentre os países que integra a rota do
tráfico sexual. Mulheres e crianças são levadas ao exterior para serem
recrutadas à prostituição. Sem falar nos casos de exploração sexual dentro do
próprio País, que adquire dimensões alarmantes.
29
O assédio sexual do homem em relação à mulher é uma prática
comum no cenário nacional. Certas ações daqueles indivíduos não chegam
propriamente a ser consideradas como violações aos direitos sexuais e
reprodutivos das mulheres. É como se tais direitos fossem secundários,
ocupando um patamar inferior, como uma área que convive com questões mais
urgentes no campo jurídico.
Tal conjunto de fatos pode ser atribuído a valores que estão
arraigados na cultura brasileira e que dificultam a implantação de políticas que
visam à diminuição da configuração de desigualdade que marca ainda hoje a
dimensão das relações de gênero no país. Da mesma forma, direitos
fundamentais, como o acesso aos meios contraceptivos e a interrupção da
gravidez, ainda ocupam o status de tema polêmico na esfera jurídica brasileira,
não sendo devidamente efetivados por causa de pressões exercidas, em
grande parte, por grupos religiosos.
3.2.1. Dos instrumentos normativos
Como não existem dispositivos nacionais exclusivos para os
direitos sexuais e reprodutivos, vê-se como extensão necessária desta
conjuntura
a
realização
de
interpretações
sistemáticas
das
normas
constitucionais, as quais possibilitariam, em tese, a fundamentação de tais
direitos.
No artigo 1º da Constituição Federal de 1988, encontra-se o
princípio da dignidade da pessoa humana. No artigo 3º desta, estabelecem-se
os objetivos fundamentais da República, dentre os quais, está o de promover o
bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade, nem
qualquer outra discriminação. Já no seu artigo 5º, assegura-se a igualdade
entre homens e mulheres. Como se vê, de maneira direta ou indireta, a
Constituição comporta artigos que se relacionam aos direitos sexuais e
reprodutivos das mulheres.
O planejamento familiar é um dos elementos compreendidos
pelos serviços de saúde reprodutiva, tendo sido incorporado ao sistema jurídico
30
brasileiro através do art. 226, §7º da Constituição Federal vigente, que
estabelece:
7º - Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da
paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do
casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e
científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma
coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas.
Dessa maneira, foi concedida pela constituinte de 1988, tanto ao
homem quanto a mulher, a titularidade dos direitos reprodutivos.
Posteriormente, o planejamento familiar foi regulamentado pela
edição da Lei nº 9.263, de 12 de janeiro de 1996, sendo estabelecidas políticas
para a implantação de serviços nesta área, além do acesso aos meios
preventivos e educacionais para a regulação da fecundidade e prevenção de
doenças sexualmente transmissíveis.
Além das garantias fornecidas pela Constituição, alguns atos que
violam os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres encontram-se
sancionados pelo Código Penal Brasileiro, tais como o assédio sexual, a
exploração sexual, o estupro e o tráfico de mulheres.
Mais recentemente, no ano de 2006, a Lei nº 11.340 foi
sancionada pelo então Presidente Luís Inácio Lula da Silva, sendo conhecida
como “Lei Maria da Penha”. A formulação desta lei pretende ser um importante
passo no combate à violência doméstica contra mulheres no Brasil e, segundo
a coordenadora da Coordenadoria Especial de Políticas para Mulheres do
município de Fortaleza, Raquel Viana, ela traz para o campo do legislativo
“esse reconhecimento da violência, enquanto uma questão de caráter público e
não somente privado, e também reúne um conjunto de obrigações do Estado
em relação tanto à prevenção quanto ao enfrentamento da violência contra
mulheres.” Em seu art. 7º, inciso II, a Lei Maria da Penha tipifica a violência
sexual como uma forma de violência doméstica, fazendo menção aos direitos
sexuais e reprodutivos das mulheres.
II - a violência sexual, entendida como qualquer conduta que a
constranja a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual
não desejada, mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da
31
força; que a induza a comercializar ou a utilizar, de qualquer modo, a
sua sexualidade, que a impeça de usar qualquer método
contraceptivo ou que a force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou
à prostituição, mediante coação, chantagem, suborno ou
manipulação; ou que limite ou anule o exercício de seus direitos
sexuais e reprodutivos;
O Brasil assumiu, nas Conferências da ONU ocorridas durante a
década de 1990, os compromissos de assegurar o pleno exercício dos direitos
reprodutivos e de fazer a revisão da atual legislação que criminaliza o aborto no
País. São várias as organizações brasileiras que trabalham com esse objetivo.
A Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres (SEPM) da Presidência da
República participa de modo permanente de reuniões internacionais e produz
documentos que avaliam a situação desses direitos e o cumprimento dos
acordos dos quais o País faz parte, enviando-os periodicamente às Nações
Unidas e demais organizações internacionais. Além disso, em 2012, o Brasil
participou da elaboração do documento final da Conferência das Nações
Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável, Rio+20, comprometendo-se a
trabalhar em prol dos direitos sexuais e reprodutivos de mulheres, homens e
jovens e promover a igualdade entre os gêneros. O documento intitulado “O
Futuro que queremos” faz menção aos direitos sexuais e reprodutivos em seus
artigos 145 e 146:
145. Pedimos que se apliquen plena y efectivamente la Plataforma de
Acción de Beijing y el Programa de Acción de la Conferencia
Internacional sobre la Población y el Desarrollo y los resultados de
sus conferencias de examen, incluídos lós compromisos relativos a la
salud sexual y reproductiva y la promoción y protección de todos lós
derechos humanos em este contexto. Ponemos de relieve la
necesidad de propocionar acceso universal a la salud reproductiva,
incluida la planificación de la familia y la salud sexual, y de integrar la
salud reproductiva em las estrategias y lós programas nacionales.
146. Nos comprometemos a reducir la mortalidad materna e infantil y
mejorar la salud de las mujeres, lós jóvenes y lós niños. Reafirmamos
nuestro compromiso com la igualdad de lós géneros y la protección
de lós derechos de las mujeres, lós hombres y lós jóvenes a tener
control sobre las cuestiones relativas a su sexualidad, incluido el
acceso a la salud sexual y reproductiva, y dedecidir libremente
respecto de esas cuestiones, sin verse sujetos a la coerción, la
discriminación y la violencia. Trabajaremos activamente para
asegurar que los sistemas de salud proporcionen la información y los
servicios sanitarios necesarios para atender la salud sexual e
reproductiva de la mujer, em particular para lograr um acceso
universal a métodos de planificación de la familia modernos, seguros,
efectivos, asequibles y aceptables, ya que ello es fundamental para la
salud de la mujer y para promover la igualdad entre los géneros.
32
Nota-se que a Constituição Brasileira de 1988 fornece base formal
sólida para o reconhecimento dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres.
No entanto, a fim de compreender os entraves que se interpõem a
concretização e efetividade dos dispositivos que se encontram virtualmente
nela inscritos, faz-se necessário um amplo estudo sobre tais direitos, mediante
uma reflexão teórica que se coloque no cruzamento de três campos que têm
tratado separadamente deste tema – o jurídico, aquele das políticas públicas e
o cultural (centrado na esfera do religioso).
Com base na conceituação de caráter histórico dos direitos sexuais
e reprodutivos das mulheres, realizada neste capítulo, foram apresentadas as
transformações sofridas por tais direitos dentro do campo jurídico, bem como
as limitações encontradas no âmbito nacional no que diz respeito à efetivação
dos mesmos. A fim de dar sequência ao tratamento dos dados obtidos nesta
pesquisa, o segundo capítulo deste trabalho buscará tratar da problemática
destes direitos na perspectiva do “corpo” e das “relações de gênero”, fazendo
uma análise sociológica sobre o exercício da sexualidade feminina.
33
4 OS DIREITOS SEXUAIS E REPRODUTIVOS DAS MULHERES NA
PERSPECTIVA DO CORPO E DO GÊNERO
Muitos autores, tais como Mary Del Priore, Michelle Perrot e
Georges Duby, afirmam que desde a ascensão da burguesia no século XVIII, a
sociedade vive uma fase de repressão sexual. As práticas e as palavras que
antes não procuravam segredo foram cuidadosamente encerradas no interior
dos lares, sendo confiscadas pela esfera conjugal e resumidas à função da
reprodução. Numa época onde a força de trabalho era amplamente explorada,
não se podia permitir a dissipação e o desperdício das energias por meio do
prazer.
Durante o regime vitoriano, no século XIX, o casal procriador passa
a ser o modelo de uma sexualidade “normal”. A “anormalidade” sexual era
negada e reduzida ao silêncio, ou transferida para atividades lucrativas, como a
prostituição. O sexo tornou-se um assunto tabu, e o prazer sexual feminino era,
então, considerado inaceitável, transformando a frigidez num importante
aspecto da feminilidade, como afirma Reay Tannahill (1980):
A RESSURREIÇÃO vitoriana do amor palaciano foi grandemente
responsável pela transformação de damas da classe média em
adoráveis e intocáveis guardiãs da moralidade, cujo desdém pelo
sexo levou a um explosivo aumento da prostituição, de uma
epidêmica praga de doenças venéreas e de um mórbido gosto pelo
masoquismo. (TANNAHILL. 1980, p. 377)
Na era vitoriana, a repressão sexual foi intensificada com a viuvez
da rainha Vitória, em 1861. Regina Navarro Lins e Flávio Braga (2005) tratam
da repressão sexual durante seu reinado e afirmam:
A rainha Vitória personificava a moral sexual vitoriana, mas conseguiu
manter até os 40 anos todo o vigor e capacidade de desfrutar o sexo.
Após a morte do príncipe consorte, em 1861, a nação associou-se à
tristeza da rainha, tendo sido com sua aprovação tácita que as forças
da repressão começaram a aumentar o controle sobre o país.
(...) O nascimento de uma criança era para Vitória o “lado negro do
casamento”, vergonhoso e degradante, o que passou também a ser
posição da classe média. Tal como o sexo, tratava-se de algo escuso,
feito em segredo, e muitas mulheres, para manter sua dignidade
durante a gravidez, mantinham-se vestidas com espartilho até o
34
trabalho de parto, apesar das dores intensas. (LINS; BRAGA. 2005,
p. 197)
Mais de dois séculos depois, muitas foram as transformações na
moral e nos códigos de conduta sexuais. Logicamente, o sexo não é hoje
pensado da mesma forma que era no século XVIII e, de uma geração para
outra, muitos valores foram modificados. Um indício da aceleração impressa,
nas últimas décadas, à sucessão de valores pode ser percebido no fato de que
é comum os jovens não pensarem o sexo da mesma forma que seus pais ou
avós o faziam, por isso, rotulando-os de “caretas”. No entanto, o discurso sobre
a repressão moderna do sexo ainda hoje se sustenta, com base em tabus que
ainda persistem em nossa sociedade, embora assuma outras formas ou
intensidade. Segundo Lins e Braga (2005), como resultado de séculos de
repressão, “muitos acreditam ser o sexo uma coisa impura e nada humana. A
vergonha e a culpa sexuais podem se manifestar diante de um pensamento, de
um desejo ou da simples intenção de agir de determinada maneira.” (p. 199) O
filósofo francês Michel Foucault (2012), por outro lado, opõe-se a esse tipo de
afirmação.
Em sua obra “História da Sexualidade”, Foucault (2012) chama a
hipótese descrita acima de “hipótese repressiva”. Segundo o autor, a
sexualidade não foi censurada com o advento do capitalismo. A burguesia
capitalista não obrigou o sexo a calar-se ou esconder-se, mas a revelar-se,
fazendo-se confessar. Configurando-se, assim, uma proliferação de discursos
sobre o sexo.
Foucault (2012) afirma que nunca se falou tanto em sexualidade
como nos últimos séculos. Sem pretender negar toda a proibição,
mascaramento e repressão ao sexo desde a época clássica, o autor acredita
que nem por isso o sexo ficou mais oculto do que antes. Todas as proibições e
censuras fazem parte, na verdade, de uma técnica de poder, uma vontade de
saber.
(...) a partir do fim do século XVI, a “colocação do sexo em discurso”,
em vez de sofrer um processo de restrição, foi, ao contrário,
submetida a um mecanismo de crescente incitação; que as técnicas
de poder exercidas sobre o sexo não obedeceram a um princípio de
seleção rigorosa mas, ao contrário, de disseminação e implantação
35
das sexualidades poliformas e que a vontade de saber não se detém
diante de um tabu irrevogável, mas se obstinou – sem dúvida através
de muitos erros – em constituir uma ciência da sexualidade.
(FOUCAULT, 2012, p. 19)
Segundo Foucault (2012), desde o século XVIII não pararam de
surgir discursos que tinham o sexo como objeto privilegiado. A própria pastoral
cristã apresentava o sexo como algo que deveria ser devidamente confessado.
O bom cristão deveria fazer de todo seu desejo um discurso, detalhando todos
os seus pensamentos e atos referentes ao sexo. Ainda que tenham sido
estabelecidas censuras ao vocabulário utilizado durante as confissões,
Foucault (2012) afirma que estas poderiam tratar-se de “dispositivos
secundários a essa grande sujeição: maneiras de torná-la moralmente
aceitável e tecnicamente útil.” (p. 27)
Entre os séculos XVII e XIX, houve o controle de tudo que envolvia a
sexualidade, com o surgimento de áreas especializadas, como: demografia,
medicina, psiquiatria, psicologia, justiça penal, dentre outras. No entanto, foi o
próprio poder que incitou a proliferação desses discursos, por meio de
instituições como a Igreja, a família, as escolas, os consultórios médicos e as
casas de saúde, por exemplo. Essas instituições não visavam proibir ou
restringir a prática sexual, mas sim controlar o indivíduo e a população por
meio de “discursos úteis e públicos”. É o que Foucault (2012) chama de “polícia
do sexo”:
O sexo não se julga apenas, administra-se. Sobreleva-se ao poder
público; exige procedimentos de gestão; deve ser assumido por
discursos analíticos. No século XVIII o sexo se torna questão de
“polícia”. Mas no sentido pleno e forte que se atribuía então a essa
palavra – não como repressão da desordem e sim como majoração
ordenada das forças coletivas e individuais. (FOUCAULT. 2012, p.
31)
Conforme afirma este autor, o fato de formularmos em termos de
repressão as relações do sexo e do poder se deve à existência de uma
economia de discursos que sustenta essa hipótese repressiva. Além disso,
outra razão seria o que ele chama de “benefício do locutor”, que colocaria o
indivíduo que fala do sexo numa posição de fora da lei.
Se o sexo é reprimido, isto é, fadado à proibição, à inexistência e ao
mutismo, o simples fato de falar dele e de sua repressão possui como
36
que um ar de transgressão deliberada. Quem emprega essa
linguagem coloca-se, até certo ponto, fora do alcance do poder;
desordena a lei; antecipa, por menos que seja, a liberdade futura. Daí
essa solenidade com que se fala, hoje em dia, do sexo. (FOUCAULT.
2012, p. 12)
A partir destas considerações, pode-se observar que, em “História
da Sexualidade”, o filósofo francês busca desconstruir a hipótese repressiva,
afirmando que o “próprio das sociedades modernas não é o de terem
condenado o sexo a permanecer na obscuridade, mas sim o terem-se
devotado a falar dele sempre, valorizando-o como o segredo.” (FOUCAULT,
2012, p. 42) Por esse motivo, ele defende que é preciso abandonar a hipótese
de que as sociedades industriais modernas inauguraram um período de
repressão mais intensa do sexo.
A proliferação de discursos sobre o sexo, da qual trata Foucault, fica
evidente no âmbito das ciências sociais. Segundo Maria Andréa Loyola (1999),
a pluridisciplinaridade e a polissemia que caracterizam a sexualidade como
objeto de estudo devem ser entendidas como tentativas de se articular
abordagens situadas em diferentes níveis, uma vez que não existe uma
abordagem unitária da sexualidade nas ciências sociais. A autora cita algumas
abordagens da sexualidade em diferentes ciências:
Assim, a sexualidade pode ser abordada em relação à família, ao
parentesco, ao casamento e à aliança como constitutiva e, ao mesmo
tempo, perturbadora da ordem social (antropologia e sociologia). Ela
pode ser abordada, ainda, como constitutiva da subjetividade e/ou da
identidade individual (psicanálise) e social (história e ciências sociais
em geral); como representação (antropologia) ou como desejo
(psicanálise); como um problema biológico/genético (medicina); ou
ainda como um problema político e moral (sociologia, filosofia) ou,
mais direta e simplesmente, como atividade sexual. (LOYOLA, 1999,
p. 32)
Loyola (1999) afirma que, com exceção da antropologia, que
tomou a sexualidade como forma de pensar a sociedade, as ciências que mais
se ocuparam deste tema foram as de caráter ético ou normativo/terapêutico: o
pensamento religioso, a medicina e a psicanálise. A apropriação da
sexualidade por essas ciências nos remete a ideia de scientia sexualis de
Foucault.
37
A scientia sexualis de Foucault consiste num conjunto de
procedimentos ordenados, com a finalidade de se obter a verdade sobre o
sexo. De acordo com Foucault (2012), a nossa civilização transformou o sexo
num objeto de verdade e desenvolveu um imenso aparelho para produzir esta
verdade, mesmo que para mascará-la num último momento. Neste sentido, a
confissão e o testemunho desempenharam o papel de práticas fundamentais
para produção da verdade.
Fosse com uma função jurídica, religiosa ou médica, a confissão era
utilizada como uma forma de o indivíduo reconhecer suas próprias ações e
pensamentos. Assim, o indivíduo não era mais autenticado pela opinião que os
outros desenvolviam sobre ele, mas pelo discurso de verdade que era capaz
de produzir sobre si mesmo. Confessando os crimes, os pensamentos, os
pecados, os desejos, em público ou em particular, espontaneamente ou à
força, “o homem, no Ocidente, tornou-se um animal confidente.” (FOUCAULT.
2012, p. 68)
Segundo Foucault (2012), desde a penitência cristã até os nossos
dias, o sexo tem sido matéria privilegiada da confissão, sendo esta a matriz
que rege a produção do discurso verdadeiro sobre o sexo por parte de diversas
ciências. A medicina é um exemplo de “ciência-confissão”.
De acordo com Loyola (1999), foi com princípios, sobretudo,
normativos que a medicina se ocupou da sexualidade, transformando uma
série de interditos e normas sexuais (inclusive de ordem religiosa) em
postulados científicos. No século XVII, a ciência médica estabeleceu que a
sexualidade tratava-se de um instinto biológico voltado para a reprodução da
espécie, fortificando, assim, os ideais de amor a Deus e à família e
consolidando a ideia do desejo sexual como enfermidade, conforme afirma
Mary Del Priore (2011):
Ao final do Renascimento, longos tratados médicos são escritos
sobre o tema: O antídoto do amor, de 1599, ou A genealogia do
amor, de 1609, são bons exemplos desse tipo de literatura. Seus
autores tanto se interessavam pelas definições filosóficas do amor
quanto pelos diagnósticos e tratamentos envolvidos na sua cura.
Todos, também, recorrem a observações misturadas a alusões
literárias, históricas e científicas para concluir que o amor erótico,
38
amor-hereos ou melancolia erótica, era o resultado dos humores
queimados pela paixão. E mais: que todos os sintomas observados
poderiam ser explicados em termos de patologia. De doença. (DEL
PRIORE. 2011, p. 31)
Vale ressaltar que as mulheres receberam muita atenção nos
discursos produzidos sobre o sexo. Diferentemente da sexualidade masculina,
o sexo das mulheres foi considerado, em diferentes momentos históricos, algo
a ser protegido, fechado e possuído, como afirma Michelle Perrot (2007). De
Aristóteles a Freud, a mulher foi vista como um ser dotado de carências,
fraquezas e defeitos.
Entre os séculos XII e XVIII, a Igreja identificou as mulheres como
formas do mal sobre a Terra, descendentes de Eva, a responsável pela
expulsão do paraíso e pela queda dos homens, e seus corpos foram
considerados impuros. O prazer feminino foi combatido tanto pelo discurso
religioso quanto pelo médico.
Enfim, o prazer feminino era considerado tão maldito que, no dia do
Julgamento Final, as mulheres ressuscitariam como homens; dessa
forma, no “santo estado” masculino, não seriam tentados pela “carne
funesta”, reclamava Santo Agostinho. Com essa pá de cal, as
mulheres foram condenadas por padres e médicos a ignorar, durante
séculos, o prazer. (DEL PRIORE, 2011, p. 35)
A avidez sexual das mulheres foi considerada perigosa e os
cavaleiros da Idade Média temiam o leito da mulher insaciável, incertos de
poderem satisfazê-la. Durante séculos, o prazer feminino foi visto com maus
olhos e a conduta das mulheres foi exposta a julgamentos sociais.
As mulheres cuja sexualidade não tem freios são perigosas.
Maléficas, assemelham-se a feiticeiras, dotadas de “vulvas
insaciáveis”. Mesmo quando estão velhas, fora da idade permitida
para o amor, as feiticeiras têm a reputação de cavalgar os homens,
de tomá-los por trás, o que, na cristandade, é contrário à posição dita
natural: em suma, têm a reputação de fazer amor como não se deve
fazer. (PERROT, 2007, p. 66)
Segundo Anthony Giddens (1993), durante o século XIX, no contexto
da criação de discursos sobre o sexo, a sexualidade feminina foi reconhecida e
imediatamente reprimida, sendo tratada como a origem patológica da histeria.
39
As mulheres que almejavam prazer sexual eram consideradas definitivamente
anormais.
Giddens (1993) admite a sexualidade como uma elaboração social
que opera dentro dos campos do poder. No entanto, discorda do pensamento
de Foucault “de que há um caminho de desenvolvimento mais ou menos direto,
desde um ‘fascínio’ vitoriano pela sexualidade até os tempos mais recentes.”
(p. 33) Para Giddens (1993), as repressões da era vitoriana, assim como as
posteriores, foram em alguns aspectos muito reais, e várias gerações de
mulheres podem atestá-lo.
Mesmo nos dias de hoje, a avidez sexual feminina ainda é vista de
forma pejorativa e muitas mulheres são consideradas vulgares e “fáceis”,
indignas de que os homens resolvam assumi-las em um relacionamento
socialmente reconhecido como estável. Uma mulher cujos impulsos sexuais
são publicamente manifestos é identificada como um perigo tanto para o
homem como para outras mulheres, tanto por questões relacionadas à
fidelidade como pela suposição de que ele terá de satisfazê-la plenamente.
Tais concepções orientam determinadas práticas sociais. Por exemplo, para os
soldados e os atletas, é considerada aceitável a necessidade de se afastarem
das mulheres durante o período que antecede o uso de suas forças.
Uma vez que o prazer feminino foi, por muito tempo, alvo de
repressões, a frigidez tornou-se uma característica do ideal de mulheres
respeitáveis, assim como o distanciamento de tudo aquilo que possua um valor
erótico. Assim, a figura das amantes, prostitutas e mulheres sedutoras apenas
permeiam o imaginário dos homens como formas associadas à ideia de
aventuras prazerosas.
Frente à recorrência de tais concepções, é possível afirmar que a
avidez sexual e a frigidez feminina constituem duas formas dominantes de
representação da feminilidade na sociedade ocidental. Elas são fruto da
concepção binária do gênero.
40
Ao longo da História, todas as sociedades desenvolveram
mecanismos de diferenciação dos gêneros, entendendo o gênero como
elemento intimamente relacionado ao exercício da sexualidade. Dessa forma,
ao estabelecerem as diferenças entre o masculino e o feminino, foram também
definidas
quais
práticas
sexuais
seriam
consideradas
adequadas
ou
repudiadas. O incesto, a masturbação e a homossexualidade são alguns
exemplos de práticas sexuais proscritas em diferentes sociedades e momentos
históricos.
No
âmbito
das
sociedades
ocidentais
modernas,
a
heterossexualidade passou a consistir num modelo dominante de preferências
e condutas sexuais, normatizando o que é feminino e masculino. Neste
contexto, a atividade sexual tem sido definida como domínio masculino e o
coito como ato sexual por excelência, de maneira que o falo tornou-se
elemento indispensável em qualquer atividade sexual que seja considerada
normal e aceitável (BRANDÃO, 2008).
A relação estabelecida entre o exercício da sexualidade e o gênero,
acabou por dar lugar à ideia de que o gênero se organiza tão somente segundo
um binário masculino/feminino. A perspectiva de gênero se vincula, assim, à
consolidação de um discurso que constrói uma identidade do feminino e do
masculino, encarcerando homens e mulheres em seus limites fisiológicos.
Neste sentido, como explica Ana Maria Brandão (2010), o desejo homoerótico
surge como uma infração a esse modelo bipolar do gênero, na medida em que
se opõe à crença da atração “naturalmente” exclusiva entre homens e
mulheres.
O modelo histórico e culturalmente afirmado da heterossexualidade
como a conduta sexual normal traz à tona uma série de pressupostos acerca
de nossos comportamentos, preferências e de quem somos, os quais podem
desencadear “crises identitárias” sempre que se faz perceber qualquer
afastamento do modelo estabelecido. (ERIKSON, 1980)
A nossa identidade não é pré-determinada pelo nascimento. Ela é
resultado de uma longa caminhada que realizamos por meio das experiências
41
de vida que vamos acumulando e de nossas próprias reações frente aos mais
diversos acontecimentos. A identidade é, portanto, dinâmica, delineando-se ao
longo de nossa vida, como fruto das trocas que estabelecemos com os outros
indivíduos. Dessa forma, a identidade ganha, a cada momento, uma nova
configuração, integrando elementos que antes não existiam. (ERIKSON, 1980)
Isso significa que aquilo que somos encontra-se num permanente estado de
(re)elaboração.
Segundo Erik Erikson (1980), as “crises identitárias” ocorrem em
diversos momentos de nossas vidas, a partir do momento em que novas
situações e perspectivas confrontam nosso sentimento de unidade.
A nossa sociedade vem se construindo, desde a modernidade, por
meio de uma alta reflexibilidade. A questão “quem sou eu?” toma uma
importância contínua dentro da nossa realidade, a partir dos questionamentos
acerca de qual é o lugar de cada um nessa sociedade. Richard Sennett (1988)
afirma que “o eu de cada pessoa tornou-se seu próprio fardo; conhecer-se a si
mesmo tornou-se antes uma finalidade do que um meio através do qual se
conhece o mundo.” (p. 16)
Nas últimas quatro gerações, a relação física com o outro por meio
do sexo vem sendo redefinida. Segundo Sennett (1988), o amor físico passou
dos termos do erotismo vitoriano para os termos da sexualidade. Neste
contexto, é fundamental tornar mais precisos os conceitos dos termos
“sexualidade” e “erotismo”, a fim de diferenciá-los.
Muitas vezes, as palavras “sexualidade” e “erotismo” são utilizadas
como sinônimos, possuindo, no entanto, conceituações bem diferentes. A
sexualidade está relacionada às preferências e experiências sexuais de um
indivíduo que o levam à construção de uma identidade sexual. O erotismo, por
sua vez, é o resultado da atividade sexual como prazer e, ao mesmo tempo, a
consciência do interdito (BATAILLE, 1987). Isso significa que, embora
sexualidade e erotismo estejam relacionados à atividade sexual humana, a
diferença entre ambos repousa na ideia da transgressão.
42
Segundo Del Priore (2011), em 1566, é dicionarizada na França,
pela primeira vez, a palavra “erótico”, a qual designava “o que tiver relação com
o amor ou proceder dele”. Com o passar do tempo, muitos gestos, palavras e
condutas perderam suas conotações eróticas, enquanto outras passaram a
representar erotismo. A nudez, que hoje é considerada erótica, por exemplo, já
foi representada nas pinturas humanistas por meio de corpos nus de homens e
mulheres, sem censura alguma. A ideia do erótico está intimamente
relacionada à contravenção de restrições de caráter sexual.
Em sua obra intitulada “O Erotismo”, Georges Bataille (1987)
afirma que o erotismo é um elemento que separa o homem do animal, uma vez
que a atividade sexual é comum para ambos, mas, aparentemente, só os seres
humanos fizeram disso uma atividade erótica, por meio de uma experiência
interior.
Em resumo, mesmo estando de acordo com a maioria, a escolha
humana difere da do animal: ela apela para essa mobilidade interior,
infinitamente complexa, que típica do homem. O animal tem ele
próprio uma vida subjetiva, mas essa vida, parece, lhe é dada, como
acontece com os objetos sem vida, de uma vez por todas. O erotismo
do homem difere da sexualidade animal justamente no ponto em que
ele põe a vida interior em questão. O erotismo é na consciência do
homem aquilo que põe nele o ser em questão. (BATAILLE, 1987, p.
20)
Ao agruparem-se em sociedade os seres humanos impuseram
diversas restrições, que Bataille (1987) chama de “interditos”, os quais tocaram,
dentre outros elementos da vida humana, a atividade sexual. A ideia de
erotismo consiste em ter conhecimento do jogo de balança entre interdito e
transgressão, onde se é possível optar por um ou por outro, exigindo que se
vivencie uma experiência pessoal e contraditória. Assim sendo, pode-se dizer
que a essência do erotismo é a transgressão.
Dessa forma, o erotismo consiste numa expressão sexual por meio
de ações transgressoras e a sexualidade, por sua vez, não é uma ação, mas
um estado, o resultado natural da intimidade física entre duas pessoas.
Imaginamos que a sexualidade delimita um amplo território para
aquilo que somos e que sentimos. A sexualidade é um estado
expressivo, ao invés de um ato expressivo, e é no entanto entrópica.
Tudo quanto experimentamos toca necessariamente a nossa
43
sexualidade, mas a sexualidade é. Nós a desvendamos, a
descobrimos, chegamos a um acordo com ela, mas não a
dominamos. (SENNETT, 1988, p. 20)
Essa ansiedade que a sociedade atual apresenta diante daquilo que
se sente e essa incessante busca pela identidade deu lugar a uma infinita
procura por nós mesmos a partir do exercício da sexualidade. Nas palavras de
Sennett (1981, p. 3):
Sexo é básico como comer ou dormir, isso é certo, mas, é tratado na
sociedade moderna como algo mais. É o meio através do qual as
pessoas procuram definir suas: personalidades, seus gostos. Acima
de tudo, sexualidade é o meio pelo qual as pessoas buscam ser
conscientes de si próprias. (SENNETT. 1981, p. 3) (Tradução livre
da autora)
Em “Sexuality and Solitude”, texto escrito por Sennett e Foucault
no ano de 1981, o autor americano explica que a busca das pessoas por
encontrarem o seu “eu” a partir de suas sexualidades individuais é, em parte,
gerada do medo. Esse medo é remanescente da moralidade vitoriana, embora
sempre nos iludamos em achar que não compartilhamos mais dos seus
preceitos repressivos.
As primeiras investigações modernas sobre sexualidade acreditavam
que estavam abrindo a terrível caixa de Pandora, de luxúria incontida,
perversão e destrutividade na procura dos desejos sexuais das
pessoas sozinhas, sem as civilizantes restrições da sociedade.
Quando vamos analisar os textos de Tissot e outros sobre
masturbação, já espero que surja esse sentido de terror. Uma pessoa
sozinha com uma força muito perigosa. (FOUCAULT; SENNETT,
1981, p. 4) (Tradução livre da autora)
Sennett (1981) explica, ainda, neste mesmo texto, como a
subjetividade tornou-se subjugada à sexualidade, utilizando o termo “tecnologia
do self”. Ela consiste no uso do desejo corporal para medir se uma pessoa está
sendo verdadeira ou não. O autor ainda destaca a expressão americana “you
really feel what I am saying?” como uma demonstração da submissão da
sexualidade à subjetividade. Se você não sente, é porque não é verdade.
Segundo Pierre Bourdieu (2011) e Judith Butler (2007), as
identidades são construídas por um conjunto de discursos (políticos, jurídicos,
econômicos, religiosos) sobre gênero e sexualidade, dos quais os indivíduos se
44
utilizam para definir seus lugares no mundo. Sob o poder performativo desses
discursos é que se aprende a ser mulher e homem em nossa sociedade.
Bourdieu (1995) afirma que o habitus condiciona o modo de ser de
todo grupo e utiliza esse conceito para pensar as relações entre os sexos em
“A Dominação Masculina”. Nessa obra, o autor formula uma crítica à
naturalização da prática de se distinguir os sexos homem/mulher:
O habitus produz construções socialmente sexuadas do mundo e
mesmo do próprio corpo que, sem serem representações intelectuais,
não são menos ativas, e respostas sintéticas e adaptadas que, sem
serem fundadas no cálculo explícito de uma consciência mobilizando
uma memória, não são tampouco o produto do funcionamento cego
de mecanismos físicos ou químicos capazes de dispensar o espírito.
Através de um trabalho permanente de formação, de Bildung, o
mundo social constrói o corpo, ao mesmo tempo como realidade
sexuada e como depositário de categorias de percepção e de
apreciação sexuantes, que se aplicam ao próprio corpo na sua
realidade biológica. (BOURDIEU, 1995, p. 144)
Em suma, na sociedade ocidental, a identidade de gênero está
diretamente ligada à noção de identidade sexual, ligação esta que Butler (2007)
buscou desmontar em sua obra “Problemas de Gênero: feminismo e subversão
da identidade”, a fim de retirar da noção de gênero a ideia de que ele
decorreria do sexo. Do imaginário dessa relação sexualidade/gênero decorrem
dois pressupostos: primeiro, que ser mulher significa desejar um homem e,
segundo, que uma mulher que deseja outra mulher transgride as fronteiras de
seu gênero.
Contrariando
tais
pressupostos,
para
Giddens
(1993)
as
características fundamentais de uma sociedade de alta reflexibilidade, como a
nossa, são o caráter “aberto” da auto-identidade e a natureza reflexiva do
corpo. O autor explica que o que se aplica para o eu aplica-se também ao
corpo. Como domínio da sexualidade, o corpo torna-se um foco do poder
disciplinar e um portador visível da auto-identidade.
A partir da produção teórica desses autores, sobre a sexualidade na
sociedade moderna e as relações de poder que abrangem o sexo, o gênero, o
corpo e a construção identitária, podemos lançar as bases de uma abordagem
compreensiva que possibilite o confronto de diferentes perspectivas da
45
problemática que envolve o âmbito dos direitos sexuais e reprodutivos das
mulheres na atualidade.
4.1. OS DIREITOS SEXUAIS E REPRODUTIVOS DAS MULHERES NA
ATUALIDADE: Expectativas e tensões
O fato de se tratar de uma temática bastante recente, somente
reforça o fato de que o estudo de vários aspectos dos direitos sexuais e
reprodutivos ainda esteja passando por um processo de aprofundamento,
delimitações temáticas e fundamentação conceitual. Por consistir em uma
matéria interdisciplinar, torna-se mais complexa a afirmação deste campo
fenomênico, bem como a tarefa de apreender teoricamente a dinâmica de
efetivação de tais direitos.
Uma dentre as primeiras dificuldades encontradas na efetivação
dos direitos sexuais e reprodutivos, da maneira como estes foram conceituados
nos documentos internacionais já citados, encontra-se no âmbito da proteção
exercida por eles.
Segundo Raupp Rios (2007), a concepção de direitos sexuais e
reprodutivos acaba por concentrar o tratamento jurídico da sexualidade e da
reprodução sob a condição pessoal de um determinado grupo de indivíduos –
as mulheres.
O direito da sexualidade, conforme afirma Raupp Rios (2007), não
deve cuidar isoladamente de um grupo, pois “em suma, alcançaria identidades,
condutas, preferências e orientações as mais diversas, relacionadas com
aquilo que socialmente se estabelece, em cada momento histórico, como
sexual.” (p. 23) No entanto, esse não é o ponto crucial do referido problema.
Várias normas de diferentes ramos do ordenamento jurídico são
agrupadas com a função de proteger especificamente as mulheres,
possibilitando que gozem de seus direitos e liberdades fundamentais no campo
sexual e reprodutivo. No entanto, segundo Ventura (2005), essas normas
acabam por produzir e/ou incorporar uma assimetria entre os gêneros. E esse
é o ponto de discussão.
46
Podemos, neste caso, fazer uso do pensamento de Joan Scott
(1990) acerca da relação entre gênero e poder. Para a autora, o gênero é “um
elemento constitutivo das relações sociais fundadas sobre as diferenças
percebidas entre os sexos, e o gênero é o primeiro modo de dar significado às
relações de poder.” (p. 14) De fato, para Scott (1990) “o gênero é um primeiro
campo no seio do qual, ou por meio do qual, o poder é articulado.” (p.16) O
gênero expõe, assim, o dilema da diferença, a construção de desigualdades
binárias que seriam pretensamente naturais.
Segundo Emily Martin (2006), durante o século XIX, os papéis
sociais de homens e mulheres estavam baseados na própria natureza,
supostamente de acordo com o que seus corpos ditavam. Qualquer tentativa
de alterar a relação entre os sexos consistiria, então, numa luta contra a
Natureza. Mesmo atualmente, esse pensamento ainda não foi completamente
abandonado, encontrando lugar no cume de formulações religiosas mais
ortodoxas.
A assimetria entre os gêneros, ressaltada por Ventura (2005), reside
no fato de que os titulares dos direitos sexuais e reprodutivos, expressamente
nomeados no Plano de Ação do Cairo, são: os casais, os adolescentes, as
mulheres (mesmo as solteiras), os homens e as pessoas idosas. Porém, o que
se percebe é que, apesar desses direitos estarem estendidos a todos os
titulares citados, é para as mulheres que as políticas governamentais e as
normas jurídicas estão mais voltadas, destinando a elas não a atribuição de
direitos, mas o reconhecimento de deveres reprodutivos.
A posição reservada às mulheres no âmbito dessas normas constitui
um dos pontos de maior tensão no momento de sua aplicação e
elaboração, considerando que são estruturadas envolvendo,
preferencialmente, a capacidade reprodutiva feminina, atribuindo às
mulheres tão somente deveres no âmbito reprodutivo. (VENTURA,
2005, p. 117)
Assim sendo, a maior proteção fornecida às mulheres mediante
normas jurídicas que versam sobre a sexualidade e a reprodução acabam
configurando um paradoxo dentro da temática dos direitos sexuais e
reprodutivos. Isso se dá pelo fato de que as mulheres estão biológica e
psicologicamente mais vulneráveis à violação de seus direitos no campo sexual
47
e reprodutivo do que os homens3, mas as normas jurídicas, ao optarem por
priorizar esse grupo humano, imprimem a esta ação um caráter intervencionista
e autoritário. O que se entende a partir dessa situação é que as normas não
têm o objetivo de proteger especialmente as mulheres, e sim o de gerir o
exercício de sua sexualidade, funcionando como instrumentos de controle
social e não de garantia do pleno desenvolvimento humano. Neste sentido,
este cruzamento entre o âmbito do Direito e aquele da elaboração de políticas
públicas parece convergir com o conceito da biopolítica de Foucault (2012).
Este parece convergir com essa lógica, uma vez que ela surge como uma
forma de governamentalidade, ou seja, uma série de técnicas e procedimentos
que têm por finalidade dirigir a conduta dos indivíduos.
Dessa forma, no contexto da biopolítica de Foucault, as normas
jurídicas e as políticas desenvolvidas para mulheres agiriam de forma a
normalizar e adestrar seus corpos, gerindo suas vidas por meio de técnicas de
poder sobre o biológico, as quais estariam refletidas no campo político.
Segundo Foucault (2012), a partir do século XVIII, vários
dispositivos voltados a racionalizar a sexualidade, tais como a saúde, a higiene
e o controle da natalidade, começaram a surgir. Neste contexto, merece
destaque o fato de os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres se
encontrarem fortemente atrelados, via discurso produzido no âmbito das
ciências sociais, às ciências da saúde.
A formulação original do conceito de direitos reprodutivos, surgido
em 1984, durante o I Encontro Internacional de Saúde da Mulher, veio a
substituir o termo “Saúde da Mulher”, até então utilizado. A nova nomenclatura
foi considerada mais completa e adequada para traduzir as vastas
reivindicações por autonomia e autodeterminação reprodutiva formuladas pelas
mulheres. Esse conceito foi, então, debatido e aperfeiçoado até seu
aparecimento na CIPD. (BERQUÓ (Org.), 2003; VENTURA, 2005)
3
Essa constatação se encontra presente no Relatório da IV Conferência Mundial sobre a
Mulher de Pequim (1995), em seu capítulo “Mulher e Saúde”. Disponível em:
<<http://www.sepm.gov.br/Articulacao/articulacao-internacional/relatorio-pequim.pdf>> Acesso
em: 23 nov. 2012.
48
Após a incorporação dos direitos sexuais e reprodutivos ao
conjunto dos direitos humanos, o que se deu a partir, principalmente, das
Conferências do Cairo (1994) e de Pequim (1995), eles passaram a ser matéria
de estudo não só das ciências da saúde, mas das ciências jurídicas, dentre
outras áreas de conhecimento. Dessa forma, desde que a noção desses
direitos foi firmada internacionalmente, o estudo dos mesmos passou a
consistir em abordagens multidisciplinares, não estando mais limitados tão
somente às questões de saúde. A conquista do prazer, o conhecimento sobre
seu próprio corpo, o desenvolvimento livre de sua sexualidade e uma
organização da vida reprodutiva vão muito além da dimensão fisiológica
manifesta pelas práticas de fazer sexo, ter filhos, adoecer, morrer.
Embora os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres envolvam
várias outras questões, como: violência e exploração sexual, tráfico de
mulheres, assédio, prostituição, dentre outras, essa temática tem sido, na
maioria das vezes, resumida a questões de higiene e saúde pública.
Durante as Conferências Municipal e Estadual de Políticas para
Mulheres, realizadas na cidade de Fortaleza, respectivamente nos meses de
agosto e outubro de 2011, das quais participei ativamente, as delegadas e
observadoras deveriam optar por integrar um Grupo de Trabalho (GT). O GT
destinado a debater os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres intitulavase “SAÚDE DAS MULHERES: Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos”. O
objetivo geral desse GT, segundo o II Plano Nacional de Políticas para
Mulheres era:
Promover a melhoria das condições de vida e saúde das mulheres,
em todas as fases do seu ciclo vital, mediante a garantia de direitos
igualmente constituídos, e a ampliação do acesso aos meios e
serviços de promoção, prevenção, assistência e recuperação da
saúde integral em todo o território brasileiro, sem discriminação de
qualquer espécie e resguardando-se a identidades e especificidades
de gênero, raça/etnia, geração e orientação sexual.
Segundo a ministrante desse GT na III Pré-Conferência Municipal de
Políticas para Mulheres, Débora Mendonça, integrante do movimento Marcha
Mundial de Mulheres, “essa é uma maneira mais fácil de tratar do tema, já que
49
ele é muito extenso. Não haveria como se discutir todas as suas questões
dentro de um único GT”.
Vale ressaltar que as noções de saúde reprodutiva e sexual não
foram originalmente formuladas pelos movimentos sociais, mas sim no âmbito
da Organização Mundial da Saúde (OMS), durante a segunda metade da
década de 1980. Sua formulação estava ligada ao controle demográfico e ao
planejamento familiar, acrescido da tentativa de amenizar o impacto da
pandemia de HIV/AIDS na década de 1990. (BERQUÓ (Org.), 2003)
Sem dúvidas, a necessidade de se abordar as questões relativas à
saúde da mulher de um ponto de vista do gênero é evidente. No entanto, a
maneira como essa temática tem sido tratada no âmbito das Conferências de
Políticas para Mulheres é ainda bastante redutora, limitando-a ao campo da
saúde pública e, especificamente, da reprodução.
A interdependência entre a categoria dos direitos sexuais e dos
direitos reprodutivos é outra questão delicada. Podemos visualizar a maior
importância concedida à reprodução, enquanto que os direitos sexuais ficaram
atrelados de modo íntimo à afirmação dos direitos reprodutivos. (RIOS, 2007;
VENTURA, 2005)
Ventura (2005) explica que “mesmo no campo da saúde, a
vinculação das questões sexuais às reprodutivas tem trazido prejuízo para a
promoção da saúde sexual e vice-versa.” (p. 126) Neste sentido, a
desvinculação entre os direitos sexuais e reprodutivos permitiria ampliar a
concepção de ambos sem, no entanto, impedir o estabelecimento de conexões
entre eles. Sobre isso, Raupp Rios (2007) afirma:
É necessário, portanto, fortalecer o direito da sexualidade fazendo ir
além da esfera reprodutiva, sem, todavia, esquecer que violações a
direitos sexuais frequentemente estão associadas à reprodução e
tendo como vítimas mulheres em situação de vulnerabilidade. (p. 36)
Raupp Rios (2007) ressalta a dificuldade de se desenvolver um
direito à sexualidade diante do machismo predominante nas relações de
gênero, do moralismo e das ideologias religiosas hegemônicas. Além disso,
50
Corrêa e Ávila (2003) reforçam o caráter desafiador que o refinamento dos
direitos sexuais representa, diferenciando-se dos direitos reprodutivos:
Em grande medida, os esforços no sentido de clarificar e refinar os
conteúdos dos direitos sexuais têm sido desenvolvidos pos-facto e
chamam atenção para o fato de que – à diferença dos direitos
reprodutivos, que surgiram e amadureceram exclusivamente no
campo feminista – o refinamento dos direitos sexuais exige o
envolvimento de outros atores e perspectivas (lésbicas, gays,
travestis, transgênero, trabalhadoras e trabalhadores do sexo,
homens que fazem sexo com homens e outros “dissidentes sexuais”),
o que torna a tarefa incomparavelmente mais complexa. (CORRÊA e
ÁVILA, 2003, p. 21-22)
Outro ponto a ser salientado diz respeito à criação e aplicação de
normas jurídicas que versam sobre os direitos sexuais e reprodutivos. Segundo
Ventura (2005), as leis sofrem forte influência de conservadorismo moral e
religioso:
Os princípios que vêm sendo utilizados para dar interpretação e
orientar a elaboração de leis neste sentido são os da dignidade da
pessoa humana, da parentalidade responsável e do melhor interesse
da criança, expressas inclusive, na Constituição Federal brasileira.
Mas é justamente no momento de solucionar e/ou compor conflitos de
interesses que as dificuldades se apresentam, e encontramos as
maiores dificuldades no âmbito da subjetividade, relacionadas às
representações sociais, culturais, morais, religiosas. (VENTURA,
2005, p. 127)
Segundo Ana Maria D’Ávila Lopes et al (2008), o fato de o homem
ter, por muito tempo, dominado o espaço público e, também, o privado,
colocava as mulheres em um segundo plano na sociedade. Assim, sendo
representantes do poder econômico, político e social, os homens passaram a
formular não apenas normas sociais, mas normas jurídicas que colocam a
mulher numa posição desprivilegiada em relação ao reconhecimento e ao
exercício de seus direitos.
Apesar de todo o esforço na luta contra a violação dos direitos
sexuais e reprodutivos, continuam a existir, em nível planetário, agressões a
esses paradigmas, levando ao fracasso todas as precauções que se tem
tomado para evitá-las. Essa afronta trouxe consigo a necessidade de
realização de estudos e pesquisas, dando origem ao Relatório do Fundo das
Nações Unidas para a População (FNUAP).
51
Esse relatório, também chamado “O Direito de Escolher: Direitos
Reprodutivos e Saúde Reprodutiva”, divulgado no dia 28 de maio de 1997,
apresenta os entendimentos mundiais que definem os direitos sexuais e
reprodutivos, enumera os problemas encontrados para efetuar-se a proteção
desses direitos e analisa os efeitos de sua negação.
A partir de tal pesquisa, foi constatada a realidade de uma incrível
recorrência do desrespeito a esses direitos. De acordo com Antônio Silveira
Ribeiro dos Santos (2011), as estatísticas lançadas no relatório do FNUAP
relatam que:
- 585.000 mulheres morrem todos os anos por causas relacionadas à
gravidez, sendo quase todas de países em desenvolvimento;
- 200.000 mortes maternas por ano resultam de falta ou fracasso de
anticoncepção;
-350 milhões
anticoncepção;
de
casais
carecem
de
informações
sobre
- das 75 milhões de gravidezes indesejadas, 45 milhões resultam em
aborto e 70.000 mortes por ano se dão por falta de condições
assépticas adequadas.
Os maiores obstáculos explicitados pela ONU no sentido de
combater tais agressões se apresentam na forma de aspectos culturais e
preceitos religiosos presentes em diversas populações.
Adentrando em um âmbito de certo modo filosófico, para as Nações
Unidas a questão que se apresenta como de fundamental importância na
efetivação de sua luta por esses direitos, é saber até que ponto sua atuação
poderia ferir ou modificar a cultura de um povo. Alterar costumes de
sociedades, as quais percorreram os séculos, seria legítimo? E, mesmo que
não o fosse, a intervenção formal seria o melhor caminho? Tais observações
acerca do que consiste o escopo da violação de direitos humanos e o que
caracteriza uma manifestação cultural que deve ser respeitada têm refreado
algumas atitudes mais incisivas por parte desse órgão, porém, não se pode
negar que tais reflexões possuem sua relevância.
52
A mutilação genital, por exemplo, é uma prática ainda exercida em
cerca de vinte e oito países, por povos de diversas etnias; um costume
ancestral.4
No relatório, destacou-se, também, a existência de um grande
número de mulheres infectadas por doenças sexualmente transmissíveis,
principalmente a AIDS, bem como rigorosas regras impostas por sociedades de
caráter machista.
O estudo ainda constata que as restrições à participação social da
mulher impedem o acesso desta aos serviços de saúde reprodutiva, além de
lhe faltarem recursos e informações. A educação é um fator de grande
relevância neste contexto, pois, de forma recorrente, a partir do momento que
as mulheres se iniciam no processo de instrução em relação aos seus direitos,
começam a querer transformar a maneira como são vistas. Segundo Brauner
(2005):
A dificuldade está em reconhecer-se que o respeito aos direitos
sexuais e reprodutivos está vinculado à questão do controle da
sexualidade e da capacidade reprodutiva, pelo processo de educação
e socialização das pessoas, tendo em vista que esses elementos
determinam o grau de realização do indivíduo em relação ao seu
corpo, sua possibilidade de viver sua sexualidade de forma
gratificante e de organizar sua vida reprodutiva. (p. 9)
A referida problemática também se dá, especialmente, devido a
entraves de ordem religiosa. É sabido que a Igreja Católica, ao longo dos
últimos apostolados papais, erigiu-se somo opositora ferrenha da ideia de
controles artificiais de fecundidade, do aborto em qualquer circunstância e da
adoção de práticas que possam, de alguma forma, envolver relações
extramatrimoniais ou a sexualidade dos adolescentes. Mesmo no contexto
atual, extremamente complexo, a Igreja Católica exerce forte influência em
plano mundial por meio de seus dogmas, defendendo a prática de sexo para
fins puramente reprodutivos e proibindo o aborto.
4
. Essa espécie de mutilação consiste na ablação do clitóris e dos pequenos lábios, a fim de
que a mulher não sinta prazer durante a relação sexual.
53
É possível que pela conjunção dos elementos citados até o
momento os direitos sexuais e reprodutivos tenham ficado fora do Projeto do
Milênio, estabelecido em setembro de 2000.
As oito metas fixadas para serem atingidas até 2015, cujo nome
oficial é “Objetivos de Desenvolvimento da ONU para o Milênio”, reconheciam,
de maneira muito sintética, compromissos e linhas de ações de conferências
anteriores realizadas principalmente nos anos de 1990 pelas Nações Unidas,
as quais versaram sobre população, infância, meio ambiente, pobreza e
direitos humanos. No entanto, segundo organizações que trabalham com
direitos sexuais e reprodutivos, a ONU considerou esse tema como polêmico,
podendo gerar rejeição da parte de alguns países-membros. Dessa forma, tais
direitos acabaram por configurar uma das lacunas das metas fixadas pelo
Projeto do Milênio e os assuntos relacionados à sexualidade da mulher foram
referidos apenas por meio da abordagem de aspectos muito gerais.
54
5 Cultura e religião: impasses na efetivação dos direitos sexuais e
reprodutivos das mulheres
O termo “gênero” faz referência a um conceito elaborado pelas
ciências sociais para analisar a construção sócio-histórica das identidades
masculina e feminina. Segundo Maria Luiza Heilborn (1997), tal construção é
mediada pela cultura:
Gênero é um conceito das ciências sociais que se refere à construção
social do sexo. Significa dizer que a palavra sexo designa agora no
jargão da análise sociológica somente a caracterização anátomofisiológica dos seres humanos e da atividade sexual propriamente
dita. O conceito de gênero existe, portanto, para distinguir a dimensão
biológica da social. O raciocínio que apoia essa distinção baseia-se
na ideia de que há machos e fêmeas na espécie humana, mas a
qualidade de ser homem ou mulher é realizada pela cultura.
(HEILBORN, 1997, p. 101)
De acordo com Heilborn (1997), a antropologia, disciplina que
estuda a diversidade cultural das sociedades, sustenta que, em se tratando de
cultura, “a dimensão biológica da espécie humana fica bastante obscurecida na
medida em que é próprio da condição desses seres a capacitação cultural
como essencial à sobrevivência. É a cultura que humaniza a espécie, e o faz
em sentidos muito diferentes.” (p. 102)
Maria Gabriela Hita (1998) afirma que o binômio fundamental ao
qual está relacionada a maioria dos percursos do movimento feminista é o de
natureza/cultura. Ela serve de base para outras reflexões, como as de
diferença/igualdade,
subordinação/autonomia,
ausência/presença,
dentre
outras. No âmbito das correntes feministas, aquela dita culturalista sustenta
que as diferenças entre os sexos são apreendidas artificialmente, ou seja,
culturalmente, não se tratando de diferenças naturais.
Heilborn (1997) salienta que várias linhas interpretativas sobre a
problemática do gênero explicam que a origem das desigualdades neste
âmbito advém da apropriação da fecundidade feminina pelo sexo masculino.
Em muitos sistemas culturais, a distribuição de tarefas entre os sexos é
55
entendida como uma extensão das diferenças anatômicas/procriativas dos
mesmos. Dessa forma, cabe ao sexo feminino uma série de tarefas associadas
à reprodução e ao cuidado com a prole.
No Brasil, esta perspectiva se reflete no ordenamento jurídico, no
qual as leis voltadas aos direitos sexuais e reprodutivos acabam por
estabelecer mais deveres do que direitos, especificamente, às mulheres, tal
como foi tratado no quarto capítulo. Como consequência, as políticas públicas
sobre esses direitos ficaram, em sua maioria, limitadas a questões de saúde
pública, voltadas ao processo reprodutivo, como pode ser observado com base
nas políticas implantadas pela Coordenadoria Especial de Políticas para
Mulheres de Fortaleza.
Segundo Heilborn (1997), o termo “sexualidade”, entendido como
“arranjo e construção de representações e atitudes acerca do que seria uma
orientação erótica espontânea, traduzindo uma dimensão interna dos sujeitos,
ordenada pelo desejo” (p. 104), ganhou tamanha força que precisou ser
desconstruído,
tornando-se
particular
a
uma
determinada
cultura.
A
sexualidade tem, assim, uma significação cultural.
Neste sentido, não existe sexualidade em si, apenas pode-se recorrer
a tal explicação quando o contexto cultural assim o autorizar. Muitas
vezes, o que sob um certo prisma identifica-se como sexualidade, é
na verdade, em um dado grupo social recortado por outras instâncias
que escapam às classificações exclusivas de uma dimensão interna
dos sujeitos. Acopla-se a um campo maior de significação – família,
parentesco e/ou moralidade – englobando uma possível instância
individual. (HEILBORN, 1997, p. 104)
Dessa forma, a atividade sexual se encontra articulada a uma
visão de mundo, a qual pode vincular-se a noções como aquelas de amor,
sentimento, intimidade, matrimônio e corpo, estas também culturalmente
configuradas, sendo, por isso, mais adequado, em termos de pesquisa, pensar
a sexualidade de uma forma relacional, e não substantiva ou essencialista.
Denise Bernuzzi de Sant’Anna (2005) afirma que “a história é tão
múltipla quanto os corpos que dela fazem parte.” (p. 122) Assim, o corpo é
visto de diversas maneiras por diferentes culturas. Inúmeras foram aquelas que
56
relacionavam o corpo com o cosmos, refletindo assim uma ordem divina.
Porém, no sistema moderno de pensamento, o corpo não é apenas pensado
como aquilo que se é, mas como algo que se manipula, se controla ou que
serve a este fim, ou seja, o corpo passa a ser pensado como máquina, como
instrumento, dentre outras formas de representação. Dessa forma, é possível
perceber que cada uma dessas concepções foi historicamente construída,
conforme o horizonte interpretativo de cada cultura.
Ao longo da história, como afirma Sant’Anna (2005), foram sendo
criados vários mecanismos de controle dos corpos, como se, por meio dos
corpos, fosse possível governar os grupos, as sociedades. O controle do corpo
feminino foi, por muito tempo, uma responsabilidade familiar, sobretudo,
masculina. “No entanto, não há tentativa de controle sem riscos de
descontrole.” (SANT’ANNA, 2005, p. 129) Já antes da década de 1960, as
mulheres começaram a se organizar e a adquirir o direito de utilizar o próprio
corpo segundo seus desejos e necessidades. Porém, mesmo na atualidade,
ainda são recorrentes as reivindicações de mulheres por mais liberdade no uso
do próprio corpo, como aquelas evidenciadas nas Conferências de Políticas
para Mulheres, por meio das propostas elaboradas acerca dos direitos sexuais
e reprodutivos.
É admitindo o gênero e a sexualidade como produtos da cultura
que Rachel Viana afirma a influência cultural sobre a implantação de políticas
públicas para mulheres no Brasil:
Percebemos que ainda há um conservadorismo muito grande na
sociedade brasileira em geral. Em alguns aspectos, aparentemente,
pode parecer mais liberal, mas, no geral, a cultura brasileira é muito
marcada pelo machismo, no sentido de como a sociedade vê as
mulheres, como as relações entre mulheres são vistas, como elas
são tratadas nas várias expressões dessa cultura. Agora, tem uma
que é importante que nos atentemos: a cultura tem um papel muito
importante no reforço dessa desigualdade entre homens e mulheres,
dessa opressão, porque ela trabalha no campo do simbólico. Mas a
opressão não tem um lado só simbólico. Ela é simbólica, mas ela tem
um lado material muito forte, por isso, qualquer mudança ou qualquer
perspectiva de transformação tem que ter muita clareza sobre isso,
porque só uma mudança de valores não é suficiente. Existe uma
estrutura muito maior, que passa pela divisão sexual do trabalho, que
é reforçada pela cultura machista. Sendo assim, a cultura é um
57
obstáculo para o avanço dos direitos das mulheres, das políticas
públicas e da construção de relações mais igualitárias entre mulheres
e homens. (Depoimento de Raquel Viana, Coordenadora da
Coordenadoria Especial de Políticas para Mulheres de Fortaleza,
em novembro de 2012)
Tomando como base o que foi explicitado até este momento, uma
vez que a sexualidade, o gênero e a concepção de corpo são produtos
particulares de cada cultura, é possível afirmar que o comportamento esperado
de uma pessoa de um dado sexo e a conduta sexual dos indivíduos, de modo
geral, são resultado de convenções sociais. Neste contexto, podemos nos
perguntar: mas, afinal, o que é cultura? E qual seu peso na definição dessas
noções?
5.1. CULTURA
Por cultura, palavra que vem do latim colere, que significa “cultivar o
solo”, “cuidar”, pode-se obter várias conceituações no âmbito das ciências
humanas e sociais.
Por sua vez, para o senso comum, a utilização do termo cultura
faz menção à formação intelectual de determinado indivíduo, aos seus estudos,
a sua educação, ao seu refinamento. Inclusive, um dos significados que
encontramos para essa palavra no dicionário é “o conjunto dos conhecimentos
adquiridos em determinado campo”. (FERREIRA, 1993, p. 156) Cultura,
portanto, nesse sentido, é o saber acumulado pelas pessoas consideradas
cultas.
Por outro lado, cultura também faz referência às manifestações
artísticas legitimadas por determinadas instâncias de poder, a exemplo das
artes plásticas, da música, e do teatro. Pode-se afirmar que a Lei de Incentivo à
Cultura (Lei 7.505/86) faz uso desse significado para desenvolver projetos
voltados ao desenvolvimento artístico dos jovens.5
5
PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA. Lei 7.505, de 2 de julho de 1986. Disponível em:
<<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L7505.htm>> Acesso em: 05 mar. 2013.
58
Esse termo é, também, utilizado para fazer referência às crenças
e tradições de um povo, suas festas, ritos, sua maneira de vestir-se e seu
próprio idioma.
Segundo Roque de Barros Laraia (2008), a definição antropológica
de cultura foi inicialmente formulada por Edward Burnett Tylor (1832-1917),
considerado o pai do conceito moderno de cultura, o qual sintetizou as
expressões kultur (termo germânico, que se referia aos aspectos espirituais de
uma comunidade) e civilization (palavra francesa, ligada às realizações
materiais de um povo), formando o vocábulo inglês culture.
De acordo com Laraia (2008), a conceituação de cultura fornecida
por Edward Tylor consistia em “um complexo que inclui conhecimentos,
crenças, arte, moral, leis, costumes ou qualquer outra capacidade ou hábitos
adquiridos pelo homem como membro de uma sociedade”. (p. 25) No entanto,
é preciso lembrar que na época de publicação de seu livro Primitive Culture
(1871), o qual traz, em seu primeiro capítulo, essa definição, a Europa recebia
as influências da “Origem das Espécies”, de Charles Darwin. Este antropólogo
britânico foi, por sinal, o responsável pelo lançamento das bases do chamado
evolucionismo cultural de Lewis Morgan, o qual conferia à cultura um caráter de
fenômeno natural.
A escala evolutiva de Tylor classificava hierarquicamente as
sociedades humanas, dando vantagem às culturas europeias em detrimento de
outras, ao caracterizar-se como um processo etnocêntrico e, também,
discriminatório. Tal perspectiva converteu-se em alvo de críticas. Porém, suas
constatações não poderiam ser diferentes, levando em conta o momento
histórico em que se encontrava, o qual influenciou fortemente as suas ideias.
Fazendo uso de um conceito mais amplo de cultura, pode-se dizer
que ela abrange tudo aquilo que é produzido pelo ser humano, ou seja, tudo
aquilo que não é natureza. E o fato de não ser natural, significa, por sua vez,
que essa produção dependeu do desenvolvimento técnico e intelectual humano
para ser efetivada, não decorrendo apenas de fatores biológicos ou
59
geográficos, como foi pensado anteriormente. Neste contexto, Laraia (2008)
afirma:
As diferenças existentes entre os homens, portanto, não podem ser
explicadas em termos das limitações que lhe são impostas pelo seu
aparato biológico ou pelo meio ambiente. A grande qualidade da
espécie humana foi a de romper com suas próprias limitações: um
animal frágil, provido de insignificante força física, dominou toda a
natureza e se transformou no mais temível dos predadores. Sem
asas, dominou os ares; sem guelras ou membranas próprias,
conquistou os mares. Tudo isso porque difere dos outros animais por
ser o único que possui cultura. (LARAIA, 2008, p. 24)
Laraia (2008) parece, assim, compartilhar das ideias do
antropólogo americano Alfred Kroeber, autor do artigo “O superorgânico”.
Kroeber afirma que o homem, por estar acima de suas limitações orgânicas e
graças à cultura, distanciou-se do mundo animal. E, muito embora toda a
humanidade necessite exercer funções biológicas para sobreviver, a maneira
de satisfazê-las irá variar de acordo com a cultura de cada grupo. Neste
contexto, Bronislaw Malinowski (1975) afirmava que a satisfação das
necessidades orgânicas dos seres humanos era apenas parte das condições
impostas à cultura:
Em primeiro lugar, é claro que a satisfação das necessidades
orgânicas ou básicas do homem e da raça é um conjunto mínimo de
condições impostas a cada cultura. Os problemas apresentados pelas
necessidades nutritivas, reprodutivas e higiênicas do homem devem
ser resolvidos. Eles são solucionados pela construção de um novo
ambiente, secundário ou artificial. Esse ambiente, que não é mais
nem menos do que a cultura propriamente dita, tem de ser
permanentemente reproduzido, mantido e administrado. Isso cria o
que podia ser descrito, no sentido mais amplo da expressão, como
um novo padrão de vida, que depende do nível cultural da
comunidade, do ambiente e da eficiência do grupo. (MALINOWSKI,
1975, p. 43)
Mais recentemente, em 18 de julho de 1950, apenas poucos anos
após o fim da Segunda Guerra Mundial, uma comissão internacional de
acadêmicos, formada por antropólogos, geneticistas, biólogos, dentre outros
especialistas, reuniu-se e elaborou a Declaração sobre Raça da UNESCO.
Esta foi redigida em um período no qual o mundo ainda se recuperava da
catástrofe da guerra e do terror causado pelo governo nazista. Em seu artigo
60
10, a Declaração sobre Raça assume uma posição explicitamente contrária à
perspectiva do determinismo biológico, afirmando:
10- Os dados científicos de que dispomos no momento presente não
corroboram a teoria segundo a qual as diferenças genéticas
hereditárias constituiriam um fator de importância primordial entre as
causas das diferenças entre as culturas e as obras da civilização dos
diversos povos ou grupos étnicos. Ao contrário, ensinam eles que tais
diferenças se explicam antes de tudo pela história cultural de cada
grupo. Os fatores que desempenharam um papel preponderante na
evolução intelectual do homem são a sua faculdade de aprender e a
sua plasticidade. Essa dupla aptidão é o apanágio de todos os seres
humanos. Constitui, de fato, um dos caracteres específicos do Homo
6
sapiens. (Tradução livre da autora)
Assim, fica clara a ideia de que cultura é fruto de um processo
social e, antes de tudo, uma construção histórica. Cada cultura é, dessa forma,
consequência da história de cada sociedade. José Luis dos Santos (1994)
afirma:
Cultura é uma dimensão do processo social, da vida de uma
sociedade. Não diz respeito apenas a um conjunto de práticas e
concepções, como, por exemplo, se poderia dizer da arte. Não é
apenas uma parte da vida social como, por exemplo, se poderia falar
da religião. Não se pode dizer que cultura seja algo independente da
vida social, algo que nada tenha a ver com a realidade onde existe.
Entendida dessa forma, cultura diz respeito a todos os aspectos da
vida social, e não se pode dizer que ela existe em alguns contextos e
não em outros. (SANTOS, 1994, p. 44 – 45)
Por se tratar de um processo social, a cultura não pode ser
pensada como algo imutável. Ela é fundamentalmente dinâmica. Segundo
Malinowski (1975), “um padrão de vida cultural, contudo, significa que novas
necessidades se impõem e novos imperativos ou determinantes são inculcados
ao comportamento humano.” (p. 43) Sendo assim, as tradições hoje
observadas nas mais diversas sociedades podem se transformar, pois a
mudança está presente na história de todas elas, bem como diferentes formas
de interpretá-la. O estudo da cultura, então, deve levar em conta as
transformações constantes pelas quais passam as sociedades, tendo o tempo
como elemento essencial em suas análises.
6
UNESCO. The Race Question. Disponível em: <<
http://unesdoc.unesco.org/images/0012/001282/128291eo.pdf >>. Acesso em: 05 mar. 2013
61
Vale ressaltar que, uma vez que o sistema cultural se encontra
em constante tensão entre permanência e mudança, é importante que haja o
entendimento dessa dinâmica, a fim de que o pesquisador possa tentar
preservar sua postura crítica frente às diversas formas assumidas pelo
pensamento ortodoxo. Da mesma forma, compreender e respeitar as
diferenças entre os povos de culturas distintas é um desafio permanente que
acompanha todo esforço de apreensão de fenômenos culturais.
Admitindo o gênero como um produto da cultura, Alicia H. Puleo
(2004) afirma a existência de discursos de legitimação sexual ou ideologia
sexual. Segundo a autora, esses discursos justificam a hierarquização do
masculino e do feminino em cada sociedade. Consistem em sistemas de
crenças que especificam as características de cada sexo, a partir daí,
determinando os direitos, as atividades e as condutas de cada um deles. De
modo amplo, é possível afirmar provisoriamente que a religião é um dentre os
vários campos de ação social que produz e difunde este tipo de discurso.
5.2. UMA BREVE ANÁLISE SOCIOLÓGICA DA RELIGIÃO
Tendo em vista as inúmeras diferenças culturais, as sociedades
reúnem, também, uma infinidade de manifestações religiosas, que se
apresentam como parte do fenômeno cultural, segundo a tradição histórica
própria a cada configuração social particular. No processo da formação cultural,
a religião tem desempenhado um papel preponderante na produção e
estabilização de laços sociais. Dada a sua importância, faz-se necessário abrir
um espaço para que seja feita a análise da noção de religião.
A palavra portuguesa religião provém do latim religio, que significa
“ligar novamente”, “religar”. Pode-se dizer, de maneira a simplificar sua
formulação primordial, que a religião é um conjunto de crenças, rituais e
códigos morais, relacionados a tudo aquilo que o homem associa às
dimensões do divino e sobrenatural.
Em toda a história da humanidade a visão do mundo e a religião
estiveram intimamente unidas, porque ambas são expressões do
sistema ideológico – produtos da inteligência humana e preocupação
emocional: expressões do fermento da mente humana gerador da
62
cultura. A visão do mundo, [...] dá a cada povo sua “posição” diante
do universo. A religião define uma parte desta experiência através
dos espíritos e dos deuses que ela cria; reveste-os com seus
atributos peculiares de comportamento e dá aos indivíduos as linhas
mestras de seu comportamento [...] (HOEBEL; FOST, 1981, p. 351)
Émile Durkheim realizou uma análise sociológica da religião,
encontrando na mesma o elo que faz a sociedade se manter reunida. Para ele,
estudar a religião é descortinar as condições de formação dos ideais morais da
sociedade.
Em sua obra “Formas elementares da vida religiosa”, de 1912,
Durkheim (2000) é possível encontrar o aparato teórico de suas perspectivas
sobre a religião. Nessa obra, o autor inicia suas explanações afirmando que, a
fim de investigar os fenômenos religiosos, faz-se necessário chegar a uma
definição de religião, o que, segundo ele, se dá por meio da indicação de certo
número de sinais exteriores facilmente perceptíveis que permitam reconhecer
os fenômenos religiosos por toda parte onde se encontrem e que impeçam que
sejam confundidos com outros.
Antes de começar, buscando uma definição de caráter coletivo para
religião, Durkheim (2000) lembra a necessidade imprescindível de nos
desfazermos de nossas ideias pré-concebidas sobre o assunto – assim como
ele preconizou em outra obra “As regras do método sociológico”. Como essas
pré-noções foram formadas sem métodos, seguindo os acasos e as
circunstâncias da vida do pesquisador, não merecem nenhum crédito, devendo
ser afastadas dos nossos exames.
Primeiramente, o autor salienta que, na busca por uma definição de
religião, devemos apreender o que as religiões podem ter em comum. Uma
noção que geralmente é considerada como característica de tudo que é
religioso é aquela de “sobrenatural”, ou seja, uma crença na onipotência de
alguma coisa que supera a inteligência.
Os homens teriam, nesse contexto, se resignado com ideias tão
perturbadoras para a nossa razão moderna, devido a sua incapacidade para
encontrar outras que fossem mais racionais. No entanto, o autor afirma que o
63
fato de as forças religiosas serem pensadas, muitas vezes, sob a forma de
entidades espirituais, de vontades conscientes, não é prova de irracionalidade.
Segundo Durkheim (2000), a ideia de “mistério” nada tem de original.
Ela não foi dada ao homem. Foi o homem que a elaborou. Não se pode, pois,
fazer dela a característica dos fenômenos religiosos.
Outra ideia pela qual se tentou, muitas vezes, definir a religião é a de
“divindade”, de forma que a religião seria a determinação da vida humana pelo
sentimento de um laço que une o espírito humano ao espírito misterioso.
Porém, existem grandes religiões nas quais a ideia de deuses e espíritos está
ausente. É o caso do budismo e do jainismo. Nem todas as virtudes religiosas
emanam, assim, de personalidades divinas. A religião ultrapassa a crença em
deuses ou espíritos e, por conseguinte, não pode definir-se exclusivamente em
função disto.
Durkheim (2000) afirma que os fenômenos religiosos se ordenam
naturalmente em duas categorias fundamentais: as crenças e os ritos. As
crenças são os estados de opinião, consistem em representações. Os ritos
consistem nos modos de ação determinados pelas crenças.
Todas as crenças religiosas conhecidas, sejam elas simples ou
complexas, apresentariam, assim, um mesmo caráter comum: supõem uma
classificação de coisas, reais ou ideais, que os homens representam, em duas
classes ou em dois gêneros opostos, traduzidos pelas palavras “profano” e
“sagrado”.
O profano e o sagrado não são concebidos apenas como dois
mundos separados, mas como hostis e rivais um ao outro, só podendo
pertencer plenamente a um com a condição de se ter inteiramente abandonado
o outro, ou seja, para viver o sagrado, o homem deve ter deixado totalmente o
mundo profano. Eis, então, o primeiro critério para se definir as crenças
religiosas: a divisão bipartida do universo conhecido em dois gêneros que
compreendem tudo que existe, mas que se excluem radicalmente. Essa
definição, no entanto, ainda não está completa, pois se faz necessário
64
distinguir a “magia” da religião, uma vez que esta também é constituída por
crenças e ritos.
A diferença entre magia e religião reside na “igreja”. Não
encontramos, na história, religiões sem igrejas. No entanto, não existe a igreja
“mágica”. A religião é inseparável da igreja. Sob este aspecto, há entre a magia
e a religião uma diferença essencial.
Finalmente, a partir do que foi evidenciado, Durkheim (2000) chega
a uma definição de religião, como sendo “um sistema solidário de crenças
seguintes e de práticas relativas a coisas sagradas, ou seja, separadas,
proibidas; crenças e práticas que unem na mesma comunidade moral,
chamada igreja, todos os que a ela aderem.” (p. 79)
Na análise da sociedade capitalista realizada por Marx e Engels, a
alienação, a dominação e o conflito são elementos centrais. Segundo HervieuLéger e Willaime (2009), essas mesmas noções estruturam a abordagem que
marxistas, posteriormente, fizeram da religião.
É preciso considerar que o discurso marxista sobre a religião não
consiste numa análise sociológica, mas numa crítica de cunho filosófico e
político, na medida em que Marx via a religião como um meio empregado pela
classe dominante para legitimar seu poder e impedir qualquer revolta dos
dominados. Por isso, designava a religião de “ópio do povo”.
Desse modo, Michael Löwy (1998) afirma que a célebre frase “a
religião é o ópio do povo” representa a essência da concepção marxista de
religião, no sentido de que a consciência e a força do homem seriam contidas
por ela. Marx defendia, assim, a liberdade do homem em relação à obsessão
religiosa. No entanto, segundo o autor, essa formulação não teria um caráter
exclusivamente marxista, visto que pode ser encontrada, antes de Marx, em
Kant, Herder, Feuerbach, Bruno Bauer, dentre outros. Esses outros autores
não teriam, porém, feito referência às classes sociais e teriam desenvolvido
concepções a-históricas de religião. Marx, por outro lado, formulou suas críticas
à religião, entendendo-a como realidade social e histórica.
65
Por sua vez, Hervieu-Léger e Willaime (2009) afirmam que a crítica
filosófica e política empreendida por Marx, que via na religião a alienação do
homem, tinha sua justificativa no momento histórico vivido por ele. Diante da
revolução industrial e da formação da classe operária, as Igrejas teriam optado
mais pelo conservadorismo sociopolítico do que pelos interesses dos operários,
que haviam sido assumidos pelo movimento socialista.
Da mesma forma que Marx, Max Weber (1982) considerou a religião
como sendo profundamente histórica, revestindo-se de formas extremamente
diversas conforme as épocas e civilizações.
Como iremos ver facilmente, as esferas individuais de valor estão
preparadas com uma coerência racional que raramente se encontra
na realidade. Mas podem ter essa aparência na realidade e sob
formas historicamente importantes, e realmente a têm. Tais
construções possibilitam determinar o local tipológico de um
fenômeno histórico. Permitem-nos ver se, em traços particulares ou
em seu caráter total, os fenômenos se aproximam de uma de nossas
construções: determinar o grau de aproximação do fenômeno
histórico e o tipo construído teoricamente. (WEBER, 1982, p. 372)
Esse autor definiu o fato religioso como uma dimensão ligada a uma
condição humana confrontada com a irracionalidade do mundo. Neste
contexto, segundo Hervieu-Léger e Willaime (2009), umas das contribuições de
Weber foi a de evidenciar a existência de diferentes tipos de racionalidade, e
que a própria racionalização da religião desempenhou um papel essencial na
emergência da modernidade. Em sua obra “Ensaios de Sociologia”, Weber
(1982) afirmou que, acima de tudo, um ensaio sobre sociologia da religião visa
contribuir para a tipologia e a sociologia do racionalismo.
As interpretações religiosas do mundo e a ética das religiões criadas
pelos intelectuais e que pretendem ser racionais estiveram muito
sujeitas ao imperativo da coerência. O efeito da razão, especialmente
de uma dedução teleológica de postulados práticos, é perceptível sob
certos aspectos, e com frequência muito claramente, entre todas as
éticas religiosas. (WEBER, 1982, p. 372)
Segundo Hervieu-Léger e Willaime (2009), um dos grandes vetores
da racionalização da religião foi “eticização” da mesma, ou seja, a passagem
de uma religião mágica para uma religião ética.
66
Na
visão
weberiana,
a
magia
consistiria
em
acreditar na
possibilidade de invocar uma figura divina por meios técnicos, a fim de obter
uma determinada coisa. Segundo Weber (1982), as religiões mágicas, este
“mundo extremamente irracional da magia universal”, serviu de precursor das
religiões éticas e de uma conduta de vida racional.
O mágico foi precursor do profeta, do profeta e salvador tanto
exemplares como emissários. Em geral, o profeta e salvador
legitimaram-se através da posse de um carisma mágico. Para eles,
porém, isto foi apenas um meio de garantir o reconhecimento e
conseguir adeptos para significação exemplar, a missão, da
qualidade de salvador de suas personalidades. A substância da
profecia do mandamento do salvador é dirigido o modo de vida para a
busca de um valor sagrado. Assim compreendida, a profecia ou
mandamento significa, pelo menos relativamente, a sistematização e
racionalização do modo de vida, seja em pontos particulares ou no
todo. (WEBER, 1982, p. 375)
Antônio Flávio Pierucci (2006) afirma que, segundo Weber, a
“eticização” da religião, com o surgimento das “religiões de salvação”, retirou
pessoas
de
suas rotinas
comunitárias estabelecidas por tramas de
comunicação e subordinação, e constituiu uma nova comunidade, onde os
laços estabelecidos passaram a ser puramente religiosos.
Sempre que as profecias de salvação criaram comunidades
religiosas, a primeira força com a qual entraram em conflito foi o clã
natural, que temeu a sua desvalorização pela profecia. Os que não
podem ser hostis aos membros da casa, ao pai e á mãe, não podem
ser discípulos de Jesus.
A profecia criou uma nova comunidade social, particularmente
quando ela se tornou uma religião soteriológica de congregações.
Com isso, as relações do clã e do matrimônio foram, pelo menos
relativamente, desvalorizadas. Os laços mágicos e a exclusividade do
clã foram atingidos (...) (WEBER, 1982, p. 377)
Neste
sentido,
Pierucci (2006) afirma que
a religião
de
tipo
congregacional, não estando constituída de antemão por laços extra-religiosos,
constitui uma associação exclusivamente religiosa, formada por indivíduos
desmembrados de outros coletivos. Segundo o autor, para Weber, a religião da
salvação consiste numa forma religiosa que tende a predominar sobre as
demais, funcionando como um dispositivo de desligamento dos indivíduos do
contexto cultural de origem.
67
As proposições de Weber e Durkheim tiveram grande importância no
desenvolvimento de uma sociologia da modernidade religiosa, pois elas
alimentaram diversas reflexões sobre as “religiões seculares”.
A teoria da secularização dominou, durante muito tempo, as
reflexões sobre o futuro religioso das sociedades ocidentais. Essa teoria pode
ser entendida como um processo pelo qual a religião passa a não mais
consistir em um aspecto cultural agregador dentro da sociedade, deixando de
fornecer aos indivíduos as referências, normas e valores que lhes dão sentido
à vida e guiam suas experiências. No entanto, Hervieu-Léger (2008) afirma que
a “secularização” das sociedades modernas não se resume à perda de
influência dos grandes sistemas religiosos. Este processo também engloba
uma recomposição das representações religiosas que permitem que a
sociedade pense a si mesma de forma autônoma. Neste contexto, as “religiões
seculares” consistem em equivalentes funcionais das religiões tradicionais,
podendo derivar da política, da medicina, da sexualidade, da arte, ou de
qualquer outra dimensão da vida social.
Dessa forma, a peça-mestra da concepção religiosa, na atualidade,
é a existência de uma fé pessoal. Nas sociedades modernas, a crença e a
participação religiosa são assuntos particulares que dependem, sobretudo, da
consciência individual, ao invés de uma instituição religiosa.
Segundo Paula Montero (2006), a força secularizadora da ética
protestante, conforme formulação de Weber, teria promovido essa forma
subjetiva de experiência religiosa. A autora afirma que, para Weber, as
religiões éticas, caracterizadas pela sua concepção abstrata da salvação,
teriam sido responsáveis pela racionalização de um mundo sem Deus. A
reforma protestante teria aprofundado o processo de diferenciação das esferas
política, econômica e científica em relação à religiosa, o que teria retirado a
religião do espaço público, fazendo dela um assunto privado.
Segundo Hervieu-Léger (2008), nas sociedades ocidentais, as
instituições religiosas continuam a perder sua capacidade de fomentar social e
culturalmente crenças e práticas, e, assim, o número de fiéis decresce
68
progressivamente. No Brasil, por exemplo, de acordo com o Censo do Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), referente ao ano de 2010, embora
o catolicismo continue como religião majoritária, o número de fiéis segue a
tendência de redução observada nas duas décadas anteriores, enquanto houve
aumento no número de evangélicos (passou de 15.4% em 2000 para 22.2%
em 2010), espíritas e de indivíduos que se dizem sem religião.7 No entanto, ao
mesmo tempo em que se perde a credibilidade nos sistemas religiosos, dá-se
origem a novas modalidades de crença. Essa é a essência da secularização.
(...) é necessário ter entendido que a secularização não é, acima de
tudo, a perda da religião no mundo moderno. É o conjunto dos
processos de reconfiguração das crenças que se produzem em uma
sociedade onde o motor é a não satisfação das expectativas que ela
suscita, e onde a condição cotidiana é a incerteza ligada à busca
interminável de meios de satisfazê-las. (HERVIEU-LÉGER, 2008, p.
41)
O que acontece, atualmente, nas sociedades ocidentais, é o que
Hervieu-Léger (2008) chama de “bricolagem” das crenças. Os indivíduos,
fazendo valer sua liberdade de escolha, tomam para si crenças e práticas que
lhes convêm. As mesmas são remanejadas e livremente combinadas, tomando
emprestado elementos de diferentes religiões ou temas de caráter místico e
esotérico.
Contrariamente ao pensamento de Montero (2006) o qual afirma
que a religião teria se tornado uma questão privada, sendo excluída da esfera
do Estado, ressalto que, ao mesmo tempo em que vivenciamos a forte relação
entre religiosidade e individualismo moderno, pode-se observar a intensa
participação de representantes religiosos no cenário público das sociedades
ocidentais, a exemplo das passeatas contra o casamento gay e a adoção de
crianças por casais homossexuais na França, fenômenos constantemente
divulgados pela imprensa.8 Isso abre caminho para novas reflexões acerca das
7
INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Censo 2010: número de
católicos cai e aumenta o de evangélicos, espíritas e sem religião. Disponível em: <<
http://www.ibge.gov.br/home/presidencia/noticias/noticia_visualiza.php?id_noticia=2170>>
Acesso em: 05 mar. 2013.
8
BBC BRASIL. Passeata contra casamento gay vira desafio para Presidente francês.
Disponível
em:
<<http://www.bbc.co.uk/portuguese/videos_e_fotos/2013/01/130114_casamento_gay_franca_
mm.shtml>> Acesso em: 05 mar. 2013.
69
relações entre religião e política de forma bem ampla, bem como entre as
instituições religiosas e o Estado.
5.3. A IGREJA CATÓLICA E OS DIREITOS SEXUAIS E REPRODUTIVOS
DAS MULHERES
O catolicismo apostólico romano foi escolhido como cerne do
campo empírico desta pesquisa, por se tratar do culto religioso mais
representativo no Brasil. O estado do Ceará tem a maioria de sua população
formada por pessoas que se autodesignam católicas e a cidade de Fortaleza
foi considerada a 2ª capital mais católica do Brasil, segundo pesquisa
desenvolvida pela Fundação Getúlio Vargas, no ano de 2011.9
Este tópico será desenvolvido com base em entrevista realizada
com Monsenhor Manfredo Ramos, professor da Faculdade Católica de
Fortaleza, na qual ele respondeu a questionamentos acerca das concepções
da Igreja Católica a respeito da sexualidade e das ideologias de gênero, bem
como da visão da mesma acerca dos direitos sexuais e reprodutivos das
mulheres.
Segundo Tannahill (1983), no que concerne à história do sexo,
diversas sociedades ocidentais condenaram, com variáveis graus de
severidade, o adultério (geralmente), a contracepção (raramente), o aborto (às
vezes), a homossexualidade (às vezes), o infanticídio (raramente) e a zoofilia
(às vezes). A Igreja Católica, no entanto, prescreveu todos esses atos. Ela
afirmava, ainda, que o intercurso conjugal não deveria ser realizado, a menos
que o objetivo fosse ter filhos. Dessa forma, homens e mulheres possuidores
de apetites sexuais normais tornaram-se obcecados pela culpa, pois para a
Igreja, o sexo era o maior dos pecados.
Ao ser questionado sobre como a Igreja Católica trata as questões
relativas à sexualidade, Monsenhor Manfredo explica que, atualmente, depois
9
JORNAL O POVO. Fortaleza é a 2ª capital mais católica do Brasil. Disponível em: <<
http://www.cps.fgv.br/cps/bd/clippings/nc1511.pdf>> Acesso em: 05. mar. 2013.
70
do Concílio Vaticano II10 (1962- 1965), o paradigma da problemática da
sexualidade, matrimônio, família, passou por uma transformação radical. Podese falar de um paradigma “naturalista” antes do Concílio, com centro na
procriação e, hoje, predominaria outro, o qual pode ser definido como
“personalista”, cuja base se radicaria no sentimento amoroso.
O Monsenhor afirma, ainda, que, no âmbito da Igreja Católica, há
um núcleo doutrinal, que é estável, fundante, e há uma roupagem linguísticocultural que varia de acordo com a época. Para ele, isso é natural, pois a Igreja
é feita de gente e tem uma história, e na luz da revelação e da fé, chamada de
sensus fidelium, os fiéis da fé cristã, têm quase que uma intuição sobre os seus
comportamentos e isso tem uma encarnação no tempo, nos diferentes
momentos históricos. O essencial é entender um pouco melhor qual seja, na
compreensão da Igreja, aquilo que é chamado de êthos.
Segundo Monsenhor Manfredo, êthos é uma palavra grega que
tem um significado um tanto amplo. Para ele, é importante distinguir-se o êthos
do éthos. O éthos é o costume de um povo, enquanto que o êthos é algo mais
profundo. Em sentido literal, êthos significa “a moradia”, “a toca”, “o lugar
habitual”. Por extensão, poderíamos dizer que êthos é o estado de consciência
e de ação no qual o homem se situa na vida, “sente o chão embaixo dos pés, o
teto na cabeça, como um animal na sua toca, seu habitat”. Assim, o indivíduo
seria capaz, a partir da compreensão desse êthos, que é um conceito moral, de
escalonar os mais diversos valores morais. Dessa forma, há um valor fundante,
que corresponde ao êthos, a partir do qual o homem hierarquiza e relativiza os
demais valores, dirigindo, assim, o seu comportamento. Para a Igreja, quando
falta isso, o homem perde o senso de direção e essa situação caracteriza a
crise de hoje. Para a comunidade católica, esta não é uma crise de ausência
de valores, e sim uma crise de falta de visão e compreensão do valor principal.
Então, ao longo da história, o povo cristão foi tentando se definir e
se nortear a partir de alguns pilares: com auxílio do magistério, com a
10
O Concílio Vaticano II, realizado entre os anos de 1962 e 1965, reuniu autoridades
eclesiásticas de todo o planeta, que discutiram e regulamentaram vários temas da Igreja
Católica. O objetivo do Concílio era promover uma atualização da Igreja.
71
iluminação do Espírito Santo e a revelação da palavra de Deus. Neste sentido,
definiu-se sexualidade cristã com base no matrimônio, como instituição, e na
família. Na concepção cristã, sexualidade, matrimônio e família estão ligadas.
Daí um primeiro elemento para se entender a diferença entre a concepção
ética cristã do matrimônio, da sexualidade e da família e a concepção ética civil
leiga natural, por assim dizer. Isso significa diferenciar a concepção da Igreja
das normas jurídicas, diversificadas ao longo da história por diferentes povos e
culturas.
O Monsenhor explica que, para a Igreja, um Direito deve estar
sempre baseado numa ética. Mas, segundo ele, sem dúvidas, existem muitas
morais filosóficas no mundo, não só a ética cristã. É possível constatar,
filosoficamente, um pluralismo de éticas, como a ética hedonista (do prazer),
ética racional (da razão), ética da liberdade, ética do sentimento, ética
pragmática, ética cósmica (da ordem do cosmos), dentre tantas outras.
É sabido que, na tradição judaico-cristã, o relato da expulsão de
Adão e Eva do Paraíso foi, por muito tempo, utilizado para justificar uma visão
da mulher como ser imperfeito, disseminadora do pecado, chegando a ser
depreciada por vários teólogos da Igreja Católica, tais como Tomás de Aquino,
que afirmava:
A mulher está em sujeição por causa das leis da natureza, mas é
uma escrava somente pelas leis da circunstância (...) A mulher está
submetida ao homem pela fraqueza de seu espírito e de seu corpo
(...) é um ser incompleto, um tipo de homem imperfeito (...) A mulher é
defeituosa e bastarda, pois o princípio ativo da semente masculina
tende à produção de homens gerados a sua perfeita semelhança. A
11
geração de uma mulher resulta de defeitos no princípio ativo.
Tannahill (1983) afirma que tais conclusões dos padres da Igreja,
com o tempo, tornaram-se inatacáveis. Suas deliberações, na maioria das
vezes, provinham de pontos de vista altamente pessoais e preconceituosos
sobre a vida e a sociedade. Muito embora a concepção de pecado difundida
por homens como São Jerônimo, São Tomás de Aquino e Santo Agostinho não
provenha imediatamente dos ensinamentos de Jesus Cristo ou das Tábuas
11
TOMÁS DE AQUINO. Summa Theologica, Q92, art. 1. Disponível
http://www.newadvent.org/summa/1092.htm>> Acesso em: 05 mar. 2013.
em:
<<
72
entregues no Monte Sinai, mas sim das antigas vicissitudes sexuais de um
punhado de homens da Roma Imperial, esta ganhou aura de verdade,
alcançando status absoluto.
Discursos como o de Tomás de Aquino servem para justificar a
opressão do sexo feminino pelo masculino, funcionando como uma ferramenta
de hierarquização do gênero. No entanto, Monsenhor Manfredo afirma que este
pensamento, correspondente ao próprio jansenismo12 e à época vitoriana,
embora tenha sido real e preponderante como diretriz de práticas religiosas
vinculadas ao catolicismo, está sendo superado. Segundo ele, na Igreja,
passou-se de uma moral centrada no pecado para uma moral centrada na
virtude, que é algo muito mais positivo, e é a posição tradicional da Igreja
primitiva.
Dessa forma, houve uma mudança considerável na maneira da
sexualidade ser pensada pela Igreja Católica. Segundo o Monsenhor, “a
reflexão teológica não teologiza sobre o ar.” Ela teologiza, em primeiro lugar, a
partir de uma filosofia. A filosofia é, em qualquer tempo, o índice mais alto da
ação e do pensamento do povo, de modo que a linguagem teológica se adéqua
ao nível da linguagem filosófica e, por extensão, a sua formulação científica
correspondente. Segundo ele, ninguém filosofa partindo de casos metafísicos,
abstratos, vazios. Filosofa-se a partir de dados concretos, científicos. Assim
como, ninguém faz ciência simplesmente a partir de dados brutos.
No que concerne à teologia, Monsenhor Manfredo afirma que nos
encontramos no momento da teologia da corporeidade, da sexualidade, do
valor do homem e da mulher e das suas dimensões físicas e biológicas. No
entanto, a seu ver, existe quase uma exacerbação da forma estética, externa
do corpo na atualidade, e essa não corresponderia à essência mais profunda
do homem. A beleza e a “santidade” seriam, antes, atributos internos,
espirituais. Não se limitariam, portanto, à forma física. Na teologia cristã, a
beleza interior do homem é a sua semelhança com Deus. Ele lembra que, no
12
O Jansenismo foi um movimento de caráter dogmático, moral e disciplinar, que se
desenvolveu em reação a certas doutrinas e práticas da Igreja Católica, nos séculos XVII e
XVIII. Leva esse nome por ter origem nas ideias do Bispo Cornelius Jansen.
73
Gênesis, lê-se “façamos o homem a nossa imagem, conforme a nossa
semelhança” e Deus, assim, teria criado o ser humano.
Ainda segundo o Monsenhor, Deus disse ao homem e à mulher
“crescei e multiplicai-vos, e enchei a terra, e sujeitai-a; e dominai sobre os
peixes do mar e sobre as aves dos céus e sobre todo animal que se move
sobre a terra” (Gênesis). Para ele, essa é a vocação primordial do homem, que
é uma vocação dual. Deus achou que não era bom o homem estar só, então
fez uma auxiliar semelhante a ele, a mulher. Ela teria sido criada a partir da
costela do homem, o que significa, biblicamente, a igualdade e dignidade como
pessoa. “Por isso deixará o homem pai e mãe, e unir-se-á a sua mulher e serão
os dois uma só carne” (Marcos 10). Segundo o entrevistado, é justamente
nesta palavra que se encontra a base para toda a teologia da sexualidade e do
matrimônio cristão.
Monsenhor Manfredo explica que Cristo não é uma doutrina, é uma
pessoa de carne e osso, mas não uma pessoa qualquer. Isto porque Jesus é a
segunda pessoa da Santíssima Trindade (Pai, Filho e Espírito Santo), que se
encarnaria na plenitude do tempo, no seio de Maria, para tornar-se homem,
igual a todos os homens, exceto no pecado. Esse casamento, por assim dizer,
entre Cristo e a humanidade, segundo a perspectiva católica, sintetiza e
representa o mistério mais profundo do casamento entre homem e mulher.
Quando Deus disse “façamos o homem a nossa imagem e
semelhança” (Gênesis), há nesta passagem, para o Monsenhor, uma
referência à sexualidade do homem e da mulher, afirmada como elemento
dual. Ela consiste, assim, em uma referência à instituição do matrimônio e,
consequentemente, à família. As modalidades destas famílias na história são
infinitas. Mas o fundamental é a essência desse matrimônio, que para os
cristãos se tem, naturalmente, desde a Criação, como uno, indissolúvel, fiel,
fecundo e santo. O Monsenhor afirma que essas são características naturais
do matrimônio criacional. O matrimônio cristão entre homem e mulher estaria,
então, inserido num matrimônio maior e mais misterioso, entre o filho de Deus
com a humanidade, e do Cristo com a sua Igreja.
74
Monsenhor Manfredo ressalta, ainda, que hoje, a Igreja se
preocupa, no âmbito da sexualidade, do matrimônio e da família, com o fato de
se fazer do outro, do parceiro, apenas um objeto de prazer. Pois “corre-se o
risco de se fazer dele ou dela um objeto de prazer, que depois de ‘enjoar’ tirase da ‘prateleira’ e procura-se outro no supermercado.” Para a Igreja, a pessoa
deve ser o valor principal de qualquer relacionamento e, sobretudo, no amor
conjugal. O matrimônio cristão, por excelência, seria, assim, interpretado como
a união mais alta que pode haver, pois não consistiria apenas na união de
corpos, mas em uma união de sentimentos, de destino, de abertura, de
pensamento, na unidade, na indissolubilidade, no respeito, na dignidade da
pessoa e na possibilidade de uma continuidade que transcenderia o casal,
atingindo um terceiro elemento, que é o filho.
Na teologia cristã, a sexualidade seria, então, pensada em função do
matrimônio, que, por sua vez, se vincularia à ideia de fecundidade, a não ser
que algum fator acidental a impeça. Um casal pode não ter filhos e, mesmo
assim, viver sua paternidade e maternidade espirituais dentro da Igreja. O
Monsenhor afirmou que isso deveria ser mais bem explicitado na formação de
noivos, desenvolvida pelos catequistas e pelos próprios vigários durante a
preparação para o matrimônio. Em sua opinião, a formação é muito limitada,
uma vez que a religião não resiste às objeções do mundo de hoje, que é um
mundo plural, racionalista, hedonista, utilitarista, consumista, e isso geraria
sérias oposições à estabilidade do casamento cristão, levando-o a uma
banalização da sexualidade.
Com relação aos direitos sexuais e reprodutivos, Monsenhor
Manfredo afirma que a Igreja os apoia, a partir do reconhecimento da dignidade
da pessoa humana. No entanto, ele diz, fazendo uso de um caso concreto, o
das feministas francesas que fazem manifestações gritando “o corpo é nosso”,
que isso não é aceitável para a Igreja. Ninguém tem privativamente, na
perspectiva da fé cristã, como membro de uma sociedade, o direito sobre seu
próprio corpo. Ele lembra que, neste sentido, o próprio matrimônio civil, para o
bem da sociedade, é regulado por leis civis (você não pode casar sem antes
divorciar, por exemplo, senão você será bígamo, e isso configura crime). Já na
75
Igreja, a unidade e a indissolubilidade do matrimônio, a obrigação “natural” de
gerar filhos, não fica “ao bel talante de qualquer um.” Segundo o Monsenhor, é
necessário analisar quais são as circunstâncias pelas quais marido e mulher,
diante de Deus e da Igreja, determinam, por exemplo, quantos filhos vão ter.
Isso envolve as condições econômicas, sociais, educacionais, de saúde, de
trabalho em que vivem essas pessoas, e as condições da própria Igreja, ou
seja, são muitas questões a serem ponderadas. O Monsenhor faz, ainda, uma
crítica acerca da influência do Estado no processo reprodutivo dos indivíduos:
Não é Igreja que decide quantos filhos um casal vai ter. A Igreja não
manda os casais terem dezenas de filhos. O que Igreja faz é fornecer
uma orientação no sentido de que a paternidade e a maternidade
sejam responsáveis. O Estado, muito menos, tem o direito de
manipular e de fazer esterilizações e distribuir preservativos e pílulas
anticoncepcionais sem critério, como tem feito. (Depoimento do
Monsenhor Manfredo Ramos, professor da Faculdade Católica
de Fortaleza, em janeiro de 2013)
Segundo o Monsenhor, a educação sexual fornecida pela Igreja é
mais completa do que os ensinamentos transmitidos aos alunos nas escolas:
Eu já tive ocasião de folhear esses livros de educação sexual das
escolas...tem lá a fisiologia feminina e masculina do aparelho genital,
como é que gera...depois, ‘evite uma gestação indesejada’, ‘evite
doença venérea’ e ponto final. Direito absoluto: goze, já que você tem
sexo e é aberto para o prazer...Isso é muito pouco. Cadê a pessoa?
Cadê a Igreja? A sociedade? O próprio bem dos filhos? O respeito da
própria mulher e do próprio marido? (Depoimento do Monsenhor
Manfredo Ramos, professor da Faculdade Católica de Fortaleza,
em janeiro de 2013)
Dessa forma, o entrevistado afirma que os direitos sexuais e
reprodutivos, quando são justos, são defendidos pela Igreja. No entanto, a
Igreja não defende uma “libertinagem sexual”, na qual as pessoas se acham
donas de seus próprios corpos e, por isso, fazem o que querem. A Igreja não
abria, então, mão da ideia do núcleo permanente da doutrina da sexualidade
na religião católica, da qual tratei há pouco, pois Deus fez homem e mulher
fisicamente diferentes e “complementares”. Essa concepção e sua vinculação à
noção de fecundidade é essencial no entendimento da Igreja. Uma vez que
esta, no casamento entre dois homens e duas mulheres, inexiste, a Igreja não
76
vê finalidade ou significado nessas uniões, por isso, não legitima o casamento
entre indivíduos do mesmo sexo.
Monsenhor Manfredo afirma que, a princípio, o Estado, como
governo, não deveria ter nada a dizer sobre o relacionamento sexual dos
indivíduos, por isso a Igreja não discute a liberdade de um Estado legislar
sobre a possibilidade de dois homens ou duas mulheres possuírem
determinados direitos civis. Assim, a Igreja não aceita o fato de o Estado fazer
uso do modelo tradicional cristão de matrimônio-família, na legislação civil,
afirmando existir duas modalidades de matrimônio, o heterossexual e o
homossexual, e que ambos teriam, por isso, o direito de conceber ou adotar
filhos. Sendo assim, a Igreja rejeita, firmemente, a união de pessoas do mesmo
sexo, bem como a adoção de crianças pelas mesmas. No entanto, segundo o
Monsenhor, não as discrimina.
Eu mesmo, como Padre, tenho penitentes, eles e elas, com esse
problema e, aqui para nós, eles sofrem muito. Mesmo pela
discriminação da sociedade, não só da Igreja. São pessoas bem
dotadas de uma sensibilidade extraordinária e que podem mesmo
pretender uma vida sacramental, de penitência e de comunhão, com
a devida prudência e orientação do confessor. Mas simplesmente
dizer ‘pode se casar e vá fazer uma vida a dois, pretendendo ser
cristão assim, conservando seu direito de participação na eucaristia’,
isso não. É um problema paralelo ao dos casais cristãos divorciados
e recasados, quanto ao acesso à eucaristia. (Depoimento do
Monsenhor Manfredo Ramos, professor da Faculdade Católica
de Fortaleza, em janeiro de 2013)
É preciso dizer que, mesmo que a homossexualidade não seja
mais vista, pelo menos cientificamente, como uma doença mental, uma
anomalia, o pensamento da Igreja segue outra direção. Durante a entrevista, o
Monsenhor Manfredo disse que “a Igreja espera que a ciência se aprofunde
mais e tente, de fato, explicar, como ciência, as componentes de uma situação
ou de uma pessoa dessas. Não se pode, simplesmente, como na Idade Média,
colocar na fogueira.”
Embora não tenha sido tão direto quanto Tomás de
Aquino, o Monsenhor fez um comentário capaz de gerar muitas polêmicas.
Presente em Levítico, a condenação ao ato de “um homem se deitar com outro
homem como se fosse mulher” – a mesma restrição vale para a mulher –
sempre fez parte da moral cristã. Segundo Del Priore (2008), incitado pelo furor
77
moralizante da Contra-Reforma, o Santo Ofício trouxe a sodomia (também
entendida como homossexualidade) para o território da heresia, estando sob
sua responsabilidade a punição daqueles que cometiam este pecado, com a
pena capital: a morte na fogueira.
Ao ser questionado sobre a maneira como a Igreja trata a
sexualidade dos jovens, Monsenhor Manfredo explica que, hoje, ninguém como
os jovens sente os impactos das mudanças e das solicitações. Segundo ele,
começa pelo fato de que a juventude de hoje é muito mais “bem desenvolvida”
do que antigamente, com os hormônios em bom funcionamento, e, ao mesmo
tempo, sem tantas restrições por parte dos pais ou das mães acerca do
comportamento sexual. Isso não causa só gestações indesejadas, ou doenças
venéreas, mas também um desequilíbrio afetivo.
Para a Igreja, a maturidade afetiva dos jovens deveria ser um objeto
de preocupação dos educadores e dos pais de famílias. As solicitações da
imprensa, da televisão, do cinema, exalar hedonismo. No entanto, uma
educação equilibrada, sob o ponto de vista da sexualidade com base no
sentimento, deveria preocupar muito mais as pessoas. E, para isso, seria
necessário algo que cada dia diminui: o diálogo. Não é fácil dialogar na
atualidade, seja a nível internacional, nacional, político, social ou familiar.
Segundo ele, é preciso dialogar para gerar um juízo de valores.
Apesar desta postura aparentemente “dialógica”, a doutrina católica
trata determinadas noções como inegociáveis. Segundo Perrot (2007), desde a
Idade Média, a Igreja Católica considerou a virgindade como um valor supremo
para as mulheres. No século XIII, a Virgem Maria se torna rainha dos
conventos e patrona das virgens. Em oposição a Maria Madalena, Maria é um
modelo a ser seguido pelas moças. Segundo a autora, ainda hoje, “a
sexualidade constitui um bastião de resistência ao mundo moderno, uma linha
Maginot da moral cristã, ou mesmo do sagrado.” (p. 64) Com base no
pensamento de Prof. Felipe Aquino (2011), membro da Canção Nova, de que a
ideologia de gênero “fere profundamente a castidade” (p. 179), questionei
Monsenhor Manfredo em relação à concepção de castidade na Igreja Católica.
Ele afirmou que, antes de tudo, castidade é uma virtude já preconizada pelos
78
pagãos, ou seja, ela não é válida só para frades, freiras, bispos, gente
consagrada, mas trata-se de uma virtude básica do homem, que corresponde
ao pudor, ao respeito a sua corporeidade, a sua sexualidade. Por isso, o
representante católico concluiu, afirmando que isso não tocaria apenas aos
jovens solteiros ou aos religiosos, mas também aos casais. O respeito à própria
sexualidade é um dos primeiros motivos de equilíbrio da personalidade. “Como
um membro da Igreja pode se tornar membro de uma prostituta?” Quando se
comete fornicação, se esquece de que o corpo é templo do Espírito Santo.
Portanto, não pertencemos a nós mesmos, mas ao Cristo que deu a vida por
todos. Quando se peca contra a castidade, fazendo uso indiscriminado de sua
sexualidade, afasta-se da santidade.
79
6 A ELABORAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS PARA MULHERES NO
BRASIL
As políticas públicas constituem temática oriunda da Ciência
Política e da Ciência da Administração Pública. Elas foram adquirindo
autonomia e status científico a partir de meados do século XX na Europa e nos
Estados Unidos. Segundo Dias e Matos (2012), na Europa, os estudos acerca
de políticas públicas tinham o objetivo de analisar e explicar o papel do Estado
e de suas organizações na produção dessas políticas. Nos Estados Unidos,
bem como no Brasil, esses estudos tinham como foco as ações dos governos.
Dias e Matos (2012) afirmam que a administração pública surgiu
como um instrumento do Estado para defender os interesses públicos ao invés
dos interesses privados. Segundo Marta Ferreira Santos Farah (2011), no início
do século XX, nos Estados Unidos, a administração pública, como disciplina,
tinha o objetivo de formar servidores para a administração pública moderna. Ao
longo dos anos 1960 e 1970, houve uma expansão dos cursos de pósgraduação nos EUA, marcada pela constituição de programas independentes
de administração pública. Nesse período, muitos pesquisadores buscaram
estabelecer vínculos com novos campos de estudo e formação, como o de
políticas públicas. Deu-se, então, a incorporação das políticas públicas pela
administração pública e o desenvolvimento de estudos específicos sobre
políticas públicas. No Brasil, apenas no final da década de 1970 e início de
1980 tiveram início os estudos das mesmas.
O termo “políticas públicas” engloba diferentes ramos do
pensamento humano, tratando-se de matéria interdisciplinar, uma vez que
abrange diversas áreas do conhecimento, como as Ciências Sociais e
Aplicadas, a Ciência Política, a Economia, a Ciência da Administração Pública
e o Direito.
Segundo Dias e Matos (2012), para se discutir políticas públicas
faz-se necessário compreender, primeiramente, o conceito de “público”. Com
80
base no pensamento de Arendt (2007), abordado na terceiro seção deste
trabalho, as ideias de “público” e “privado” se opõem. O público compreenderia,
assim, o domínio da atividade humana que é considerado relevante para a
intervenção governamental ou para a ação comum, enquanto o privado
residiria na esfera familiar, conjugal, doméstica, preservada de intervenções
externas. Dessa forma, o conceito de políticas públicas pressupõe que há uma
dimensão da vida que não é privada, pois existe em comum com os demais,
sendo por isso chamada de “propriedade pública”.
Segundo esta perspectiva, a propriedade pública é controlada
pelo governo com propósitos públicos, por meio da administração pública. A
administração pública, converte-se em um instrumento do Estado para
defender os interesses públicos. No entanto, deve-se ressaltar que embora as
ações de governo tenham como principal objetivo atender ao conjunto da
sociedade, os indivíduos que integram a administração têm um prazo
determinado
de
permanência
e
possuem
interesses
particulares,
representando grupos específicos, que podem ou não coincidir com os fins do
Estado, como instância que tende idealmente à universalidade.
Vale salientar que não se deve confundir políticas públicas com
programas governamentais. De acordo com Farah (2004a), política pública é
“um curso de ação do Estado, orientado por determinados objetivos, refletindo
ou traduzindo um jogo de interesses. Um programa governamental, por sua
vez, consiste em uma ação de menor abrangência em que se desdobra uma
política pública.” (p. 47) As políticas públicas são fruto de uma atividade
política, ou seja, requerem a formulação de várias estratégias para se chegar
aos fins desejados, envolvendo, por isso, mais de uma decisão política.
É fato que o Estado possui um número limitado de recursos que
devem ser utilizados para atender a um contingente significativo de demandas
sociais. Por esse motivo, a discussão das políticas públicas por parte dos
cidadãos se mostra tão importante, uma vez que, assim, é possível observar os
interesses e as demandas da sociedade, a fim de fazer escolhas sobre em que
área, de que forma e em que momento o governo deve atuar, racionalizando a
aplicação de investimentos e utilizando o planejamento como ferramenta para
81
alcançar as metas pretendidas. É dessa maneira que funcionam as
Conferências de Políticas para Mulheres, das quais tratarei mais adiante.
Atualmente, muito se discute acerca de políticas públicas. Este se
tornou um termo bastante comum, uma vez que tais ações utilizadas na
concretização dos direitos humanos fundamentais, particularmente dos direitos
sociais têm sido fortemente midializadas. De fato, segundo Dias e Matos
(2012), “as políticas públicas constituem um meio de concretização dos direitos
que estão codificados nas leis de um país.” (p. 15) No entanto, deve-se
ressaltar que a Constituição Federal, da mesma forma que as constituições
estaduais e as leis orgânicas municipais, não contém políticas públicas, mas
direitos cuja efetivação se dá por meio destas. Por isso, Cristiane Derani (2006)
define políticas públicas como “concretizações específicas de normas jurídicas,
focadas em determinados objetivos concretos.” (p. 136)
De vez que o conceito de políticas públicas foi esclarecido,
discorrerei brevemente sobre construção das políticas públicas para mulheres
no Brasil, a qual se deu a partir da incorporação de uma perspectiva de gênero
por parte das políticas desenvolvidas pelos governos subnacionais brasileiros,
contando com a mobilização efetiva de grupos de mulheres e entidades
feministas.
6.1. AS POLÍTICAS PÚBLICAS PARA MULHERES E O MOVIMENTO
FEMINISTA NO BRASIL
A consolidação do campo de estudos de gênero no Brasil ocorreu
no final da década de 1970, simultaneamente ao fortalecimento do movimento
feminista no país. No entanto, a incorporação da perspectiva de gênero por
políticas públicas é um tema ainda pouco explorado na atualidade.
Farah (2004b) afirma que, desde os anos 80, sob o impacto da
democratização e da luta de movimentos sociais organizados em torno de
questões concernentes às mulheres e de movimentos que assumiam
abertamente o ideário feminista no Brasil, vem ocorrendo um processo gradual
de incorporação da problemática das desigualdades de gênero na agenda
82
governamental. A partir da Constituição Federal de 1988, houve um aumento
na importância dos governos municipais e a redução das desigualdades de
gênero passou a fazer parte da agenda desses governos.
A incorporação da perspectiva de gênero pelos governos
municipais visa à redução das desigualdades entre homens e mulheres, não a
negação da diversidade. As políticas públicas desenvolvidas sob esta
perspectiva
procuram
valorizar igualmente
homens e
mulheres,
mas
reconhecendo que existem diferenças entre eles e que, por isso, haverá
necessidades específicas, não comuns a ambos, que devem ser contempladas
pela sociedade e pelo Estado.
O desenvolvimento de políticas de gênero ou a incorporação da
perspectiva de gênero por parte de governos municipais ainda é um processo
em construção. A inclusão do gênero no processo de elaboração de políticas
públicas ocorreu como parte do processo de redemocratização do regime
político brasileiro, que contou com a emergência de novos segmentos políticos.
Os movimentos sociais que participaram desse processo tinham as mulheres
como integrantes fundamentais.
De acordo com Cynthia Sarti (1988), desde o início da década de
1960, os grupos de mulheres atuavam junto a associações em de bairros
pobres, como os Clubes de Mães ou as Associações de Donas-de-casa,
ligadas, em sua maioria, à Igreja Católica. Eram grupos de convivência onde as
participantes desenvolviam trabalhos manuais (tricô, bordado, crochê, etc) ou
atividades religiosas, como o catecismo. A partir de meados da década de
1970 esses grupos assumem um caráter mais reivindicativo. Segundo Farah
(2004b),
as
reivindicações
das
mulheres,
que
inicialmente
estavam
relacionadas à moradia, saneamento básico, transporte e custo de vida,
passaram
a
envolver
questões
específicas
da
condição
de
mulher:
desigualdade salarial, direito a creches, saúde da mulher, sexualidade,
contracepção e violência contra a mulher. Daí surgiu o movimento feminista no
Brasil.
83
Nessa discriminação de temas ligados à problemática da mulher,
houve uma convergência com o movimento feminista. O feminismo,
diferentemente dos ‘movimentos sociais com participação de
mulheres’, tinha como objetivo central a transformação da situação da
mulher na sociedade, de forma a superar a desigualdade presente
nas relações entre homens e mulheres. O movimento feminista –
assim como a discriminação nos movimentos sociais urbanos de
temas específicos à vivência das mulheres – contribuiu para a
inclusão da questão de gênero na agenda pública, como uma das
desigualdades a serem superadas por um regime democrático.
(FARAH, 2004b, p. 51)
O feminismo brasileiro se desenvolveu durante o período de lutas
contra o regime militar, interligando os grupos de camadas médias da
sociedade e os movimentos populares. No contexto de autoritarismo que
marcou o início do movimento, os problemas “específicos” das mulheres
estavam em segundo plano em relação aos problemas “gerais” da sociedade.
Além disso, dada à vinculação do movimento feminista com a esquerda
marxista, as mulheres trabalhadoras tinham prioridade em relação às demais.
(SARTI, 1988)
Segundo Sarti (1988), o Ano Internacional da Mulher, 1975,
decretado pela ONU, é considerado o marco inicial da atual mobilização de
mulheres no Brasil. Essa data foi particularmente importante, pois serviu de
pretexto para uma maior organização do movimento e para discussões acerca
dos mais diferentes temas que envolviam a condição das mulheres no âmbito
da sociedade brasileira. A partir de então, o movimento ganhou mais
visibilidade e abriu-se espaço para reivindicações em nível de políticas
públicas.
Já nos anos 1980, conforme afirma Farah (2004a), num cenário
de redefinição das políticas públicas no país, por meio do avanço da
democratização, passou-se a formular e implementar políticas públicas que
contemplassem a questão de gênero, como foi o caso do Conselho Estadual
da Condição Feminina e a da Delegacia de Polícia de Defesa da Mulher,
ambos no estado de São Paulo, e do Conselho Nacional dos Direitos da
Mulher, órgão do Ministério da Justiça. Assim, as políticas públicas resultaram
num meio de superação das desigualdades entre homens e mulheres na
sociedade brasileira.
84
O conceito de gênero, o qual foi abordado no capítulo anterior, ao
enfatizar as relações sociais entre os sexos, nos permite apreender
desigualdades entre homens e mulheres, que constituem disparidades no
âmbito das relações de poder. Nas sociedades ocidentais, tais relações
envolvem uma situação de subordinação das mulheres aos homens, tanto na
esfera pública como na privada. As políticas públicas elaboradas sob a
perspectiva do gênero têm como objetivo modificar esse padrão, sendo
definidas da seguinte forma:
Políticas públicas com recorte de gênero são políticas públicas que
reconhecem a diferença de gênero e, com base nesse
reconhecimento, implementam ações diferenciadas para mulheres.
Essa categoria inclui, portanto, tanto políticas dirigidas a mulheres –
como as ações pioneiras do início dos anos 80 – quanto ações
específicas para mulheres em iniciativas voltadas para um público
mais abrangente. (FARAH, 2004a, p. 51)
Para que as desigualdades de gênero sejam combatidas,
pressupõem-se práticas de cidadania para a concretização da justiça de
gênero, sobretudo pela responsabilidade do Estado de redistribuir riqueza e
oportunidades de desenvolvimento social entre as regiões, classes, raças,
homens e mulheres, dentre outras diversificantes. No entanto, Maria Lúcia da
Silveira (2004) afirma que políticas não sendo premeditadamente neutras,
exigem, de forma incisiva, um permanente questionamento sobre o modo como
são construídas, como e a quem elas beneficiam. Neste sentido, Raquel Viana,
coordenadora da Coordenadoria Especial de Políticas para Mulheres de
Fortaleza, afirma:
O processo de construção das políticas públicas no Brasil tem de ser
entendido a partir de um contexto de questionamento e muito em
função do movimento feminista, do movimento de mulheres, e do
papel do Estado na sociedade, a partir do entendimento de que o
Estado não é neutro...ele faz as suas opções e o Estado tanto pode
ter a sua intervenção no sentido de alterar as relações sociais, como
de fazer que essas relações se perpetuem.” (Depoimento de Raquel
Viana, Coordenadora da Coordenadoria Especial de Políticas
para Mulheres de Fortaleza, em novembro de 2012)
Embora seja possível apontar avanços nesse domínio, ainda há
muito a se fazer em termos da configuração de políticas integradas de gênero
no Brasil. No que tange a institucionalização de organismos de governo, as
Coordenadorias e Secretarias de Políticas para Mulheres consistem meios de
85
articular políticas públicas que visem à diminuição das desigualdades de
gênero. Neste sentido, serão tratadas a seguir as atividades da Coordenadoria
Especial de Políticas para Mulheres da cidade de Fortaleza nos últimos anos,
com relação, especificamente, aos direitos sexuais e reprodutivos das
mulheres.
6.2. A COORDENADORIA ESPECIAL DE POLÍTICAS PARA MULHERES DE
FORTALEZA: Direitos sexuais e reprodutivos, gênero e democracia
Com base no que foi exposto, em uma perspectiva democrática,
entende-se que o Estado é responsável por criar organismos de governo que
tenham a capacidade de articular e elaborar políticas públicas, as quais
busquem a construção da igualdade e possam contribuir no combate às
discriminações de gênero. A criação da Coordenadoria Especial de Políticas
Públicas para Mulheres de Fortaleza foi orientada por esta concepção.
Esta foi criada durante a administração da Prefeita Luizianne Lins
(2005 – 2012), com funcionamento efetivo desde os primeiros meses de
governo, ainda em 2005, sendo oficializada durante a reforma administrativa do
governo do Partido dos Trabalhadores (PT), em 2007. Dessa forma,
concretizava-se um processo de reconhecimento institucional e político da
importância de políticas públicas específicas para mulheres na capital
cearense.
Ao tratar do surgimento deste órgão, Maria Elaene Rodrigues
Alves (2008) afirma que o passo seguinte foi a elaboração de uma estratégia
de capacitação dos gestores e gestoras. Para tanto, foi criado o “GT – Mulher”,
o qual consiste num grupo de trabalho gestado no processo de organização
das atividades comemorativas do mês de março de 2005. O decreto
governamental que o oficializa define sua missão como sendo aquela voltada
para o desenvolvimento de estratégias políticas e institucionais capazes de
formular políticas de promoção da igualdade de gênero.
Ainda durante o ano de 2005, a Prefeitura de Fortaleza
estabeleceu uma parceria com a Secretaria de Políticas para Mulheres do
86
governo federal, por meio do pacto do Plano Nacional de Políticas para
Mulheres. Segundo Alves (2008), os projetos elaborados pela Coordenadoria
no decorrer daquele ano estavam direcionados à implantação do sistema de
proteção e defesa dos direitos das mulheres, em particular no que concerne ao
combate à violência, destacando-se a criação do Centro de Referência
Francisca Clotilde.13
O Centro de Referência Francisca Clotilde tem como objetivos o
atendimento psicológico e social a mulheres em situação de violência e o
fornecimento de orientação jurídica às vítimas. Este centro começou a
funcionar em março de 2006 e, até o mês de fevereiro de 2013, já havia
realizado 10.526 atendimentos (acrescentando-se os retornos), tendo sido
atendidas 3.124 mulheres.14
Alves (2008) ressalta que o processo de implantação da
Coordenadoria Especial de Políticas para Mulheres deu-se a partir dos debates
realizados pelo GT-Mulher e pelo movimento social de mulheres, sendo sua
missão a de “coordenar, elaborar e implementar políticas públicas que
contribuam de forma concreta na vida das mulheres e nas relações de gênero
no município, apoiada numa estratégia de articulação com as demais
Secretarias e áreas de atuação governamental.” (ALVES; VIANA, 2008, p. 24)
A missão da Coordenadoria tem sido posta em prática com base
em cinco eixos de ação: 1) Prevenção e assistência à mulher em situação de
violência; 2) Saúde e equidade de gênero; 3) Inclusão e autonomia econômica;
4) Participação e controle social; 5) Educação e cultura não-discriminatórias.
Uma vez que esta pesquisa trata dos direitos sexuais e reprodutivos das
mulheres, serão abordados apenas o segundo eixo de ação e as políticas
públicas voltadas especificamente para esses direitos.
13
Francisca Clotilde foi uma poetisa cearense, nascida no município de Tauá, interior do
estado, no ano de 1862. Ávida por liberdade, Francisca Clotilde defendia os ideias republicanos
e, ainda jovem, se engajou no Movimento Abolicionista. A sua obra mais conhecida é “A
Divorciada”, publicada em 1902, a qual fez dessa cearense a pioneira no tema “divórcio” na
Literatura Brasileira.
14
PREFEITURA DE FORTALEZA. Centro de Referência da Mulher Francisca Clotilde
comemora
sete
anos
de
atividade.
Disponível
em:
<<http://www.fortaleza.ce.gov.br/noticias/atendimento-mulher/centro-de-referencia-da-mulherfrancisca-clotilde-comemora-sete-anos-de>> Acesso em: 15 mar. 2013.
87
O eixo de ação “Saúde e equidade de gênero” tem como objetivos
propor, articular, monitorar e avaliar as ações de atenção integral nos vários
ciclos vitais e nos vários níveis de complexidade, com foco nos direitos sexuais
e nos direitos reprodutivos, incorporando as dimensões de gênero e a
autonomia das mulheres sobre o próprio corpo, e assegurando que esses
direitos não sejam tratados como questões puramente reprodutivas.
Segundo a coordenadora Raquel Viana, a conceituação de direitos
sexuais e reprodutivos utilizada pela Coordenadoria é a seguinte:
Direitos sexuais são todos aqueles direitos que têm a ver com a
vivência da sexualidade das pessoas, como o direito a livre
orientação sexual, o direito de ter sua sexualidade e seu prazer livres
de discriminação, sem violência e de ter as condições necessárias
para que cada um possa vivenciar isso na sociedade, sem a
imposição de padrões...a gente sabe que, na sociedade, existe um
padrão de comportamento sexual aceitável, existe um padrão que se
orienta a partir da heterossexualidade, não considerando a
diversidade de orientações (...) Os direitos reprodutivos estão mais
ligados a capacidade das pessoas de decidir sobre sua própria
reprodução, seja homem ou mulher. Esta concepção parte do
pressuposto que as mulheres têm o direito de decidir se querem ou
não ter filhos, quantos querem ter, em que momento da vida elas
querem ter e como uma responsabilidade do Estado e da sociedade
de garantir as condições necessárias para que elas possam vivenciar
isso. (Depoimento de Raquel Viana, Coordenadora da
Coordenadoria Especial de Políticas para Mulheres de Fortaleza,
em novembro de 2012)
No âmbito das políticas públicas para mulheres, em Fortaleza, os
direitos sexuais e reprodutivos se encontram vinculados às políticas de saúde
pública. Rachel Viana afirma:
A Coordenadoria da Mulher tem sua intervenção muito a partir de
uma articulação com a Secretaria de Saúde do Município, que é a
secretaria que faz a gestão das políticas de saúde. Então a função da
Coordenadora é muito mais de fazer essa interface e fazer com que o
município garanta, dentro da sua política de saúde, essa
especificidade dos direitos das mulheres dentro dessa perspectiva.
(Depoimento de Raquel Viana, Coordenadora da Coordenadoria
Especial de Políticas para Mulheres de Fortaleza, em novembro
de 2012)
De acordo com Lourdes Goes (2008), militante feminista e
coordenadora do Projeto Hospital da Mulher de Fortaleza, essas políticas
buscam, primordialmente, a “equidade em saúde”. Tal equidade implica, dentre
outras coisas, o acesso e utilização de serviço de saúde em acordo com as
88
necessidades distintas, o financiamento de atenção de acordo com a
capacidade econômica e em relação à necessidade e riscos, bem como a
distribuição da carga de responsabilidade e poder no cuidado da saúde em pé
de igualdade entre mulheres e homens.
Com base na política nacional de saúde para mulheres adotada
pelo Ministério da Saúde – Área Técnica de Saúde da Mulher em conjunto com
a Secretaria Especial de Políticas para Mulheres e com respaldo nas
recomendações da I Conferência Nacional de Políticas para Mulheres, foram
elaboradas as seguintes diretrizes para a política de saúde voltada para a
mulher em Fortaleza:
- humanização do nascimento e parto, expresso pela cobertura de
pré-natal, melhoria da assistência obstétrica, redução da mortalidade
materna, diminuição dos índices de gravidez na adolescência,
diminuição dos índices de cesárea;
- implementação de atenção às mulheres adolescentes, mulheres no
climatério/menopausa e velhice;
- implantação da atenção às mulheres negras, lésbicas, mulheres
com deficiência, e trabalhadoras;
- implantação da interface saúde mental e gênero;
- prevenção e atendimento dos agravos decorrentes da violência de
gênero e sexista – doméstica e sexual; e do aborto legal;
- implementação da atenção às mulheres na prevenção, tratamento e
controle do câncer ginecológico (mama e colo do útero) e de outros
tipos de câncer, destacando-se o de pulmão que, segundo o
Ministério da Saúde (2005), tem crescido em maior escala nas
mulheres por conta do fator tabagismo;
- atenção frente aos demais agravos crônicos, destacando-se a
hipertensão que vem apresentando uma significativa incidência entre
as mulheres. (ALVES; VIANA, 2008, p. 58 – 59)
Dentre as ações que acabaram de ser enumeradas, priorizou-se a
redução da mortalidade materna, entendendo se tratar de uma ação complexa,
envolvendo vários fatores e níveis de intervenção. Por meio da Coordenação
de Saúde da Mulher, estabeleceu-se, então, a partir de 2005, a reestruturação
do Comitê Municipal de Mortalidade Materna (CMMF), cujo objetivo é identificar
os problemas que envolvem a mortalidade materna no município, a fim de
prevenir sua recorrência e buscar estratégias para a solução dos mesmos.
89
Conforme os dados divulgados pelo Ministério da Saúde, durante o
ano de 2012, no município de Fortaleza, foram registrados 12 óbitos maternos.
Sendo assim, o índice de mortalidade materna no último ano foi inferior aos de
anos anteriores, como 2005, 2006 e 2007, quando ocorreram 26, 17 e 15
óbitos maternos, como pode ser observado no gráfico:
A diminuição do índice de mortes maternas em Fortaleza contou
com o suporte de algumas medidas estruturantes, dentre as quais se pode
destacar:
- redefinição da política pública do município, com a adoção de
medidas humanizadoras no pré-natal, parto e puerpério;
- monitoramento e estudo das mortes maternas, a partir da
reestruturação do CMMF;
- reestruturação e organização da rede de atenção básica –
Estratégia Saúde Família (ESF): contratação por meio de concurso
público de 250 médicos, 291 enfermeiros e 238 dentistas,
aumentando de 102 equipes de PSF em 2004, para 300 em 2006.
Esse investimento possibilitou um aumento da cobertura populacional
pela ESF de 15% para mais 50%;
- definição de hospital de referência para o parto já no pré-natal,
evitando a peregrinação da gestante na ocasião do parto;
- registro no cartão da gestante, o nome da maternidade escolhida
para o parto;
- organização das Centrais de Marcação de Consultas e de Leitos,
garantindo que uma gestante em situação de internamento só saia de
uma maternidade para outra mediante a vaga garantida e o
transporte assegurado;
90
- melhoria da qualidade da atenção obstétrica e neonatal nas
maternidades (maior investimento nas maternidades municipais:
aumento de 22% em 2006 com relação a 2005);
- garantia de anestesiologistas, neonatologistas, enfermeiras/os e, no
mínimo, dois obstetras nas salas de parto;
- reforma nas salas de parto das maternidades;
- criação da Escola Municipal de Saúde, com a presença do residente
de família nas maternidades, o que tem fortalecido o sistema de
referência e contra-referência e a integridade da assistência;
- capacitação de profissionais da rede básica em pré-natal de baixo
risco. (ALVES; VIANA, 2008, p. 64 – 65)
Além das medidas enumeradas, no ano de 2005, a Prefeitura de
Fortaleza se comprometeu com a construção do Hospital da Mulher, um centro
de excelência voltado para atender, prioritariamente, as mulheres no campo
dos direitos sexuais e reprodutivos.
Como pode ser observado, as principais ações da Coordenadoria
Especial de Políticas para Mulheres de Fortaleza, no âmbito dos direitos
sexuais e reprodutivos, envolvem o Comitê de Mortalidade Materna, serviços
de atendimento às mulheres vítimas de violência doméstica e sexual – com
destaque
para
o
Centro
de
Referência
Francisca
Clotilde
–
e
o
acompanhamento do Hospital da Mulher.
Além disso, durante o ano de 2011, a Coordenadoria, em conjunto
com representantes da sociedade civil e do governo municipal, foi responsável
pela organização da III Conferência Municipal de Políticas para Mulheres, onde
os direitos sexuais e reprodutivos foram debatidos no GT “Saúde da Mulher:
direitos sexuais e direitos reprodutivos”.
Visto que a construção do Hospital da Mulher gerou muitas
manifestações por parte da população fortalezense, que esperou sete anos
pela concretização dessa política pública15, e que as Conferências de Políticas
15
TRIBUNA DO CEARÁ. Obras do Hospital da Mulher continuam atrasadas. Disponível em:
<<http://www.tribunadoceara.com.br/noticias/politica/obras-do-hospital-da-mulher-continuamatrasadas-2/>> Acesso em: 05 mar. 2013.
DIÁRIO DO NORDESTE. Trabalhadores da construção seguem em greve e paralisam
obras do Hospital da Mulher. Disponível em:
<<http://diariodonordeste.globo.com/noticia.asp?codigo=338033&modulo=966&origem=ultimah
ora-wide>> Acesso em: 05 mar. 2013.
91
para Mulheres, que só ocorrem a cada três anos, contaram com a participação
de um significativo número de mulheres da sociedade civil e do governo, darei
a seguir maior visibilidade a esses temas como elementos que condicionam
fortemente o delineamento local do objeto privilegiado por esta pesquisa – os
direitos sexuais e reprodutivos das mulheres.
6.3. O HOSPITAL DA MULHER DE FORTALEZA
O Hospital da Mulher de Fortaleza foi uma política pública
implantada durante a gestão da Prefeita Luiziane Lins (2005-2008, 2009-2012),
consistindo numa unidade de atenção secundária e terciária para atendimento
à população feminina da cidade. Trata-se do primeiro e único hospital municipal
construído para atender exclusivamente a mulheres.
Por meio de entrevista realizada com a diretora do Hospital da
Mulher, a médica ginecologista Dr.ª Zenilda Bruno, foram exploradas questões
relativas à elaboração do projeto do hospital, bem como seu processo de
construção e seu funcionamento, como experiência concreta de efetivação das
políticas públicas voltadas para os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres
no governo municipal passado.
Segundo a Dr. ª Zenilda Bruno, o projeto do Hospital da Mulher
tem sete anos. Primeiro, foi necessário se refletir acerca de qual seria o perfil
do hospital, o modelo de gestão mais apropriado, a capacidade de
atendimento, o tamanho do prédio, a localização do hospital, dentre outras
questões. Tudo isso foi sendo decidido aos poucos.
A diretora afirmou que foram realizadas algumas reuniões junto à
célula da mulher da Secretaria de Saúde do Município, responsável pela
construção do hospital. Um tema que foi muito debatido durante essas
reuniões, o qual contou, inclusive, com a participação consultiva de arquitetos,
foi a escolha do local onde seria feita a construção. Inicialmente, por uma
questão de acessibilidade, o centro da cidade foi cogitado, já que se trata de
uma área para onde fluem todos os ônibus, podendo-se, assim, contar com a
92
locomoção por meio do transporte público. No entanto, questões como a
dificuldade de se estacionar veículos e o intenso fluxo de pessoas naquela área
acabaram por tornar inviável a construção do hospital no centro da capital.
O bairro Jóquei Clube, onde hoje se encontra o Hospital da
Mulher,
acabou
sendo
escolhido
por
conta
de
ser
uma
região
populacionalmente maior e que sofria carência de hospitais. Em maio de 2007,
a área onde se situava o jóquei clube de Fortaleza foi desapropriada e deu-se,
então, a construção do hospital no ano de 2008.
A Dr.ª Zenilda Bruno afirma que o hospital começou a funcionar
em julho de 2012. Em meados de julho, a parte ambulatorial do Hospital da
Mulher estava sendo aberta e, logo em seguida, no final do mesmo mês, a
parte de internações iniciava seu funcionamento. No dia 12 de agosto de 2012,
começaram a ser realizados os partos, bem como foram iniciadas as funções
da neonatologia, do berçário e do centro cirúrgico
O hospital foi inaugurado
oficialmente no dia 17 de agosto de 2012. A cerimônia de inauguração contou
com a presença da Prefeita Luiziane Lins, do Ministro da Saúde, Alexandre
Padilha, e da Presidenta Dilma Rousseff. A Presidenta teria afirmado que “esse
é o padrão de hospital que as pessoas querem e que as pessoas precisam”,
mostrando-se satisfeita com as instalações do hospital.16
A diretora conta que o primeiro grupo de médicos, enfermeiros e
assistentes sociais a ingressar no hospital vieram de um recredenciamento. O
processo de recredenciamento se deu por meio da realização de uma prova
com os profissionais de outros hospitais e postos de saúde que desejavam
trabalhar no Hospital da Mulher. Os profissionais que trabalhavam em outros
hospitais e prestaram o exame foram transferidos para o Hospital da Mulher e
aqueles que seguiam um regime de 40 horas de trabalho nos postos de saúde
passaram a trabalhar 20 horas no hospital e 20 horas no posto onde já
prestavam serviço. No ano de 2012, houve também uma seleção pública para
16
DIÁRIO DO NORDESTE. Dilma visita Hospital da Mulher. Disponível em:
<<http://diariodonordeste.globo.com/materia.asp?codigo=1215150>> Acesso em: 05 mar.
2013.
93
profissionais substitutos, tanto médicos quanto psicólogos e enfermeiros. Uma
vez que o hospital estava carente de profissionais, muitos dos aprovados nesta
seleção pública foram logo chamados a trabalhar, visto que não havia a quem
substituir. Dessa forma, 70% dos profissionais que trabalham no Hospital da
Mulher vieram de outras instituições e 30% ingressaram por meio da seleção
pública.
Durante a entrevista, a diretora afirmou que o hospital ainda não
estava funcionando por completo, pois não haviam sido iniciadas as atividades
da UTI neonatal, embora as salas de parto, a UTI de médio risco e o centro
cirúrgico já se encontrem em pleno funcionamento. A UTI para adulto e as
terapias complementares (acupuntura, massoterapia e hidroterapia) iniciaram
suas funções mais recentemente.
A Dr.ª Zenilda Bruno ressaltou o fato de o hospital ser “100%
regulado”, ou seja, não existe uma porta de emergência, pois todas as
pacientes são referenciadas da Prefeitura. Isso significa que as pacientes que
são
atendidas
no
Hospital
da
Mulher
devem
ser
obrigatoriamente
encaminhadas por outros hospitais ou postos de saúde. A diretora afirma que
esse tipo de procedimento trouxe algumas dificuldades de entendimento por
parte do público, uma vez que as pessoas estão acostumadas a ir a qualquer
hospital e lá mesmo serem atendidas. No entanto, a médica entende que essa
é a maneira mais apropriada de se trabalhar no Hospital da Mulher, visto que
existem outras instituições que seguem este mesmo modelo.
Durante as Conferências de Políticas para Mulheres, das quais
tratarei mais adiante, pude perceber que uma questão muito debatida pelas
mulheres participantes era a da humanização do serviço público de saúde. Ao
ser questionada sobre a orientação recebida pelos profissionais do Hospital da
Mulher neste sentido, a diretora explica que existe no hospital uma equipe
denominada de “Acolhimento”, formada por psicólogas, assistentes sociais e
enfermeiras, que é responsável pelo acolhimento das pacientes, com a
realização de um questionário, por meio do qual se observa, inclusive, se a
paciente é vítima de violência doméstica. Caso necessário, a paciente poderá
realizar outras consultas com terapeutas ou psicólogas. Todos os médicos do
94
hospital também são orientados no sentido de atender as pacientes da forma
mais humanizada possível.
Em relação à contribuição do Hospital da Mulher na efetividade
dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres na cidade de Fortaleza, no
âmbito da saúde pública, a diretora afirma:
Eu acho que o hospital esta começando de uma maneira geral.
Então, a gente tem o ambulatório de atendimento de vítimas de
violência, a gente tem um atendimento de planejamento familiar, a
gente tem um acolhimento realmente dirigido para a mulher, mas a
gente ainda tem muito a crescer. A gente tem inclusive um projeto de
abertura de uma unidade realmente de direitos sexuais e
reprodutivos, que ainda não abriu, que uma parte específica do
hospital. Então estamos abrindo por partes e realmente a tendência
do hospital é crescer e cada vez funcionar 100%. (Depoimento de
Zenilda Bruno, Diretora do Hospital da Mulher, em janeiro de
2013)
Embora a diretora do Hospital da Mulher tenha afirmado que, com
exceção da UTI neonatal, todos os outros setores do hospital estavam
funcionando normalmente, servidores do hospital têm reclamado das condições
de trabalho. De acordo com o que foi divulgado na imprensa local, os
funcionários assinalariam a falta de materiais para se realizar os atendimentos
no Hospital da Mulher, como pomadas para tratar ferimentos e equipamentos
de proteção pessoal (luvas e gorros). Além disso, diversos leitos e centros
cirúrgicos estariam sem funcionar devido à falta de equipamentos e
profissionais.17
6.4. AS CONFERÊNCIAS DE POLÍTICAS PARA MULHERES NO ESTADO
DO CEARÁ
No contexto dos direitos sexuais e reprodutivos, as Conferências
de Políticas para Mulheres consistem num espaço privilegiado de reivindicação
em torno das tensões e contradições que envolvem a sexualidade feminina. A
finalidade das mesmas é de promover o avanço da democracia no que tange à
17
VERDES MARES. Servidores reclamam das condições de trabalho no Hospital da
Mulher.
Disponível
em:
<<
http://verdesmares.globo.com/v3/canais/noticias.asp?codigo=353800&modulo=966>> Acesso
em: 2 mar. 2013.
95
busca da efetividade desses direitos, seja por meio de leis ou de políticas
públicas.
Essas Conferências, embora
não
sejam
incorporadas ao
ordenamento jurídico do país – diferentemente do que acontece com os
Tratados e Convenções sobre direitos humanos – significam a existência de
um comprometimento entre o Estado e os movimentos sociais, marcadamente
o movimento de mulheres, que resulta na formulação de um Plano Nacional de
Políticas para Mulheres.
Dessa forma, a realização dessas Conferências constitui uma
maneira de fortalecer a legitimidade das mulheres como sujeitos políticos, ao
mesmo tempo em que estabelece que as políticas para mulheres podem
funcionar como elementos estruturais da configuração de um estado
democrático.
As Conferências de Políticas para Mulheres são realizadas a cada
três anos. As primeiras conferências foram realizadas no ano de 2004, em
seguida ocorreram em 2007, e sua última realização se deu em 2011. Essas
Conferências contaram com a participação da gestão pública, conselhos de
direitos das mulheres, organizações de mulheres e feministas, sindicatos,
mulheres de toda a sociedade civil mobilizando-se em busca de seus direitos.
As III Pré-Conferência Municipal, III Conferência Municipal e III
Conferência Estadual de Políticas para Mulheres do Ceará, realizadas no ano
de 2011 na cidade de Fortaleza, constituem parte do campo empírico desta
pesquisa, tendo como foco o eixo temático “Saúde das Mulheres: direitos
sexuais e direitos reprodutivos”.
A III Pré-Conferência Municipal de Políticas para Mulheres teve a
duração de três dias, dividindo as seis Regionais de Fortaleza em grupos e
distribuindo-os entre os dias 20, 21 e 22 de julho de 2011. A finalidade da PréConferência era levar propostas a serem avaliadas durante a Conferência
Municipal e eleger as delegadas (mulheres responsáveis pela elaboração e
votação de propostas para o Plano Nacional de Políticas para Mulheres). Uma
96
vez que fui eleita delegada durante a III Pré-Conferência, tive a oportunidade
de participar ativamente do processo de elaboração e votação de propostas
durante as etapas municipal, estadual e nacional da Conferência, o que não
seria possível caso eu tivesse participado apenas como observadora.
Ao chegar ao local da Pré-Conferência, o primeiro passo a ser
seguido por todas as mulheres era o de realizar o credenciamento e, em
seguida, escolher o eixo temático do qual faria parte durante as conferências.
Dentre os eixos temáticos existentes, o “Saúde das Mulheres: direitos sexuais
e direitos reprodutivos” foi o que apresentou o menor número de inscrições. O
eixo “Participação e controle social das mulheres” teve o maior número de
mulheres inscritas.
A elaboração de propostas para esse eixo temático se deu de
maneira rápida. As mulheres presentes na reunião começaram a responder,
prontamente, quais eram as maiores dificuldades enfrentadas por mulheres na
área da saúde. Citaram a insuficiência de médicos, a falta de medicação nos
postos de saúde, as enormes filas de espera para atendimento nos hospitais.
Embora esses fossem problemas reais, a mediadora teve que alertar as
participantes de que a elaboração de propostas deveria ocorrer com base nas
questões de gênero e nos direitos relacionados à sexualidade e à reprodução
feminina.
Tendo sido entendida a observação da mediadora, as mulheres
mencionaram a questão do acolhimento nos órgãos de saúde pública, visto que
muitas participantes já haviam presenciado situações de preconceitos contra
lésbicas, ou julgamentos acerca da aparência das mulheres que buscam
atendimento. Neste contexto, as mulheres propuseram que os profissionais da
saúde acompanhassem as transformações e conquistas das mulheres. Isso
demonstra a urgência de mudanças de caráter cultural no âmbito da nossa
sociedade.
Muitas mulheres reclamaram do fato de as enfermeiras serem as
responsáveis pelos exames de prevenção e as orientações sexuais realizadas
nos postos de saúde de Fortaleza. As profissionais de enfermagem, dessa
97
forma, estariam mais ligadas à saúde da mulher do que os médicos, que
deveriam ser os verdadeiros responsáveis por essas funções.
As participantes ainda ressaltaram o fato de a mulher ser tratada
como uma mera reprodutora dentro do campo da saúde, onde a reprodução
ainda é colocada em uma posição secundária em relação a outras questões de
saúde pública. Por isso, a construção do Hospital da Mulher de Fortaleza foi
outro assunto colocado em pauta, uma vez que se trata de uma instituição
voltada exclusivamente para as mulheres.
A III Conferência Municipal de Políticas para Mulheres de
Fortaleza foi realizada nos dias 27 e 28 de agosto de 2011, contanto com a
participação das delegadas eleitas durante a Pré-Conferência. Ela deu
continuidade às discussões dos eixos temáticos, propondo a votação de cinco
textos para cada eixo, a serem posteriormente levados à Conferência Estadual.
Os debates do eixo “Saúde das Mulheres: direitos sexuais e
direitos reprodutivos” foram facilitados pela enfermeira e coordenadora do
Hospital da Mulher, Lourdes Góes, e Núbia Marques. Durante as reuniões,
várias temáticas foram abordadas, como: a violência contra a mulher, o aborto
como problema de saúde pública, o conhecimento sobre a lei do aborto no
Brasil, HIV/AIDS e o Hospital da Mulher de Fortaleza.
No último dia da Conferência, as participantes haviam votado as
cinco propostas, dentre as doze que haviam sido elaboradas no eixo temático.
Aquelas que fariam parte do relatório da Conferência, foram as seguintes:
- Criar programas que visem à mulher em todas as fases de sua
vida, recebendo assim, uma assistência integral e especializada, independente
de classe, etnia/raça e orientação sexual.
- Sensibilizar e capacitar profissionais de saúde para que os
mesmos valorizem as conquistas e acompanhem o processo de transformação
da saúde da mulher, oferecendo-lhe uma melhor qualidade e perspectiva de
vida.
98
- Realização de mutirões nas comunidades para atendimento de
demandas relacionadas à saúde da mulher.
- Investir no repasse de informação à comunidade acerca dos
direitos da mulher, referentes à sua saúde sexual e reprodutiva, contando com
a instrução dos membros da comunidade por parte dos profissionais.
- Investir em informações sobre o funcionamento e procedimentos
das unidades de saúde junto às comunidades.
A III Conferência Estadual de Políticas para Mulheres, que
ocorreu nos dias 22 e 23 de outubro de 2011, contou com a participação de
764 delegadas de diferentes municípios cearenses. Cada um dos 64
municípios participantes enviou suas delegadas, juntamente com as propostas
votadas pelas mesmas durante as etapas municipais da Conferência.
Em prol do pleno exercício da democracia participativa, as
delegadas estaduais dividiram-se voluntariamente entre nove eixos temáticos:
Eixo I: autonomia econômica e igualdade no mundo do trabalho,
com inclusão social.
Eixo II: educação inclusiva, não sexista, não racista, não
homofóbica, não lesbofóbica e não gerontofóbica.
Eixo III: saúde das mulheres: direitos sexuais e direitos reprodutivos.
Eixo IV: enfrentamento a todas as formas de violência contra a
mulher.
Eixo V: participação das mulheres nos espaços de poder e decisão.
Eixo VI: desenvolvimento sustentável na cidade e no campo, com
garantia de justiça ambiental, soberania e segurança alimentar.
Eixo VII: direito a terra, moradia digna e infraestrutura social nos
meios rurais e urbanos, considerando as comunidades tradicionais.
99
Eixo VIII: cultura, comunicação e mídia igualitárias, democráticas e
não discriminatória.
Eixo IX: enfrentamentos das desigualdades geracionais que atingem
as mulheres, com especial atenção as jovens e idosas.
No eixo temático “Saúde das mulheres: direitos sexuais e direitos
reprodutivos”, as propostas votadas pelas delegadas, fruto de calorosas
discussões entre as participantes, versaram sobre:
- A elaboração de uma lei de descriminização do aborto no Brasil;
- A humanização no processo de atendimento de mulheres no
sistema de saúde pública;
- A possibilidade de esterilização feminina sem a necessidade de
permissão do cônjuge;
- O investimento em aparelhagem e formação dos profissionais dos
postos de saúde.
No último dia da Conferência, todas as propostas votadas nos
nove eixos temáticos foram lidas em plenária, uma vez que dependiam de
aceitação por totalidade das delegadas presentes. Tendo sido aprovadas,
essas propostas fizeram parte do relatório encaminhado à Secretaria de
Políticas para Mulheres da Presidência da República, com vista à formulação
do III Plano Nacional de Políticas para Mulheres, o qual, até o início de 2013,
ainda não havia sido divulgado.
Ao ser questionada sobre sua opinião acerca das Conferências de
Políticas para Mulheres do ano de 2011, Rachel Viana afirma:
Foi um processo extremamente importante, pois houve exercício
efetivo da participação das mulheres. Foi um espaço onde as
mulheres puderam dialogar, mulheres de diferentes grupos,
diferentes segmentos, diferentes bairros da cidade, ou seja, pensar e
discutir a cidade de Fortaleza a partir das mulheres, das suas
necessidades das suas demandas. Então foi bastante importante.
(Depoimento de Raquel Viana, Coordenadora da Coordenadoria
Especial de Políticas para Mulheres de Fortaleza, em novembro
de 2012)
100
Com base no que foi tratado neste capítulo, pode-se perceber que
o processo de construção de políticas públicas para mulheres, bem como seu
percurso de efetivação, envolve um interesse social pelo fim das desigualdades
de gênero, pela igualdade de direitos e pelo respeito à diversidade. Porém,
para que esse interesse se concretize é necessária uma mudança cultural no
âmbito social, para que se possa romper com preconceitos e discriminações
contra as mulheres, criando políticas que atendam as suas necessidades e
demandas.
101
7 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres foram tratados,
nesta pesquisa, por meio de uma abordagem sociológica dos direitos humanos.
A partir da noção de direitos humanos, a liberdade, a igualdade e a dignidade
se apresentam como princípios estruturalmente associados a sua efetivação
em âmbito internacional e brasileiro.
Desde o surgimento da Declaração Universal dos Direitos Humanos,
em 1948, muitas foram as transformações ocorridas no âmbito jurídico, por
meio de conferências, convenções e documentos internacionais voltados aos
direitos das mulheres, – tais como a Conferência Mundial de Direitos Humanos
de Viena de 1993, a Conferência Internacional sobre População e
Desenvolvimento de 1994 e a IV Conferência Mundial da Mulher de 1995, bem
como os planos de ação decorrentes das mesmas – os quais deram lugar a
atual conceituação de direitos sexuais e reprodutivos.
Os direitos sexuais preconizam o exercício da sexualidade livre de
discriminação e violência. Os direitos reprodutivos, por sua vez, baseiam-se no
reconhecimento da capacidade de cada indivíduo de organizar livremente sua
vida reprodutiva, ou seja, escolher o número de filhos que deseja ter, o
espaçamento entre eles, o acesso a métodos contraceptivos e a informações
necessárias para que possam desfrutar do mais alto padrão de saúde sexual e
reprodutiva. No entanto, muito ainda há a ser ponderado, criticado e
acrescentado acerca deste tema, visto que tais direitos ainda não fazem parte
da realidade de muitas mulheres, inclusive, no Brasil.
Embora a Constituição Federal de 1988 forneça base para o
reconhecimento
dos
direitos
sexuais
e
reprodutivos
como
direitos
fundamentais, como não existem leis específicas que tratem destes direitos, a
fundamentação dos mesmos se dá por meio de interpretações sistemáticas de
normas constitucionais. Além disso, a prostituição, o assédio e a exploração
sexual, o tráfico de mulheres, os altos índices de mortalidade materna, o aborto
102
ilegal e os altos níveis de esterilização são exemplos de como a efetividade
desses direitos se encontra comprometida em âmbito nacional.
Uma das primeiras dificuldades encontradas na efetivação desses
direitos consiste no fato de a concepção dos mesmos estar vinculada
exclusivamente às mulheres. Embora o Plano de Ação do Cairo afirme que os
titulares dos direitos reprodutivos são as mulheres, os homens, os casais, os
adolescentes e as pessoas idosas, é para as mulheres que as leis e as
políticas públicas estão mais voltadas, destinando-lhes mais deveres do que
direitos no âmbito reprodutivo. Dessa forma, o cruzamento entre normas
jurídicas e políticas públicas parece convergir com o conceito de biopolítica de
Foucault (2012), uma vez que as mesmas funcionariam como técnicas e
procedimentos que teriam a função de ordenar a conduta dos indivíduos. Neste
sentido, o corpo da mulher estaria sendo adestrado por meio de técnicas de
poder, as quais agem sobre o biológico e são refletidas no campo político.
Neste contexto, é possível perceber a forte tensão existente entre as
esferas pública e privada. A partir da contribuição de Arendt (2007), percebe-se
que, quando se trata de direitos sexuais e reprodutivos, a dicotômica que
estabelece uma separação irreconciliável entre o público e o privado sofre
modificações. A sexualidade, mantida na obscuridade da esfera privada, é,
então, trazida para a esfera pública sob a forma de normas e políticas voltadas
à saúde sexual e à reprodução. Dessa forma, as técnicas de adestramento dos
corpos femininos efetuadas pelo Estado, na esfera pública, consistem em leis e
políticas públicas relacionadas à higiene e à saúde públicas. Outras questões,
como as do conhecimento do próprio corpo, a conquista do prazer e o
desenvolvimento livre da sexualidade são mantidos na esfera privada.
A interdependência entre direitos sexuais e direitos reprodutivos é
outra questão delicada. A ideia de direitos sexuais está intimamente vinculada
à concepção de direitos reprodutivos. Mostra-se necessário, portanto, fortalecer
o direito da sexualidade para que ultrapasse a esfera reprodutiva. No entanto,
da mesma forma que o direito da sexualidade não pode se resumir ao direito
da reprodução, os direitos sexuais não devem restringir-se a um direito da
sexualidade não-reprodutiva.
103
Essas tensões que envolvem a problemática dos direitos sexuais e
reprodutivos são oriundas de noções historicamente construídas de “gênero”,
“sexualidade” e “corpo”.
O gênero faz referência a um conceito elaborado pelas ciências
sociais para analisar a construção sócio-histórica das identidades masculina e
feminina. Os problemas encontrados na efetivação dos direitos sexuais e
reprodutivos das mulheres estariam relacionados a uma assimetria entre os
gêneros.
Nas
sociedades
ocidentais,
esta
assimetria
corresponde
à
subordinação do sexo feminino em relação ao masculino, tanto na esfera
pública como na privada.
Com a finalidade de reduzir as desigualdades entre homens e
mulheres, a partir da década de 1980, no Brasil, a perspectiva de gênero foi
incorporada pelos governos municipais. Dessa forma, as políticas públicas
desenvolvidas visam valorizar ambos os sexos, reconhecendo, entretanto, as
diferenças entre eles.
A incorporação da perspectiva de gênero pelos governos municipais,
bem como o desenvolvimento de políticas de gênero, foi uma conquista do
movimento feminista brasileiro, o qual começou suas manifestações durante a
década de 1960. No entanto, embora seja possível apontar avanços nesse
domínio, ainda há muito a fazer em termos de configuração de políticas de
gênero no Brasil. No que tange a institucionalização de organismos de
governo, as Coordenadorias e Secretarias de Políticas para Mulheres
consistem em meios de articular políticas públicas que visem à diminuição das
desigualdades de gênero.
A Coordenadoria Especial de Políticas para Mulheres de Fortaleza
foi criada no ano de 2005, durante o governo da Prefeita Luizianne Lins, sendo
embasada numa perspectiva democrática de construção da igualdade e
combate às discriminações de gênero. Com base em entrevista realizada com
Raquel Viana, responsável por esta Coordenadoria, bem como em dados
obtidos por meio do livro “Políticas para mulheres em Fortaleza: desafios para
a igualdade”, publicado pela Prefeitura de Fortaleza, pude constatar que as
104
atividades desenvolvidas por este órgão entre os anos de 2005 e 2013,
voltadas especificamente aos direitos sexuais e reprodutivos, consistem em:
- Acompanhamento do Centro de Referência Francisca Clotilde,
desde sua criação em 2006. Este centro tem o objetivo de fornecer
atendimento psicológico e social a mulheres vítimas de violência doméstica,
bem como orientação jurídica às vítimas;
- A reestruturação do Comitê Municipal de Mortalidade Materna
(CMMF), que funciona desde 2005, com o objetivo de identificar os problemas
que envolvem a mortalidade materna no município, buscando meios de impedir
sua recorrência e estratégia para a solução deste problema.
- Acompanhamento do Hospital da Mulher, cujo projeto data de
2005, tendo seu funcionamento iniciado recentemente, em julho de 2012.
- Organização das III Conferências Pré-municipal e Municipal de
Políticas para Mulheres que ocorreram em Fortaleza no ano de 2011.
Embora, com a criação da Lei Maria da Penha, a violência sexual
tenha sido incluída no âmbito da violência doméstica, os centros de
atendimento a mulheres vítimas de violência abordam a problemática dos
direitos sexuais e reprodutivos de uma forma esparsa, sendo estes tratados
juntamente com outras categorias de violência, como a física e a psicológica.
Dessa forma, tais direitos acabam sendo tratados de modo negativo.
É necessária a criação de políticas públicas que tratem dos direitos
sexuais e reprodutivos das mulheres de uma forma alternativa e positiva, que
não coloque a mulher numa situação vitimizadora, de ser frágil e vulnerável.
Sem querer negar a importância da assistência às mulheres vítimas de
violência sexual, enfatizo uma necessidade muito maior de desenvolvimento de
políticas públicas que busquem acarretar transformações estruturais e culturais
na sociedade.
De acordo com Lourdes Góes (2008), coordenadora do projeto do
Hospital da Mulher, a mortalidade materna era o alvo das políticas voltadas aos
105
direitos sexuais e reprodutivos em Fortaleza. O Comitê Municipal de
Mortalidade Materna mostrou cumprir com seu objetivo a partir dos dados
divulgados pelo Ministério da Saúde, os quais apontam o decréscimo no
número de óbitos maternos entre os anos de 2005 e 2012. No entanto, de
acordo com Ministério da Saúde, o Ceará está entre os estados com maior
índice de mortalidade materna. A Organização Mundial da Saúde (OMS), por
sua vez, também considera o número de óbitos maternos no Ceará muito
alto.18
Assim, com a finalidade de proporcionar melhorias às condições de
saúde das mulheres, foi criado o Hospital da Mulher de Fortaleza, primeiro
hospital municipal construído para atender exclusivamente as mulheres. A
partir de entrevista realiza com a diretora deste hospital, Dr.ª Zenilda Bruno,
questões referentes ao projeto do hospital, bem como a sua construção e
dinâmica interna foram elucidadas. De acordo com a diretora, o hospital estaria
funcionando desde o mês de julho de 2012, tendo o atendimento por parte dos
seus diversos setores sido iniciado progressivamente, com exceção da UTI
neonatal, a qual ainda não se encontra ativa. Contrariando o que foi dito pela
diretora, a imprensa local divulgou matéria em que os servidores do hospital
reclamavam das condições de trabalho, por falta de medicamentos e
equipamentos de proteção pessoal, além de afirmarem que diversos leitos e
centros cirúrgicos não estariam funcionando por falta de equipamentos e
profissionais.
Além dos problemas destacados pelos servidores do hospital, a
diretora afirmou que existe um projeto de estruturação de unidade voltada
exclusivamente para os direitos sexuais e reprodutivos, mas que ainda não
tinha sido aberta. A meu ver, visto a necessidade de efetivação desses direitos
e com base na perspectiva seguida pelo próprio hospital, a criação dessa
unidade deveria ter sido privilegiada no projeto do mesmo.
18
UNIVERSIDADE LIVRE FEMINISTA. Índice de mortalidade materna no Ceará é “muito
alta”, diz OMS. Disponível em: <<
http://www.feminismo.org.br/livre/index.php?option=com_content&view=article&id=2350:indicede-mortalidade-materna-no-ce-e-amuito-altoa-diz-oms&catid=78:business-tech&Itemid=615>>
Acesso em: 05 mar. 2013.
106
Como pode ser observado com base nas políticas implantadas pela
Coordenadoria Especial de Políticas para Mulheres de Fortaleza, as políticas
públicas sobre direitos sexuais e reprodutivos estão, em sua maioria, limitadas
a questões de saúde pública. Tal fato pode ser constatado a partir da própria
nomenclatura do Grupo de Trabalho voltado a esses direitos durante as
Conferências de Políticas para Mulheres organizadas pela Prefeitura de
Fortaleza: “SAÚDE DA MULHER: direitos sexuais e direitos reprodutivos”.
No contexto dos direitos sexuais e reprodutivos, as Conferências de
Políticas para Mulheres consistem em espaços privilegiados de reivindicação
em torno das tensões e contradições que envolvem a sexualidade feminina.
Durante as Conferências realizadas em Fortaleza em 2011, as formulações
elaboradas e votadas pelas delegadas para fazerem parte do Plano Nacional
de Políticas para Mulheres versaram principalmente sobre:
- A elaboração de uma lei de descriminalização do aborto no Brasil;
- A humanização no processo de atendimento de mulheres no
sistema de saúde pública;
- A possibilidade de esterilização feminina sem a necessidade de
permissão do cônjuge;
- O investimento em aparelhagem e formação dos profissionais dos
postos de saúde.
Embora estas conferências tenham grande importância no contexto
da participação política das mulheres no Estado democrático, elas só
acontecem a cada três anos. Sendo assim, é necessário que exista uma
abertura permanente de diálogo entre os movimentos organizados de
mulheres, bem como da sociedade civil de uma forma geral, e os órgãos
responsáveis pela elaboração e implantação de políticas para mulheres.
Acredito que os profissionais que têm a função de pensar e implantar essas
políticas têm de estar constantemente cientes das demandas sociais,
permitindo, inclusive, redefinições no rumo das políticas já implantadas.
107
De acordo com documentos elaborados por diferentes órgãos
internacionais – como a CEDAW e o FNUAP – a cultura é um fator que
obstaculiza a efetivação dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, visto
que “gênero”, “sexualidade” e “corpo” são noções construídas culturalmente.
A apropriação da fecundidade feminina pelo sexo masculino teria
dado origem às desigualdades de gênero, visto que em muitos sistemas
culturais, as tarefas entre os sexos são designadas levando-se em conta as
diferenças anatômicas dos mesmos. Dessa forma, a mulher teria ficado
responsável pela procriação e pelo cuidado com a prole. Tal perspectiva se
reflete no ordenamento jurídico brasileiro e nas políticas públicas para
mulheres, nos quais os direitos sexuais e reprodutivos acham-se direcionados
exclusivamente
para
as
mulheres,
fazendo
menção
a
uma
figura
reprodutora/materna.
Uma vez que o gênero é produto da cultura, existem discursos de
legitimação sexual, os quais justificam a hierarquização do masculino e do
feminino na sociedade. Consistem em sistemas de crenças que especificam as
características de cada sexo, a partir daí, determinando os direitos, as
atividades e as condutas de cada um deles. A religião é um dentre os vários
campos de ação social que produz e difunde este tipo de discurso.
Por se tratar do culto religioso mais representativo no Brasil, o
catolicismo apostólico romano foi escolhido como cerne do campo empírico
desta pesquisa, tendo sido realizada entrevista com o Monsenhor Manfredo
Ramos, padre e professor da Faculdade Católica de Fortaleza. Durante a
entrevista o Monsenhor foi questionado acerca das concepções da Igreja
Católica a respeito da sexualidade e das ideologias de gênero, bem como da
visão da mesma acerca dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres.
De uma forma geral, Monsenhor Manfredo afirmou que, desde o
Concílio Vaticano II, o paradigma de problemáticas, tais como a sexualidade, o
matrimônio, a família, sofreu uma grande mudança. Passou-se de um
paradigma “naturalista”, com centro na procriação, para outro, definido como
“personalista”, com base no amor. Segundo ele, a mulher, antes vista como
108
disseminadora do pecado na Terra, – nas palavras de teólogos da Igreja, como
Santo Agostinho, São Jerônimo e São Tomás de Aquino – hoje, assume uma
posição de igualdade com o homem perante a Igreja. No entanto, embora a
Igreja Católica tenha mudado seu ponto de vista a respeito de tais questões,
outras permanecem inegociáveis, como: o livre uso do corpo, o aborto, o
casamento homossexual e a adoção de crianças por esses casais, por
exemplo. Dessa forma, é possível observar que os direitos sexuais e
reprodutivos,
conforme
sua
definição
estabelecida
pelos
documentos
internacionais, não são aceitos pela Igreja.
Não seria correto afirmar que a Igreja Católica, como instituição
religiosa e sujeito internacional (Santa Sé), ainda exerce a mesma influência
sobre a vida das pessoas, no que toca ao campo político, social e cultural, que
há anos atrás. Nas últimas décadas, o número de católicos tem diminuído,
somando-se à laicização do Estado e à pluralidade religiosa vigente nas
sociedades ocidentais, a Igreja perdeu parte de seu espaço. No entanto, de
acordo com a teoria da secularização, o elemento chave da concepção
religiosa, na atualidade, é a existência de uma fé pessoal, formada a partir da
junção de elementos de diversas religiões, inclusive mesclando-os a temas
místicos e esotéricos. Com base nas manifestações contra o casamento
homossexual e a descriminalização do aborto no Brasil19, as quais reúnem
milhares de pessoas nas ruas, é possível concluir que, embora a Igreja não
exerça mais uma influência direta sobre os indivíduos, estes, voluntariamente,
incorporaram elementos da doutrina católica em suas crenças.
Finalmente, é possível concluir que, uma vez que as políticas
públicas são elaboradas e implantadas por representantes de segmentos
sociais diversos, fatores culturais – notadamente religiosos – exercem
influência nesse processo, tornando inviável a apreensão deste fenômeno a
19
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118
ANEXOS
119
UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ – UECE
Mestrado Acadêmico em Políticas Públicas e Sociedade - MAPPS
Projeto de pesquisa
A EXPRESSIVIDADE DOS DIREITOS SEXUAIS E REPRODUTIVOS NAS
POLÍTICAS PÚBLICAS PARA MULHERES DESENVOLVIDAS NA CIDADE
DE FORTALEZA
Sarah Dayanna Lacerda Martins Lima
Fortaleza
Agosto – 2011
120
SARAH DAYANNA LACERDA MARTINS LIMA
A EXPRESSIVIDADE DOS DIREITOS SEXUAIS E REPRODUTIVOS NAS
POLÍTICAS PÚBLICAS PARA MULHERES DESENVOLVIDAS NA CIDADE
DE FORTALEZA
Fortaleza
121
* DELIMITAÇÃO DO OBJETO
Os direitos sexuais e reprodutivos são direitos humanos que, como o
próprio nome sugere, estão relacionados à sexualidade e à reprodução,
devendo ser exercidos livres de discriminação. Assim, cada indivíduo tem o
direito à igualdade e de ser livre de todas as formas de discriminação quanto
ao exercício da sexualidade, pois, sem igualdade, não há liberdade, e sem
liberdade tampouco existirá a equidade. Os direitos de evitar gravidez,
exploração, abuso e assédio sexual são alguns dos quais elencam essa gama
de direitos fundamentais.
É incontestável o fato de que a sexualidade e a reprodução são
ainda utilizadas como meios de controle do corpo e da mente dos seres
humanos. As mulheres são as principais vítimas da forte influência de posições
fundamentalistas e conservadoras, advindas, na sua maior parte, de preceitos
religiosos e aspectos culturais, impressos fortemente na opinião popular.
Durante muito tempo, a opinião das mulheres foi marginalizada. As
suas contribuições para a História e para a cultura nunca foram completamente
reconhecidas e a luta contra a violência, assédio e exploração sexual é mais
antiga do que se imagina.
A sexualidade feminina e a reprodução foram sempre tabus, alvos
de repressões. Com o passar do tempo, aos poucos, estas concepções foram
mudando e vários documentos internacionais foram elaborados com a
finalidade de proporcionar liberdade e proteção às mulheres.
Levando-se em conta a cronologia dos direitos, é bastante
recente a emergência dos direitos sexuais e reprodutivos como direitos
humanos. Estes novos conceitos de direitos começaram a se formar a partir do
séc. XX, quando começou a ganhar força a ideia de direito individual.
A
elaboração
desses
direitos
em
vários
documentos
internacionais advém das transformações sofridas pelo Direito Internacional
Público após a 2ª Guerra Mundial. Além dos dispositivos internacionais, a
122
Constituição brasileira de 1988 fornece base satisfatória para o reconhecimento
dos direitos sexuais e reprodutivos.
É evidente a necessidade da afirmação dos direitos sexuais e
reprodutivos a partir das manifestações sociais contra desigualdades de
gênero, do surgimento de novas formas de se exercer a sexualidade e do
choque causado pela epidemia de HIV/AIDS, por exemplo. Todavia, são muitos
os desafios que se apresentam para o desenvolvimento e a percepção desses
direitos.
Uma das barreiras que se impõe diante dessa problemática
consiste em arraigadas práticas culturais que foram historicamente construídas,
verificáveis e diferenciadas entre comunidades de diversos países do mundo.
Tornam-se
bastante
evidentes
as
influências
culturais
empregadas nas políticas dos Estados, que, por vezes, acabam dificultando a
ocorrência de avanços dentro da temática dos direitos sexuais e reprodutivos
da mulher, na medida em que valoram negativamente o exercício da sua
sexualidade.
Voltando-se para o âmbito nacional, dando enfoque cultural a
este, pode-se dizer que no Brasil, assim como em tantos outros países, a
dificuldade que as mulheres encontram em exercer seus direitos reprodutivos e
sexuais se deve, essencialmente, às relações desiguais entre homens e
mulheres. Essas desigualdades se devem, principalmente, ao confinamento
das mulheres ao espaço privado.
Pode-se perceber que a problematização de aspectos da vida das
mulheres, tidos como questões estritamente de âmbito privado, como a
sexualidade e a reprodução, são silenciosamente regulados pelo Estado
capitalista-patriarcal, deixando visível uma intensa dialética entre o público e o
privado.
Nos últimos 20 anos, a Saúde e os Direitos Sexuais e Reprodutivos
– ainda que pouco expressivos – têm sido pauta de alguns setores dos
movimentos sociais e dos governos, adquirindo status mundial de questão de
123
saúde pública. No entanto, a problemática que envolve os direitos sexuais e
reprodutivos das mulheres não alcança somente a esfera da saúde pública.
Neste contexto, vários outros campos da vida das mulheres estão englobados,
como as relações sociais, as relações de trabalho e a educação, por exemplo.
Dessa forma, a temática desta pesquisa está intimamente
relacionada a nossa cultura e às regras comportamentais que foram
historicamente construídas em nossa sociedade e que influenciam na
regulamentação do Estado e na aplicação de políticas públicas voltadas para
as mulheres.
Diante deste contexto, o desenvolvimento de políticas públicas
para mulheres na cidade de Fortaleza será analisado e utilizado como base
para esta pesquisa, a qual terá como foco a expressividade dos direitos
sexuais e reprodutivos dentro das mesmas. Portanto, procurar-se-á verificar,
durante a pesquisa, os seguintes questionamentos:
1. Como aspectos culturais e religiosos podem influenciar nas
políticas públicas para mulheres?
2. Em Fortaleza, como os direitos sexuais e reprodutivos são
vistos, em seu conceito, pelos responsáveis pela implementação de
políticas públicas?
3. O que pode ser relatado sobre a elaboração de políticas
públicas para mulheres na cidade de Fortaleza?
124
* JUSTIFICATIVA
A temática proposta apresenta complexidade em seu conteúdo e
um vasto contexto histórico a ser explorado. Os direitos sexuais e reprodutivos,
como matéria de estudo, são bastante recentes. São poucas as obras que
versam sobre eles por tratar-se de tema polêmico e cercado de controvérsias.
Por meio de pesquisas, sabe-se que os maiores obstáculos, no
sentido de combater agressões contra os direitos sexuais e reprodutivos da
mulher, apresentam-se na forma de aspectos culturais e preceitos religiosos
impregnados à população, os quais submetem a mulher a uma posição de
inferioridade, influenciando, ainda, a elaboração e a implementação das
políticas públicas desenvolvidas para as mulheres.
No ranking de estados brasileiros, o Ceará está em quarto lugar
em registros de exploração sexual. A cidade de Fortaleza, que aparece no
discurso da imprensa como ponto de turismo sexual, prostituição e tráfico de
mulheres e crianças, ocupou, no ano de 2009, o segundo lugar entre 54
municípios brasileiros que mais receberam denúncias de exploração sexual
contra crianças e adolescentes. Tomando estes dados como base, é
indispensável que haja uma análise sobre o desenvolvimento de políticas
públicas voltadas para os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres na
cidade de Fortaleza.
Faz-se necessário o estudo dos direitos sexuais e reprodutivos
com um enfoque cultural no âmbito das políticas públicas – não apenas na
esfera da saúde pública – devido à escassez da produção científica sobre o
tema, sendo, assim, pouco estudado e explorado em sua abrangência.
Dessa maneira, o desenvolvimento de investigações relativas ao
tema em questão pode despertar, na comunidade acadêmica, um maior
interesse sobre o conhecimento e a exploração do assunto, que se apresenta
como objetivo fundamental desta pesquisa. Isso leva a efeito, por via de
conseqüência, a compreensão de que as dificuldades que a mulher encontra
125
em exercer seus direitos sexuais e reprodutivos provém de relações desiguais
entre homens e mulheres, o que foi historicamente estruturado a partir de
fatores culturais, os quais, por sua vez, influenciam na elaboração de políticas
públicas para mulheres.
126
* OBJETIVOS
Geral
Analisar a trajetória da construção de políticas públicas para
mulheres no Brasil, estas referentes aos direitos sexuais e reprodutivos,
tomando como base as políticas implementadas na cidade de Fortaleza e
averiguando a influência de valores culturais, sobretudo religiosos, sobre as
mesmas.
Específicos
1. Averiguar como aspectos culturais e religiosos podem influenciar
as políticas públicas para mulheres.
2. Analisar como os direitos sexuais e reprodutivos são vistos, em
seu conceito, pelos profissionais responsáveis pela implementação das
políticas para mulheres na cidade de Fortaleza.
3. Acompanhar e relatar o processo de elaboração de políticas
públicas para mulheres, com base nas Conferências de Políticas para Mulheres
e nas atividades da Coordenadoria de Políticas para Mulheres da Prefeitura de
Fortaleza.
127
* REFERENCIAL TEÓRICO
Ter direitos garantidos em lei é suficiente para que os direitos das
mulheres sejam respeitados? Situações comuns do cotidiano mostram que
não. Teles (2007, p. 65) faz referência a situações alarmantes de desrespeito
aos direitos humanos das mulheres pelo mundo:
Na Argentina, estima-se que ocorrem 6 mil estupros por ano; 300
chegam à Justiça e menos de 10% dos criminosos são condenados.
Em Uganda, devido à crença de que as mulheres adolescentes
transmitem menos Aids que as adultas, a taxa de contaminação pelo
HIV entre elas é seis vezes maior que entre os rapazes.
No Egito e em outros países do Oriente Médio e África, ainda
mutilam-se adolescentes, amputando-lhes o clitóris para reduzir o
desejo e o prazer sexual. Em nome da tradição e cultura, já chegam a
100 milhões de mulheres de 26 países africanos com órgãos sexuais
mutilados. A cada ano, mais de 2 milhões de mulheres sofrem
mutilações nesses países.
Segundo Bobbio (1992), o grande problema do nosso tempo não
seria mais o de fundamentar os direitos humanos, mas o de protegê-los. O
problema não seria filosófico, mas jurídico e, num sentido mais amplo, político.
Vários aspectos do exercício da sexualidade e da reprodução
humanas são objeto de regulamentação legal. As leis que versam sobre este
tema, muitas vezes, buscam priorizar mais os interesses do Estado e das
classes dominantes do que, propriamente, a promoção e a garantia do bemestar humano. Isso se deve ao fato de sofrerem forte influência da tradição e
do conservadorismo moral e religioso, marcas de uma construção cultural, em
sua elaboração.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos adotada pela ONU,
em 1948, trouxe a concepção dos direitos humanos contemporâneos, servindo
de resposta à barbárie da Segunda Guerra Mundial. Trouxe, pela primeira vez,
mesmo que de maneira não tão explícita, redação que trata dos direitos
sexuais e reprodutivos, uma vez que estabelece igualdade entre homem e
mulher durante o casamento, assim como na altura da sua dissolução e, ainda,
a liberdade para contrair, ou não, matrimônio, como se pode observar a partir
de seu art. 16:
128
1.Os homens e mulheres de maior idade, sem qualquer restrição de
raça, nacionalidade ou religião, têm o direito de contrair matrimônio e
fundar uma família. Gozam de iguais direitos em relação ao
casamento,
sua
duração
e
sua
dissolução.
2.O casamento não será válido senão com o livre e pleno
20
consentimento dos nubentes.
Esse ato de resposta das Nações Unidas acabou por caracterizar
uma inovação na gramática dos direitos humanos, incorporando os princípios
da universalidade e da indivisibilidade.
A Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de
Discriminação contra a Mulher (CEDAW) também configura um documento
internacional, o qual versa sobre os direitos humanos das mulheres. Ela foi
adotada pela Assembléia Geral das Nações Unidas em 1979, sendo o único
documento de direitos humanos que afirma os direitos sexuais e reprodutivos
das mulheres e estabelece a tradição e a cultura como forças de influência
sobre as relações familiares e de gênero.
A partir desses fatos, houve o surgimento de uma reflexão crítica
acerca das mais diversas situações repressoras de tais direitos que, ao longo
do século XX, foram sendo trabalhadas com surpreendente singularidade,
dando espaço a várias outras manifestações, a exemplo da “Conferência do
Cairo”.
A Conferência Mundial sobre População e Desenvolvimento
(CIPD), celebrada no Cairo, entre os dias 5 e 13 de setembro de 1994,
inscreveu-se no amplo conjunto de iniciativas sobre o amparo das Nações
Unidas no campo social, produzindo, inclusive, celeumas, traduzidas, de
maneira geral, em acaloradas polêmicas em muitos países, envolvendo
necessariamente conceitos e valores de foro íntimo e conteúdo ético, como a
família, a procriação e os direitos individuais. A mesma contou com delegações
de 182 países, mais 2 mil ONGs e, ao todo, congregou cerca de 20 mil
pessoas de diversas nacionalidades – o dobro da Conferência de Viena sobre
Direitos Humanos de 1993.
20
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2010.
129
Sobre a Conferência do Cairo, Rios (2007, p. 17) afirma que:
Em 19994, a Conferência Mundial sobre População e
Desenvolvimento (Cairo) estabeleceu um programa de ação que
afirmou os direitos reprodutivos como categoria de direitos humanos
já reconhecidos em tratados internacionais, incluindo o direito à
escolha livre e responsável do número de filhos e de seu
espaçamento, dispondo da informação, educação e meios
necessários para tanto. Importante para os fins deste estudo foi a
declaração de que a saúde reprodutiva implica a capacidade de
desfrutar de uma vida sexual satisfatória e sem riscos.
No contexto dos direitos sexuais e reprodutivos, a Conferência do
Cairo foi um divisor de águas. Desta Conferência decorreu o Programa de
Ação do Cairo, o qual conseguiu um nível inédito de consenso, inclusive por
parte da Santa Sé, mediante suas contribuições substantivas e inovadoras.
Além disso, serviu de referência para outras conferências programadas pela
ONU, orientando-as. Uma dessas conferências posteriores foi a IV Conferência
Mundial sobre a Mulher, em Pequim, em setembro de 1995.
A Conferência de Pequim de 1995 reforçou a necessidade da
proteção dos direitos ligados aos direitos reprodutivos, que sejam os direitos
sexuais, o direito à saúde, à igualdade e à não-discriminação, dentre outros. A
Plataforma de Pequim, no capítulo “Mulher e Saúde”, deu ênfase à questão da
saúde sexual, afirmando o direito ao livre exercício da sexualidade.
Várias foram as convenções, alimentadas por um grande debate
entre feministas, avançando na construção dos conceitos de direitos sexuais e
reprodutivos.
Elas
consistem
em
importantes
instrumentos
jurídicos
internacionais, pois comprometem os governos signatários a construir políticas
públicas dentro desse tema. Pode-se citar a Convenção Interamericana para
Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher, conhecida como Convenção de
Belém do Pará, de junho de 1994, a qual tem força de lei interna, conforme
dispositivo no § 2º do art. 5º da Constituição Federal vigente.
A Convenção de Belém do Pará apresenta relevante importância no
âmbito latino-americano, pois salienta a preocupação com relação aos atos de
violência domésticos e estatais contra a mulher.
130
Apesar de todo o esforço na luta contra a violação de um dos mais
básicos direitos humanos, o direito à saúde reprodutiva, continuam a existir, em
nível planetário, agressões a esses paradigmas, levando ao fracasso todas as
precauções que se tem tomado para evitá-las. Essa afronta trouxe consigo a
necessidade de realização de estudos e pesquisas, dando origem ao Relatório
do Fundo das Nações Unidas para a População (FNUAP).
Esse relatório, também chamado “O Direito de Escolher: Direitos
Reprodutivos e Saúde Reprodutiva”, divulgado no dia 28 de maio de 1997,
apresenta os entendimentos mundiais que definem os direitos sexuais e
reprodutivos, enumera os problemas encontrados para efetuar-se a proteção
desses direitos e analisa os efeitos de sua negação.
A partir de tal pesquisa, foi constatada uma realidade preocupante
de incrível desrespeito a esses direitos. De acordo com Antônio Silveira Ribeiro
dos Santos, as estatísticas lançadas no relatório do FNUAP relatam que:
- 585.000 mulheres morrem todos os anos por causas relacionadas à
gravidez, sendo quase todas de países em desenvolvimento;
- 200.000 mortes maternas por ano resultam de falta ou fracasso de
anticoncepção;
-350 milhões
anticoncepção;
de
casais
carecem
de
informações
sobre
- das 75 milhões de gravidezes indesejadas, 45 milhões resultam em
aborto e 70.000 mortes por ano se dão por falta de condições
21
assépticas adequadas.
Os maiores obstáculos da ONU no sentido de combater tão
graves agressões se apresentam na forma de aspectos culturais e preceitos
religiosos impregnados na população, os quais submetem a mulher, de forma
recorrente, a uma posição de inferioridade. Neste contexto, voltando ao
pensamento de Bobbio (1992, p. 25) acerca dos direitos humanos, o autor
afirma que:
Não se trata de saber quais e quantos são esses direitos, qual é a
sua natureza e seu fundamento, se são direitos naturais ou históricos,
21
SANTOS, Antônio Silveira Ribeiro dos. Direitos Reprodutivos. Disponível em:
<http://www.aultimaarcadenoe.com/reproduz.htm> Acesso em: 05 set. 2010.
131
absolutos ou relativos, mas sim qual é o modo mais seguro de
garanti-los, para impedir que, apesar das solenes declarações, eles
sejam continuamente violados.
A mutilação genital, por exemplo, é uma prática ainda exercida em
cerca de 28 países, por povos de diversas etnias; um costume ancestral. Essa
espécie de mutilação consiste na ablação do clitóris e dos pequenos lábios, a
fim de que a mulher não sinta prazer durante a relação sexual.
Quanto às mutilações genitais femininas (MGF), percebe-se que as
mentalidades mudam, mas ainda de forma muito lenta. De acordo com matéria
lançada pela Revista Label France, até 2005, três países da União Africana
haviam ratificado um Protocolo sobre os direitos das mulheres na África e doze
Estados africanos – dentre eles: Senegal, Gana e Burkina Faso – juntamente
com sete países ocidentais, adotaram leis que repreendem esse tipo de
conduta. Na França, por exemplo, o Código penal prevê, efetivamente, para
qualquer contraventor, mais de 150.000 euros de multa e dez anos de prisão,
cuja pena máxima pode chegar a vinte anos de reclusão se a vítima tiver idade
inferior a quinze anos. No entanto, essas normas seguem sendo burladas.
No relatório, destacou-se, também, a existência de um grande
número de mulheres infectadas por doenças sexualmente transmissíveis,
principalmente a AIDS. Sem falar na submissão da mulher a várias rigorosas
regras impostas por sociedades machistas.
O estudo ainda constata que as restrições à participação social da
mulher impedem o acesso desta aos serviços de saúde reprodutiva, além de
lhe faltarem recursos e informações. A educação é um fator de grande
importância neste contexto, pois, a partir do momento que as mulheres se
iniciam a instruir em relação aos seus direitos, começam a querer transformar a
maneira como são vistas e a difundir uma nova impressão.
Referida problemática também se dá, especialmente, devido a
entraves de ordem religiosa. É sabido que a Igreja Católica é opositora
ferrenha da ideia de controles não-naturais de fecundidade, do aborto em
qualquer circunstância e da adoção de práticas que possam, de alguma forma,
envolver relações extramatrimoniais ou a sexualidade dos adolescentes. Ela
132
exerce forte influência em plano mundial por meio de seus dogmas,
defendendo a prática de sexo para fins puramente reprodutivos e proibindo o
aborto por ser um ato de tirar vidas.
É possível que por todos esses motivos os direitos sexuais e
reprodutivos tenham ficado fora do Projeto do Milênio22, estabelecido em
setembro de 2000.
As oito metas, cujo nome oficial é “Objetivos de Desenvolvimento
da ONU para o Milênio”, fixadas para serem atingidas até 2015, recolheram, de
maneira muito sintética, compromissos e linhas de ações de conferências
realizadas pelas Nações Unidas sobre população, infância, meio ambiente,
pobreza e direitos humanos, desenvolvidas principalmente nos anos de 1990.
No entanto, segundo as organizações que trabalham com direitos sexuais e
reprodutivos, a ONU considerou esse tema como perigoso, que poderia gerar
rejeição. Dessa forma, esses direitos acabaram por configurar uma das lacunas
das metas e os assuntos vitais para a mulher foram submissos a aspectos
muito gerais.
Apesar da sua não-inclusão no Projeto da ONU, as questões
referentes aos já citados direitos vem sendo tratadas por diversos órgãos
especializados que formam o Sistema das Nações Unidas.
O Fundo de Desenvolvimento das Nações Unidas para a Mulher
(UNIFEM) foi criado em 1976, a partir da I Conferência Mundial das Nações
Unidas sobre a Mulher, em 1975, na Cidade do México. Esse órgão trabalha
pelos direitos da mulher, entre eles, os direitos sexuais e reprodutivos,
juntamente com outros organismos da ONU, como a UNAIDS.
O Programa Conjunto das Nações Unidas sobre o HIV/AIDS
(UNAIDS), criado em 2004, por sua vez, promove ações para cessar e reverter
a propagação do HIV. Para tanto, centra-se em uma questão fundamental que
é a ampliação e o reforço dos serviços de saúde sexual e reprodutiva.
22
ONU. Sobre o Projeto do Milênio. Disponível em: <http://www.pnud.org.br/milenio/> Acesso
em: 05 set. 2010.
133
Outra organização que trabalha em prol desses direitos é a UNINSTRAW, Instituto Internacional de Treinamento e Pesquisa das Nações
Unidas para o Progresso da Mulher. Tal instituto é líder em ações estratégicas
e inovadoras, visando modificar a vida das mulheres.
A partir do que foi relatado, percebe-se que, apesar das
arbitrariedades que ocorrem por todo o mundo, continuam a ocorrer avanços e
vitórias no âmbito dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres,
representados pelo constante aumento na criação de organizações e comitês
responsáveis pela defesa destes direitos, os quais são consequência da
vontade conjunta das mulheres de lutar por uma vida livre e digna.
No Brasil, assim como em tantos outros países, as mulheres têm
exercido os seus direitos sexuais e reprodutivos de forma conflituosa, em um
contrato marcado por relações desiguais entre homens e mulheres,
intensificado por uma cultura fortemente influenciada por preceitos religiosos.
O aborto, no Brasil, assim como em diversos países onde sua
prática é considerada ilegal, constitui um grave problema de saúde pública.
Isso se deve ao fato de que a legislação vigente, que criminaliza o aborto, não
tem sido capaz de evitar sua ocorrência. Apesar de haver projetos de lei que
objetivam rever a previsão do aborto no País, não houve ainda mudanças no
sistema jurídico brasileiro. O aborto, crime tipificado nos artigos 124, 125, 126,
127 e 128 do Código Penal, configura a quarta causa de morte materna no
País.
A informação, fornecida à população brasileira, sobre métodos
contraceptivos seguros e reversíveis, e sobre a esterilização para casais que
querem encerrar suas carreiras reprodutivas é ainda muito precária. Tal
situação constitui um fator determinante da elevada incidência de gravidezes
não-programadas, sobretudo em adolescentes, seguidas de aborto. Sem falar
que os gastos com o atendimento de mulheres em situação de abortamento
oneram o sistema de saúde.
134
De acordo com os dados fornecidos por Teles (2007), no Brasil, o
parto representa a principal causa de internação de meninas no sistema
público de saúde. Além disso, 6% dos óbitos de mulheres entre 10 e 49 anos
estão relacionados à gravidez e ao parto. A utilização de métodos
anticoncepcionais pelos jovens brasileiros é muito reduzida, contando com
apenas 14% das meninas entre 15 e 19 anos que usam algum tipo de método.
Enquanto que os métodos contraceptivos são precariamente utilizados, estimase que o Brasil detenha os maiores índices de esterilização do mundo.
A esterilização cirúrgica feminina, método que consiste na ligadura
das trompas uterinas da mulher, é utilizada de forma abusiva pelas jovens
brasileiras, uma vez que deveriam ser seguidas uma série de formalidades
para desencorajar tal prática, previstas nos artigos 10 a 18 da Lei nº 9262/96. A
disseminação deste método em mulheres muito jovens traz consequências
negativas no campo dos direitos humanos, da economia, da política, da
cidadania, dentre vários outros.
Outro tipo de desrespeito aos direitos sexuais e reprodutivos das
mulheres do País consiste na curetagem sem anestesia, abordada por Teles
(2007, p. 80):
Quando chegam aos hospitais em processo de aborto, são tratadas
com descaso, com preconceito; não recebem nenhuma explicação
sobre seu estado de saúde/doença; não recebem orientação sobre
meios contraceptivos para lhes garantir sexo seguro e o planejamento
do número de filhos.
Como se pode observar, a curetagem sem anestesia é uma forma
de violência contra a mulher e, consequentemente, uma violação aos direitos
humanos.
As
práticas
médicas,
marcadas
pelo
controlismo
e
pela
desvalorização da fala e do corpo das mulheres, mostram-se como um dos
pontos fulcrais na qualidade do atendimento às mulheres, pela sua natureza
“violadora” e “violenta”, uma vez que objetificam o sujeito feminino,
transformando-o em objeto da intervenção (ARENDT, 2007).
135
O Brasil é um dos países que faz parte da rota do tráfico sexual.
Mulheres e crianças são levadas ao exterior para serem recrutadas à
prostituição. Sem falar nos casos de exploração sexual dentro do próprio País,
que adquire dimensões alarmantes.
O assédio sexual é uma prática comum no cenário nacional. Certas
ações dos homens não chegam propriamente a ser consideradas como
violações aos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres. É como se os
direitos das mulheres fossem secundários. Isso se deve a valores que estão
arraigados em nossa cultura e que dificultam a implementação de políticas que
visem à melhora desta situação. Da mesma forma, direitos fundamentais, como
o acesso aos meios contraceptivos e a interrupção da gravidez, tema polêmico
dentro da esfera jurídica brasileira, não são devidamente efetivados por causa
de pressões exercidas, em grande parte, por grupos religiosos.
Como não existem dispositivos nacionais exclusivos para os direitos
sexuais e reprodutivos, vê-se necessária a realização de interpretações
sistemáticas das normas constitucionais que possam fundamentar estes
direitos.
No artigo 1º da Constituição Federal de 1988, encontra-se o
princípio da dignidade da pessoa humana. No artigo 3º desta, estabelecem-se
os objetivos fundamentais da República, dentre os quais, está o de promover o
bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade, nem
qualquer outra discriminação. Já no seu artigo 5º, assegura-se a igualdade
entre homens e mulheres. Como se vê, de maneira direta ou indireta, a
Constituição comporta artigos que se relacionam aos direitos sexuais e
reprodutivos das mulheres.
O planejamento familiar é um dos elementos abarcados pelos
serviços de saúde reprodutiva, tendo sido incorporado ao sistema jurídico
brasileiro através do art. 226, §7º da Constituição Federal vigente, que diz:
7º - Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da
paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do
casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e
136
científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma
23
coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas.
Dessa maneira, foi concedida pelo constituinte de 1988, tanto ao
homem quanto a mulher, a titularidade dos direitos reprodutivos.
Posteriormente, o planejamento familiar foi regulamentado pela
edição da Lei nº 9263, de 12 de janeiro de 1996, sendo estabelecidas políticas
para a implementação de serviços nesta área, além do acesso aos meios
preventivos e educacionais para a regulação da fecundidade e prevenção de
doenças sexualmente transmissíveis.
Além das garantias fornecidas pela Constituição, alguns atos que
violam os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres encontram-se
sancionados pelo Código Penal Brasileiro, tais como o assédio sexual, a
exploração sexual, o estupro e o tráfico de mulheres.
O Brasil assumiu, nas Conferências da ONU, os compromissos de
assegurar o pleno exercício dos direitos reprodutivos e de fazer a revisão da
atual legislação que criminaliza o aborto no País. São várias as organizações
brasileiras que trabalham por esse objetivo. Além disso, a Secretaria Especial
de Políticas para as Mulheres (SEPM) da Presidência da República participa de
reuniões internacionais e produz documentos que avaliam a situação desses
direitos e o cumprimento dos acordos dos quais o País faz parte, enviando-os
junto às Nações Unidas e demais organizações internacionais.24
Diversas políticas públicas estão sendo implementadas por todo o
Brasil, principalmente na área da saúde, com especial atenção à assistência
obstétrica. No entanto, a saúde não é o único campo da vida da mulher que é
atingido pelo desrespeito aos seus direitos sexuais e reprodutivos.
Vale ressaltar que os direitos sexuais e reprodutivos são direitos
humanos que envolvem a saúde reprodutiva, o planejamento familiar, a
23
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil, Brasília,
DF, Senado, 1988.
24
PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA. Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres –
SPM. Disponível em: <http://www.presidencia.gov.br/estrutura_presidencia/sepm/> Acesso em:
05 set. 2010.
137
prevenção de doenças sexualmente transmissíveis, a proteção à família, a
igualdade de direitos, a liberdade sexual, o acesso a orientação sexual e
educação, dentre outras questões relacionadas à reprodução e ao bom
exercício da sexualidade.
Os titulares dos direitos sexuais e reprodutivos são: os casais, os
adolescentes, as mulheres, mesmo as solteiras, os homens e as pessoas
idosas. O que se percebe é que, apesar desses direitos terem sido estendidos
a todos os titulares citados, é para as mulheres que as políticas
governamentais e as normas estão mais voltadas, atribuindo a elas não
direitos, mas deveres reprodutivos. A respeito disso, Loyola (2005, p. 117) diz:
A posição reservada às mulheres no âmbito dessas normas constitui
um dos pontos de maior tensão no momento de sua aplicação e
elaboração, considerando que são estruturadas envolvendo,
preferencialmente, a capacidade reprodutiva feminina, atribuindo às
mulheres tão-somente deveres no âmbito reprodutivo.
Existe, dessa forma, uma assimetria dentro do campo reprodutivo,
incorporada não só pelas normas jurídicas, mas também pela produção
cultural, que diminui as liberdades da mulher ao mesmo tempo em que
aumenta suas responsabilidades reprodutivas e contraceptivas.
A partir do que acabou de ser dito, pode-se falar de uma intensa
dialética na relação entre público e privado. Assuntos tidos como estritamente
pertencentes à órbita privada, tais como a sexualidade e a reprodução,
aparecem fortemente regulados e disciplinados pelo Estado, de acordo com os
valores morais impostos pela cultura vigente. Segundo o pensamento de
Arendt (2001), o espaço privado não seria, para as mulheres, o espaço da
privacidade, mas o lócus da privação, da opressão e, muitas vezes da
violência.
Por fim, vale ressaltar o fato de que a cidade de Fortaleza, foco da
análise sobre a expressividade dos direitos sexuais e reprodutivos nas políticas
para mulheres, encontra-se em segundo lugar no ranking de exploração
sexual. Segundo a socióloga Graça Gadelha, especialista em políticas
públicas, este problema estaria relacionado a questões como pobreza, fome,
138
trabalho infantil e educação25. Estas devem configurar questões primordiais
dentro das políticas voltadas aos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres
como um todo, não apenas aquelas relacionadas à saúde reprodutiva ou à
contracepção.
O conceito de direitos sexuais e reprodutivos é bem mais amplo do
que imagina a maioria das pessoas. Por isso, além das políticas de saúde,
políticas públicas voltadas à educação e à socialização das pessoas são
essenciais, tendo em vista que esses elementos determinam o grau de
realização e valorização da mulher em relação ao seu corpo, sua possibilidade
de viver, de forma gratificante, sua sexualidade e de organizar sua vida
reprodutiva.
25
http://diariodonordeste.globo.com/materia.asp?codigo=813743
139
* ASPECTOS GERAIS DA METODOLOGIA
A presente pesquisa será do tipo qualitativa, posto que a mesma
“[...] trabalha com o universo de significados, motivos, aspirações, crenças,
valores e atitudes, o que corresponde a um espaço mais profundo das
relações, dos processos e dos fenômenos que não podem ser reduzidos à
operacionalização de variáveis”(MINAYO, 1993, p. 21-22). A mesma está
dotada de elementos de pesquisa observação do campo de investigação.
Acredita-se que é esse tipo de pesquisa que mais se sintoniza com a busca de
respostas para o problema investigativo, pois, para conhecer as vozes sobre o
tema, exercidos e proclamados por eles mesmos, é fundamental um estudo
qualitativo capaz de apreender, a partir dos discursos e práticas dos sujeitos da
pesquisa, as elaborações destes.
Para efetivação da pesquisa trabalhar-se-á com a pesquisa social de
cunho científico utilizando diversas técnicas para a coleta de dados, não
hesitando na utilização de diferentes e complementares instrumentos, seguindo
um rigor sem rigidez para que a apreensão e a produção do objeto de pesquisa
seja absorvido. De acordo com Minayo (1993), as ciências sociais possuem
consciência histórica, entendendo o objeto de pesquisa como agente de
transformação da sociedade.
A pesquisa analisará a trajetória da construção de políticas públicas
para mulheres no Brasil, estas referentes aos direitos sexuais e reprodutivos.
Para tanto, tomaremos como base as políticas implementadas na cidade de
Fortaleza e desenvolveremos o tema a partir de pesquisa bibliográfica,
mediante explicações embasadas em trabalhos publicados sob forma de livros,
revistas e artigos científicos, mídia impressa e dados oficiais fornecidos por
órgãos competentes, que abordam direta ou indiretamente a temática em
análise.
Nossa hipótese, seguindo Arendt (2001) e apoiando o pensamento
do “novo feminismo”, emergente na década de 60 no Brasil, é de que, ao
contrário da idéia dicotômica que estabelece uma separação irreconciliável
entre o espaço privado e o espaço público, quando se trata de direitos sexuais
140
e reprodutivos das mulheres, o que se percebe é uma intensa dialética na
relação público privado. A opinião predominante no desenvolvimento desta
pesquisa é de que os valores culturais, sobretudo religiosos, influenciam na
defesa dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres e, consequentemente,
na elaboração de políticas públicas voltadas para as reais necessidades das
mesmas dentro do contexto da sexualidade e da reprodução.
Paralelamente à pesquisa bibliográfica, a pesquisadora participará
das Conferências de Políticas para Mulheres e de atividades desenvolvidas
pela Coordenadoria de Políticas para Mulheres da Prefeitura de Fortaleza,
onde a observação simples favorecerá a construção do espaço de
aproximação e convivência informal, estabelecendo assim uma relação de
conhecimento entre sujeito-objeto. Acompanhado ao processo, utilizar-se-á o
diário de campo tendo como objetivo relatar, e posteriormente resgatar, as
experiências vivenciadas e acumuladas durante o processo de inserção no
cotidiano da Coordenadoria. Contudo, Minayo (1993, p. 60) afirma que:
A importância dessa técnica reside de podermos captar uma
variedade de situações ou fenômenos que não são obtidos por meio
de perguntas, uma vez que, observados diretamente na própria
realidade, transmite o que há de mais imponderável e evasivo na vida
real.
Concomitante ao uso
dessas ferramentas,
serão realizadas
entrevistas com os/as profissionais da Coordenadoria de Políticas para
Mulheres. A entrevista torna-se instrumento privilegiado para a pesquisa, na
medida que possibilitará revelar através do discurso as concepções que
norteiam as ações do grupo. Em um segundo momento, será realizada
entrevista com parlamentares que atuam na temática dos direitos humanos das
mulheres. Além das entrevistas já citadas, a pesquisadora realizará entrevistas
com autoridades da Igreja Católica, a fim de analisar o ponto de vista religioso
acerca dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, bem como a
influência cultural sobre as políticas públicas. Para captar esses depoimentos
será utilizada a entrevista semi-estruturada, constituída por um roteiro que
propicie a apreensão do objeto da investigação.
(...) realizar uma reflexão geral sobre as condições de produção e
apreensão da significação de textos produzidos nos mais diferentes
141
campos: religioso, filosófico, jurídico e sócio político. Ela visa a
compreender o modo de funcionamento, os princípios e organização
e as formas de produção social do sentido (MINAYO, 1993, p. 211).
Ressalta-se ainda que os procedimentos são passíveis de
alteração podendo ser modificados e/ou acrescidos de novos elementos, caso
não demonstrem eficiência no alcance dos objetivos propostos.
142
* CRONOGRAMA DE ATIVIDADES
Ano: 2011
M
Atividades
ês
J
Levantamento bibliográfico e no meio eletrônico.
aneiro
No decorrer do ano 2011, a proposta é que o projeto seja
melhor preparado mês a mês.
F
evereiro
bibliográfica.
M
arço
bril
Cumprimento das disciplinas do curso de mestrado; revisão
bibliográfica.
M
aio
Cumprimento das disciplinas do curso de mestrado; revisão
bibliográfica.
J
unho
Cumprimento das disciplinas do curso de mestrado; revisão
bibliográfica; pesquisa de campo.
J
Aprofundamento de leituras; redação de artigo científico;
pesquisa de campo.
A
gosto
Cumprimento das disciplinas do curso de mestrado; revisão
bibliográfica.
A
ulho
Cumprimento das disciplinas do curso de mestrado; revisão
Cumprimento das disciplinas do curso de mestrado; revisão
bibliográfica; pesquisa de campo.
143
S
etembro
Cumprimento das disciplinas do curso de mestrado; revisão
bibliográfica; pesquisa de campo.
O
utubro
Cumprimento das disciplinas do curso de mestrado; revisão
bibliográfica; pesquisa de campo.
N
Cumprimento das disciplinas do curso de mestrado; pesquisa
ovembro de campo.
D
Aprofundamento de leituras.
ezembro
Ano: 2012
M
Atividades
ês
J
Análise de dados.
F
Análise de dados; Qualificação.
M
Análise de dados.
A
Análise de dados; elaboração da dissertação.
M
Análise de dados; elaboração da dissertação.
aneiro
evereiro
arço
bril
aio
144
J
Análise de dados; elaboração da dissertação.
J
Análise de dados; elaboração da dissertação.
A
Elaboração da dissertação.
S
Elaboração da dissertação.
O
Elaboração da dissertação; revisão da dissertação.
N
Revisão da dissertação; correção de língua portuguesa.
D
DEFESA DA DISSERTAÇÃO
unho
ulho
gosto
etembro
utubro
ovembro
ezembro
145
* BIBLIOGRAFIA
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2007.
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TELES, Maria Amélia de Almeida. O que são direitos humanos das
mulheres. 1. ed. São Paulo: Editora Brasiliense, 2007.
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DIREITOS SEXUAIS E REPRODUTIVOS DAS MULHERES